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GESTÃO: O FUTURO DA ESTRATÉGIA

GESTÃO

O futuro da
estratégia
J
ay Barney é considerado hoje uma das principais autoridades
no estudo de estratégia. Professor de Administração na Ohio
State University, é um dos criadores do conceito da “visão
baseada em recursos” (RBV), pedra fundamental do campo. Durante
a Terceira Conferência Internacional da Iberoamerican Academy of
Management, ocorrida em São Paulo, o pesquisador concedeu esta
entrevista à RAE-executivo, na qual fala sobre RBV e sua preocupação
com a estratégia em contextos turbulentos.
GUSTAVO ROSA - HOT DOG - OLEO SOBRE TELA - 2000

por Flávio Carvalho de Vasconcelos e Luiz Artur Ledur Brito FGV-EAESP

FCV: O senhor é um dos criadores da visão têm um desempenho superior a outras. Uma empresa é
baseada em recursos (RBV, em inglês) em vista como um conjunto de recursos e competências que
estratégia. Poderia explicar o conceito? lhe permitem competir em certas situações e implemen-
JB: A RBV oferece um conjunto de ferramentas, basea- tar estratégias específicas. A RBV analisa os atributos des-
das em uma teoria que explica porque algumas empresas ses recursos e competências e como eles podem ajudar as

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empresas a se diferenciar das demais e manter tal diferen- tabelecemos o primeiro passo: o produto é valioso. Dan-
cial ao longo do tempo. do seqüência, faço outra pergunta: Será que o produto
também é raro? Às vezes os gerentes admitem que existe
FCV: A RBV é uma coisa prática? Pode ser uma dezena de outras empresas fazendo um produto se-
usada pelos executivos? melhante; logo, ele não é raro. Nesse caso, o produto não
JB: Pode, e muito. Eu a uso intensamente em minha pró- poderá ser fonte de vantagem competitiva. Seguindo esse
pria atividade de consultoria e também em pesquisa aca- procedimento, o que se deve fazer é ir rejeitando as hipó-
dêmica. A RBV pode ser usada para muitas finalidades. teses até encontrar uma que passe por todos esses testes,
Sua utilidade principal é ajudar os executivos a identificar encontrando o que realmente torna a empresa especial. O
quais recursos e competências podem ser fontes de van- que o modelo VRIO faz é identificar qual é, de fato, a com-
tagem competitiva sustentável e quais têm uma baixa pro- petência essencial da empresa em questão.
babilidade de sê-lo. Uma das formas para fazê-lo é utilizar
um dos modelos-chave da RBV: o modelo VRIO – V de LAB: Um amigo tem uma barraquinha de
valioso, R de raro, I de dificilmente imitável e O de cachorro-quente muito bem sucedida... O
organizável. Se você tiver recursos que criam valor, que senhor se lembra dessa história?
sejam raros, difíceis ou custosos de ser imitados, e se vocêJB: Uma das formas que uso para ensinar a RBV é citar
puder se organizar para explorá-los, esses recursos po- esse caso hipotético muito simples. Começo contando que,
dem constituir uma fonte de vantagem competitiva sus- além de ser professor e consultor, tenho uma barraquinha
tentável para a sua empresa. Porém, se um recurso é valio- de cachorro quente como negócio particular, paralelo. É
so, mas não raro, o máximo que pode acontecer é sua uma barraquinha muito bem-sucedida. Na verdade, consi-
empresa ficar em paridade com outras. Por outro lado, se go tirar desse negócio cerca de 10 mil dólares por mês!
Descontados os impostos! Nada mal para
um professor universitário. Movido pela
Assumir riscos, trabalhar duro e escolher ambição, estou pensando em expandir
o negócio, talvez até em mudar de pro-
bem os colaboradores não são fatores de fissão, mas não tenho certeza do que real-
mente torna a barraquinha de cachorro-
diferenciação entre empreendedores bem- quente tão bem sucedida. Reúno-me
então com um grupo de amigos para
sucedidos e empreendedores fracassados.
levantar sugestões sobre os fatores que
realmente levam ao sucesso. Alguém
um recurso é valioso, raro, mas de fácil imitação, ele só sempre sugere que poderia ser a qualidade das salsichas.
pode ser fonte de vantagem competitiva temporária. É o De fato, uso salsichas de qualidade. O pão também é exce-
fato de ser difícil ou custoso de imitar que torna a vanta- lente, comprado fresquinho todo o dia. A barraquinha é
gem competitiva sustentável. Meu trabalho consiste então muito limpa e arrumada, e o serviço é rápido. Além disso,
em reunir os membros da equipe gerencial e lhes pergun- há ainda um molho especial que faço tendo por base uma
tar o que torna ou poderia tornar a empresa deles bem- receita da tataravó da minha esposa, de origem polonesa.
sucedida. Eles então geram hipóteses de recursos que le- Temos também um jingle exclusivo. Só canto em situações
vam ao sucesso, identificando sua competência essencial. especiais. Todos esses aspectos são, sem dúvida, possibili-
Algumas vezes dizem: “São os nossos produtos. Temos dades plausíveis do motivo por que a empresa está indo
esse produto excepcional que é ótimo”. Então pergunto: tão bem. Agora, se você usa o modelo VRIO, a solução fica
“Bom, existe demanda para o produto, os clientes o apre- bem mais fácil. Por exemplo, as salsichas são claramente
ciam?” Normalmente eles respondem que sim. Então, es- valiosas, mas não são raras: todos podem comprá-las do

