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DIREITOS HUMANOS

AUTORES: MICHAEL FREITAS MOHALLEM, AMANDA PERES, BRUNA BRILHANTE,


VINICIUS REIS, LARISSA CAMPOS E LUÍZA BRUXELLAS
COLABORADOR: WALDO RAMALHO

GRADUAÇÃO
2016.2
Sumário
Direitos Humanos

APRESENTAÇÃO DO CURSO DE DIREITOS HUMANOS...................................................................................................... 3

AULA 01: INTRODUÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS......................................................................................................... 6

AULA 02: DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DOS DIREITOS HUMANOS............................................................................... 16

AULA 03: UNIVERSALISMO E RELATIVISMO CULTURAL DOS DIREITOS HUMANOS............................................................... 28

AULA 04: A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS................................................................... 38

AULA 05: SISTEMA GLOBAL — MECANISMOS CONVENCIONAIS E EXTRACONVENCIONAIS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS........47

AULA 06: SISTEMAS REGIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS


— INTRODUÇÃO AOS SISTEMAS EUROPEU, AFRICANO E AMERICANO.............................................................................. 57

AULA 07: SISTEMA INTERAMERICANO — A COMISSÃO E A CORTE INTERAMERICANAS DE DIREITOS HUMANOS......................... 63

AULAS 08 E 09: FUNDAMENTOS DOS DIREITOS ECONÔMICOS SOCIAIS E CULTURAIS


— POBREZA EXTREMA E DIREITOS HUMANOS.......................................................................................................... 78

AULA 10: DIREITO À VIDA..................................................................................................................................... 97

AULA 11: LIBERDADE DE RELIGIÃO E DIREITO AO ESTADO LAICO.................................................................................. 106

AULA 12: DIREITOS HUMANOS E VIOLÊNCIA URBANA — HOMICÍDIO, TRÁFICO E SUPERENCARCERAMENTO........................... 116

AULA 13: DIREITO HUMANITÁRIO......................................................................................................................... 124

AULA 14: REFUGIADOS...................................................................................................................................... 133

AULA 15: TRABALHO ESCRAVO............................................................................................................................ 142

AULA 16: DISCRIMINAÇÃO E VIOLÊNCIA DE GÊNERO................................................................................................. 147

AULA 17: ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO......................................................................................... 159

AULA 18: CRIANÇA E ADOLESCENTE...................................................................................................................... 166

AULA 19: DISCRIMINAÇÃO RACIAL........................................................................................................................ 180

AULA 20: POVOS INDÍGENAS E TRIBAIS................................................................................................................. 193

AULA 21: DIREITO AO DESENVOLVIMENTO.............................................................................................................. 206

AULA 22: MEIO AMBIENTE E DIREITOS HUMANOS.................................................................................................... 210

AULA 23: A DITADURA MILITAR E A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL......................................................................... 224

AULA 24: O PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL NA PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS............................................................. 232

AULA 25: PRIVACIDADE..................................................................................................................................... 234


Direitos Humanos

APRESENTAÇÃO DO CURSO DE DIREITOS HUMANOS

O curso oferecerá espaço para o desenvolvimento do conhecimento tanto


em sala de aula, por meio dos debates sobre as leituras e sobre os aconteci-
mentos reais que envolvem aspectos jurídicos e políticos dos direitos huma-
nos, quanto pelo aprendizado orientado pelas leituras semanais e atividades
de pesquisa que formam o curso de direitos humanos. A metodologia parti-
cipativa será adotada e as leituras obrigatórias serão esperadas para o aprofun-
damento das discussões. A cada tema serão discutidas as visões doutrinárias
e decisões jurisdicionais pertinentes bem como a análise crítica dos tratados
internacionais de direitos humanos e eventual ausência de direitos positiva-
dos na esfera internacional e doméstica.

BIBLIOGRAFIA

O curso não seguirá um único livro, manual ou apostila. O roteiro indi-


cará leituras obrigatórias e facultativas para cada aula. Algumas leituras serão
em inglês.
Acesso aos materiais de leitura: o curso está organizado na plataforma
ECLASS FGV (https://eclass.fgv.br). As leituras para cada aula serão dispo-
nibilizadas com antecedência, haverá sugestões de leituras e atividades com-
plementares, bem como sugestões de filmes e sites relevantes para os temas
estudados.

ATENDIMENTO AOS ALUNOS

Procure trazer as questões no horário das aulas sempre que possível, ou logo
depois de encerrada a aula. Caso necessite tratar de assunto fora do ambiente
de sala de aula, o professor estará disponível na sua sala (13º andar, sala 1318)
terças e quintas das 16:00 às 16:30h, mas por favor agende o horário por email
ou telefone. O email também é uma opção para resolver um problema, embo-
ra a resposta nem sempre será imediata: michael.mohallem@fgv.br

CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO

Haverá quatro atividades obrigatórias de avaliação e uma opcional:


1. Prova 1 (sem consulta, 30% da nota total): a prova terá duração
máxima de 1:40h. Não é permitida a consulta de quaisquer mate-
riais, legislação ou tratados. A prova tem como limite 4 páginas ou

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1 folha almaço. Deverão ser respondidas questões selecionadas pelo


aluno dentre um universo de questões definidas pelo professor (o
número de questões disponíveis e o número de perguntas obrigató-
rias serão definidos posteriormente).
2. Prova 2 (com consulta, 50% da nota total): a prova terá duração
máxima de 1:40h. Permite-se a consulta a quaisquer materiais, ex-
ceto por meio de aparelhos eletrônicos e o contato com colegas. A
prova tem como limite 4 páginas ou 1 folha almaço.
3. Argumento jurisprudencial em direitos humanos (10% da nota
total): cada aluno fará um breve trabalho selecionando 1 tema para
apresentar durante a respectiva aula. O trabalho deverá defender
um argumento, ou uma tese jurídica sobre determinada questão de
direitos humanos, fundamentando com a jurisprudência de um ou
mais de um tribunal internacional, comissão ou comitê de tratado
de direitos humanos. O trabalho escrito deverá ser entregue até 2
dias antes da aula/apresentação através do sistema de dropbox no
ambiente ECLASS da disciplina de Direitos Humanos.
4. Participação em sala de aula (10% da nota total): a participa-
ção será avaliada através de questões apresentadas pelo professor
em sala de aula, sobre a leitura obrigatória e temas das aulas. Os
alunos responderão voluntariamente através dos seus celulares ou
computadores através do site http://www.socrative.com (turma:
9PMEYAFQ) e através do debate tradicional.
5. Atividade complementar (+ 5% da nota total): os alunos que qui-
serem obter como nota extra até o máximo de 5% da nota total de-
verão propor uma atividade que envolva tema de direitos humanos,
que seja complementar ao curso e que seja realizada de modo inde-
pendente das aulas. Por exemplo, a aluna e aluno poderão organizar
um debate por conta própria ou em parceria com um dos coletivos
da Escola (como o Coletivo Utopia, o Coletivo de Mulheres, a Re-
vista Ágora ou o Centro Acadêmico), poderão elaborar um artigo
para ser publicado em site jurídico, jornal ou mesmo na revista
Ágora, poderão participar de atividade relevante para os direitos
humanos com uma ONG, etc. Esses são exemplos. Antes de iniciar
a atividade, fale com o professor para se certificar de que será consi-
derada para fins de avaliação.

Procure observar os seguintes pontos durante a elaboração das provas:

1. Observe o limite de páginas.


2. Leitura atenta dos enunciados.
3. Objetividade da resposta e cuidado com repetição de uma mesma ideia.

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4. Pode ser que se exija conhecimento especifico de uma ou mais leitu-


ras. Neste caso, não adiante dar a sua opinião. Será esperada a visão
crítica sobre os argumentos e teses da autora ou autor.
5. Se a prova for com escolhas de questões, espera-se que a escolha
seja por assuntos que o aluno sinta-se pronto para responder. Não
escolha questões sobre as quais não tem segurança para responder.
6. Atenção às palavra usadas e rigor das ideias.
7. Direitos humanos não é um apanhado de opiniões pessoais. Há
questões que exigem técnica jurídica.
8. Preparem-se para fazer a prova. A participação em sala e os slides não
são suficientes. A leitura será necessária para um bom desempenho.

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AULA 01: INTRODUÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

Na primeira aula assistiremos trechos de 3 filmes que tratam de violações


de direitos humanos. Os trechos serão retirados do Documentário “Ônibus
174”, de José Padilha, do Filme “Tropa de Elite 2: o Inimigo agora É Outro”,
também de José Padilha e de “Carandiru: O Filme”, de Héctor Babenco. Em
seguida será feita uma discussão sobre as principais questões suscitadas pelos
filmes. Os textos abaixo auxiliam a compreensão dos trechos selecionados e
ajudarão a incrementar o debate em sala de aula.
O objetivo dessa aula é discutir a necessidade da existência dos direitos
humanos como uma forma de garantia de proteção universal. Os direitos
humanos não fazem distinção entre raça, religião ou classe social. Além de
pregar a igualdade, sua utilidade imediata é impedir que as pessoas tenham
seus direitos mais básicos, como a vida, violados.
As cenas selecionadas do documentário “Ônibus 174” e o texto de apoio
dessa aula pretendem mostrar o lado oculto da violência. Neste caso, o se-
questrador do ônibus, o Sandro, vivenciou a Chacina da Candelária quando
era criança e desde então nunca teve qualquer tipo de reparação ou mesmo de
apoio básico do Estado. Dessa forma, observa-se que há um outro lado nessa
em em muitas outras histórias de violência,que ignora que o Estado e a so-
ciedade como todo criam diversos “Sandros” diariamente quando não agem
contra as violações de direitos humanos ou não oferecem o suporte mínimo
que qualquer pessoa necessita para se desenvolver.
O filme “Tropa de Elite 2: o Inimigo agora é Outro” mostra o lado de
defensores dos direitos humanos que buscam solucionar os confrontos com
a polícia de forma pacífica e sem a violência de costume do BOPE. A cena a
ser passada em sala de aula mostra o Capitão Nascimento chamando o de-
tento de Bangu I de “vagabundo” e Fraga, defensor de direitos humanos, de
“defensor de vagabundo”. Essa forma de referência é muito comum, mas será
que faz jus a essas pessoas? Será que esses defensores só defendem bandido?
Ou será que eles buscam o respeito a direitos tão básicos, como o da vida, que
acabam atingindo em maior escala a faixa da população mais pobre e que, por
uma questão socioeconômica, acaba sendo também a classe que mais comete
crimes de sangue?
Sobre o filme Carandiru, nota-se com muita clareza, na cena destacada, a
violência policial e o extermínio que ocorreu nessa prisão. Homens desarma-
dos e sem chances de defesa foram mortos a tiros. Abaixo selecionou-se uma
notícia (texto 3) que fala sobre como o Brasil, 22 anos depois do massacre,
devido a má gestão de seus presídios, está colaborando para a criação de mais
“Carandirus”.

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TEXTO 1:

Tragédia do ônibus 174 completa quinze anos


12/06/2015, por William de Oliveira

Há exatos quinze anos uma tragédia que marcou a cidade do Rio de Ja-
neiro acontecia dentro do ônibus que fazia o itinerário Gávea — Central do
Brasil. O episódio, que ficou conhecido como “Ônibus 174”, mudou os ru-
mos da política de segurança pública da cidade, foi roteiro de documentários,
filme de ficção e continua sendo tema de debate até hoje.
Em entrevista para o Viva Favela, Damiana Souza, última refém a deixar
o ônibus, relata o que aconteceu no dia e como tem sido sua vida após a tra-
gédia. “Como é que pode a gente sair de casa, feliz, de mão dada uma com
a outra…Era dia 12 de junho. Encontramos meu marido no caminho e ele
falou ‘vocês estão com cara de que vão aprontar’ e a Geisa respondeu ‘a gente
vai passear no shopping’ e descemos rindo”, lembra.
O desenho da tragédia
Geisa Gonçalves tinha 21 anos e estava grávida de dois meses. Ela e San-
dro Nascimento, que tinham a mesma idade, foram as duas únicas vítimas
fatais do episódio. Geisa viera de Fortaleza dois anos antes e estava morando
na Rocinha fazia oito meses. Lá ela conheceu Damiana e se tornaram grandes
amigas, tanto que se tratavam como mãe e filha. As duas também eram com-
panheiras de trabalho na Ong Curumim, que funcionava no alto da favela.
No 12 de junho do ano 2000 as duas embarcaram juntas no ônibus 174
rumo a um banco no Jardim Botânico para trocar um cheque no valor de
R$130, referente à venda de cestas de material reciclado confeccionadas por
Geisa na Ong.
Sandro subiu alguns pontos depois armado com um revólver. Um dos pas-
sageiros percebeu a arma na cintura dele e avisou à uma viatura da polícia que
passava pela rua no momento. A partir daí a tragédia começou a se desenhar.
Os policiais pararam o ônibus para fazer uma averiguação e Sandro fez reféns
os oito passageiros que estavam no veículo.
Foram mais de quatro horas de terror dentro do ônibus, dos quais Da-
miana destaca dois momentos de maior tensão. O primeiro, quando Sandro
disse que mataria uma das reféns depois que contasse até cem. “Ele contava
pulando os números, quando chegou no cem, ele fez ela se abaixar e fingiu
ter dado um tiro na cabeça dela”, recorda. O outro foi quando ele colocou a
arma na cabeça da Geisa e disse que ela iria morrer. “Ele dizia o tempo todo
que a culpa era da polícia, que ele só queria ir embora, que ele não ia fazer
nada, mas que a polícia causou a situação. Depois ele começou a gritar, fez
um disparo para fora do ônibus, ficou fora de si e dizia que iria matar alguém”
[…].

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“O Sandro era mais um”


Já era noite quando Sandro desceu do ônibus ainda com a arma aponta-
da para a cabeça de Geisa. O que parecia o fim do terror, acabou tendo um
desfecho trágico. O policial do BOPE (Batalhão de Operações Especiais),
Marcelo Santos, disparou contra Sandro, mas acertou o queixo de Geisa, que
acabou levando três tiros nas costas do sequestrador.
Sandro morreu asfixiado pelos próprios policiais depois de ser colocado no
camburão. Ele era um dos sobreviventes da chacina da Candelária, já havia
passado por vários abrigos e vivia nas ruas quando cometeu o crime […].
O policial que atirou em Geisa foi levado a júri popular e absolvido. A
tragédia ficou tão marcada na memória da população que pouco mais de ano
após o sequestro, a linha 74 mudou de número, passando a se chamar 158.

Link: http://vivafavela.com.br/708-tragedia-do-onibus-174-completa-quin-
ze-anos/

TEXTO 2:

Tropa de elite 2, pelos olhos dos direitos humanos


Organizações pontuam pontos positivos e negativos no filme de maior público
de todos tempos
03/02/2011, por Leandro Uchoas

Tropa de elite 2 já conseguiria uma grande proeza se apenas superasse, em


bilheteria, o primeiro filme da série. Foi muito além. O longa está chegando
a 11 milhões de espectadores, um recorde. Ultrapassou o estadunidense Ava-
tar como filme mais assistido no Brasil em 2010 (9,1 milhões). É a película
mais vista no país nos últimos 12 anos, perdendo apenas para Titanic, com
público de 16 milhões. Como se não bastasse, o filme surge num momento
político ímpar. Lançado uma semana após o primeiro turno das eleições,
alcançou seu auge nas bilheterias paralelamente a uma das maiores crises de
segurança pública do Rio de Janeiro. Se o filme, por si só, já alimentava o
debate, a escalada de violência veio apenas a somar — não tencionando a
discussão, necessariamente, para a mesma direção.
Um dos debates que se colocam com mais naturalidade é como os movi-
mentos e as organizações de direitos humanos receberam o longa. O primeiro
Tropa de elite foi amplamente criticado por alguns setores. Considerado por
muitos um filme fascista, foi rechaçado em uma série de debates públicos. O
diretor José Padilha e o ator Wagner Moura, em incontáveis ocasiões, vieram
a público em defesa de seu argumento — o filme estaria mostrando a segu-
rança pública sob o olhar de um policial do Bope, este sim eventualmente

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fascista. Para os setores mais críticos, a explicação não foi aceita. Tropa de
elite 2, propositalmente ou não, traz elementos novos. Surge nas telas um
capitão Nascimento mais maduro, mais crítico sobre seu papel; as entranhas
corruptas da polícia são explicitadas; um novo “inimigo” aparece, as milícias;
um novo personagem, o professor Diogo Fraga, inspirado no deputado esta-
dual Marcelo Freixo (PsolRJ), encarna a defesa dos direitos humanos.
A pedido do Brasil de Fato, organizações de direitos humanos escreveram
textos analisando o filme. As opiniões são diversas. Em geral, acreditasse que
houve avanços, mas se pontua uma série de elementos preocupantes na nova
película — principalmente tendo em vista sua mais do que comprovada ca-
pacidade de diálogo com a sociedade. “O novo capitão Nascimento combate
as milícias e entende que o problema da violência é também um problema
político. Quem queria um herói que luta contra o mal e mata ‘bandidos vaga-
bundos’ não gostou”, diz Taiguara Souza, do Instituto de Defensores de Di-
reitos Humanos (IDDH), que também pontua a qualidade técnica do filme.
“Enquanto na primeira versão de Tropa de elite dava-se ênfase ao discurso
policial, margem à apologia da tortura e à legitimação dos discursos fascistas,
a atuação do deputado Diogo Fraga mostrou a ineficácia dessa política de
segurança pública”, completa.
Taiguara, porém, aponta problemas. “Como a primeira versão, [o filme]
constrói e reafirma conceitos problemáticos no imaginário social: heroiciza o
Bope como padrão de polícia incorruptível, que pode violar garantias funda-
mentais para cumprir suas missões institucionais. O roteiro centra-se, ainda, no
paradigma do inimigo. Não mais traficantes, mas milícias paramilitares”, diz.
Na Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, os integran-
tes debateram coletivamente o filme para elaborar um texto. Consideram que
Tropa de elite 2 suscita uma reflexão crítica maior em relação ao primeiro
filme, a corrupção política e policial aparece como um problema mais grave
que o tráfico, e o movimento de direitos humanos é retratado de maneira
mais interessante, ainda que através de um único personagem.
A principal crítica que a Rede faz, no entanto, diz respeito aos prota-
gonistas. “As principais vítimas do sistema de violência e criminalidade, as
moradoras e moradores das comunidades pobres, estão literalmente ausentes
do enredo, são no máximo figurantes, e na maior parte das vezes apenas ce-
nário”, diz Maurício Campos, principal autor do texto da Rede. “Mais ainda,
não existem personagens no filme que representem a importante resistência
popular, que apesar de tudo se constrói na luta das vítimas e familiares de
vítimas da violência, juventude favelada e periférica que se organiza no movi-
mento hip hop e outras expressões político culturais, pré-vestibulares comu-
nitários etc.”, afirma. A inexistência desses personagens impediria a empatia
do público com o sofrimento popular, inviabilizando a compreensão das reais
motivações de quem luta por direitos humanos.

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“Verificamos que os ‘heróis’ continuam a ser, no fundo, os mesmos do


primeiro filme: os policiais brutais, fascistas, porém ‘honestos’, do Bope. A
ideia fascista da ‘limpeza’ da sociedade por militares violentos, porém incor-
ruptíveis, não sofreu na verdade nenhuma crítica nos dois filmes”, lamenta
Maurício, posicionamento que encontrou eco em muitos dos debates que
sucederam ao filme. Antônio Pedro Soares, do Projeto Legal, tem uma visão
bastante crítica. “A narrativa do filme reforça uma imagem reducionista dos
movimentos de direitos humanos. Historicamente, os grupos conservadores
de nosso país adotam a estratégia de reduzir a luta dos movimentos à pro-
teção dos cidadãos envolvidos com a criminalidade, taxados de ‘defensores
de bandidos’. Por que não apresentar os movimentos de defesa dos direitos
humanos da perspectiva dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Cul-
turais (Dhesc)?”, questiona.
Adriano Dias, da ComCausa, faz uma análise complexa, elencando sensa-
ções positivas e negativas e fazendo a ligação com suas referências pessoais e
profissionais. Ele considera que a esquerda foi infantilizada pelo filme, “com
suas reflexões elocubrativas, denuncistas, de mera exposição de números”.
Considera positiva a relação umbilical entre a violência e a política exposta
pelo filme. Adriano também estabelece conexões entre os personagens do
filme e seus prováveis inspiradores na realidade, com quem ele teve proximi-
dade em sua longa militância. “Apesar de não aparecer, alguns governadores
foram até sócios dos esquemas criminosos controlados a partir da Secretaria
de Segurança do Rio de Janeiro”, denuncia.

Link: http://antigo.brasildefato.com.br/node/5583

TEXTO 3:

Após 22 anos do Massacre do Carandiru contexto para novo extermí-


nio continua, sem que cause indignação
Sistema prisional e políticas de segurança pública atuam na mesma linha que
permitiu ao Estado matar 111 pessoas.
Perfil dos assassinados indica que maioria era de presos provisórios. Sem pena.
Assim como grande parte dos atualmente encarcerados

Há 22 anos, no dia 2 de outubro, na Casa de Detenção de São Paulo,


ocorria a maior violação de direitos humanos de cidadãos sob custódia do
Estado do mundo. Não há situação semelhante em todo o planeta. Mas nos
presídios do Brasil, contextos idênticos e agravados, fazem com que abusos
de direitos aconteçam com frequência.

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São episódios que não chamam a atenção para a responsabilização do Es-


tado. Para as autoridades, parece ser mais fácil e vendável atuar no sentido da
militarização, prometendo reforços de atitudes repressivas, do que na corre-
ção das deficiências crônicas de ordens sociais e institucionais.
O perfil dos presos do Carandiru que foram mortos no Massacre — ao
contrário do que se supõe — mostra a maioria com idade inferior a 30 anos,
baixa escolaridade, detida por crimes de natureza patrimonial. Cerca de 80%
não tinha sido condenada, eram, portanto, presos provisórios, que ocupavam
o superlotado Pavilhão 9. Esse quadro continua ativo, como mostra esta re-
portagem da Ponte.
Foram mortes sem pena. A maioria sequer havia sido condenada. Naquele
sábado, tentou-se esconder o que era impossível de ficar invisível: os corpos
foram empilhados pelos presos sobreviventes em locais isolados do complexo
penitenciário. Quiseram ocultar os executados para que nada influenciasse o
resultado das eleições municipais de outubro, que ocorreriam no dia seguinte.
A sociedade civil, naquele momento, teve impressão de que a ação policial ti-
nha sido proporcional à demandada para reprimenda da desordem instalada. O
verdadeiro número de mortos fora noticiado apenas 15 minutos antes do fecha-
mento das urnas, no dia 03 de outubro, mais de 24 horas depois das execuções.
Mas, para além do já tão repisado debate acerca da adequação e proporcio-
nalidade da ação da Polícia Militar naquela data, queremos chamar atenção
para o fato de que o Massacre do Carandiru não foi — aliás, não é — um
evento isolado, algo como uma situação excepcional que escapou ao controle
dos envolvidos, e sim uma fotografia instantânea de uma prática habitual na
história nacional, que desde os primórdios combina exclusão com violência.
Prática tem origem etimológica no termo “práxis”, e pode ser semantica-
mente definido como o agir humano pautado pela aplicação de regras e prin-
cípios. Partindo dessa problematização do conceito, afirmamos que a prática
de massacrar determinados segmentos sociais no Brasil apoia-se no princípio
que estabelece a divisão da sociedade em duas categorias distintas de cidadão:
o nós, “cidadãos de bem”, e os outros, “criminosos”, historicamente sub-
metidos a um processo de desumanização que permite excluir e exterminar.
Como é prática significa que é também habitual, o que revela mais do que
uma reiteração temporal e remete a um estilo de vida, que se alicerça em cos-
tumes e valores coletivamente compartilhados, de forma consciente ou não.
O perfil dos 111 mortos no Massacre do Carandiru é muito semelhante
ao da população carcerária atual: pouco mais de 1% dos presos possuem nível
de instrução acima do Ensino Médio; o trabalho é garantido a aproximada-
mente 21% dos presos; somente 9% estudam; 9 crimes são responsáveis por
94% dos aprisionamentos; crimes contra o patrimônio e tráfico de entorpe-
centes são responsáveis por encarcerar 75% dos presos; 40% da população
encarcerada é composta por pessoas sem condenação definitiva.

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O perfil dos 111 mortos no Massacre do Carandiru se assemelha ao perfil


da atual população carcerária: conforme dados recentes do Conselho Nacio-
nal de Justiça (CNJ), o total de pessoas presas é superior a 700.000 (somando
encarcerados com pessoas que cumprem pena em regime domiciliar), sendo
a 3ª maior população prisional do mundo. É mais que o dobro do que com-
porta o sistema penitenciário[2]. De acordo com informações do InfoPen
(MJ), pouco mais de 1% dos presos possuem nível de instrução acima do
Ensino Médio; o trabalho é garantido a aproximadamente 21% dos presos;
somente 9% estudam; 9 crimes são responsáveis por 94% dos aprisionamen-
tos; crimes contra o patrimônio e tráfico de entorpecentes são responsáveis
por encarcerar 75% dos presos; 40% da população encarcerada é composta
por pessoas sem condenação definitiva.[3]
É um segmento que historicamente sofre processo de exclusão, de desu-
manização e, dessa maneira é percebido como sendo o outro, diferente do
que eu me vejo. Por isso se suporta assistir sendo massacrados. Qual cidadão
livre identificasse com o perfil dos que estão presos? Observa-se que “come-
ter crime” não é o único requisito para ser selecionado pelo sistema penal.
O critério legal para se considerar um ato como crime não corresponde ao
critério social de reprovação de condutas diuturnamente praticadas, sem que
seus autores sofram a intervenção penal, apesar da previsão legal, e frequen-
temente de penas elevadas.
Situações cotidianas como baixar um filme da internet, assinar a lista de
chamada da faculdade pela colega que se ausentou da aula ou dividir uma
cerveja com o amigo de 17 anos, por exemplo, correspondem respectivamen-
te aos crimes de violação de direito autoral (artigo 184 do Código Penal, pena
de detenção de 3 meses a 1 ano), falsificação de documento (artigo 298 do
Código Penal, pena de 1 a 5 anos de reclusão, se a faculdade for particular,
ou de 2 a 6 anos, se a faculdade em questão for pública, aplicando-se então o
artigo 297 do CP) e entrega de substância viciante a criança ou adolescente
(artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente, pena de detenção de
2 a 4 anos), mas quem as vivencia dificilmente se enxerga como autor de
fato típico penal. É claro que se pode alegar que são condutas não violentas,
incomparáveis a um estupro, um homicídio ou um latrocínio. Porém, como
já observamos acima, não são estes os crimes que superlotam os estabeleci-
mentos penitenciários, além do que tráfico de entorpecentes e furto também
não são crimes violentos.
Evidentemente, não estamos a defender que se amplie a intervenção do
Direito Penal para esses “crimes nossos de cada dia”, mas sim que se tome
consciência de como opera o critério de seleção do sistema de justiça, que
reforça o estilo de vida que nos divide nesse nós e os outros, fortalecendo a
crença em uma fronteira que, na verdade, é muito menos nítida do que se
imagina.

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Também é revelador desse estilo de vida — de se enxergar fora do espectro


de clientes preferenciais do sistema de justiça criminal — a absoluta falta de
constrangimento em se aplaudir atos de violência, tais como se demonstra
pela eleição do comandante do Massacre, Coronel Ubiratan, em 2002, can-
didato registrado sob o nº 111[4].
“Ocorre que o sistema repressivo que é oferecido submete os presos a gra-
ves violações de direitos humanos, sem condições mínimas de dignidade,
porque o Estado privilegia o aprisionamento como “panaceia” ou “válvula de
escape” para questões de segurança pública, sem reconhecer que mesmo com
construção de novos presídios, continuará havendo superlotação e os proble-
mas dela advindos, o que fortalece as facções criminosas, e que por sua vez,
praticam atitudes de reação contra a opressão do Estado e da sociedade civil.”
Com a famosa bandeira do “bandido bom é bandido morto”, virou fenô-
meno comum a criação de páginas Em redes sociais que defendem e apoiam
medidas como tortura e pena de morte para “bandido”, criticando-se sem-
pre, em contrapartida, os defensores de direitos humanos. Fotos de pessoas
baleadas, mormente em abordagens policiais nas periferias, são as mais vi-
sualizadas.
Quanto mais sangue, mais curtidas e compartilhamentos. A violência
como entretenimento se difunde na mesma proporção em que ganha espaço
e popularidade os programas policiais que dominam parte dos canais aber-
tos em horário nobre. Disseminam-se os sentimentos de medo, dissuasão,
vingança e, sobretudo, a sensação de que o extermínio ou encarceramento
definitivo de inimigos vai diminuir os problemas da violência ou da crimi-
nalidade.
Ocorre que o sistema repressivo que é oferecido submete os selecionados a
graves violações de direitos humanos, sem condições mínimas de dignidade,
porque o Estado privilegia o aprisionamento como “panaceia” ou “válvula
de escape” para questões de segurança pública, sem reconhecer que mesmo
com construção de novos presídios, continuará havendo superlotação e os
problemas dela advindos, o que fortalece as facções criminosas, que, por sua
vez, praticam atitudes de reação contra a opressão do Estado e da sociedade
civil.[5]
Permanece, assim, a situação cíclica de insegurança e pânico que encontra
no Massacre do Carandiru o símbolo de uma política penitenciária injusta,
perversa e disfuncional e que coloca em discussão o papel da polícia e seus
limites nas agendas de todo e qualquer movimento em prol dos direitos (de
todos) humanos, ou seja, do Estado de Direito pleno.
A prisão como forma do aparato repressivo por excelência, tem sua longe-
vidade em decorrência de sua aceitação na sociedade. É preciso tomar consci-
ência de que são os miseráveis que estão sendo encarcerados para que os livres
se preservem da responsabilidade de fazer frente às disparidades sociais. São

FGV DIREITO RIO  13


Direitos Humanos

necessárias políticas sociais de extirpação das desigualdades e não políticas


criminais que acentuem a maximização da pobreza.
A realidade é uma só: são massacrados pelo sistema penal os que são se-
lecionados pelo sistema penal. A ausência de identificação com essa situação
afasta a capacidade de indignação individual e coletiva e, assim, pouco se
contribuirá para uma sociedade menos militarizada, menos punitiva. Mais
igual.

[1]O uso da violência foi o meio empregado por mais de 300 membros
da Tropa de Choque e da Rota para reprimir briga de poucos detentos do
Pavilhão 9. Utiliza-se o termo massacre para retratar que a violência foi des-
proporcional e predominantemente oriunda de uma das partes do conflito.
[2] Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/28746cnjdivulgad
adossobrenovapopulacaocarcerariabrasileira
[3] Disponível em http://portal.mj.gov.br.
[4] O comandante da operação da PM que resultou no massacre foi elei-
to deputado estadual por SP em 2002 com 56.155 votos. Disponível em:
http://www.tse.gov.br/internet/eleicoes/2002/result_blank.htm
[5] Interessante notar que o Massacre do Carandiru motivou a organiza-
ção e surgimento de uma das maiores facções criminosas do Brasil: o Primei-
ro Comando da Capital (PCC), criado em 1993, um ano após o episódio.

Link: http://ponte.org/apos-22-anos-do-massacre-do-carandiru-contex-
to-para-novo-exterminio-continua-sem-que-cause-indignacao/

ATIVIDADE OBRIGATÓRIA:

Trechos do Documentário “Ônibus 174”, de José Padilha.


Trechos do Filme “Tropa de Elite 2: o Inimigo agora É Outro”, de José
Padilha
Trechos do Filme “Carandiru: O Filme”, de Héctor Babenco

LEITURA OBRIGATÓRIA:

VIEIRA, Oscar Vilhena. A gramática dos direitos humanos. Boletim Científi-


co da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU), Brasília, ano
I — nº 4, p. 13-24, 33 — jul./set. 2002 (leiam até a parte 7 e a conclusão).

FGV DIREITO RIO  14


Direitos Humanos

LEITURA COMPLEMENTAR:

EULETÉRIO, Joana Maria. Ônibus 174: um olhar sobre a violência urbana


e a exclusão social. Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo, Vol. 47, N. 2,
p. 153-164, mai/ago 2011.

MARCO, de Helena. Análise do filme: TROPA DE ELITE 2 — Polícia vs


Direitos Humanos. Diário de Direito e Letras, 2014

HERRERA, MARIA BELELA. Desafios que o Tema Direitos Humanos


Coloca para o Século XXI. Direitos Humanos no Século XXI — NEV, p.
217 a 232.

RELATÓRIO Nº34/00 CASO 11.291 (CARANDIRU). Página. 12 a 28,


13/abril/2000.

FGV DIREITO RIO  15


Direitos Humanos

AULA 02: DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DOS DIREITOS


HUMANOS.

INTRODUÇÃO

A aula 2 aborda as origens, as etapas de desenvolvimento e os possíveis


caminhos do futuro dos direitos humanos. A leitura obrigatória discorrerá
sobre a identificação dos momentos e documentos históricos que caracteriza-
ram a progressiva ampliação dos direitos humanos. O texto abaixo, extraído
da revista Foreign Policy e a leitura complementar (o texto de William A.
Edmundson, The Future of Rights) auxiliarão o debate em sala de aula sobre
as novas fronteiras dos direitos humanos. A notícia em destaque do jornal El
PAÍS, tratado do relatório da Anistia Internacional e a estagnação dos gover-
nos brasileiros frente às constantes violações de direitos humanos no Brasil.
Na aula será apresentado um vídeo que ilustra brevemente a História dos
Direitos Humanos. Esse vídeo explicará o que são os direitos humanos e
como eles são únicos direitos a serem aplicáveis a todos, sem qualquer distin-
ção. Esse vídeo mostrará o surgimento desses direitos, a sua evolução com o
passar dos anos e a sua normatização na Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão, o que garantiu seu caráter universal. O vídeo também ressalta
o desrespeito a esses direitos, mesmo que sejam universais.

QUESTÃO TERMINOLÓGICA E CONCEITUAL: DIREITOS FUNDAMENTAIS,


DIREITOS HUMANOS E AFINS;

Os direitos fundamentais, por essência, se inserem numa esfera de pro-


teção distinta, especial, cara, e por essa razão são tratados pela constituição
de forma peculiar. O artigo 60, no seu parágrafo 4º, estabelece as chamadas
cláusulas pétreas, que são as matérias protegidas contra emendas que propo-
nham sua abolição. A constituição determina que não sejam abolidas a forma
federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação
dos Poderes, e os direitos e garantias individuais.

Art. 60. …
§ 4º — Não será objeto de deliberação a proposta de emenda ten-
dente a abolir:
...
IV — os direitos e garantias individuais.

FGV DIREITO RIO  16


Direitos Humanos

O texto do inciso IV do § 4º do artigo 60, como visto, veda emendas


tendentes a abolir “direitos e garantias individuais”, mas a doutrina predo-
minante não adota a interpretação literal segundo a qual seriam protegidas
apenas as normas referentes aos direitos individuais previstos no art. 5º., O
STF já se posicionou a esse respeito na ADIn 939-7/DF, afirmando que há
cláusulas pétreas na Constituição que não são previstas no art. 5º, de modo
que a Constituição brasileira estende a todos os direitos fundamentais a pro-
teção contra emendas que busquem restringir ou abolir tais direitos.

DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS

As diferenças entre os termos “direitos humanos” e “direitos fundamen-


tais” nem sempre são precisamente tratadas pela doutrina, afinal, ambos cui-
dam de proteção essencial à pessoa, e trata-se de dimensões sempre mais
inter-relacionadas.
Segundo a lição de Ingo Sarlet, os conceitos possuem diferenças que se evi-
denciam quando considerados os aspectos espacial e de aplicação e proteção
dos respectivos direitos. Os direitos fundamentais definem aqueles direitos
do ser humano “reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucio-
nal positivo de determinado Estado” enquanto o termo direitos humanos se
estabelece no plano internacional por meio das convenções e tratados. Ainda
que os países inseridos na comunidade internacional assinem progressiva-
mente mais tratados de direitos humanos e os incorporem as suas ordens jurí-
dicas, as formas de efetivá-los nem sempre são claras como costumam ser em
relação aos direitos tratados como fundamentais no plano constitucional.1
Neste mesmo sentido, José Afonso da Silva atribui ao termo direitos fun-
damentais o papel de designar, “no nível do direito positivo, aquelas prerro-
gativas e instituições que ele [direito positivo] concretiza em garantias de uma
convivência digna, livre e igual para todas as pessoas.”2

CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS DIREITOS HUMANOS

Uma primeira forma de classificar os direitos humanos é a distinção que


leva em conta os momentos históricos em que se afirmaram como direi- 1
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos
direitos fundamentais. 6ª ed., Porto
tos através de ondas evolucionais. Trata-se de uma compreensão dos direitos Alegre : Livraria do Advogado, 2006,
p. 35-36
que os observa como produtos históricos: “os direitos do homem, por mais
2
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito
fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas Constitucional Positivo, p. 182.
circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra 3
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos,
do original L’età dei Diritti. Tradução
velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de autorizada do idioma italiano da edição
uma vez por todas.”3 publicada Giulio Einaudi Editore. Else-
vier, 2004, p. 9

FGV DIREITO RIO  17


Direitos Humanos

Segundo essa visão histórica apresentada por Norberto Bobbio, podemos


classificar os direitos segundo gerações ou dimensões:
Primeira geração: são os direitos voltados à preservação das liberdades
fundamentais e os direitos individuais e políticos clássicos, tais como religião,
locomoção, pensamento e opinião, voto, etc. A primeira geração de direi-
tos consolidou-se nos documentos liberais do final do século XVIII, como
a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776) e a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França (1789).
Segunda geração: são os direitos voltados às prestações sociais básicas,
como educação, saúde, oportunidades de trabalho, moradia, transporte, pre-
vidência social, etc, bem como os direitos econômicos e culturais. Consoli-
dam-se no período do Estado Social do pós-guerra (1914-1918), que deixa
de ser absenteísta para assumir postura ativa, de quem são exigidas medidas
de implementação de direitos. Marcaram o momento de ascensão histórica
dos direitos de segunda geração a Constituição do México de 1917, que foi a
primeira a prever proteção aos direitos sociais, a Constituição alemã de 1919,
denominada Constituição de Weimar, que consagrou a presença dos direitos
sociais no plano constitucional e a Revolução Russa de outubro de 1917, que
impôs o governo socialista soviético.
Terceira geração: são os direitos relacionados ao desenvolvimento, meio
ambiente equilibrado e paz. Segundo a lição de Bobbio, “constituem uma ca-
tegoria, para dizer a verdade, ainda excessivamente heterogênea e vaga, o que
nos impede de compreender do que efetivamente se trata. O mais importante
deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direitos de viver num
ambiente não poluído.”4
Vale ressaltar que o termo “geração” não é utilizado neste contexto como
representação de um grupo geracional que passa a ser superado por outro. A
conceito de geração deve ser compreendido em comunhão com a ideia de
acumulação, de modo que os direitos conquistados em um dados momento
histórico se somem à geração seguinte de direitos, e assim sucessivamente.
Outro propósito do esclarecimento do conceito de geração é evitar o ran-
queamento de um rol de direitos sobre outro, de modo a afirmar a indivisi-
bilidade dos direitos humanos. O debate sobre a hierarquia entre as gerações
de direitos marcou os anos do pós-II Guerra Mundial. A Guerra marcou a
absoluta ruptura dos Estados com os direitos humanos, de modo que quan-
do foram encerrados os combates, a comunidade internacional decidiu pela
criação da Organização das Nações Unidas (1945) e adotou a Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948) como símbolos desse movimento de
reconstrução moral da sociedade mundial.
Após a elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos passou-
-se a discussão de dois dos mais importantes instrumentos internacionais de
proteção dos direitos humanos: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e 4
Idem.

FGV DIREITO RIO  18


Direitos Humanos

Políticos e o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ambos cria-


dos em 1966, vigentes a partir de 1976). Durante o processo de construção
dos pactos havia duas fortes correntes, representadas pelos dois blocos polí-
ticos existentes no período da Guerra Fria, cada qual buscando a prevalência
de um dos dois grupos de direito sobre os demais. A solução encontrada foi
a elaboração de dois documentos distintos ao invés de um único que englo-
basse todos os direitos de natureza civil, política, social, econômica e cultural.

CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E DOS DIREITOS


HUMANOS

a) Historicidade: conforme vimos acima, os direitos humanos e os direi-


tos fundamentais nascem em certas circunstâncias, desenvolvem através do
tempo e se acumulam. Hoje são protegidos pelas cláusulas pétreas, no caso
brasileiro, e pela compressão de que são irreversíveis enquanto direitos con-
quistados no plano internacional.
b) Universalidade: destinam-se a todos os indivíduos no território brasi-
leiro, sem qualquer distinção, tal como os direitos humanos no plano inter-
nacional destinam-se a todos os seres humanos do planeta.
c) Inalienabilidade ou indisponibilidade: não podem ser transferidos
ou negociados entre o titular do direito e qualquer outra pessoa. São indispo-
níveis para qualquer finalidade.
d) Irrenunciabilidade: por serem direitos fundamentais, inalienáveis, não
o são também renunciáveis. Importante notar que renúncia é diferente de
não exercício, de modo que o indivíduo poderá optar por não fazer valer seu
direito, mas jamais renunciá-lo por completo.
e) Imprescritibilidade: os direitos fundamentais não possuem prazo ou
qualquer limitação temporal para sua utilização, de modo que são sempre
exigíveis perante o Estado.
f ) Limitabilidade: a aplicação dos direitos fundamentais, como vimos,
poderá, em alguns casos, significar a restrição ou limitação de outro direito
no caso concreto. A aplicação, portanto, não é absoluta e dependerá da inter-
pretação e aplicação jurisdicional.
g) Inter-relacionabilidade: os direitos fundamentais relacionam-se e em
muitos casos dependem um dos outros para que sejam efetivamente garan-
tidos. Por exemplo, o direito de herança pressupõe o direito à propriedade.

FGV DIREITO RIO  19


Direitos Humanos

CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO


BRASILEIRA

Uma segunda forma de classificação dos direitos e garantias fundamentais,


agora considerando os direitos previstos na Constituição brasileira, é dividida
por José Afonso da Silva em cinco espécies:5
1. Direitos individuais (art. 5º): são assegurados ao indivíduo isoladamen-
te e podem ser opostos aos demais indivíduos. A expressão é em geral utilizada
para definir o direito à vida, igualdade, liberdade, segurança e propriedade.
2. Direitos coletivos (art. 5º): prerrogativas meta-individuais, titulariza-
dos por mais de uma pessoa. Segundo a definição trazida pelo artigo 81 do
Código do Consumidor (Lei 8.078/90), os direitos coletivos são “os tran-
sindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou
classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação
jurídica-base.”
3. Direitos sociais (art. 6º e 193 a 232): prerrogativas meta-individuais,
mas decorrem da inserção do indivíduo na sociedade estatal. Materializam-
-se através das prestações positivas que buscam a concretização do princípio
da igualdade material, de modo a ampliar a qualidade das condições de vida.
São proporcionadas pelo Estado aos cidadãos titulares de tais direitos.
4. Direitos de nacionalidade (art. 12): são as prerrogativas que decorrem
do reconhecimento do vínculo jurídico-político de nacionalidade entre o in-
divíduo e o Estado. Criam-se direitos e obrigações específicos em razão da
condição de nacional.
5. Direitos políticos (arts. 14 a 17): são direitos que garantem a participa-
ção dos indivíduos, direta ou indiretamente, nas esferas de deliberação políti-
ca da sociedade. Através dos instrumentos garantidos pelos direitos políticos
é possível exercer a soberania popular.

APLICABILIDADE IMEDIATA, CLÁUSULA ABERTA E TITULARIDADE.

O artigo 5º da Constituição, em seu § 1º define que “as normas definido-


ras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Em seguida
estabelece o § 2º que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou
dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Partindo-se dessas duas normas podemos concluir que quaisquer direi-
tos podem ser imediatamente exigidos, ainda que exigi-los signifique cobrar
o Poder Público pela omissão de não regulamentação. Conforme lições na
Disciplina de direitos Constitucional, as normas constitucionais podem ser
divididas dentre aquelas cuja aplicabilidade completa depende de regulamen- 5
SILVA. Curso de Direito Constitucional
Positivo, p. 187

FGV DIREITO RIO  20


Direitos Humanos

tação infraconstitucional, aquelas normas cuja aplicabilidade pode ser res-


tringida pela norma regulamentadora e as normas de eficácia completa ou
plena. Importante frisar que o mandamento do art. 5º, § 1º não é sem efeito.
Mesmo as normas denominada de eficácia limitada produzem seus efeitos
(ainda que parcialmente). A necessidade de norma integrativa infraconstitu-
cional já orienta a atuação do legislador que estará em mora e incorrerá em
omissão constitucional caso não produza a norma exigida. Ademais, a norma
constitucional, mesmo que de eficácia limitada, determina o sentido de atu-
ação do legislador e baliza seu espaço de deliberação.
Outra importante informação que se extraí do art. 5º § 2º é que as normas
elencadas no artigo 5º são exemplificativas, e poderão ser ampliadas tanto
pelo legislador quanto através de incorporação de tratados internacionais,
particularmente os de direitos humanos (que poderão ser incorporados com
status de norma constitucional, nos termos do art. 5º § 3º). Trata-se de cláu-
sula que dá abertura ao legislador e ao Poder Executivo para ampliar a prote-
ção constitucional a novos direitos.
Por fim, cabe-nos tratar da titularidade dos direitos fundamentais. O art.
5º anuncia que são todos “iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade” (grifo meu). O termo “residentes no País”, segundo interpreta-
ção literal, restringiria a proteção do artigo 5º apenas aos estrangeiros estabe-
lecidos no país. Entretanto, a doutrina brasileira e a jurisprudência do STF
entende que diversas das proteções daquele artigo são igualmente garantidas
aos estrangeiros não-residentes.

NORMAS CONSTITUCIONAIS DE EFICÁCIA PLENA E APLICABILIDADE


DIRETA E IMEDIATA.

Normas de eficácia plena produzem efeitos jurídicos desde o momento em


que entram em vigor (não confundir vigência com a validade. Uma norma
pode ser válida e ter sua vigência adiada através da vacatio legis, por exemplo).
A principal característica de uma norma de eficácia plena é o fato de que não
necessita de qualquer outra norma infraconstitucional para sua aplicação.

NORMAS CONSTITUCIONAIS DE EFICÁCIA CONTIDA OU RESTRINGÍVEIS


DE APLICABILIDADE DIRETA E IMEDIATA MAS PASSÍVEIS DE RESTRIÇÃO.

As normas de eficácia contida, embora tenham recebido do constituinte


normatividade suficiente para produzir efeitos imediatos e plenos, são do-

FGV DIREITO RIO  21


Direitos Humanos

tadas de meios normativos que permitem ao legislador infraconstitucional


reduzir sua eficácia e aplicabilidade (ou restringidas circunstancialmente pela
própria constituição).

NORMAS DE EFICÁCIA LIMITADA OU REDUZIDA.

São normas que produzem apenas parcialmente seus efeitos e necessitam


de norma integrativa infraconstitucional para produzir a totalidade de seus
efeitos. Importante ressaltar que todas as normas constitucionais, até mesmo
aquelas de eficácia limitada, são dotadas de eficácia jurídica pois determi-
nam o sentido de atuação do legislador e balizam sua atuação legiferante.
Por exemplo, o artigo 219 estabelece que “o mercado interno integra o patri-
mônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento
cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecno-
lógica do País, nos termos de lei federal.” A norma não apenas classifica o
mercado nacional como patrimônio nacional como também determina seu
incentivo por parte do Poder Público, nos termos do que vier a ser estabele-
cido por lei.
Portanto a lei poderá dar sentido à norma constitucional ao especificar e
definir a atuação governamental para a concretização da vontade constitucio-
nal, mas não poderá incentivar o mercado interno de modo que prejudique
o desenvolvimento cultural. Note-se que a norma constitucional surte efeitos
e condiciona a atuação do legislador.

NOTÍCIA:

Texto 1

Brasil, um país em “permanente violação de direitos humanos”6


Anistia Internacional divulga relatório em que alerta sobre o retrocesso brasi-
leiro no âmbito legislativo
24/02/2016, por MARÍA MARTÍN em El País

O relatório “Estado dos Direitos Humanos” de 2015 que a Anistia Inter-


nacional vai enviar à presidenta Dilma Rousseff, ministros e governadores
tem, infelizmente, muito em comum com o Brasil do passado. A morte de
jovens negros, as execuções extrajudiciais, os abusos policiais, a falta de trans-
parência e a vulnerabilidade dos defensores dos direitos humanos em áreas
rurais continuam sendo, e isso há cerca de 30 anos, as maiores preocupações Texto disponível em <http://brasil.
6

elpais.com/brasil/2016/02/23/politi-
ca/1456259176_490268.html>, últi-
mo acesso em 10/08/2016.

FGV DIREITO RIO  22


Direitos Humanos

da ONG britânica, sem que as autoridades tenham se mobilizado de forma


efetiva para mudar o cenário.
“Ao longo dos últimos anos viemos alertando sobre os mesmos problemas.
O Brasil vive em estado permanente de violação de direitos humanos de uma
parcela importante da sua população. E é uma violação altamente seletiva”,
lamenta Atila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional no Brasil.
“O país avançou muito na conquista de direitos, basta pensar nas políticas
de redução de pobreza, mas se manteve um alto grau de violações em outras
esferas”.
A novidade deste ano vem das mãos de alguns congressistas e senadores
que, segundo a organização, têm se esforçado em ameaçar as conquistas de
direitos humanos, alcançadas desde o fim da ditadura militar. A ONG des-
taca uma série de propostas de lei desengavetadas no ano passado e que, se
aprovadas, vão significar um “enorme retrocesso no marco constitucional”,
lamenta Roque. Entre elas está a emenda à Constituição que reduz a idade
em que crianças e adolescentes podem ser julgados como adultos (de 18 para
16 anos) ou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215 que transfere
para o Poder Legislativo a responsabilidade por demarcar terras indígenas. A
organização expressa sua preocupação também diante da proposta de lei, de
autoria do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que dificulta o atendi-
mento de saúde a mulheres vítimas de abuso sexual, e da aprovação de uma
lei antiterrorismo que possa criminalizar manifestantes.
O número de homicídios no Brasil —mais de 58.000 por ano, segundo o
último relatório do Fórum de Segurança Pública — continua sendo alarman-
te, segundo a Anistia. O capítulo dedicado ao Brasil no relatório crítica que
o Governo Dilma Rousseff ainda não tenha implementado o Plano Nacional
de Redução de Homicídios, prometido em julho. “O número absoluto de
homicídios é uma calamidade que chama a atenção há muito tempo não
só da Anistia, senão de muitas outras organizações, e a sociedade continua
olhando para outro lado”, afirma Roque. O foco dessa violência, como de-
monstram os números da letalidade no Brasil coletados pelo Fórum, conti-
nua sendo o mesmo: jovens e negros das periferias.
“Isso fica ainda mais grave quando olhamos para o papel que o Estado tem
nesse volume de homicídios. Uma parte grande dessas mortes são causadas
pela polícia em operações formais ou paralelas, em grupos de extermínio ou
milícias”, explica Roque. Alguns casos que saíram à luz em 2015 ilustram
bem essa realidade. A chacina de Osasco (São Paulo) onde, em apenas uma
noite, foram assassinadas 18 pessoas supostamente por policiais ou a execu-
ção de cinco jovens com mais de 100 tiros de fuzil vindos de policiais milita-
res em Costa Barros, um subúrbio do Rio, foram só algumas delas.
A impunidade costuma ser, segundo a Anistia, uma constante. Segundo o
relatório, “policiais responsáveis por execuções extrajudiciais desfrutaram de

FGV DIREITO RIO  23


Direitos Humanos

quase total impunidade”. A ONG ilustra sua conclusão com dados da cidade
do Rio de Janeiro e critica a ausência de informações que permitam calcular
o impacto da violência policial no país. “Das 220 investigações sobre homicí-
dios cometidos por policiais abertas em 2011, houve, até 2015, somente um
caso em que um policial foi indiciado. Em abril de 2015, 183 dessas investi-
gações continuavam abertas”, afirma o documento.

Texto 2

Is Unrestricted Internet Access a Modern Human Right?7


BY DAVID ROTHKOPF (Foreign Policy)
FEBRUARY 2, 2015

National constitutions are supposed to enshrine fundamental rights for


everyone — and for generations. Such documents are also products of mo-
ments in time and reflect perceptions of life in those moments. That’s why
the best of them, like the U.S. Constitution, contain the seeds of their own
reinvention. Indeed, the secret to a sustainable constitution is that it both
captures what is enduring and anticipates the need to change.
Over the years, the U.S. Constitution has been amended 27 times — the
first 10 being the Bill of Rights, of course — to ensure that it stays current
with prevailing views of what is fundamental or best for the United States.
Among the finest examples of the Constitution’s adaptability to shifting and
maturing norms are the 13th Amendment, which ended slavery, and the
15th and 19th amendments, which guaranteed voting rights for everyone,
regardless of race or gender, respectively.
Because it is meant to be malleable, the original Constitution included
references to very few technologies. In fact, America’s founders were so sure
that technologies would evolve over time that they even included protection
of the rights of innovators in Article 1, Section 8 (the Copyright Clause). The
technologies that were mentioned were ones that by the late 1700s had beco-
me so ingrained in day-to-day life that they were seen as natural to the course
of human existence, or at least critical to the functioning of government:
money, for instance, and a military. In at least two cases in the Bill of Rights,
the unfettered use of technologies was seen as necessary for citizens’ freedom
— those technologies being the press and arms. The press was more than
three centuries old when the Constitution enshrined the right to freedom of
expression. Meanwhile, the arms referenced were not specified, but no doubt
included the firearms of the day that were essential to the upkeep of a militia, 7
Texto disponível em <http://foreign-
which was the express rationale (even if today it is generally overlooked) for policy.com/2015/02/02/unrestricted-
-internet-access-human-rights-tech-
the right to bear arms in the first place. nology-constitution/>, último acesso
em 10/08/2016

FGV DIREITO RIO  24


Direitos Humanos

To be sure, technological progress challenges the assumptions that under-


lie even the best-conceived documents. This has been evident recently in the
debate over whether Fourth Amendment guarantees against illegal searches
and seizures, which explicitly pertain to the main information technology of
the late 1700s (“papers”), cover technologies that have developed subsequen-
tly, such as email and metadata. And, surprisingly, there has not been more
meaningful debate about whether the Constitution protects the use of arms
that Madison & Co. could not possibly have foreseen — namely, modern
assault weapons — and how the Second Amendment applies in a world wi-
thout militias.
Arguing that people cannot assert rights beyond the imagination of the
Constitution’s framers is an absurdity, and a dangerous one. As the meta-
data instance shows, it is hazardous not to bring the American conception
of rights in line with the ways and means of modern life. Just as it took the
invention of the printing press to trigger a deliberation on freedom of ex-
pression, technological changes today are so profound that they demand a
reconsideration of what constitutes a fundamental right.
In recent years, more people have maintained that the right to unfette-
red Internet access is the modern equivalent of the right to the comparable
technologies of centuries ago. The U.N. special rapporteur on freedom of
opinion and expression has argued that disconnecting people from the Inter-
net constitutes a human rights violation. A number of countries, including
Costa Rica, Estonia, Finland, France, Greece, and Spain, have asserted some
right of access in their constitutions or legal codes, or via judicial rulings.
Meanwhile, some advocates, such as Internet co-inventor Vint Cerf, have
argued that content on the Internet must be protected from censorship, lest
people’s right to information be lost.
The thrust of these arguments converges on a single point: It is difficult,
if not impossible in some places, to participate fully in today’s world without
an open, available Internet. This will become even truer as access is increa-
singly required to win and perform jobs, gather news, participate in politics,
receive education, connect with health-care systems, and engage in basic fi-
nancial services. (Coin and paper money, one of those few technologies men-
tioned in the U.S. Constitution, will fade in importance in coming decades,
outmoded by mobile banking.)
These are daunting thoughts on a planet on which 4.4 billion people lack
Internet access — but that number is shrinking rapidly. The International Te-
lecommunication Union projected in May 2014 that 3 billion people would
be online by the end of 2014, up some 300 million from the previous year’s
projection. In a July 2014 report, based on a canvass of more than 1,400
experts, the Pew Research Center found that even though governments will
likely find new ways to restrict Internet access and content, billions more

FGV DIREITO RIO  25


Direitos Humanos

people may be online by 2025. Microsoft has estimated that number will be
close to 5 billion.
This revolution carries with it other important questions. If there is a right
to the Internet, for instance, does that mean people must also have a right
to the electricity needed to plug into the web? The answer, resoundingly, is
yes — even though, in a great tragedy of multilateralism, the creators of the
Millennium Development Goals failed to set a benchmark for energy access.
Electricity once seemed a luxury, but today the nearly 1.3 billion without it
are effectively cut off from modern life. Yet this raises another question: In a
world where roughly 80 percent of electricity is — and for a long time will
be — produced by burning fossil fuels, how is the right to a clean, healthy
environment also protected? This points to a need for universal access to cle-
an, sustainable, and affordable energy.
Abstract as a discussion of fundamental rights may seem, determining
what people must have to survive and thrive, and wrestling with the conflicts
found among these elements, may represent the greatest challenge of this
century. The world requires new rules that will empower and enable more
and more people to tap into the full promise of human existence, while not
simultaneously undercutting and diminishing that promise.
These rules are being made possible by technological advances, but they
will not actually come to be if leaders do not act to create them — if gover-
nments leave it to the happenstance of progress to sort out tensions among
the modern ingredients of life, liberty, and the pursuit of happiness. The
conversation about necessary action is already coming too late. The longer it
takes to kick into high gear, the longer humans will continue hurtling toward
a new economic and social reality. Simultaneously, there will be much slower
progress toward ensuring that the gains this reality brings are not offset by the
tragedy of too few people benefiting or by the planet’s gradual but irreversible
degradation.

LEITURA OBRIGATÓRIA:

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos huma-


nos. São Paulo: Saraiva, 1999. 1a ed. p. 41-55.

LEITURA COMPLEMENTAR:

DEMBOUR, Marie-Bénédicte. What Are Human Rights? Four Schools of


Thought. Human Rights Quarterly, Volume 32, Number 1, February 2010,
p. 1-20.

FGV DIREITO RIO  26


Direitos Humanos

EDMUNDSON, William A. The Future of Rights. In An Introduction to


Rights. Cambridge University Press, 2004, p. 173-192.

BERNSTORFF, Jochen. The Changing Fortunes of the Universal Decla-


ration of Human Rights: Genesis and Symbolic Dimensions of the Turn
to Rights in International Law. The European Journal of International Law,
Vol. 19 No. 5, 903 — 924

FILME: A História dos Direitos Humanos


Link do filme: https://www.youtube.com/watch?v=kcA6Q-IPlKE

FGV DIREITO RIO  27


Direitos Humanos

AULA 03: UNIVERSALISMO E RELATIVISMO CULTURAL DOS


DIREITOS HUMANOS

Tendo em vista os episódios trágicos durante a primeira e segunda guerra


mundial, em 1945 a Organização das Nações Unidas — ONU — foi criada
pelos países vencedores da guerra, com o objetivo de evitar que uma terceira
guerra mundial viesse a ocorrer e de facilitar o diálogo entre os países. Três
anos após sua criação, em 1948, foi elaborada a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, em que foram estipulados direitos fundamentais para
todos os indivíduos.
Tais direitos são marcados por duas características principais: a univer-
salidade e a indivisibilidade. Universalidade porque o simples fato de ter a
condição humana faz com que todo ser humano seja titular desses direitos
baseado na idéia de dignidade intrínseca a cada um. Já a indivisibilidade diz
respeito à impossibilidade de permanente exclusão de uns por outros, visto
que a garantia de cada direito depende da observância dos demais.
A garantia desses direitos passa a ser vista como uma questão que concerne
a toda comunidade internacional, e não mais a cada estado de forma separa-
da. Sendo assim, a soberania estatal, até então vista como ilimitada, é restrin-
gida. Cia-se um sistema de proteção dos direitos humanos que alcança, além
do sistema global, os sistemas regionais, cuja coexistência opera para tutelar
da forma mais efetiva possível esses direitos.
A Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993 reafirma os direitos
garantidos anteriormente na Declaração Universal dos Direitos Humanos e
reconhece a relação de interdependência entre a democracia, o desenvolvi-
mento e os direitos humanos.
A democracia é o regime que permite a completa implementação de direi-
tos humanos, contudo, de acordo com o índice de democracia da Economist
Intelligence Unit, menos da metade da população mundial vive em algum
tipo de democracia, sendo ainda menor a porcentagem dos países considera-
dos plenamente democráticos.
O autor Amartya Sen ao analisar tal questão em seu artigo “Asian Values
and Human Rights” afirma que muitos dos países com regime autoritários
na Ásia usam como justificativa que este regime é mais compatível com o
sucesso da economia, proporcionando maior desenvolvimento, direito que
também deve ser garantido. Entretanto, o autor alega que não há nenhum
estudo que comprove que existe um conflito entre o desenvolvimento econô-
mico e a garantia de direitos políticos.
O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1996 garante que
os países possam fazer esse tipo de escolha, em seu art. 1˚: “Todos os povos
têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam li-

FGV DIREITO RIO  28


Direitos Humanos

vremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento


econômico, social e cultural.”
Por um lado, portanto, temos os direitos humanos universais que garan-
tem a todos os indivíduos direitos políticos, independente de qualquer con-
dição, porém, por outro lado, encontra-se o direito à autodeterminação, que
garante a soberania a cada Estado de poder fazer suas próprias opções polí-
ticas, econômicas e sociais. Como resolver essa divergência? Nesse sentido,
faz-se necessário entrar no debate sobre o universalismo e o relativismo cultu-
ral, um dos maiores desafios encontrados para a implementação dos direitos
humanos atualmente.

UNIVERSALISMO X RELATIVISMO CULTURAL

A visão universalista entende que há um “mínimo ético irredutível” que é


um conjunto de direitos que devem ser considerados por todos os indivíduos,
independente de sua cultura. Acreditam, portanto, que a cultura não pode
servir de parâmetro para relativizar certos direitos, como direito à vida ou
direito à liberdade.
Para a visão relativista, a visão de direitos universais poderia ser fruto de
uma prevalência imperialista cultural ocidental, cuja consequência seria de-
terminar direitos de acordo com as crenças e princípios da sociedade ociden-
tal de modo a propagar a cultura do ocidente como padrão de conduta a ser
seguido por todas as sociedades.
Essa corrente entende que cada sociedade pode ter sua própria concepção
de direitos humanos, de acordo com o sistema político, econômico, cultural
e social que esteja inserida. Em maior ou menor grau, os relativistas sus-
tentam que a cultura deve ser fonte importante de direito e regras morais.
Portanto, a partir do direito a autodeterminação, os países devem fazer suas
próprias escolhas, mesmo que em alguma medida os direitos humanos uni-
versais sejam relativizados.
Nesse sentido, surgem vários obstáculos a serem enfrentados. É necessário
discutir se deve haver um limite na relativização dos direitos humanos, ou
se todo direito pode ser relativizado em prol da cultura de cada povo (e em
que medida). Se todos os direitos puderem ser relativizados, de que forma os
indivíduos seriam protegidos em âmbito internacional? Esse parâmetro de
interpretação não inviabilizaria os direitos humanos universais?

FGV DIREITO RIO  29


Direitos Humanos

INFANTICÍDIO INDÍGENA NO BRASIL

O direito à diversidade cultural dos povos é concedido especialmente aos


povos indígenas na CF/88, em seus arts. 215 e 231:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos cul-
turais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a
valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º — O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,
indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional.

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tra-
dicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens

O infanticídio é um dos costumes de certas aldeias indígenas. Crianças


com deficiência física, filhos de mãe de solteira ou que sejam fruto de adulté-
rio são, entres outras, razões que levam as mães a matarem seus filhos assim
que o concebem. Trata-se de uma prática milenar, que na visão do povo in-
dígena, não se configura como um ato cruel, mas como um ato de amor, por
acreditarem que se aquela criança sobreviver, haverá muito sofrimento, por
parte da mesma e em toda a aldeia.
O antropólogo Ronaldo Lidório em seu artigo “Uma visão antropológica
sobre a prática do infanticídio no Brasil” afirma:

“O relativismo cultural, inicialmente desenvolvido por Franz Boas e


com base no historicismo de Herder, defende que bem e mal são elementos
definidos em cada cultura. E que não há verdades universais visto que não
há padrões para se pesar o comportamento humano e compará-lo a outro.
Cada cultura pesa a si mesma e julga a si mesma. (…) Para o relativismo
radical não há valores universais que orientem a humanidade, mas valores
particulares que devem ser observados e tolerados. E assim, em sua compre-
ensão de ética, o bem e o mal são relativos aos valores de quem os observa
e experimenta.”

Em vista disso, de acordo com o relativismo, o infanticídio pode ser vis-


to como um ato de maldade para a sociedade brasileira como um todo, mas
não cabe aplicar tal julgamento quando proveniente da cultura indígena,
pois eles têm seus próprios valores que devem ser respeitados. Por outro
lado, o direito à vida e o direito à dignidade humana são direitos central-

FGV DIREITO RIO  30


Direitos Humanos

mente protegidos, garantidos não só na CF/88, como também em diversos


tratados internacionais.
Considerando que o infanticídio é visto como uma violação direta a tais
direitos, o Código Penal institui em seu art. 123 a prática como crime. De-
veriam ser os índios punidos por tal prática? Ou os direitos à vida e à digni-
dade humana devem ser relativizados afim de respeitar a prática cultural? O
entendimento atual é que os índios não devem ser imputáveis considerando a
proteção à diversidade cultural, sendo assim, o infanticídio entre os indígenas
é um ato tolerado como sendo um costume próprio do povo. Contudo, há ir-
resignação de grande parte da sociedade brasileira, que entende que o direito
à vida não poderia ser assim relativizado. Nesse sentido, há, inclusive, proje-
tos de lei que buscam maneiras de erradicar a prática com a justificativa de
que é uma forma de proteger os direitos fundamentais de crianças indígenas.

O USO DOS VÉUS NA EUROPA

Tendo em vista o alto fluxo de imigrantes, o continente europeu é atual-


mente formado por diversas religiões e culturas diferentes, sendo a muçulma-
na uma delas. O uso de véu, prática recorrente entre mulheres que seguem a
religião, é alvo constante de debate, representando mais um caso paradigmá-
tico para discussão do relativismo cultural.
A França tem a maior população islâmica da Europa Ocidental, com um
total de até 5 milhões de muçulmanos, sendo 2 milhões desse total mulheres
que usam burca ou véus que cobrem o rosto. Em 2004, essas mulheres foram
proibidas de usar seus véus para frequentar as escolas públicas com a justi-
ficativa de que estavam em um estado laico. O caso gerou polêmica entre a
população islâmica, estudantes alegaram se sentirem nuas sem o uso do véu
que faz parte de sua identidade, havendo, inclusive, um número considerável
de casos de alunas que saíram da escola por se recusarem a seguir a nova regra.
Em 2010, houve a criação de mais uma lei que atacou diretamente a co-
munidade muçulmana. A nova lei visava proibir o uso de burca em lugares
públicos, estabelecendo uma multa de até 150 euros a quem vestisse roupas
que escondesse o rosto. O caso foi levado ao tribunal por uma mulher is-
lâmica que alegou ter sua liberdade religiosa ferida, mas o governo francês
argumentou que a lei fora feita por questões de segurança.
A Corte Europeia de Direitos Humanos, que já havia se pronunciado so-
bre a legalidade da lei que proibiu o uso do véu nas escolas públicas, também
decidiu pela validade da lei de 2010, apontando que ela promove harmonia
entre uma população multicultural e não desrespeita a Convenção Europeia
de Direitos Humanos.

FGV DIREITO RIO  31


Direitos Humanos

É importante ressaltar que leis semelhantes foram instituídas em diversos


outros países europeus, como a Holanda, a Turquia e a Alemanha. Com o
argumento de que deve ser garantida a laicidade do estado, governos buscam
diminuir o uso de símbolos religiosos na sociedade, em especial o uso do
véu. Também sustentam que a proibição do véu é uma forma de combater
o fundamentalismo islâmico, visto que reafirma a separação entre Igreja e
Estado e uma forma de assegurar a liberdade da mulher, pois o uso do véu
representaria uma forma de submissão da mulher ao homem.
Em direção oposta, muitos acreditam que a escolha do uso do véu deve
ser respeitada, por representar uma cultura milenar e não necessariamente
uma forma de submissão. Além disso, argumentam que a laicidade do estado
passou a existir, pois o estado não era capaz de abraçar todas as religiões e se
abster de ter uma religião foi a forma encontrada para que os indivíduos fos-
sem livres para escolher e professar as crenças e religiões que mais se identifi-
cassem. Sendo assim, a esfera individual dos indivíduos deveria ser estimadas,
visto que eles não devem ser laicos e sim o estado. O uso do véu é forma de
garantir a liberdade religiosa e liberdade de expressão, valores intrínsecos ao
Estado democrático de direito.

NOTÍCIAS RECENTES

Texto 1

Mulheres muçulmanas sofrem ataques nas ruas de Curitiba


Marcelo Andrade
25/11/2015, Tribuna Paraná Online

Após os atentados em Paris, Curitiba registrou casos de agressão e hosti-


lização contra muçulmanos. Na última sextafeira, uma mulher levou uma
pedrada apenas por estar trajando o véu islâmico. De acordo com a Sociedade
Beneficente Muçulmana do Paraná, esses episódios são frequentes desde o
atentado de 11 de setembro. Hoje, a cada caso de terrorismo que repercute
na mídia, mesmo longe de qualquer zona de conflito, quem é muçulmano
fica inseguro.
Por andarem mais caracterizadas que os homens, as mulheres sofrem mais
agressões. “Próximo ao Jardim Botânico, um rapaz arremessou uma pedra
que acertou minha perna e gritou para que eu voltasse ao meu país, mas eu
sou brasileira”, conta Luciana Velloso. Vítimas de ofensas, piadas e até agres-
sões físicas, as mulheres buscam apoio umas nas outras. No dia 18 os abusos
ocorreram com Paula Zahra. “Dessa vez me chamaram de terrorista. Já arre-
messaram latas de cerveja e até cuspida levei. Tem pessoas que tentam puxar o

FGV DIREITO RIO  32


Direitos Humanos

véu pra provocar”. O que antes era apenas um constrangimento, virou medo.
“Meu filho deixou de ir ao colégio, pois os colegas dizem que a mãe dele é
uma mulhe rbomba”, afirma. Os casos serão levados à Comissão dos Direitos
Humanos da OABPR, ao Núcleo de Promoção da Igualdade Étnico Racial
(Nupier). “É um absurdo que as pessoas relacionem casos de terrorismo com
viés político e econômico a pratica de uma religião que promove o bem. De-
vem ser responsabilizadas criminalmente”, defende Gamal Oumari, diretor
da sociedade muçulmana do Paraná.

Portas abertas
Pra desassociar a ideia da prática religiosa do islã de atos políticos terroris-
tas, o muçulmanos mantém a Mesquita Imam Ali, próxima às ruínas do São
Francisco, aberta à comunidade. “Desde o ataque às torres gêmeas, a imagem
do islã passou a ser relacionada com atos bárbaros que não possuem absolu-
tamente nenhuma ligação com a prática da religião”, afirma Gamal.

Conversão ao Islã
Filho de casal católico, o jornalista Omar Nasser encontrou no islamismo
a orientação espiritual para guiar sua vida. Após ler o alcorão e aprofundar os
estudos sobre o islã, ele se tornou um muçulmano. “De acordo com o livro
sagrado do islã, todos nascem muçulmanos. Ao longo da vida, muitos se afas-
tam desse caminho e cedem às tentações. Quando buscamos o conhecimento
sagrado revertemos essa condição”, explica Omar.
Ele abriu mão de hábitos como beber com os amigos pra se dedicar ao
islã. As práticas como o Ramadan, o ritual do jejum para renovação da fé e
realizar cinco orações ao dia se tornaram parte do dia a dia de Omar. “Meu
pai era católico da igreja maronita do Líbano. Mas para mim, o islã acabou
me ajudando a me desenvolver como um ser uma pessoa melhor por ser dar
respostas mais racionais a questionamentos espirituais”, conta.
Pai de dois filhos, Ali e Hassan, e casado com uma empresária, ele diz que
a religião o ajuda a ser um marido melhor. “Em casa, ajudo com as tarefas
domésticas e com a criação das crianças. Quando minha esposa chega, eles já
estão de banho tomado, prontos para dormir. Há um equívoco muito grande
em relação ao papel da mulher na cultura muçulmana. No ocidente existe
a cobrança pra que a mulher tenha um corpo perfeito, trabalhe e cuide dos
filhos. É obrigação do homem dividir responsabilidades”, compara.

Casos de discriminação religiosa


Neste ano, o país assistiu a casos de intolerância religiosa de diferentes for-
mas. No Rio de Janeiro, evangélicos atacaram adeptos de umbanda a pedra-
da. Na própria Câmara Municipal de Curitiba, quando houve a aprovação
do título de utilidade pública para Sociedade Espiritualista das Almas, um

FGV DIREITO RIO  33


Direitos Humanos

terreiro de umbanda, a proposta sofreu ataques de vereadores, que se referi-


ram à entidade como “uma casa de macumba”.
“Qualquer tipo de discriminação não pode vir de uma pessoa que se diz
religiosa, pois todas as religiões pregam pelo bem e evolução do ser humano.
Preconceito racial ou étnico é crime e as pessoas precisam entender que se
cometerem esse abuso serão responsabilizadas”, afirma Gamal Oumari.

Link: http://www.parana-online.com.br/editoria/cidades/news/919495/?
noticia=MULHERES+MUCULMANAS+SOFREM+ATAQUES+NAS+R
UAS+DE+CURITIBA

Texto 2

Menina vítima de intolerância religiosa diz que vai ser difícil esquecer
pedrada
Criança é do candomblé e foi agredida na saída do culto.
Avó iniciou campanha na internet e recebeu apoio de amigos.
16/06/2016, no G1.com

A marca da violência está na cabeça da menina de 11 anos que foi agredida


no Subúrbio do Rio por intolerância religiosa, mas esta não é a maior cicatriz.
“Achei que ia morrer. Eu sei que vai ser difícil. Toda vez que eu fecho o olho
eu vejo tudo de novo. Isso vai ser difícil de tirar da memória”, afirmou Kaila-
ne Campos, que é candomblecista e foi apedrejada na saída de um culto. Ela
deu a declaração em entrevista ao RJTV desta terçafeira (16).
A garota foi agredida no último domingo (14) e, segundo a avó, que é mãe
de santo, todos estavam vestidos de branco, porque tinham acabado de sair
do culto. Eles caminhavam para casa, na Vila da Penha, quando dois homens
começaram a insultar o grupo. Um deles jogou uma pedra, que bateu num
poste e depois atingiu a menina.
“O que chamou a atenção foi que eles começaram a levantar a Bíblia e a
chamar todo mundo de ‘diabo’, ‘vai para o inferno’, ‘Jesus está voltando’”,
afirmou a avó da menina, Káthia Marinho.
Na delegacia, o caso foi registrado como preconceito de raça, cor, etnia ou
religião e também como lesão corporal, provocada por pedrada. Os agresso-
res fugiram num ônibus que passava pela Avenida Meriti, no mesmo bairro.
A polícia, agora, busca imagens das câmeras de segurança do veículo para
tentar identificar os dois homens.
A avó da criança lançou uma campanha na internet e tirou fotos seguran-
do um cartaz com as frases: “Eu visto branco, branco da paz. Sou do candom-

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Direitos Humanos

blé, e você?”. A campanha recebeu o apoio de amigos e pessoas que defendem


a liberdade religiosa. Uma delas escreveu: “Mãe Kátia, estamos juntos nessa”.
Iniciada no candomblé há mais de 30 anos, a avó da garota diz que nunca
havia passado por uma situação como essa.

Link: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/06/menina-viti-
ma-de-intolerancia-religiosa-diz-que-vai-ser-dificil-esquecer-pedrada.html

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Caso Dogru contra a França (nº 27058/05), julgamento em 04 de de-


zembro de 2008, Corte Europeia de Direitos Humanos. Neste caso, a re-
querente alegou uma violação de seu direito à liberdade religiosa e seu direito
à educação tal como garantidos pelo artigo 9 da Convenção e do artigo 2
do Protocolo n.º 1, respectivamente. Como muçulmana, ela queria usar o
véu quando participasse de aulas de educação física. Ela tinha sido expulsa
da escola. O Estado disse que estava seguindo uma política de secularismo.
Segundo a decisão da Corte, a interferência foi justificada e proporcional ao
objetivo almejado. A requerente foi capaz de continuar seus estudos por meio
de cursos por correspondência, e suas convicções religiosas foram plenamente
tomadas em conta em relação aos requisitos de proteção dos direitos e liber-
dades e da ordem pública.

LEITURA COMPLEMENTAR:

DONNELLY, Jack. The Relative Universality of Human Rights. Human Ri-


ghts Quarterly, v. 29 (2007) p. 281—306.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de Direi-


tos Humanos. Revista Lua Nova. n. 39, p. 105-124, 1997.

WALKER, Neil. Universalism and Particularism in Human Rights: Trade-


-Off or Productive Tension? University of Edinburgh, School of Law Resear-
ch Paper Series n. 2012/10.

McCREA, Ronan. The Ban on theVeil and European Law. Human Rights
Law Review v.13, ed. 1 (2013), p. 57-97

FGV DIREITO RIO  35


Direitos Humanos

SEN, Amartya. Human Rights and Asian Values. Sixteenth Morgenthau


Memorial Lecture on Ethics & Foreign Policy, Carnegie Council on Ethics
and International Affairs.

ANNICCHINO, Pasquale. Is the glass half empty or half full? Lautsi v Italy
before the European Court of Human Rights. Stato, Chiese e pluralismo
confessionale, 2010.

DONNELLY, Jack. Cultural Relativism and Universal Human Rights. Hu-


man Rights Quarterly, v. 6, n. 4, p. 400-419, 1984.

UZUN, Mehmet Cengiz. The Protection of Laicism in Turkey and the


Turkish Constitutional Court: The Example of the Prohibition on the Use of
the Islamic Veil in Higher Education, v. 28 PENN STATE INTERNATIO-
NAL LAW REVIEW, 383, p. 2009-2010.

BIAZI, Chiara Antonia Sofia Mafrica. A questão dos símbolos religiosos à


análise da Corte Europeia dos Direitos Humanos: O caso Leyla Sahin contra
Turquia. Meritum — Belo Horizonte — v. 6 — n. 2 — p. 187-231 — jul./
dez. 2011

JOPPKE, Christian. Double Standards? Veils and Crucifixes in the European


Legal Order. European Journal of Sociology, LIV, 1 (2013), pp. 97—123.

PEI, Sally. Unveiling Inequality: Burqa Bans and Nondiscrimination Juris-


prudence at the European Court of Human Rights, The Yale Law Journal,
v.122, p.1089 (2013)

HUNTER-HENIN, Myriam. WHY THE FRENCH DON’T LIKE THE


BURQA: LAÏCITÉ, NATIONAL IDENTITY AND RELIGIOUS FRE-
EDOM. International and Comparative Law Quarterly, v. 61, pp 613-639
(2012)

MARKS, Susan. Four Human Rights Myths. LSE Law, Society and Eco-
nomy Working Papers 10/2012.

PERRY, Michael J. Are Human Rights Universal. Human Rights Quarterly


v. 19 ed. 3 (1997) p. 461-509

FGV DIREITO RIO  36


Direitos Humanos

LEGISLAÇÃO, TRTADOS E DECISÕES JUDICIAIS:

CASE OF LEYLA ŞAHİN v. TURKEY (nº 44774/98), Corte Europeia de


Direitos Humanos.

DECLARAÇÃO E PROGRAMA DE AÇÃO DE VIENA. Conferência


Mundial sobre Direitos Humanos, Viena, 14-25 de Junho de 1993.

Convenção Europeia de Direitos Humanos

ARTIGO 9.º (LIBERDADE DE PENSAMENTO, DE CONSCIÊNCIA E DE


RELIGIÃO)

1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciên-


cia e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de
crença, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua crença,
individual ou coletivamente, em público e em privado, por meio do culto, do
ensino, de práticas e da celebração de ritos.
2. A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou
colectivamente, não pode ser objecto de outras restrições senão as que, pre-
vistas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrá-
tica, à segurança pública, à proteção da ordem, da saúde e moral públicas, ou
à proteção dos direitos e liberdades de outrem.

FGV DIREITO RIO  37


Direitos Humanos

AULA 04: A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A PROTEÇÃO DOS


DIREITOS HUMANOS

A redação original da Constituição Federal faz menção expressa à pro-


moção e proteção dos direitos humanos quando afirma que sua prevalência
constitui princípio que rege as relações internacionais do Estado brasileiro
(artigo 4º), ou ainda, quando estabelece no artigo 7o do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT) que o Brasil propugnará pela formação
de um Tribunal Internacional dos Direitos Humanos.
Outra importante referência do Texto de 1988 é o art. 5º, § 2º que afirma
que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Tal reda-
ção revelou-se “campo minado” ao longo da recente história constitucional.
Parece clara a opção do legislador constituinte, ciente de que sua obra resulta
em um marco jurídico que se estende no tempo, de registrar no artigo 5o.
parágrafo 2o a sua “cláusula aberta” ou “cláusula de receptividade”, a qual ga-
rante a possibilidade de extensão do texto constitucional em relação a outros
direitos e garantias que não estejam expressos no artigo 5o.
Todavia, não é esta a interpretação promovida pelo Supremo Tribunal Fe-
deral. Em julgados de toda a década de 90, o tribunal manteve posição fir-
mada desde 1977 de que os tratados possuem status infraconstitucional, com
equivalência à lei ordinária. Tal posicionamento conduz à conclusão de que
os tratados de direitos humanos podem ser objeto de controle de constitu-
cionalidade e de que lei federal pode vir a revogar tratado já incorporado ao
ordenamento jurídico interno.
No julgamento do leading case após a promulgação da Constituição, o
Habeas Corpus nº. 72.131/95, o STF reafirmou sua jurisprudência. Ao apre-
ciar o aparente conflito de normas existente entre a Constituição Federal de
1988, a qual estabelece a permissão de duas formas de prisão civil (deposi-
tário infiel e devedor de alimentos — artigo 5o inciso LXVII), e o Pacto de
San José da Costa Rica, o qual restringe tal permissão apenas ao devedor de
alimentos, estabeleceu a corte que “nada interfere na questão do depositário
infiel em matéria de alienação fiduciária o disposto no parágrafo 7º da Con-
venção de San José da Costa Rica”. Ainda, no Habeas Corpus nº 77.631/98,
afirmou que “os tratados internacionais não podem transgredir a normativi-
dade emergente da Constituição, pois, além de não disporem de autoridade
para restringir a eficácia jurídica das cláusulas constitucionais, não possuem
forma para conter ou para delimitar a esfera de abrangência normativa dos
preceitos inscritos no texto da Lei Fundamental.”
Por sua vez, a Emenda nº 45, de 08 de dezembro de 2004, mais conheci-
da como Reforma do Poder Judiciário, veio a trazer três inovações ao abrigo

FGV DIREITO RIO  38


Direitos Humanos

constitucional aos direitos humanos: elucidou a possibilidade do status cons-


titucional dos tratados de direitos humanos, criou o instituto da federalização
das graves violações de direitos humanos e estabeleceu cláusula de submissão
à jurisdição do Tribunal Penal Internacional.
No tocante ao status constitucional, a emenda precisou a hierarquia dos
tratados de direitos humanos. O novo parágrafo do artigo 5o da Constituição
Federal estabelece, in verbis: §3o Os tratados e convenções internacionais so-
bre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Na-
cional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros,
serão equivalentes às emendas constitucionais.
Cumpre comentar alguns elementos acerca do procedimento de incorpo-
ração dos tratados em geral, e diante da emenda, em especial dos tratados de
direitos humanos. O artigo 84, inciso VIII da Constituição Federal confere
ao Presidente da República a competência privativa para negociar e celebrar
tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos ao referendo do Congres-
so Nacional. Em regra, tal atribuição é exercida pelo ministro das Relações
Exteriores ou pessoa designada para tal. Ainda, de acordo com o artigo 49,
inciso I, é de competência exclusiva do Congresso Nacional resolver definiti-
vamente sobre tratados, acordos e atos internacionais. Assim, caberá primei-
ramente à Câmara dos Deputados, sucedida pelo Senado Federal, a aprova-
ção dos tratados. Em ato discricionário, cabe ao Presidente da República o
ato da ratificação, consubstanciado pelo depósito no âmbito internacional
e pela expedição de um decreto no âmbito interno, considerado pela juris-
prudência do Supremo Tribunal Federal ato fundamental para que o tratado
possa surtir efeitos no ordenamento jurídico interno.
Em resumo, os tratados seguem os seguintes passos:

Negociação e Assinatura Aprovação pelo Ratificação pelo


pelo Poder Executivo Poder Legislativo Poder Executivo

Ultrapassada a regra geral para a incorporação dos tratados no ordena-


mento jurídico interno, cabe ressaltar que o legislador constituinte de 2004
deixou transparente a possibilidade de que os tratados venham a ter hierar-
quia constitucional caso sejam aprovados com o procedimento reservado às
emendas constitucionais. Se por um lado não cabe mais dúvida acerca do
status, podemos concluir que a inserção de tal norma pode levar ao contexto
em que certos tratados terão hierarquia constitucional e outros não, o que
seria uma resolução descabida seja no âmbito do Direito Internacional.
Em dezembro de 2008, o Supremo Tribunal Federal manifestou novo en-
tendimento sobre a incorporação de tratados de direitos humanos, já tendo
por referência a nova redação constitucional. Em exame aos Recursos Ex-
traordinários (REs) nº 349703 e nº466343, estendeu a proibição de prisão

FGV DIREITO RIO  39


Direitos Humanos

civil por dívida (art. 5º, inc. LXVII CF) ao caso do depositário infiel. É no
contexto de tais decisões que firmou entendimento de que os tratados pos-
suem status de supralegalidade. Nesse sentido, apenas os tratados que forem
aprovados em conformidade com o parágrafo 3º do art. 5º é que adquirem
status constitucional.
Saliente-se aqui a outra inovação apresentada pela Reforma do Poder Judi-
ciário: a federalização das violações de direitos humanos. O artigo 109 passa
a contar com a seguinte redação:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:


V-A as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste
artigo;
§ 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Pro-
curador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumpri-
mento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos
humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Su-
perior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo,
incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.”

A inovação institucional deve ser entendida sob os seguintes argumentos:

A. Passo definitivo de enfrentamento à impunidade e garantia de


proteção à vítima: o pacto federativo brasileiro, especificamente no
tocante à repartição das competências entre Poder Judiciário Esta-
dual e Federal, possui no artigo 109 da Constituição referência fun-
damental. Os temas ali relacionados são de competência da justiça
federal, sendo os demais — a grande maioria — considerados re-
servados à justiça estadual. Tal divisão temática acarreta atribuições
distintas também para outros órgãos que atuam perante o Poder
Judiciário. Todavia, a omissão ou mau funcionamento das institui-
ções estaduais — Poder Executivo, Ministério Público, Defensoria
Pública, Magistratura — diante de casos concretos conduziram o
legislador a estabelecer que em determinados casos a competência
deverá ser transferida para a Justiça Federal de forma a não acarretar
uma outra violação de direitos humanos: o direito a um julgamento
justo e imparcial e em um prazo razoável. Nesse sentido, o desloca-
mento de competências veio a reforçar a necessidade de um efetivo
funcionamento das instituições e a garantir o combate à impuni-
dade por parte das instâncias federais em casos específicos e, por
conseqüência, que seja ampliada a proteção dos direitos humanos.

FGV DIREITO RIO  40


Direitos Humanos

B. O federalismo adotado pela Constituição Federal: a Constitui-


ção brasileira estabelece um federalismo de cooperação entre os seus
entes — União Federal, Estados, Municípios e Distrito Federal, o
que não exclui um exercício cooperativo também em relação à ati-
vidade jurisdicional. A federalização das violações de direitos huma-
nos não constitui uma novidade nesse sentido. Cabe lembrar que
o artigo 109, parágrafo 3º, da Constituição Federal estabelece que,
na ausência de Varas Federais ou Trabalhistas, a Justiça Estadual
exerça suas competências. No intuito de atender à vítima diante de
atividade jurisdicional específica, o Judiciário Estadual acaba por
exercer a jurisdição sob matéria excluída de sua competência origi-
nalmente. Não é de se causar estranheza a alternativa de que, diante
da ausência ou mau funcionamento da Justiça Estadual, que a Fe-
deral exerça a atividade jurisdicional perquerida. Há de se ressaltar
ainda que a Constituição Federal previu remédio federativo muito
mais grave para violações de direitos humanos quando, em seu ar-
tigo 34, inciso VII, alínea b, possibilitou a intervenção da União
nos Estados para assegurar o princípio constitucional sensível dos
direitos da pessoa humana. É possível concluir que o constituinte
originário criou um caso extremo de chamamento para a União
Federal de casos de violação de direitos humanos e o constituinte
derivado, por meio da Emenda Constitucional nº 45, estabeleceu
uma hipótese mais específica, o deslocamento de competência em
um determinado caso.

C. Responsabilidade Internacional: a Constituição Federal, em seu


artigo 21, inciso I, estabelece que compete à União Federal manter
relações com Estados estrangeiros e participar de organizações in-
ternacionais. Nesse sentido, é a União Federal, e não seus Estados-
-membros, que responde prima facie pela responsabilidade inter-
nacional decorrente do descumprimento das obrigações assumidas
pelo Estado brasileiro pelos tratados de direitos humanos. Tendo
em vista que a soberania é una e indivisível, o Estado Federal não
pode alegar razões de ordem organizacional interna como fator ex-
cludente de responsabilidade. Os termos dos tratados internacio-
nais dos quais o Estado brasileiro é parte são aplicáveis a todas as
suas partes componentes. A responsabilidade internacional acaba
implicando para o Estado brasileiro uma situação complexa foca-
lizada em dois pontos: a) a maior parte das violações de direitos
humanos encontra correspondência direta com as competências
dos Estados-membros da federação; e b) o compromisso do Es-
tado brasileiro com o marco protetivo internacional dos direitos

FGV DIREITO RIO  41


Direitos Humanos

humanos, notadamente após a Constituição de 1988, em conso-


nância com os princípios da dignidade da pessoa humana e com
da transparência internacional. Como estudaremos em momento
oportuno, tramitam na Comissão Interamericana de Direitos Hu-
manos (CIDH) inúmeras petições em face do Estado brasileiro.
São menos representativos os casos que apontam a responsabilidade
direta da União Federal em face da violação de direitos humanos.
Isto posto, é possível afirmar que, na maioria expressiva dos casos,
a responsabilidade é do Estado-membro. Observe-se que boa parte
destes casos pendentes na Comissão poderá ser submetida à Corte
Interamericana, cuja jurisdição foi reconhecida pelo Brasil em de-
zembro de 1998, notadamente após a alteração do Regulamento da
Comissão que prevê a presunção de encaminhamento dos casos à
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Nesse sentido, é bem
vindo um mecanismo capaz de assegurar o cumprimento dos trata-
dos de direitos humanos em caso dos entes federativos falharem ou
não disporem de condições operacionais ou estruturais. Acredita-se
que o estabelecimento da federalização veio a exercer precisamente
esse mecanismo federal que possibilite à União um instrumento
nacional para a responsabilidade internacional. Segundo Simone
Schreiber e Flávio Dino de Castro e Costa, a federalização (...) guar-
da perfeito paralelismo com a regra do esgotamento dos recursos
internos como condição para que a questão possa ser levada ao co-
nhecimento da Corte Interamericana — pois ambos são mecanis-
mos marcados pela subsidiariedade, em que o órgão que primeiro
tem competência para apreciar o fato funciona mal, e somente em
decorrência deste ‘mau funcionamento’ abre-se a possibilidade de
submeter-se a questão a outra instância.. Acredita-se ainda em um
outro efeito do instituto: a capilarização da promoção dos direitos
humanos. A alternativa de federalização dos crimes de direitos hu-
manos pode conduzir à disseminação nos entes federados do me-
lhor cumprimento às obrigações decorrentes de tratados de direitos
humanos dos quais o Brasil é parte — sob o risco do incidente de
deslocamento de competências. O impacto de suas ações e omissões
no plano internacional pode servir de estímulo ao melhor funciona-
mento das instituições locais em casos futuros.

D. Dos parâmetros processuais: a Emenda Constitucional nº 45 es-


tabelece ainda que o incidente de deslocamento será apreciado pelo
Superior Tribunal de Justiça (STJ) a pedido do Procurador-Geral
da República. É importante ressaltar que tal deslocamento somente
pode ser decidido por órgão jurisdicional, mediante provocação.

FGV DIREITO RIO  42


Direitos Humanos

Tal afirmativa afasta eventual argumento de que tal deslocamento


fere a independência do Poder Judiciário. Conclui-se que a possibi-
lidade de deslocamento de competências para violações de direitos
humanos encontra-se em perfeita sintonia com: a) os parâmetros
do direito internacional por estabelecer mais um grau de subsidia-
riedade no âmbito interno; b) o ditame constitucional da proteção
dos direitos humanos em conformidade com o pacto federativo; e
c) a sistemática processual vigente, uma vez que o STJ é o órgão
jurisdicional de cúpula entre justiça estadual e federal.

E. Precedente do STJ: em 2005 decisão do STJ (IDC 2005/0029378-


4) denegou o deslocamento de competência referente ao assassinato
da Irmã Dorothy Stang no Estado do Pará, pelos seguintes motivos:
O deslocamento de competência — em que a existência de crime
praticado com grave violação aos direitos humanos é pressuposto
de admissibilidade do pedido — deve atender ao princípio da pro-
porcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em
sentido estrito), compreendido na demonstração concreta de risco
de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados inter-
nacionais firmados pelo Brasil, resultante da inércia, negligência,
falta de vontade política ou de condições reais do Estado-membro,
por suas instituições, em proceder à devida persecução penal. No
caso, não há a cumulatividade de tais requisitos, a justificar que se
acolha o incidente. A possibilidade de deslocamento de competên-
cia ou a federalização das violações constitui avanço institucional
significativo em termos da defesa de direitos humanos, mas não
constitui solução mágica. Qualquer inovação conduz à necessidade
de estabelecimento de limites. Considerada a escassez de preceden-
tes, há muito a se discutir quanto à dimensão de elementos do ins-
tituto da federalização como “grave violação de direitos humanos”
ou “assegurar o devido cumprimento de obrigações decorrentes dos
tratados de direitos humanos”. Somente a prática permitirá que tais
questões sejam preenchidas. União Federal, Estados — compreen-
didos aqui pelos Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e Mi-
nistério Público — e sociedade civil devem conjugar esforços para
fazer desse novo dispositivo constitucional um imperativo para a
defesa dos direitos humanos.

FGV DIREITO RIO  43


Direitos Humanos

NOTÍCIA:

Secretário-geral da OEA diz que vai consultar Corte Interamericana


sobre impeachment
10/05/2016, em Folha de São Paulo

Após se reunir com a presidente Dilma Rousseff, o secretário­geral da OEA


(Organização dos Estados Americanos), Luis Almagro, afirmou nesta terça­
feira (10) que o processo de impeachment tem “incertezas jurídicas” e que
fará uma “consulta jurídica à Corte Interamericana de Direitos Humanos”
para garantir a proteção dos direitos civis e políticos no país.
Segundo Almagro, que já ecoou a tese do governo de que o impeachment
da petista é “um golpe”, “há pelo menos três pontos de incertezas jurídicas”
no processo contra Dilma.
O primeiro, diz ele, é um “problema estrutural”: “a porcentagem alta de
deputados e senadores que poderiam estar inelegíveis ou foram imputados
em denúncias de corrupção”. O segundo, “a legalidade das causas invocadas
para o impeachment” e o terceiro, diz Almagro, é que “não há tipificação de
delito” contra Dilma.
“A legalidade da causa é, para nós, um assunto fundamental, importantís-
simo para entender as razões jurídicas do impeachment. Temos responsabili-
dade enquanto observar o funcionamento da democracia no continente. Te-
mos que monitorar e, obviamente, atuar quando há uma alteração da ordem
constitucional no país”, disse Almagro em declaração à imprensa no Palácio
do Planalto após sua audiência com Dilma.
O secretário­geral da OEA afirma ainda que já fez esses questionamentos
aos três Poderes no país em outra visita mas não obteve “um resposta jurídica
contundente a respeito”. Além de Dilma, Almagro se reuniu com senadores
e com o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Ricardo Lewando-
wski.
“Como não tivemos uma resposta jurídica contundente a respeito, em
função da nossa responsabilidade, e a competência que nos dá, temos que
fazer uma consulta jurídica à Corte Interamericana de Direitos Humanos
enquanto à proteção nesse caso, nos direitos civis e políticos”, afirmou.

Link: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/05/1769736-secreta-
rio-geral-da-oea-diz-que-vai-consultar-corte-interamericana-sobre-impeach-
ment.shtml

FGV DIREITO RIO  44


Direitos Humanos

LEITURA OBRIGATÓRIA:

MAUÉS, Antonio Moreira. Supralegalidade dos Tratados Internacionais de


Direitos Humanos e Interpretação Constitucional. SUR — Revista Interna-
cional de Direitos Humanos, v. 10, n. 18, jun. 2013, p. 215-235.

LEITURA COMPLEMENTAR:

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados Internacionais de Direitos Hu-


manos e Direito Interno. São Paulo: Saraiva, 2010. Páginas 178-226.

GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Tratados Internacionais de Direitos


Humanos e Constituição Brasileira. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2002.

MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público.


13ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

________. O parágrafo 2º da Constituição Federal” In: TORRES, Ricardo


Lobo (org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacio-


nal dos Direitos Humanos. Volume I. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris,
1997. pp. 401-447.

SCHREIBER, Simone; COSTA, Flávio Dino de Castro e. Federalização da


competência para julgamento de crimes contra os direitos humanos. Direito
Federal: Revista da Associação dos Juízes Federais do Brasil. Ano 21. No. 71.
Niterói: Editora Impetus. Julho a setembro de 2002.

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Os tratados na jurisprudência do Supre-


mo Tribunal Federal. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 41 n. 162
abr./jun. 2004.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e direito constitucional internacional.


São Paulo: Saraiva. 2009. pp. 51-83.

FGV DIREITO RIO  45


Direitos Humanos

LEGISLAÇÃO E DECISÕES JUDICIAIS:

Texto Constitucional da EC45/2004:


“Art. 5º, LXXVIII, § 3º: Os tratados e convenções internacionais sobre direitos
humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois
turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas constitucionais.”

Jurisprudências: RE 466.343, RE 80.004, HC 72.131, RHC 79.785,


HC 85.237

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. IDC 1 / PA. Incidente de Desloca-


mento de Competência 2005/0029378-4. Acesso em: 09. jan. 2010. Dispo-
nível em: http://www.stj.gov.br.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (notícia). Disponível em: http://www.


stf.jus.br/portal/cms/vernoticiadetalhe.asp?idconteudo=100258. Acesso em:
09. jan.2010.

FGV DIREITO RIO  46


Direitos Humanos

AULA 05: SISTEMA GLOBAL — MECANISMOS CONVENCIONAIS E


EXTRACONVENCIONAIS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS.

O século XX foi marcado pelo crescimento da preocupação e compromis-


so com a proteção dos direitos humanos pela comunidade internacional. A
Liga das Nações, estabelecida após a Primeira Guerra Mundial, buscou de-
senvolver um arcabouço legal alinhado com mecanismos de monitoramento
para a proteção das minorias. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, em
1945, a comunidade internacional reconheceu a necessidade de garantir que
as atrocidades ocorridas não se repetissem, dando-se início ao movimento de
criação e estabelecimento de um sistema internacional vinculante de prote-
ção aos Direitos Humanos.
A proteção dos Direitos Humanos se dá através de dois principais meca-
nismos: os Convencionais e os Extra-Convencionais. Nesta aula, analisare-
mos as principais características de cada um dos mecanismos, assim como
o funcionamento e mecanismos das chamadas 9 Convenções Cardeais de
Direitos Humanos.

I. MECANISMOS CONVENCIONAIS

Os Mecanismos Convencionais de proteção de Direitos Humanos são for-


mados pelas Convenções de Direitos Humanos, que são Tratados Internacio-
nais. Sendo assim, são negociadas e ratificadas pelos estados, a partir do qual
eles se comprometem a buscar a plena garantia dos direitos estabelecidos na
Convenção. Tais Convenções contam com órgãos de proteção, que só têm
competência frente aos Estados que expressamente ratificaram a Convenção
e aceitaram a competência do órgão.

Os Comitês.

Os órgãos de proteção são, na maioria das vezes, Comitês responsáveis por


auxiliar os Estados Parte no monitoramento e na efetiva implementação dos
direitos estabelecidos na Convenção, além de recomendar medidas e políticas
futuras a serem adotadas por eles. São responsáveis, também, por analisar os
Relatórios Periódicos enviados pelos Estados Parte. De forma geral, os Co-
mitês são formados por experts independentes que têm reconhecido saber
em Direitos Humanos, eleitos para mandatos de 4 anos, em eleições que
ocorrem a cada 2 anos, sendo admitida a reeleição.

FGV DIREITO RIO  47


Direitos Humanos

Os Relatórios Periódicos.

As Convenção de Direitos Humanos estabelecem, em regra, que os Esta-


dos Parte devem submeter aos Comitês Relatórios Periódicos, contendo, en-
tre outras informações, as políticas e medidas que estão sendo adotadas para
a harmonização da legislação interna com a Convenção, o progresso obtido
no âmbito interno na promoção dos direitos estabelecidos na Convenção, os
problemas e obstáculos que estão sendo enfrentados, planos e políticas pen-
sados para a implementação no futuro, entre outros. Constituem uma forma
não apenas de verificação do cumprimento e comprometimento dos Estados
Parte com as suas obrigações contraídas, mas também uma forma de avaliar
a evolução da proteção dos Direitos Humanos dentro da sua jurisdição e
planejar novas políticas de implementação. Além disso, é um instrumento
essencial à participação da sociedade, que poderá avaliar o desempenho go-
vernamental além de atuar ativamente na criação e desenvolvimento de novas
políticas e na sua fiscalização.

As Convenções Internacionais e a ONU.

As Convenções Internacionais não são relatórios da ONU. No entanto,


ela assume papel de órgão centralizador e organizacional de tais tratados. Em
regra, o Secretário Geral da ONU é o encarregado de depositar os instrumen-
tos de ratificação dos Tratados e de informar os Estados Parte sobre novas
ratificações, reservas ou propostas de emenda.

As 9 Convenções Cardeais de Direitos Humanos.

Existem 9 Convenções que são consideradas as “Convenções cardeais de


Direitos Humanos” e que estabelecem padrões de proteção e promoção de
Direitos Humanos. Veremos agora, de forma breve, quais são estas Conven-
ções, quais seus principais aspectos e forma de funcionamento.

1. Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discrimi-


nação Racial (1965)

Uma vez adotada a Declaração Universal dos Direitos do Homem


(“DUDH”), os Estados reconheceram que os direitos nela elencados deveriam
ser posteriormente detalhados e traduzidos em diferentes Tratados Internacio-
nais, que vinculariam os Estados que os ratificassem. Esta noção conduziu à

FGV DIREITO RIO  48


Direitos Humanos

negociação dos Tratados na Comissão de Direitos Humanos. Em função do


regime do Apartheid que vigorava na África do Sul, as preocupações políticas
da época focavam na eliminação da discriminação racional. Sendo assim, na
Assembleia Geral de dezembro de 1965, foi adotada a Convenção Internacio-
nal sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.
Comitê. Em conformidade com os termos da Convenção, todos os Esta-
dos Parte devem enviar Relatório Periódico ao Comitê para a Eliminação de
Discriminação Racial. O Comitê conta com 18 membros e funciona desde
1969. É prerrogativa dos Estados Parte reconhecer a competência do Comitê
para receber demandas individuais.

2. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966)


(“PIDESC”)

O PIDESC desenvolve em maiores detalhes alguns dos direitos elencados na


DUDH, estabelecendo um “processo” para que eles sejam devidamente garanti-
dos. Uma característica importante do PIDESC é o fato de estabelecer a progres-
sividade na realização dos direitos, ao estabelecer, em seu artigo 2 (1), que “cada
um dos Estado Partes compromete-se a agir (....), no máximo dos seus recursos dispo-
níveis, de modo a assegurar progressivamente o pleno exercício dos direitos reconhecidos
no presente Pactos (...)”. O Princípio da Progressividade considera os obstáculos
financeiros que os Estados Parte podem enfrentar na implementação do Tratado.
Por outro lado, o PIDESC também impõe aos Estados que tomem medidas con-
cretas voltadas à implementação e tutela dos direitos elencados no Pacto.
Comitê. Até 1985, os Estados Parte deveriam enviar Relatórios Periódicos
ao Conselho Econômico e Social. A partir de então, foi criado o Comitê de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. O Comitê conta com 18 membros.
Protocolo Opcional. O PIDESC conta ainda com um Protocolo Opcional
(2008) através do qual os Estados Parte aceitam novos procedimentos, como
a possibilidade de recebimento de petições individuais, e instauração de in-
quéritos e reclamações de outros Estados-Parte.

3. Pacto Internacional dos Direitos Civil e Políticos (1966) (PIDCP)

O PIDCP detalha os direitos civis e políticos estabelecidos na DUDH,


com exceção ao Direito de Propriedade e o Direito a Asilo. Também elenca
direitos adicionais, como os Direitos dos Presos e a Proteção de Minorias.
Estabelece ainda o direito a uma solução efetiva às violações dos direitos es-
tabelecidos no PIDCP, incluindo o acesso a um judiciário independente e
imparcial ao qual as violações possam ser levadas.

FGV DIREITO RIO  49


Direitos Humanos

Comitê. Os Estados Parte devem enviar um Relatório Periódico ao Comitê


de Direitos Humanos, que conta com 18 membros e funciona desde 1976.
Protocolos Opcionais. O PIDCP conta com dois Protocolos Opcionais,
um de 1966 e outro de 1989. O primeiro prevê a possibilidade de rece-
bimento de petições individuais pelo Comitê, enquanto que o segundo se
refere à abolição da pena de morte.

4. Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discrimi-


nação contra a Mulher (1979)

Estabelecendo uma série de medidas políticas e programáticas, a Conven-


ção busca pormenorizar o que se entende por discriminação com base no
sexo, definindo-a, e busca promover a igualdade de fato e de direito entre
homem e mulher, em todas as esferas.
Comitê. Os Estados Parte devem enviar um Relatório Periódico ao Comitê
de Eliminação da Discriminação contra a Mulher, contendo as medidas que
foram tomadas e qual foi o progresso das metas estabelecidas na Convenção.
O Comitê conta com 23 membros e funciona desde 1981.
Protocolo Opcional. A Convenção conta com um Protocolo Opcional de
1999 que permite que sejam aceitas petições individuais e que sejam instau-
rados inquéritos pelo Comitê.
Brasil. O Brasil, ao ratificar a Convenção, fez reserva aos artigos 15, §4º;
16, §1º, alíneas “a”, “c”, “g” e “h” e ao artigo 29. As reservas aos artigos 15 e
16 foram retiradas em 1994, e faziam referência à incompatibilidade entre
a Convenção e a legislação brasileira da época. A reserva ao artigo 29 ainda
vigora, e se refere à disputa entre os Estados Partes quanto à interpretação da
Convenção.

5. Convenção Internacional contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cru-


éis, Desumanos ou Degradantes (1984)

Apesar de o PIDCP já banir a tortura e outros tratamentos e penas cruéis,


desumanos e degradantes, a Convenção foi formulada de forma a aprofundar
e desenvolver um arcabouço legal para, de um lado, prevenir, e, de outro
lado, punir tais práticas. A Convenção define as práticas e estabelece que
nenhuma circunstância, seja ela qual for, é capaz de justificar sua adoção, in-
clusive a ordem de um superior. Elenca ainda o Princípio da Não-Repulsão,
através do qual, havendo motivos para crer que uma pessoa será submetida a
tortura em determinado país, ela não poderá ser extraditada, deportada ou de
qualquer outra forma devolvida a tal país.

FGV DIREITO RIO  50


Direitos Humanos

Comitê. Os Estados Parte devem enviar Relatórios Periódicos ao Comitê


Contra a Tortura. O Comitê conta com 10 membros e funciona desde 1987.
Os Estados Parte podem ainda aceitar a competência do Comitê para receber
queixas individuais e de outros Estados Parte.
Protocolo Opcional. A Convenção conta com um Protocolo Opcional de
2002, que apenas entrou em vigor em 2006. Tal Protocolo estabelece um
Subcomitê para a Prevenção da Tortura como um mecanismo internacional
preventivo, que requer que cada Estado Parte estabeleça e mantenha um ou
vários mecanismos de prevenção à tortura e outros tratamentos ou penas
cruéis, desumanos ou degradantes. O Subcomitê conta com 25 membros e
teve sua primeira sessão em 2007. Além disso, o Protocolo também estabele-
ce um sistema de visitação regular de mecanismos nacionais e internacionais
para prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou
degradantes aos Estados Parte.

6. Convenção Internacional sobre os Direitos das Crianças (1999)

Apesar de todas as crianças contarem com todos os Direitos Humanos es-


tabelecidos em todas as demais Convenções, a criação de uma Convenção es-
pecificamente para elas, considerando as particularidades da sua vulnerabili-
dade, foi um passo essencial para a garantia dos direitos das crianças. Tanto o
PIDESC quanto o PIDCP estabelecem que é direito de toda criança medidas
especiais que visem à sua proteção como criança. A Convenção detalha tais pre-
visões, estabelecendo, entre outros, o direito da criança à identidade, questões
relativas à separação dos pais e à reunificação familiar, etc. A convenção conta
com 4 princípios gerais para a implementação dos direitos das crianças: (i) a
não discriminação, (ii) a defesa do melhor interesse da criança, (iii) o direito à
vida, sobrevivência e desenvolvimento da criança, e (iv) o respeito à percepção
e ao direito da criança de expressar sua própria visão acerca da sua situação.
Comitê. A Convenção conta com o Comitê dos Direitos das Crianças, ao
qual os Estados Parte devem enviar Relatórios Periódicos acerca do desen-
volvimento e implementação dos direitos estabelecidos na Convenção. O
Comitê conta com 18 membros e funciona desde 1991.
Protocolos Opcionais. A Convenção conta com três diferentes Protocolos
Opcionais: Dois de 2000 e um de 2011. Os de 2000 dispõem sobre o envol-
vimento das crianças em conflitos armados, a venda de crianças, a prostitui-
ção e a pornografia infantil, enquanto que o de 2011 estabelece a possibilida-
de de petição individual ao Comitê e a instauração de inquéritos por outros
Estados Parte.

FGV DIREITO RIO  51


Direitos Humanos

7. Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalha-


dores Migrantes e os Membros de Suas Famílias (1990)

A Convenção elenca aspectos de proteção relativos a todo o processo de


migração, desde a sua preparação, até o trânsito e a chegada ao país de des-
tino, o período de estadia e a atividade remunerada desenvolvida no país re-
ceptor, e ao retorno ao país de origem ou de residência habitual. Apesar de o
principal foco ser no país que recebe os imigrantes, também são estabelecidas
obrigações para o país de origem. A Convenção elenca, entre outros, a veda-
ção à discriminação dos imigrantes e estabelece o direito à documentação dos
trabalhadores imigrantes e da sua família, estabelecendo seus direitos civis e
políticos, econômicos, sociais e culturais.
Comitê. Os Estados Parte devem enviar Relatórios Periódicos ao Comitê
de Proteção aos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Mem-
bros de Suas Famílias, elencando o desenvolvimento e a implementação dos
direitos estabelecidos na Convenção. Há ainda a previsão de que indivíduos
e Estados Parte realizem queixa contra outro Estado Parte, uma vez tendo ele
aceito a competência do Comitê para tal. O Comitê conta com 14 membros
e teve sua primeira sessão em Março de 2004.

8. Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006)

A Convenção entrou em vigor em 2008, e tem como objetivo promover,


proteger e garantir o pleno e igualitário gozo dos direitos humanos e das li-
berdades fundamentais pelas pessoas portadoras de deficiência. A Convenção
se afasta do conceito de que a deficiência é uma doença inerente ao indiví-
duo, que requer intervenção médica ou caridade. Não estabelece novos direi-
tos às pessoas portadoras de deficiência, preocupando-se mais com o fato de
que elas tenham assegurados e implementados todos os direitos dos quais são
titulares, sem nenhuma forma de discriminação.
Comitê. Conta com o Comitê dos Direitos das Pessoas com Deficiência,
ao qual os Estados Partes devem enviar Relatórios Periódicos apresentando as
medidas que foram tomadas para a devida implementação da Convenção. O
Comitê conta com 18 membros e, apesar de estabelecido em novembro de
2008, teve sua primeira sessão em fevereiro de 2009.
Protocolo Opcional. Conta com o Protocolo Opcional de 2006, que entrou
em vigor em 2008, e dá autoridade ao Comitê para receber petições indivi-
duais, além de permitir que o Comitê realize inquéritos a partir do recebi-
mento de informações indicando a prática de violações graves ou sistemáticas
à Convenção.

FGV DIREITO RIO  52


Direitos Humanos

9. Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desa-


parecimentos Forçados (2006)

Tendo entrado em vigor em 2010, a Convenção caracteriza-se principal-


mente pelo fato de combinar direitos típicos dos Direitos Humanos com
previsões de Direito Humanitário e de Direito Penal, estabelecendo que o
desaparecimento forçado é um crime contra a humanidade quando pratica-
do de forma sistemática e disseminada. Entre outras previsões, a Convenção
estabelece a proibição à prisão secreta e a exigência de registros oficiais das
pessoas que estão privadas de sua liberdade. A Convenção exige ainda que os
Estados Partes criminalizem atos de desaparecimento forçado e conduzam
investigações e medidas legislativas para prevenir sua ocorrência.
Comitê. Os Estados Parte devem enviar Relatórios Periódicos ao Comitê
contra o Desaparecimento Forçado. O Comitê conta com 10 membros e foi
criado em junho de 2011. É prerrogativa dos Estados Parte aceitar a compe-
tência do Comitê tanto para o recebimento de petições individuais quanto de
outros Estados Parte. O Comitê também pode adotar medidas de urgência
ou ainda proceder a um inquérito contra um Estado Parte caso receba infor-
mação de que há sérias violações sistemáticas e disseminadas à Convenção. É
prerrogativa dos Estados Parte, ainda, transferir as funções do Comitê para
outro órgão de monitoramento.

II. MECANISMOS EXTRA-CONVENCIONAIS

Os Mecanismos Extra-Convencionais baseiam-se em um único tratado:


A Carta da ONU. Sendo assim, diferenciam-se dos Mecanismos Tradicio-
nais uma vez que seus órgãos de proteção têm competência inclusive frente
a Estados que não tenham assinado uma Convenção específica de Direitos
Humanos, além de poderem tutelar qualquer Direito Humano.

Conselho de Direitos Humanos.

O órgão central de proteção não-convencional de Direitos Humanos era


a Comissão de Direitos Humanos, substituída, em 2006, pelo Conselho de
Direitos Humanos. Flávia Piovesan ensina que “Dentre outras atribuições,
cabe ao Conselho de Direitos Humanos assumir, revisar e, quando necessário,
aprimorar e racionalizar os mandatos, os mecanismos, as funções e respon-
sabilidades da antiga Comissão de Direitos Humanos, a fim de manter um
sistema de procedimentos especiais, relatorias especializadas e procedimentos
de denúncias.” A criação do Conselho de Direitos Humanos foi aprovado

FGV DIREITO RIO  53


Direitos Humanos

pela Assembleia Geral da ONU, através da resolução 60/251, contando com


4 votos dissidentes: Estados Unidos, Israel, Ilhas Marshall e Palau.
A Declaração Universal de Direito dos Humanos estabelece que todos os
Direitos Humanos são indivisíveis e inter-relacionados, e têm igual importân-
cia. Não há hierarquia entre os Direitos Humanos. Todos os Estados devem
se comprometer a promover e respeitar os direitos e liberdades estabelecidos
na DUDH e tomar medidas, nacionais e internacionais, para assegurar a uni-
versalidade e o efetivo reconhecimento e observação dos direitos. Os Tratados
Cardeais são um quadro jurídico coerente através do qual cada Estado pode,
com o apoio dos órgãos do tratado, alcançar este comprometimento.

NOTÍCIA:

Enviado de direitos humanos da ONU pede julgamento de Kim Jongun


Líder norte-coreano é acusado de crimes contra a humanidade. País investe em
armas nucleares enquanto cidadãos passam fome
14/03/2016 — G1.com

O investigador de direitos humanos da Organização das Nações Unidas


(ONU) pediu nesta segunda feira (14) que o líder nortecoreano, Kim Jon-
gun, e autoridades da Coreia do Norte enfrentem julgamentos por terem
cometido crimes contra a humanidade.
Marzuki Darusman disse que a Coreia do Norte utiliza grandes recursos
para o desenvolvimento de armas nucleares e outras armas de destruição em
massa enquanto cidadãos não têm comida suficiente.
Darusman fez um pronunciamento ao Conselho de Direitos Humanos da
ONU em uma sessão boicotada pela delegação da República Popular Demo-
crática da Coreia. A União Europeia e os Estados Unidos apoiaram o pedido
de prestação de contas, mas sem nomear o líder.
A China, aliada de Pyongyang, tomou um tom mais conciliador, dizendo
que questões de direitos humanos não devem ser politizadas e pediu uma
aproximação compreensiva ao lidar com a Coreia do Norte.
O ministro das Relações Exteriores da Coreia do Norte, Ri Su Yong, em
discurso ao fórum de Genebra em 1º de março, disse que iria boicotar qual-
quer sessão que examinasse o histórico do país e que “nunca, jamais” seria
obrigado a aceitar qualquer resolução.
Darusman, se referindo ao seu relatório emitido no mês passado, disse: “gos-
taria de reiterar meu apelo à comunidade internacional para seguir em frente e
garantir prestação de contas da Coreia, incluindo do sr. Kim Jong Un”.

Link: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/03/enviado-de-direitos-
-humanos-da-onu-pede-julgamento-de-kim-jong-un.html

FGV DIREITO RIO  54


Direitos Humanos

LEITURA OBRIGATÓRIA:

GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Instituições e procedimentos. in


PETERKE, Sven; DE CARVALHO, RAMOS André. Manual prático de
direitos humanos internacionais. Brasília: Escola Superior do Ministério Pú-
blico da União, p. 183-191, 2010.

Debate: É procedente a Comunicação de Luiz Inácio Lula da Silva para o


Comitê de Direitos Humanos no âmbito do Protocolo Facultativo ao Pacto
Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (ICCPR)?

LEITURA COMPLEMENTAR:

RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 2ª ed, São Paulo:


Saraiva, 2015.

* Apenas o capítulo IV: Mecanismos Internacionais de Proteção e Monitora-


mento dos Direitos Humanos: Competência, Composição e Funcionamen-
to. Páginas 283-320.

Fact Sheet No. 30, Rev. 1 — The United Nations Human Righst Treaty System.
Office of the High Comissioner. Disponível em <http://www.ohchr.org/Docu-
ments/Publications/FactSheet30Rev1.pdf>

ALSTON, Philip; GILLESPIE, Colin. Global Human Rights Monitoring,


New Technologies, and the Politics of Information. The European Journal of
International Law Vol. 23 (2012) no. 4, p. 1089—1123.

CAROZZA, Paolo G. Subsidiarity as a Structural Principle of International


Human Rights Law. Am. J. Int’l L. v. 97 (2003).

MORIJN, John. REFORMING UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS


TREATY MONITORING REFORM, Netherlands International Law Re-
view, LVIII: 295-333, 2011.

NADER, Lucia. O PAPEL DAS ONGs NO CONSELHO DE DIREITOS


HUMANOS DA ONU. SUR — Revista Internacional de Direitos Huma-
nos, v. 4, n. 7, 2007.

FGV DIREITO RIO  55


Direitos Humanos

LEGISLAÇÃO E DECISÕES JUDICIAIS:

O Brasil na Revisão Periódica Universal das Nações Unidas— principais


documentos do segundo ciclo (2012)

As 9 Convenções Cardeais de Direitos Humanos:

1. Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas


de Discriminação Racial (1965)
2. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(1966) (“PIDESC”)
3. Pacto Internacional dos Direitos Civil e Políticos (1966) (PIDCP)
4. Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra a Mulher (1979)
5. Convenção Internacional contra a Tortura e outros Tratamentos ou
Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984)
6. Convenção Internacional sobre os Direitos das Crianças (1999)
7. Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os
Trabalhadores Migrantes e os Membros de Suas Famílias (1990)
8. Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Defici-
ência (2006)
9. Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas con-
tra os Desaparecimentos Forçados (2006)

FGV DIREITO RIO  56


Direitos Humanos

AULA 06: SISTEMAS REGIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS


HUMANOS — INTRODUÇÃO AOS SISTEMAS EUROPEU, AFRICANO
E AMERICANO.

Nesta aula serão apresentados e estudados os 3 principais sistemas regio-


nais de proteção aos Direitos Humanos: o Africano, o Interamericano e o
Europeu. Serão abordadas as principais características e semelhanças entre os
sistemas, e os mecanismos de seu funcionamento.

O QUE SÃO OS SISTEMAS REGIONAIS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS


HUMANOS?

Os Direitos Humanos podem ser tutelados tanto no âmbito nacional


quanto no âmbito internacional. Como visto na aula anterior, a proteção
internacional aos Direitos Humanos pode ocorrer tanto de forma convencio-
nal (através de Tratados Internacionais) quanto de forma extra-convencional
(através, principalmente, da ONU e do Conselho de Direitos Humanos).
O sistema internacional de proteção aos Direitos Humanos pode ser clas-
sificado em duas diferentes esferas: global e regional. Tais sistemas são com-
plementares, não sendo de forma alguma excludentes. O sistema global é
representado principalmente pela ONU. Já os sistemas regionais são meca-
nismos convencionais de Direitos Humanos (isto é, os países devem ratificar
as Convenções de Direitos Humanos), e dividem-se em 3 principais sistemas:
o Africano, o Europeu e o Interamericano.

SISTEMA EUROPEU

O Sistema Europeu tem fundamento na Convenção Europeia de Direi-


tos Humanos, de 1950, e entrou em vigor em 1953. É reconhecido como o
sistema regional mais desenvolvido. Atualmente, não conta mais com uma
Comissão, uma vez que ela foi extinta em 1983 pelo Protocolo 11. O prin-
cipal mecanismo de proteção dos Direitos Humanos é a Corte Europeia de
Direitos Humanos, em funcionamento desde 1998. A Corte tem caráter per-
manente, diferentemente das Cortes Interamericana e Africana, e pode ser
acessada tanto por Estados Parte quanto diretamente por indivíduos.

SISTEMA AFRICANO

O Sistema Africano tem fundamento na Carta Africana sobre Direitos


Humanos e dos Povos, que foi adotada em 1981 e entrou em vigor em 1986.

FGV DIREITO RIO  57


Direitos Humanos

Uma das suas características refere-se à proteção dos direitos dos povos. Con-
ta com a Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos, que pode ser
acessada tanto por Estados Parte quanto por indivíduos, e com a Corte Afri-
cana de Direitos Humanos e dos Povos, que iniciou seus trabalhos em 2008.

SISTEMA INTERAMERICANO

Em 1948 foi realizada a IX Conferência Interamericana, que aprovou a


Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem e a Carta da Orga-
nização dos Estados Americanos (OEA). Após tais tratados, a Organização
dos Estados Americanos foi gradativamente evoluindo e se desenvolvendo.
Em 1969 foi adotada a Convenção Americana sobre Direitos Humanos
(Convenção Americana ou Pacto de São José), que aprovou a criação da Cor-
te Interamericana de Direitos Humanos (que, por sua vez, entrou em vigor
em 1978). A Comissão já existia desde antes da Convenção Americana, mas
a partir dela sofreu algumas alterações nas suas atribuições.