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mesmo fornecedor. O que elas podem fazer é igualar mi- muitas situações. Na carreira, por exemplo. Ter um MBA
nha empresa à de outros, sem no entanto caracterizar van- nos Estados Unidos é certamente valioso, mas não é mais
tagem competitiva. O mesmo vale para os pães. Idem para raro, a não ser que você tenha um MBA das escolas mais
a limpeza e rapidez. Competimos, por exemplo, com o famosas, o que é, ao mesmo tempo, raro e custoso para
McDonalds nesse quesito! São todos fatores valiosos, po- ser imitado. Desse modo, o retorno de um MBA das esco-
rém não são raros. Já quanto ao jingle... ele é, na verdade, las de ponta é alto, enquanto o retorno de uma escola
horrível! Nem valioso ele chega a ser, podendo então ser comum é bastante baixo.
facilmente descartável. No final, o que resta é o molho ba-
seado na receita da tataravó de minha esposa. Ele é valioso LAB: Em uma de suas conferências, o senhor
e também raro. Ninguém tem a receita, e por isso ninguém mencionou que, ao aplicar esse modelo ao
consegue imitá-lo. Escondemos a receita de todo mundo. fenômeno da “bolha da Internet”, o senhor
A questão que surge é: se isso for fonte de vantagem com- foi capaz de prever que ela explodiria.
petitiva sustentável, como devo me organizar para explorá- JB: É verdade. Eu estava em uma conferência na Itália, e
la melhor? Uma das formas de fazê-lo seria abrir uma rede por razões que não conseguia entender, esse fenômeno da
de barraquinhas de cachorro-quente ou então montar uma super-avaliação das empresas envolvidas com a Internet
franquia. Porém, se o que nos distingue é o molho, talvez era ainda maior lá do que nos Estados Unidos. Alguém
devêssemos vender apenas o molho. Dessa discussão pode me perguntou como eu aplicaria o modelo VRIO às em-
surgir uma estratégia que inclui a embalagem do molho e presas da Internet. Novamente, a primeira pergunta a ser
sua venda pela Internet; ou uma estratégia ainda melhor, feita é se essas empresas trazem alguma coisa que tenha
como a formação de uma aliança com uma empresa de valor para o mercado. A resposta é sim para algumas, e
produção e distribuição de produtos de consumo, que pu- não para outras. O que é raro nas empresas da Internet? A
desse explorar o negócio mais amplamente. interface? Não, pois muitas pessoas podem construir uma,
ou facilmente contratar alguém para fazer por elas. Seria o
LAB: A analogia com o que acontece produto? Dificilmente, pois a maioria dos produtos tam-
em grandes empresas é possível? bém é vendida por outros canais. Talvez algumas pistas
JB: Claro que o exemplo da barraquinha de cachorro- venham da marca. Uma empresa como a Amazon real-
quente é muito simples, mas não muito distante do que se mente tem uma marca forte; idem para o eBay. Consigo
faz nas empresas, grandes ou pequenas. Nos Estados Uni- ver algumas empresas que têm marca forte, mas não mui-
dos, e acredito que no Brasil também, quando você per- tas. Essas empresas podem ter algo valioso e raro. As mar-
gunta a um empreendedor bem-sucedido o que o levou cas também podem custar para serem imitadas, pois le-
ao sucesso, as respostas são algo como: trabalhei duro, vam um bom tempo para serem construídas. Contudo, a
assumi riscos e tive bons colaboradores. Por outro lado, grande maioria das empresas “comuns” da Internet não
quando você pergunta a um empreendedor fracassado o tem nenhuma fonte identificável de vantagem competiti-
que deu errado, ele responde: não sei, trabalhei duro, as- va sustentável.
sumi riscos e tive bons colaboradores. Se isso for verdade,
trabalhar duro, assumir riscos e escolher as pessoas certas FCV: Quais são as suas idéias quanto ao
não são fatores de diferenciação entre empreendedores futuro da estratégia. Quais os reais
bem-sucedidos e fracassados. Esses fatores são claramen- desafios para os executivos e
te valiosos, mas não são raros. Não podem ser uma fonte pesquisadores?
de vantagem competitiva sustentável. JB: Comecemos com os executivos. Os problemas que
eles enfrentam não são novos, mas são difíceis. Essa difi-
FCV: Que outros usos tem o modelo VRIO? culdade se relaciona com o impacto da incerteza em nos-
JB: O modelo VRIO é muito útil. Você pode usá-lo em sa vida, tanto pessoal como profissionalmente, como ho-