DESENVOLVIMENTO DOS SISTEMAS REGIONAIS

Durante muito tempo discutiu-se se a criação e implementação de sis-


temas regionais de direitos humanos representaria uma afronta ao caráter
universal, de interdependência e de indivisibilidade dos direitos humanos,
sendo que a própria ONU assumia postura reticente quanto a tais sistemas.
Atualmente, no entanto, a questão já é pacificada e os sistemas regionais são
entendidos como complementares ao sistema global de proteção aos direitos
humanos. Com relação à convivência e harmonia entre os sistemas global e
regional, Henry Steiner publicou artigo na Commission to Study the Organi-
zation of Peace:

“Pode ser afirmado que o sistema global e o sistema regional para a pro-
moção e proteção dos direitos humanos não são necessariamente incompatí-
veis; pelo contrário, são ambos úteis e complementares. As duas sistemáticas
podem ser conciliadas em uma base funcional: o conteúdo normativo de
ambos os instrumentos internacionais, tanto global como regional, deve
ser similar em princípios e valores, refletindo a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, que é proclamada como um código comum a ser alcan-
çado por todos os povos e todas as Nações. O instrumento global deve conter
um parâmetro normativo mínimo, enquanto que o instrumento regional
deve ir além, adicionando novos direitos, aperfeiçoando outros, levando em
consideração as diferenças peculiares em uma mesma região ou entre uma

FGV DIREITO RIO  58


Direitos Humanos

região e outra. O que inicialmente parecia ser uma séria dicotomia — o


sistema global e o sistema regional de direitos humanos — tem sido solucio-
nado satisfatoriamente em uma base funcional.”

Tal complementariedade significa que o indivíduo pode escolher a qual


sistema recorrer, visando alcançar o resultado que melhor lhe favoreça, pre-
ponderando, portanto, o princípio da norma mais favorável à vítima. Os
sistemas regionais estão expressamente autorizados no artigo 52 da Carta das
Nações Unidas, que assim elenca:

“Artigo 52.1. Nada na presente Carta impede a existência de acordos


ou de entidades regionais, destinadas a tratar dos assuntos relativos à manu-
tenção da paz e da segurança internacionais que forem suscetíveis de uma
ação regional, desde que tais acordos ou entidades regionais e suas atividades
sejam compatíveis com os Propósitos e Princípios das Nações Unidas.”

Algumas vantagens dos sistemas regionais em relação ao sistema global é o


fato de que, por envolverem menos países, as negociações tornam-se mais fá-
ceis, as proteções elencadas refletem melhor a realidades daqueles países, haven-
do maior possibilidade de consenso e de se pensar em formas de monitoramen-
to da implementação e da proteção dos Direitos Humanos. Sobre as principais
vantagens dos sistemas regionais, Christof Heyns e Frans Viljoen afirmam que:

“Enquanto o sistema global de proteção dos direitos humanos geralmen-


te sofre com a ausência de uma capacidade sancionatória que têm os siste-
mas nacionais, os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos apre-
sentam vantagens comparativamente ao sistema da ONU: podem refletir
com maior autenticidade as peculiaridades e os valores históricos de povos
de uma determinada região, resultando em uma aceitação mais espontâ-
nea e, devido à aproximação geográfica dos Estados envolvidos, os sistemas
regionais têm a potencialidade de exercer fortes pressões em face de Estados
vizinhos, em casos de violações. (...) Um efetivo sistema regional pode con-
sequentemente complementar o sistema global em diferentes formas.”

Além dos 3 principais sistemas, existem também o sistema Árabe e Asiáti-


co de proteção aos Direitos Humanos. O Sistema Árabe tem seu fundamento
na Carta Árabe de Direitos Humanos, de 1944, e o Asiático na Carta Asiática
de Direitos Humanos, de 1997. No entanto, nenhum dos dois sistemas atin-
giu, ainda, grande grau de desenvolvimento.

FGV DIREITO RIO  59


Direitos Humanos

NOTÍCIA:

Texto 1:

Inglaterra ignora corte europeia e impede presos de votar em referendo


20/06/2016, Conjur

Na próxima quinta-feira (23/6), o Reino Unido vai desrespeitar a juris-


prudência da Corte Europeia de Direitos Humanos mais uma vez. O país vai
decidir se permanece ou não na União Europeia, mas os presos não poderão
votar no referendo.
Há mais de dez anos, a corte europeia vem dizendo que o Reino Unido
não pode impedir todos os presos de participar das eleições. Essa proibição
generalizada viola o direito da sociedade de ter eleições livres, já que boa par-
cela da população fica de fora da votação, diz a corte.
Para se adaptar à jurisprudência europeia, basta o Reino Unido aprovar
uma lei que restrinja o direito ao voto a apenas alguns presos. A duração da
pena e a gravidade do crime podem ser usados como critério para decidir
quem deixa de votar.
Até hoje, no entanto, a Inglaterra não fez nada para mudar sua legislação.
Pelo contrário. O governo britânico se mantém firme no propósito de não
deixar nenhum preso votar e ensaia até deixar a Corte Europeia de Direitos
Humanos caso seja obrigado a mudar sua lei.

Link: http://www.conjur.com.br/2016-jun-20/inglaterra-ignora-corte-
-europeia-impedira-presos-votar

Texto 2:

Equador defende recriar Sistema Interamericano de Direitos Humanos


Começou nesta segunda-feira (13) a 46ª Assembleia Geral da OEA (Organi-
zação dos Estados Americanos), em Santo Domingo, na República Dominicana.
O chanceler do Equador, Guillaume Long, levou ao debate entre os Estados mem-
bros, a necessidade de fundar novamente o Sistema Interamericano de Direitos
Humanos (SIDH).
15/06/2016 — Portal Vermelho

Durante a participação do Equador, Long solicitou à Secretaria Geral da


OEA que atue de acordo com a Carta do organismo e dê prioridade às ques-
tões relacionadas aos direitos humanos. Desta forma, defendeu a refundação
do SIDH.

FGV DIREITO RIO  60


Direitos Humanos

“É urgente refundar o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, é


uma proposta que o Equador e os outros Estados membro do Pacto de San
José temos insistido”, afirmou.
O chefe da diplomacia equatoriano disse que os Estados membros da OEA
devem trabalhar para encontrar formas adequadas e estáveis de financiamen-
to para os órgãos que integram o SIDH a fim de “evitar a politização atual”.
Sugeriu ainda que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos deve ter
sua sede em um Estado membro da Convenção Interamericana de Direitos
Humanos, atualmente instalada em Washington, nos Estados Unidos.
“Devemos fomentar este debate, olhar as experiências dos esquemas re-
gionais europeus e africanos, e claro, assegurar um financiamento adequado
e estável para o Sistema, que permita evitar a politização atual”, argumentou.
Long também apresentou os esforços do governo de seu país para reduzir a
pobreza e a desigualdade e construir uma nova história de soberania, inclusão
e autoestima. “Uma condição que constantemente é vista pelos materialistas
como menos importante, mas é vital para alcançar o desenvolvimento”.

Link: http://www.vermelho.org.br/noticia/282333-1

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Tabela atualizada de Comparação Esquemática dos Sistemas Regionais de


Direitos Humanos (apostila de textos)

LEITURA COMPLEMENTAR:

HEYNS, Christof; PADILLA David; ZWAAK Leo. Comparação Esquemáti-


ca dos Sistemas Regionais de Direitos Humanos: Uma Atualização. SUR—Re-
vista Internacional de Direitos Humanos, v.3, n.4, São Paulo, 2006.

OLIVEIRA, Erival da Silva. Direito Constitucional — Direitos Humanos. 3ª


Edição. Rev. e Atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda., 2012.
Páginas 101-119.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e Justiça Internacional. São Paulo:


Saraiva, 2006. Páginas 50-59 e 72-84.

KILLANDER, Magnus, Interpretação dos Tratados Regionais de Direitos


Humanos. SUR—Revista Internacional de Direitos Humanos, v.1, n.1, São
Paulo, 2004.

FGV DIREITO RIO  61


Direitos Humanos

BEKKER, Gina. Recent Developments in the African Human Rights Sys-


tem: 2008-09. Human Rights Law Review v. 9, ed 4, 2009.

SARKIN, Jeremy. The Role of Regional Systems in Enforcing State Human


Rights Compliance

The legal implications of a repeal of the Human Rights Act 1998 and wi-
thdrawal from the European Convention on Human Rights (Policy Paper).
Edited by Kanstantsin Dzehtsiarou and Tobias Lock.

Tratados regionais de direitos humanos (principais)

- Convenção Americana de Direitos Humanos (1969)

- “Protocolo de San Salvador”: Protocolo Adicional à Convenção America-


na sobre Direitos Humanos Em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (1988)

- Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos (1981)

- Protocolo Adicional à Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos


sobre os direitos das Miulheres na África (2003)

- Convenção Europeia sobre Direitos Humanos (1950)

- Carta Social Europeia

FGV DIREITO RIO  62


Direitos Humanos

AULA 07: SISTEMA INTERAMERICANO — A COMISSÃO E A CORTE


INTERAMERICANAS DE DIREITOS HUMANOS.

O Brasil teve nove casos levados pela Comissão à Corte, sendo dois de-
les ainda em 2015 e outros dois em 2016. Estes quatro últimos, que ainda
aguardam julgamento, são os seguintes: (i) Trabalhadores da Fazenda Brasil
Verde Vs. Brasil, (ii) Cosme Rosa Genoveva e outros (Favela Nova Brasília)
Vs. Brasil, (iii) Povo Indígena Xucuru e seus membros Vs. Brasil e (iv) Vladi-
mir Herzog e outros Vs. Brasil.
O primeiro destes, admitido pela Corte em março de 2015, diz respeito à
omissão e negligência do Estado brasileiro em investigar de maneira diligente
diversas denúncias de trabalho forçado e servidão por dívidas relacionadas
à Fazenda Brasil Verde, localizada no Pará. As consequentes fiscalizações es-
tatais realizadas no local em 1989, 1993, 1996, 1997 e 2000 apontaram
diversas ilegalidades, mas nenhuma medida substancial foi adotada pelas au-
toridades para cessar a prática. Trabalhadores que conseguiram fugir do local
apontaram que sofriam ameaças de morte se tentassem escapar, eram impe-
didos de sair livremente, não recebiam salários ou recebiam valores ínfimos,
contraíam dívidas com o fazendeiro e eram submetidos a condições degra-
dantes de moradia, alimentação, higiene e saúde. Além disso, foi alegada a
responsabilidade do Estado pelo desaparecimento de dois menores de idade
que trabalhavam no local, deixando de investigar seu paradeiro.
Como resultado, a Comissão Interamericana concluiu que havia indícios
de violação aos artigos 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 22 e 25 da Convenção America-
na de Direitos Humanos (CADH).
No caso Cosme Rosa Genoveva e outros (Favela Nova Brasília) Vs. Brasil,
imputa-se ao Estado a responsabilidade internacional pela ausência de in-
vestigações cuidadosas e exaustivas em relação ao assassinato de 26 homens
e ao estupro de 3 meninas em duas operações policiais realizadas no Rio de
Janeiro em 1994 e 1995. Haveria, com isso, um contexto de impunidade,
tolerância e incentivo estatal diante dos atos de uso excessivo de violência
pelas forças policiais, com tortura, violação sexual e execuções extrajudiciais
encobertas pelos chamados “autos de resistência”.
Segundo a Comissão, isso daria ensejo à responsabilização do Estado pela
violação dos artigos 4º, 5º, 8º, 11, 19 e 25 da CADH, além dos artigos 1ª, 6º
e 8º da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (CIPPT)
e do artigo 7º da Convenção de Belém do Pará.
Por sua vez, o caso Povo Indígena Xucuru e seus membros Vs. Brasil trata
da responsabilidade do Estado por violar o direito à propriedade indígena
pela demora de 16 anos, entre 1989 e 2005, de demarcar e regularizar por
completo suas terras. A Corte possui uma extensa jurisprudência sobre o
assunto, mas ainda não havia analisado nenhum caso brasileiro que tratasse

FGV DIREITO RIO  63


Direitos Humanos

disso. Assim, é a primeira vez que o Brasil pode ser condenado por violar
direitos humanos de povos indígenas.
A Comissão Interamericana, em seu relatório de mérito, determinou que
o caso apresentava violações aos artigos 5º, 8º, 21 e 25 da CADH.
Por fim, o processo brasileiro mais recente perante a Corte é o caso Vla-
dimir Herzog e outros Vs. Brasil. Nele, é alegada a responsabilidade estatal
pela impunidade em relação à prisão arbitrária, tortura e morte do jornalista
Vladimir Herzog em dependências do Exército, atentando contra sua liber-
dade de expressão na crítica ao regime militar e dissuadindo outros jornalistas
militantes, especialmente aqueles que, como ele, eram vinculados ao Parti-
do Comunista Brasileiro (PCB). Além disso, seus parentes também estariam
sendo submetidos a violações até a atualidade, uma vez que a ausência de
investigação e responsabilização agravaria seu sofrimento. O caso é encarado
como mais uma oportunidade para a Corte tratar da Lei de Anistia adotada
no Brasil, que já foi declarada incompatível com o arcabouço jurídico intera-
mericano no caso da Guerrilha do Araguaia.
A Comissão concluiu que o caso atual comporta violações aos artigos 5º,
8º e 25 da CADH, além de violações aos artigos 1º, 6º e 8º da CIPPT.

NOME DO CASO ANO NÚMERO ASSUNTO


Vladimir Herzog e outros, Brasil 2016 Caso 12.879 Prisão arbitrária, tortura e morte
Povo Indígena Xucuru e seus mem- Propriedade indígena, demarcação de
2016 Caso 12.728
bros, Brasil terras
Cosme Rosa Genoveva, Evandro de
2015 Caso 11.566 Violência policial, chacinas
Oliveira e outros (Favela Nova Brasília)
Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde 2015 Caso 12.066 Trabalho escravo
Julia Gomes Lund y Otros (Guerrilha Crimes cometidos na ditadura, lei de
2009 Caso 11.552
do Araguaia) anistia
Sétimo Garibaldi 2007 Caso 12.478 Violência (morte) no campo
Arley José Escher e outros 2007 Caso 12.353 Grampo ilegal de ligações telefônicas
Assassinato de defensor de direitos hu-
Gilson Nogueira de Carvalho 2005 Caso 12.058
manos
Tratamento de paciente em instituição
Damiao Ximenes Lopes 2004 Caso 12.237
psiquiátrica (morte e integridade pessoal)

O Sistema Interamericano é um sistema regional de promoção e proteção de


direitos humanos, integrado por dois órgãos: a Comissão Interamericana de Di-
reitos Humanos (“CIDH” ou “Comissão”) e a Corte Interamericana de Direi-
tos Humanos (“Corte IDH”), que monitoram o cumprimento das obrigações
contraídas pelos Estados membros da Organização dos Estados Americanos
(“OEA”).

FGV DIREITO RIO  64


Direitos Humanos

1. O que é a Comissão Interamericana de Direitos Humanos? É o


órgão principal e autônomo da OEA criado em 1959, cujo man-
dato consta da Carta da OEA. A Comissão é integrada por sete
membros independentes, peritos/as em direitos humanos, que não
representam nenhum país e são eleitos/as pela Assembléia Geral da
OEA. Uma secretaria executiva permanente, sediada em Washing-
ton, D.C., Estados Unidos, dá apoio profissional, técnico e admi-
nistrativo à Comissão.
2. O que é a OEA? É uma organização que reúne os 35 países inde-
pendentes das Américas e que tem como propósitos garantir a paz
e a segurança continentais, consolidar a democracia representativa,
respeitando o princípio da não intervenção, prevenir as possíveis
causas de dificuldades e assegurar a solução pacífica das controvér-
sias que surjam entre seus membros, procurar a solução dos proble-
mas políticos, jurídicos e econômicos que surgirem entre os Estados
membros, promover o desenvolvimento econômico, social e cultu-
ral, erradicar a pobreza crítica, que constitui um obstáculo ao pleno
desenvolvimento democrático dos povos do Hemisfério, e alcançar
uma efetiva limitação de armamentos convencionais.
3. Quais são os Estados membros da OEA? Os 35 Estados membros
da OEA são: Antiga e Barbuda, Argentina, Bahamas, Barbados, Be-
lize, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba,
Dominica, Equador, El Salvador, Estados Unidos, Granada, Gua-
temala, Guiana, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Pa-
namá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Saint Kitts e Nevis,
Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Suriname, Trinidad e Toba-
go, Uruguai e Venezuela.
4. Qual é a função da Comissão? Promover a observância e a defesa
dos direitos humanos nas Américas. Ela exerce essa função median-
te a realização de visitas aos países, atividades ou iniciativas temáti-
cas, a preparação de relatórios sobre a situação de direitos humanos
em um país ou sobre um tema determinado, a adoção de medidas
cautelares ou pedido de medidas provisórias à Corte IDH e o pro-
cessamento e análise de petições individuais, com o objetivo de de-
terminar a responsabilidade internacional dos Estados por violações
dos direitos humanos e emitir as recomendações que considerar ne-
cessárias. As petições individuais examinadas pela Comissão podem
ser apresentadas por pessoas, grupos de pessoas ou organizações que
alegam violações dos direitos humanos garantidos na Declaração
Americana dos Direitos e Deveres do Homem (“a Declaração Ame-
ricana”), na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (“a

FGV DIREITO RIO  65


Direitos Humanos

Convenção Americana”) e em outros tratados interamericanos de


direitos humanos.
5. Contra quem eu posso apresentar uma denúncia por violação de
direitos humanos? A denúncia deve ser apresentada contra um ou
mais Estados membros da OEA que se considere terem violado os
direitos humanos constantes da Declaração Americana, da Con-
venção Americana e de outros tratados interamericanos de direitos
humanos. O Estado pode ser responsável pela violação de direitos
humanos por:
a. ação — como conseqüência de atos do Estado ou de seus agen-
tes;
b. aquiescência (como conseqüência do consentimento tácito do
Estado ou de seus agentes),
c. omissão (resultante do fato de que o Estado, ou seus agentes,
não atuaram quando o deveriam ter feito).
6. A Comissão pode determinar a responsabilidade de uma pessoa?
Não. A Comissão não tem competência para atribuir responsabili-
dade individual, ou seja, não pode determinar se uma pessoa é ou
não culpada. A Comissão pode apenas determinar a responsabilida-
de internacional de um Estado membro da OEA.
7. Que resultados esperar ao interpor uma denúncia por violação de
direitos humanos contra um Estado membro da OEA? Se determi-
nar que um Estado é responsável pela violação de direitos humanos
de uma pessoa ou de um grupo de pessoas, a Comissão emitirá um
relatório que poderá incluir as seguintes recomendações ao Estado:
a. suspender os atos que causam violação de direitos humanos;
b. investigar e punir os responsáveis;
c. reparar os danos ocasionados;
d. introduzir mudanças no ordenamento jurídico; e/ou
e. requerer a adoção de outras medidas ou ações estatais.
f. Também é possível tentar chegar a uma solução amistosa com
o Estado sobre a denúncia.
8. Que Estados ratificaram a Convenção Americana? Os países que
ratificaram a Convenção Americana são: Argentina, Barbados, Bo-
lívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Dominica, Equador, El
Salvador, Granada, Guatemala, Haiti, Honduras, Jamaica, México,
Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Su-
riname, Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela. Em relação aos
demais Estados da OEA, a Comissão tem competência para rece-
ber petições em que se aleguem violações da Declaração Americana
ou de outro tratado interamericano de direitos humanos ratificado
pelo Estado em questão.

FGV DIREITO RIO  66


Direitos Humanos

9. O que é a Corte Interamericana de Direitos Humanos? A Corte


IDH, instalada em 1979, é um órgão judicial autônomo da OEA,
cujo mandato consta da Convenção Americana. Está sediada na ci-
dade de São José, Costa Rica, e é integrada por sete juízes/as eleitos/
as a título pessoal, provenientes dos Estados membros da OEA. A
Corte IDH tem como objetivo interpretar e aplicar a Convenção
Americana e outros tratados interamericanos de direitos humanos,
em particular por meio da emissão de sentenças sobre casos e opini-
ões consultivas.
10. Como levar um caso à Corte IDH? Somente os Estados partes e
a Comissão podem submeter casos à Corte IDH. As pessoas não
podem recorrer diretamente à Corte IDH, devendo apresentar sua
petição à Comissão e completar os passos previstos perante esta.
11. Quais são os tratados interamericanos de direitos humanos?
I. Convenção Americana sobre Direitos Humanos, “Pacto de San
José da Costa Rica” 1969;
II. Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura,
1985;
III. Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos
Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Cul-
turais, “Protocolo de San Salvador”, 1988;
IV. Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos
Relativo à Abolição da Pena de Morte, 1990;
V. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher, “Convenção de Belém do Pará”,
1994;
VI. Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de
Pessoas, 1994;
VII. Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Defi-
ciência, 1999.

FGV DIREITO RIO  67


Direitos Humanos

NOTÍCIA:

Texto 1:

Brasil é réu pela 1ª vez por impunidade em casos de violência policial


País vai ser julgado na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ninguém
foi punido pelas chacinas que mataram 26 pessoas no Rio.
26/06/2015, G1.com

O Brasil está no banco dos réus por violação de direitos humanos. Entre
1994 e 1995, 26 pessoas morreram durante operações policiais no Complexo
do Alemão, Zona Norte do Rio. Até hoje, ninguém foi punido.
Por conta disso, o Brasil foi processado na OEA, a Organização dos Es-
tados Americanos. Agora, o país vai ser julgado, pela primeira vez, na Corte
Interamericana por impunidade em casos de violência policial. “Quando o
telefone tocou, que veio a notícia que o meu irmão tinha falecido de forma
brutal, não se faz isso com ser humano nenhum, aí começou o desespero na
família, minha mãe passou mal”, conta Tereza de Cássia, irmã de uma das
vítimas.
“Foi um massacre. Jogaram nossos familiares dentro de uma caçamba de
lixo, meu irmão. É muito difícil”, diz Rosilene Nascimento. “Foi tirado dele
o direito de viver. Ele só tinha 17 anos. A Justiça não foi feita. Ninguém pa-
gou pelo que foi feito, até hoje”, desabafa Mariana Neves.

Chacinas deixaram 26 mortos e ninguém foi condenado


A primeira chacina foi em outubro de 1994. A polícia fazia uma operação
na favela Nova Brasília, no Complexo do Alemão. Houve confronto com
bandidos. Três adolescentes sofreram abuso sexual e 13 pessoas morreram.
Em 2013, o Ministério Público do Rio de Janeiro denunciou quatro policiais
civis e dois militares que participaram da operação. A Justiça aceitou a de-
núncia, mas até hoje eles não foram julgados.
Em maio de 1995, seis meses depois da primeira chacina, outras 13 pes-
soas morreram em mais um confronto entre policiais e traficantes da favela
Nova Brasília. Os corpos tinham sinais de tiros dados a curta distância, o que
segundo especialistas é característico de uma execução. Na época, não foi
feita perícia nas armas dos policiais. Depois de 17 anos, o processo chegou
ao Gaeco, Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado, do
Ministério Público do Rio. Foi feita uma análise das armas. Mas o Ministério
Público não conseguiu identificar de onde vieram os tiros.

FGV DIREITO RIO  68


Direitos Humanos

Inquérito foi arquivado


Por falta de provas, o inquérito foi arquivado no último dia 7 de maio.
O crime prescreveu um dia depois. As famílias das vítimas não receberam
qualquer indenização. “O Estado não deu apoio nenhum”, diz João Moura,
pai de uma das vítimas. “O caso não é o dinheiro. Tudo bem, o dinheiro vai
ajudar, mas o que adianta ter o dinheiro e não ter eles?”, questiona Rosilene
Nascimento.
As ONGs Cejil, Centro pela Justiça e Direito Internacional e ISER, Ins-
tituto de Estudos da Religião levaram o caso até a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos, que denunciou o governo brasileiro à corte de direitos
humanos da OEA, Organização de Estados Americanos. A corte aceitou a
denúncia e, agora, o governo brasileiro é réu, pela primeira vez, por impuni-
dade em casos de violência policial.
As famílias e as ONG que fizeram a denúncia esperam não só o paga-
mento de indenizações como também uma mudança na postura dos policias
que atuam em favelas. “Os peticionários esperam que, primeiro, o Estado
brasileiro, por uma questão de coerência, reconheça a sua responsabilidade
internacional a respeito da impunidade nesses dois casos. A gente tem a ex-
pectativa que esse processo, acima de tudo, traga sobre a mesa uma discussão
mais qualificada sobre a responsabilidade dos agentes públicos envolvidos em
ações que podem ser crimes”, diz Beatriz Affonso, diretora do Centro pela
Justiça e Direito Internacional do Brasil. “Que a Justiça seja feita pra que não
venha a acontecer de novo, porque desses 20 anos pra cá acontece diariamen-
te. Quando que vai acabar? Quando que a uma família vai parar de chorar
por ter perdido um familiar assim?”, pergunta Mariana Neves.

Governo vai ter dois meses para preparar defesa


A ONG Cejil, que denunciou o caso à OEA, tem até o dia 17 de agosto
para apresentar a denúncia oficial, com perícia, provas, imagens e todas as
informações contra o Estado brasileiro. Depois que isso acontecer, o governo
tem dois meses para apresentar uma defesa. A Secretaria de Direitos Huma-
nos da Presidência da República disse que quando a Comissão Interamerica-
na enviou o caso à corte, já tinha começado uma negociação entre o governo
do Rio de Janeiro e as ONGs que entraram com esse processo.
A secretaria disse ainda que o governo do Rio se comprometeu a pagar in-
denização aos parentes das vítimas. O governo federal deve definir até o mês
que vem os representantes que vão atuar no caso perante à Corte Interameri-
cana. A Polícia Civil disse que todos os homicídios causados por intervenção
policial são investigados e que quando é comprovado que um policial não
agiu em legítima defesa, ele é responsabilizado pelo crime.

Link: http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2015/06/brasil-e-reu-pe-
la-1-vez-por-impunidade-em-casos-de-violencia-policial.html

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Direitos Humanos

Texto 2:

Como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos chegou ‘à


beira do colapso’
Por João Paulo Charleaux, 30/05/2016, NexoJornal

Um dos principais órgão de defesa de direitos humanos do continente


americano está pedindo “ação urgente” para atravessar “uma grave e aguda
crise financeira“ que pode cortar pela metade o seu tamanho, causando um
“impacto devastador” na proteção dos direitos de cidadãos de 35 países da
região.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, localizada em Wa-
shington, nos EUA, foi criada em 1959 e tem sob sua responsabilidade uma
região onde vive mais de 1 bilhão de pessoas. O órgão teve seu auge na defesa
de vítimas das ditaduras militares latino-americanas entre os anos 1960 e
1980, mas, a partir de 2011, passou por um processo profundo de revisão
que a levou a um declínio, atingindo agora seu ponto mais crítico.
“Estamos à beira de um colapso, como nunca estivemos antes”, advertiu
o americano James Cavallaro, presidente da Comissão Interamericana, em
artigo publicado pelo jornal espanhol “El País”, no dia 23 de maio.

Atribuições da Comissão
• Visitar locais e documentar casos de violações de direitos huma-
nos.
• Publicar informes temáticos e por países, sobre violações de direi-
tos humanos.
• Ditar medidas cautelares de proteção em favor de pessoas que este-
jam em risco iminente.
• Prestar assistência técnica aos governos da região em temas de di-
reitos humanos.

Qual o tamanho do problema


Desde 2014, o órgão só recebe metade do valor necessário para cumprir
suas funções. A estimativa anual de custo é de US$ 10 milhões, mas os apor-
tes dos Estados não passa de US$ 5,2 milhões. A crise é tão grave que o ór-
gão já anunciou a suspensão de suas sessões de junho e outubro por falta de
fundos, além de ter cancelado todas as viagens de trabalho que seus membros
haviam planejado para 2016.
Os funcionários dizem não ter condições de atender todos os casos. O ano
de 2015 terminou com 9.673 petições pendentes de análise pela comissão.
Cortar seu pessoal em 40% seria ainda mais “devastador para as vítimas”.

FGV DIREITO RIO  70


Direitos Humanos

40% É o tamanho estimado do corte de pessoal. O número equivale a 30 dos


78 funcionários da Comissão em Washington

Como a situação chegou a esse ponto


A orçamento total da Comissão Interamericana de Direitos Humanos é
formado quase meio a meio pela composição de duas fontes de captação:
uma, de pagamento compulsório, outra, voluntário. O órgão tem déficit de
captação em ambas.

Composição dos fundos

FUNDO REGULAR
O primeiro, chamado de “regular”, vem do repasse de um percentual do
dinheiro que todos os Estados-membros devem pagar anualmente à OEA
(Organização dos Estados Americanos). Nesse tipo de contribuição, o doa-
dor não pode dizer onde o dinheiro deve ser gasto — se em temas de gênero
ou de liberdade de expressão, por exemplo. A decisão cabe exclusivamente à
própria Comissão.

FUNDO ESPECÍFICO
O segundo, chamado de “específico”, é formado por doações livres, sem
percentual definido, feitas tanto por Estados-membros quanto por países de
fora da OEA, ou mesmo por empresas privadas e fundações. Nesse tipo de
contribuição, o doador pode dizer onde o dinheiro deve ser gasto, privile-
giando programas ou países específicos.
O problema com o “fundo regular” é a inadimplência de Estados-mem-
bros. O Brasil, por exemplo, pagou a quantia simbólica de US$ 1 em 2014.
No ano seguinte, 2015, pagou US$ 4,1 milhões, mas o valor se destinava a
cobrir o rombo do ano anterior (2014), não a saldar a cota do ano corrente
(2015), que era de US$ 8 milhões.
No “fundo específico”, a Comissão recebeu doações voluntárias de apenas
9 dos 35 Estados-membros, em 2015, e de 4 dos 35 no que vai de 2016.
Outro problema é que a Comissão costumava receber aportes voluntários da
União Europeia, como bloco, e de nove países daquele continente, individu-
almente: Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Noruega, Reino Unido,
Holanda, Suécia e Suíça, mas esses recursos passaram a ser direcionados re-
centemente para lidar com o afluxo de refugiados na Europa.
Por trás da falta de dinheiro, está a acusação de alguns países de que a
OEA é controlada por interesses americanos. Os EUA são o principal doador
individual, além de ser a sede da OEA. Países alinhados com a Venezuela —
no grupo de governos de esquerda chamados bolivarianos — dizem que os
trabalhos da Comissão são dirigidos de maneira política, produzindo infor-

FGV DIREITO RIO  71


Direitos Humanos

mes e emitindo decisões favoráveis a grupos opositores internos, enquanto


condena esses governos.
“A crise financeira origina-se na falta de vontade política necessária para
apoiar o trabalho da Comissão”. Comunicado da Rede Interamericana de
Direitos Humanos, que pesquisa e apoia os trabalhos do Sistema Interameri-
cano de Direitos Humanos, formado pela Comissão e pela Corte Interame-
ricanas. “Alguns países se incomodam quando a comissão destaca os desafios
que a região enfrenta em direitos humanos. Essa é nossa função, que nos foi
delegada pelos Estados. Mas nos estrangulam financeiramente, talvez para
que não possamos cumprir nossos mandatos”

Processo de ‘fortalecimento’ enfraqueceu o órgão


O desprestígio da comissão teve início, ironicamente, com a fundação de
um grupo de trabalho dedicado ao “fortalecimento” do Sistema Interameri-
cano de Direitos Humanos, em 2011. Os discursos defendiam o fortaleci-
mento, mas as atitudes, não.
Foi nesse processo que alguns países criticados com frequência por, segun-
do a comissão, violarem os direitos humanos de seus cidadãos começaram a
acusar o órgão de seletividade. As críticas e ameaças de retirada vieram prin-
cipalmente dos governos de Venezuela, Bolívia, Equador e Nicarágua.
Por outro lado, surgiu no grupo a proposta de aumentar as receitas “re-
gulares” e diminuir as “específicas”. Isso daria mais estabilidade no longo
prazo e impediria que países ou grupos privados direcionassem as doações vo-
luntárias, que respondem por metade do orçamento da Comissão, para fins
políticos específicos — como, por exemplo, a crítica à liberdade de expressão
na Venezuela em vez da crítica à falta de acesso à saúde pública nos EUA, na
visão dos governos bolivarianos.
O órgão respondeu dizendo que ambos aportes são desejados. Os fundos
“regulares” dão estabilidade, mas os fundos “específicos” dariam socorro ime-
diato de curto prazo numa situação de emergência econômica, como a atual.
A secretaria-geral da OEA respondeu afirmando que está sensível à questão e
buscará uma saída à altura da importância dessa instância.

ONGs apontam Brasil como um dos culpados


O Brasil também foi apontado por organizações de direitos humanos —
como a Conectas e a Justiça Global — como um exemplo desse comporta-
mento de desprestígio da Comissão. Em 2011, a presidente Dilma Rousseff,
hoje afastada, decidiu, segundo essas organizações, castigar a Comissão In-
teramericana, cancelado os aportes financeiros e retirando o embaixador no
órgão depois de ter sido alvo de uma decisão crítica à construção da Usina de
Belo Monte, no Pará.

FGV DIREITO RIO  72


Direitos Humanos

A comissão havia determinado que o governo brasileiro não seguisse


adiante com as obras enquanto não fizesse consultas aos povos indígenas afe-
tados pela construção. O Ministério das Relações Exteriores, por sua vez,
disse que a suspensão dos aportes — registradas desde o ano anterior — não
estava ligada à medida cautelar emitida pela Comissão, mas a um parecer da
Advocacia-Geral da União segundo o qual contribuições voluntárias a orga-
nismos internacionais careceriam de base jurídica sólida.
“A Comissão recebe menos de US$ 5 milhões anualmente. Portanto, ela
sempre dependeu muito de doações para seguir com suas atividades regula-
res. O momento de crise econômica na região, com alguns Estados fazendo
um esforço aberto de enfraquecer o Sistema Interamericano de proteção dos
direitos humanos, piora as perspectivas de solução desse problema”, disse ao
Nexo Renan Quinalha, professor de Direito Internacional e doutorando em
Relações Internacionais na USP, que se dedica ao estudo do Sistema Intera-
mericano de Direitos Humanos.

Quais os casos emblemáticos da Comissão


Desde sua fundação, a Comissão já processou mais de 12 mil petições.
Entre as mais importantes, estão as que envolveram os assassinatos de 15
cidadãos peruanos nos arredores de Lima, em 1991, durante o governo do
presidente Alberto Fujimori. Os crimes foram cometidos por um grupo de
extermínio conhecido como Grupo Colina, controlado pelo braço direito
de Fujimori, Vladimiro Montesinos. Na época, o próprio governo peruano
bloqueou as investigações.
Após a queda de Fujimori, entretanto, o caso foi levado à Comissão, que
conseguiu reverter a decisão e garantir uma indenização de US$ 3 milhões
para as famílias sobreviventes do massacre e para as famílias dos mortos. Fu-
jimori está preso no Peru por crimes de lesa humanidade. Sua filha, Keiko,
lidera as intenções de voto no segundo turno das eleições presidenciais peru-
anas, marcadas para domingo, 5 de junho.
Em 2010, a Comissão estabeleceu o “direito à verdade” sobre o desapareci-
mento de 70 membros da Guerrilha do Araguaia, entre os anos 1972 e 1975,
no Brasil. Como o Supremo Tribunal Federal manteve a validade da Lei
6.683/1979 (Lei de Anistia), o caso ficou restrito ao reconhecimento, pelo
governo brasileiro, dos crimes cometidos à época, sem que os responsáveis
fossem processados. O posicionamento da Comissão foi seguido também
pela Corte Interamericana, que, no mesmo ano, condenou o Brasil nesse
mesmo caso. Novamente, o Supremo reafirmou a validade da Lei de Anistia,
por sobre os compromissos jurídicos internacionais do país.

Link: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/05/30/Como-
-a-Comiss%C3%A3o-Interamericana-de-Direitos-Humanos-chegou-
-%E2%80%98%C3%A0-beira-do-colapso%E2%80%99

FGV DIREITO RIO  73


Direitos Humanos

LEITURA OBRIGATÓRIA:

COIMBRA, Elisa Mara. Sistema Interamericano de Direitos Humanos: De-


safios à implementação das decisões da Corte no Brasil. SUR — Revista
Internacional de Direitos Humanos, v. 10, n. 19 (2013).

LEITURA COMPLEMENTAR:

VIEIRA, Oscar Vilhena. Implementação das recomendações e decisões do


sistema interamericano de direitos humanos no Brasil: institucionalização e
política, 1. ed. São Paulo: Direito GV, 2013.

Pedido de Medidas Cautelares de Dilma Rousseff sobre o processo de impea-


chment (2016), Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

CONTRERAS-GARDUÑO, Diana. The Inter-American System of Hu-


man Rights. In MIHR, Anja; GIGNEY, Mark. The Sage Handbook of Hu-
man Rights (2014).

BASCH. Fernanda et al. A Eficácia do Sistema Interamericano de Proteção


de Direitos Humanos — Uma Abordagem Quantitativa sobre seu Funciona-
mento e sobre o Cumprimento de suas Decisões. Sur — Revista Internacional
de Direitos Humanos (2010), vol.7, n.12, pp. 09-35.

Sistema de Petições e Casos: folheto informativo da Comissão Interameri-


cana de Direitos Humanos”, Organização dos Estados Americanos (OEA),
2010.

HILEBRECHT, Courtney. The Domestic Mechanisms of Compliance with


International Human Rights Law: Case Studies from the Inter-American
Human Rights System, Human Rights Quarterly, Volume 34, Number 4,
November 2012, pp. 959-985

LIXINSKI, Lucas. Treaty Interpretation by the Inter-American Court of


Human Rights: Expansionism at the Service of the Unity of International
Law. The European Journal of International Law Vol. 21 no. 3 (2010), p.
585—604.

GALLI, Maria Beatriz; DULITZKY, Ariel. A Comissão Interamericana de


Direitos Humanos e seu papel central no Sistema Interamericano de prote-
ção dos Direitos Humanos. In GOMES, Luiz Flávio; Piovesan, Flávia “O

FGV DIREITO RIO  74


Direitos Humanos

Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Bra-


sileiro”.

CEIA, Eleonora Mesquita. A Jurisprudência da Corte Interamericana de Di-


reitos Humanos e o Desenvolvimento da Proteção dos Direitos Humanos no
Brasil. Revista EMERJ, Rio de Janeiro, v. 16, n. 61, p. 113-152, jan.-fev.-
-mar. 2013.

BERNARDES, Marcia Nina. O sistema interamericano de direitos humanos


como esfera pública transnacional: aspectos jurídicos e politicos da imple-
mentação de decisões internacionais. SUR — Revista Internacional de Direitos
Humanos, v. 8, n. 15, 2011.

LEGISLAÇÃO E DECISÕES JUDICIAIS:

Convenção Americana de Direitos Humanos (principais partes):

Artigo 27. Suspensão de garantias


1. Em caso de guerra, de perigo público, ou de outra emergência que
ameace a independência ou segurança do Estado Parte, este poderá adotar
disposições que, na medida e pelo tempo estritamente limitados às exigências
da situação, suspendam as obrigações contraídas em virtude desta Conven-
ção, desde que tais disposições não sejam incompatíveis com as demais obri-
gações que lhe impõe o Direito Internacional e não encerrem discriminação
alguma fundada em motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião ou origem
social.

2. A disposição precedente não autoriza a suspensão dos direitos deter-


minados seguintes artigos: 3 (Direito ao reconhecimento da personalidade
jurídica); 4 (Direito à vida); 5 (Direito à integridade pessoal); 6 (Proibição da
escravidão e servidão); 9 (Princípio da legalidade e da retroatividade); 12 (Li-
berdade de consciência e de religião); 17 (Proteção da família); 18 (Direito ao
nome); 19 (Direitos da criança); 20 (Direito à nacionalidade) e 23 (Direitos
políticos), nem das garantias indispensáveis para a proteção de tais direitos.

3. Todo Estado Parte que fizer uso do direito de suspensão deverá in-
formar imediatamente os outros Estados Partes na presente Convenção, por
intermédio do Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos, das
disposições cuja aplicação haja suspendido, dos motivos determinantes da
suspensão e da data em que haja dado por terminada tal suspensão.

FGV DIREITO RIO  75


Direitos Humanos

Artigo 29. Normas de interpretação


Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido
de:

a. permitir a qualquer dos Estados Partes, grupo ou pessoa, suprimir o


gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou li-
mitá-los em maior medida do que a nela prevista;

b. limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam


ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes ou de
acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados;

c. excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou


que decorrem da forma democrática representativa de governo; e

d. excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana


dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma
natureza.

Artigo 44

Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental


legalmente reconhecida em um ou mais Estados membros da Organização,
pode apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas
de violação desta Convenção por um Estado Parte.
Artigo 46
1. Para que uma petição ou comunicação apresentada de acordo com os
artigos 44 ou 45 seja admitida pela Comissão, será necessário:

a. que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna,


de acordo com os princípios de direito internacional geralmente reconheci-
dos;

b. que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data


em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido notificado da
decisão definitiva;

c. que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro


processo de solução internacional; e

FGV DIREITO RIO  76


Direitos Humanos

d. que, no caso do artigo 44, a petição contenha o nome, a nacionalidade,


a profissão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou pessoas ou do represen-
tante legal da entidade que submeter a petição.

2. As disposições das alíneas a e b do inciso 1 deste artigo não se aplicarão


quando:

a. não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido


processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham
sido violados;

b. não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos


o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de
esgotá-los; e

c. houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.

Artigo 64
1. Os Estados membros da Organização poderão consultar a Corte so-
bre a interpretação desta Convenção ou de outros tratados concernentes à
proteção dos direitos humanos nos Estados americanos. Também poderão
consultá-la, no que lhes compete, os órgãos enumerados no capítulo X da
Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de
Buenos Aires.
2. A Corte, a pedido de um Estado membro da Organização, poderá
emitir pareceres sobre a compatibilidade entre qualquer de suas leis internas
e os mencionados instrumentos internacionais.

FGV DIREITO RIO  77


Direitos Humanos

AULAS 08 E 09: FUNDAMENTOS DOS DIREITOS ECONÔMICOS


SOCIAIS E CULTURAIS —— POBREZA EXTREMA E DIREITOS
HUMANOS

Nestas duas aulas, estudaremos os direitos econômicos, sociais e culturais


sob a perspectiva dos Direitos Humanos, dando ênfase ao Pacto Internacio-
nal sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, já abordado na aula
05. Também abordaremos as possíveis respostas dos direitos humanos à po-
breza extrema.

DESENVOLVIMENTO DOS DESC

No ano de 1950, a Assembleia Geral da ONU reconheceu que as liber-


dades civis e políticas estão diretamente inter-relacionadas com os direitos
econômicos, sociais e culturais. Sendo assim, em 1952 ela solicitou à Co-
missão de Direitos Humanos que elaborasse dois diferentes pactos, cada um
disciplinando os dois “grupos de direitos”. Tais pactos vieram a ser, posterior-
mente, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), que,
juntamente com os protocolos facultativos do PIDCP e com a Declaração
Universal dos Direitos do Homem (DUDH), formam a Carta Internacional
dos Direitos do Homem.

FORMA DE IMPLEMENTAÇÃO

Uma das principais diferenças entre os Pactos refere-se à forma de imple-


mentação dos direitos sobre os quais dispõem. O argumento que justificava
a elaboração de dois diferentes Pactos era de que os direitos e liberdades
civis e políticos são de natureza autoaplicável, ao passo em que os direitos
econômicos, sociais e culturais têm caráter de implementação progressiva no
tempo — ou seja, não pode ser demandado do Estado que os aplique de
forma absoluta e instantânea, mas sim que, gradativamente, os implemente
e assegure a todos, cada vez em maior escala. No entanto, vale apontar que
tal diferenciação não é absoluta, uma vez que entre os direitos elencados no
PIDCP encontram-se também direitos progressivos, e, no PIDESC, também
é possível encontrar direitos aplicáveis em curto prazo.

FGV DIREITO RIO  78


Direitos Humanos

INDIVISIBILIDADE DOS DIREITOS HUMANOS

A criação de dois diferentes Pactos conduz, somada ao fato de que alguns


deles são autoaplicáveis enquanto que outros são programáticos, pode con-
duzir à falsa premissa de que alguns direitos são mais importantes ou mais ur-
gentes do que outros. Tal noção deve ser afastada, uma vez que não há, entre
os direitos humanos, qualquer forma de hierarquia. A I Conferência Mundial
sobre Direitos Humanos, em 1968, estabeleceu que todos os Direitos Hu-
manos são indivisíveis, devendo todos eles ser igualmente tutelados. Na II
Conferência Internacional de Direitos Humanos, em 1993, foi reafirmada a
interdependência e a indivisibilidade dos Direitos Humanos. A este respeito,
Flávia Piovesan ensina que deve-se ter como

“definitivamente afastada a equivocada noção de que uma classe de


direitos (a dos direitos civis e políticos) merece inteiro reconhecimento e
respeito, enquanto outra classe de direitos (a dos direitos sociais, econômicos
e culturais), ao revés, não merece qualquer observância. (...) Está defini-
tivamente superada a concepção de que os direitos sociais, econômicos e
culturais não são direitos legais, devendo os mesmos ser reconhecidos como
autênticos e verdadeiros direitos fundamentais, acionáveis, exigíveis.”

PROTOCOLO FACULTATIVO

Como já visto em aulas anteriores, o PIDCP conta com Protocolo Fa-


cultativo que autoriza a petição individual para denunciar violações aos di-
reitos elencados no Pacto ao Comitê de Direitos Humanos. Com relação
ao PIDESC, também foi elaborado Protocolo Facultativo para autorizar tal
prerrogativa, no entanto o Pacto previa que entraria em vigor apenas após a
sua ratificação e depósito por 10 diferentes Estados. Sendo assim, ainda que
aprovado pela Assembleia Geral da ONU em 2008, o Protocolo Facultativo
só entrou em vigor no dia 5 de maio de 2013, sendo bastante recente.
O Brasil não ratificou o Protocolo Facultativo ao PIDESC, de forma que,
atualmente, indivíduos não podem levar casos de violação aos direitos elencados
no Pacto ao Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Sendo assim, as
violações a direitos econômicos, sociais e culturais por parte do Brasil são perce-
bidos, atualmente, através dos relatórios enviados pelo Brasil periodicamente ao
Secretário Geral das Nações Unidas, que o repassará ao Comitê de Direitos Eco-
nômicos, Sociais e Culturais. Não há nenhum mecanismo efetivamente sancio-
nador, sendo que o incentivo para que o Estado cumpra com as suas obrigações
sob o PIDESC ou cesse violações ao Pacto são de pressão e apelo político e moral
no campo da opinião pública, também chamado de “power of embarassment”.

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Direitos Humanos

DESC E O SISTEMA INTERAMERICANO

Com relação à proteção dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais atra-


vés do Sistema Interamericano, a Convenção Americana dispôs, majoritaria-
mente, acerca de direitos civis e políticos, mencionando os DESC apenas em
um artigo, e apontando que eles deverão ser alcançados de forma progressiva.
No entanto, os Estados Parte têm a prerrogativa de ratificar também o Pro-
tocolo de São Salvador, Protocolo Adicional à Convenção Americana. Tal
Protocolo elenca diversos direitos econômicos, sociais e culturais, além de au-
torizar o envio de petições individuais à Comissão Interamericana, relativos a
violações ao direito de educação e de associação sindical. Vale apontar, ainda,
que a Comissão e a Corte Interamericanas têm, de forma geral, aceitado que
possa ser declarada a violação a um Direito Humano de ordem programática
quando demonstrado que, de forma indireta, a violação a tal direito acaba
por violar outros Direitos Humanos (por exemplo: poderá ser reconhecida
a violação ao direito a um meio ambiente sadio quando restar demonstrado
que tal violação conduz à violação, também, dos direitos à vida e à saúde).

PROTEÇÃO NACIONAL E INTERNACIONAL

Os direitos econômicos, sociais e culturais devem ser tutelados tanto no


âmbito interno quanto no âmbito internacional. Internamente, devem ser
promulgadas e observadas leis, além de implementados programas, e, natu-
ralmente, ser exercido o controle às suas violações nas esferas administrativa
e judiciária.
A depender do país em que se analisa, alguns DESC podem ser mais ou
menos tutelados. No Brasil, podemos dizer que os direitos trabalhistas e pre-
videnciários são amplamente protegidos pelo poder judiciário (ainda que
atualmente possam ser evidenciadas violações a tais direitos), enquanto que
outros direitos nem tanto.

DESC E OS RECURSOS DISPONÍVEIS

A proposta da defesa e proteção dos DESC esbarra em questão muito sen-


sível aos países: o fato de a promoção de tais direitos demandar a aplicação
e investimento de grandes recursos. Sendo assim, foi necessária a adoção de
uma maior “flexibilização” da adoção de tais direitos, com a assunção do seu
caráter programático, a fim de que os países tivessem incentivos a se com-
prometer com tais direitos sem que isso representasse a certeza de serem san-

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Direitos Humanos

cionados. A questão dos recursos disponíveis pode ser encontrada em alguns


trechos do PIDESC, como, por exemplo, do seu artigo 2º:

“Artigo 2.º
1. Cada um dos Estados Partes no presente Pacto compromete-se a agir,
quer com o seu próprio esforço, quer com a assistência e cooperação interna-
cionais, especialmente nos planos econômico e técnico, no máximo dos seus
recursos disponíveis, de modo a assegurar progressivamente o pleno exercício
dos direitos reconhecidos no presente Pacto por todos os meios apropriados,
incluindo em particular por meio de medidas legislativas.
(...)
3. Os países em vias de desenvolvimento, tendo em devida conta os
direitos do homem e a respectiva economia nacional, podem determinar
em que medida garantirão os direitos econômicos no presente Pacto a não
nacionais.” (Grifo nosso)”

A previsão de os Estados devem atuar dentro do limite dos recursos dis-


poníveis conduz a dois resultados: em primeiro lugar, ao fato de que assegura
aos Estados que não poderá ser demandado que atuem de forma além do que
têm efetivamente capacidade, e, de outro lado, ao fato de que veda que os
Estados posterguem por tempo indeterminado e injustificadamente a imple-
mentação de tais direitos.

Implementação nacional dos DESC

Os direitos humanos econômicos, sociais e culturais têm uma caracte-


rística peculiar que é a sua implementação progressiva. Progressiva porque
entende-se que são direitos muito complexos para serem implantados ime-
diatamente e nenhum país em desenvolvimento seria capaz de providencia-
-los rapidamente para todos os seus cidadãos. Portanto, a implementação dos
DESC deve ser feita aos poucos, de modo que os recursos disponíveis para
este fim estejam sendo utilizados no máximo valor possível. Tal previsão está
no art. 2˚ do Pacto Internacional sobre DESC, que diz:
“Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas,
tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais,
principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recur-
sos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios
apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto,
incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas.”
No “Protocolo de San Salvador” (Protocolo Adicional à Convenção Ame-
ricana sobre Direitos Humanos Em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais

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Direitos Humanos

e Culturais) há previsão semelhante, estabelecendo que os países devem ado-


tar as medidas necessárias até o máximo de recursos disponíveis e levando em
conta seu grau de desenvolvimento para a plena efetividade dos DESC.

A defesa judicial dos direitos sociais

O Pacto dos Direitos econômicos, sociais e culturais previu como forma


de monitorar os países signatários o mecanismo de relatórios, por meio do
qual cada Estado deve enviar periodicamente um relatório descrevendo as
medidas legislativas, administrativas e judiciárias que vêm sendo tomadas
para efetivar os direitos estabelecidos no Pacto. O relatório é enviado para o
Comitê DESC, que mensura os avanços de cada país e faz observações, que
não têm força legal, apenas força política e moral e de constrangimento.
Contudo, essa era a única forma de monitorar esses direitos, e muito se
discutia sobre sua efetividade. A própria Declaração de Viena de 1993 previu
que deveriam ser adotadas medidas para assegurar a maior justiciabilidade
e exigibilidade aos DESC. Por isso, em 2008, foi elaborado um Protocolo
Facultativo ao Pacto, que só entrou em vigor no ano de 2013. Esse protocolo
passou a prever que o Comitê teria competência para receber e apreciar peti-
ções individuais ou em grupo de vítimas de violações dos direitos enunciados
no Pacto. Além disso, ele estabeleceu a possibilidade de comunicação entre
os Estados, em que um inclusive pode denunciar o outro por não estar cum-
prindo as obrigações previstas no Pacto.
Os sistemas regionais também trazem mecanismos de judicialização des-
ses direitos. O Pacto de San Salvador, citado anteriormente, trouxe previsão
similar, pois também dispôs sobre a possibilidade apresentar petições indivi-
duais, mas apenas quando se tratar de uma violação ao direito à educação ou
aos direitos sindicais. Outra peculiaridade é que o Pacto só prevê a respon-
sabilização do Estado quando houver um ação imputável diretamente a ele,
excluindo, portanto, todos os casos em que há omissão do Estado.
Em âmbito nacional, a discussão é mais sensível. Alguns países não têm
em suas constituições a previsão de judicialização desses assuntos. Poderiam
ser eles exigíveis? Alguns autores interpretam que não, inclusive acreditam
não ser exigível nem quando há tal previsão. Entretanto, a maioria dos auto-
res afirmam que há um mínimo dos DESC que não pode ser desrespeitado,
e dentro do possível, os tribunais devem procurar garantir que tais direitos
possam ser discutidos e protegidos.

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Direitos Humanos

Direito à moradia adequada

O direito à moradia adequada está previsto no Artigo 11 do Pacto e pode


ser considerado um dos mais importantes direitos sociais, visto que é impres-
cindível para garantia de outros direitos, como o tratamento digno e o direito
a segurança. O Comitê sobre os DESC definiu que para que uma mora-
dia seja considerada adequada devem ser considerados a segurança da posse,
acessibilidade, adequação cultural, localização, habitabilidade, disponibilida-
de de serviços/materiais/infra-estrutura e economicidade. Nesse sentido, será
que o Brasil garante aos seus cidadãos tal direito?
Além dos milhares de sem teto espalhados pelo país, é necessário ressaltar
a situação das comunidades mais necessitadas. Segundo o Censo de 2010
do IBGE, há 6.329 favelas em todo o país, abrigando cerca de 11,4 milhões
de pessoas. Nessas favelas a maioria dos requisitos para tornar uma moradia
adequada não está presente. É comum encontrar comunidades sem estrutu-
ras mínimas que garantam água, energia, saneamento e iluminação, coleta
de lixo então, mais raro ainda. A segurança também é precária, os índices de
violência são altíssimos, com frequentes conflitos.
Nesse sentido, vale a pena citar o caso das remoções no Rio de Janeiro, prin-
cipalmente nas áreas de favelas, que vêm acontecendo desde 2009, então para
receber a Copa do Mundo de 2014 e, agora, para as Olimpíadas de 2016. Se-
gundo o relato dos moradores, muitas das remoções aconteceram sem que hou-
vesse diálogo com o morador, ou pelo menos um prazo para que ele deixasse
sua casa, caracterizando a remoção forçada, que desrespeita a garantia da posse.
Um caso similar foi judicializado na África do Sul em 2000 com base no
direito à moradia adequada. Tratava-se de um grupo de pessoas que morava
em acampamentos em uma área propícia a alagamentos e que, com medo na
época das chuvas, migraram para um terreno particular que oferecia menos
risco de alagar. Eles foram despejados, e ao voltarem para o lugar que habita-
vam anteriormente o encontraram ocupado por outras pessoas. Importante
ressaltar que muitos desses habitantes já haviam se candidatado há anos para
os programas de habitação popular, mas ainda estavam a espera de uma resi-
dência disponível. Assim, o caso foi levado a Corte Constitucional.
A decisão do caso Grootboom chegou a conclusão de que o programa
implantado para garantir moradias não era abrangente o suficiente, pois não
atendia pessoas que estavam em extrema necessidade. Logo, determinou que
parte do orçamento para moradia fosse utilizado para garantir moradia para
aquele grupo de pessoas, por conta de sua situação emergencial e, ainda,
indicou a Comissão de Direitos Humanos para fiscalizar o cumprimento da
decisão. Tal caso ficou conhecido por todo o mundo por servir de parâmetro
para a proteção do direito à moradia adequada, e também de todos os direitos
sociais, econômicos e culturais.

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Direitos Humanos

NOTÍCIA 1

O legado das remoções no Rio: violência, dívidas e povo na mão de


milícias
Giulia Afiune, Jessica Mota e Natalia Viana, 21/07/2016, Agência Pública

Atrás da porta de metal da rua Camerino, no centro do Rio de Janeiro,


duas escadas carcomidas levam ao segundo andar, onde, na ausência de jane-
las, tudo é malcheiroso e escuro. Ali, no meio de outras cinco ou seis famílias,
moram as crianças Jackson, Jasmin, Jamile, Carolaine, Iuri, Karolyn, Cauane
e Janderson, filhos de Jailson Lourenço da Costa, um negro alto, bonito,
analfabeto. Eles dividem dois cômodos no cortiço ao preço de R$ 700 men-
sais; um deles acolhe geladeira, fogão e o colchão dos pais. No outro há uma
cômoda, uma TV e uma cama compartilhada por todos os filhos. “Querendo
ou não, um rola pro chão e a friagem bate”, preocupa-se o pai.
Faz sete anos que Jailson foi expulso do casarão azul, sobrado antigo que
fica no traçado do VLT (veículo leve sobre trilhos), uma das atrações do Porto
Maravilha — por sua vez, um dos grandes legados da Olimpíada de 2016
para o Rio, de acordo com a prefeitura. “Eles falaram que ia fazer reforma
do cais do porto e ia passar aquele bonde, e não podia ter moradia ali”, lem-
bra. O casarão, abandonado, havia sido ocupado por moradores da região:
ambulantes, catadores, trabalhadores com parcos salários como ele. Foi ali
que Jailson conheceu sua mulher. Em junho de 2009, foram removidos em
apenas dez dias. A promessa era que “eles [a prefeitura] iam dar essa casa no
Minha Casa Minha Vida pra cada um morar, sendo que não deu nada, can-
celou, depois disso não deu nada pra ninguém”. Há três anos, a família mora
no cortiço da rua Camerino. “Eu não posso falar pra senhora que eu sou feliz,
que eu não vejo meus filhos muito felizes, não tem espaço, não tem nada.
Tenho que ficar chamando a atenção. Se tivesse uma casa grande, eles iam
ficar brincando e eu não ia ficar brigando tanto com eles, né?”.
“Sinto saudade do casarão mesmo, de morar lá, era bom. Era tranquilida-
de”, lamenta.
Por trás das saudades de Jailson e de milhares de famílias removidas para
dar lugar ao espetáculo dos Jogos Olímpicos de 2016, há diversas violações
de direitos humanos que permearam todo o processo, intrinsecamente ligado
também à participação do Rio como sede da Copa do Mundo de 2014.
As famílias entrevistadas pela Pública para o projeto 100 — até o momen-
to foram 62 entrevistas, todas feitas pessoalmente — relataram violências
psicológicas e físicas. [...]
Ameaça constante
A ameaça reiterada de remoção, ao longo de décadas, foi mencionada por
entrevistados de todas as comunidades. Não à toa, todas elas estavam não

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Direitos Humanos

só no caminho dos BRTs e obras para os Jogos, mas em áreas de grande


valorização imobiliária. O pesquisador Lucas Faulhaber relata no seu livro
SMH 2016 — Remoções no Rio de Janeiro, uma coautoria com a jornalista
Lena Azevedo, que em 2014 o Rio possuía o metro quadrado mais caro do
país, uma média de R$ 10.250, após um aumento dos preços residenciais em
700% em 2010, segundo levantamento da Secov-Rio.
“Em 2006, o César Maia, com o pretexto de que não poderia ter comércio
nas comunidades, veio e derrubou a casa das pessoas. Quando foi final de
2008 pra 2009, a Subprefeitura da Barra começou de novo a vir aqui falar
besteirinha. Primeiro mandou um monte de… diz que era assistente social,
pegaram todos os dados da comunidade e entregaram tudo pra subprefeitura.
Então, quando a subprefeitura chegou em cima da gente [em 2012], sabia da
nossa vida mais do que a gente”, diz o capixaba Jorge Santos, ex-morador da
Vila Recreio II.
O fundador da Vila Autódromo, o pescador Steliano Francisco dos San-
tos, relatou ter recebido as primeiras ameaças de despejo apenas seis meses
depois de ter montado o primeiro barraco da comunidade.”Aí parava, pas-
sava seis meses, vai, sai hoje, sai amanhã… e nunca sai. E eu ficando. Nisso
foram 36 anos”, lembrou, em entrevista feita no começo de 2014. Ele faleceu
pouco depois de ter sua casa demolida.
Diante das renitentes ameaças, quando a hora “do bicho pegar” — nas pa-
lavras de seu Steliano —, muitas famílias aceitaram a única proposta feita pela
prefeitura. Jorge Lima, não. Ele ajudou a organizar a mobilização das famílias
da favela Metrô Mangueira, que conseguiu uma das maiores conquistas: dois
condomínios populares a apenas algumas ruas de distância. E se lembra da
“frase sempre usada” pelos funcionários da prefeitura, nas primeiras visitas.
“Aquela frase que eles repetiam: “ou Cosmo ou rua”. “Cosmo” significava
serem transferidos para um dos condomínios do Minha Casa Minha Vida no
bairro de Cosmos, na zona oeste, a 60 quilômetros de distância.
Hoje, os que se dizem mais contentes são justamente aqueles que saíram
de uma situação de moradia degradante para os apartamentos do Minha
Casa Minha Vida em regiões próximas de onde moravam, como no morro
da Providência e no metrô Mangueira. “A gente bateu o pé que não ia sair
dali e aí teve o assunto de que iam liberar esse aqui pra gente, aí falei: ‘Ma-
ravilhoso’”, diz o ex-morador do Mangueira, José Miranda. “Em matéria de
moradia, está muito melhor; em matéria de conforto, está muito melhor.”
Não foi o caso da maioria dos entrevistados. Nossa reportagem ouviu, por
exemplo, famílias removidas do bairro do Recreio transferidas para Campo
Grande, a 28 quilômetros de distância, e famílias removidas do centro da
cidade para o bairro de Senador Camará, a cerca de 40 quilômetros de dis-
tância. Os ex-moradores da ocupação Machado de Assis, no local do Porto
Maravilha, quando moravam no centro, estavam do lado de seus trabalhos.

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Direitos Humanos

Agora, têm de acordar às 4 da manhã para ir para o mesmo lugar, se é que não
perderam o emprego. “O ambiente, pra mim, é normal. Tô superbem. Mas
que eu preferia estar lá no centro, eu preferia. Lá, em qualquer lugarzinho,
eu colocava um isopor com cerveja, com biscoito, qualquer esquinazinha ali
eu já tinha um trabalho. Pra ajudar na renda dentro de casa”, diz Simone da
Conceição, que hoje mora no Minha Casa Minha Vida em Senador Camará.
“Só me arrependo em matéria de trabalho. Lá eu já tinha uma ocupação certa
pra mim, sendo mulher com 40 anos de idade.”
Sônia Braga, ex-moradora da comunidade Vila Harmonia, no Recreio, e
hoje também em Senador Camará, disse que as condições não eram adequa-
das quando as famílias foram reassentadas — e tiveram um alto custo pessoal.
“Aqui não tinha ônibus, não tinha van, não tinha nada. Eu não ia botar meu
filho pra sair de madrugada num lugar deserto. A prefeitura falou que ia
colocar ônibus e não colocou. Meu filho ficou quase dois anos sem estudar.”
A segurança do bairro onde todos se conheciam há 10, 20, 30 anos desa-
pareceu. O pé no chão de terra do quintal também. As árvores que faziam
sombra, os bichos, os quintais, como o de Jane Nascimento, que davam espa-
ço para seu trabalho. “O espaço fora da sala, quarto, cozinha não é mais meu.
Eu não posso receber um caminhão pra me entregar um material para fazer
uma placa”, explica a artesã e ex-moradora da Vila Autódromo. “’Dessociali-
zou’ minha vida toda, acabou com tudo.” [...]
A ausência de garantias básicas aos moradores removidos — como infor-
mações sobre as contas, o condomínio, prazo para o imóvel passar ao seu
nome e contrato de entrega de chave — ajuda a deixá-los vulneráveis às exi-
gências da milícia. “A subprefeitura local tem um poder enorme”, explica
o sociólogo Paulo Magalhães, que observou a dinâmica da região após ser
contratado pela Invepar para fazer um plano de investimento social privado
em virtude da construção da Transolímpica. “E faz a política articulada com
dois mercados grandes — o mercado de segurança e o mercado imobiliário
formal”. Ambos os interesses, diz Paulo, são concatenados. “O marketing da
milícia é vender um terreno onde você não tem problemas de segurança”.
É a nova face de um expediente tão antigo que permeou todas as fases da
história do Rio de Janeiro. As remoções forçadas já aconteciam em 1808,
quando o rei de Portugal dom João VI se mudou para Brasil e usurpou casas
dos moradores do centro da cidade para instalar sua luxuosa corte. As casas
eram marcadas com a sigla “PR”, de “Príncipe Regente”, uma violência sim-
bólica, mas real, reeditada durante as remoções olímpicas: até 2013, todas
as casas a serem demolidas eram marcadas com a sigla SMH — Secretaria
Municipal de Habitação.
“A história do Rio de Janeiro é calcada em cima de construção e expulsão
daqueles que construíram”, reflete Sandra Maria, uma das moradoras da Vila
Autódromo que contou sua história para este especial. “Os ex-escravos cons-

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Direitos Humanos

truíram o centro do Rio de Janeiro e depois foram expulsos dele. Aí constrói


o morro de Santo Antônio e depois é expulso dele. A zona sul foi construída
pelo trabalhador expulso do centro. O pobre, no Rio de Janeiro, não tem
direito a morar próximo das áreas privilegiadas. Não pode morar perto da
praia, não pode morar perto da cachoeira, não pode morar perto da floresta.
Chega uma hora que você questiona: qual é o valor da história de um povo?”
Foi essa percepção, conta ela, que a fez decidir juntar-se à briga dos demais
moradores, e permanecer até ter sua casinha na pequena vila que hoje ladeia
o Parque Olímpico.
“Alguém precisa mudar a história desta cidade”, diz.
Esta reportagem faz parte do “100”, projeto transmídia da Agência
Pública que conta histórias de 100 famílias removidas pelas obras para a
Olimpíada do Rio. Leia mais: http://apublica.org/100/

Link: http://olimpiadas.uol.com.br/noticias/redacao/2016/07/21/o-lega-
do-das-remocoes-no-rio-violencia-dividas-e-povo-na-mao-de-milicias.htm

NOTÍCIAS:

Texto 2

Special Rapporteur on extreme poverty and human rights

Professor Philip Alston is the current Special Rapporteur on extreme po-


verty and human rights. The Special Rapporteur is an independent expert
appointed by the Human Rights Council and undertakes the following main
tasks: (1) conducting research and analysis to be presented in separate thema-
tic reports to the Human Rights Council and the General Assembly; (2) un-
dertaking country visits and reporting on the situation in those countries in
relation to the concerns of the mandate; (3) sending letters to governments
and other relevant entities in situations in which violations of human rights
of people living in extreme poverty are alleged to have taken place.
The mandate on extreme poverty was first established in 1998 by the Uni-
ted Nations Commission on Human Rights, and was taken over by the Hu-
man Rights Council in June 2006. It is one of a number of mandates that
together form what is known as the United Nations system of special proce-
dures. For more information on those procedures see: http://www.ohchr.org/
EN/HRBodies/SP/Pages/Welcomepage.aspx

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Direitos Humanos

Extreme Poverty and Human rights


Extreme poverty is a multidimensional phenomenon that encompasses
much more than a lack of sufficient income alone. While many internatio-
nal actors still use measures based exclusively on income, such as the World
Bank’s $1.25 a day definition, such approaches fail to capture the depth and
complexity of extreme poverty and do not reflect the significant impact of
poverty on the full enjoyment of human rights. For the Special Rapporteur,
extreme poverty involves a lack of income, a lack of access to basic services
and social exclusion (A/HRC/7/15, para. 13). This accords closely with the
United Nations Development Programme’s (UNDP) ‘Multidimensional Po-
verty Index’, which seeks to reflect multiple deprivations at the household
level, including in health, schooling and living conditions. Using a multidi-
mensional approach to poverty, the incidence of extreme poverty around the
world is staggering. According to UNDP’s Human Development Report 2014,
over 2.2 billion people, more than 15 per cent of the world’s population, “are
either near or living in multidimensional poverty”.
Poverty is an urgent human rights concern. For those living in extreme
poverty, many human rights are out of reach. Among many other depriva-
tions, they often lack access to education, health services or safe drinking
water and basic sanitation. They are often excluded from participating me-
aningfully in the political process and seeking justice for violations of their
human rights. Extreme poverty can be a cause of specific human rights viola-
tions, for instance because the poor are forced to work in environments that
are unsafe and unhealthy. At the same time, poverty can also be a consequence
of human rights violations, for instance when children are unable to escape
poverty because the State does not provide adequate access to education.
The elimination of extreme poverty should thus not be seen as a question
of charity, but as a pressing human rights issue. Its persistence in countries
that can afford to eliminate it amounts to a clear violation of fundamental
human rights.

Special Rapporteur on extreme poverty and human rights


The mandate was established to give greater prominence to the plight of
those living in extreme poverty and to highlight the human rights consequences
of the systematic neglect to which they are all too often subjected. The expert is
required by the Human Rights Council to examine and report back to member
States on initiatives taken to promote and protect the rights of those living in
extreme poverty, with a view to advancing the eradication of such poverty.

Objectives of the mandate


Through its resolutions 8/11 and 26/3, the Human Rights Council re-
quests the Special Rapporteur to:

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Direitos Humanos

• Identify approaches for removing all obstacles, including institutional


ones, to the full enjoyment of human rights for people living in extre-
me poverty.
• Identify, including in cooperation with international financial orga-
nizations, the most efficient measures taken at the national, regional
and international levels to promote the full enjoyment of human ri-
ghts of persons living in extreme poverty.
• Make recommendations on how persons living in extreme poverty
can participate in the process towards the full enjoyment of their hu-
man rights and the sustainable improvement of their quality of life,
including through empowerment and resource mobilization at all le-
vels.
• Study the impact of discrimination and to pay particular attention to
the situation of women, children and other vulnerable groups, inclu-
ding persons with disabilities living in extreme poverty.
• Participate in the assessment of the implementation of the Second
United Nations Decade for the Eradication of Poverty and to submit
recommendations on the realization of Millennium Development
Goals, in particular the first goal.
• Develop cooperation with United Nations bodies dealing with the
same subject and to continue participating in relevant international
conferences on extreme poverty.

Main activities
In the fulfilment of the mandate, the Special Rapporteur:
• Undertakes country visits;
• Responds to information received concerning the human rights situ-
ation of people living in extreme poverty;
• Develops constructive dialogue with Governments, international or-
ganizations, civil society and other relevant actors with a view to iden-
tifying ways to remove all obstacles to the full enjoyment of human
rights for people living in extreme poverty;
• Submits annual reports to the Human Rights Council and to the Ge-
neral Assembly;
• Communicates with States and other concerned parties with regard
to alleged cases of violations of the human rights of people living in
poverty and social exclusion (See Individual Complaints) and other
issues related to the mandate.

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Direitos Humanos

Texto 3

Poverty and Human Rights


http://www.amnestyusa.org/our-work/issues/poverty-and-human-rights

Across the world, 925 million people are undernourished. Every 90 se-
conds, a woman dies from complications of pregnancy or childbirth. One
billion people live in slums.
Everyone, everywhere has the right to live with dignity. No one should be
denied their rights to adequate housing, food, water and sanitation, and to
education and health care.
As the Universal Declaration of Human Rights says (Article 22): “Everyo-
ne... is entitled to realization... of the economic, social and cultural rights
indispensable for his [or her] dignity.”
Gross economic and social inequality is an enduring reality in countries of
all political ideologies, and all levels of development. In the midst of plenty,
many are still unable to access even minimum levels of food, water, educa-
tion, health care and housing. This is not only the result of a lack of resour-
ces, but also unwillingness, negligence and discrimination by governments
and others. Many groups are specifically targeted because of who they are;
those on the margins of society are often overlooked altogether.
In recent years Amnesty International has broadened its mission in recog-
nition that there are many more prisoners of poverty than prisoners of cons-
cience, and that millions endure the torture of hunger and slow death from
preventable disease. Given the interconnected nature of all human rights
violations, engaging with economic, social and cultural rights has enabled
Amnesty International to address complex human rights problems in a more
holistic and comprehensive manner.
Amnesty International documents how human rights violations drive and
deepen poverty. Amnesty International also recognizes that people living in
poverty have the least access to power to shape the policies of poverty and are
frequently denied effective remedies for violations of their rights

LEITURA OBRIGATÓRIA

Mantouvalou, Virginia, The Case for Social Rights (April 12, 2010). DEBA-
TING SOCIAL RIGHTS, Conor Gearty, Virginia Mantouvalou, eds., Hart
Publishing, 2010; Georgetown Public Law Research Paper No. 10-18. Dis-
ponível em http://ssrn.com/abstract=1588220 (* Observação: o texto será
utilizado nas aulas 8 e 9)

FGV DIREITO RIO  90


Direitos Humanos

LEITURA COMPLEMENTAR:

CAVALLARO, James L.; BREWER, Stephanie Erin. O papel da litigância


para a justiça social no Sistema Interamericano. Sur — Revista Internacional
de Direitos Humanos (2008), vol.5, n.8, pp. 84-95.

SACHS, Albie. The Judicial Enforcement of Socio-Economic Rights: The


Grootboom Case. Current Legal Problems (2003), v. 56 (1), p.579-601

BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. A Problemática da Efetividade dos


Direitos Econômicos, Sociais e Culturais no Plano Nacional. In Direitos Hu-
manos, Vol.1. Organizado por Flávia Piovesan. Curitiba: Juruá, 2006. Pági-
nas 259 a 275.

KHOSLA, Madhav. Making social rights conditional: Lessons from India.


International Constitucional Law Journal (2010), Vol. 8 No. 4, p. 739—765.

Década das Nações Unidas para a Educação em Matéria de Direitos Huma-


nos. A Carta Internacional dos Direitos Humanos. Ficha Informativa nº 2, Vol.
1. Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/Ficha_Informati-
va_2.pdf> Páginas 3 a 14.

TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional


dos Direitos Humanos. Vol. I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003.
2ªEd. Páginas 445-454.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacio-


nal. 11 Ed. Rev. e Atual. São Paulo: Saraiva, 2010. Páginas 178 a 188.

MULLER, Amrei. Limitations to and Derogations from Economic, Social


and Cultural Rights. Human Rights Law Review (2009)

O’CONNELL, Paul. The Death of Socio-Economic Rights. The Modern


Law Review (2011) v. 74 ed. 4, p. 532-554

PIOVESAN, Flavia. DIREITOS SOCIAIS: PROTEÇÃO NOS SISTE-


MAS INTERNACIONAL E REGIONAL INTERAMERICANO. Revista
Internacional de Direito e Cidadania, n. 5, p. 67-80, outubro/2009.

FERRAZ, Octavio. Poverty and Human Rights. Oxford Journal of Legal


Studies, Vol. 28, No. 3 (2008), pp. 585—603.

FGV DIREITO RIO  91


Direitos Humanos

SALOMON, Margot E. Why Should it Matter that Others Have More? Po-
verty, Inequality and the Potential of International Human Rights Law. LSE
Law, Society and Economy Working Papers 15/2010.

LOPES, José Reinaldo de Lima. Direitos Sociais: Teoria e Prática. São Paulo:
Método, 2006. Capítulo 6 (Direitos Sociais como Justiça Distributiva).

PETTITI, Louis-Edmonde; MEYER-BISH, Patrice. Os direitos humanos e


a pobreza extrema. In Symonides, Janusz. Direitos Humanos: novas dimen-
sões e desafios. Brasília:UNESCO Brasil, Secretaria Especial dos Direitos
Humanos, 2003.

TRATADOS E DECISÕES JUDICIAIS

Caso Grootboom (Corte Constitucional, África do Sul). Disponível em:


http://www.saflii.org/za/cases/ZACC/2000/19.p

Decisões no Brasil:

Sobre o valor do salário mínimo em relação ao art. 6º, IV da Constituição


Federal: ADI 1439, a ADI 1442 e a ADI 1458.
Direito a tratamento médico e medicamentos: RE 271.286-AgR, RE
393.175, RE 242.859, RE 267.612, RE 195.192, RE 256327, RE 226835,
RE-393175 e ADPF 45.

Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

ARTIGO 2º
1. Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas,
tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais,
principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recur-
sos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios
apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto,
incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas.
2. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a garantir que
os direitos nele enunciados e exercerão em discriminação alguma por motivo
de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, ori-
gem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra
situação.

FGV DIREITO RIO  92


Direitos Humanos

3. Os países em desenvolvimento, levando devidamente em consideração


os direitos humanos e a situação econômica nacional, poderão determinar
em que garantirão os direitos econômicos reconhecidos no presente Pacto
àqueles que não sejam seus nacionais.
ARTIGO 7º
Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa
de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, que assegurem especial-
mente:
a) Uma remuneração que proporcione, no mínimo, a todos os trabalha-
dores:
i) Um salário eqüitativo e uma remuneração igual por um trabalho de
igual valor, sem qualquer distinção; em particular, as mulheres deverão ter a
garantia de condições de trabalho não inferiores às dos homens e perceber a
mesma remuneração que eles por trabalho igual;
ii) Uma existência decente para eles e suas famílias, em conformidade com
as disposições do presente Pacto;
b) A segurança e a higiene no trabalho;
c) Igual oportunidade para todos de serem promovidos, em seu Trabalho,
à categoria superior que lhes corresponda, sem outras considerações que as de
tempo de trabalho e capacidade;
d) O descanso, o lazer, a limitação razoável das horas de trabalho e férias
periódicas remuneradas, assim como a remuneração dos feridos.
ARTIGO 15
1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o
direito de:
a) Participar da vida cultural;
b) Desfrutar o processo cientifico e suas aplicações;
c) Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes
de toda a produção cientifica, literária ou artística de que seja autor.
2. As Medidas que os Estados Partes do Presente Pacto deverão adotar
com a finalidade de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão aque-
las necessárias à convenção, ao desenvolvimento e à difusão da ciência e da
cultura.
3.Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a li-
berdade indispensável à pesquisa cientifica e à atividade criadora.
4. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem os benefícios que de-
rivam do fomento e do desenvolvimento da cooperação e das relações inter-
nacionais no domínio da ciência e da cultura.

FGV DIREITO RIO  93


Direitos Humanos

Protocolo adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria


de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, “Protocolo de San Salvador”

Artigo 1
Obrigação de adotar medidas

Os Estados Partes neste Protocolo Adicional à Convenção Americana so-


bre Direitos Humanos comprometem se a adotar as medidas necessárias, tan-
to de ordem interna como por meio da cooperação entre os Estados, especial-
mente econômica e técnica, até o máximo dos recursos disponíveis e levando
em conta seu grau de desenvolvimento, a fim de conseguir, progressivamente
e de acordo com a legislação interna, a plena efetividade dos direitos reconhe-
cidos neste Protocolo.

Artigo 2
Obrigação de adotar disposições de direito interno

Se o exercício dos direitos estabelecidos neste Protocolo ainda não estiver


garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes
comprometem se a adotar, de acordo com suas normas constitucionais e com
as disposições deste Protocolo, as medidas legislativas ou de outra natureza
que forem necessárias para tornar efetivos esses direitos.

Artigo 8
Direitos sindicais
1. Os Estados Partes garantirão:
a. O direito dos trabalhadores de organizar sindicatos e de filiar se ao de
sua escolha, para proteger e promover seus interesses. Como projeção desse
direito, os Estados Partes permitirão aos sindicatos formar federações e con-
federações nacionais e associar se às já existentes, bem como formar organiza-
ções sindicais internacionais e associar se à de sua escolha. Os Estados Partes
também permitirão que os sindicatos, federações e confederações funcionem
livremente;
b. O direito de greve.
2. O exercício dos direitos enunciados acima só pode estar sujeito às limi-
tações e restrições previstas pela lei que sejam próprias a uma sociedade de-
mocrática e necessárias para salvaguardar a ordem pública e proteger a saúde
ou a moral pública, e os direitos ou liberdades dos demais. Os membros das
forças armadas e da polícia, bem como de outros serviços públicos essenciais,
estarão sujeitos às limitações e restrições impostas pela lei.
3. Ninguém poderá ser obrigado a pertencer a um sindicato.

FGV DIREITO RIO  94


Direitos Humanos

Artigo 13
Direito à educação
1. Toda pessoa tem direito à educação.
2. Os Estados Partes neste Protocolo convêm em que a educação deverá
orientar se para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sen-
tido de sua dignidade e deverá fortalecer o respeito pelos direitos humanos,
pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, pela justiça e pela
paz. Convêm, também, em que a educação deve capacitar todas as pesso-
as para participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista,
conseguir uma subsistência digna, favorecer a compreensão, a tolerância e a
amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos
e promover as atividades em prol da manutenção da paz.

Artigo 19
Meios de proteção
6. Caso os direitos estabelecidos na alínea a do artigo 8, e no artigo 13,
forem violados por ação imputável diretamente a um Estado Parte deste Pro-
tocolo, essa situação poderia dar lugar, mediante participação da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos e, quando cabível, da Corte Interame-
ricana de Direitos Humanos, à aplicação do sistema de petições individuais
regulado pelos artigos 44 a 51 e 61 a 69 da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos.

Artigo 20
Reservas
Os Estados Partes poderão formular reservas sobre uma ou mais disposi-
ções específicas deste Protocolo no momento de aprová lo, assiná lo, ratificá
lo ou a ele aderir, desde que não sejam incompatíveis com o objetivo e o fim
do Protocolo.

Declaração Universal dos Direitos Humanos

Parte do Preâmbulo
Considerando que o desconhecimento e o desprezo dos direitos do Ho-
mem conduziram a actos de barbárie que revoltam a consciência da Huma-
nidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres
de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais
alta inspiração do Homem

FGV DIREITO RIO  95


Direitos Humanos

Artigo 22°
Toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social;
e pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos econômicos, sociais e
culturais indispensáveis, graças ao esforço nacional e à cooperação internacio-
nal, de harmonia com a organização e os recursos de cada país

Convenção Americana sobre Direitos Humanos

Artigo 1. Obrigação de respeitar os direitos


1. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os di-
reitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a
toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por
motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer
outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento
ou qualquer outra condição social.

Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos

Artigo 2.º
1. Cada Estado Parte no presente Pacto compromete-se a respeitar e a
garantir a todos os indivíduos que se encontrem nos seus territórios e estejam
sujeitos à sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem qual-
quer distinção, derivada, nomeadamente, de raça, de cor, de sexo, de língua,
de religião, de opinião política, ou de qualquer outra opinião, de origem
nacional ou social, de propriedade ou de nascimento, ou de outra situação.

Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

Artigo 11.º
1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas
as pessoas a um nível de vida suficiente para si e para as suas famílias, in-
cluindo alimentação, vestuário e alojamento suficientes, bem como a um
melhoramento constante das suas condições de existência. Os Estados Partes
tomarão medidas apropriadas destinadas a assegurar a realização deste direito
reconhecendo para este efeito a importância essencial de uma cooperação
internacional livremente consentida.

FGV DIREITO RIO  96


Direitos Humanos

AULA 10: DIREITO À VIDA

INTRODUÇÃO

Os direitos civis estão relacionados às liberdades individuais, tais como o


direito à vida, a não ser submetido a tortura, a não ser escravizado, à liberda-
de, entre outros. Enquanto os direitos políticos se relacionam com a parti-
cipação do cidadão na política, representando o direito ao voto, a organizar
partidos, a se candidatar. Tais direitos estão previstos nos incisos do art. 5º da
Constituição Federal, como direitos e garantias fundamentais do indivíduo.
Já em âmbito internacional, estão protegidos pelo Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos (PIDCP) de 1976, que está ao lado da Declara-
ção Universal dos Direitos Humanos e do Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, formando a Carta Internacional dos Di-
reitos Humanos. Apesar de vários direitos civis e políticos estarem citados
na Declaração Universal, o PIDCP foi criado exclusivamente para dar-lhes
exigibilidade.
Como forma de garantir que tais direitos sejam assegurados, o PIDCP
estabeleceu a criação Comitê de Direitos Humanos, que prevê um sistema
de relatórios periódicos. Assim, os estados partes devem apresentar seus rela-
tórios contendo as medidas adotadas por eles para tornar efetivos os direitos
civis e políticos, e o Comitê o analisa ressaltando os pontos positivos e os que
devem melhorar. Também é importante citar o sistema das comunicações
entre os estados, em que um estado pode acusar outro de violar os direitos
previstos nos Pacto.
Posteriormente, dois protocolos facultativos foram criados para agregar
ao disposto no Pacto. O primeiro criou mais um mecanismo de proteção,
passando a permitir petições individuais perante o Comitê — desde que seus
países tenham ratificado o protocolo, os recursos internos tenham sido esgo-
tados e não haja litispendência internacional. Já o segundo prevê a abolição
da pena de morte, visando fortalecer a dignidade humana e o direito à vida.

O DIREITO À VIDA

O direito à vida é central para os direitos humanos e no nosso ordena-


mento, contudo sua relativização é constantemente testada por leis e novas
jurisprudências. Quando esse direito pode ser relativizado? As discussões per-
meiam situações como: o aborto, a pena de morte, as pesquisas com células
troncos, a eutanásia ou a recusa de tratamento.

FGV DIREITO RIO  97


Direitos Humanos

O STF decidiu na ADI 3510 que as pesquisas com células-tronco embrio-


nárias não violam o direito à vida, nem a dignidade da pessoa humana, e de-
clararam a constitucionalidade da Lei de Biossegurança. Podemos dizer que
foi uma forma de relativizar o direito à vida? Para alguns sim, visto que não
há uma consenso sobre o momento em que se dá o início a vida, há quem de-
fenda que prejudicaria o desenvolvimento do embrião, logo, destruiria uma
possível vida.
A mesma discussão permeia o aborto, que só é legalizado no país em três
hipóteses: quando gerar risco de vida para mãe, quando a mãe foi vítima de
violência sexual ou quando se tratar de um bebê anencéfalo. Ns primeira,
entende-se que a vida da mãe deve ser prioridade, na segunda e dignidade da
mãe deve ser prioridade. Na terceira, por outro lado, o STF decidiu autorizar
o aborto por argumentar que um bebê anencéfalo não tem vida.
Sobre a eutanásia e a recusa de tratamento, o debate tem conotação dife-
rente. Nesses casos, questiona-se se o direito à vida deve ser imposto e asse-
gurado pelo Estado acima de tudo, ou se os familiares ou a própria pessoa
poderiam dispor dele em situações específicas, visto seu direito de liberdade.
A violência urbana também pode ser apontada como uma forma de rela-
tivizar o direito à vida. No Brasil, temos índices cada vez mais altos de cri-
minalidade, que transformaram a violência em banal. Parece que o direito à
vida não é mais garantia a todos os cidadãos, visto que diariamente milhares
de pessoas morrem sendo vítimas da falta de segurança estatal.

DIREITOS CIVIS E A LEI DO ABATE

A lei 9.614/98 introduziu no Código Brasileiro de Aeronáutica a possi-


bilidade de aeronaves consideradas hostis serem destruídas por autoridades
aeronáuticas (art. 303, §2˚), quando esgotados outros meios coercitivos le-
galmente previstos. O objetivo foi de aprimorar a segurança no país, e princi-
palmente coibir o tráfego aéreo de entorpecentes, pois essa é, segundo a Força
Aérea Brasileira, a maior fonte de entrada de drogas ilícitas no país.
Ainda que a lei possa ser considerada necessária para, em último caso,
evitar o transporte de drogas, ela é desproporcional. Além disso, argumenta-
-se que a lei constitui, de forma velada, hipótese nova de pena de morte no
Brasil, não respeitando a vedação expressa na Constituição Federal (que tem
como única exceção o caso de guerra declarada) e nem o Protocolo Faculta-
tivo citado anteriormente que foi ratificado pelo Brasil em 2009. Seria uma
ofensa ao devido processo legal e ao direito à ampla defesa, tendo em vista
que os tripulantes da aeronave seriam condenados sem que houvesse um jul-
gamento, e assim, mais dois direitos civis estariam desrespeitados.

FGV DIREITO RIO  98


Direitos Humanos

Nesse sentido, faz-se necessário discutir o quão legítima é a criação da lei


do abate, se ela estaria de fato violando o direito à vida ou se é uma medida
estritamente necessária, e ainda, se não haveriam meios alternativos de con-
trole, buscando coibir o tráfico de drogas. Importante lembrar que a lei pode
acabar punindo inocentes, visto que observando a experiência de outros paí-
ses, sabe-se que enganos acontecem.

NOTÍCIAS

Texto 1

“Lei do abate aéreo” diante do tribunal

A lei que permite abater um avião seqüestrado por terroristas está sendo
reexaminada pela Corte Suprema da Alemanha. Para autores da ação e peri-
tos de direito, uma porta aberta para abusos do Estado. “Licença para matar”,
“Cidadãos na linha de tiro”, “Abater para salvar”, “O ministro é Deus”: as
manchetes dos jornais explicitam de forma dramática o problema que o Tri-
bunal Constitucional Federal da Alemanha está analisando.
A partir desta quarta-feira (09/11), a Corte Suprema, sediada em Karl-
sruhe, se ocupa de seis ações judiciais contra a nova lei de segurança aérea.
O texto autoriza a destruição de um avião seqüestrado por terroristas, caso
estes pretendam utilizá-lo como arma, dirigindo-o, por exemplo, contra um
arranha-céu ou usina nuclear.
A ação foi iniciada por dois pilotos comerciais, três passageiros que voam
com freqüência e o ex-deputado Burkhard Hirsch. O político do Partido
Liberal (FDP) já recorreu diversas vezes, com sucesso, à Corte Suprema, para
combater “exageros” na legislação alemã de segurança.

Sob o signo do 11 de setembro


“Pela primeira vez, o Estado quer, em tempo de paz, ter o poder de tirar
as vidas de pessoas que não fizeram absolutamente nada”, repreende Hirsch,
que atuou no Bundestag (câmara baixa do Parlamento) até 1998. Em sua
opinião, nem mesmo a perspectiva de que ainda mais pessoas poderão morrer
justifica a medida.
O governo alemão sancionou a “lei do abate de aviões” no contexto dos
atentados de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, e do caso de
um doente mental que, em 2003, sobrevoou a zona bancária de Frankfurt
com um pequeno avião. Ao assinar a lei, em janeiro deste ano, o presidente
federal, Horst Köhler, já expressara reservas do ponto de vista constitucional,
sugerindo que ela fosse reexaminada pelo tribunal de Karlsruhe.

FGV DIREITO RIO  99


Direitos Humanos

Aplicação improvável
Na época, o ministro do Interior, Otto Schily, argumentara ser necessário
possibilitar aos aviões de combate da Bundeswehr (Forças Armadas alemãs)
que intervenham em caso de ameaça, numa situação em que forças policiais
estariam impossibilitadas de agir.
Agora, ele observa que a lei não será praticamente nunca aplicada. Para tal,
seria preciso que — devido à intenção dos terroristas de colidir contra um
alvo — a morte dos passageiros fosse certa e que jatos militares estivessem
em condições de abater a aeronave. “Estes parâmetros jamais coincidirão na
prática”, afirma Schily. Os autores da ação judicial rebatem que, ao embarcar
num avião, o passageiro estaria se tornando um mero objeto dos atos estatais.

Trocando uma vida pela outra


Segundo o perito em direito constitucional Bernhard Schlink, a lei de
segurança significa a permissão para sacrificar as vidas de reféns, em nome de
vítimas potenciais em terra. Isso seria uma porta aberta para a tortura san-
cionada pelo Estado ou para experimentos radicais com embriões humanos.
Para Schily, não se trata de pesar uma vida contra a outra, pois o destino
dos passageiros estaria, de qualquer modo, selado: “Num caso assim, pode-
mos intervir ou não?”. A associação alemã de pilotos Cockpit classificou a le-
gislação como “fatal”. “Ninguém com poder de decisão pode julgar, do solo,
qual a real situação dentro do avião”, critica o presidente da organização,
Markus Kirschneck. A idéia de que uma pessoa decida que outras 400 num
avião morrerão agora, por já estarem mesmo condenadas à morte certa, lhe
faz “virar o estômago”.

Texto 2

Lei do Abate viola o princípio de direito à vida


Por Bruno Barata Magalhães, no Conjur.

Em 4 de junho de 2009, a Força Aérea Brasileira realizou os primeiros


disparos de advertência desde a edição da Lei Ordinária Federal que ficou
conhecida popularmente como Lei do Abate.
Uma aeronave suspeita, proveniente da Bolívia, foi interceptada pela For-
ça Aérea Brasileira e não obedeceu a solicitação inicial dos militares, de efetu-
ar pouso no município de Cacoal, no Estado de Rondônia. Após a realização
de disparos de advertência, a aeronave pousou em uma estrada de terra.
Até o presente momento, nenhuma aeronave foi abatida em território bra-
sileiro. Contudo, a Lei do Abate, adotada por outros países sul-americanos,

FGV DIREITO RIO  100


Direitos Humanos

como Colômbia, Bolívia e Peru, já surtiu efeito prático, e também enganos,


em outros países. Em 20 de agosto de 2007, um brasileiro, co-piloto de uma
aeronave que continha 123kg de cocaína, que foi abatido na decolagem após
uma troca de tiros com o esquadrão antinarcóticos da Bolívia, morreu em um
hospital de Santa Cruz de la Sierra, em decorrência das queimaduras ocasio-
nadas pela explosão da aeronave.
Em 2001, no Peru, um avião que transportava missionários foi abatido
por engano, confundido com uma aeronave suspeita. A Constituição da Re-
pública, promulgada em 5 de outubro de 1988, prevê em seu texto, no inciso
XLVII do artigo 5º, que não haverá as penas de morte, salvo em caso de
guerra declarada; caráter perpétuo; trabalhos forçados; banimentos e cruéis.
O mesmo dispositivo faz, ainda, na alínea “a”, remissão ao artigo 84, XIX,
que dispõe sobre as competências privativas do Presidente da República. O
inciso mencionado versa que o Presidente da República poderá declarar guer-
ra, no caso de agressão estrangeira e que tal declaração deve ter autorização
do Congresso Nacional ou referendo, em caso da declaração ocorrer durante
intervalo das sessões legislativas.
O artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV, da Carta da República, dispõe que
não será objeto de deliberação a proposta de Emenda Constitucional tenden-
te a abolir os direitos e garantias individuais. Através de simples leitura do
cabeçalho do Capítulo I, do Título II da Lei Maior, verifica-se que o artigo
5º abarca os mencionados direitos e garantias individuais e coletivos. Em
1998 foi editada a Lei Ordinária Federal 9.614, que alterou a Lei Ordinária
Federal 7.565/86, conhecida como Código de Aeronáutica. A lei primeira-
mente citada ficou popularmente conhecida como Lei do Abate, tendo em
vista a instituição de regra que permite a destruição de aeronave suspeita, pela
Força Aérea Brasileira. O diploma incluiu o parágrafo 2º ao artigo 303, com
a seguinte redação:

“Artigo 303 — A aeronave poderá ser detida por autoridades aero-


náuticas, fazendárias ou da Polícia Federal, nos seguintes casos:
Parágrafo 2° — Esgotados os meios coercitivos legalmente previstos,
a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeita à medida de
destruição, nos casos dos incisos do caput deste artigo e após autoriza-
ção do Presidente da República ou autoridade por ele delegada”.

Em 16 de julho de 2004, o Presidente da República editou o Decreto


5.144, que regulamenta o mencionado dispositivo. O artigo 5º do citado
Decreto assim dispõe:

“Artigo 5 — A medida de destruição consiste no disparo de tiros,


feitos pela aeronave de interceptação, com a finalidade de provocar da-

FGV DIREITO RIO  101


Direitos Humanos

nos e impedir o prosseguimento do vôo da aeronave hostil e somente


poderá ser utilizada como último recurso e após o cumprimento de
todos os procedimentos que previnam a perda de vidas inocentes, no
ar ou em terra.”

As cláusulas pétreas estão previstas no já mencionado artigo 60, parágrafo


4º. Destarte, a fim de que se altere dispositivo referente a qualquer uma des-
sas cláusulas, é necessária a edição de nova Constituição, não sendo possível
modificação por lei ordinária, lei complementar ou emenda constitucional.
É notório que as novas regras instituídas pela vigência da Lei Ordinária Fe-
deral 9.614/98 decorreram em função da defesa do espaço aéreo brasileiro e
do combate ao narcotráfico; duas causas, sem qualquer margem para dúvida,
nobres e em prol da sociedade.
Contudo, e não cabe aqui analisar a fundo a confusão que pode ocorrer
na identificação de uma aeronave suspeita, sob a ótica puramente consti-
tucional, verifica-se que o diploma conhecido como Lei do Abate padece,
manifestamente, de vícios de inconstitucionalidade. Se a Força Aérea Bra-
sileira efetuar disparos com o objetivo de destruição da aeronave, hipótese
mais radical, porém prevista na norma legal, estar-se-á condenando o piloto
e demais tripulantes e passageiros à pena capital, a não ser que, mesmo com
os disparos, consiga-se efetuar pouso seguro.
É importante mencionar, outrossim, que tal condenação prévia à pena de
morte viola o princípio constitucional do devido processo legal, vez que a decisão
por tal condenação caberia, de ofício, a Força Aérea Brasileira. Se não padecer de
tais vícios, dever-se-á considerar constitucional a hipótese de edição de Lei Ordi-
nária Federal que altera o Código Penal, outra Lei Ordinária Federal, alterando
a pena base do crime de homicídio, de seis a vinte anos de reclusão, para morte.
Não cabe este artigo, também, discutir os benefícios ou a importância da
instituição da pena capital no Brasil. Contudo, se esse for o desejo do legisla-
dor pátrio, deve-se editar novo texto constitucional e promulgá-lo, tendo em
vista que, sob a ótica do texto da Lei Maior em vigor, os direitos e garantias
individuais, e aí se inclui o direito à vida, não podem ser violados por qual-
quer Lei Ordinária, complementar, ou, até mesmo, Emenda Constitucional,
salvo as exceções já previstas na própria Carta da República.

LEITURA OBRIGATÓRIA

RAMOS, André de Carvalho. Direito à Vida. In Manual prático de direitos


humanos internacionais / Coordenador: Sven Peterke; Colaboradores: André
de Carvalho Ramos … [et al.] — Brasília: Escola Superior do Ministério
Público da União, 2009.

FGV DIREITO RIO  102


Direitos Humanos

LEITURA COMPLEMENTAR:

FOONT, Brian E. Shooting Down Civilian Aircraft: Is There an Internatio-


nal Law, 72 J. Air L. & Comm. 695 (2007).

LEPSIUS, Oliver. Human Dignity and the Downing of Aircraft: The Ger-
man Federal Constitutional Court Strikes Down a Prominent Anti-terrorism
Provision in the New Air-transport Security Act. German Law Journal, vol.
07, nº 09 (2006).

WICKS, Elizabeth. The Meaning of ‘Life’: Dignity and the Right to Life in
International Human Rights Treaties. Human Rights Law Review v. 12 n. 2
(2012).

PEJIC, Jelena. Extraterritorial targeting by means of armed drones: Some


legal implications. International Review of the Red Cross, disponível em
<https://www.icrc.org/en/document/jelena-pejic-extraterritorial-targeting-
-means-armed-drones-some-legal-implications>

TRATADOS E DECISÕES JUDICIAIS

Decisões Judiciais na CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Caso Velásquez Rodríguez


Caso Godinez Cruz
Caso Neira Alegria
Caso Caballero Santana
Caso Castillo Páez

Decisões Judiciais na CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS

Caso McCan and Others vs. The United Kingdom


Caso Andronicou e Constantinou vs. Chipre
Caso Ergi vs. Turquia
Caso Jordan vs. Reino Unido

FGV DIREITO RIO  103


Direitos Humanos

Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos

Artigo 6.º
1. O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deve ser pro-
tegido pela lei: ninguém pode ser arbitrariamente privado da vida.
2. Nos países em que a pena de morte não foi abolida, uma sentença de
morte só pode ser pronunciada para os crimes mais graves, em conformidade
com a legislação em vigor, no momento em que o crime foi cometido e que
não deve estar em contradição com as disposições do presente Pacto nem
com a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio.
Esta pena não pode ser aplicada senão em virtude de um juízo definitivo
pronunciado por um tribunal competente.

Convenção Americana sobre Direitos Humanos

Artigo 4. Direito à vida


1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve
ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém
pode ser privado da vida arbitrariamente.

Declaração Universal dos Direitos Humanos

Artigo 3°
Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Artigo 25°
1.Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar
e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação,
ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços
sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na
invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsis-
tência por circunstâncias independentes da sua vontade.

Pacto Internacional Sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

Artigo 11.º
1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas
as pessoas a um nível de vida suficiente para si e para as suas famílias, in-
cluindo alimentação, vestuário e alojamento suficientes, bem como a um

FGV DIREITO RIO  104


Direitos Humanos

melhoramento constante das suas condições de existência. Os Estados Partes


tomarão medidas apropriadas destinadas a assegurar a realização deste direito
reconhecendo para este efeito a importância essencial de uma cooperação
internacional livremente consentida.

FGV DIREITO RIO  105


Direitos Humanos

AULA 11: LIBERDADE DE RELIGIÃO E DIREITO AO ESTADO LAICO

INTRODUÇÃO

Nesta aula trataremos da liberdade de religião e da garantia do estado


laico. A Constituição Federal consagra o Brasil como um estado laico e que,
portanto, não prega nenhuma religião específica e condena qualquer tipo
de intolerância e fanatismo. Como um estado laico o Brasil deveria ter uma
divisão clara entre Estado e Religião (religiões em geral). Contudo, há alguns
pontos que questionam a efetiva ausência de uma religião oficial no país. E
serão esses os pontos de discussão tratados nessa aula.
Ao ler a apostila a e as leituras indicadas, tenha em mente os seguintes
questionamentos:

“Os crucifixos em repartições públicas violam os direitos humanos?”

Para acrescentar maior conteúdo ao debate, reflita sobre os dispositivos


constitucionais em destaque nessa aula e veja a decisão do CNJ sobre o uso
de símbolos religiosos em órgãos de Justiça (também indicados na apostila).
Depois de analisar o posicionamento do CNJ sobre o assunto, compare
com a decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos (Lautsi v. Italy) e do
Tribunal Constitucional Alemão (BVERFGE 93,1). Quais dos posiciona-
mentos se assemelha mais ao seu entendimento? Por que? Reúna os argumen-
tos e traga para a discussão em aula.

NOTÍCIAS

Texto 1

Muslim Teachers May Wear Head Scarves, German Court Rules


By ALISON SMALE MARCH 13, 2015 — NY TIMES

BERLIN — The Federal Constitutional Court ruled on Friday that fema-


le Muslim teachers may wear head scarves in school.The 6-to-2 ruling from
the court in Karlsruhe stipulated that teachers may wear the head scarf so
long as it does not cause disruption in the school.
The decision comes amid growing tensions throughout Europe over the
absorption of thousands of Syrian refugees and other Muslims, stoking na-
tionalism in many parts of the continent. Several politicians and legal experts
welcomed the ruling as an advance for religious and individual freedom.

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Direitos Humanos

Leaders of Germany’s estimated 3.5 million Muslims noted that Muslim wo-
men who had previously declined to train as teachers for fear they would not
be able to wear the head scarf in school would now be encouraged to do so.
Although the ruling does not mean a general permission to wear the head
scarf, “it is cause for joy,” said Nurhan Soykan, general secretary of the Cen-
tral Council of Muslims in Germany. “It gives worth to Muslim women in
Germany and lets them participate in social life as citizens with equal rights.”
Christian Pestalozza, a constitutional law professor at Berlin’s Free Univer-
sity, said, “I especially like that the court does not give either a blanket ruling
that anything goes, or a blanket ban.” But teachers and school principals
could face a challenge. Some news media commentators also worried that the
ruling would fan anti-immigrant sentiment and perhaps lend new support to
Pegida, an anti-Islam protest movement that started in Dresden and argues
that Europe is being “Islamized.”
“Pegida will celebrate,” the leftist Taz newspaper said on its front page.
Udo Beckmann, the chairman of one of Germany’s biggest teachers organiza-
tions, said the ruling puts a new burden on school principals to decide whe-
ther wearing the head scarf constitutes a real disruption. It also potentially
increases pressure on Muslim girls from traditional families or social groups
to wear the head scarf, Mr. Beckmann said.
“The head scarf ban in schools created a certain zone of protection for
girls who were being pressed to wear the covering,” he said in a telephone
interview. “This space will now disappear.”
Concerns about Muslims and their influence are common across Europe,
which is now home to an estimated 18 million Muslims, out of a total po-
pulation of about 500 million. The ruling leaves Germany in stark contrast
to France, where a law bans conspicuous religious symbols, including Islamic
head scarves, in state schools.
French Muslim advocates welcomed the ruling. Elsa Ray, spokeswoman
for the Collective Against Islamophobia in France, said the German court’s
decision showed that religious freedoms should be respected. But she said she
had little hope that French courts would follow the German example. “We
are very far from this in France, where, if anything, there is a push to extend
the head scarf ban,” she said. “There is hysteria about Islam at the moment in
France and a deformation of the notion of secularism that limits freedom of
religion and conscience. The German decision can raise the same issue here,
but the judicial environment will not change.”
The Karlsruhe court ruled on complaints brought by two unidentified
Muslim women working in schools in North Rhine-Westphalia, Germany’s
most populous state. One, a social science teacher, had substituted a woolen
cap and rollneck pullover for a head scarf when asked to remove the head co-
vering. She had nonetheless received a disciplinary warning, and then sued.

FGV DIREITO RIO  107


Direitos Humanos

The second plaintiff was a woman who taught Turkish in several scho-
ols and eventually was fired for refusing to remove her head scarf. Professor
Pestalozza said he interpreted Friday’s ruling as taking immediate effect. In
its lengthy ruling, the court explicitly said that the freedom of religion and
belief granted by Germany’s constitution allowed women in state schools to
conform with a dress code stipulated by religion. In addition, it noted, forbi-
dding women to wear the head scarf effectively excludes them from teaching
and thus violates the constitutional requirement not to discriminate against
women.
An 11-page statement from the court summarizing the ruling also speci-
fied that state schools should promote religious tolerance, and that permit-
ting the wearing of a Jewish kippa, a nun’s habit or symbols like a cross is part
of that tolerance. By contrast, the ban on crosses, crucifixes or other religious
symbols on the walls of state schools stands, the court ruled. “A cross or
crucifix on the wall is something different,” Professor Pestalozza said. “If you
put it up on the wall, then that is not an individual act by a teacher. It is the
school, and by extension in effect the state.”

Link: http://www.nytimes.com/2015/03/14/world/europe/german-
-court-rules-that-muslim-teachers-may-wear-head-scarves.html?_r=0

Texto 2

Constitucionalistas veem uso da Câmara de SP para cultos como


‘inadmissível’
04/07/2016 — ISTOÉ (Estadão Conteúdo)

Especialistas em Direito Constitucional não concordam com o uso que


os vereadores têm dado aos espaços públicos da Câmara Municipal. A vice-
-presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), Maria Garcia,
por exemplo, cita o artigo 19 da Constituição Federal para dizer que é vedado
ao Estado a participação em qualquer tipo de culto ou evento religioso.
“As religiões têm seus ritos e é preciso verificar se o que acontece nesses
eventos segue o rito para ser chamado de culto”, afirma Maria. “Se há co-
notação de culto religioso nesses eventos, com rodas de oração, canções de
louvor, testemunho de fiéis, o espaço público não deveria ser usado”, afirma.
Ela faz ressalva que a associação entre o poder público e as entidades religiosas
é permitido se o objetivo é atender o bem comum.
Já o presidente da Comissão de Direito Constitucional da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) seção São Paulo, Roberto Dias, vai além.

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Direitos Humanos

“Imagine que, em uma escola se pedisse uma oração antes de a aula co-
meçar, algo assim. É inadmissível. É o mesmo princípio”, diz. Segundo Dias,
o Brasil é um Estado laico desde a primeira Constituição republicana, do
século 19. Ele explica que o Estado brasileiro — e a regra vale para a muni-
cipalidade de São Paulo — deve tanto assegurar a liberdade para a prática de
qualquer religião, de um lado, quanto evitar a interferência para privilegiar
as entidades religiosas. “Se é aberto um espaço para uma religião, o equilíbrio
do Estado estaria em abrir para todas elas, caso contrário um grupo estaria
sendo privilegiado”, afirma.

Direitos
O vereador Eduardo Tuma, que abriu um dos plenários do Legislativo
para o Ministério Ágape Reconciliação para uma reunião por mês, afirma que
obedece a lei ao requisitar o espaço. “Respeito absolutamente a liberdade de
expressão e a liberdade religiosa”, afirma.
Segundo Tuma, “essas entidades têm forte atuação no terceiro setor, elas
agem em prol do interesse público e chegam aonde o Estado não alcança,
como a cracolândia, a entrega de cobertores a sem-teto no frio”, diz.
Ele afirma não ver problemas nas falas dos fiéis durante os cultos nem no
fato de haver orações em locais cuja manutenção e todo o custeio é feita com
dinheiro público. “Essas entidades trazem para a Câmara as próprias práti-
cas”, diz. “Seria natural que, em um evento de músicos, houvesse música”,
observou.
O Ministério Ágape se manifestou por nota. Disse que a finalidade de
seus eventos é “debater assuntos de interesse da cidade quanto ao papel social
desenvolvido pelas entidades religiosas, enquanto atuantes no terceiro setor,
em prol da sociedade paulistana”.
A reportagem deixou recado no gabinete de Jean Madeira (PRB), vereador
que convocou o evento “Louvorzão” na Câmara Municipal, mas não obteve
resposta. A vereadora Noemi Nonato (PR) não foi localizada em seu celular.
Também não foi possível encontrá-la em seu gabinete, quando ela foi pro-
curada.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Link: http://istoe.com.br/constitucionalistas-veem-uso-da-camara-de-sp-
-para-cultos-como-inadmissivel/

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Direitos Humanos

Texto 3

Decisão do CNJ esclarece: Crucifixo em prédios da Justiça não afeta


Estado laico
23/06/2016 — acidigital.com — Natalia Zimbrão

Após quatro anos, os crucifixos e símbolos religiosos agora podem ser re-
colocados nos prédios do Judiciário do Rio Grande do Sul. A decisão do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicada neste mês, reforça que a pre-
sença de tais imagens nos tribunais não prejudica o Estado laico ou a liber-
dade religiosa.
“A presença de Crucifixo ou símbolos religiosos em um tribunal não exclui
ou diminui a garantia dos que praticam outras crenças, também não afeta o
Estado laico, porque não induz nenhum indivíduo a adotar qualquer tipo de
religião, como também não fere o direito de quem quer seja”, afirma a de-
cisão do Conselho, tendo como relator o Conselheiro Emmanoel Campelo.
Este caso teve início em fevereiro de 2012, quando foi protocolado um
requerimento para retirada do Crucifixo e símbolos religiosos dos prédios
da Justiça gaúcha, em recurso à decisão de dezembro de 2011. O pedido foi
feito por Rede Feminista saúde, SOMOS — Comunicação, saúde e sexuali-
dade, THEMIS, Assessoria Jurídica e Estudo de Gênero, Marcha de Mulhe-
res, NUANCES — Grupo pela livre Orientação Sexual e Liga Brasileira de
Lésbicas.
Em março de 2012, o Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul (TJRS) determinou, por unanimidade, a retirada de
crucifixos e símbolos religiosos dos prédios da Justiça gaúcha.
Após esta determinação do TJRS, a Arquidiocese de Passo Fundo (RS)
buscou reverter a situação no Conselho Nacional de Justiça. Também pedi-
ram a reconsideração da decisão a Associação dos Juristas Católicos (AJC) e
pessoas físicas.

Retirada de símbolos religiosos é agressividade


No relatório sobre a decisão do CNJ, o Conselheiro Emmanoel Campelo
considera que “a proibição ou retirada dos símbolos religiosos existentes em
repartições públicas ou em salas de sessões de Tribunais responde à visão pre-
conceituosa daqueles que pretendem apagar os vestígios de uma civilização
cristã invocando a laicidade do Estado, quando, na verdade, professam um
laicismo mais próximo do ateísmo do que da posição equilibrada da separa-
ção entre Igreja e Estado”.
“O ato de retirar um crucifixo do espaço público, que tradicionalmente
e historicamente o ostentava, é ato de agressividade, intolerância religiosa e

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Direitos Humanos

discriminatório, já que atende a uma minoria, que professa outras crenças, ig-
norando o caráter histórico do símbolo no Judiciário brasileiro”, acrescenta.
Campelo explica que “símbolos religiosos são também símbolos culturais”
e que o “Crucifixo é um símbolo simultaneamente religioso e cultural”, re-
presentando um dos pilares da civilização ocidental.
Sublinha ainda que a Constituição Brasileira não traz nenhuma vedação
à presença de símbolos religiosos, como o Crucifixo, em entidades públicas.
Pelo Contrário, estabelece em seu artigo 5º a liberdade religiosa.
Além disso, a própria Constituição de 1988 traz em seu preâmbulo a ex-
pressão: “promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da
República Federativa do Brasil”.
“Evidencio, assim, que para acolher a pretensão de retirada de símbolos
religiosos sob o argumento de ser o Estado laico, seria necessário, também,
extinguir feriados nacionais religiosos, abolir símbolos nacionais, modificar
nomes de cidades, e até alterar o preâmbulo da Constituição Federal”, afirma.
Dessa forma, o relatório esclarece que “ser laico não significa ser inimigo
da religião, ou agir como se a mesma não existisse”.
Por fim, conclui que “os símbolos religiosos podem compor as salas do
Poder Judiciário, sem ferir a liberdade religiosa, e que não se pode impor a
sua retirada de todos os tribunais, indiscriminadamente”.

Link: http://www.acidigital.com/noticias/decisao-do-cnj-esclarece-cruci-
fixo-em-predios-da-justica-nao-afeta-estado-laico-15362/

LEITURA OBRIGATÓRIA

Conselho Nacional de Justiça, PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS n. 0000620-


85.2013.2.00.0000. Requerente: BRUNO SANTOS RODRIGUES, Re-
querido: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ

A Comment on Lautsi, Lorenzo Zucca (2011)

LEITURA COMPLEMENTAR:

Caso Lautsi v. Italy

ZYLBERSZTAJN, Joana. A Laicidade do Estado Brasileiro. Editora Verbena


(2016)

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Direitos Humanos

TRATADOS E DECISÕES JUDICIAIS

BVERFGE 93,1 de 16/05/1995 da Alemanha

Corte Europeia de Direitos Humanos:

Caso Lautsi v. Italy


Caso Kokkinakis v. Greece
Caso Kalaz v. Turkey
Caso Cha’are Shalom ve Tsedek v. France
Caso Serif v. Greece
Caso Buscarini e Outros vs. San Marino

Conselho Nacional de Justiça:

PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS — 0000620-85.2013.2.00.0000

Supremo Tribunal Federal:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 562.351

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

Art. 5
VI — é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado
o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção
aos locais de culto e a suas liturgias;
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Muni-
cípios:
I — estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-
-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações
de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de in-
teresse público;

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Direitos Humanos

Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

Artigo 2.º
2. Os Estados Partes no presente Pacto comprometem-se a garantir que os
direitos nele enunciados serão exercidos sem discriminação alguma baseada
em motivos de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou qualquer
outra opinião, origem nacional ou social, fortuna, nascimento, qualquer ou-
tra situação.

Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos

Artigo 18.º
1. Toda e qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de cons-
ciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adoptar uma
religião ou uma convicção da sua escolha, bem como a liberdade de mani-
festar a sua religião ou a sua convicção, individualmente ou conjuntamente
com outros, tanto em público como em privado, pelo culto, cumprimento
dos ritos, as práticas e o ensino.
2. Ninguém será objecto de pressões que atentem à sua liberdade de ter ou
de adoptar uma religião ou uma convicção da sua escolha.
3. A liberdade de manifestar a sua religião ou as suas convicções só pode
ser objecto de restrições previstas na lei e que sejam necessárias à protecção
de segurança, da ordem e da saúde públicas ou da moral e das liberdades e
direitos fundamentais de outrem.
4. Os Estados Partes no presente Pacto comprometem-se a respeitar a li-
berdade dos pais e, em caso disso, dos tutores legais a fazerem assegurar a
educação religiosa e moral dos seus filhos e pupilos, em conformidade com
as suas próprias convicções.
Artigo 27.º
Nos Estados em que existam minorias étnicas, religiosas ou linguísticas,
as pessoas pertencentes a essas minorias não devem ser privadas do direito
de ter, em comum com os outros membros do seu grupo, a sua própria vida
cultural, de professar e de praticar a sua própria religião ou de empregar a sua
própria língua.

Declaração Universal dos Direitos Humanos

Artigo 18°
Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de
religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convic-

FGV DIREITO RIO  113


Direitos Humanos

ção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho


ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática,
pelo culto e pelos ritos.

Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos

Artigo 8º
A liberdade de consciência, a profissão e a prática livre da religião são ga-
rantidas. Sob reserva da ordem pública, ninguém pode ser objeto de medidas
de constrangimento que visem restringir a manifestação dessas liberdades.

Convenção Americana de Direitos Humanos

Artigo 12 — Liberdade de consciência e de religião


1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse
direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de
mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e di-
vulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em
público como em privado.
2. Ninguém pode ser submetido a medidas restritivas que possam limitar
sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de reli-
gião ou de crenças.
3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está
sujeita apenas às limitações previstas em lei e que se façam necessárias para
proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as
liberdades das demais pessoas.
4. Os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus filhos e
pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas
próprias convicções.

Convenção Europeia dos Direitos do Homem

Artigo 9° Liberdade de pensamento, de consciência e de religião


1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciên-
cia e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de
crença, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua crença,
individual ou colectivamente, em público e em privado, por meio do culto,
do ensino, de práticas e da celebração de ritos.

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Direitos Humanos

2. A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou


colectivamente, não pode ser objecto de outras restrições senão as que, pre-
vistas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrá-
tica, à segurança pública, à protecção da ordem, da saúde e moral públicas,
ou à protecção dos direitos e liberdades de outrem.

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Direitos Humanos

AULA 12: DIREITOS HUMANOS E VIOLÊNCIA URBANA — HOMICÍDIO,


TRÁFICO E SUPERENCARCERAMENTO

As recentes ondas de violência originadas nos presídios do Maranhão e de


outros estados mostram uma face do sistema carcerário brasileiro até então
desconhecida da maior parte da população. Nos últimos 22 anos, enquanto
o número de habitantes no país teve um crescimento de aproximadamente
30%, a quantidade de pessoas presas teve um aumento de 511% entre 1990
e 2012, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen),
órgão ligado ao Ministério da Justiça.
Parte da violência dentro dos presídios se explica pela superlotação nas
prisões. Atualmente, o Brasil possui uma massa carcerária de 550 mil pessoas
espalhadas pelas 27 unidades da federação. Em 1990, eram 90 mil presos. O
número coloca o país no quarto lugar entre as nações com a maior quanti-
dade de encarcerados no mundo. Apenas os Estados Unidos da América (2,2
milhões), China (1,6 milhão) e Rússia (680 mil) possuem mais pessoas presas
em suas penitenciárias.
Nas últimas duas décadas, o Brasil endureceu a punição aos crimes he-
diondos — considerados aqueles que merecem maior reprovação do Estado
—, ao tráfico de drogas e ao porte ilegal de armas, o que contribuiu para o
aumento da população carcerária. Segundo o Ministério da Justiça, o déficit
prisional é de 240 mil vagas.
De acordo com o último relatório divulgado pelo Depen, no final de
2012, mais da metade dos presos (54%) é parda ou negra, tem entre 18 e 29
anos (55%) e pouca escolaridade (5,6% são analfabetos; 13% são apenas alfa-
betizados e 46% têm apenas o ensino fundamental incompleto). Somente 2
mil presos (0,4%) têm formação superior completa. Do total, 232 mil presos
(42%) são provisórios, ou seja, ainda não foram julgados, demonstrando que
há ainda uma seletividade no encarceramento no Brasil.
Somente o estado de São Paulo, maior do país, responde por 36% dos
encarcerados. Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul
completam a lista das cinco unidades com mais presos. De acordo com dados
do Depen, 22% dos detentos cumprem pena por tráfico de drogas. Outros
19% por roubo qualificado, 9% por roubo simples, e 7% foram considerados
culpados de furto qualificado, furto simples e homicídio qualificado.
Fonte — Congresso em foco8

8
População carcerária cresce 6 ve-
zes em 22 anos. Congresso em foco.
10/01/2014. Disponível em : http://
congressoemfoco.uol.com.br/noticias/
populacao-carceraria-cresce-seis-
-vezes-em-22-anos/ Último acesso em
25/07/2016

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Direitos Humanos

TEXTO 1

Ministro do STF reconhece direito de preso à indenização9


quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Brasília — Em julgamento realizado nesta quarta-feira (3), o ministro do


STF Teori Zavascki afirmou haver responsabilidade civil do Estado por não
garantir as condições mínimas de cumprimento das penas nos estabelecimen-
tos prisionais e, portanto, caberia o pagamento de indenizações por danos mo-
rais a presidiários expostos a situações degradantes. O entendimento é com-
partilhado pela OAB, que ingressou em novembro com ADI pedindo que a
Suprema Corte condene o Estado por más condições nas cadeias do Brasil.
Na sessão desta quarta, o STF debruçou-se sobre o Recurso Extraordi-
nário (RE) 580252, que teve repercussão geral reconhecida e determinará a
decisão de ao menos 70 casos em todo o país. No caso, a Defensoria Pública
de Mato Grosso do Sul, em favor de um cidadão condenado a 20 anos de
reclusão, cumprindo pena no presídio de Corumbá (MS), recorreu contra
acórdão do TJ-MS que entendeu não haver direito ao pagamento de indeni-
zação por danos morais. Na ADI ajuizada no STF, a OAB pede que o Estado
seja civilmente responsável pelos danos morais causados a detentos em presí-
dios superlotados ou em más condições. A OAB pede que o Supremo retire
do ordenamento jurídico qualquer interpretação que impeça o direito a inde-
nização por danos morais a detentos mantidos em presídios nestas condições
insalubres, degradantes ou de superlotação.
“O argumento para se promover a exclusão [da indenização] é o de que,
ao invés de indenizar os presos submetidos a condições desumanas, o me-
lhor seria aplicar os recursos públicos na melhoria dos presídios. Na verda-
de, porém, nem os presos são indenizados nem os presídios construídos. A
responsabilização civil do Estado será um importante estímulo para que os
governantes atuem no sentido de prover, nas prisões, condições adequadas a
seres humanos”, afirma Marcus Vinicius Furtado Coêlho, presidente da OAB
Nacional. A proposição foi aprovada por unanimidade pelo Conselho Pleno
da Ordem em setembro.
Relator do RE julgado nesta quarta-feira (3), o ministro Teori Zavascki
afirmou ser “dever do Estado manter o preso em condições carcerárias de
acordo com mínimos padrões de humanidade estabelecidos em lei, bem
como, se for o caso, ressarcir os danos causados que daí decorrerem”. O mi-
nistro observou também que a jurisprudência do STF já deixou claro, em
mais de uma ocasião, haver responsabilidade objetiva do Estado pela integri- 9
Ministro do STF reconhece direi-
to de preso à indenização. OAB RJ.
dade física e psíquica sobre aqueles que estão sob custódia estatal. 04/12/2014. Disponível em : http://
www.oab.org.br/noticia/27892/
O relator ressaltou ser necessária a adoção de políticas públicas sérias para ministro-do-stf-reconhece-direito-de-
eliminar ou, ao menos, reduzir as violações à integridade e à dignidade das -preso-a-indenizacao Último acesso
em 25/07/2016

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Direitos Humanos

pessoas dos presos, mas isso não significa que as atuais violações causadoras
dos danos morais ou pessoais aos detentos devam ser mantidas impunes,
sobretudo quando o acórdão recorrido admite que a situação do sistema pe-
nitenciário sul-mato-grossense tem lesado direitos fundamentais relativos à
intimidade e à integridade física e psíquica. O julgamento foi suspenso após
pedido de vista do ministro Luís Roberto Barroso.