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mens de negócios. Se pudéssemos prever todas as mu- de cachorro-quente é minha e busco envolver os alunos
danças no ambiente competitivo, na política e na econo- na discussão, obtendo quase sempre uma grande lista de
mia mundial, a estratégia seria simples, trivial. Sabería- alternativas para o estudo do modelo VRIO. Em segui-
mos exatamente o que fazer. É claro que em um mundo da, aplico o modelo às alternativas, e acabamos rejeitan-
como esse também não haveria vantagens competitivas. do todas essas hipóteses, uma a uma, até restar o molho
Acredito que modo como tomamos decisões, conduzi- especial. Desenvolvo o restante do curso com casos. Não
mos organizações, criamos estratégias e as implementamos é difícil entender a teoria; o segredo é aprender a aplicá-
frente a essa tempestade de incertezas é o desafio mais la. Com 10 ou 15 casos, vários aspectos podem ser co-
crítico, tanto do ponto de vista intelectual como prático. bertos. Uso diversos casos clássicos, mas os interpreto
Há muitas pessoas ao redor do mundo capazes de orien- de forma particular. Originalmente, eles não foram es-
critos com as idéias da visão basea-
da em recursos, mas funcionam
A utilidade principal da “visão baseada muito bem quando interpretados à
luz dela. Um exemplo é o caso da
em recursos” (RBV) é ajudar os gerentes Southwest, no início dos anos 1990.

a identificar quais recursos e competências Na ocasião, os executivos da empre-


sa estavam discutindo onde alocar
podem constituir uma fonte de vantagem três novas aeronaves. A escolha era
entre ampliar o sistema de rotas exis-
competitiva sustentável tente ou migrar para um sistema to-
talmente novo, atingindo a costa les-
te dos Estados Unidos, onde nunca
tar uma empresa no processo de planejamento estratégi- haviam estado antes. Quando se aplica o modelo VRIO a
co: definir uma missão, escolher os objetivos, as metas, esse caso, considerando quem poderia competir com a
etc. Todo esse aparato é, contudo, inútil frente a algo como Southwest, a análise claramente indica que eles deve-
o choque de 11 de setembro nos Estados Unidos ou a riam ir à costa leste. Essa decisão não é óbvia no come-
depreciação da moeda na Argentina. Em uma semana, tudo ço. Quando pergunto aos alunos, antes, o que eles deve-
pode mudar, e de forma imprevisível. Aprender a tratar riam fazer, a maioria opta por uma solução segura: a sim-
essa imprevisibilidade e levá-la em conta em nossos mo- ples expansão da rota já existente. A lógica da visão ba-
delos é o grande desafio. No modelo VRIO isso se reflete seada em recursos revela que esse é o momento de as-
na dificuldade de determinar se algo é realmente valioso sumir um risco. O caso evidencia o caráter prático das
ou raro. Quando é possível responder a essas questões, ferramentas.
torna-se relativamente fácil determinar qual estratégia se-
guir. O quebra-cabeça intelectual se configura quando não
é possível responder a essas questões devido à incerteza. Flávio Carvalho de Vasconcelos
Prof. do Departamento de Administração Geral e Recursos
FCV: Ler e aprender sobre estratégia é algo Humanos da FGV-EAESP
Doutor em Administração de Empresas pela HEC/Paris
que deve estar no topo da agenda dos E-mail: fvasconcelos@fgvsp.br
executivos. Qual a sua recomendação para o
ensino da estratégia? Luiz Artur Ledur Brito
Prof. do Departamento de Produção e Operações Industriais da
JB: O exemplo da barraquinha de cachorro-quente é a
FGV-EAESP
maneira como introduzo as noções da visão baseada em Doutorando em Administração na FGV-EAESP
recursos de estratégia. Faço de conta que a barraquinha E-mail: lbrito@fgvsp.br

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