TEXTO 2:

CPI do Sistema Penitenciário10


Stanley Martins Frasão*

Recentemente tive a oportunidade de assistir ao vídeo, que a bacharelanda


em direito, Vivian Azevedo Rodrigues, apresentou sobre a Comissão Parla-
mentar de Inquérito do Sistema Carcerário Brasileiro, retratando a situação
negativa e crítica do mesmo. A CPI foi criada com a finalidade de investigar a
realidade do mencionado Sistema, com destaque para a superlotação dos pre-
sídios, custos sociais e econômicos desses estabelecimentos, a permanência de
encarcerados que já cumpriram pena, a violência dentro das instituições do
sistema carcerário, a corrupção, o crime organizado e suas ramificações nos
presídios e buscar soluções para o efetivo cumprimento da Lei de Execuções
Penais (Lei 7.210/84 — clique aqui).
Aludida CPI, após seus amplos estudos e análises de 56 estabelecimentos
prisionais em 18 Estados, apresentou o Projeto de Lei 4.202/2008, que:

(i) altera dispositivos sobre a assistência material, à saúde (de cará-


ter preventivo e curativo, compreendendo atendimento médico, far-
macêutico, odontológico e psicológico), e jurídica do preso e sobre a
assistência ao egresso,
(ii) aumenta para 19 o número de membros (o mandato dos mem-
bros do Conselho terá duração de 2 anos, permitida uma recondução)
do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária,
(iii) cria em cada município, pelo menos, um Centro de Monitora-
mento e Acompanhamento da Execução de Penas e Medidas Alternati-
vas à Prisão, dotado de equipe de fiscalização e equipe interdisciplinar
integrada por psicólogos, assistentes sociais, pedagogos e outros pro-
fissionais cuja área do conhecimento seja afeta à execução de penas e
medidas alternativas à prisão, e 10
CPI do Sistema Penitenciário.
(iv) estabelece que cada município terá, pelo menos, uma cadeia Migalhas. 26/01/2009. Disponível
em : http://www.migalhas.com.
pública, a fim de resguardar o interesse da Administração da Justiça br/dePeso/16,MI76871,71043-
-CPI+do+Sistema+Penitenciario Últi-
mo acesso em: 25/07/2016

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Direitos Humanos

Criminal e a permanência do preso em local próximo ao seu meio so-


cial e familiar.

E mais, o ingresso do pessoal penitenciário, a progressão ou ascensão fun-


cional dependerão de cursos específicos de formação, nos quais é obrigatório
o estudo de disciplina sobre direitos humanos, procedendo-se à reciclagem
periódica dos servidores em exercício. E o diretor de presídio deverá possuir
título de pós-graduação em administração penitenciária.
A venda de produtos e a prestação de serviços serão exploradas pela admi-
nistração do estabelecimento penal, devendo os recursos arrecadados serem
vertidos ao Fundo Penitenciário Nacional, sendo que os preços dos produtos
e serviços serão fixados pelo Juiz da execução, ouvido o Ministério Público,
que fiscalizará a sua venda ou prestação e a destinação e aplicação dos recur-
sos obtidos.
O Estado poderá firmar parcerias, acordos e convênios visando a profissio-
nalização do preso com o SESC, o SESI e o SENAI.
É importante ressaltar que os Centros de Monitoramento e Acompanha-
mento da Execução das Penas e Medidas Alternativas à Prisão constituirão
rede social sustentável, integrada por entidades governamentais e não-gover-
namentais, com o objetivo de oferecer vagas e serviços necessários à estrutu-
ração, monitoramento e fiscalização do cumprimento das penas e medidas
alternativas à prisão. O Estado firmará acordos, parcerias e convênios com a
Ordem dos Advogados do Brasil, universidades públicas e privadas, organi-
zações não-governamentais nas áreas de justiça, desenvolvimento social, ci-
dadania e direitos humanos, e com entidades representativas da comunidade
vinculadas à execução penal, a fim de constituir a rede social.
A execução das penas e medidas alternativas à prisão se dará de forma in-
tegrada, articulada, interativa e interinstitucional, com a implementação de
políticas públicas sociais nas áreas da saúde, escolarização, profissionalização
e geração de emprego e renda.

TEXTO 3:

Lotação em presídio pode levar condenado a prisão domiciliar, diz STF11


Carta Capital — 29/06/2016

O Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou nesta quarta-feira 29 que


a falta de vagas no sistema carcerário pode levar o condenado a um regime 11
Lotação em presídio pode levar con-
denado a prisão domiciliar, diz STF.
mais benéfico, incluindo a prisão domiciliar com monitoramento por meio Carta Capital. 29/06/2016. Disponível
em: http://www.cartacapital.com.br/
de tornozeleira eletrônica. sociedade/stf-lotacao-em-presidio-
-pode-levar-condenado-a-prisao-do-
miciliar Último acesso em 25/07/2016

FGV DIREITO RIO  119


Direitos Humanos

Esse entendimento, que havia sido fixado pelos ministros durante o julga-
mento de um Recurso Especial (RE) no mês passado, transformou-se agora
em súmula vinculante, o que significa que deverá ser seguido por tribunais
inferiores e pela administração pública.
O texto aprovado diz que os detentos não podem ser prejudicados pela
omissão do Estado quanto à superlotação do sistema.
“A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção
do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nesta
hipótese, os parâmetros fixados no RE 641320”, diz a recém-criada Súmula
Vinculante 56.
Esses parâmetros são medidas alternativas para resolver o problema da fal-
ta de vagas, propostas pelo ministro Gilmar Mendes, relator do RE. Até que
essas medidas sejam estruturadas, contudo, o condenado poderá ter direito à
prisão domiciliar.
Isso porque a falta de vagas não terá a progressão de regime como consequ-
ência imediata, e cada caso deverá ser analisado pelo juiz de execução penal.
As medidas propostas são: “saída antecipada de sentenciado no regime
com falta de vagas; liberdade eletronicamente monitorada a sentenciado que
sai antecipadamente ou é posto em prisão domiciliar por falta de vagas; e
cumprimento de penas restritivas de direito e/ou estudo ao sentenciado que
progride ao regime aberto”.
Conforme relatório do Cadastro Nacional de Inspeções nos Estabeleci-
mentos Penais (CNIEP), divulgado mensalmente pelo Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), o Brasil tem hoje 642 mil presos, mas apenas 391 mil vagas, o
que gera um déficit de 251 mil vagas no sistema prisional.

TEXTO 4:

Sem tornozeleiras, mais de 900 pessoas voltam para as ruas no RJ12


Alessandro Ferreira — G1 Rio (11/07/2016)

Desde dezembro de 2015, quando surgiram os primeiros sinais da crise


financeira que assola o Rio de Janeiro, 902 pessoas acusadas de crimes, e
que deveriam estar sob monitoramento, foram libertadas sem as tornozeleiras
eletrônicas, que deixaram de ser entregues ao estado por falta de pagamento
à empresa fornecedora. As informações são da Secretaria Estadual de Admi-
nistração Penitenciária (Seap). 12
Sem tornozeleiras, mais de 900
pessoas voltam para as ruas no
RJ. Alessandro Ferreira. G1 Rio.
11/07/2016. Disponível em: http://
Todos estão em regime de prisão domiciliar, por ordem da Justiça. g1.globo.com/rio-de-janeiro/noti-
cia/2016/07/sem-monitoramento-
Nos últimos dias, dois casos chamaram a atenção. Após mais de uma sema- -mais-de-900-pessoas-voltam-para-
na atrás das grades, os cinco presos na operação Saqueador da Polícia Federal, -ruas-no-rj.htm Último acesso em
25/07/2016.

FGV DIREITO RIO  120


Direitos Humanos

entre eles o dono da empreiteira Delta, Fernando Cavendish,o pastor Felipe


Garcia Heiderich e o contraventor Carlinhos Cachoeira, deixaram a prisão
beneficiados por decisão judicial que os mandou para prisão domiciliar.
Em ambos os casos, as ordens de soltura tinham a recomendação de que
todos deveriam usar tornozeleiras eletrônicas antes de voltar às ruas, mas a
determinação não foi cumprida porque não há equipamentos disponíveis.
Assim, a Justiça estabeleceu que os beneficiados seriam soltos, mas deveriam
ficar sob regime de prisão domiciliar.

Aplicação da medida
De acordo com o advogado Breno Melaragno, presidente da Comissão de
Segurança Pública da Ordem dos Advogados do Brasil Seção Rio de Janeiro
(OAB-RJ),”O juiz só vai aplicar a monitoração eletrônica se o preso tiver
direito à liberdade. O juiz avalia caso a caso. Quando o estado não dispõe
da tornozeleira, o raciocínio jurídico que se tem é que ele não pode perder o
direito porque o estado não dispõe do equipamento”, esclareceu o advogado.

À espera de pagamento
De acordo com a direção da empresa paranaense Spacecom, que desde
2014 tem contrato com a Seap para fornecer as tornozeleiras, a dívida do
estado hoje chega a cerca de R$ 2,8 milhões.
Na semana passada, representantes da secretaria informaram que os paga-
mentos deverão ser regularizados ainda esta semana. A Secretaria Estadual de
Fazenda do Rio, no entanto, informou que ainda não há previsão de quando
a dívida será quitada.

Jurisprudência e Tratados
Brown v. Plata (em que a Suprema Corte Norte Americana manteve de-
cisão proferida por corte da Califórnia, que determinara a soltura de 46 mil
prisioneiros de menor periculosidade, em razão da crônica superlotação dos
presídios daquele Estado).
Torreggiani e outros v. italia (Corte Europeia de Direitos Humanos,
diante da superlotação dos presídios italianos a Corte concedeu o prazo de
um ano para que as autoridades responsáveis implementassem um ou mais
remédios visando à correção do problema).
RE 592.581, STF (que, com repercussão geral, reconheceu a competência
do Poder Judiciário para determinar ao Poder Executivo a realização de obras
em estabelecimentos prisionais com o objetivo de assegurar a observância de
direitos fundamentais dos presos). RE 580.252, STF (que, com repercussão
geral, reconheceu a Responsabilidade do Estado por danos morais decorren-
tes de superlotação carcerária).

FGV DIREITO RIO  121


Direitos Humanos

SúmulaVinculante — STF, de nº 56:


“A falta de vagas em estabelecimento prisional não autoriza a manutenção
do preso em regime mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os
parâmetros do Recurso Extraordinário 641.320”

Convenção Americana de Direitos Humanos:


Artigo 5. Direito à integridade pessoal
1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psí-
quica e moral
2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis,
desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada
com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP):


Artigo 7º.
Ninguém será submetido à tortura nem a pena ou a tratamentos cruéis,
inumanos ou degradantes. Em particular, é interdito submeter uma pessoa a
uma experiência médica ou científica sem o seu livre consentimento.
Artigo 10.º
1. Todos os indivíduos privados da sua liberdade devem ser tratados com
humanidade e com respeito da dignidade inerente à pessoa humana.
3. O regime penitenciário comportará tratamento dos reclusos cujo fim
essencial é a sua emenda e a sua recuperação social. Delinquentes jovens serão
separados dos adultos e submetidos a um regime apropriado à sua idade e ao
seu estatuto legal.

A Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH):


Artigo V. Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo
cruel, desumano ou degradante.

Regras mínimas para o tratamento de reclusos, da ONU:


10. Todos os locais destinados ao uso dos reclusos, em particular todos os
locais de descanso noturno, deverão satisfazer todas as exigências de higiene
e saúde, tomando-se devidamente em consideração as condições climatéricas
e em especial a cubicagem de ar disponível, a área mínima, a iluminação, o
aquecimento e a ventilação.

FGV DIREITO RIO  122


Direitos Humanos

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Human Rights Council. Report of the Working Group on Arbitrary De-


tention. Mission to Brazil. 30 June 2014. Twenty-seventh session (A/
HRC/27/48/Add.3).

LEITURA COMPLEMENTAR:

“Juiz explica por que 900 presos vão deixar prisões do RJ sem tornozeleira”13

13
Juiz explica por que 900 presos
vão deixar prisões do RJ sem tor-
nozeleira. O Globo. 18/07/2016.
Disponível em: http://g1.globo.com/
rio-de-janeiro/noticia/2016/07/juiz-
-explica-porque-900-presos-vao-dei-
xar-prisoes-do-rj-sem-tornozeleira.
html?utm_source=whatsapp&utm_
medium=share-bar-desktop&utm_
campaign=share-bar Último acesso:
25/07/2016

FGV DIREITO RIO  123


Direitos Humanos

AULA 13: DIREITO HUMANITÁRIO

DIREITO HUMANITÁRIO

Em tempo de guerra14, os homens devem observar certas regras de Huma-


nidade, mesmo em relação ao inimigo. Neste sentido, o Direito Internacional
Humanitário (DIH) é um ramo do Direito Internacional que tem como
objetivo limitar os efeitos da violência em tempo de guerra.
Também conhecido como Direito dos Conflitos Armados ou Direito da
Guerra, o DIH protege pessoas e objetos afetados ou passíveis de serem afe-
tados pelas hostilidades, e limita métodos e meios de guerra em tempo de
conflito.
A definição de direito humanitário é trazida pelo autor Gerard Peytrignet
como:

“corpo de normas jurídicas de origem convencional ou consuetudinário,


especificamente aplicável aos conflitos armados, internacionais ou não in-
ternacionais, e que limita, por razões humanitárias, o direito das partes em
conflito de escolher livremente os métodos e os meios utilizados na guerra,
evitando que sejam afetados as pessoas e os bens legalmente protegidos”

Tendo em vista que a Carta das Nações prevê o uso da força em situações
específicas, o direito humanitário se faz necessário para que em hipóteses
de conflito, sejam garantidos direitos básicos à pessoa humana, como por
exemplo o direito do prisioneiro de guerra de ser tratado com humanidade
ou o direito dos feridos e doentes de receberem assistência sem que seja feita
discriminação alguma. Sendo assim, o objetivo do direito internacional hu-
manitário é diminuir os efeitos dos conflitos armados, garantindo, em certa
medida, que conflitos armados não se tornem situações de completa barbárie.
Em 1949 foram assinadas quatro Convenções de Genebra, que servem
como fonte principal do direito internacional humanitário. Elas visam prote-
ger os feridos, doentes, náufragos, prisioneiros de guerra e também a popu-
lação civil em situações de conflito internacionais (envolvendo dois ou mais
Estados) ou em conflitos não internacionais. Em 1977, foram elaborados
dois protocolos adicionais às Convenções: o primeiro visava incluir no con-
ceito de conflito armado a luta contra dominação colonial ou contra regimes
racistas e o segundo reforçava a aplicabilidade das normas a conflitos armados
internos, se estivessem de acordo com certas condições. 14
Direito Internacional Humanitário.
As Convenções de Haia de 1907 também são fontes do direito interna- Cruz Vermelha Brasileira. 20/04/2012.
Disponível em: http://cruzvermelhani.
cional humanitário, visto que determinam princípios que devem ser seguidos org.br/site/cruz-vermelha/43-direito-
nas operações militares, direitos e deveres dos militares participantes e limi- -internacional-humanitario.html Últi-
mo acesso em 25/07/2016.

FGV DIREITO RIO  124


Direitos Humanos

tes nas formas de ferir o inimigo. É fundamental citar também a criação do


Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho em
1863, que representa o maior mecanismo de auxílio na efetivação do direito
humanitário, dado que presta assistência aos feridos dentro dos campos de
batalha, no intuito de prevenir e aliviar o sofrimento humano, sem que faça
qualquer tipo de discriminação.
A Cruz Vermelha aponta algumas regras básicas que devem ser respeitadas
pelas partes durante o conflito decorrentes do Direito Internacional Huma-
nitário, são elas:

1. As pessoas postas fora do combate e aquelas que não participam di-


retamente nas hostilidades têm o direito ao respeito pelas suas vidas
e da sua integridade física e moral.
2. É proibido matar ou ferir um adversário que se renda ou que se
encontre fora do combate.
3. Os feridos e doentes devem ser recolhidos e tratados pela parte no
conflito que os tem em seu poder. A proteção cobre igualmente o
pessoal sanitário, os estabelecimentos, os meios de transporte, ma-
terial sanitário e os emblemas da Cruz Vermelha e do Crescente
Vermelho.
4. Os combatentes capturados e os civis que se encontrem sob a auto-
ridade da parte adversa têm o direito ao respeito pela sua vida, da
sua dignidade, dos seus direitos pessoais e das suas convicções.
5. Todas as pessoas beneficiarão das garantias judiciárias fundamen-
tais. Ninguém será tido como responsável de um ato que não
cometeu.
6. As partes num conflito e os membros das suas forças armadas
não possuem um direito ilimitado na escolha dos métodos e
meios de guerra susceptíveis de causas perdas inúteis ou sofri-
mentos excessivos.
7. As partes num conflito devem sempre fazer a distinção entre popu-
lação civil e os combatentes, de forma a poupar a população e os
bens civis.

Por mais que as Convenções de Genebra tenham sido aderidas por qua-
se todos os países, e os protocolos seguintes por uma grande parte deles, as
regras acima são violadas recorrentemente em conflitos por todo o mundo.
O grande desafio do direito internacional é fazer com que as convenções
assinadas sejam cumpridas, e haja responsabilização dos países que a desres-
peitarem.
O Movimento da Cruz Vermelha trabalha intensamente nesses conflitos
para buscar a maior proteção possível das pessoas que estão envolvidas nos

FGV DIREITO RIO  125


Direitos Humanos

conflito, seja diretamente ou indiretamente. Em situações extremas de vio-


lação a esses direitos, são realizadas intervenções humanitárias por parte da
ONU, baseadas na responsabilidade de proteger. Contudo, essas interven-
ções são alvo de muitas críticas, principalmente em relação a soberania nacio-
nal do país que é vista como desrespeitada.

TEXTO 1

Chefe humanitária da ONU alerta para aumento de crises e pede res-


posta ‘mais intervencionista’15
16/01/2015 — Nações Unidas

“Temos a responsabilidade de ser fortes defensores das pessoas sitiadas no


meio de conflitos e muitos governos não gostam do que dizemos”, disse Vale-
ria Amos. Em 2013, 155 trabalhadores humanitários morreram e 134 outros
foram sequestrados em 251 ataques.
A chefe humanitária das Nações Unidas descreveu, durante palestra reali-
zada esta semana, os ambientes “cada vez mais complexos” em que os traba-
lhadores humanitários atuam, enquanto lidam cada vez mais com as consequ-
ências de crises cujas raízes se encontram em governos ruins, paralisia política,
subdesenvolvimento e aumento dos níveis de pobreza e desigualdade.
“Os desafios enfrentados pelas organizações que trabalham no campo hu-
manitário refletem desafios mais amplos que enfrentam toda a ONU”, disse
Valerie Amos, que dirige o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação
de Assuntos Humanitários (OCHA). “Como podemos viver de acordo com
os valores da Carta das Nações Unidas? Como podemos salvaguardar os di-
reitos humanos, proteger os civis e ajudar a proteger a um mundo mais justo
e mais pacífico?”
Ela descreveu alguns dos conhecimentos detidos por aqueles que traba-
lham no campo humanitário, principalmente o fato de que quebrar ciclos
de violência requer engajamento dos atores políticos com as comunidades
locais, de modo a encontrar soluções sustentáveis para crises. Para atender
essa necessidade, Amo pediu uma arquitetura global mais forte e, possivel-
mente, “mais intervencionista” para lidar com as consequências humanitárias
do conflito. Os Estados-membros também precisam respeitar sua responsa-
bilidade de proteger os civis de danos, com as instituições multilaterais preci-
sando ser capaz de intervir onde não conseguiram fazê-lo. 15
Chefe humanitária da ONU alerta
para aumento de crises e pede resposta
As ferramentas atualmente disponíveis para a comunidade internacional ‘mais intervencionista’. Nações Unidas
no Brasil. 16/01/2015. Disponível
têm sido “extremamente limitadas”, apesar da complexidade dos desafios que em: https://nacoesunidas.org/chefe-
-humanitaria-da-onu-alerta-para-
enfrentam, disse Valerie Amos. O direito humanitário internacional, acres- -aumento-de-crises-e-pede-resposta-
centa, embora tenha proporcionado meios para enfrentar os desafios decor- -mais-intervencionista/ Últimos acesso
em: 25/07/2016

FGV DIREITO RIO  126


Direitos Humanos

rentes de conflitos, não está sendo plenamente implementado, pedindo uma


visão e um compromisso mais fortes por parte dos governos, instituições
multilaterais e agências humanitárias.
O resultado não é apenas o perigo contínuo que enfrentam os trabalhado-
res humanitários que tentam prestar assistência por todo o mundo, disse, mas
o “fracasso manifesto” de líderes políticos para proteger o seu povo, com as
organizações humanitárias obrigadas a preencher as “lacunas gritantes” deixa-
das. Tais situações aumentaram as dificuldades em lugares como Síria, Iraque,
Ucrânia e Gaza.
“Temos a responsabilidade de ser fortes defensores das pessoas sitiadas
no meio de conflitos e muitos governos não gostam do que dizemos”, disse
ela, observando que, em 2013, 155 trabalhadores humanitários morreram
e 134 outros foram sequestrados em 251 ataques específicos contra a ajuda
humanitária. “Estamos constantemente ‘debaixo de fogo’ — literal e figura-
tivamente.”
Ela também apontou para as pressões financeiras sobre o trabalho huma-
nitário, ao mesmo tempo em que as necessidades crescem em todo o mundo.
Em 2015, 78 milhões de pessoas em 22 países necessitarão de assistência
humanitária urgente, sob a forma de abrigo, cuidados de saúde, educação e
alimentação, a um custo de 16,4 bilhões de dólares.
“[Esse dinheiro] vai ajudar as pessoas a sobreviver”, disse Amos. “Mas o
que ele não vai fazer é ajudar as pessoas a reconstruir as suas vidas, porque
sem resolução de conflitos, as pessoas vão continuar a fugir da brutalidade.”
Apesar dos perigos e pressões, ela observou que os grupos humanitários
continuam prestando assistência por todo o mundo todos os dias. Amos de-
clarou que continuaria a pressionar por melhor proteção de civis em conflitos,
exortar os Estados a cumprir o seu dever de proteger seus cidadãos e lembrar
aos governos sobre o impacto devastador que o uso de armas explosivas tem
sobre as pessoas que vivem em áreas urbanas densamente povoadas.
Resolver os problemas enfrentados pelos trabalhadores humanitários e
encontrar abordagens adequadas para resolvê-los é uma prioridade para as
consultas que antecederam a Cúpula Mundial Humanitária de 2016, um
encontro global inédito sobre o tema. “Nesta Cúpula, teremos uma opor-
tunidade única para reformular a nossa estratégia de ajuda humanitária e a
forma como fazemos ações humanitárias”, disse ela.

FGV DIREITO RIO  127


Direitos Humanos

TEXTO 2:

Direito Internacional Humanitário16


Cruz Vermelha Brasil

O Direito Internacional Humanitário (DIH) e outros regimes jurídicos


são complementários em situações de conflito armado. No entanto, são sis-
temas distintos. A diferença mais importante é a que se estabelece entre o jus
in bello (ou DIH), que regula a forma como as hostilidades são conduzidas,
e o jus ad bellum, que se refere aos motivos da guerra. Em alguns aspectos,
existem superposições entre o DIH, o Direito Internacional dos Direitos Hu-
manos e o Direito dos Refugiados.
O DIH e o Direito Internacional dos Direitos Humanos têm por finalida-
de a proteção da vida, da saúde e a dignidade dos seres humanos. Enquanto o
DIH se aplica somente durante os conflitos armados, o Direito Internacional
dos Direitos Humanos rege em todas as circunstâncias, tanto em tempo de
guerra como de paz.
Os Estados têm a obrigação de tomar medidas para assegurar o respeito
e a aplicação de ambos os sistemas jurídicos. Em determinadas circunstân-
cias, se um Estado enfrenta uma ameaça pública grave, está habilitado para
suspender alguns direitos humanos. No entanto, nenhum Estado pode sus-
pender o denominado núcleo irredutível dos direitos humanos considerados
fundamentais.
O DIH, por sua vez, não contempla nenhuma suspensão de suas normas
por parte dos Estados. O DIH deve ser respeitado em todas as circunstâncias.
O Direito Internacional dos Refugiados oferece proteção e assistência às
pessoas que atravessaram uma fronteira internacional. Complementa o Di-
reito Internacional dos Direitos Humanos e, se os refugiados se encontram
em uma zona onde se desenvolve um conflito armado, também o DIH.
O DIH está contido nas Convenções de Genebra, de 1949, e seus Pro-
tocolos Adicionais, as Convenções de Haia e um conjunto de tratados que
regulamentam os métodos e os meios de guerra, em particular, as armas. O
mandato do CICV, em seu caráter de guardião do DIH em virtude das Con-
venções de Genebra, é promover o respeito e a aplicação desse direito.
O Direito Internacional dos Direitos Humanos foi desenvolvido através
de diversos instrumentos internacionais, entre eles a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, de 1948, o Pacto Internacional de Direitos Econô-
micos, Sociais e Culturais, de 1966, e o Pacto Internacional de Direitos Civis
e Políticos, de 1966. Para sua aplicação, foram estabelecidos mecanismos a 16
Direito Internacional Humanitário.
nível regional e internacional. Cruz Vermelha Brasileira. 20/04/2012.
Disponível em: http://cruzvermelhani.
org.br/site/cruz-vermelha/43-direito-
-internacional-humanitario.html Últi-
mo acesso em 25/07/2016.

FGV DIREITO RIO  128


Direitos Humanos

TEXTO 3:

by Michelle Maiese

What is Just War Theory?17


Is military intervention for humanitarian reasons morally just? What
about pre-emptive strikes? Jus ad bellum (just war theory) explores these kin-
ds of questions, and proposes answers. Despite centuries of debate, however,
the answers remain controversial.
From both a historical and moral perspective, there is a strong presump-
tion against the use of violence and aggression. Just war theory deals with the
justification for overriding this strong presumption and waging war. Histori-
cally, the just war tradition represents the effort of Western cultures to regu-
late and restrain violence by establishing widely recognized rules of combat.
The theoretical aspect of just war theory, on the other hand, is concerned
with ethically justifying war. Moral justification for war has its roots in Chris-
tian theology and the writings of St. Thomas Aquinas. Together, traditional
rules of combat and moral ideals have helped to form the rules of warfare
found in international law. The set of guidelines commonly known as the
“war convention” is made up of these moral norms and legal precepts.
Theorists distinguish between the rules of jus ad bellum and jus in bello.
The rules of jus ad bellum pertain to the circumstances under which states
can acceptably wage war, while the rules of jus in bello serve as guidelines for
fighting fairly once war has begun.

Just Cause
Formulated in international law and recognized by most cultures, the ru-
les of jus ad bellum serve as principles to determine when war and the use of
violence are justifiable. Only when the criteria of jus ad bellum are met can
the use of violent force be permitted.
Having just cause is often thought to be the most important condition of
just war. Many hold that the only just cause for war is self-defense against ag-
gression. In 1974, the United Nations General Assembly defined aggression
as “the use of armed force by a State against the sovereignty, territorial inte-
grity or political independence of another State.”States’ rights to territorial
integrity and political sovereignty are derived from the rights of individuals
to build a common life and rest on the consent of their members. Insofar as
a state protects the lives and interests of individuals, it cannot be challenged
in the name of life and liberty by any other state. International law holds that
a state engaging in war, other than for purposes of self-defense, commits the 17
“What is Just war theory?”. Michelle
Maiese. Beyond Intractability. 06/2003.
crime of aggressive war. Disponível em: http://www.beyondin-
tractability.org/essay/jus-ad-bellum
Último acesso em 25/07/2016.

FGV DIREITO RIO  129


Direitos Humanos

However, many have noted that this conception of just cause is far too
narrow. First, it is commonly thought that states can defend themselves
against violence that is imminent, but not actual. When the threat is clear
and the danger close, military acts of “anticipation” are often considered mo-
rally justified. For example, many believe that states are justified in conduc-
ting pre-emptive strikes in cases where there is a sufficient threat, and failure
to exercise military force “would seriously risk their territorial integrity or
political independence.” There are threats with which no nation can be ex-
pected to live.
In addition, many have noted that the “aggressor-defender” dichotomy
is an oversimplification. Intervention across national boundaries can some-
times be justified, and the legal existence of a regime does not guarantee its
moral legitimacy. They believe that force may sometimes be used to correct
grave public evils or to address massive human rights violations. When a go-
vernment turns savagely upon its own people, it violates their human rights
and imposes conditions to which they could not possibly consent. Such a
government lacks moral legitimacy, and its political sovereignty and rights to
govern are called into doubt. Because governments that engage in massacre
are criminal governments, wars of interventions resemble law enforcement
or police work.

The Principles of Jus Ad Bellum


The other principles central to jus ad bellum are right authority, right in-
tention, reasonable hope, proportionality, and last resort.
The principle of right authority suggests that a war is just only if waged
by a legitimate authority. Such authority is rooted in the notion of state
sovereignty and derived from popular consent. Even if their cause is just,
individuals or groups whose authority is not sanctioned by society members
cannot justifiably initiate war. It is important to note, however, that corrupt
governments that rule arbitrarily and unjustly may not warrant the allegiance
of the populace. In these cases, state sovereignty disintegrates, and individu-
als may have a right to declare war in order to defend themselves from an il-
legitimate government. Struggles for independence by distinct communities
that are ready and able to determine the conditions of their own existence
may sometimes be justified.
According to the principle of right intention, the aim of war must not
be to pursue narrowly defined national interests, but rather to re-establish
a just peace. This state of peace should be preferable to the conditions that
would have prevailed had the war not occurred. Right intention is tied to the
conditions of jus in bello, (justice in war) and forbids acts of vengeance and
indiscriminate violence. Because the proper object of wars is a better state of
peace, just wars are limited wars. Unconditional surrender is often thought

FGV DIREITO RIO  130


Direitos Humanos

to violate the principle of right intention because it deprives a nation of its


rights and sovereignty, and in effect destroys it. Nevertheless, in cases such as
Nazism, where a government regime poses a threat to the very existence of
entire peoples, the conquest and reconstruction of an enemy state may be a
legitimate military goal.
Here, however, it is important to note that securing peace often overlaps
with the protection of self-interest. For example, if the only way to secure pe-
ace is to annex a belligerent neighbor’s territory, proper intention is linked to
pursuing self-interest. Other proper intentions for war, such as defending an
oppressed group and securing its freedom, may be abandoned because such
a war is deemed too costly.
In addition, just wars must have a reasonable chance of success. According
to the principle of reasonable hope, there must be good grounds for believing
that the desired outcome can be achieved. Arms may not be used and deaths
incurred in a futile cause or when the probability of success is very low. This
principle involves weighing the costs and benefits of waging war, and “em-
phasizes that human life and economic resources should not be wasted” on
war efforts that are certain to fail. However, some note that in some cases it is
necessary as a matter of moral principle to stand up to bullying forces even if
there is little chance of success. For the sake of national pride, fights that are
seemingly hopeless may sometimes be justifiably undertaken.
The principle of proportionality stipulates that the violence used in the
war must be proportional to the attack suffered. The means should be com-
mensurate with the ends, as well as be in line with the magnitude of the
initial provocation. States are prohibited from using force not necessary to
attain the limited objective of addressing the injury suffered. For example, if
one nation invades and seizes the land of another nation, this second nation
has just cause for a counter-attack in order to retrieve its land. However, if
this second nation invades the first, reclaims its territory, and then also an-
nexes the first nation, such military action is disproportional. In addition,
the minimum amount of force necessary to achieve one’s objectives should
be used. Thus, the principle of proportionality overlaps with jus in bello, the
conditions for how war should be fought.
Finally, the principle of last resort stipulates that all non-violent options
must be exhausted before the use of force can be justified. A just war can only
be waged once all other diplomatic avenues have been pursued.

FGV DIREITO RIO  131


Direitos Humanos

TRATADOS E JURISPRUDÊNCIA

Charter of the United Nations

Article 2: “All members shall refrain in their international relations from


the threat or the use of force against the territorial integrity or political inde-
pendence of any state, or in any other manner inconsistent with the purposes
of the United Nations”;

Article 51: “Nothing in the present Charter shall impair the inherent right
of individual or collective self-defense if an armed attack occurs against a
Member of the United Nations.”

Hague Regulations (1899 and 1907)

Geneva Conventions (1949)

Protocolos adicionais à Convenção de Genebra (1977)

LEITURA OBRIGATÓRIA

Crowe, Jonathan. Coherence and Acceptance in International Law: Can


Humanitarianism and Human Rights Be Reconciled? (2014). Adelaide
Law Review, Vol. 35, No. 2, pp. 251-267, 2014; University of Queensland
TC Beirne School of Law Research Paper No. 15-04. Available at SSRN:
http://ssrn.com/abstract=2572798

LEITURA COMPLEMENTAR:

ALSHOVEN, Frits e ZEGVELD, Liesbeth. Restricciones en la coducción de


la Guerra. Introducción al derecho internacional humanitario. Buenos Aires:
Centro de Apoyo en Comunicación para América — Comitê Internacional
de la Cruz Roja, 2003. pp. 217 — 336.

International humanitarian law andthe challenges of contemporary armed


conflicts. Document prepared by the International Committee of the Red
Cross for the 30th International Conference of the Red Cross and Red Cres-
cent, Geneva, Switzerland, 26—30 November 2007.

FGV DIREITO RIO  132


Direitos Humanos

AULA 14: REFUGIADOS

DIREITO DOS REFUGIADOS

O primeiro conceito de refugiado está no art. 1˚ da Convenção das Na-


ções Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados:

A person who owing to a well-founded fear of being persecuted for rea-


sons of race, religion, nationality, membership of a particular social group
or political opinion, is outside the country of his nationality and is unable
or, owing to such fear, is unwilling to avail himself of the protection of that
country; or who, not having a nationality and being outside the country of
his former habitual residence as a result of such events, is unable or, owing
to such fear, is unwilling to return to it.

A definição foi ampliada posteriormente através de diversas Convenções,


passando a também serem considerados refugiados pessoas que deixem seus
países devido a conflitos armados, violência generalizada ou violação massiva
de direitos humanos, tendo em vista que também são indivíduos que se en-
contram em um país, onde sua vida ou liberdade está sendo ameaçada.
Atualmente, discute-se acerca de uma nova categoria de refugiados, cha-
mados de refugiados ambientais ou climáticos. Segundo o professor Essam
El-Hinnawi seriam: “pessoas forçadas a deixar seu habitat natural, temporária
ou permanentemente, por causa de uma marcante perturbação ambiental
(natural e/ou desencadeada pela ação humana) que colocou em risco sua
existência e/ou seriamente afetou sua qualidade de vida. Por ‘perturbação
ambiental’, nessa definição, entendemos quaisquer mudanças físicas, quími-
cas, e/ou biológicas no ecossistema (ou na base de recursos), que o tornem,
temporária ou permanentemente, impróprio para sustentar a vida humana”.
Ao refugiados é assegurado o direito de obter asilo seguro, o que inclui
a garantia dos direitos fundamentais inerentes a todos os indivíduos, como
os direitos civis básicos, os direitos econômicos e sociais. Também é assegu-
rado a esses indivíduos o direito de não ser devolvido ao seu país de origem
(princípio do non-refoulment), o que não deve se confundir com a extradição.
Enquanto a extradição é um instituto de cooperação entre estados para im-
pedir a impunidade, o princípio do non-refoulment é uma forma de garantir
aos refugiados que não ocorram outras violações aos seus direitos humanos.
O Brasil tem papel de destaque na proteção internacional dos refugiados,
inclusive foi considerado pelo Alto Comissário das Nações Unidas para os
Refugiados, António Guterres, como “um país de asilo e exemplo de com-
portamento generoso solidário”. Além de fazer parte da Convenção Relativa

FGV DIREITO RIO  133


Direitos Humanos

ao Estatuto de Refugiados de 1951 e de integrar o Comitê Executivo do AC-


NUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para refugiados), o Brasil conta
com uma lei específica sobre o tema — lei 9.474/97. Tal lei criou o Comitê
Nacional para os Refugiados (CONARE), que é responsável por reconhecer
a condição de refugiado no país.
Segundo análise da ACNUR sobre refúgio no Brasil, o Brasil possuía em
outubro 2014 um total de 7.289 refugiados reconhecidos, de 81 nacionalida-
des diferentes. Importante ressaltar que esse número não inclui os imigrantes
vindos do Haiti, visto que ainda não não houve reconhecimento oficial da
condição de refugiados desses indivíduos.
O caso do Haiti é paradigmático no assunto. O país sofreu um terre-
moto em janeiro de 2010 que afetou mais de três milhões de pessoas. Sem
condições dignas de vida, os cidadãos haitianos migraram em massa para os
EUA e para países da América Latina, com destaque para o Brasil. Segundo
a Polícia Federal, mais de 39.000 deles entraram em nosso território de 2010
até setembro de 2014. Trata-se de número altíssimo de refugiados, que vem
gerando para o país grande preocupação.

NOTÍCIAS

Texto 1

O Haiti é aqui
18
22/05/2015 02h00 — Marta Suplicy

A imagem do haitiano que se lava em mictório de uma igreja no Glicério,


em São Paulo, num abrigo superlotado (capa da Folha nessa quarta, 20), é
um choque por sua insustentável e desumana condição, mas também por
escancarar sem retoques a já tão sabida ineficiência e dificuldades do atual
governo no trato da política externa.
Lula e FHC tinham gosto e interesse, visões com as quais se poderia
concordar ou discordar, mas inegavelmente em matéria de política externa
tinham ousadias, propostas, propósitos. O Brasil retroagiu. Inconteste que
perdeu a projeção geopolítica que galgava. O Brasil timoneiro de um novo
tempo político e econômico era vitrine no mundo, quando em 2010 um
terremoto de assombrosas proporções assolou o Haiti. Aqui, perplexos cho-
ramos a morte de Zilda Arns. Solidários, pois já atuávamos em missões com 18
O Haiti é aqui. Marta Suplicy.
Folha de São Paulo. 22/05/2015.
a ONU para pacificar protestos violentos, disputas entre gangues e incertezas Disponível em: http://www1.fo-
lha.uol.com.br/paywall/adblock.
políticas do Haiti —queríamos, também, e ainda queremos um assento no shtml?origin=after&url=http://
Conselho de Segurança da ONU. www1.folha.uol.com.br/colunas/
martasuplicy/2015/05/1632172-o-
-haiti-e-aqui.shtml Último acesso:
25/07/2016

FGV DIREITO RIO  134


Direitos Humanos

Sem visto de entrada, haitianos ingressaram no nosso país, pagando US$


2.000 a US$ 3.000 a coiotes. Buscando emprego, casa e comida. Passamos a
conceder vistos e já entraram pelo Acre mais de 32 mil “refugiados ambien-
tais” do Haiti. Claro que, numa proporção gigantesca como essa, o Estado
do Acre não tem como suportar nem São Paulo, a cidade mais rica do país,
e nenhum ente federativo isoladamente. Ridículo reduzir a questão ao Mi-
nistério da Justiça destinar R$ 1 milhão para o Acre viabilizar, neste ano, a
distribuição de haitianos pelo país!
Pior é que mandam as pessoas e nem avisam o prefeito, uma total falta de
planejamento do mínimo detalhe à macropolítica! Só com alimentação, já
foram gastos mais de R$ 20 milhões e muito mais se gastará, sem solucionar
suas desgraças. Não se trata de negar comida, abrigo, solidariedade, mas de
propostas efetivas. O Senado pode dar sua contribuição, pois tramitam desde
2013 proposta do senador Aloysio Nunes e outras que atualizam o Estatuto
do Estrangeiro. Mas não serão suficientes.
É preciso bem mais para enfrentar o problema. A União não pode diante
da sua incapacidade de assumir posições, repassar a Estados e municípios
suas obrigações. Esta trágica situação ultrapassa a responsabilidade dos entes
federativos que não merecem nem têm condições de enfrentar sozinhos o
problema. Urge que o governo federal, por meio do Itamaraty e Ministério
da Justiça, ao lado da ONU e da OEA, encaminhe uma solução, pois o exem-
plo da imigração na Europa mostra que procrastinação não traz resultado.

Texto 2

Após 4 anos de conflito na Síria, Brasil lidera acolhimento de refugia-


dos sírios na América Latina19
BRASÍLIA, 13 de março de 2015 (ACNUR)

Nos últimos quatro anos, o Brasil se tornou o principal destino de refugia-


dos sírios na América Latina. Segundo estatísticas do Comitê Nacional para
os Refugiados (CONARE), o país abriga atualmente cerca de 1.600 cidadãos
sírios reconhecidos como refugiados — o maior grupo entre os aproxima-
damente 7.600 refugiados que vivem no país, de mais de 80 nacionalidades
diferentes.
O conflito está entrando no seu quinto ano. Para o Alto Comissário das
Nações Unidas para Refugiados, António Guterres, trata-se da “pior crise 19
Após 4 anos de conflito na Síria, Bra-
sil lidera acolhimento de refugiados
humanitária da nossa era”. Segundo dados divulgados ontem pelo ACNUR, sírios na América Latina. ACNUR.13
/03/2015. Disponível em: http://
já são 3,9 milhões de refugiados sírios registrados nos países vizinhos e outros www.acnur.org/portugues/noticias/
8 milhões de deslocados dentro da própria Síria. A busca de refúgio no Bra- noticia/apos-4-anos-de-conflito-na-
-siria-brasil-lidera-acolhimento-de-
sil por parte dos sírios vem crescendo regularmente desde 2011, quando o -refugiados-sirios-na-america-latina/
Último acesso: 25/07/2016

FGV DIREITO RIO  135


Direitos Humanos

conflito começou. À época, apenas 16 deles viviam no país como refugiados


— incluindo 13 que já estavam aqui antes do início da guerra.
Com o recrudescimento do conflito, o CONARE adotou, em outubro
de 2013, uma Resolução Normativa (#17) para desburocratizar a emissão de
vistos para cidadãos sírios e outros estrangeiros afetados pela guerra e dispos-
tos a solicitar refúgio no país. Tal medida aumentou o número de chegadas
e impactou no perfil do refúgio no Brasil, uma vez que o CONARE vem
aprovando quase a totalidade das solicitações de refúgio relacionadas à guerra
na Síria. Como resultado desta tendência, o CONARE registrou em 2014
um recorde de 1.326 solicitações de refúgio feitas por cidadãos sírios (um au-
mento de quase 9.000% em relação ao início da guerra síria). Assim, no ano
passado, os sírios se tornaram o maior grupo entre os refugiados que vivem
atualmente no Brasil.
Para o ACNUR, as perspectivas dos refugiados sírios e dos deslocados
dentro do país são preocupantes, pois as condições de vida estão se dete-
riorando em uma escala alarmante. A grande maioria dos 3,9 milhões de
refugiados que se encontram na Turquia, Líbano, Jordânia, Iraque e Egito
não vislumbra a possibilidade de voltar para casa em um futuro próximo e
tem poucas oportunidades de recomeçar a vida em outra parte do mundo.
Dentro da Síria, os quase 8 milhões de deslocados internos compartilham
quartos lotados com outras famílias ou se abrigam em prédios abandonados.
A maioria encontra-se em lugares de difícil acesso — inclusive áreas sitiadas
pelos diferentes grupos armados que integram o conflito.
No Brasil — Sozinhos ou em grupos familiares, os refugiados sírios que
chegam ao Brasil são atendidos por organizações não governamentais, com o
apoio do ACNUR, do Governo do Brasil e do setor privado. Os atendimen-
tos estão concentrados em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas há casos em
vários outros pontos do país. Após um período de adaptação, os refugiados
têm conseguido reestruturar suas vidas e voltar a fazer planos para o futuro.
É o caso de Dona Yuna*, professora de formação que vive em Brasília des-
de 2013. Para sobreviver no Brasil ela teve que adquirir novas habilidades.
Quem vê suas travessas de guloseimas como “baklawa”, “ma’amul”, “namura”
e “warbat bil eshta”, vendidas por seu marido nos shoppings centers da capi-
tal, não imagina a trajetória nada doce desta família refugiada.
“Morávamos em Damasco e não pretendíamos deixar nossa casa”, relem-
bra Mohammed, marido de Yuna, um engenheiro civil que trabalhava como
funcionário público. “Um dia, minha filha mais velha e eu estávamos no
trânsito e ficamos presos no fogo cruzado. No outro, minha outra menina
viu nosso carro explodir em frente de casa. Por dois anos ela não conseguiu
dormir, acordava várias vezes para checar se as portas e janelas estavam tran-
cadas. Ainda hoje faz isso”, conta ele. Em 2013, as filhas do casal já estavam
sem escola e Mohammed não tinha mais emprego. Ele saía de manhã para

FGV DIREITO RIO  136


Direitos Humanos

procurar trabalho sem saber se voltaria vivo para casa. “Só queríamos sair
dali, ir para qualquer outro lugar”. Ao saber que o Brasil havia facilitado a
emissão de vistos, a família saiu de Damasco para Beirute, no Líbano, em
busca da embaixada brasileira. Um mês depois Yuna, seu marido e três filhas
desembarcavam em São Paulo para uma rápida escala, tendo Brasília como
destino final.
As filhas de Yuna e Mohammed têm hoje 13, 11 e 3 anos de idade, todas
dominam o idioma português e frequentam escolas públicas no bairro onde
moram. A mais velha quer ser jornalista. “Você sabe em quanto tempo posso
me naturalizar brasileira?”, pergunta a mãe à reportagem do ACNUR. “O
mundo está difícil para os sírios, por muito tempo nos olharão com des-
confiança”, diz ela. E prossegue “a vida aqui não é fácil, tudo é muito caro e
nossos recursos praticamente acabaram. Mas estamos seguros, nos sentimos
acolhidos, isso é o mais importante”.
Com ajuda do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), par-
ceiro do ACNUR no atendimento a refugiados e solicitantes de refúgio no
Distrito Federal, este casal empreendedor tenta agora abrir uma pequena em-
presa para ampliar o comércio de doces e acelerar sua autonomia financei-
ra. Sem nenhuma expectativa de voltar à Síria nem mesmo a passeio, Yuna
investe seus escassos recursos financeiros e energia na fabricação de “sonho
verde”, sua nova especialidade feita com açúcar, farinha, especiarias árabes e
uma dose extra de simpatia para a clientela brasileira.

Texto 3:

Brasil acolhe mais sírios que países na rota europeia de refugiados20


Luís Guilherme Barrucho e Camilla Costa Da BBC Brasil em Londres e
em São Paulo
9 de Setembro de 2015

Desde o início da crise na Síria, o Brasil vem concedendo refúgio a


mais sírios do que os principais portos de destino de refugiados na Eu-
ropa.

Segundo dados do Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), órgão


ligado ao Ministério da Justiça, 2.077 sírios receberam status de refugiados
do governo brasileiro de 2011 até agosto deste ano. Trata-se da nacionalidade
com mais refugiados reconhecidos no Brasil, à frente da angolana e da con- 20
Brasil acolhe mais sírios que países
na rota europeia de refugiados.BBC
golesa. São Paulo. 09/09/2015. Disponível em:
O número é superior ao dos Estados Unidos (1.243) e ao de países no sul http://www.bbc.com/portuguese/
noticias/2015/09/150904_brasil_re-
da Europa que recebem grandes quantidades de imigrantes ilegais — não fugiados_sirios_comparacao_interna-
cional_lgb Último acesso: 25/07/2016

FGV DIREITO RIO  137


Direitos Humanos

apenas sírios, mas também de todo o Oriente Médio e da África — que atra-
vessaram o Mediterrâneo em busca de refúgio, como Grécia (1.275), Espa-
nha (1.335), Itália (1.005) e Portugal (15). Os dados da Eurostat, a agência
de estatísticas da União Europeia, referem-se ao total de sírios que receberam
asilo, e não aos que solicitaram refúgio.
Apesar da distância — 10 mil quilômetros separam Brasil e Síria, o gover-
no brasileiro vem mantendo uma política diferente da de muitos países euro-
peus em relação a refugiados sírios.Há cerca de dois anos, o Conare publicou
uma normativa facilitando a concessão de vistos a imigrantes daquele país.
“São pessoas com todos os perfis socioeconômicos. Há desde camponeses
a engenheiros e advogados, muitos deles com pós-graduação. Em comum,
todos estão fugindo de um país imerso em uma espiral de violência”, acres-
centou.

**Nota: Os dados referentes a Grécia, Espanha e Portugal são até o 1º trimestre de 2015.
A estimativa da Argentina é até 2014 e os dados do Canadá são de 2014 a 2015, apenas.

O Brasil também é o país que mais concedeu asilo a refugiados sírios na


América Latina. No continente americano, só perde para o Canadá — que
recebeu 2.374 refugiados entre janeiro de 2014 e janeiro deste ano.
Especificamente na comparação com os vizinhos sul-americanos, contu-
do, o número de solicitações concedidas pelo governo brasileiro é considera-
velmente superior.

FGV DIREITO RIO  138


Direitos Humanos

Na outra ponta, contudo, o Brasil recebeu menos do que Alemanha


(65.075), Suécia (39.325), Noruega (2.995), Bélgica (5.430), França (4.975)
e Reino Unido (4.035), segundo dados da Eurostat.
Nesta sexta-feira, em resposta à pressão doméstica e internacional, o pri-
meiro-ministro britânico, David Cameron, afirmou que o Reino Unido vai
oferecer refúgio a “milhares de sírios” devido à piora da crise humanitária.
Ele não divulgou estimativas, mas a Acnur (agência de refugiados da ONU)
informou que o número poderia chegar a 4 mil.

Facilidade
Em entrevista à BBC Brasil, o representante da Acnur (Agência da ONU
para Refugiados), Andrés Ramirez, elogiou a iniciativa do governo brasileiro,
que classificou como uma “importante mensagem humanitária e de direitos
humanos”.
“O Brasil tem mantido uma política de portas abertas para os refugiados
sírios. O número ainda é baixo, em muito devido à localização geográfica.
Mas sem dúvida se trata de um exemplo a ser seguido a nível mundial”, afir-
mou ele.
Ramirez lembrou que no Brasil, diferentemente de outros países, enquan-
to espera pela concessão, o refugiado pode trabalhar e ter acesso à saúde e à
educação.
Ele criticou, entretanto, a demora no processamento de pedidos. Segundo
ele, o Conare vem tendo dificuldades para atender à demanda crescente das
solicitações.

Crise sem precedentes


O mundo enfrenta a pior crise de refugiados desde a Segunda Guerra
Mundial, segundo organizações como a Anistia Internacional e a Comissão
Europeia.
Desde janeiro deste ano, mais de 350 mil imigrantes atravessaram o Medi-
terrâneo. Desse total, estima-se que 2.643 tenham morrido no mar enquanto
tentavam chegar à Europa, de acordo com a OIM (Organização Internacio-
nal para as Migrações).
O número supera com folga o total de 2014, quando 219 mil migrantes ten-
taram realizar a travessia, normalmente feita em botes ou em embarcações su-
perlotadas, sem os mínimos requisitos de segurança, por traficantes de pessoas.
A viagem pode custar mais de R$ 10 mil por pessoa, tornando o negócio
altamente lucrativo — uma única embarcação pode render R$ 1 milhão.

FGV DIREITO RIO  139


Direitos Humanos

Texto 3

Burma’s boatpeople ‘faced choice of annihilation or risking their lives


at sea’21
Thousands of members of the Rohingya, a Burmese minority group, are
now adrift in the Andaman Sea, with aid groups fearing ‘boatloads of corpses’

They were carried or staggered ashore, some paralysed by malnutrition,


others little more than walking skeletons, burnt and dazed from weeks at
sea on boats the UN has called “floating coffins”. Manu Abudul Salam, 19,
had watched her brother die when desperate fighting broke out after the
captain of their wooden boat fled on a speedboat, leaving more than 800
passengers adrift with dwindling food and water. “If I had known the boat
journey would be so horrendous, I would rather have just died in Myanmar
[Burma],” she told journalists shortly after being towed ashore by Indonesian
fishermen, one of a few hundred allowed to land.
Salam, a Rohingya from northern Burma, was not exaggerating in her
depiction of that grim choice, judging by a report from researchers at Queen
Mary, University of London, which warns that her people are facing state-
-sponsored genocide. “The Rohingya are faced with two options: stay and
face annihilation, or flee,” said Professor Penny Green, part of a group that
recently completed several months’ research in the Rohingya’s home state
of Rakhine. “If we understand genocide to be a process, that is what this
is. Those who remain suffer destitution, malnutrition and starvation; severe
physical and mental illness; restrictions on movement, education, marriage,
childbirth, livelihood, land ownership; and the ever-present threat of violen-
ce and corruption.”
Since 1982 the group has been refused citizenship by the Burmese gover-
nment, which denies their existence. Officials will not attend events, at home
or internationally, where the word Rohingya is used, and last week threatened
to boycott a summit on the escalating migrant crisis which had been called
by Thailand. “If they use the term Rohingya, we won’t take part in it, since
we don’t recognise this term. The Myanmar government has been protesting
against the use of it all along,” Zaw Htay, an official from the president’s
office, told Reuters on Saturday. Instead it insists that a group with its own
language and a history in Burma that goes back many generations must be
called Bengalis, and describes them as illegal immigrants from neighbouring
Bangladesh. That alienation has led to a vast chain of “refugee” camps which
Green says are more like prisons, home to more than 100,000 Rohingya who 21
Burma’s boatpeople ‘faced choice of
annihilation or risking their lives at sea’.
require permission to leave them. The Guardian. 17/05/2015. Disponível
In the regional capital of Sittwe, once a thriving mixed city with dozens em: https://www.theguardian.com/
world/2015/may/17/rohingya-burma-
of mosques, a few thousand Rohingya still live in a ghetto with seven heavily -refugees-boat-migrants Último acesso
em 25/07/2016

FGV DIREITO RIO  140


Direitos Humanos

guarded entrances. The number of mosques still standing is in single figures


a nd they are deserted, occupied by government forces. A trickle of food aid
into the camps keeps people alive but hungry on a meagre diet of rice and
lentils, while in the city’s markets there are bags of food aid apparently sipho-
ned off by officials with little care for the camps’ inhabitants. “They live the
barest of existences,” Green says. “People were begging us for food. You walk
around and see blank eyes.”

LEITURA OBRIGATÓRIA

CORREA, Mariana Almeida Silveira; NEPOMUCENO, Raísa Barcellos;


MATTOS, Weslley H. C. e MIRANDA, Carla. MIGRAÇÃO POR SO-
BREVIVÊNCIA: SOLUÇÕES BRASILEIRAS. REMHU, Rev. Interdiscip.
Mobil. Hum. [online]. 2015, vol.23, n.44, pp.221-236. ISSN 1980-8585.
http://dx.doi.org/10.1590/1980-85852503880004414.

LEITURA COMPLEMENTAR:

AMORIM, João Alberto Alves. CONCESSÃO DE REFÚGIO NO BRA-


SIL: A PROTEÇÃO INTERNACIONAL HUMANITÁRIA NO DIREI-
TO BRASILEIRO. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 12, p.
63-76, fevereiro/2012.

ANDRADE, José H. Fischel de and MARCOLINI, Adriana. A política bra-


sileira de proteção e de reassentamento de refugiados: breves comentários so-
bre suas principais características. Rev. bras. polít. int. [online]. 2002, vol.45,
n.1, pp. 168-176.

FGV DIREITO RIO  141


Direitos Humanos

AULA 15: TRABALHO ESCRAVO

INTRODUÇÃO

Norberto Bobbio, em sua obra “A era dos direitos”, sustentou a existência


de dois direitos humanos absolutos: o de não ser torturado e o de não ser es-
cravizado. Segundo o autor, estes seriam excepcionais e de valoração superior
a todos os outros por não implicarem no cerceamento dos direitos de outros.
Afinal, não se poderia falar em um direito de torturar ou de escravizar, mas
apenas de não ser sujeito passivo destas práticas.
O primeiro destes direitos, o de não ser torturado, é bastante frequente
no cenário político nacional; Em grande medida, isto se deu graças à recons-
trução de uma memória coletiva que remonta ao período da ditadura militar
e à análise crítica do treinamento e funcionamento das instituições policiais
na atualidade. O segundo, por sua vez, não é tão comum. Apesar de movi-
mentações e iniciativas recentes que buscam acabar com o trabalho escravo,
o tema ainda não é de debate tão amplo. Ao pensar em escravidão, o cidadão
é diretamente levado ao período pré-Lei Áurea e deixa de levar em conta a
triste realidade ainda encontrada em áreas urbanas e rurais do país.
Esta aula terá como objetivo explorar algumas das principais medidas
adotadas pelo Brasil na tentativa de erradicar o trabalho escravo, bem como
destacar a forma como o Direito Internacional dos Direitos Humanos encara
o tema.
A escravidão, em sua configuração contemporânea, consiste em prática
nomeada das mais diversas formas. No direito brasileiro, fala-se em trabalho
escravo ou trabalho em condições análogas à escravidão; por outro lado, no
direito internacional, é mais comum encontrar a expressão trabalho forçado,
derivada do inglês forced labour — nomenclatura frequentemente usada pela
Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pelas cortes regionais.
No Brasil, ainda são muito comuns os casos de trabalho escravo, contra
os quais medidas mais concretas passaram a ser adotadas apenas no ano de
2003. Neste momento, o país havia acabado de firmar acordo de solução
amistosa com as vítimas do Caso José Pereira, o primeiro sobre o tema que
fora levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O documento
assinado pelas partes previa que o Estado reconhecia sua responsabilidade
pelas violações sofridas, comprometendo-se a garantir medidas de reparação
e o julgamento e punição dos responsáveis. Além disso, o Brasil deveria rea-
lizar alterações legislativas e implementar medidas de prevenção, fiscalização,
punição e conscientização em relação ao trabalho escravo.
Este caso foi bastante emblemático na luta contra a escravidão moderna
em território nacional. No mesmo ano, foi anunciado o Plano Nacional para

FGV DIREITO RIO  142


Direitos Humanos

Erradicação do Trabalho Escravo, marcado sobretudo por ações de fiscaliza-


ção móvel realizadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em par-
ceria com a Secretaria de Direitos Humanos (SDH), o Ministério Público do
Trabalho (MPT), a Polícia Federal (PF) e a Polícia Rodoviária Federal (PRF),
entre outros. As forças-tarefas compostas por estes órgãos foram responsáveis
pela autuação de estabelecimentos e empregadores em todas as regiões do
país, consistindo em uma das principais medidas do plano elaborado.
Ainda em 2003, o Congresso Nacional realizou alteração no Código Pe-
nal, dando nova redação ao crime de redução a condição análoga à de escravo
(art. 149, CP) e detalhando-o para criar quatro hipóteses de comissão do
delito: (i) submissão a trabalhos forçados, (ii) submissão a jornada exaustiva,
(iii) sujeição a condições degradantes de trabalho e (iv) restrição, por qual-
quer meio, da locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com
o empregador ou preposto.
Em 2004, foi criado um cadastro nacional de empregadores que manti-
nham trabalhadores em condições análogas à escravidão, por meio da Portaria
MTE nº 540/04. Esta relação constitui a chamada “Lista Suja do Trabalho
Escravo”, renovada pelas Portarias Interministeriais nº 2/11 e nº 2/15 e atual
objeto de discussão no Supremo Tribunal Federal em sede de ação direta de
inconstitucionalidade.
No ano de 2014, aprovou-se a EC 81/14, que alterou o artigo 243 da
Constituição para que fosse possível a expropriação de terras e confisco de
bens não apenas em função do cultivo de psicotrópicos e do tráfico ilícito,
mas também em caso de exploração de trabalho escravo. Esta emenda, no
entanto, aguarda regulamentação em lei para que a sanção a quem mantém
trabalhadores em condição análoga à escravidão seja aplicável.
No plano do direito internacional, há duas importantes convenções da
OIT que estabelecem medidas e objetivos quanto ao tema: a Convenção nº
29 (1930), de caráter mais genérico, que dispõe sobre o trabalho forçado ou
obrigatório; e a Convenção nº 105 (1957), mais específica e voltada para
medidas de abolição dessas formas de trabalho. Cabe destacar que ambas
são diplomas internacionais passíveis de judicialização e que são usados pela
OIT como parâmetro de avaliação em relatórios periódicos de cumprimento
e implementação de suas regras. Além disso, foram internalizadas pelo Brasil,
respectivamente, nos Decretos 41.721/57 e 58.822/66.
No Conselho de Direitos Humanos da ONU, há ainda uma Relatoria Es-
pecial sobre Formas Contemporâneas de Escravidão, Inclusive suas Causas e
Consequências. Em 2010, a então ocupante da posição, Gulnara Shahinian,
teve a oportunidade de analisar o caso brasileiro em um de seus relatórios,
afirmando que ainda há muito que se fazer no combate ao trabalho escravo
no país, tanto em áreas urbanas quanto rurais. Como exemplo de situação
que precisa ganhar maior atenção, mencionou os casos de imigrantes, sobre-

FGV DIREITO RIO  143


Direitos Humanos

tudo bolivianos, que vêm para o Brasil em busca de melhores condições de


trabalho e vida e acabam se inserindo em um contexto de vulnerabilidade
social. No entanto, citou a “lista suja” como exemplo positivo de iniciativa
governamental pela abolição desta violação, tratando de casos de grandes em-
presas que assinaram um pacto para não mais contratar com empregadores
cujos nomes constam no cadastro.

NOTÍCIAS

Texto 1

Ministério resgata 1.590 trabalhadores vítimas de trabalho escravo em


201422
Em todo o país, foram realizadas 248 ações de fiscalização, diz governo.
(29/01/15 — G1)

No ano passado, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) realizou


248 ações de fiscalização e resgatou 1.590 trabalhadores em condições análo-
gas à escravidão em todo país, segundo balanço divulgado nesta quarta-feira
(28). Os cinco estados em que mais ocorreram ações fiscais foram Minas
Gerais, Pará, São Paulo, Maranhão e Tocantins.
Entre as atividades com maior incidência de ações fiscais nas quais foram
identificados trabalhadores em situação análoga à de escravo, estão pecuária,
construção civil, indústria madeireira, agricultura e carvão. Por sua vez, as
atividades nas quais houve o maior número de trabalhadores identificados
foram: construção civil, agricultura, pecuária, extração vegetal e carvão.
Para o chefe da Detrae, Alexandre Lyra, “os dados ainda que em fase de
consolidação, indicam atuação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel de
Combate ao Trabalho Análogo ao de Escravo (GEFM), decorrente dessas
parcerias, em municípios e em atividades econômicas antes não abordados
com rotina pela Inspeção do Trabalho”.
22
Ministério resgata 1.590 traba-
lhadores vítimas de trabalho es-
cravo em 2014. O Globo. 29/01/15.
Texto 2 Disponível em: http://g1.globo.com/
economia/noticia/2015/01/ministerio-
-resgata-1590-trabalhadores-vitimas-
Governo lança portaria e recria “lista suja” do trabalho escravo23 -de-trabalho-escravo-em-2014.html
Último acesso em: 25/07/2016
(31/03/15 — Repórter Brasil) 23
Governo lança portaria e recria “lista
suja” do trabalho escravo. Repórter
Brasil. 31/03/15. Disponível em:
Brasília — Três meses após a revogação da lista suja pelo ministro Ricardo http://g1.globo.com/economia/noti-
Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), o governo federal anun- cia/2015/01/ministerio-resgata-1590-
-trabalhadores-vitimas-de-trabalho-
ciou, nesta terça-feira (31), a edição de uma nova portaria interministerial -escravo-em-2014.html . Último
acesso em 25/07/2016

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Direitos Humanos

que recria o cadastro de empregadores flagrados com mão de obra análoga à


de escravo, utilizando a Lei de Acesso à Informação como amparo legal.
Assinaram o novo texto, no início da tarde, o ministro do Trabalho e Em-
prego, Manoel Dias, e a ministra-chefe da Secretaria de Direitos Humanos
da Presidência da República (SDH), Ideli Salvatti. A relação deve estar dispo-
nível nos sites dos ministérios na próxima semana. A nova portaria, redigida
com auxílio da Advocacia Geral da União (AGU), busca esclarecer um dos
principais argumentos utilizados por Lewandowski para embasar sua decisão:
a de que a portaria anterior, agora revogada, não explicitava procedimentos e
instâncias a serem acionados pelos advogados de um empregador acusado por
trabalho escravo, o que violaria seu direito à ampla defesa.
“A nova portaria moderniza e agiliza a tramitação do processo sobre tra-
balho escravo. Não alteramos o conteúdo, mas facilitamos para que não haja
dúvida quanto à validade e à legalidade dos processos”, explicou Dias. A
ministra Ideli também enfatizou que não foi modificado, em essência, o que
já vinha sendo feito. “Trata-se de uma portaria de aperfeiçoamento”, disse.
Para se antecipar eventuais críticas sobre o relançamento da lista suja, o texto
da nova portaria cita a Lei de Acesso à Informação (LAI) como amparo legal
para que a sociedade saiba os nomes dos empregadores cujos processos sobre
trabalho escravo tenham transitado administrativamente em primeira e se-
gunda instâncias.
Foi com base na LAI que a Repórter Brasil em conjunto com o Blog do
Sakamoto tiveram acesso aos nomes dos empregadores que foram flagrados
com trabalho escravo pelo MTE e divulgou, há cerca de um mês, uma lista
similar àquela vetada por Lewandowski. A ministra reconheceu publicamen-
te em seu discurso a iniciativa. “Um dos que iluminou a saída para essa nova
portaria foi a Repórter Brasil, que, utilizando a LAI, teve acesso à lista. Isso
demonstra que a legislação em vigor ampara a divulgação dela”, afirmou.
Com o mesmo objetivo, a portaria também cita outros acordos internacio-
nais celebrados pelo Brasil, como convenções da OIT e sobre direitos huma-
nos da ONU.
O retorno da lista suja foi celebrado por quem acompanhou a cerimônia
de lançamento da nova portaria, realizada na sede da SDH, em Brasília. O
especialista em saúde do trabalhador Sílvio Brasil, que está assumindo a se-
cretaria executiva da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Es-
cravo (Conatrae), aponta que o novo texto oferece menos brechas a empresas
que buscam liminares na Justiça contra sua inclusão na lista.

FGV DIREITO RIO  145


Direitos Humanos

LEITURA OBRIGATÓRIA

MOHALLEM, Michael Freitas. Trabalho escravo no Brasil: a lista suja e o


retrocesso das políticas públicas. Originalmente apresentado como perícia
no caso nº 12.066 “Fazenda Brasil Verde contra a República Federativa do
Brasil” perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, nos termos da
resolução do presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre
a legislação brasileira em matéria de trabalho escravo e sobre o Cadastro de
Empregadores, conhecido como “Lista Suja”.

LEITURA COMPLEMENTAR:

SCOTT, Rebecca J. O Trabalho Escravo Contemporâneo e os Usos Da Histó-


ria. Mundos do Trabalho (Florianópolis, Brazil) v. 5 n. 9 (2013), 129-137; U
of Michigan Public Law Research Paper No. 333. Available at SSRN: http://
ssrn.com/abstract=2292162 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2292162

BISCHOFF, James. Forced Labour in Brazil: International Criminal Law as


the Ultima Ratio Modality of Human Rights Protection. Leiden Journal of
International Law, 19 (2006), pp. 151—193

VÍDEO

Aprisionados por Promessas — A escravidão contemporânea no campo bra-


sileiro. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5maPAQ70sxI.
Acesso em: 15 junho 2015.

FGV DIREITO RIO  146


Direitos Humanos

AULA 16: DISCRIMINAÇÃO E VIOLÊNCIA DE GÊNERO

O enfoque dessa aula é a discriminação e violência contra a mulher e


contra a ideia de feminismo e como desmistificar o preconceito trazido pela
terminologia.
O feminismo vem sendo alvo de críticas, muitas delas originadas por uma
má compreensão do que de fato é o movimento ou a corrente intelectual fe-
minista. O feminismo não é o contrário do machismo, e também não é uma
luta contra os homens. Trata-se de um movimento que busca a igualdade
entre os gêneros, e não a dominação de um sobre o outro. A motivação do
feminismo é superar estruturas na sociedade que colocam a mulher em posi-
ção inferior ao homem. Sendo assim, ser feminista significa acreditar em uma
sociedade sem normas de gênero, em que o gênero não enseje discriminação.
Como discutiremos em sala, são as mídias, professores, colegas, a por-
nografia, etc que fornecem e reforçam expectativas de papéis de gênero, ou
seja, o que é socialmente apropriado para meninos e meninas. O que faz
com que ao longo do tempo, um esquema de papéis de gênero se desenvolva
e seja referência para a interpretação do mundo com base nessas expectativas
de gênero.

Fonte: ONU Brasil — “ Empodere duas Mulheres”

No século 19 surgiram as primeiras reivindicações feministas, principal


delas o direito ao voto feminino, que após intensas manifestações foi conce-
dido em 1932. A segunda onda do movimento em 1960 lutou pelos direitos

FGV DIREITO RIO  147


Direitos Humanos

reprodutivos, marcado pelo uso dos contraceptivos e em 1970, começaram


as reivindicações pela igualdade no trabalho.
Em âmbito internacional, o primeiro marco da luta feminista foi em
1979, quando foi aprovado pela ONU a Convenção para a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), ratifica-
do pelo Brasil em 1984. A convenção assegura a igualdade entre homens e
mulheres e se baseia no compromisso dos estados partes em eliminar todas
as formas de discriminação contra a mulher, que tem sua definição no art. 1˚
da Convenção.
Artigo 1º — Para fins da presente Convenção, a expressão “discriminação con-
tra a mulher” significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e
que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou
exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igual-
dade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos
campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.
Apesar de ter sido ratificada por um numero alto de estados partes, o
tratado tem eficácia limitada, visto que foram feitas inúmeras reservas por
parte deles. O Protocolo Facultativo aprovado pela ONU em 1999, por
outro lado, serviu como mecanismo de proteção para efetivar as previsões da
convenção, dado que passa a autorizar indivíduos ou grupos de indivíduos na
posição de vítima de ingressar com petição perante a Comissão.
A Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para Pre-
venir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher) aprovada em cidade
brasileira e assinada pelo Brasil em 1994 tratou especificamente do tema vio-
lência doméstica, incluindo a física, psicológica e sexual. Importante avanço
para assegurar os direitos humanos das mulheres, visto que a CEDAW não se
pronunciou particularmente sobre esse tipo de violação.
Apesar das várias conquistas do feminismo desde sua primeira onda no
século 19, não há dúvidas de que a discriminação por gênero persiste em
muitos aspectos. O Fórum Econômico Mundial anualmente produz o Glo-
bal Gender Gap Report elencando países de acordo com as disparidades
existentes entre os gêneros em quatro áreas: saúde, educação, economia e
política. Em 2014, 142 países foram pontuados, sendo a nota 1 equivalente
a igualdade entre os gêneros e 0 desigualdade. O Brasil ficou em 71˚ lugar,
com a nota 0.694, alavancada por uma péssima nota nas áreas de economia
e política. É importante notar que a avaliação em educação foi igual a 0.935,
o que demonstra que as mulheres no Brasil tem um nível de escolaridade se-
melhante a dos homens, contudo, elas continuam sendo minoria na política
e ganhando salários inferiores em cargos similares. Fica evidente, portanto,
que o problema de discriminação é latente no Brasil e precisa de mecanismos
mais efetivos para que seja combatido.

FGV DIREITO RIO  148


Direitos Humanos

A PARTICIPAÇÃO DA MULHER NA POLÍTICA

No contexto em que vivemos, em que a discriminação persiste, a luta pelo


fortalecimento dos direitos das mulheres faz-se fundamental, principalmente
através da representação feminina na política. Durante muito tempo, mu-
lheres foram excluídas da política, sendo proibidas de votar e também de se
candidatar a cargos políticos. Apenas em 1932, durante o governo de Getúlio
Vargas, tais direitos foram conquistados. Apesar do grande progresso, mulhe-
res demoraram anos para conseguirem serem eleitas, vivendo ainda em um
cenário em que somente os homens eram vistos como os únicos aptos para
ocuparem cargos de tamanha importância. Foi apenas em 1979 que o Brasil
elegeu sua primeira senadora, seguida pela primeira governadora em 1986,
passando a romper com os paradigmas patriarcais e abrindo espaço para que
mais mulheres se candidatassem. Em 1989, ocorreu a primeira candidatura
de uma mulher para o cargo de presidência da república e em 2010, enfim,
pudemos eleger pela primeira uma mulher para tal cargo.
Atualmente, com uma população do gênero feminino que representa 51%
da população total do país é surpreendente analisar que as mulheres continu-
am sendo minoria ínfima na política. Em 2009, o TSE passou a exigir que
pelo menos 30% das candidaturas dos partidos fossem dedicados ao sexo com
menor representatividade, no caso o feminino. Em 2014 pela primeira vez
essa exigência foi cumprida, de um total de 26.919 candidatos, 30,7% eram
mulheres. Contudo, alguns dados devem ser trazidos para que seja analisada
a eficácia de tal exigência. Em um total de 513 deputados federais, apenas 51
são mulheres e dos 81 senadores, apenas 12 são mulheres, o que significa que
somente 10,6% do Congresso é composto pelo gênero feminino.
Atualmente (2015), no executivo, apesar de uma presidente mulher, te-
mos apenas uma governadora (Suely Campos em Roraima) em meio a 27
unidades federativas. É possível notar, portanto, que a exigência não teve o
efeito esperado; apesar do número maior de mulheres se candidatando, o
gênero feminino continua ocupando a minoria dos cargos políticos. Faz-se
necessário questionar que medidas poderiam ser tomadas para que este resul-
tado não se repetisse. Nesse sentido, é válido observar a experiência de outros
países como a Argentina e o Reino Unido que ao invés de exigirem a “reserva”
de vagas femininas, passaram a exigir o “preenchimento” dos cargos pelas
mulheres, e assim, vem obtendo um percentual cada vez maior de mulheres
em seus parlamentos.

FGV DIREITO RIO  149


Direitos Humanos

A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Assim como a participação da mulher na política, a violência contra a


mulher apesar dos esforços já realizados continua sendo um desafio para o
Brasil. A Convenção de Belém do Pará já citada, permitiu que 1998 Maria
da Penha levasse seu caso a Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
alegando seu vítima de violência doméstica, prática que foi vista como tole-
rada no Brasil, dado que o país não processou e nem puniu o agressor após
diversas denúncias feitas pela vítima. O Brasil foi responsabilizado, sendo o
primeiro Estado condenado por violência doméstica em âmbito internacio-
nal, e foram feitas diversas recomendações ao estado para que casos como esse
não se repetissem. Assim, em 2006, nasceu a Lei 11.340, conhecida como a
Lei Maria da Penha.
Apesar da criação da lei e das posteriores delegacias de atendimento à
mulher, a violência doméstica continua sendo um problema sério no Brasil.
Um levantamento feito pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
afirmou que houve um aumento de mais de cinco vezes no número de casos
de violência doméstica entre 2008 e 2015. Em 2014 foram 94.698 ações
baseadas na Lei Maria da Penha, contra 17.757 em 2008. O aumento do
número pode refletir um aumento de mulheres que estão procurando mais
o poder judiciário. Contudo, com um número tão alto de casos, é necessário
questionar se o arcabouço jurídico-institucional está sendo o suficiente para
coibir a prática de violência doméstica.
Em pesquisa feita em 2015 pelo Pensando o Direito, foram elencados os
principais motivos que explicam um número de casos tão alto. De maneira
geral, foi constatado que a causa está relacionada à falta de acesso à justiça das
mulheres nessa situação. Além dos problemas do judiciário como um todo —
falta de celeridade, a deficiência estrutural, o pouco preparo dos funcionários
—, nota-se que o atendimento nas Defensorias Públicas especializadas para
mulheres e nas DEAMs sofre problema de superlotação, fazendo com que o
o atendimento não seja feita da melhor maneira possível, inclusive sobran-
do muitas vezes para estagiários que não dominam do assunto. Também foi
elencado como um problema a falta de informação precisa e adequada, as
vítimas entrevistadas alegaram não receber orientação satisfatória e terem di-
ficuldade em lidar com a linguagem técnica do direito. A pesquisa afirma que
a falta de cuidado e atenção nestes processos pode inclusive acabar gerando
a desistência do processo, visto que a vítima se não for conscientizada pode
acabar relevando os atos ocorridos e reatando com o agressor. É essencial,
conquanto, que os profissionais sejam capacitados para atender essas vítimas
e explicar a elas a realidade em que se encontram.
Além dos problemas estruturais já listados, os problemas históricos cul-
turais também aparecem como obstáculos para o fim da violência domés-

FGV DIREITO RIO  150


Direitos Humanos

tica, entre eles a cultura do patriarcalismo enraizada em nossa sociedade, a


frequente culpabilização da própria vítima (91% das vítimas entrevistadas
respondeu que se sentia responsável pela violência que sofreu) e o discurso de
manutenção de uma unidade familiar.
Não raros são os casos de violência doméstica que terminam com o faleci-
mento da vítima. Segundo o IPEA, 40% de todos os homicídios de mulhe-
res no mundo são cometidos por um parceiro íntimo e no Brasil, estima-se
que entre 2001-2011 ocorreram mais de 50 mil homicídios decorrentes de
conflitos de gênero. Tendo em vista este cenário fatídico, em março de 2015
foi sancionada a lei que incluiu no Código penal o feminicídio. A lei além
de incluir o feminicídio no rol de crimes hediondos, determina que se uma
mulher for morta envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo
ou discriminação à condição de mulher passa a ser agravante do crime de ho-
micídio. Assim, a pena de homicídio simples de 6 a 20 anos, torna-se a pena
de homicídio qualificado, de 12 a 30 anos. Trata-se de mais de uma medida
com o intuito de dar um fim a cultura de machismo e opressão a mulher.

NOTÍCIAS

Texto 1

Com discurso contra o machismo, Dilma sanciona Lei do Feminicídio24


FOLHA DE SP — 09/03/2015

A presidente Dilma Rousseff sancionou nesta segunda-feira (9) a lei que


incluiu no Código Penal, o feminicídio. A lei determina que, se uma mulher
for morta por razões de gênero, como no caso de violência doméstica, passa a
ser agravante do crime de homicídio. Com um discurso contra o machismo
e contra o preconceito de gênero, Dilma defendeu as políticas do governo de
enfrentamento à violência contra a mulher, como a Casa da Mulher Brasileira
e a Lei Maria da Penha.
A lei sancionada é um dos resultados da CPI mista da Violência contra a
Mulher, que funcionou no Congresso entre 2012 e 2013. O texto foi aprovado
pela Câmara na semana passada. A pena para o homicídio simples vai de 6 a
20 anos de reclusão. Já o homicídio qualificado, tipo penal do feminicídio, tem
pena de 12 a 30 anos. “Em briga de marido e mulher, nós achamos que se mete
a colher, sim, principalmente se resultar em assassinato. Meter a colher nesse 24
Com discurso contra o machismo,
caso não é invadir a privacidade, é garantir padrões morais, éticos e democráti- Dilma sanciona Lei do Feminicídio.
Folha de São Paulo. 09/03/2015. Dis-
cos. E o Estado brasileiro deve meter sim, a colher, a sociedade brasileira idem, ponível em : http://www1.folha.uol.
deve meter a colher”, defendeu Dilma que também conclamou as mulheres a com.br/cotidiano/2015/03/1600334-
-com-discurso-contra-o-machismo-
corrigir o ditado “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. -dilma-sanciona-lei-do-feminicidio.
shtml Último acesso: 25/07/2016.

FGV DIREITO RIO  151


Direitos Humanos

[...]

LEI
Pela proposta, as penas serão ampliadas de um terço até a metade se o cri-
me for praticado durante a gestação da vítima ou nos três meses após o parto,
contra menores de 14 anos, portadoras de deficiências ou na presença de
pais/filhos da vítima. O texto diz que é considerado razão de gênero quando
o crime envolve violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discrimi-
nação à condição de mulher.
A proposta também inclui o feminicídio no rol de crimes hediondos. Se-
gundo Dilma, morrem, em média, 15 mulheres por dia no país vítimas de
violência por questão de gênero. “os números nos chocam e mostram que as
brasileiras são submetidas a uma violência inaceitável”, disse. “Combatemos
a violência contra a mulher porque acreditamos que toda mulher tem direito
a integridade. Quando tratamos a mulher como protagonista, o que quere-
mos é dar poder a ela”, afirmou. Dilma foi aplaudida diversas vezes durante
o seu discurso.

Texto 2

Bancada feminina exige cota para mulheres no Parlamento25


SENADO NOTÍCIAS — 21/05/2015

Apesar de representarem a maior parte da população (52%), as mulheres


são minoria na política. Atualmente menos de 10% das vagas da Câmara
dos Deputados e pouco mais de 15% das do Senado são ocupadas por essa
parcela. Para tentar mudar essa realidade e buscar maior equilíbrio na com-
posição do Congresso Nacional, senadoras e deputadas promoveram um ato
nesta quinta-feira (21), no Salão Verde da Câmara dos Deputados, em defesa
de um projeto que garante, pelo menos, 30% de mulheres na composição do
parlamento e das assembleias legislativas e câmaras de vereadores. [...]
Alguns parlamentares consideram que 30% de vagas é um número alto.
A procuradora da Mulher no Senado, Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), ob-
servou que o texto garante que os homens também tenham direito a uma
quantidade mínima de cadeiras, caso no futuro a situação atual se inverta.
Vanessa disse ainda que vários países conseguiram avançar na participação
de mulheres na vida pública graças a adoção de cotas. — O que queremos é
pedir o apoio a uma causa que não é só das mulheres, mas da democracia e 25
Bancada feminina exige cota para
mulheres no Parlamento. Senado
da sociedade — defendeu Vanessa. Notícias. 21/05/2015. Disponível em:
http://www12.senado.leg.br/noticias/
materias/2015/05/21/bancada-femi-
nina-exige-cota-para-mulheres-na-
-politica. Último acesso: 25/07/2016.

FGV DIREITO RIO  152


Direitos Humanos

Mapa
O mapa sobre “Mulheres na Política 2015”, elaborado pela Organização
das Nações unidas (ONU), aponta que o Brasil ocupa apenas a 124ª posição
em um ranking de 188 países em relação à igualdade de gênero e à partici-
pação de mulheres na vida pública, ficando de países árabes e africanos. Na
América Latina, o Brasil está a frente apenas do Haiti. Vanessa Grazziotin
classificou a situação como “vexatória”: — Na América do Sul, nós somos
os últimos em termos de representação feminina — lamentou. Em março, a
bancada feminina lançou a campanha “Mais Mulheres na Política”. Além da
PEC 23/2015, que garante 30% das vagas no Poder Legislativo por gênero,
o grupo defende a PEC 24/2015, que torna obrigatória uma vaga por gênero
quando da renovação de dois terços do Senado.

Texto 3

Senado aprova projeto com pena de até 30 anos por estupro coletivo26
Julia Lindner — O Estado de S.Paulo
31 Maio 2016 | 21h 12 — Atualizado: 31 Maio 2016 | 23h 01

BRASÍLIA — Casos recentes de estupro coletivo no Rio de Janeiro e no


Piauí, que ganharam repercussão nacional nos últimos dias, deram fôlego
para a bancada feminina da Câmara e do Senado aprovar projetos de com-
bate à violência contra as mulheres. Nesta terça-feira, 31, os senadores apro-
varam matéria de autoria da senadora Vanessa Graziottin (PCdoB-AM) que
tipifica o estupro coletivo e aumenta a pena para esse tipo de crime de um a
dois terços.
Atualmente, o crime de estupro praticado por uma pessoa tem pena pre-
vista de 6 a 10 anos de prisão. Nos casos de estupro de vulnerável, quando
o crime é praticado contra uma criança, por exemplo, a pena prevista é de
até 15 anos. Pela proposta aprovada, caso o crime seja cometido por duas ou
mais pessoas, a pena poderia chegar a 25 anos. Há ainda a possibilidade de a
pena ser aumentada caso a vítima do estupro morra — para 30 anos.
Uma emenda da relatora Simone Tebet (PMDB-MS) também criminaliza
a publicação, a divulgação ou a distribuição de cena de estupro por qualquer
meio através da internet, com pena de dois a cinco anos de reclusão. O dis-
positivo não consta no Código Penal, apenas no Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA). O projeto do Senado segue para apreciação na Câmara. 26
Senado aprova projeto com pena
Depois, terá que ser aprovado por sanção presidencial. [...] de até 30 anos por estupro coletivo.
O Estado de São Paulo. 31/05/2016.
Manifestação. Antes da votação, com megafone em punho, segurando Disponível em: http://brasil.estadao.
cartazes e gritando palavras de ordem, deputadas e senadoras também fi- com.br/noticias/geral,senado-aprova-
-projeto-que-aumenta-pena-de-
zeram uma manifestação no Congresso para denunciar a violência contra a -estupro,10000054497 Último acesso:
25/07/2016.

FGV DIREITO RIO  153


Direitos Humanos

mulher. Elas planejam agora unir forças para barrar projetos que consideram
prejudiciais à causa.
Um deles é de autoria do presidente afastado da Câmara, Eduardo Cunha
(PMDB-RJ) e do líder do governo na Casa, André Moura (PSC-SE), que
criminaliza quem induzir uma gestante a praticar o aborto. A matéria prevê
ainda que uma vítima de abuso sexual terá que realizar um boletim de ocor-
rência para, só então, ser atendida em uma unidade de saúde.

Texto 427

Cultura machista faz com que vítimas de estupro não reconheçam vio-
lência, diz psicóloga
Camilla Costa — BBC Brasil

Não existe o “grande monstro estuprador”. Na maioria dos casos de vio-


lência sexual, os perpetradores são considerados “homens normais”, que não
acham que cometeram um ato violento. Mas o que exatamente eles pensam?
É o que investiga a brasileira Arielle Sagrillo Scarpati, de 28 anos, que faz
doutorado em psicologia forense na Universidade de Kent, na Inglaterra.
“Quando você olha a literatura sobre o tema, observa que a maioria dos casos
de estupro são cometidos por agressores que não têm nenhuma patologia. A
gente tem essa noção de que o estuprador é um monstro, um psicopata. Mas
na verdade esses homens são o que chamamos de normais, em geral tidos
como pessoas boas, salvo raras exceções. Isso sempre me chamou muito a
atenção”, disse à BBC Brasil.
Scarpati: Enquanto no Brasil há uma cultura machista mais geral, que
abarca qualquer faixa etária, aqui na Inglaterra o fenômeno parece mais forte
nas universidades, que é o que eles chamam de “lad culture”. Para fazer parte
de um grupo na universidade e ser considerado um bom membro, é preciso
fazer certas coisas. Isso inclui muita bebida e, frequentemente, abusar de mu-
lheres em festas. Há uma quantidade de violência sexual altíssima e muitos
desses casos não são reportados. Isso dá a impressão de que a violência sexual
ocorre menos. Tanto na Inglaterra quanto no Brasil a polícia ainda não está
preparada para acolher bem essas vítimas. Aqui os casos andam mais rápido,
os serviços funcionam melhor, mas o acolhimento inicial ainda é ruim. Tra-
balhei como voluntária em um centro de acolhimento de vítimas aqui em
Canterbury e muitas me diziam que preferiam não denunciar para não terem
que ouvir perguntas como “que roupa você estava usando?”, “será que você 27
Cultura machista faz com que vítimas
não provocou?” e “você vai denunciar mesmo, não quer voltar para casa e de estupro não reconheçam violência,
pensar melhor?’“. diz psicóloga. BBC Brasil. 30/05/2016.
Disponível em: http://www.bbc.com/
portuguese/brasil-36402034 Último
acesso em 2507/2016.

FGV DIREITO RIO  154


Direitos Humanos

Por outro lado, o debate a respeito do assunto acontece há mais tempo por
aqui e existe um sistema um pouco mais bem estruturado para dar assistência
à vítima e tratamento ao agressor. Eu vejo muito, por exemplo, uma preocu-
pação com o tratamento dos agressores — o que, infelizmente, a gente ainda
negligencia no Brasil.
Além disso, aqui há diferenças culturais como menor desigualdade de gê-
nero, índices menores de violência e maior participação feminina no mer-
cado, que se refletem na maneira como a violência é perpetrada aqui. Por
exemplo: você nao vê — ou vê raramente — mulheres sendo “puxadas pelo
braço ou pelo cabelo” em uma festa, ou cantadas nas ruas.

TRATADOS E JURISPRUDÊNCIA

CEDAW — Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Dis-


criminação contra a Mulher28
Artigo 2º
Os Estados-parte condenam a discriminação contra a mulher em todas
as suas formas, concordam em seguir, por todos os meios apropriados e sem
dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher,
e com tal objetivo se comprometem a:
a) Consagrar, se ainda não o tiverem feito, em suas constituições nacionais
ou em outra legislação apropriada, o princípio da igualdade do homem e da
mulher e assegurar por lei outros meios apropriados à realização prática desse
princípio;
b) Adotar medidas adequadas, legislativas e de outro caráter, com as san-
ções cabíveis e que proíbam toda discriminação contra a mulher;
c) Estabelecer a proteção jurídica dos direitos da mulher numa base de
igualdade com os do homem e garantir, por meio dos tribunais nacionais
competentes e de outras instituições públicas, a proteção efetiva da mulher
contra todo ato de discriminação;
d) Abster-se de incorrer em todo ato ou prática de discriminação contra
a mulher e zelar para que as autoridades e instituições públicas atuem em
conformidade com esta obrigação;
e) Tomar as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a
mulher praticada por qualquer pessoa, organização ou empresa;
f ) Adotar todas as medidas adequadas, inclusive de caráter legislativo, para
modificar ou derrogar leis, regulamentos, usos e práticas que constituam dis-
criminação contra a mulher; 28
CEDAW – Convenção para a Elimi-
g) Derrogar todas as disposições penais nacionais que constituam discri- nação de todas as Formas de Discrimi-
nação contra a Mulher. Disponível em
minação contra a mulher. : http://www.compromissoeatitude.
org.br/wp-content/uploads/2012/11/
SPM2006_CEDAW_portugues.pdf

FGV DIREITO RIO  155


Direitos Humanos

Artigo 4º
1. A adoção pelos Estados-parte de medidas especiais de caráter temporá-
rio destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não
se considerará discriminação na forma definida nesta Convenção, mas de
nenhuma maneira implicará, como conseqüência, a manutenção de
normas desiguais ou separadas: essas medidas cessarão quando os objeti-
vos de igualdade de oportunidade e tratamento houverem sido alcançados.
2. A adoção pelos Estados-parte de medidas especiais, inclusive as contidas
na presente Convenção, destinadas a proteger a maternidade, não se consi-
derará discriminatória.

Artigo 5º
Os Estados-parte tomarão todas as medidas apropriadas para:
a) Modificar os padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres,
com vista a alcançar a eliminação dos preconceitos e práticas consuetudiná-
rias, e de qualquer outra índole, que estejam baseados na idéia de inferiorida-
de ou superioridade de qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de
homens e mulheres;
b) Garantir que a educação familiar inclua uma compreensão adequada
da maternidade como função social e o reconhecimento da responsabilidade
comum de homens e mulheres no que diz respeito à educação e ao desenvol-
vimento de seus filhos, entendendo-se que o interesse dos filhos constituirá a
consideração primordial em todos os casos.

Artigo 12
1. Os Estados-parte adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar
a discriminação contra a mulher na esfera dos cuidados médicos a fim de
assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, o acesso a
serviços médicos, inclusive os referentes ao planejamento familiar.
2. Sem prejuízo do disposto no parágrafo 1º, os Estados-parte garantirão
à mulher assistência apropriada em relação à gravidez, ao parto e ao perío-
do posterior ao parto, proporcionando assistência gratuita quando assim for
necessário, e lhe assegurarão uma nutrição adequada durante a gravidez e a
lactância.

Artigo 16
1. Os Estados-parte adotarão todas as medidas adequadas para eliminar a
discriminação contra a mulher em todos os assuntos relativos ao casamento
e às relações familiares e em particular, com base na igualdade entre homens
e mulheres, assegurarão:
a) O mesmo direito de contrair matrimônio;

FGV DIREITO RIO  156


Direitos Humanos

b) O mesmo direito de escolher livremente o cônjuge e de contrair matri-


mônio somente com livre e pleno consentimento;
c) os mesmos direitos e responsabilidades durante o casamento e por oca-
sião de sua dissolução;
d) Os mesmos direitos e responsabilidades como pais, qualquer que seja
seu estado civil, em matérias pertinentes aos filhos. Em todos os casos, os
interesses dos filhos serão a consideração primordial;
e) Os mesmos direitos de decidir livre e responsavelmente sobre o número
de seus filhos e sobre o intervalo entre os nascimentos e a ter acesso à infor-
mação, à educação e aos meios que lhes permitam exercer esses direitos;
f ) Os mesmos direitos e responsabilidades com respeito à tutela, curatela,
guarda e adoção dos filhos, ou institutos análogos, quando esses conceitos
existirem na legislação nacional. Em todos os casos os interesses dos filhos
serão a consideração primordial.

Artigo 18
1. Os Estados-parte comprometem-se a submeter ao Secretário-Geral das
Nações Unidas, para exame do Comitê, um relatório sobre medidas legislati-
vas, judiciárias, administrativas ou outras que adotarem para tornarem efetivas
as disposições desta Convenção e sobre os progressos alcançados a esse respeito;
a) No prazo de um ano a partir da entrada em vigor da Convenção para o
Estado interessado; e
b) Posteriormente pelo menos cada quatro anos e toda vez que o Comitê
solicitar.
2. Os relatórios poderão indicar fatores e dificuldades que influam no grau
de cumprimento das obrigações estabelecidas por esta Convenção.

Artigo 21
1. O Comitê, através do Conselho Econômico e Social das Nações Uni-
das, informará anualmente a Assembléia Geral das Nações Unidas de suas
atividades e poderá apresentar sugestões e recomendações de caráter geral
baseada no exame dos relatórios e em informações recebidas dos Estados-
-parte. Essas sugestões e recomendações de caráter geral serão incluídas no
relatório do Comitê juntamente com as observações que os Estados-parte
tenham porventura formulado.
2. O Secretário-Geral transmitirá, para informação, os relatórios do Co-
mitê à Comissão sobre a Condição da Mulher.

Decreto nº 89.460, de 20/03/1984 (Promulga a Convenção sobre a Eli-


minação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, 1979)
Decreto nº 4.316, de 30/07/2002 (Promulga o Protocolo Facultativo à Con-
venção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher)

FGV DIREITO RIO  157


Direitos Humanos

LEITURA OBRIGATÓRIA

MacKinnon, Catharine A. Are Women Human? And Other International


Dialogues.The Belknap Press, Harvard University Press, capítulos 2 (Human
Rights and Global Violence Against Women) e 4 (Are Women Human?).

LEITURA COMPLEMENTAR:

GONÇALVES, Tamara Amoroso. Direitos Humanos Das Mulheres e A Co-


missão Interamericana de Direitos Humanos. Saraiva: São Paulo (2013).* ler
capítulo 2: Gênero e Direitos Humanos: impactos do conceito de gênero no
processo de positivação de direitos humanos das mulheres.

PIOVESAN, Flavia. A proteção internacional dos Direitos Humanos in R.


EMERG, Rio de Janeiro, v. 15, n. 57 (Edição Especial), p. 70 a 89.

MANCINI, Susanna. Patriarchy as the exclusive domain of the other: The


veil controversy, false projection and cultural racism. International Constitu-
tional Law Journal, v. 10 n. 2, 411—428.

LABORDE, Cécile. State paternalism and religious dress code. International


Constitutional Law Journal, v. 10 n. 2, 398—410

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E AS PRÁTICAS INSTITUCIO-


NAIS. Série Pensando o Direito, nº 52 (2015).

VÍDEOS RECOMENDADOS

The Suffragettes (2015) — Sarah Gavron


Sinopse: O início da luta do movimento feminista e os métodos inco-
muns de batalha. Mulheres que enfrentaram seus limites pela causa e desa-
fiaram o Estado extremamente opressor. A história é baseada em fatos reais.

Mustang (2015) — Deniz Gamze

We should all be feminists — Chimamanda Ngozi Adichie: https://


www.youtube.com/watch?v=hg3umXU_qWc

FGV DIREITO RIO  158


Direitos Humanos

AULA 17: ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO

INTRODUÇÃO

As questões relacionadas à orientação sexual e identidade de gênero ga-


nharam destaque e maior força para debate apenas nos últimos anos, propul-
sionadas por casos relacionados, por exemplo, à adoção, à criminalização da
homofobia e ao casamento homoafetivo. Com frequência o tema é tratado de
maneira inadequada, sendo o uso errôneo de termos a ele relacionados uma
das principais questões merecedoras de atenção. Por esse motivo, vale iniciar
esta aula expondo alguns conceitos. Embora as definições abaixo não sejam
absolutas, com possíveis interpretações diferentes a depender do posiciona-
mento de quem trata do tema, são um bom ponto de referência.
Primeiramente, orientação sexual — e não opção sexual, tendo em vista
que não se trata de uma escolha — é expressão que diz respeito à atração, ao
desejo sexual do indivíduo. Nesse sentido, as pessoas podem ser heterossexu-
ais, bissexuais, homossexuais, pansexuais ou assexuais. Identidade de gênero,
por outro lado, guarda relação com a forma como a pessoa se vê, isto é, como
se identifica em relação ao gênero. Fala-se, nesses casos, em pessoas trans ou
transgênero (ou seja, cuja identidade de gênero é diversa do sexo genético),
pessoas cis ou cisgênero (pessoas cuja identidade de gênero é a mesma do sexo
genético) e intersexuais (indivíduos que apresentam características genéticas
de ambos os sexos). Há, ainda, pessoas de identidade não-binária, isto é, que
não se identificam com o gênero masculino nem feminino.
Nesse sentido, cabe destacar que homofobia é a aversão a pessoas de orien-
tação sexual diversa da heterossexual; e transfobia é a aversão a pessoas de
identidade de gênero diversa da cisgênero. Quanto à imposição de padrões de
orientação e identidade, fala-se, respectivamente, em heteronormatividade e
cisnormatividade. Há, por fim, diversas siglas habitualmente utilizadas para
tratar de toda uma coletividade que sofre discriminação e tem seus direitos
frequentemente cerceados. A mais comum é LGBT (Lésbicas, Gays, Bisse-
xuais e Transexuais), mas há outras formas, como é o caso de LGBTTT (que
inclui Travestis e Transgêneros), GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes, mais
anacrônica e usada como forma de se referir a um segmento de mercado
específico, como “boate GLS”) e LGBTI (em que a letra “T” engloba Tran-
sexuais, Transgêneros e Travestis e a letra “I” representa os Intersexuais). Esta
última, por ser mais inclusiva, será a utilizada nesta aula.
No que diz respeito a igualdade buscada pela classe LGBTT, ela deve ser
tanto em termos de um direito substantivo à igualdade e em termos de igual-
dade perante a lei. De modo que a mera existência de uma lei sobre a crimi-
nalização da orientação sexual constitui uma violação do direito de um indi-

FGV DIREITO RIO  159


Direitos Humanos

víduo à privacidade. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos


de 1966 (PIDCP) protege tanto o direito à privacidade, nos termos do artigo
17, e igualdade processual e substantiva, tendo o comitê concluído que a
moralidade pública era um objetivo insuficiente para justificar a limitação do
direito à privacidade.

OS DIREITOS LGBTI E A ESPECIFICAÇÃO DOS SUJEITOS DE DIREITO

Na esteira da tendência à especificação dos sujeitos de direito, muito se


discutiu nas últimas décadas sobre a efetividade dos tratados e declarações
de Direito Internacional dos Direitos Humanos na proteção de indivíduos
contra a discriminação e outras ameaças decorrentes de orientação sexual e
identidade de gênero. Muitas vezes, apontava-se a possibilidade de aplicar
por analogia algumas disposições da Convenção Internacional sobre a Elimi-
nação de todas as Formas de Discriminação Racial.
Tais debates levaram o Brasil a apresentar, em 2003, uma moção suge-
rindo a emissão de resolução pela garantia de direitos às pessoas LGBTI na
então Comissão de Direitos Humanos da ONU. A recepção foi bem dividi-
da. Por um lado, a empreitada foi amplamente apoiada por países da Europa
e das Américas, em especial a América Latina. No entanto, houve reação
imediata por parte dos membros da Organização da Conferência Islâmica e
de boa parte dos países da África Subsaariana. O Paquistão e outras nações
interpuseram diversas emendas e moções, na tentativa de bloquear a inicia-
tiva. A representação brasileira, deixando de promover qualquer debate após
protocolar sua sugestão, acabou por retirá-la em 2005.
No entanto, a iniciativa brasileira foi de grande importância para os anos
seguintes. Como resultado, em 2006 realizou-se uma conferência sobre o
tema em Yogyakarta, Indonésia, copresidida por representantes da Tailândia
e do Brasil. E foi desta reunião que emanaram os Princípios de Yogyakarta,
declaração lançada em 2007 que tem como objetivo orientar a aplicação de
diplomas legais internacionais a situações envolvendo a violação de direitos
individuais em função de orientação sexual e identidade de gênero.
Para compreender melhor seus objetivos, vale a leitura da introdução ao
documento, reproduzida abaixo.

“Introdução aos Princípios de Yogyakarta


Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
Todos os direitos humanos são universais, interdependentes, indivisíveis e
inter-relacionados. A orientação sexual e a identidade gênero são essenciais
para a dignidade e humanidade de cada pessoa e não devem ser motivo de
discriminação ou abuso.

FGV DIREITO RIO  160


Direitos Humanos

Muitos avanços já foram conseguidos no sentido de assegurar que as pes-


soas de todas as orientações sexuais e identidades de gênero possam viver com
a mesma dignidade e respeito a que todas as pessoas têm direito. Atualmen-
te, muitos Estados possuem leis e constituições que garantem os direitos de
igualdade e não-discriminação, sem distinção por motivo de sexo, orientação
sexual ou identidade de gênero”.
No ano de 2008, por iniciativa da França e da Holanda, foi apresentada
a proposta de uma Declaração das Nações Unidas sobre Direitos Humanos,
Orientação Sexual e Identidade de Gênero. Esta deveria ser, na realidade,
uma resolução, mas a ideia foi abandonada ao se deparar com quórum insu-
ficiente para sua aprovação e uma reação da Liga Árabe que deu origem a pro-
posta de declaração em sentido contrário. Nenhuma das duas acabou sendo
adotada pela Assembleia Geral. Uma resolução sobre o tema só foi aprovada
anos depois, em 2011, pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU […].

ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO: DECISÕES E


LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA

Além do importante reconhecimento que representam os Princípios de


Yogyakarta e os documentos internacionais que os seguiram, cabe lembrar
também a relevância das cortes nacionais e internacionais na garantia dos
direitos LGBTI. A Corte Europeia de Direitos Humanos possui extensa ju-
risprudência em diversos desdobramentos do tema. Há casos de violência
policial, adoção, licença-maternidade para casal homoafetivo, união civil,
previdência, liberdade de expressão de ativistas, alteração de nome no registro
civil, cirurgia de redesignação sexual etc.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, por sua vez, apenas teve
a oportunidade de lidar com o assunto no caso Atala Riffo e filhas v. Chile.
Pode-se mencionar, ainda, a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF
132, em julgamento conjunto com a ADI 4277, em que se decidiu pela
interpretação conforme a Constituição do artigo 1.723 do Código Civil de
forma que não se vedasse o reconhecimento da união entre pessoas do mes-
mo sexo como entidade familiar. Este verdadeiro leading case da Corte veio
acompanhado da resolução 175/13 do CNJ, determinando a obrigatorie-
dade, por parte das autoridades competentes, de realizar casamento civil e
converter união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo.
O Supremo também decidiu, em oportunidade recente, sobre a adoção
por casais homoafetivos. No RE 846.102/PR, a Ministra Cármen Lúcia exa-
rou decisão monocrática garantindo o direito à adoção e alegando que “a
Constituição Federal não faz a menor diferenciação” entre os casais que ado-
tam quanto a sua orientação sexual.

FGV DIREITO RIO  161


Direitos Humanos

Por fim, há três bons exemplos de alteração legislativa que visam a uma
mais ampla garantia de direitos a pessoas LGBTI. Um caso é o PL 122/06,
protocolado pela Deputada Iara Bernardi (PT/SP), que busca criminalizar
a homofobia. Segundo exemplo é o PL 5.120/13, de autoria do Deputado
Federal Jean Wyllys (PSOL/RJ) e da Deputada Federal Érika Kokay (PT/
DF), que realiza as devidas alterações legislativas para o reconhecimento do
casamento civil homoafetivo. Por fim, há o PL 5.002/13 — a chamada Lei
João W. Nery ou Lei de Identidade de Gênero —, de mesma autoria que o
anterior, que visa a facilitar a alteração de dados no registro civil para pessoas
trans.

NOTÍCIAS

Texto 1

Criança de 9 anos é a primeira no Brasil a ser autorizada pela Justiça


a mudar de nome e gênero29
Por: Adriana Farias, em 29/01/2016. Revista Veja SP.

A Justiça do Mato Grosso determinou nesta quinta (28) a mudança de


nome e de gênero para o feminino nos documentos de uma criança transe-
xual de 9 anos de idade. Segundo decisão do juiz Anderson Candiotto, “a
personalidade da criança, seu comportamento e aparência remetem, impres-
cindivelmente, ao gênero oposto de que biologicamente possui, conforme se
pode observar em todas as avaliações psicológicas e laudos proferidos pelo
Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual,
do Instituto de Psiquiatria, do Hospital das Clínicas de São Paulo, eviden-
ciando a preocupação dos pais em buscar as melhores condições de vida para
a criança”.
Trata-se da estudante Luiza, de 9 anos, que antes se chamava Leandro. Ela
é a primeira criança transexual do Brasil a receber essa autorização da Justi-
ça. A pedido da família os nomes utilizados são ficticios para preservar suas
identidades.
“Assim que saiu a reportagem da Vejinha, o nosso defensor público ane-
xou-a junto ao processo, o que ajudou a acelerar porque foi a maior reper-
cussão entre os magistrados. O juiz conversou com a Luiza no mês seguinte
à publicação da matéria”, relata o pai. 29
Criança de 9 anos é a primeira no
“Agora que deu certo a felicidade é muito grande, já imagino quando ela Brasil a ser autorizada pela Justiça a
mudar de nome e gênero. Veja São
for arrumar emprego ou casar vai ser tudo mais fácil”, completa a mãe Be- Paulo. 29/01/2016. Disponível em :
atriz. “A gente ficou surpreso porque nem transexuais adultos, que estão há http://vejasp.abril.com.br/materia/
crianca-transexual-primeira-justica-
anos tentando na Justiça, conseguiram o que ela conseguiu” -nome-genero-mudanca Último aces-
so: 25/07/2016

FGV DIREITO RIO  162


Direitos Humanos

Os detalhes da primeira consulta no Hospital das Clínicas (HC) não es-


capam da memória de Beatriz. O comportamento feminino do mais novo de
seus dois filhos fez com que ela e o marido buscassem ajuda no Ambulatório
Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual. Eles carrega-
ram fotos de Leandro, então com 4 anos e 10 meses, em diversas situações:
em algumas, usando os trajes de garoto presentes em seu guarda-roupa e, em
outras, peças e maquiagens encontradas no armário da mãe. Na triagem, o
psiquiatra Alexandre Saadeh apontou para uma imagem do caçula em trajes
masculinos e perguntou a ele: “Quem é nessa foto?”. A resposta veio na lata:
“Sou eu vestida de menino”.

Texto 2

Pela primeira vez, STF reconhece direito de adoção por casais homos-
sexuais
Documento assinado pela ministra Carmen Lúcia diz que “a Constituição
Federal não faz a menor diferenciação” entre casais heterossexuais e homoafetivos
19/03/15 — Zero Hora

Em uma decisão histórica e inédita, a ministra Carmen Lúcia, do Su-


premo Tribunal Federal, reconheceu o direito de um casal homossexual de
adotar uma criança. É a primeira vez que o STF se posiciona favoravelmente
sobre o assunto. O acórdão, referente à decisão de 5 de março, foi publicado
apenas nesta quinta-feira — e fez com que os mineiros Toni Reis e David
Harrad saíssem imediatamente para comemorar.
— Estamos felizes demais com essa decisão da ministra, que, de uma vez
por todas, dá fim à discussão. Nós somos uma família, sim — comemora
Toni, professor de 50 anos, casado com o tradutor David há 25 anos. De
acordo com a jurista Maria Berenice Dias, integrante do Instituto Nacional
de Direito de Família, a posição do STF se destaca por abrir um precedente
que deve ser levado em consideração nos próximos processos sobre o mesmo
assunto — jurisprudência vinculante, nos termos técnicos.
— Isso é importante, principalmente num momento em que o presidente
da Câmara, Eduardo Cunha, tenta desencavar de maneira retrógrada o proje-
to do Estatuto da Família. Eu espero que refreie essa tendência conservadora.
A adoção já vem sendo admitida, juízes têm habilitado casais homossexuais a
adotar, mas a Corte Suprema ainda não havia se manifestado. E o Supremo
é o Supremo. Estabelece uma jurisprudência que acaba sendo vinculante —
avalia jurista, conhecida por defender os direitos dos homossexuais.
O último grande passo da justiça brasileira nos direitos homossexuais foi
dado em 2011, quando o STF julgou a legalidade da união estável entre duas

FGV DIREITO RIO  163


Direitos Humanos

pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, com direitos e deveres iguais
aos da união estável heterossexual. Como a Constituição prevê a conversão
da união estável em casamento, abriu-se a possibilidade de consolidação do
casamento gay. Em 2006, o Tribunal de Justiça gaúcho já havia admitido a
adoção por duas pessoas do mesmo sexo, o que foi confirmado pelo STJ só
em 2010.[...]

Texto 3

Enquete sobre Estatuto da Família chega a um milhão de acessos30


Câmara dos Deputados — Agência Câmara

A enquete sobre o projeto de lei que trata do Estatuto da Família (PL


6583/13) obteve, desde o dia 11 de fevereiro — quando foi incluída no por-
tal da Câmara dos Deputados — até quinta-feira passada (22), um milhão de
votos. A enquete questiona se o votante concorda com a definição de família
como o núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, prevista no
projeto. Por enquanto, 62,83% dos participantes votaram a favor do projeto;
36,8%, contra; e 0,37% disseram não ter opinião formada.
A pesquisa gerou efeito viral nas mídias sociais e soma o maior número de
votos em enquetes promovidas pelo Portal da Câmara dos Deputados.
O Estatuto da Família define entidade familiar como o núcleo social for-
mado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio do casa-
mento ou união estável. Também considera família a comunidade formada
por qualquer dos pais e seus descendentes, como uma viúva ou viúvo com
30
Enquete sobre Estatuto da Famí-
seus filhos e um divorciado ou mãe solteira com seus dependentes. lia completa um milhão de acessos.
O projeto do Estatuto propõe que a família receba assistência especializada Câmara Notícias. 23/05/2014 . Dis-
ponível em : http://www2.camara.
para o enfrentamento de problemas, como drogas e gravidez prematura, e em leg.br/camaranoticias/noticias/
POLITICA/468742-ENQUETE-SOBRE-
demandas que ponham em risco a preservação e a sobrevivência da entidade -ESTATUTO-DA-FAMILIA-COMPLETA-
-UM-MILHAO-DE-ACESSOS.html , últi-
familiar. No entanto, o que tem gerado polêmica é a definição de entidade mo acesso em 25/07/2016.
familiar como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher. 31
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA CON-
SELHO NACIONAL DE COMBATE À
DISCRIMINAÇÃO. RESOLUÇÃO CON-
JUNTA Nº 1, DE 15 DE ABRIL DE 2014.
LEX Magister. DOU de 17/04/2014.
TRATADOS E JURISPRUDÊNCIA Disponível em: http://www.lex.com.
br/legis_25437433_RESOLUCAO_
CONJUNTA_N_1_DE_15_DE_ABRIL_
RESOLUÇÃO CONJUNTA Nº 1, DE 15 DE ABRIL DE 2014. CON- DE_2014.aspx - , último acesso em
25/07/2016.
SELHO NACIONAL DE COMBATE À DISCRIMINAÇÃO.31 32
CORTE INTERAMERICANA DE DERE-
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso CHOS HUMANOS. CASO ATALA RIFFO Y
NIÑAS VS. CHILE SENTENCIA DE 24 DE
Atala Riffo y Niñas VS. Chile (Sentencia). 32 FEBRERO DE 2012. (Fondo, Reparacio-
nes y Costas). Disponível em: http://
www.corteidh.or.cr/docs/casos/arti-
culos/seriec_239_esp.pdf - , último
acesso em 25/07/2016.

FGV DIREITO RIO  164


Direitos Humanos

PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA. PRINCÍPIOS SOBRE A


APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL DE DIREITOS
HUMANOS EM RELAÇÃO À ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDA-
DE DE GÊNERO.33

LEITURA OBRIGATÓRIA

Caso ATALA RIFFO Y NIÑAS VS. CHILE. Corte Interamericana de Direi-


tos Humanos, 24 de fevereiro de 2012. Resumo em espanhol disponível em
<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_239_esp.pdf>, úl-
timo acesso em 25/07/2016. Páginas 1 a 9.

LEITURA COMPLEMENTAR:

LEMAITRE RIPOLL, Julieta. O amor em tempos de cólera: direitos LGTB


na Colômbia. Sur — Rev. int. direitos humanos, 2009, vol.6, n.11, pp. 78-97.

STYCHIN, Carl. Faith in the Future: Sexuality, Religion and the Public Sphe-
re. Oxford Journal of Legal Studies, Vol. 29, No. 4 (2009), pp. 729—755.

BAMFORTH, Nicholas. Sexuality and citizenship in contemporary consti-


tutional argument. International Constitutional Law Journal (2012), v. 10
n. 2, 477—492.

COWELL, Frederick; MILON, Angelina. Decriminalisation of Sexual


Orientation through the Universal Periodic Review. Human Rights Law Re-
view v. 12 n. 2 (2012).

VÍDEO

Trecho do Episódio 2 do programa “Stephen Fry: Out There” (BBC, 2013)

INDICAÇÃO CINEMATOGRÁFICA:
33
PRINCÍPIOS SOBRE A APLICAÇÃO
“The Danish Girl” de Tom Hooper. Pintor dinamarquês Einar Wegener DA LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS EM RELAÇÃO À
que, em 1931, foi uma das primeiras pessoas a se submeter a uma cirurgia de ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE
GÊNERO . Disponível em: http://www.
mudança de sexo, tornando-se uma mulher e passando a se chamar Lili Elbe. ypinaction.org/files/01/37/princi-
pios_yogyakarta.pdf - , último acesso
em 25/07/2016.

FGV DIREITO RIO  165


Direitos Humanos

AULA 18: CRIANÇA E ADOLESCENTE

Nessa aula debateremos o que a comunidade internacional reconheceu


como sendo uma tarefa fundamental, a proteção dos direitos e garantias fun-
damentais de crianças e adolescentes, igualmente sujeitos de direitos huma-
nos.
Em 1989 conclui-se a Convenção dos Direitos da Criança, momen-
to de ápice no reconhecimento desses direitos, ela consagra em seu art. 1°
como criança “[...] todo ser humano com menos de dezoito anos de idade,
a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maiorida-
de seja alcançada antes”. Vale ressaltar também que o documento não faz
diferenciação, como é habitual nas legislações internas, entre a criança e o
adolescente.
A grande inovação trazida pela Convenção dos Direitos da Criança foi
o fato de reconhecer à criança todos os direitos e liberdades previstos na
Declaração dos Direitos Humanos, ao mesmo tempo em que deixa claro que
a criança apresenta certas especificidades, o que torna necessário um nível
especial de proteção — inclusive judicial — e de cuidados.
Deixando claro, assim, que a criança é verdadeiro sujeito de direito. Do
fato de a criança ter um certo grau de incapacidade civil, surge a necessidade
de se enfatizar a independência da criança com relação aos direitos huma-
nos, ela os detém como sujeito autônomo, independente da proteção de um
adulto.
Existem 3 Grupos de aplicação do Direito:

— Direitos que se estendem para crianças e adultos: vida, liberdade de


expressão, educação, devido processo legal, não-discriminação...
— Direitos que se estendem para os adultos, mas não para crianças:
voto, autonomia para tomar decisões de forma independente, di-
reito à auto-determinação...
— Direitos que se estendem apenas às crianças: brincar, melhor interes-
se da criança...

Os principais princípios trazidos pela convenção foram os seguintes:

(1) Aplicação Universal: todos os direitos da Convenção se aplicam a


todas as crianças, sem qualquer tipo de discriminação;
(2) Interesse da Criança: Todas as aches públicas ou privadas devem
considerar, primordialmente, o melhor interesse da criança;
(3) Desenvolvimento: direito à vida, sobrevivência e condições de de-
senvolvimento intelectual, físico e afetivo;

FGV DIREITO RIO  166


Direitos Humanos

(4) Opinião: crianças capazes de expressar uma opinião têm o direito de


se expressar livremente e serem levados à serio, de acordo com sua
idade e maturidade.

O maior problema que pode ser detectado na convenção é sua pretensão


universal, mas seu viés ocidental captado pela ênfase aos direitos individuais.
Apesar de ter contado com o apoio unânime dos países-membros das Na-
ções Unidas na fase de assinatura, em sua etapa seguinte de ratificação, os
Estados Unidos e a Somália foram omissos em assumir este compromisso. O
que não impediu, a Convenção de entrar em vigor em setembro de 1990, e
contou com um altíssimo grau de adesão.
O documento representa um patamar inédito de reconhecimento desses
direitos, servindo não só como parâmetro internacional como também de
molde para a elaboração de diplomas legais nacionais.
O Brasil, curiosamente, foi um dos países, com uma das respostas mais
imediatas à Convenção: já no ano seguinte, em 1990, foi promulgado o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Outros países, como França,
Argentina, Uruguai e Paraguai, também trouxeram legislação específica, em-
bora mais tardia. Cabe ressaltar que é esperado dos governos a implementa-
ção os direitos da Convenção sem discriminação (a); fazer a convenção ser
amplamente conhecida por crianças e adultos(b); e informar regularmente o
Comitê sobre os Direitos da Criança em seu território (c).
Assim, nesta aula, abordaremos as principais características da Convenção
dos Direitos da Criança, as inovações que trouxe ao Direito Internacional
dos Direitos Humanos, sua influência no ordenamento jurídico brasileiro e
algumas posições da Corte Interamericana sobre os direitos na infância e da
juventude.

A CONVENÇÃO E SUAS PECULIARIDADES

Um primeiro fator que precisa ser destacado é o conceito de “criança” para


a Convenção de 1989. De acordo com seu Artigo 1, “[...] considera-se como
criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que,
em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada
antes”. Ou seja: na ausência de disposição em sentido contrário, criança é ter-
mo que inclui todos os indivíduos até os dezoito anos de idade, estabelecido
aqui como um parâmetro de referência internacional para definir o momento
em que será atingida a maioridade. Assim, apesar de não tornar obrigatória a
adoção deste marco temporal, a Convenção parece sugerir que esta seria a me-
lhor opção. Interessante, ainda, é observar que o documento não faz diferença,
como é habitual nas legislações internas, entre a criança e o adolescente.

FGV DIREITO RIO  167


Direitos Humanos

Além disso, uma grande inovação da Convenção dos Direitos da Criança


é também um dos principais elementos para sua ampla aceitação: o fato de
reconhecer à criança todos os direitos e liberdades previstos na Declaração
dos Direitos Humanos. No entanto, apesar de trazer esta gama de liberda-
des, também deixa claro que a criança apresenta certas especificidades, o que
torna necessário um nível especial de proteção — inclusive judicial — e de
cuidados. Foi nesta dualidade, assim como no conflito entre a busca pela uni-
versalidade e a influência inegável das raízes ocidentais sobre a Convenção,
que diversos especialistas focaram suas críticas e seus estudos. Em boa síntese,
Rosemberg e Mariano (2010) destacaram que:
“Analistas da Convenção de 1989 discutem suas tensões intrínsecas, espe-
cialmente sob duas perspectivas: sua pretensão universal, mas seu viés ociden-
tal captado pela ênfase aos direitos individuais (Boyden, 1997); a promulga-
ção simultânea de direitos à proteção, à provisão e de direitos de liberdade,
expressão e participação (Soares, 1997).
A tensão entre diferentes concepções de direitos da criança, observada na
Convenção de 1989, tem provocado instigante debate entre filósofos, juristas
e sociólogos, especialmente europeus. Desse debate emergem duas posições:
por um lado, um compromisso com a vertente da proteção,

[…] “sustentada pela ideia que a educação seria a única via que
pode tirar a criança de sua vulnerabilidade para que tenha acesso à
autonomia; por outro, uma corrente defendida pelos “artesãos da au-
todeterminação” que pedem uma mobilização em torno dos direitos
do homem na criança. (Théry, apud Sirota, 2001, p.20). Esta última
denominada, comumente, posição filosófico-política “protecionista”
(ou paternalistas) e “liberacionista” (ou autonomista). Conforme foi
possível rastrear, tais posições, cristalizadas pelos debates em torno da
Convenção de 1989, se conformaram muito mais cedo no século XX.”

Apesar destes debates sobre pontos de vista aparentemente conflitantes


trazidos pela Convenção, pode-se destacar que quatro são os grandes princí-
pios norteadores que devem guiar a interpretação de seu conteúdo:

(i) a não discriminação, isto é, a garantia de tratamento igual a todos os


sujeitos de direito por ela tutelados;
(ii) o melhor interesse da criança, devendo-se escolher sempre a opção
capaz de promover seu bem-estar e sua formação como indivíduo
nos planos afetivo, psicológico e social;
(iii) o direito à sobrevivência e ao desenvolvimento, assegurando que
todas as crianças tenham uma vida digna e saudável, sem exposição
a doenças, guerras e fome; e

FGV DIREITO RIO  168


Direitos Humanos

(iv) o respeito à opinião da criança, trazendo para sua esfera jurídica a


liberdade de expressão — aspecto comumente saudado como uma
das principais inovações da Convenção.

Em suma, os direitos reconhecidos pela Convenção de 1989 podem ser


esquematizados da seguinte forma:

Para assegurar o fiel cumprimento dos compromissos assumidos


pelas nações que promoveram sua ratificação, o documento definiu
ainda a instituição de um Comitê dos Direitos da Criança no interior
da ONU. Este Comitê é responsável pelo monitoramento dos países-
-membros da Convenção, sobretudo por meio dos relatórios periódicos
enviados pelas próprias delegações nacionais.

O BRASIL E A CONVENÇÃO

Quando se discutem as relações entre o Brasil e a Convenção dos Direitos


da Criança, diversos são os fatores que precisam ser ressaltados. Primeira-
mente, algo que merece destaque é a relativa rapidez com que se promulgou
internamente o pacto: já em novembro de 1990, apenas dois meses após sua
entrada em vigor no plano internacional, o Estado brasileiro incorporou o
documento em seu ordenamento jurídico por meio do Decreto 99.710/90.
Vale mencionar que já no ano anterior, havia sido criado o Ministério da
Criança.
Além disso, um segundo elemento é a influência que o processo de elabo-
ração da Convenção, em curso entre os anos de 1979 e 1989, exerceu sobre
a elaboração do artigo 227 da Constituição de 1988. Antes da EC 65/10,
que incluiu referência ao “jovem” como sujeito de direitos — além da crian-
ça e do adolescente, já presentes desde a Constituinte — este dispositivo
apresentava a seguinte redação:”Art. 227. É dever da família, da sociedade e
do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionaliza-
ção, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discri-
minação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (grifamos)
Como se pode observar neste artigo, há um rol de direitos, garantias e li-
berdades que devem ser assegurados à criança (e ao adolescente, uma vez que
a legislação brasileira faz esta diferenciação), demonstrando clara influência
dos debates que se observavam à época no seio da ONU. Estão presentes,
assim, tanto os direitos civis e políticos quanto os econômicos e sociais e os
especiais, conforme divisão na tabela anteriormente trazida.

FGV DIREITO RIO  169


Direitos Humanos

Por fim, outro marco normativo nacional que merece destaque é o Estatu-
to da Criança e do Adolescente (Lei 8.069), promulgado em 1990, um ano
após a Convenção. Não obstante, em seu artigo 2º, o legislador logo introdu-
ziu um fator que diverge do documento internacional: para o ECA, criança
é toda pessoa com menos de 12 anos e adolescente é aquela que se encontra
com mais de 12 e menos de 18 anos. Não há, portanto, a reunião dos dois
grupos sob uma única categoria normativa.
Ademais, este diploma legal trouxe consigo não apenas um reflexo das
previsões constitucionais dos artigos 227 a 229, mas uma série de deveres
da sociedade e do Poder Público para com crianças e adolescentes e novos
direitos que a estes deveriam ser assegurados. Trata-se também de verdadeiro
microssistema jurídico, com disposições que vão da enumeração de direitos
à tipificação de crimes praticados contra menores, passando por temas como
adoção, Conselhos Tutelares, atos infracionais e medidas socioeducativas.
Cabe destacar que, além da Declaração dos Direitos da Criança, o ECA
traz também conteúdo concernente às Regras de Beijing (Regras Mínimas
das Nações Unidas para Administração da Justiça da Infância e da Juventude)
e às Diretrizes das Nações Unidas para Prevenção da Delinquência Juvenil.

OS DIREITOS DA CRIANÇA NO SISTEMA INTERAMERICANO

Não é raro que um caso em que haja violação dos direitos da criança seja
levado ao Sistema Interamericano. De fato, a própria Convenção Americana
de Direitos Humanos prevê, em seu artigo 19, que: “[t]oda criança terá direi-
to às medidas de proteção que a sua condição de menor requer, por parte da
sua família, da sociedade e do Estado.”
Assim, embora apresente uma redação bastante breve e ampla, a mera
existência desse dispositivo já tem importância fundamental no direciona-
mento de casos para solução perante a Comissão e a Corte. Inclusive, o fato
de ser um artigo de sentido relativamente aberto permite que a Corte, em úl-
tima instância, decida quanto ao conteúdo deste direito e à forma como deve
ser entendido e aplicado. Nesse processo de interpretação, frequentemente
remete-se à Convenção dos Direitos da Criança de 1989, verdadeira refe-
rência internacional na disposição sobre o tema. Desta forma, foi construída
uma jurisprudência que, entre outras características, define o artigo 19 como
direito de implementação progressiva, voltado para um grupo vulnerável,
guiado pelo interesse superior da criança e pertencente a um corpus iuris in-
ternacional — o que inclui o documento de 1989.
Em 2002, a Corte emitiu sua Opinião Consultiva de nº 17 (OC-17/02),
que trata da Condição Jurídica e dos Direitos da Criança. Nesta decisão, não
deixou de citar a Convenção e tratou de diversos temas, como a igualdade, o

FGV DIREITO RIO  170


Direitos Humanos

interesse superior da criança (no ordenamento jurídico brasileiro, conhecido


como “melhor interesse do menor”), o papel da família e do Estado e ques-
tões processuais nos âmbitos judicial e administrativo. Em suma, podem ser
destacados oito pontos principais da opinião:

(i) a Corte entende como “criança” todo menor de 18 anos, salvo dispo-
sição legal em contrário;
(ii) as crianças são titulares de direitos e a elaboração normativa deve
levar em conta o “interesse superior da criança”, critério que inclui
seu desenvolvimento e o exercício pleno de seus direitos;
(iii) o princípio da igualdade não impede a existência de um tratamento
diferenciado às crianças, contanto que seja em função de suas con-
dições especiais;
(iv) o Estado deve apoiar a família, ambiente primordial de desenvolvi-
mento da criança, favorecendo sua permanência no núcleo familiar;
(v) a separação entre da criança em relação a seu núcleo familiar deve ser
excepcional e temporal;
(vi) no caso das crianças, o direito à vida compreende a obrigação de
adotar medidas específicas para garantir seu desenvolvimento em
condições dignas;
(vii) os procedimentos judiciais e administrativos a respeito dos direitos
da criança devem observar o devido processo legal; e
(viii) os menores de 18 anos que tenham cometido algum delito devem
ser processados em órgãos jurisdicionais distintos daqueles destina-
dos aos maiores de idade.

NOTÍCIAS

Texto 1

STJ: Em ação de guarda de menor deve prevalecer o melhor interesse


da criança 34
Jornal da Ordem — Rodney Silva

A 3ª Turma do STJ manteve a decisão que garantiu a guarda da criança de


8 anos para a mãe, por ela oferecer as melhores condições para o seu sustento
e educação, bem como para o desenvolvimento físico, mental, moral, espiri- 34
STJ: Em ação de guarda de menor
tual e social da criança. deve prevalecer o melhor interesse da
criança. Jornal da Ordem. 06/03/09.
O pedido de guarda pelo pai de uma menina de 8 anos foi aceito em pri- Disponível em: http://www.jornal-
meira instância. Quanto à regularização de visitas, ficou estabelecido que a daordem.com.br/noticia-ler/stj-em-
-acao-guarda-menor-deve-prevalecer-
mãe poderia visitar a filha todo final de semana. Estabeleceu, ainda, que as -melhor-interesse-crianca/13512,
último acesso em 25/07/2016.

FGV DIREITO RIO  171


Direitos Humanos

férias escolares seriam divididas em períodos iguais para ambos, bem como a
comemoração do dia dos pais e das mães e do aniversário da menor.
A mãe contestou a decisão do TJAC, sustentando que a guarda da filha
sempre ficou a seu cargo e que possui as melhores condições para exercê-la.
Requereu, por fim, a condenação do pai nas penas de litigância de má-fé, por
ter alterado a verdade dos fatos. No STJ, ao analisar o recurso do pai, a rela-
tora do caso, ministra Nancy Andrighi, destacou que, neste processo, não se
está tratando do direito dos pais à filha, mas sim, e sobretudo, do direito
da menina a uma estrutura familiar que lhe confira segurança e todos os
elementos necessários a um crescimento equilibrado.
Segundo Nancy, as partes devem pensar de forma comum no bem-estar da
menor, sem intenções egoísticas, para que ela possa usufruir harmonicamente
da família que possui, tanto a materna quanto a paterna, porque toda criança
ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família, con-
forme dispõe o artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Para a ministra, se a decisão do TJAC atesta que a mãe oferece as melhores
condições de exercer a guarda da criança, deve a relação materno-filial ser
preservada, sem prejuízo da relação paterno-filial, assegurada por meio do
direito de visitas. Assim, ficou definido que melhores condições para o exer-
cício da guarda significam, para além da promoção do sustento, objeti-
vamente, maior aptidão para propiciar ao filho afeto, saúde, segurança e
educação, considerado não só o universo genitor-filho, como também o
do grupo familiar em que está a criança inserida.
Fonte: STJ

Texto 2

A Pedalada Constitucional de Eduardo Cunha35


3 de Julho, 2015, Por Michael Mohallem, Professor da FGV Direito Rio

A segunda votação da redução da maioridade penal pela Câmara, pouco


depois de tê-la rejeitado, torna inútil uma norma da Constituição.
A maturação de qualquer iniciativa legislativa — especialmente uma pro-
posta de emenda constitucional — não se dá através de um processo de erro e
acerto no calor do plenário. A definição do melhor texto, da melhor fórmula
— se tráfico, crime hediondo ou redução linear, no caso da PEC da maio-
ridade penal —, são justamente questões para a Comissão Especial sobre o
tema, onde não há qualquer limitação de novo voto de matérias rejeitadas.
Quem coloca uma PEC em votação para “ver se cola” deve assumir esse
risco. Como Eduardo Cunha deu ultimato à Comissão e apressou a votação Artigo disponível em <http://jota.
35

uol.com.br/a-pedalada-constitucional-
em plenário, é razoável supor que sabia do perigo de que, se derrotada, a -de-eduardo-cunha> último acesso
em 25/07/2016.

FGV DIREITO RIO  172


Direitos Humanos

matéria voltasse para a geladeira. Se o presidente da Câmara pode colocar a


proposta em votação quando quiser, não o pode fazer quantas vezes quiser.
São as regras do jogo democrático que, se quebradas, pedem intervenção do
Supremo.
Agora, superada essa etapa na Câmara e seguindo o mesmo roteiro da
PEC do financiamento empresarial para partidos políticos, o assunto segue
para o Supremo. Como regra geral, o STF não deve interferir no processo le-
gislativo. Mas emendas à Constituição são um caso à parte e as exigências são
maiores. O §5º do art. 60, até então raramente discutido, conjuga em si dois
importantíssimos freios institucionais. Ao mesmo tempo em que limita o po-
der de agenda do presidente da casa legislativa, acrescenta cautela adicional à
votação de PEC. Impõe um custo para quem mudar a Constituição. É como
se o artigo dissesse: “pense bem se essa PEC deve ser votada, com esse texto,
neste momento; se for derrotada, só no ano que vem”. É um mecanismo de
autopreservação da Constituição.
Mas, a depender de sua jurisprudência recente, é possível que o STF come-
ta um erro. Os ministros vinham entendendo que as votações de proposições
acessórias de emenda e da emenda em si são coisas diferentes, de modo que
votá-las sequencialmente não ofenderia a Constituição (p.ex., MS 22.503,
MS 33630). O presidente da Câmara defendeu entendimento semelhante.
Posições desse tipo devem ser rejeitadas. Aceitá-las levaria ao absurdo de
termos, pelas mãos do próprio STF, um artigo constitucional sem nenhuma
eficácia. Na interpretação de Cunha, e no que parece ser o entendimento de
vários ministros, a única hipótese de que uma segunda votação de PEC seja
barrada pela Constituição seria a improvável tentativa de votar o mesmíssimo
texto rejeitado. Mas por que razão aquele que é interessado em ver aprovada
a matéria legislativa recém-rejeitada re-apresentaria o mesmo idêntico texto?
Bastaria mudar uma única palavra.
Regras devem ser interpretadas de maneira que possam valer. Interpretar
um artigo constitucional de forma que só tenha efeito no caso de uma inusi-
tada e contornável hipótese é, na prática, colocá-lo em desuso. Essa é uma in-
terpretação que não respeita a própria Constituição. A exemplo da desmorali-
zada exigência de apreciação dos vetos presidenciais em 30 dias (art. 66 §4º),
a regra em discussão neste momento, que impede nova votação de matéria
derrotada no mesmo ano legislativo, poderá ser, igualmente, para inglês ver.
É esta a provocação que chega ao Supremo: deve mudar sua jurisprudên-
cia, ou terá matado — com a ajuda de Eduardo Cunha — mais um artigo
da Constituição.

FGV DIREITO RIO  173


Direitos Humanos

Texto 3

Brasil é o país que mais erradicou o trabalho infantil no mundo, diz


diretor da OIT36
06/07/15 — Carta Campinas

O diretor da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para a Amé-


rica Latina e Caribe, José Manuel Salazar-Xirinachs, afirmou que o Brasil é
líder na erradicação do trabalho infantil no mundo e com aumento da esco-
laridade entre crianças e jovens.
Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome (MDS), entre 2001 e 2013, a redução do número de casos de trabalho
infantil no Brasil foi de 58,1%, enquanto a média mundial de redução foi
de 36% no mesmo período. A questão foi discutida em reunião finalizada na
última sexta-feira (3), em Brasília, com 25 delegações representando países
da América Latina e Caribe.
Um ponto importante nessa redução, segundo diversos estudos, é o Pro-
grama Bolsa Família, que diminui a taxa de abandono escolar, além de es-
tar associado a outros programas sociais e a uma situação de melhoria das
oportunidades de trabalho para os pais. Assim, quebra-se o ciclo do trabalho
infantil.
Os desafios quanto ao trabalho infantil no Brasil e na América Latina e no
Caribe mostram algumas das vulnerabilidades a que estão sujeitas crianças e
adolescentes da região, também com um recorte de classe, pois as crianças su-
jeitas ao trabalho infantil são, em geral, pertencentes às camadas mais pobres
da sociedade. Em um contexto de discussão sobre a redução da maioridade
penal de 18 para 16 anos no Brasil, é preciso refletir sobre as oportunidades
que têm as crianças e adolescentes do nosso país e da nossa região.

Texto 4

Trabalho Infantil no Mundo.37


36
Brasil é o país que mais erradicou o
O trabalho infantil, isto é, o desempenho de atividades de qualquer na- trabalho infantil no mundo, diz diretor
tureza por crianças e adolescentes que não tenha fins educativos, foi uma da OIT. Carta Campinas. 06/07/2015.
Disponível em : http://cartacampinas.
prática muito comum em diversas civilizações ao longo do desenvolvimento com.br/2015/07/brasil-e-o-pais-que-
-mais-erradicou-o-trabalho-infantil-
da humanidade. Embora atualmente seja uma prática condenada na maioria -no-mundo-diz-diretor-da-oit/ , últi-
mo acesso em 25/07/2016.
dos países, ainda faz parte do cotidiano de milhões de crianças no mundo
37
Trabalho infantil no mundo. Mun-
inteiro. do Educação. 05/2016. Disponível
em: http://mundoeducacao.bol.uol.
com.br/geografia/trabalho-infantil-
-no-mundo.htm , último acesso em
25/07/2016.

FGV DIREITO RIO  174


Direitos Humanos

Aspectos históricos do Trabalho Infantil


Até a Idade Média, o trabalho infantil, com exceção do trabalho escravo,
estava vinculado ao complemento da mão de obra para o sustento familiar,
sendo pouco comum o desenvolvimento do trabalho infantil para benefício
de terceiros (quando a criança não desfruta do lucro de seu trabalho). No
período feudal, as crianças passaram a trabalhar nos feudos, sendo muito co-
mum, durante esse período, o trabalho infantil em troca do aprendizado de
um novo ofício, comida ou moradia.
A exploração do trabalho infantil atingiu seu auge durante a Revolução
Industrial. Nas primeiras indústrias implantadas na Inglaterra, França, Ale-
manha e demais países da Europa, era comum a exploração da mão de obra
infantil em razão de seu menor custo em comparação com a mão de obra
masculina.
Assim, crianças, a partir dos quatro anos de idade, eram submetidas a re-
gimes de trabalho de cerca de 14 horas diárias, em locais insalubres, sem con-
trole de acidentes, em troca de pouco mais do que alimentação e moradia.
O início das restrições ao trabalho infantil
Para evitar que essas situações continuassem a acontecer, em 1802, a Ingla-
terra implantou a primeira lei de controle do trabalho infantil nas indústrias
do país. Com o passar do tempo, outros países, como França e Alemanha,
também passaram a restringir o trabalho infantil. Entre as principais medidas
implantadas, estavam a proibição do trabalho infantil noturno, a redução da
carga horária máxima e o fim dos castigos físicos no ambiente fabril.

Consequências do Trabalho Infantil


O conceito de criança tal qual concebemos hoje, como um ser indefeso
que precisa de proteção, surgiu após esse período e foi um pressuposto para
a constatação de que o trabalho infantil compromete o desenvolvimento da
criança e do adolescente. Essa constatação deve-se ao fato de que crianças tra-
balhadoras são expostas a acidentes, lesões e doenças, que, na maioria das ve-
zes, podem ter efeitos permanentes e irreversíveis em seu organismo, já que,
como ainda não atingiram a maturidade biológica, são menos resistentes.
Além disso, o trabalho, muitas vezes, impossibilita o convívio com outras
crianças e o desenvolvimento de atividades próprias da idade, como brincar e
estudar, comprometendo, assim, o seu desenvolvimento social e educacional.
Diversas pesquisas mostram que uma das principais causas da evasão escolar
é o ingresso precoce da criança e do adolescente no mercado de trabalho.
O trabalho infantil afeta ainda o desenvolvimento emocional da criança,
que, desde o início da vida, precisa possuir maturidade para o trabalho.
Em consequência dessas constatações, essa prática passou a ser condena-
da pela maioria dos países, que passaram a combatê-la por meio da cons-
cientização das pessoas e adoção de políticas e leis que punem empresas que

FGV DIREITO RIO  175


Direitos Humanos

contratam crianças para exercer algum tipo de função empregatícia. Um dos


principais órgãos que combatem o trabalho infantil é a Organização Interna-
cional do Trabalho (OIT), que atua internacionalmente.

Dados sobre o Trabalho Infantil


As estratégias de combate ao trabalho infantil têm conseguido importantes
vitórias nos últimos anos. Segundo a OIT¹, em doze anos (de 2000 a 2012),
houve uma redução de cerca de 40% do total de meninas e 25% do total de
meninos que exerciam algum tipo de atividade remunerada, atingindo uma
queda de 78 milhões de crianças trabalhadoras em todo o mundo.
Estima-se1 que, em 2012, cerca de 168 milhões de crianças trabalhavam
em todo o mundo e metade desse total desempenhava funções que coloca-
vam a sua saúde, segurança e o seu desenvolvimento em risco.
Os índices de trabalho infantil são mais preocupantes em países subdesen-
volvidos, principalmente na África Subsaariana, em alguns países da Ásia e na
América. Isso ainda ocorre porque a principal causa para o trabalho infantil
no mundo continua sendo a miséria e a desigualdade social, aliadas a um
sistema educacional precário, que não permite o desenvolvimento social da
população de baixa renda.
Diante disso, para que as medidas de combate ao trabalho infantil real-
mente possam dar resultados significativos, é preciso reduzir a miséria e a
desigualdade social no mundo, principalmente em países subdesenvolvidos.

NOTA:

1
Dados retirados do: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome (MDS). Organização Internacional do Trabalho (OIT). III
Conferência Global sobre Trabalho Infantil:relatório final. Brasília, DF:
Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação, 2014.

TRATADOS E JURISPRUDÊNCIA

Convenção dos Direitos da Criança


Artigo 1
Para efeitos da presente Convenção considera-se como criança todo ser
humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformi-
dade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes.

FGV DIREITO RIO  176


Direitos Humanos

Artigo 3
1. Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições pú-
blicas ou privadas de bem estar social, tribunais, autoridades administrativas
ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior
da criança. (...)

Artigo 5
Os Estados Partes respeitarão as responsabilidades, os direitos e os deveres
dos pais ou, onde for o caso, dos membros da família ampliada ou da comu-
nidade, conforme determinem os costumes locais, dos tutores ou de outras
pessoas legalmente responsáveis, de proporcionar à criança instrução e orien-
tação adequadas e acordes com a evolução de sua capacidade no exercício dos
direitos reconhecidos na presente convenção.

Artigo 6
1. Os Estados Partes reconhecem que toda criança tem o direito inerente
à vida.
2. Os Estados Partes assegurarão ao máximo a sobrevivência e o desenvol-
vimento da criança.

Artigo 12
1. Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formu-
lar seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre
todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em
consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade da criança.
2. Com tal propósito, se proporcionará à criança, em particular, a oportu-
nidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a
mesma, quer diretamente quer por intermédio de um representante ou órgão
apropriado, em conformidade com as regras processuais da legislação nacional.

Artigo 18
1. Os Estados Partes envidarão os seus melhores esforços a fim de asse-
gurar o reconhecimento do princípio de que ambos os pais têm obrigações
comuns com relação à educação e ao desenvolvimento da criança. Caberá aos
pais ou, quando for o caso, aos representantes legais, a responsabilidade pri-
mordial pela educação e pelo desenvolvimento da criança. Sua preocupação
fundamental visará ao interesse maior da criança.
2. A fim de garantir e promover os direitos enunciados na presente con-
venção, os Estados Partes prestarão assistência adequada aos pais e aos repre-
sentantes legais para o desempenho de suas funções no que tange à educação
da criança e assegurarão a criação de instituições, instalações e serviços para
o cuidado das crianças.

FGV DIREITO RIO  177


Direitos Humanos

3. Os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas a fim de que


as crianças cujos pais trabalhem tenham direito a beneficiar-se dos serviços de
assistência social e creches a que fazem jus.

Artigo 27
1. Os Estados Partes reconhecem o direito de toda criança a um nível
de vida adequado ao seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e
social. (...)

Artigo 28
1. Os Estados Partes reconhecem o direito da criança à educação e, a fim
de que ela possa exercer progressivamente e em igualdade de condições esse
direito, deverão especialmente:
a) tornar o ensino primário obrigatório e disponível gratuitamente para
todos;
b) estimular o desenvolvimento do ensino secundário em suas diferentes
formas, inclusive o ensino geral e profissionalizante, tornando-o disponível
e acessível a todas as crianças, e adotar medidas apropriadas tais como a im-
plantação do ensino gratuito e a concessão de assistência financeira em caso
de necessidade;
c) tornar o ensino superior acessível a todos com base na capacidade e por
todos os meios adequados;
d) tornar a informação e a orientação educacionais e profissionais disponí-
veis e accessíveis a todas as crianças;
e) adotar medidas para estimular a freqüência regular às escolas e a redu-
ção do índice de evasão escolar.
(...)

DECRETO No 99.710, DE 21 DE NOVEMBRO DE 199038. (Pro-


mulga a convenção — em apêndice na lei)

LEITURA OBRIGATÓRIA

MEZMUR, Benyam. ADOÇÃO INTERNACIONAL COMO MEDIDA


DE ÚLTIMO RECURSO NA ÁFRICA: PROMOVER OS DIREITOS
DE UMA CRIANÇA AO INVÉS DO DIREITO A UMA CRIANÇA.
SUR —— Revista Internacional de Direitos Humanos, Ano 6, Número 10
Junho de 2009
38
DECRETO No 99.710, DE 21 DE NOVEM-
BRO DE 1990. Promulga a convenção de
direitos da criança. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/decre-
to/1990-1994/D99710.htm

FGV DIREITO RIO  178


Direitos Humanos

LEITURA COMPLEMENTAR:

ROSEMBERG, Fúlvia and MARIANO, Carmem Lúcia Sussel. A conven-


ção internacional sobre os direitos da criança: debates e tensões. Cad. Pesqui.
[online]. 2010, vol.40, n.141, pp. 693-728. ISSN 0100-1574.

PIOVESAN, Flávia; e PIROTTA, Wilson Ricardo Buquetti. “Os direitos


humanos das crianças e dos adolescentes no direito internacional e no direito
interno”. In: Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 2003.
pp. 277-297.

ARANTES, Esther Maria de Magalhães. Direitos da criança e do adolescen-


te: um debate necessário. Psicol. clin. [online]. 2012, vol.24, n.1, pp. 45-56.
ISSN 0103-5665.

VÍDEO

Lugar de Criança — A Sociedade Civil e a Luta pelo Direito à Creche. Dis-


ponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=LHvz4ivG5nw>. Acesso
em: 7 julho 2015

Brasil 8.069. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=OZEG-


-JtK7ZY>. Acesso em: 7 julho 2015

FGV DIREITO RIO  179


Direitos Humanos

AULA 19: DISCRIMINAÇÃO RACIAL

INTRODUÇÃO

Apesar do reconhecimento de “democracia racial”, o preconceito relacio-


nado à raça, em especial aos afro-brasileiros, persiste em diversos aspectos no
Brasil. Os indivíduos afrodescendentes sofrem uma situação de vulnerabili-
dade em relação aos seus direitos humanos, visto que são vítimas de inúmeros
casos em que sua realidade é afetada pejorativamente devido a sua cor de pele.
Segundo pesquisa do IPEA de 2009, os negros representam 51% da po-
pulação brasileira, e só apresentam 55% da renda percebida pelos brancos.
Entre os 10% mais pobre da população, os negros correspondem a 72%. A
conclusão do IPEA, através desses dados, foi que “nascer negro no Brasil está
relacionado a uma maior probabilidade de crescer pobre”.
O mesmo acontece na área da educação, em que o analfabetismo entre
negros é expressivamente mais alto do que entre brancos, e consequentemen-
te na taxa de desemprego, que é mais alta entre esses indivíduos, até mesmo
quando comparadas a pessoas com o mesmo nível de estudos. Vários outros
aspectos poderiam ser apontados para confirmar a desigualdade entre pessoas
com diferentes cor de pela no país.
Os esforços do país para coibir a discriminação não foram poucos. A
Constituição de 1988 previu o racismo como crime inafiançável e imprescri-
tível — art. 5˚, XLII — reconhecendo extrema importância na punição de
tal prática. Também ratificou a Declaração contra a Discriminação Racial de
1963 e a Convenção sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação
Racial de 1969, comprometendo-se a eliminar as formas existentes de discri-
minação e promover a igualdade. Nesse sentido, faz-se importante mencio-
nar o significado de discriminação racial segundo o art. 1˚ da Convenção:

toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor,


descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou resulta-
do anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo
plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fun-
damentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer
outro campo da vida pública

Importante mencionar também medidas como a proteção das populações


remanescentes em quilombos e as políticas de ações afirmativas, que apesar de
tratarem negros de forma diferente não devem se confundir com discriminação
racial visto que têm único objetivo de assegurar que esse grupo, que precisa de
proteção, tenha seus direitos humanos e liberdades fundamentais garantidos.

FGV DIREITO RIO  180


Direitos Humanos

Essa aula busca ampliar o debate sobre a discriminação racial e suas muitas
e diversas ramificações. De acordo com Rüdiger Wolfrum existem fatores e
processos históricos que contribuem para a emergência de ideias, políticas
ou práticas racistas e xenófobas, como a escravidão e comércio de escravos, a
exploração econômica, a colonização branca,o jugo colonial, imperialismo,
práticas genocidas motivadas por perseguição religiosa ou étnica, migração
por motivos econômicos e conflitos religiosos. Para ele o primeiro pas-
so na direção de atitudes racistas ou xenófobas pode ser o ato de distinguir
como diferente um grupo (ou os seus integrantes) do restante da população.
Em 1969 a Convenção sobre Eliminação de todas as formas de
Discriminação Racial comprometeu-se com a eliminação de todas as for-
mas existentes de discriminação e estabeleceu a promoção da igualdade como
uma prioridade.
Para a convenção o significado de discriminação racial é trazida por seu
art. 1º, que prescreve: “toda distinção, exclusão, restrição ou preferência ba-
seada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha
por objeto ou resulta— do anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou
exercício em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos hu-
manos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social,
cultural ou em qualquer outro campo da vida pública”.
Contanto, constata-se que até hoje os indivíduos afrodescendentes sofrem
uma situação de vulnerabilidade em relação aos seus direitos humanos, visto
que são vítimas de inúmeros casos em que sua realidade é afetada pejorati-
vamente devido a sua cor de pele. De acordo com pesquisa recente do IPEA
“nascer negro no Brasil ainda está relacionado a uma maior probabilidade
de crescer pobre”. De modo que faz-se mister analisar a relação entre raça e
renda também pelo ângulo das outras dimensões que a pobreza pode assumir,
principalmente a pobreza da representação (na política, nas artes, na mídia..).
Outro dado importante é o fornecido pelo Índice de Vulnerabilidade Juvenil,
cujo resultado mostra que a cor da pele dos jovens está diretamente relaciona-
da ao risco de exposição à violência a que estão submetidos.
Conclui-se que o Brasil precisa considerar a segurança pública como fator
de desenvolvimento e ter políticas mais sólidas voltadas aos jovens, sobre-
tudo aos negros, cabendo aqui uma observação quanto as políticas de ações
afirmativas que apesar de tratarem negros de forma diferente não devem se
confundir com discriminação racial visto que têm único objetivo de assegu-
rar que esse grupo, que precisa de proteção, tenha seus direitos humanos e
liberdades fundamentais garantidos.

FGV DIREITO RIO  181


Direitos Humanos

CASO PARA DEBATE:

Carmem, dona de uma loja de artigos de luxo, publicou em jornal de


grande circulação que estava por contratar novos funcionários para sua loja
e que tinha preferência por pessoas de cor branca. Vera, após ver o anúncio,
ligou a fim de se candidatar para vaga. A secretária de Carmem atendeu com
muita simpatia e lhe fez algumas perguntas para que pudesse marcar uma en-
trevista, ao ser questionada sobre sua cor de pele, Vera de pronto respondeu
ser negra e assim, a secretaria a informou que não era adequada para o empre-
go. Vera procurou a delegacia para denunciar Carmem e sua secretária pelo
crime de racismo, mas a resposta do delegado foi que faria parte da liberdade
individual de Carmem criar seus próprios requisitos para que preencham
vagas em sua loja particular.

Responda: A resposta do delegado está de acordo com os compromissos


internacionais firmados pelo Brasil? Carmem, poderia de fato, deixar de con-
tratar um empregado tendo em vista sua cor de pele?

O RACISMO REFLETIDO NOS HOMICÍDIOS

O Mapa da Violência da UNESCO de 2015 revelou dados alarmantes


sobre a taxa de homicídios dos negros comparada aos demais indivíduos com
outras cores de pele. Foi constatado que para todas as cores, o homicídio é
a maior causa de morte, contudo, para a população negra o percentual é de
95,6%, sendo o maior entre todas. No ano de 2012, foram 28.946 negros
assassinados, o que significa 28,5 para cada 100 mil negros. Enquanto os
óbitos causados por homicídio na população branca contabilizaram 10.632,
representando 11,8 mortes para cada cada 100 mil brancos. Os homicídios
são duas vezes e meia mais recorrentes entre os negros, em comparação aos
brancos. Em alguns estados, como Alagoas e Paraíba, a seletividade racial se
faz ainda mais intensa, morrendo proporcionalmente mais de 10 negros para
cada branco vítima de arma de fogo.
Além disso, é importante notar que enquanto as taxas de homicídios de
branco caíram nos últimos anos, as taxas entre os negros só aumentaram. Em
2003, era de 72,5%, enquanto em 2012 já corresponde a 142%. Mesmo em
grupos com características socioeconômicas semelhantes, a possibilidade de
o negro ser vítima de homicídio é maior do que a do branco.
Como explicar números tão distantes? Um dos fatores que interferem di-
retamente nessa desigualdade é a violência policial, que atinge muito mais
negros do que brancos. Os estereótipos e preconceitos associados aos afrodes-
cendentes talvez sejam o maior dos fatores, visto que a cor/raça é vista como

FGV DIREITO RIO  182


Direitos Humanos

marginalizada. Contudo, é inaceitável que a situação se perpetue, faz-se ne-


cessário discutir quais outros fatores são contribuintes para o sistema atual e
de que forma isso poderia ser mudado.

NOTÍCIAS

Texto 1

29/05/2016 13h04 — Atualizado em 29/05/2016 19h06 (G1)


Mulher é presa suspeita de injúria racial em supermercado do Rio. 39
Ela teria dito a gerente de loja no Leblon: ‘Volta para sua senzala’. Suspeita
será levada para Bangu neste domingo.
29/05/2016 13h04 — Atualizado em 29/05/2016 19h06

Uma mulher de 58 anos foi presa neste sábado (28) suspeita de injúria
racial no Leblon, Zona Sul do Rio. Segundo testemunhas, Maria Francisca
Alves de Souza, de 58 anos, teria insultado, com palavras de cunho racista,
um funcionário negro da rede de supermercados Zona Sul. O caso ocorreu
por volta das 20h, em um dos endereços mais nobres do Leblon, Zona Sul
do Rio: a Rua Dias Ferreira, conhecida pela grande movimentação de bares e
restaurantes, sobretudo à noite (veja o vídeo).
Testemunhas contaram ao G1 que a suspeita insultou o funcionário com
frases como “Volta para sua senzala’ e ‘quilombo’. De acordo com um dos
funcionários, a mulher fez as ofensas depois que o colega que teria sido vítima
de racismo se negou a lhe prestar um favor — buscar um produto enquanto
ela aguardava na fila do caixa — o que motivou a discussão. Ela também teria
achado que foi tratada com deboche por uma caixa.
O funcionário que denuncia ter sido ofendido é um gerente, identificado
como Paulo Roberto Gonçalves Navaro, 45 anos. Ele se disse indignado com
as ofensas e chamou a polícia. “Infelizmente é muito triste que hoje em dia
aconteça isso”, afirmou Paulo.
No local, a mulher se defendeu dizendo que “senzala” e “quilombo” são,
na visão dela, exaltações à raça negra. “Olhem as senzalas das telas de De-
bret”, em referência ao pintor francês Jean-Baptiste Debret, conhecido por
suas pinturas sobre o período escravocrata brasileiro no século 19. Sobre o
“quilombo”, a mulher diz se referir a Zumbi dos Palmares, líder negro e, se-
gundo ela, “ícone da resistência negra”. 39
Mulher é presa suspeita de injúria
Houve um princípio de confusão e gritos de “racista” até policiais do Ba- racial em supermercado do Rio. O Glo-
bo. 29/05/2016. Disponível em: http://
talhão do Leblon chegarem ao local. A mulher, o funcionário e outras teste- g1.globo.com/rio-de-janeiro/noti-
munhas prestaram depoimento na delegacia do bairro. cia/2016/05/mulher-e-presa-suspeita-
-de-racismo-em-supermercado-na-
-zona-sul-do-rio.html Último acesso:
25/07/2016

FGV DIREITO RIO  183


Direitos Humanos

A Polícia Civil classificou o crime como injúria racial e prendeu a agresso-


ra. Maria Francisca foi indiciada pelo crime de injúria racial, que é afiancável.
Mas, como ela não pagou, foi levada para o Complexo Penitenciário de Ban-
gu, na Zona Oeste do Rio, na manhã deste domingo (29).
Nesta segunda-feira, será a audiência custódio no Tribunal de Justiça. De
acordo com informações da delegada-titula da 14ª DP (Leblon), nenhum
advogado se apresentou na delegacia para defender Maria Francisca. Em de-
poimento, ela afirmou ter falado as injúrias contra o funcionário do mercado,
sem a intenção de ofendê-lo. Ela já tem um antecedente criminal por injúria.
“Infelizmente esse tipo de crime é comum, mas muita gente não vem
à delegacia para relatar. É importante o relato de testemunhas para que as
medidas sejam tomadas. Estamos voltando ao discurso do ódio. E racismo é
crime”, disse a delegada Monique Vidal.
A Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEAS-
DH) divulgou nota na tarde deste domingo, repudiando a ocorrido. “A SE-
ASDH se alia aos brasileiros que condenaram essa atitude de discriminação
racial, esperando que os fatos sejam rigorosamente apurados e as providências
legais cabíveis sejam tomadas”, diz a nota.

Texto 2

Com metade da população, negros são só 18% em cargos de destaque


no Brasil40
Folha de São Paulo, 08/06/2015, por ADRIANO MANEO e THIAGO
AMÂNCIO

Sexta-feira, 19h, entrada da Pontifícia Universidade Católica de São Pau-


lo. Por ali passam, nos 30 minutos que antecedem as aulas da noite, 356
brancos, 75 pardos, 16 amarelos e seis pessoas de pele negra.
Sábado, 14h45, entrada do bloco C do hospital Sírio-Libanês. Passam
pela catraca 195 pessoas: 169 brancos, 14 pardos, seis amarelos e seis pretos.
Desses últimos, um é segurança.
Domingo, 13h20, praça de alimentação do shopping Iguatemi de São
Paulo, um dos mais luxuosos da cidade. 147 pessoas almoçam no local: 137
brancas, sete pardas e três amarelas. Nenhum negro.
40
Com metade da população, negros
Negros são 50,7% da população, mas ainda são pouco presentes na elite são só 18% em cargos de desta-
brasileira. O que se constata nos passeios pelos redutos da elite paulistana que no Brasil. Folha de São Paulo.
08/06/2015. Disponível em: http://
bate com o levantamento feito pela Folha com 1.138 profissionais em postos www1.folha.uol.com.br/paywall/ad-
block.shtml?origin=after&url=http://
de destaque na política, saúde, artes, Judiciário, universidade e política. www1.folha.uol.com.br/
(…) cotidiano/2015/06/1638879-
-negros-ocupam-so-18-dos-cargos-
-de-elite-aponta-levantamento.shtml
Último acesso: 25/07/2016

FGV DIREITO RIO  184


Direitos Humanos

EXCEÇÃO
Nas 20 maiores empresas do país, apenas um presidente se considera
pardo, Marcelo Odebrecht. “Mais que preconceito, [o fato de haver pou-
cos empresários negros] reflete nossa realidade socioeconômica e o acesso
à educação”, afirma o diretor-presidente do conglomerado de empresas de
construção.
No setor de micro e pequenas empresas, o cenário é diferente. Negros
são proprietários de metade dos negócios no Brasil, segundo estudo do Se-
brae divulgado em abril. Contudo, o rendimento médio dos empreendedores
brancos é 116% maior que o de negros, que se concentram em ramos de
menor lucratividade, como os setores agrícola e de construção. Mais de qua-
tro décadas antes de faturar R$ 50 milhões por ano com desmanche legal de
caminhões, o empresário Geraldo Rufino, 56, negro, catava latinhas em um
aterro sanitário para ajudar na renda familiar.
Foi trabalhar como office-boy em uma multinacional, subiu até virar di-
retor e, aos 21 anos, saiu para assumir um pequeno negócio da família. Ape-
sar de ser uma exceção, Rufino diz que racismo só é problema para quem
acredita que ele existe. “Isso é coisa que põem na cabeça das pessoas. Se o
negro tiver desenvolvimento, tiver uma situação financeira estável, o racismo
é secundário.”
Segundo Marcelo Paixão, negro, professor de economia da UFRJ (Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro), a situação é mais complexa. “É importante
analisar a relação entre raça e renda também pelo ângulo das outras dimen-
sões que a pobreza pode assumir, principalmente a pobreza da representação.
Na política, nas artes, na mídia”, diz.
REPRESENTATIVIDADE
Dos 513 deputados federais eleitos em 2014, 80% são brancos. Na Justi-
ça, a prevalência dos brancos é ainda maior: 25 dos 29 ministros do Superior
Tribunal de Justiça são brancos, três são pardos e um, preto. Todos os 11
ministros do Supremo Tribunal Federal, a corte máxima do país, são brancos,
desde que Joaquim Barbosa se aposentou.
O ministro aposentado Carlos Alberto Reis de Paula, 71, que foi o primei-
ro presidente negro do Tribunal Superior do Trabalho, afirma que os casos de
racismo se repetiram ao longo de sua vida. Ele lembra, em especial, quando
foi impedido de entrar em um clube em 1967. “As coisas para nós, negros,
eram mais difíceis. A gente tinha que lutar mais, tinha que se empenhar mais,
tinha que provar para os outros que éramos capazes.”
Na música erudita, a situação é parecida. A Osesp (Orquestra Sinfônica
do Estado de São Paulo), considerada uma das mais importantes da América,
tem entre os brasileiros de seu coral 29 brancos (63%), 15 cantores negros
(33%), um amarelo e um indígena. A televisão também conta com uma re-

FGV DIREITO RIO  185


Direitos Humanos

presentação baixa da população negra. As cinco novelas inéditas em exibição


na rede aberta têm apenas 15% de atores negros, contra 85% de brancos.
Ailton Graça, 50, negro e ator da TV Globo, diz que se considera um
sobrevivente em um país racista. “Quando eu estava no ginásio, conseguia
contabilizar que 60% eram negros. No colegial já diminuía, eram 10%. Na
faculdade, talvez eu fosse o único negro. Você começa a perceber que alguma
coisa está estranha.”
Para mudar o quadro, cotas raciais são uma solução na visão de Eunice
Aparecida de Jesus, 68, negra, professora de Direito da USP e ex-secretária
de Justiça do Estado de São Paulo. “A universidade que se organize e ponha
todos seus esforços para incluir as pessoas. É para isso que ela existe”, diz.
“Esta escola [a Faculdade de Direito da USP] teve três professores negros em
sua história. Sou a terceira.”
O empresário Geraldo Rufino discorda. “Quem está em escola pública e
não tem condição financeira, mas tem o olho claro, não tem direito a cota.
O outro nem para a escola vai direito, mas tem a pele escura e tem cota? Isso,
para mim, é racismo.”

Texto 3

Jovem negro tem 2,5 vezes mais chance de ser assassinado do que
branco
Do UOL, em São Paulo 41
07/05/2015 10h00

Um estudo feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que


o risco de um jovem negro ser assassinado no Brasil tem aumentado e supera
em 2,5 vezes a possibilidade de um jovem branco ser vítima de homicídio.
Elaborado em parceria com a Unesco (Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura) e a pedido do governo federal, o
Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade Racial 2014
apontou que a taxa de jovens negros assassinados por 100 mil habitantes su-
biu de 60,5 em 2007 para 70,8 em 2012. Entre os jovens brancos, a taxa de
vítimas de homicídio também aumentou: de 26,1 para 27,8.
Ou seja, os riscos aumentaram para os jovens de modo de geral, mas pas-
saram a ameaçar ainda mais os negros. O risco de homicídio de um jovem
negro superava em 2,3 vezes o de um branco em 2007. A diferença chegou a 41
Jovem negro tem 2,5 vezes mais
2,5 em 2012. Em números absolutos, isso significa que 29.916 jovens foram chance de ser assassinado do que bran-
co. Revista Uol. 07/05/2015. Disponível
mortos em 2012, sendo 22.884 negros e 7.032 brancos. Em 2007, o número em : http://noticias.uol.com.br/cotidia-
de jovens assassinados havia ficado em 26.603, dos quais 18.860 eram ne- no/ultimas-noticias/2015/05/07/jo-
vem-negro-tem-25-vezes-mais-chan-
gros; e 7.443, brancos. ce-de-ser-assassinado-do-que-branco.
htm Último acesso: 25/07/2016

FGV DIREITO RIO  186


Direitos Humanos

Nas regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte, os riscos para os negros são


ainda maiores. No Centro-Oeste, a taxa de jovens negros assassinados por
100 mil habitantes bateu na casa de 88,6 em 2012, pouco acima do índice
nordestino, que é de 87. A taxa entre os negros do Norte é de 72,5.
Em alguns Estados, há taxas de assassinato ainda mais altas entre a juven-
tude negra. Ela vai a 115,4 na Paraíba, a 126,1 no Espírito Santo e a 166,5
em Alagoas. “Os homicídios mostram-se como a grande tragédia da popu-
lação jovem negra hoje no Brasil”, informou o relatório. O Paraná é o único
Estado onde o risco é maior para jovens brancos.
“A OMS (Organização Mundial da Saúde) considera que taxas acima de
dez para cem mil são consideradas como epidemia. O Brasil já ultrapassou o
quadro epidêmico, é endêmico. É um quadro que persiste há décadas”, afir-
mou Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum. “Reduzimos a desigualda-
de, mas não conseguimos reduzir a violência”, disse a pesquisadora. Para ela,
o Brasil precisa considerar a segurança pública como fator de desenvolvimen-
to e ter políticas mais sólidas voltadas aos jovens, sobretudo aos negros.
O relatório apontou que a segurança pública precisa incorporar a juven-
tude como um público prioritário. “Não se trata de investir mais em poli-
ciamento. Boas políticas de segurança associam policiamento, prevenção e
políticas sociais. O jovem é mais vítima do que agressor”, declarou Samira.

Outro índice
O estudo refere-se a jovens de 12 a 29 anos, leva em conta a proporção
das raças na população e usa como base dados produzidos por fontes como o
SIM (Sistema de Informações de Mortalidade), do Ministério da Saúde, e o
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas).
O relatório também apresenta um indicador inédito, o Índice de Vulne-
rabilidade Juvenil — Violência e Desigualdade Racial. Ele é calculado com
base em cinco categorias: mortalidade por homicídios, mortalidade por aci-
dentes de trânsito, frequência à escola e situação de emprego, pobreza no
município e desigualdade.
O resultado mostra que a cor da pele dos jovens está diretamente relacio-
nada ao risco de exposição à violência a que estão submetidos. Numa escala
de 0 a 1, quatro Estados se situam na categoria de vulnerabilidade muito
alta para negros, com índices acima de 0,5: Alagoas, Paraíba, Pernambuco e
Ceará.

FGV DIREITO RIO  187


Direitos Humanos

Texto 4

Homem é preso em operação contra ataques racistas a Taís Araújo e


Maju42
Ele foi detido na cidade de Brumado, na Bahia, na manhã desta quarta-feira.
Operação comandada por Polícia do RJ ocorre em outros estados.
16/03/2016, em G1.com

Um homem de 26 anos foi preso na manhã desta terça-feira (16) na ci-


dade de Brumado, no sudoeste da Bahia, suspeito de integrar uma quadrilha
investigada por crimes de informática, injúria racial e invasão de dispositivo,
em operação da Delegacia de Polícia Civil de Repressão a Crimes de Internet
do Rio de Janeiro, com apoio da polícia na Bahia.
O grupo é suspeito de praticar os crimes de racismo contra a jornalista
Maria Júlia Coutinho e a atriz Taís Araújo no ano passado. A operação foi
deflagrada às 6h, também em Minas Gerais, Rio Grande do Sul, São Paulo,
Santa Catarina e Paraná. No total, foram cumpridos 11 mandados de busca
e apreensão e quatro de prisão.
Tiago Zanfolim Santos foi preso em cumprimento a um mandado de pri-
são temporária e com o suspeito foi apreendido um notebook, uma CPU e
um celular. Segundo a Polícia Civil de Brumado, Tiago trabalha em uma loja
de venda e manutenção de equipamentos na cidade. Ele foi preso em casa e
não ofereceu resistência.
O material e o preso foram levados para a Delegacia de Brumado e serão
encaminhados para o Rio de Janeiro. A quadrilha que Tiago é suspeito de
integrar também pode estar relacionada a crimes de pedofilia. O suspeito
preso em Brumado poderá responder pelos crimes de injúria racial, racismo
e associação criminosa.

Ataques
A atriz Taís Araújo foi alvo de comentários racistas no Facebook no final
de outubro do ano passado. A imagem que passou a receber comentários pre-
conceituosos de diferentes perfis, datada do início de outubro, foi publicada
a cerca de um mês antes dos ataques.
Na época dos ataques, Taís chegou a desabafar por meio do Twitter e disse
que iria recorrer à Polícia Federal:
“É muito chato, em 2015, ainda ter que falar sobre isso, mas não podemos
nos calar. Na última noite, recebi uma série de ataques racistas na minha pá- 42
Homem é preso em operação contra
gina. Absolutamente tudo está registrado e será enviado à Polícia Federal. Eu ataques racistas a Taís Araújo e Maju.
O Globo. 16/03/2016. Disponível em
não vou apagar nenhum desses comentários. Faço questão que todos sintam : http://g1.globo.com/bahia/noti-
o mesmo que eu senti: a vergonha de ainda ter gente covarde e pequena neste cia/2016/03/homem-e-preso-em-
-operacao-contra-ataques-racistas-
-tais-araujo-e-maju.html Último
acesso em 25/07/2016

FGV DIREITO RIO  188


Direitos Humanos

país, além do sentimento de pena dessa gente tão pobre de espírito. Não vou
me intimidar, tampouco abaixar a cabeça”, escreveu.
Já a jornalista Maria Júlia Coutinho foi alvo de comentários racistas na
página do Jornal Nacional no Facebook, no mês de julho do ano passado.
Alguns internautas escreveram comentários racistas na postagem com a foto
da jornalista e várias pessoas saíram em defesa dela.
No Twitter, ela respondeu um comentário agressivo de um internauta com
o comentério: “Beijinho no ombro”.
William Bonner e Renata Vasconcellos gravaram um vídeo postado no
Facebook em que dão um recado em apoio a Maju, com a equipe do JN. Eles
mostraram um cartaz e gritaram a “SomosTodosMaju”. No Twitter, a hashtag
#SomosTodosMajuCoutinho foi ao topo dos tópicos mais comentados.

Link: http://g1.globo.com/bahia/noticia/2016/03/homem-e-preso-em-
-operacao-contra-ataques-racistas-tais-araujo-e-maju.html

LEITURA OBRIGATÓRIA

WOLFRUM, Rüdiger. Discriminação, xenofobia e racismo. In Symonides,


Janusz. Direitos Humanos: novas dimensões e desafios. Brasília:UNESCO
Brasil, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2003.

Lei 12288 — Estatuto da Igualdade Racial43

LEITURA COMPLEMENTAR:

ELY HART, John. The Constitutionality of Reverse Racial Discrimination.


Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1599097?seq=1#page_scan_
tab_contents

43
Lei 12288 - Estatuto da Igualdade
Racial. Disponível em: http://www.
Casos e legislação planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2010/Lei/L12288.htm
Comissão Interamericana de Dire-
Comissão Interamericana de Diretos Humanos, Caso 12.001: Simone André
44

tos Humanos. Caso 12.001: Simone


Diniz 44 André Diniz . Disponível em: http://
cidh.oas.org/annualrep/2006port/
BRASIL.12001port.htm

DECRETO Nº 65.810, DE 8 DE DEZEMBRO DE 196945. (Promulga a 45


DECRETO Nº 65.810, DE 8 DE DEZEM-
BRO DE 1969. Promulga a Convenção
Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discrimina- Internacional sobre a Eliminação de
ção Racial.) todas as Formas de Discriminação Ra-
cial. Disponível em : http://legis.senado.
gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.
action?id=94836

FGV DIREITO RIO  189


Direitos Humanos

VÍDEOS

Queremos ver os jovens vivos | Infográficos: https://www.youtube.com/


watch?v=u747pzxJLf0

Jovem Negro Vivo | Anistia Internacional Brasil: https://www.youtube.com/


watch?v=lM2To-4c51M

Artigo I
1. Nesta Convenção, a expressão “discriminação racial” significará qual-
quer distinção, exclusão restrição ou preferência baseadas em raça, cor, des-
cendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anu-
lar ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano,(em
igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no
domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio
de vida pública.
2. Esta Convenção não se aplicará ás distinções, exclusões, restrições e
preferências feitas por um Estado Parte nesta Convenção entre cidadãos e
não cidadãos. (...)
4. Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais toma-
das com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos
raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser
necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exer-
cício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contando que, tais me-
didas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados
para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sidos alcançados os
seus objetivos.

Artigo IV
Os Estados partes condenam toda propaganda e todas as organizações que
se inspirem em ideias ou teorias baseadas na superioridade de uma raça ou de
um grupo de pessoas de uma certa cor ou de uma certa origem étinica ou que
pretendem justificar ou encorajar qualquer forma de ódio e de discriminação
raciais e comprometem-se a adotar imediatamente medidas positivas destina-
das a eliminar qualquer incitação a uma tal discriminação, ou quaisquer atos
de discriminação com este objetivo tendo em vista os princípios formulados
na Declaração universal dos direitos do homem e os direitos expressamente
enunciados no artigo 5 da presente convenção. (...)

Artigo VII
Os Estados Partes, comprometem-se a tomar as medidas imediatas e efi-
cazes, principalmente no campo de ensino, educação, da cultura e da infor-

FGV DIREITO RIO  190


Direitos Humanos

mação, para lutar contra os preconceitos que levem à discriminação racial


e para promover o entendimento, a tolerância e a amizade entre nações e
grupos raciais e éticos assim como para propagar ao objetivo e princípios da
Carta das Nações Unidas da Declaração Universal dos Direitos do Homem,
da Declaração das Nações Unidas sobre a eliminação de todas as formas de
discriminação racial e da presente Convenção.

Artigo IX
1. Os Estados Partes comprometem-se a apresentar ao Secretário Geral
para exame do Comitê, um relatório sobre as medidas legislativas, judiciárias,
administrativas ou outras que tomarem para tornarem efetivas as disposições
da presente Convenção:
a) dentro do prazo de um ano a partir da entrada em vigor da Convenção,
para cada Estado interessado no que lhe diz respeito, e posteriomente, cada
dois anos, e toda vez que o Comitê o solicitar. O Comitê poderá solicitar
informações complementares aos Estados Partes.
2. O Comitê submeterá anualmente à Assembléia Geral, um relatório so-
bre suas atividades e poderá fazer sugestões e recomedações de ordem geral
baseadas no exame dos relatórios e das informaçõe recebidas dos Estados
Partes. Levará estas sugestões e recomendações de ordem geral ao conheci-
mento da Assembleia Geral, e se as houver juntamente com as observações
dos Estados Partes.

Artigo XI
1. Se um Estado Parte Julgar que outro Estado igualmente Parte não apli-
ca as disposições da presente Covenção poderá chamar a atenção do Comi-
tê sobre a questão. O Comitê transmitirá, então, a comunicação ao Estado
Parte interessado. Num prazo de três meses, o Estado destinatário submeterá
ao Comitê as explicações ou declarações por escrito, a fim de esclarecer a
questão e indicar as medidas corretivas que por acaso tenham sido tomadas
pelo referido Estado.
2. Se, dentro de um prazo de seis meses a partir da data do recebimento
da comunicação original pelo Estado destinatário a questão não foi resolvi-
da a contento dos dois Estados, por meio de negociações bilaterais ou por
qualquer outro processo que estiver a sua disposição, tanto um como o outro
terão o direito de submetê-la novamente ao Comitê, endereçando uma noti-
ficação ao Comitê assim como ao outro Estado interessado.
3. O Comitê só poderá tomar conhecimento de uma questão, de acor-
do com o parágrafo 2 do presente artigo, após ter constatado que todos os
recursos internos disponíveis foram interpostos ou esgotados, de conformi-
dade com os princípios do direito internacional geralmente reconhecidos.

FGV DIREITO RIO  191


Direitos Humanos

Esta regra não se aplicará se os procedimentos de recurso excederem prazos


razoáveis.
4. Em qualquer questão que lhe for submetida, Comitê poderá solicitar
aos Estados-Partes presentes que lhe forneçam quaisquer informações com-
plementares pertinentes.
5. Quando o Comitê examinar uma questão conforme o presente Artigo
os Estados Partes interessados terão o direito de nomear um representante
que participará sem direito de voto dos trabalhos no Comitê durante todos
os debates.

Artigo XXII
Qualquer Controvérsia entre dois ou mais Estados Partes relativa à in-
terpretação ou aplicação desta Convenção, que não for resolvida por nego-
ciações ou pelos processos previstos expressamente nesta Convenção será,
pedido de qualquer das Partes na controvérsia, submetida à decisão da Côrte
Internacional de Justiça a não ser que os litigantes concordem em outro meio
de solução.

FGV DIREITO RIO  192


Direitos Humanos

AULA 20: POVOS INDÍGENAS E TRIBAIS

A Convenção Americana não possui artigos que tratem diretamente de


comunidades indígenas e tribais e de seus direitos. Assim, o reconhecimento
de suas garantias no Sistema Interamericano tem origem em quatro fontes
principais: a Convenção 169 da OIT (1989), a Declaração das Nações Uni-
das sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2006), as decisões da Comissão
e da Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Projeto de Declaração
Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
O tema é encarado como uma necessidade de proteger os direitos de gru-
pos vulneráveis por sua condição de minoria e de comunidade historicamen-
te prejudicada pelos avanços sobre suas terras. É, portanto, uma forma de in-
terpretar o direito à propriedade de maneira mais ampla, com profundidade
histórica e social, e de forma a tutelar o direito à propriedade coletiva.
Um elemento destacado pela Convenção 169, a Comissão e a Corte como
sendo essencial revolve acerca da necessidade de realizar consulta prévia e
informada às comunidades sempre que o Estado pretender realizar alguma
medida administrativa ou legislativa que afete suas terras.
Ademais, a jurisprudência da Corte reconhece que povos indígenas e tri-
bais são uma das exceções à regra imposta pela Convenção Americana de
Direitos Humanos que exige a identificação de cada vítima de uma violação
que se busca alegar, isto porque, ao se identificarem como coletividade, estes
grupos teriam legitimidade ativa para levar um caso ao Sistema Interamerica-
no sem necessidade de individualizar as vítimas, presumindo-se que todos os
seus membros foram afetados pelas ações estatais.

INTRODUÇÃO

Nesta aula serão discutidos os embates entre o Direito ao Desenvolvimen-


to e os Direitos de Povos Indígenas e Tribais. Será dada especial atenção para
os entendimentos sustentados pela Comissão e pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos neste tema, principalmente no que tange à interpretação
dos dispositivos da Convenção 169 da OIT.

OS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS E TRIBAIS

A Convenção Americana não possui artigos que tratem diretamente de


comunidades indígenas e tribais e de seus direitos. Assim, o reconhecimento
destas garantias no Sistema Interamericano tem origem em quatro fontes
principais: a Convenção 169 da OIT (1989), a Declaração das Nações Uni-

FGV DIREITO RIO  193


Direitos Humanos

das sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2006), as decisões da Comissão


e da Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Projeto de Declaração
Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Além destas, o direito in-
terno dos países pode também ser eventualmente analisado e aplicado.
Os casos já analisados pela Comissão e pela Corte dizem respeito, princi-
palmente, a questões envolvendo o direito destes povos a suas terras ances-
trais, bem como aos recursos naturais nelas existentes. Assim, as análises e
orientações desenvolvidas por estes dois órgãos, em especial pela Corte Inte-
ramericana, levam em conta o artigo 21 da Convenção Americana de Direi-
tos Humanos, que versa sobre o direito de propriedade. Com jurisprudência
já bastante evoluída, o tema é encarado como uma necessidade de proteger os
direitos de grupos vulneráveis por sua condição de minoria e de comunidade
historicamente prejudicada pelos avanços sobre suas terras. É, portanto, uma
forma de interpretar o direito à propriedade de maneira mais ampla, com
profundidade histórica e social, e de forma a tutelar o direito à propriedade
coletiva. Afinal, a terra é de suma importância para povos indígenas e tribais,
podendo ser vista como uma herança de seus ancestrais ou mesmo por meio
de um viés religioso. É através de seu uso e de sua manutenção através das
gerações que estas comunidades se desenvolvem cultural, espiritual e fisi-
camente, com costumes, filosofia, arte, culinária, religião e língua próprias.
Além disso, é pela terra que se dá sua relação com a natureza, fator essencial.
Outra questão fundamental diz respeito à própria distinção entre povos
indígenas e tribais. Para tal, é bastante comum que se recorra ao disposto na
Convenção 169 da OIT, assinada e ratificada por diversos países do continen-
te americano e internalizada pelo Brasil por meio do Decreto nº 5051/04. De
acordo com os artigos 1.1 e 1.2 do documento internacional, estes grupos se
diferem da seguinte forma:

“Artigo 1º
1. A presente convenção aplica-se:
a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições so-
ciais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coleti-
vidade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus
próprios costumes ou tradições ou por legislação especial;
b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo
fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma re-
gião geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colo-
nização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja
qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias institui-
ções sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.

FGV DIREITO RIO  194


Direitos Humanos

2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser con-


siderada como critério fundamental para determinar os grupos aos que
se aplicam as disposições da presente Convenção.”

Desta forma, o item 1.1.a define povos tribais, ao passo que o 1.1.b traça
contornos sobre aquilo que caracteriza uma comunidade indígena. Já o artigo
1.2 estabelece um critério de grande importância: a autoidentificação como
maneira fundamental de definir se um grupo é indígena ou tribal e se um in-
divíduo se vê como pertencente a ele. A Comissão Interamericana, tratando
dessas distinções em seu relatório “Derechos de los Pueblos Indígenas y Tri-
bales sobre sus Tierras Ancestrales y Recursos Naturales: Normas y Jurispru-
dencia del Sistema Interamericano de Derechos Humanos”[1], destaca que:

“32. Un pueblo tribal es “un pueblo que no es indígena a la región


[que habita] pero que comparte características similares con los pueblos
indígenas, como tener tradiciones sociales, culturales y económicas di-
ferentes de otras secciones de la comunidad nacional, identificarse con
sus territorios ancestrales y estar regulados, al menos en forma parcial,
por sus propias normas, costumbres o tradiciones”. Esta definición
concuerda con lo establecido en el artículo 1.1.(a) del Convenio 169
de la OIT.

33. Al igual que con los pueblos indígenas, la determinación de


cuándo un grupo en particular se puede considerar como “tribal” de-
pende de una combinación de factores objetivos y subjetivos. Según
ha explicado la OIT, los elementos objetivos de los pueblos tribales
incluyen (i) una cultura, organización social, condiciones económicas y
forma de vida distintos a los de otros segmentos de la población nacio-
nal, por ejemplo en sus formas de sustento, lengua, etc.; y (ii) tradicio-
nes y costumbres propias, y/o un reconocimiento jurídico especial. El
elemento subjetivo consiste en la identificación propia de estos grupos
y de sus miembros como tribales. Así, un elemento fundamental para la
determinación de un pueblo tribal es la auto-identificación colectiva e
individual en tanto tal. El criterio fundamental de auto-identificación,
según el artículo 1.2 del Convenio 169 de la OIT, es igualmente apli-
cable a los pueblos tribales.”

“29. En la Guía de Aplicación del Convenio No. 169, la OIT ex-


plica que los elementos que definen a un pueblo indígena son tanto
objetivos como subjetivos; los elementos objetivos incluyen: (i) la con-
tinuidad histórica, v.g. se trata de sociedades que descienden de los gru-
pos anteriores a la conquista o colonización; (ii) la conexión territorial,

FGV DIREITO RIO  195


Direitos Humanos

en el sentido de que sus antepasados habitaban el país o la región; y


(iii) instituciones sociales, económicas, culturales y políticas distintivas
y específicas, que son propias y se retienen en todo o en parte. El ele-
mento subjetivo corresponde a la auto-identificación colectiva en tanto
pueblo indígena.”

Além disso, há um outro elemento que a Convenção 169, a Comissão e


a Corte destacam como essencial: a necessidade de realizar consulta prévia e
informada às comunidades sempre que o Estado pretender realizar alguma
medida administrativa ou legislativa que afete suas terras. É bastante comum
que este direito seja invocado em casos nos quais os países não garantiram aos
povos locais a chance de se manifestar adequadamente sobre um assunto que
possa influenciar em suas vidas. A consulta, que já conta com experiências de
regulamentação[2] em países como Colômbia, Equador, Venezuela, Bolívia
e Peru, é reconhecida como direito em diversos trechos da Convenção 169,
mas tem especial destaque nos artigos 6º e 15:

“Artigo 6º
1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos
deverão:
a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apro-
priados e, particularmente, através de suas instituições representativas,
cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas
suscetíveis de afetá-los diretamente;
b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados pos-
sam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros
setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em
instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza
responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;
c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das institui-
ções e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recur-
sos necessários para esse fim.
2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser
efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o
objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca
das medidas propostas.
[...]
Artigo 15
1. Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existen-
tes nas suas terras deverão ser especialmente protegidos. Esses direitos
abrangem o direito desses povos a participarem da utilização, adminis-
tração e conservação dos recursos mencionados.

FGV DIREITO RIO  196


Direitos Humanos

2. Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos


recursos do subsolo, ou de ter direitos sobre outros recursos, existentes
na terras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos
com vistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se
os interesses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes
de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou ex-
ploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados
deverão participar sempre que for possível dos benefícios que essas ati-
vidades produzam, e receber indenização equitativa por qualquer dano
que possam sofrer como resultado dessas atividades.”

Por fim, há uma última peculiaridade destas comunidades que merece


destaque. Ao contrário da regra imposta pela Convenção Americana de Di-
reitos Humanos que exige a identificação de cada vítima de uma violação que
se busca alegar, a jurisprudência da Corte reconhece que povos indígenas e
tribais são uma das exceções a este dispositivo. Isto porque, ao se identifica-
rem como coletividade, estes grupos teriam legitimidade ativa para levar um
caso ao Sistema Interamericano sem necessidade de individualizar as vítimas,
presumindo-se que todos os seus membros foram afetados pelas ações esta-
tais.

CASOS PARA DEBATE:

Caso 1

Na República de Camélia, o Governo Federal descobriu grande reserva


de gás natural. Após pesquisas realizadas na região, chegou-se à conclusão
de que explorá-la geraria impactos medianos ao meio ambiente, mas pode-
ria garantir ao país sua autossuficiência energética, tornando desnecessária a
importação de combustíveis fósseis para geração de energia. Tendo isso em
vista, rapidamente foi lançado edital de licitação para extrair o gás natural da
área e, seis meses após a descoberta, a concessão para uma empresa privada já
estava finalizada.
No entanto, a exploração da jazida tornou necessária a desapropriação
de uma reserva indígena, transferindo a comunidade afetada para terras
consideravelmente menores e de qualidade inferior para desenvolver seu
cultivo e outras atividades de subsistência. Além disso, Camélia não possui
nenhum sistema de consulta prévia a povos indígenas e tribais para garantir
seus direitos.
Após sucessivas tentativas de impugnar a concessão no Judiciário, a comu-
nidade afetada esgotou todas as possibilidades de recurso interno sem êxito.

FGV DIREITO RIO  197


Direitos Humanos

Decide, então, levar o caso à Comissão Interamericana, buscando sua ajuda


para sugerir argumentos e prever as respostas do Governo Federal.

a. A seu ver, quais violações de direitos poderiam ser alegadas e o que


o Estado poderia sustentar em sua defesa?
b. Pode o governo brasileiro prosseguir com o planejamento e cons-
trução da usina? Se sim, quais medidas devem ser tomadas? Se não,
quais as razões?
c. Tendo em vista a decisão da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos no caso Belo Monte, quais são as possíveis medidas da
Comissão e/ou da Corte Interamericana para este?

Caso 2

A Usina de Belo Monte está sendo construída ao longo do rio Xingu,


no Pará. O projeto enfrentou resistência e foi alvo de inúmeras críticas por
ambientalistas tanto dentro do Brasil quanto no cenário internacional. A pre-
visão era de que a construção da Usina alagaria vastas áreas próximas ao local
da construção, forçando moradores e cidadãos indígenas a mudarem-se. Por
outro lado, a construção da Usina seria um grande marco no setor hidrelétri-
co e traria inúmeros benefícios para outros cidadãos brasileiro.
Inúmeros foram os embates entre aqueles que eram favoráveis e contrários
à construção da Usina. O caso foi levado à Comissão Interamericana de Di-
reitos Humanos, que, em 1º de abril de 2011, solicitou ao governo brasileiro
a suspensão do licenciamento para construção da obra, através da Medida
Cautelar nº 382/2010.
Acerca da Medida Cautelar, Antonia Melo, coordenadora do Movimento
Xingu Vivo para Sempre, se manifestou no sentido de que “A decisão da
CIDH deixa claro que as decisões ditatoriais do governo brasileiro e da Jus-
tiça, em busca de um desenvolvimento a qualquer custo, constituem uma
afronta às leis do país e aos direitos humanos das populações tradicionais
locais. Nossos líderes não podem mais usar o desenvolvimento econômico
como desculpa para ignorar os direitos humanos e empurrar goela abaixo
projetos de destruição e morte dos nossos recursos naturais, dos povos do
Xingu e da Amazônia, como é o caso da hidrelétrica de Belo Monte”.
Em resposta, o governo brasileiro expediu nota na qual sustentava que “O
governo brasileiro considera as solicitações da CIDH precipitadas e injustifi-
cáveis”, e que “O governo brasileiro tomou conhecimento, com perplexida-
de, das medidas que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos solici-
ta que sejam adotadas”. A nota elencava ainda, que “O governo brasileiro está
ciente dos desafios socioambientais que projetos como o da Usina Hidrelétri-

FGV DIREITO RIO  198


Direitos Humanos

ca Belo Monte podem acarretar. Por esta razão, estão sendo observadas, com
rigor absoluto, as normas cabíveis para que a construção leve em conta todos
os aspectos sociais e ambientais envolvidos. O governo brasileiro tem atuado
de forma efetiva e diligente para responder às demandas existentes”. Acerca
da medida cautelar, Fernando Collor de Mello fez a seguinte declaração: “A
OEA é extremamente intrometida”.
— É possível um país desenvolver-se e, ao mesmo tempo, não causar da-
nos irreparáveis ao meio ambiente?
— No entender do aluno, o direito a um meio ambiente sadio deveria ser
peticionável, independentemente da violação a outros direitos?

Denúncias:
— Conselho dos Direitos Humanos da ONU (março e setembro de
2012): A/HRC/19/NGO/72 e A/HRC/21/NGO/75.
— Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Hu-
manos (EACDH): http://www.aida-americas.org/sites/default/files/refDo-
cuments/LargeDams_UPRJointSub_Brazil_2nd_Cycle.pdf
— Organização Internacional do Trabalho (OIT): http://util.socioam-
biental.org/inst/esp/consulta_previa/sites/util.socioambiental.org.inst.esp.
consulta_previa/files/0808-ComunicaçãoInd%C3%ADgena169OITEspañ
ol.pdf
— Comissão Interamericana de Direitos Humanos: http://advivo.com.
br/documento/comissao-interamericana-de-direitos-humanos-da-oea-medi-
da-cautelar-38210
— Nota do governo brasileiro: http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-im-
prensa/notas-a-imprensa/solicitacao-da-comissao-interamericana-de-direi-
tos-humanos-cidh-da-oea
— Resposta do governo brasileiro: http://www.xinguvivo.org.br/wp-con-
tent/uploads/2010/10/Resposta_do_Estado_MC_030520111.pdf

Vídeo: projeto da hidrelétrica Belo Monte gera polêmica (TeleSUR): ht-


tps://www.youtube.com/watch?v=3X88f8WaGZQ

NOTÍCIAS

Texto 1

O Brasil e a ameaça aos direitos dos povos indígenas46 46


O Brasil e a ameaça aos direitos dos
Renata Neder — Assessora de Direitos Humanos da Anistia Internacional povos indígenas. Anistia Internacio-
Brasil) nal Brasil. Dísponível em: https://
anistia.org.br/o-brasil-e-ameaca-aos-
-direitos-dos-povos-indigenas/ Último
acesso em 25/07/2016.

FGV DIREITO RIO  199


Direitos Humanos

Desenvolvimento econômico e grandes projetos têm ameaçado os direitos


de povos indígenas no Brasil. O país é, hoje, uma das maiores economias do
mundo, mas não tem garantido com o sucesso necessário o respeito aos direi-
tos humanos. Dia 09 de agosto foi o Dia Internacional dos Povos Indígenas
e, assim, vale a pena avaliar sua situação no país. Os povos indígenas conti-
nuam a sofrer discriminação, privações e ameaças, seu direito constitucional
as suas terras ancestrais é violado, e o governo tem falhado em garantir sua
segurança e direitos.
O governo deve assegurar que qualquer projeto de desenvolvimento que
tenha impacto sobre as comunidades indígenas seja feito com seu consenti-
mento prévio, livre e bem-informado. Qualquer decisão sobre construção de
represas, hidroelétricas, barragens, oleodutos, estradas, atividade mineradora
e extrativa que tenha impacto sobre comunidades indígenas só deve ser toma-
da a partir de extenso processo de consulta e a partir de seu consentimento.
Por outro lado, as empresas envolvidas devem se comprometer publicamente
a respeitar, em suas atividades, todos os padrões internacionais de direitos
humanos, de acordo com os padrões estabelecidos nas Diretrizes das Nações
Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos.
Mas grandes projetos de desenvolvimento e a expansão de atividades agrí-
colas e extrativas constituem, hoje, uma grande ameaça aos povos indígenas.
No Mato Grosso do Sul, o processo de desenvolvimento tem ameaçado os
Guarani-Kaiowá de diversas formas. Primeiro, pela violência que têm acom-
panhado a luta pelo direito as suas terras ancestrais. O processo de demarca-
ção de terras de todas as comunidades Guarani-Kaiowá na região ainda não
foi concluído. Segundo, sua própria destruição socioeconômica, levando a
condições de vida precárias e obrigando muitos indígenas a trabalharem na
agroindústria — inclusive nos canaviais — em condições degradantes. As
comunidades sofrem ameaças constantes e já foram diretamente atacadas por
homens armados contratados por fazendeiros da região.
[...]
James Anaya, Relator das Nações Unidas para o Direito dos Povos Indí-
genas, manifestou ao governo brasileiro sua preocupação pelos povos Kaia-
po, Xavante, Juruna, Kaiabi, Suia, Kamaiura, Kuikuro, Ikpeng, Panara, Na-
fukua, Tapayuna, Yawalapiti, Waura, Mehinaku and Trumai, um total de 13
mil pessoas. O relator destaca impactos como o isolamento geográfico das
comunidades, a diminuição de acesso a serviços básicos, além de impactos
ecológicos, e a possibilidade do aumento de conflitos por terra e recursos
naturais na região. O relator menciona ainda que houve problemas nos pro-
cedimentos de consulta, acesso a informação e divulgação de documentos
importantes, tornando impossível que as pessoas estivessem totalmente in-
formadas e conscientes a respeito do projeto.

FGV DIREITO RIO  200


Direitos Humanos

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos chegou a pedir a sus-


pensão do projeto até que as comunidades afetadas fossem devidamente con-
sultadas e emitiu medidas cautelares para o Brasil. Mas as medidas foram
retiradas após forte pressão política do governo. Nesta segunda feira dia 13
de agosto, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região determinou a paraliza-
ção das obras de Belo Monte. O desembargador Antônio de Souza Prudente
afirmou que a consulta prévia e informada, como determina a Constituição
Federal e a Convenção 169 da OIT, não foi realizada. Uma decisão impor-
tante para a garantia dos direitos dos povos indígenas.
Por outro lado, a ameaça mais recente vem da Portaria nº 303 da Advo-
cacia Geral da União, publicada no dia 16 de julho de 2012. Sua publica-
ção gerou reações e protestos de representantes dos povos indígenas e outras
organizações. A Portaria ameaça diretamente os processos de consulta das
comunidades afetadas por projetos e obras em suas terras. A própria Funda-
ção Nacional do Índio (FUNAI), órgão federal responsável pela política in-
digenista do Estado brasileiro, manifestou publicamente sua contrariedade à
Portaria nº 303 e reivindica a revisão dos seus termos. Para o órgão, a medida
restringe o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas, especialmente
seus direitos territoriais.
Considerando o avanço de grandes projetos e atividades agrícolas e extra-
tivas sobre terras indígenas, esse retrocesso do governo em garantir os pro-
cessos de consulta pode significar o agravamento de conflitos já existentes e
maiores violações de direitos dos povos indígenas no futuro. O Brasil tem
responsabilidade de respeitar e promover os direitos dos povos indígenas tal
como expressos na Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indíge-
nas, de 2007, e na Convenção número 169 da Organização Internacional do
Trabalho, sobre os Direitos dos Povos Indígenas e Tribais, de 1989.

Texto 2

Governo considera ‘injustificáveis’ pedidos da OEA sobre Belo Monte47


Comissão Interamericana de Direitos Humanos solicitou paralisação da
obra. Objetivo seria ‘garantir a vida e a integridade pessoal dos povos indíge-
nas’. 05/04/11 — G1

O Ministério de Relações Exteriores divulgou nota nesta terça-feira (5)


classificando de “precipitadas e injustificáveis” as medidas que a Comissão 47
Governo considera ‘injustificáveis’
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados pedidos da OEA sobre Belo Monte’.
O Globo. 05/04/11. Disponível em:
Americanos (OEA) solicita que sejam adotadas para “garantir a vida e a inte- http://g1.globo.com/politica/noti-
gridade pessoal dos povos indígenas” supostamente ameaçados pela constru- cia/2011/04/governo-considera-in-
justificaveis-medidas-da-oea-sobre-
ção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará. A OEA, em -belo-monte.html Último acesso em
25/07/2016.

FGV DIREITO RIO  201


Direitos Humanos

nome da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), enviou


carta ao governo brasileiro solicitando a suspensão imediata do processo de
licenciamento de Belo Monte e da execução da obra.
Também foi solicitado ao governo brasileiro a disponibilização dos estu-
dos de impacto ambiental aos índios que vivem na bacia do Xingu e a adoção
de medidas “vigorosas e abrangentes” para proteger a vida e a integridade
pessoal dos povos indígenas da região. A decisão da CIDH é uma resposta à
denúncia encaminhada em novembro de 2010 pelo Movimento Xingu Vivo
Para Sempre, que representa várias comunidades tradicionais da bacia do
Xingu, tais como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia
Brasileira (Coiab), a Prelazia do Xingu e o Conselho Indígenista Missionário
(Cimi).
De acordo com a nota, o governo brasileiro tomou conhecimento, “com
perplexidade”, da solicitação de paralisação das obras da usina de Belo Mon-
te. “O Governo brasileiro, sem minimizar a relevância do papel que desem-
penham os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, recor-
da que o caráter de tais sistemas é subsidiário ou complementar, razão pela
qual sua atuação somente se legitima na hipótese de falha dos recursos de
jurisdição interna”.
Belo Monte será a segunda maior usina hidrelétrica do Brasil, atrás apenas
da binacional Itaipu, e custará pelo menos R$ 19 bilhões, segundo o governo
federal. A usina está prevista para começar a operar em 2015. Leia abaixo a
íntegra da nota:

“Solicitação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)


da OEA
O Governo brasileiro tomou conhecimento, com perplexidade, das me-
didas que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) solicita
sejam adotadas para “garantir a vida e a integridade pessoal dos membros dos
povos indígenas” supostamente ameaçados pela construção da Usina Hidre-
létrica de Belo Monte.
O Governo brasileiro, sem minimizar a relevância do papel que desempe-
nham os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, recorda
que o caráter de tais sistemas é subsidiário ou complementar, razão pela qual
sua atuação somente se legitima na hipótese de falha dos recursos de jurisdi-
ção interna.
A autorização para implementação do Aproveitamento Hidrelétrico de
Belo Monte foi concedida pelo Congresso Nacional por meio do Decreto
Legislativo nº 788/2005, que ressalvou como condição da autorização a rea-
lização de estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental, em especial
“estudo de natureza antropológica, atinente às comunidades indígenas loca-
lizadas na área sob influência do empreendimento”, com a devida consulta

FGV DIREITO RIO  202


Direitos Humanos

a essas comunidades. Coube aos órgãos competentes para tanto, IBAMA e


FUNAI, a concretização de estudos de impacto ambiental e de consultas às
comunidades em questão, em atendimento ao que prevê o parágrafo 3º do
artigo 231 da Constituição Federal.
O Governo brasileiro está ciente dos desafios socioambientais que projetos
como o da Usina Hidrelétrica de Belo Monte podem acarretar. Por essa razão,
estão sendo observadas, com rigor absoluto, as normas cabíveis para que a
construção leve em conta todos os aspectos sociais e ambientais envolvidos.
O Governo brasileiro tem atuado de forma efetiva e diligente para responder
às demandas existentes.
O Governo brasileiro considera as solicitações da CIDH precipitadas e
injustificáveis.”

Texto 3

Belo Monte: ONG denuncia irregularidades em usina48


Procuradoria do Pará vê risco de que comunidades atingidas fiquem sem
meios de subsistência
11/07/15 — O Globo

SÃO PAULO — O Ministério Público Federal no Pará (MPF-PA) divul-


gou relatório que aponta uma série de irregularidades no processo de remoção
das comunidades ribeirinhas que serão atingidas pelas obras da usina hidre-
létrica de Belo Monte, em construção no Rio Xingu, na região de Altamira
(PA). O documento alerta sobre o risco de os ribeirinhos ficarem desprovidos
de acesso aos seus meios de subsistência. Irregularidades também foram cons-
tatadas em um dossiê elaborado pelo Instituto Socioambiental (ISA), que
monitora as medidas compensatórias ligadas à construção de Belo Monte.
No documento, debatido na última quarta-feira em audiência pública na
Câmara dos Deputados, o ISA faz um levantamento das chamadas ações
antecipatórias de saúde, educação e saneamento básico prometidas para que,
em 2010, o Ibama concedesse a licença prévia de Belo Monte. Segundo o
dossiê, cinco anos depois, a obra está praticamente concluída, enquanto que
as ações fundamentais para a garantia de direitos das populações atingidas
estão atrasadas ou não foram feitas.
Há um descompasso, segundo o ISA, entre o cronograma das obras de
construção da hidrelétrica e da implantação das ações antecipatórias. Para a
instituição, não há condições de o Ibama conceder a licença de operação para 48
Belo Monte: ONG denuncia ir-
regularidades em usina. O Globo.
a usina, solicitada em fevereiro pela Norte Energia, concessionária da hidre- 11/07/15 . Disponível em: http://oglo-
létrica. A previsão é que os reservatórios comecem a ser cheios em setembro. bo.globo.com/economia/belo-monte-
-ong-denuncia-irregularidades-em-
-usina-16733817 Último acesso em
25/07/2016.

FGV DIREITO RIO  203


Direitos Humanos

Obrigados a deixar suas aldeias pelo avanço das obras da usina hidrelétrica
de Belo Monte, sem um plano de reassentamento totalmente estruturado,
os índios ganharam TVs de plasma e combustível e passaram a consumir ali-
mentos industrializados. Esses são alguns dos problemas apontados pelo ISA.
A desnutrição infantil nas aldeias da região de Altamira (PA) cresceu 127%
entre 2010 e 2012. Na mesma época, aumentou em 2.000% os atendimen-
tos de saúde a indígenas.

Consórcio contesta dossiê


Respondendo a 23 ações instauradas pelo Ministério Público Federal no
Pará por irregularidades no projeto, a Norte Energia contesta as informações
do dossiê. Por meio de nota, a empresa diz que as ações que ainda não foram
concluídas estão contratadas e em andamento. “Além de obras e investimen-
tos nas áreas de saúde, educação, saneamento básico, e de infraestrutura nos
cinco municípios de influência direta da Hidrelétrica Belo Monte, a Norte
Energia também já contratou e foram iniciadas as obras de 34 unidades bási-
cas de saúde e de 34 escolas nas aldeias indígenas. A empresa esclarece ainda
que o Plano de Proteção das Terras Indígenas proposto pela Funai está em
execução”, disse a empresa.
A Norte Energia disse ainda estar em discussão com a Funai sobre a cons-
trução de três bases para a implantação de um Sistema de Monitoramento
Remoto com imagens de satélite para toda na Amazônia Legal e de radar para
as áreas de influência de Belo Monte. O diretor de licenças do Ibama, Tho-
maz Toledo, afirmou que recebeu representantes do ISA após a audiência na
Câmara e que vai analisar e incluir os dados do dossiê nos relatórios do órgão.
— O Ibama vai cobrar o que está previsto no processo. Enquanto as metas
não forem cumpridas, vamos exigindo até ter condições de dar um parecer.

Texto 4

Índios Wajãpi serão consultados sobre delimitação de terras no AP49


Índios da etnia Wajãpi, da região Centro-Oeste do Amapá, vão participar
de uma consulta prévia em abril de 2016 para estabelecimento de normas de
como deverão ser realizados os projetos de governo com impacto na vida dos
indígenas da região.
A audiência foi proposta pelos índios, que se disseram ameaçados por uma
suposta invasão de terras para demarcação de assentamento do Instituto de 49
Índios Wajãpi serão consultados
Colonização Agrária (Incra), entre os municípios de Pedra Branca do Ama- sobre delimitação de terras no AP. O
Globo. 22.12.2015. Disponível em:
pari e Serra do Navio. http://g1.globo.com/ap/amapa/
“Não há terra invadida. O que existe é um assentamento gerenciado pelo noticia/2015/12/indios-wajapi-serao-
-consultados-sobre-delimitacao-de-
Incra, que se expande atualmente e, por esse avanço, estamos atualmente -terras-no-ap.html Último acesso em
25/07/2016.

FGV DIREITO RIO  204


Direitos Humanos

tomando medidas necessárias. Os povos indígenas procuraram o MPF [Mi-


nistério Público Federal] e não teria algo melhor do que fazer essa consulta”,
disse o diretor Robson Gualberto, diretor de Ordenamento Territorial do
Instituto de Meio Ambiente do Amapá (Imap).
O governo amapaense, segundo o MPF, foi chamado por causa de des-
matamento provocado pelo avanço do assentamento na região. A expansão é
resultado do déficit habitacional, aponta o Imap.
“Estamos prevendo o que possa acontecer e delimitar a área de cada um.
Conflitos fundiários a gente vê pelo déficit habitacional muito grande e as
pessoas tendem a procurar um local e ficamos penalizados por um ou outro
morador”, comentou o diretor do Imap, em entrevista à Rede Amazônica no
Amapá.
A consulta prévia aos povos Wajãpi é desdobramento de um protocolo
montado pela própria comunidade e apresentado em novembro durante um
seminário, em Macapá. Foi a primeira vez que uma etnia montou um docu-
mento dessa natureza no país. Ele deverá ser usado pelo Incra e governo do
Amapá em delimitações de áreas próximas às comunidades da etnia.
A conferência em 2016 está dividida em duas etapas. A primeira está mar-
cada para abril, entre os dias 4 e 8. Em junho, entre os dias 6 e 10, acontecerá
a outra consulta. Ambas vão ocorrer nas terras Wajãpi, composta por 49
aldeias às margens de BR-210.

LEITURA OBRIGATÓRIA

SICILIANO, André. O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de


Direitos Humanos: análise em dois níveis. São Paulo, IRI/USP, out. 2011.

LEITURA COMPLEMENTAR:

BRUNNER, Lisl. The Rise of Peoples’ Rights in the Americas: The Saramaka
People Decision of the Inter-American Court of Human Rights. Chinese
Journal of International Law (2008) 7 (3): 699-711.

SCHETTINI, Andrea. Por um Novo Paradigma de Proteção dos Direitos


dos Povos Indígenas: Uma Análise Crítica dos Parâmetros Estabelecidos pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sur: Revista Internacional de
Direitos Humanos, v. 9, n. 17, dez. 2012.

FGV DIREITO RIO  205


Direitos Humanos

AULA 21: DIREITO AO DESENVOLVIMENTO

Há muito tempo, a discussão sobre o desenvolvimento das nações e seus


limites é foco constante de debates. No entanto, foi somente nas últimas
décadas que passaram a se destacar algumas limitações mais claras: é o caso
das regras de proteção e preservação ambiental e dos direitos de comunidades
tradicionais, tais como as indígenas e tribais.
Nas sociedades modernas, o desenvolvimento é tema fundamental. Não é
muito difícil extrair esta conclusão ao se observar as grandes pautas interna-
cionais, boa parte da produção acadêmica e mesmo uma parcela considerável
das notícias veiculadas na mídia. Um exemplo simples disso está na própria
terminologia frequentemente utilizada para definir as nações: país desenvol-
vido, país em desenvolvimento e — o já anacrônico — país “subdesenvol-
vido”. Ainda, cabem os exemplos das expressões “desenvolvimento sustentá-
vel”, de grande destaque recente em função do avanço da pauta ambiental;
e “desenvolvimentismo” ou “política desenvolvimentista”, bastante comum
para classificar posturas de países como o Brasil em seu passado (e mesmo na
atualidade), denotando uma política de desenvolvimento a (quase) qualquer
custo e com poucas preocupações de proteção do meio ambiente e dos povos
atingidos.
Na Convenção Americana de Direitos Humanos, esse grande tema vem
sob o nome de “desenvolvimento progressivo”, denotando uma visão especí-
fica de como deve ser encarado o direito ao desenvolvimento:

“Artigo 26 — Desenvolvimento progressivo


Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto
no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, espe-
cialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente
a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas,
sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Or-
ganização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Bue-
nos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por
outros meios apropriados.”

Assim, para este documento, o desenvolvimento, aqui medido em ter-


mos de direitos e de sua efetividade, precisa ser sempre uma preocupação
de implementação crescente, progressiva, devendo levar em conta as normas
comuns às nações americanas signatárias e usar os meios adequados para tal.
É interessante observar esta disposição, já que claramente inova na forma de
se pensar e discutir o tema: desenvolver-se deixa de ser apenas promover o au-
mento do PIB e o crescimento econômico; e passa a ser o fato de se garantir
cada vez mais direitos efetivos à sociedade.

FGV DIREITO RIO  206


Direitos Humanos

É sob esta concepção, bem como sob a ótica da preocupação de assegurar


que as nações tenham meios reais de se manter economicamente, que o di-
reito ao desenvolvimento deve ser encarado na Convenção Americana. E é
nesse ponto que se passam a discutir as limitações dos governos na promoção
de interesses econômicos quando estes se chocam com os direitos de grupos
indígenas e tribais.

TEXTO 1

Direito ao desenvolvimento: Um direito humano50


(Cátia Cristina de Oliveira Bethonico)

É patente que nos últimos anos tem se visto um crescimento intenso das
desigualdades entre os povos do mundo, bem como uma evolução sem pre-
cedentes da distância entre os chamados países desenvolvidos e os países em
desenvolvimento (os subdesenvolvidos). Um bom exemplo e a constatação
de que 20% dos países mais ricos se apropriam de 80% do produto interno
bruto mundial, enquanto que os 20% mais pobres não detêm mais que 1%
desse de produto interno bruto. É um mal que assola grande parte da popu-
lação mundial, e há muito tempo é preocupação entre as nações.
Após inúmeros debates levados por anos, os governos do mundo procla-
maram pela primeira vez, perante as Nações Unidas, que o direito ao desen-
volvimento era um direito humano inalienável. A Declaração sobre o Direito
ao Desenvolvimento, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em
1986, é o símbolo de uma nova maneira de versar sobre a concretização dos
ideais das Nações Unidas, pois ela proclama que “A pessoa humana é o sujeito
central do desenvolvimento e deve ser o participante ativo e o beneficiário do
direito ao desenvolvimento”.
Portanto, o “Direito ao Desenvolvimento é reconhecido pela Organização
das Nações Unidas (ONU) como um direito humano fundamental e indis-
ponível, assim como os demais, e reconhece-o como um direito a igualdade
de oportunidades para as pessoas e as nações”.
Levando em consideração a importância do direito ao desenvolvimento, a
Assembléia Geral decidiu, também em 1986, introduzir como um dos obje-
tivos da Conferência Mundial de Direitos Humanos uma análise da relação
entre o desenvolvimento e o usufruto dos direitos econômicos, sociais e cul-
turais, bem como dos direitos civis e políticos.
O direito ao desenvolvimento passou a ser um direito do homem como 50
Direito ao desenvolvimento: Um
direito humano. Âmbito Jurídi-
qualquer outro, e responsabilidade dos Estados de promovê-lo e efetivá-lo. È co.09/2008. Disponível em: http://
www.ambito-juridico.com.br/site/
também a concretização de um pensamento de Amartya Sen: “É difícil pen- index.php?n_link=revista_arti-
sar que o desenvolvimento possa realmente ser visto independentemente de gos_leitura&artigo_id=5165 Último
acesso: 25/07/2016

FGV DIREITO RIO  207


Direitos Humanos

seus componentes econômicos, sociais, políticos ou jurídicos”. A sociedade


tem que ser atuante para que haja o desenvolvimento.

JURISPRUDÊNCIA E TRATADOS

DECLARAÇÃO SOBRE O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO


(1986)
Artigo 1
1. O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável em
virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a
participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele
contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais possam ser plenamente realizados.
2. O direito humano ao desenvolvimento também implica a plena reali-
zação do direito dos povos de autodeterminação que inclui, sujeito às dispo-
sições relevantes de ambos os Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos,
o exercício de seu direito inalienável de soberania plena sobre todas as suas
riquezas e recursos naturais.

Artigo 3
1. Os Estados têm a responsabilidade primária pela criação das condições
nacionais e internacionais favoráveis à realização do direito ao desenvolvi-
mento.(...)
3. Os Estados têm o dever de cooperar uns com os outros para assegurar
o desenvolvimento e eliminar os obstáculos ao desenvolvimento. Os Estados
deveriam realizar seus direitos e cumprir suas obrigações de modo tal a pro-
mover uma nova ordem econômica internacional baseada na igualdade sobe-
rana, interdependência, interesse mútuo e cooperação entre todos os Estados,
assim como a encorajar a observância e a realização dos direitos humanos.

Artigo 5
Os Estados tomarão medidas resolutas para eliminar as violações maciças
e flagrantes dos direitos humanos dos povos e dos seres humanos afetados
por situações tais como as resultantes do apartheid, de todas as formas de
racismo e discriminação racial, colonialismo, dominação estrangeira e ocupa-
ção, agressão, interferência estrangeira e ameaças contra a soberania nacional,
unidade nacional e integridade territorial, ameaças de guerra e recusas de
reconhecimento do direito fundamental dos povos à autodeterminação.

FGV DIREITO RIO  208


Direitos Humanos

Artigo 8
1. Os Estados devem tomar, a nível nacional, todas as medidas necessárias
para a realização do direito ao desenvolvimento e devem assegurar, inter alia,
igualdade de oportunidade para todos em seu acesso aos recursos básicos,
educação, serviços de saúde, alimentação, habitação, emprego e distribuição
eqüitativa da renda. Medidas efetivas devem ser tomadas para assegurar que
as mulheres tenham um papel ativo no processo de desenvolvimento. Re-
formas econômicas e sociais apropriadas devem ser efetuadas com vistas à
erradicação de todas as injustiças sociais.

Artigo 9
1. Todos os aspectos do direito ao desenvolvimento estabelecidos na pre-
sente Declaração são indivisíveis e interdependentes, e cada um deles deve ser
considerado no contexto do todo.(...)

LEITURA OBRIGATÓRIA

BAXI, Upendra. A evolução do direito ao desenvolvimento. In Symonides,


Janusz. Direitos Humanos: novas dimensões e desafios. Brasília:UNESCO
Brasil, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2003.

LEITURA COMPLEMENTAR:

GARAVITO, César et al. Desenvolvimento e Direitos Humanos: algumas


ideias para iniciar o debate. Sur: Revista Internacional de Direitos Humanos,
v. 9, n. 17, dez. 2012.

NETO, Joaquim. Direito ao Desenvolvimento: o lugar como categoria jurí-


dica necessária a uma sociedade plural. Revista Jurídica da Presidência Brasí-
lia v. 16 n. 109 Jun./Set. 2014 p. 297-318.

FGV DIREITO RIO  209


Direitos Humanos

AULA 22: MEIO AMBIENTE E DIREITOS HUMANOS

Nesta aula, veremos os principais aspectos da proteção do Meio Ambiente


sob a perspectiva dos Direitos Humanos. O direito à vida é universalmente
reconhecido como um direito humano básico ou fundamental, cujo gozo é
“condição necessária para o exercício de todos os outros direitos humanos”.
O direito humano à vida abrange um “princípio substantivo”, pelo qual todo
ser humano tem o inalienável direito de ter sua vida respeitada, e um “prin-
cípio processual”, pelo qual nenhum ser humano deve ser arbitrariamente
privado da vida.
A obrigação negativa (proteção legal desse direito humano básico e da
obrigação de não privar ninguém da vida de forma arbitrária) é seguida de
um dever positivo: tomar todas as medidas necessárias para proteger e preser-
var a vida humana.
Visto em sua ampla dimensão, o direito fundamental à vida compreende o
direito de todo ser humano de não ser privado de sua vida (direito à vida —
direitos civis e políticos) e o direito de ter os meios adequados de subsistência
e um padrão de vida decente (preservação da vida, direito de viver — direitos
econômicos, sociais e culturais).
Em última instância, sem um adequado padrão de vida o direito à vida
não pode realizar-se em sentido pleno (por exemplo, na sua íntima relação
com o direito à saúde e assistência médica, o direito à alimentação e o direito
à moradia). A ONU está convencida de que tanto os indivíduos quanto os
povos possuem o direito inerente à vida. Nessa perspectiva, o direito ao meio
ambiente sadio e o direito à paz surgem como extensões ou corolários do
direito à vida.

DESENVOLVIMENTO DO DIREITO A UM MEIO AMBIENTE SADIO

No século XVIII, com a revolução industrial e a alteração na forma de


produção e consumo, surge a necessidade de adaptação não apenas das rela-
ções sociais, mas também da interação entre o homem e o meio ambiente.
Com o uso cada vez maior dos recursos naturais e os Estados buscando alcan-
çar, cada vez mais, um maior desenvolvimento, surgem diversas catástrofes e
fenômenos ambientais, tais como o aquecimento global e o efeito estufa, e o
crescimento do desmatamento e da poluição.
A proteção do meio ambiente toca diversas outras questões e, no âmbi-
to internacional, uma das mais polêmicas refere-se à polarização de países
desenvolvidos e países em desenvolvimento (países do hemisfério Norte e
do hemisfério Sul). De um lado, os países que já alcançaram certo grau de
desenvolvimento e industrialização, já consumiram boa parte de seus recur-

FGV DIREITO RIO  210


Direitos Humanos

sos naturais. Por sua vez, os países em desenvolvimento muitas vezes ainda
não se utilizaram dos seus próprios recursos, e argumentam que a utilização
de tais recursos é essencial ao desenvolvimento e modernização. Trata-se do
desafio de harmonizar, de um lado, a proteção ao meio-ambiente e, de outro,
o direito ao desenvolvimento.
Em 1972 foi realizada a Primeira Conferência Mundial Sobre o Homem
e o Meio Ambiente, também conhecida como Conferência de Estocolmo,
organizada pela ONU, que contou com a participação de 115 países. Este
foi o primeiro grande marco da proteção ao meio ambiente pela comunidade
internacional, e das disposições e princípios elencados pela Convenção sur-
giram várias outras.
Em 1982 foi realizada a Conferência de Nairóbi, que avaliou o desempe-
nho e o comprometimento dos países em implementar as ações aprovadas
na Conferência de Estocolmo. No mesmo ano foi aprovada a Carta Mundial
para a Natureza, pela Assembleia Geral da ONU, que enfatizava o respei-
to à natureza como um princípio básico. No ano seguinte, a ONU cria a
Comissão Mundial para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, buscando
aproximar os países do hemisfério Norte e Sul na agenda do meio ambiente.
Em 1992 ocorre a Conferência do Rio (ECO 92), novamente para discu-
tir a implementação das políticas aprovadas pela Conferência de Estocolmo.
178 países se reuniram e votaram cinco diferentes instrumentos internacio-
nais: A Declaração de Princípios sobre as Florestas, a Declaração do Rio de
Janeiro, a Agenda 21, a Convenção-quadro sobre as Mudanças Climáticas e
a Convenção Sobre a Diversidade Biológica. De forma geral, a ECO 92 foi
altamente criticada por diversos países. Cabe apontar que a harmonização
entre os interesses dos diferentes países foi processo extremamente difícil,
uma vez que a questão ambiental esbarra necessariamente na econômica, e
os diferentes agentes buscavam defender diferentes interesses. Ainda assim,
a Conferência teve papel essencial na discussão acerca da proteção do meio
ambiente, trazendo-o à agenda internacional, além de ratificar diversos prin-
cípios e diretrizes de proteção assumidos na Conferência de Estocolmo.
20 anos depois, em 2012, é realizada a Rio +20 (Conferência das Nações
Unidas para o Desenvolvimento Sustentável), cuja principal preocupação
referia-se a renovar os compromissos políticos assumidos pelos Estados na
proteção do meio ambiente, além de avaliar o seu desenvolvimento e a im-
plantação de suas políticas. Na Conferência, que contou com a participação
de 193 países, ficou reconhecido, entre outros, que a pobreza é um dos maio-
res desafios ao desenvolvimento sustentável.
Através da análise da realização de todas estas Conferências, deve ser per-
cebido o crescimento da preocupação e da tutela da natureza e do meio am-
biente, a necessidade da implementação de um desenvolvimento sustentável
e da relação direta entre a qualidade de vida do homem e o meio no qual

FGV DIREITO RIO  211


Direitos Humanos

ele está inserido. Apesar de todas as dificuldades políticas e dos conflitos de


interesse, diversos países já reconheceram a necessidade de proteção ao meio
ambiente. A sociedade civil, representada principalmente mas não apenas
através de ONG’s, também desempenha papel fundamental e cada vez mais
engajado com as questões ambientais.

Sistema Interamericano e o Protocolo de São Salvador

Como visto em aula anterior, o Protocolo de São Salvador é protocolo


facultativo à Convenção Americana. No seu artigo 11, elenca:

“Artigo 11
Direito a um meio ambiente sadio

1. Toda pessoa tem direito a viver em meio ambiente sadio e a contar


com os serviços públicos básicos.
2. Os Estados Partes promoverão a proteção, preservação e melhoramen-
to do meio ambiente.”

O Protocolo de São Salvador, estabelece em seu artigo 19.6 que, com re-
lação aos direitos sobre os quais dispõe, apenas os direitos à educação (Artigo
13) e à livre associação sindical (Artigo 8, “a”) poderão ser alvo de petição
individual conforme previsto pelos artigos 44 a 51 e 61 a 69 da Convenção
Americana. Sendo assim, tem-se que a Comissão e a Corte Interamericanas
não têm competência para avaliar uma violação diretamente ao artigo 11 do
Protocolo de São Salvador.
No entanto, a Comissão e a Corte Interamericanas de Direitos Humanos
consolidaram entendimento no sentido de que tal violação pode ser pleitea-
da quando associada à violação de outros Direitos Humanos, tutelados pela
Convenção Americana. Significa dizer que o direito a um meio ambiente
sadio está intrinsecamente relacionado a outros direitos humanos, tais como
o direito à vida e à saúde, e que, consequentemente, a sua violação na maioria
das vezes resulta em violação a outros direitos humanos. Neste sentido, elen-
ca Leonardo Zagonel Serafini:

“O direito à vida é universalmente reconhecido como um direito hu-


mano básico, cujo gozo é condição necessária do gozo de todos os demais
direitos humanos. O mesmo se diz do direito à saúde, pois sua privação
impede a realização plena do ser humano. Assim, sendo o direito a um
meio ambiente equilibrado condição para uma vida saudável, torna-se evi-
dente que o gozo daqueles direitos (vida e saúde) depende diretamente da

FGV DIREITO RIO  212


Direitos Humanos

manutenção da qualidade ambiental. E a existência de um meio ambiente


ecologicamente equilibrado em um contexto onde a população não conse-
gue exercer os direitos básicos do ser humano, tais como: acesso à água, ao
alimento, a uma moradia salubre, não tem sentido no atual contexto social
global.”

Em 2009, o caso La Oroya v. Peru, ao ser analisado pela Comissão Intera-


mericana de Direitos Humanos foi o primeiro a admitir o pedido de violação
ao Artigo 11 do Protocolo de São Salvador, que foi alegado em combinação
com a violação dos direitos à saúde, vida e integridade pessoal. Sendo assim,
a apreciação quanto à violação de tal direito tem sido analisada como via re-
flexa à violação de outros direitos pela Comissão e pela Corte IDH. Valerio
de Oliveira Mazzuoli e Gustavo de Faria Moreira Teixeira, em seu artigo “O
direito internacional do meio ambiente e o greening da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos”[3] explicam tal mecanismo da seguinte forma:

“No âmbito dos sistemas internacionais de proteção aos direitos huma-


nos, o art. 24 da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos de
1981 e o art. 11 do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre
Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
de 1988, o chamado Protocolo de San Salvador, garantem expressamente
o direito ao acesso ao ambiente sadio. Tais dispositivos, no entanto, não
são capazes de, por si só, assegurarem a proteção ao meio ambiente. Isso
porque apenas os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais —
em suma, aqueles definidos pela Declaração Universal de 1948 — estão
ao alcance dos mecanismos de monitoramento dos sistemas de proteção aos
direitos humanos da ONU e das organizações regionais. Por outro lado, os
direitos de solidariedade definidos pela Declaração de Estocolmo de 1972
— como o acesso ao meio ambiente sadio — quando interpretados como
forma de exercício de uma série de direitos individuais e coletivos, passam
a ser plenamente reivindicáveis.
Como bem afirma Carla Amado Gomes, essa vinculação traz o ônus de
uma proteção ambiental pela “via reflexa” ou por “ricochete”, ou seja, da
impossibilidade de um bem ambiental ser protegido nos sistemas de prote-
ção aos direitos humanos sem que se demonstre e prove suas inter-relações
com violações aos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.”

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário de nú-


mero 586.224/SP[4], em 05 de março de 2015, apreciou conflito de compe-

FGV DIREITO RIO  213


Direitos Humanos

tência em legislação ambiental entre Estado e Município. O Ministro Celso


de Mello, no seu voto, teceu inúmeras considerações acerca da proteção am-
biental, inclusive no que se refere a Tratados Internacionais. Transcrevemos
aqui trechos de seu voto, que refletem inúmeras considerações acerca das
obrigações nacionais e internacionais com a proteção do meio ambiente, à
luz também dos direitos humanos:
“Todos sabemos que os preceitos inscritos no art. 225 da Carta Política
traduzem, na concreção de seu alcance, a consagração constitucional, em
nosso sistema de direito positivo, de uma das mais expressivas prerrogativas
asseguradas às formações sociais contemporâneas.
Essa prerrogativa, que se qualifica por seu caráter de metaindividualidade,
consiste no reconhecimento de que todos têm direito ao meio ambiente eco-
logicamente equilibrado. Trata-se — consoante já o proclamou o Supremo
Tribunal Federal (RTJ 158/205-206, Rel. Min. CELSO DE MELLO) com
apoio em douta lição expendida por CELSO LAFER (“A reconstrução dos
Direitos Humanos”, p. 131/132, 1988, Companhia das Letras) — de um
típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste, de
modo subjetivamente indeterminado, a todo o gênero humano.
Tal circunstância, por isso mesmo, justifica a especial obrigação — que
incumbe ao Estado e à própria coletividade (PAULO AFFONSO LEME
MACHADO, “Direito Ambiental Brasileiro”, p. 121/123, item n. 3.1, 13ª
ed., 2005, Malheiros) — de defender e de preservar essa magna prerrogativa
em benefício das presentes e das futuras gerações, evitando-se, desse modo,
que irrompam, no seio da comunhão social, os graves conflitos intergenera-
cionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade na proteção da
integridade desse bem essencial de uso comum de todos quantos compõem
o grupo social.
Vale referir, neste ponto, até mesmo em face da justa preocupação revelada
pelos povos e pela comunidade internacional em tema de direitos humanos,
que estes, em seu processo de afirmação e consolidação, comportam diver-
sos níveis de compreensão e abordagem, que permitem distingui-los em or-
dens, dimensões ou fases sucessivas resultantes de sua evolução histórica (RTJ
164/158-161, v.g.).
Nesse sentido, é de assinalar que os direitos de terceira geração (ou de
novíssima dimensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atri-
buídos, genericamente, e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupa-
mentos sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso
mesmo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito
ao desenvolvimento e o direito à paz), um momento importante no processo
de expansão e de reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes,
enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impregna-
das de uma natureza essencialmente inexaurível, consoante proclama autori-

FGV DIREITO RIO  214


Direitos Humanos

zado magistério doutrinário (CELSO LAFER, “Desafios: ética e política”, p.


239, 1995, Siciliano).
Cumpre rememorar, bem por isso, na linha do que vem de ser afirmado,
a precisa lição ministrada por PAULO BONAVIDES (“Curso de Direito
Constitucional”, p. 481, item n. 5, 4ª ed., 1993, Malheiros), que confere
particular ênfase, entre os direitos de terceira geração (ou de novíssima di-
mensão), ao direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado:

“Com efeito, um novo pólo jurídico de alforria do homem se acres-


centa historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de al-
tíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira
geração tendem a cristalizar-se neste fim de século enquanto direitos
que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um
indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro
por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo
de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade
concreta. Os publicistas e juristas já os enumeram com familiaridade,
assinalando-lhes o caráter fascinante de coroamento de uma evolução
de trezentos anos na esteira da concretização dos direitos fundamentais.
Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento,
à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da
humanidade.”

A preocupação com a preservação do meio ambiente — que hoje trans-


cende o plano das presentes gerações, para também atuar em favor das gera-
ções futuras (PAULO AFFONSO LEME MACHADO, “Direito Ambiental
Brasileiro”, p. 123/124, item n. 3.2, 13ª ed., 2005, Malheiros) — tem cons-
tituído, por isso mesmo, objeto de regulações normativas e de proclamações
jurídicas que, ultrapassando a província meramente doméstica do direito
nacional de cada Estado soberano, projetam-se no plano das declarações in-
ternacionais, que refletem, em sua expressão concreta, o compromisso das
Nações com o indeclinável respeito a esse direito fundamental que assiste a
toda a Humanidade.
A questão do meio ambiente, hoje, especialmente em função da Decla-
ração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente (1972) e das conclusões da
Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
(Rio/92), passou a compor um dos tópicos mais expressivos da nova agenda
internacional (GERALDO EULÁLIO DO NASCIMENTO E SILVA, “Di-
reito Ambiental Internacional”, 2ª ed., 2002, Thex Editora), particularmente
no ponto em que se reconheceu ao gênero humano o direito fundamental à
liberdade, à igualdade e ao gozo de condições de vida adequada, em ambiente

FGV DIREITO RIO  215


Direitos Humanos

que lhe permita desenvolver todas as suas potencialidades em clima de digni-


dade e de bem-estar.

Extremamente valioso, sob o aspecto ora referido, o douto magis-


tério expendido por JOSÉ AFONSO DA SILVA (“Direito Ambiental
Constitucional”, p. 69/70, item n. 7, 4ª ed./2ª tir., 2003, Malheiros):
“A ‘Declaração de Estocolmo’ abriu caminho para que as Cons-
tituições supervenientes reconhecessem o meio ambiente ecologi-
camente equilibrado como um ‘direito fundamental’ entre os direi-
tos sociais do Homem, com sua característica de ‘direitos a serem
realizados’ e ‘direitos a não serem perturbados.
O que é importante (…) é que se tenha a consciência de que o
direito à vida, como matriz de todos os demais direitos fundamen-
tais do Homem, é que há de orientar todas as formas de atuação no
campo da tutela do meio ambiente. Cumpre compreender que ele é
um fator preponderante, que há de estar acima de quaisquer outras
considerações como as de desenvolvimento, como as de respeito
ao direito de propriedade, como as da iniciativa privada. Também
estes são garantidos no texto constitucional, mas, a toda evidência,
não podem primar sobre o direito fundamental à vida, que está em
jogo quando se discute a tutela da qualidade do meio ambiente.
É que a tutela da qualidade do meio ambiente é instrumental no
sentido de que, através dela, o que se protege é um valor maior: ‘a
qualidade da vida’.” (grifei)

Dentro desse contexto, emerge, com nitidez, a ideia de que o meio am-
biente constitui patrimônio público a ser necessariamente assegurado e pro-
tegido pelos organismos sociais e pelas instituições estatais (pelos Municípios,
inclusive), qualificando-se como encargo irrenunciável que se impõe — sem-
pre em benefício das presentes e das futuras gerações — tanto ao Poder
Público quanto à coletividade em si mesma considerada (MARIA SYLVIA
ZANELLA DI PIETRO, “Polícia do Meio Ambiente”, “in” Revista Forense
317/179, 181; LUÍS ROBERTO BARROSO, “A proteção do meio ambien-
te na Constituição brasileira”, “in” Revista Forense 317/161, 167-168, v.g.)
Na realidade, o direito à integridade do meio ambiente constitui prerroga-
tiva jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afir-
mação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder deferido
não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, em um sentido
verdadeiramente mais abrangente, atribuído à própria coletividade social.
O reconhecimento desse direito de titularidade coletiva, tal como se qua-
lifica o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, constitui, por-
tanto, uma realidade a que não mais se mostram alheios ou insensíveis, como

FGV DIREITO RIO  216


Direitos Humanos

precedentemente enfatizado, os ordenamentos positivos consagrados pelos


sistemas jurídicos nacionais e as formulações normativas proclamadas no
plano internacional, como enfatizado por autores eminentes (JOSÉ FRAN-
CISCO REZEK, “Direito Internacional Público”, p. 223/224, item n. 132,
1989, Saraiva; JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Ambiental Constitu-
cional”, p. 46/57 e 58/70, 4ª ed./2ª tir., 2003, Malheiros).
São todos esses motivos que têm levado o Supremo Tribunal Federal
a consagrar, em seu magistério jurisprudencial, o reconhecimento do di-
reito de todos à integridade do meio ambiente e a competência de todos os
entes políticos que compõem a estrutura institucional da Federação em nosso
País, com particular destaque para os Municípios, em face do que prescreve,
quanto a eles, a própria Constituição da República (art. 30, incisos I, II e VII,
c/c o art. 23, incisos II e VI):

“A PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIEN-


TE: EXPRESSÃO CONSTITUCIONAL DE UM DIREITO FUN-
DAMENTAL QUE ASSISTE À GENERALIDADE DAS PESSOAS.
— Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibra-
do. Trata-se de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima
dimensão), que assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206).
Incumbe ao Estado e à própria coletividade a especial obrigação de
defender e preservar, em benefício das presentes e das futuras gerações,
esse direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual (RTJ
164/158-161). O adimplemento desse encargo, que é irrenunciável,
representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da coletivida-
de, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao
dever de solidariedade, que a todos se impõe, na proteção desse bem
essencial de uso comum das pessoas em geral. Doutrina.
A ATIVIDADE ECONÔMICA NÃO PODE SER EXERCIDA
EM DESARMONIA COM OS PRINCÍPIOS DESTINADOS A
TORNAR EFETIVA A PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE.
— A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida
por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de ín-
dole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a ati-
vidade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege,
está subordinada, entre outros princípios gerais, àquele que privilegia
a ‘defesa do meio ambiente’ (CF, art. 170, VI), que traduz conceito
amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio am-
biente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio
ambiente laboral. Doutrina.
Os instrumentos jurídicos de caráter legal e de natureza constitu-
cional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio ambiente, para que

FGV DIREITO RIO  217


Direitos Humanos

não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são inerentes, o


que provocaria inaceitável comprometimento da saúde, segurança, cul-
tura, trabalho e bem-estar da população, além de causar graves danos
ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto
físico ou natural.
A QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL (CF,
ART. 3º, II) E A NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DA INTE-
GRIDADE DO MEIO AMBIENTE (CF, ART. 225): O PRINCÍPIO
DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO FATOR DE
OBTENÇÃO DO JUSTO EQUILÍBRIO ENTRE AS EXIGÊN-
CIAS DA ECONOMIA E AS DA ECOLOGIA.
— O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregna-
do de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitima-
dor em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro
e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da
economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse
postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores consti-
tucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não
comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais signifi-
cativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente,
que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser res-
guardado em favor das presentes e futuras gerações. (…)”

(...)” (Grifo nosso)

NOTÍCIAS:

Texto 1:

Desastre de Mariana: um mês de violações de direitos humanos51


(Fatima Mello — UOL)

Passado um mês do maior desastre ambiental da história do país, graves


violações de direitos humanos seguem ocorrendo na região da Bacia do Rio
Doce, em Minas Gerais. O acesso precário à água limpa, à moradia segura
para as comunidades atingidas e a informações confiáveis têm sido a regra
desde o rompimento da barragem de rejeitos de mineração da empresa Sa- 51
Desastre de Mariana: um mês
marco, controlada pela Vale e BHP Billiton, no início de novembro. de violações de direitos humanos.
UOL.05/12/2015. Disponível em:
O rio de lama tóxica não apenas condenou o direito à subsistência dos http://noticias.uol.com.br/opiniao/
pescadores e de outros trabalhadores que dependem direta ou indiretamente coluna/2015/12/05/desastre-de-
-mariana-um-mes-de-violacoes-de-
das águas do rio Doce, mas revelou, de forma nua e crua, as contradições do -direitos-humanos.htm. Último acesso
em 25/07/2016.

FGV DIREITO RIO  218


Direitos Humanos

atual modelo de desenvolvimento em relação a justiça social e ambiental, a


garantia de direitos e a proteção da vida das pessoas, animais e ecossistemas.
Ancorado em processos de licitação inconsistentes e incompletos, sem en-
volvimento das comunidades diretamente afetadas, sem planos de contin-
gência estruturados para minimizar impactos de desastres e primando pela
falta de transparência e desrespeito às salvaguardas socioambientais, o rompi-
mento das barragens era considerado por muitos uma “tragédia anunciada”.
Nos últimos dias, algumas medidas judiciais começaram a ser encami-
nhadas. Em 27 de novembro, os governos federal e dos Estados de Minas
Gerais e Espírito Santo anunciaram ação civil pública contra a Samarco e
suas controladoras para criar um fundo de R$ 20 bilhões para iniciativas de
minimização dos impactos e indenização. O Ministério Público do Trabalho
de Minas Gerais declarou a intenção de pedir bloqueio dos bens da Vale e
da BHP caso a Samarco não garanta ajuda financeira aos pescadores e outros
trabalhadores afetados.
Essas e outras iniciativas são cruciais, mas ainda há muito por fazer. Faltam
informações precisas sobre a extensão dos danos ao meio ambiente e à saúde,
os custos de reconstrução das comunidades atingidas e as perspectivas de des-
poluição e recuperação da fauna e flora locais. Também não há garantias de
moradia adequada e água limpa e potável para a população atingida —índios
e comunidades ribeirinhas necessitam de especial atenção.

Direitos enfraquecidos
Enquanto o rio de metais pesados se espalha e arrasa vidas em Minas Ge-
rais, em Brasília os instrumentos legais de proteção ambiental, de direitos de
populações afetadas por grandes empreendimentos e de regulação da indús-
tria extrativa mineral correm risco de serem ainda mais enfraquecidos.
Os processos vigentes de licenciamento de grandes empreendimentos ge-
ralmente desconsideram as vozes de defensores locais de direitos humanos
e de territórios tradicionais, priorizando a viabilidade econômica acima da
responsabilidade socioambiental e permitindo que as empresas transfiram os
custos como poluição, gestão de resíduos, remoções de populações e outros
impactos.
E até mesmo estes processos débeis de licenciamento estão sendo des-
montados: dias após a tragédia de Minas Gerais, uma Comissão Especial do
Senado aprovou um mecanismo de aceleração de licenciamento ambiental de
projetos considerados estratégicos, como a usina hidrelétrica de Belo Monte,
por exemplo.
Existe ainda o risco de que o novo Código de Mineração, em tramitação
no Congresso, seja votado a qualquer momento por uma maioria de depu-
tados cujos dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) registram doações
de mineradoras em suas campanhas eleitorais. As comunidades afetadas por

FGV DIREITO RIO  219


Direitos Humanos

empreendimentos da indústria extrativa mineral temem que o novo Código


amplie os poderes das mineradoras para extrapolarem margens de lucros fi-
nanceiros e reduzam compromissos com regulações sociais e ambientais.
O rompimento destas barragens, a flexibilização dos procedimentos de li-
cenciamento ambiental e as pressões das mineradoras na elaboração do novo
Código de Mineração ocorrem em meio ao forte aumento da participação
dos minérios na pauta de exportações do Brasil, tendo como principal desti-
no a China.
Um desastre com a magnitude do ocorrido em Minas Gerais deveria mu-
dar o curso da discussão sobre o Código da Mineração e criar um novo pa-
radigma para a atividade no país, obrigando a indústria a acatar e respeitar
compromissos com a regulação socioambiental. O papel do Estado de regu-
lador e fiscalizador tampouco poderia ser relativizado: de acordo com as nor-
mas internacionais de direitos humanos, o Estado tem a obrigação de gerar,
avaliar, atualizar e disseminar informação sobre o impacto ao meio ambiente
e substâncias e resíduos perigosos, e as empresas têm a responsabilidade de
respeitar os direitos humanos”.
Existem centenas de barragens e sítios de mineração em operação em qua-
se todos os Estados brasileiros. A segurança das comunidades e do meio am-
biente no entorno desses empreendimento deve ser prioridade para governos
de todas as esferas, com o monitoramento e implementação das premissas do
licenciamento pelas empresas responsáveis. O trágico desastre de Minas Ge-
rais e as simultâneas ameaças de fragilização da regulação ambiental são um
alerta sobre os riscos do atual padrão de desenvolvimento. A sociedade bra-
sileira precisa se mobilizar e debater a plena garantia de direitos econômicos,
sociais, culturais e ambientais frente a um modelo extrativista que promove
tantos danos e ameaças à vida.

Texto 2

Acordo de Paris sobre o Clima é aprovado pelo Plenário e vai à pro-


mulgação52
Djalba Lima | 11/08/2016, 19h41

O Plenário aprovou nesta quinta-feira (11/08/2016) o projeto de decreto


legislativo (PDS 19/2016) que confirma a adesão do país ao Acordo de Paris
sobre o Clima, celebrado na capital francesa em 12 de dezembro de 2015, e
assinado em Nova York, em 22 de abril de 2016. Aprovado pela manhã na Co- 52
Notícia disponível em <https://
missão de Relações Exteriores (CRE), o projeto vai agora à promulgação. [...] www12.senado.leg.br/noticias/ma-
O ponto central do documento é a obrigação de que todas as partes reali- terias/2016/08/11/acordo-de-paris-
-sobre-o-clima-e-aprovado-pelo-ple-
zem esforços conter o aquecimento global. O objetivo de longo prazo é o de nario-e-vai-a-promulgacao>, último
acesso em 11/08/2018.

FGV DIREITO RIO  220


Direitos Humanos

manter o aumento da temperatura média global abaixo de 2º C em relação


aos níveis pré-industriais.
O Brasil apresentou uma série de metas no acordo, como o compromisso
de reduzir as emissões de gases do efeito estufa em 37% até 2025 (em relação
aos níveis de 2005), podendo chegar a 43% até 2030, e de baixar em 80% o
desmatamento legal e em 100% o ilegal até 2030. Outra meta para 2030 é
restaurar 12 milhões de hectares de florestas, uma área equivalente ao territó-
rio da Inglaterra.[...]

Desmatamento
Um dos pontos mais significativos das metas, que é a redução de 80% da
taxa de desmatamento da Amazônia Legal, poderá ser atingido até 2020, ain-
da na avaliação da parlamentar. Tomando como referência os níveis de 2005,
segundo ela, já houve uma redução de 75,3%.
O Programa de Agricultura de Baixo Carbono (ABC) é outro aliado na
obtenção das metas acertadas em Paris, de acordo com a senadora. Só na
recuperação de pastagens degradadas é prevista a liberação de 15 milhões de
hectares.
Com várias outras iniciativas, ela espera como resultado total a liberação
de 70 milhões de hectares — “o quanto o Brasil ainda pode produzir sem des-
matar”. Nesses 70 milhões de hectares, poderão ser produzidas 379 milhões
de toneladas de grãos, o que significa quase o dobro da atual produção de 190
milhões de toneladas.

TRATADOS E JURISPRUDÊNCIA

Caso: La Oroya Vs. Peru, Corte Interamericana de Direitos Humanos

DECLARAÇÃO DE ESTOCOLMO SOBRE O AMBIENTE HUMANO

1 — O homem é ao mesmo tempo criatura e criador do meio ambiente,


que lhe dá sustento físico e lhe oferece a oportunidade de desenvolver-se in-
telectual, moral, social e espiritualmente. A longa e difícil evolução da raça
humana no planeta levou-a a um estágio em que, com o rápido progresso
da Ciência e da Tecnologia, conquistou o poder de transformar de inúmeras
maneiras e em escala sem precedentes o meio ambiente. Natural ou criado
pelo homem, é o meio ambiente essencial para o bem-estar e para gozo dos
direitos humanos fundamentais, até mesmo o direito à própria vida.

FGV DIREITO RIO  221


Direitos Humanos

Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento


Princípio 10

A melhor maneira de tratar as questões ambientais é assegurar a


participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No
nível nacional, cada indivíduo terá acesso adequado às informações relati-
vas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive
informações acerca de materiais e atividades perigosas em suas comunida-
des, bem como a oportunidade de participar dos processos decisórios. Os
Estados irão facilitar e estimular a conscientização e a participação popular,
colocando as informações à disposição de todos. Será proporcionado o acesso
efetivo a mecanismos judiciais e administrativos, inclusive no que se refere à
compensação e reparação de danos.

Convenção da Comissão Econômica para a Europa das Nações Uni-


das.
Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.

Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia


Artigo 37.
Proteção do ambiente
Todas as políticas da União devem integrar um elevado nível de proteção
do ambiente e a melhoria da sua qualidade, e assegurá-los de acordo com o
princípio do desenvolvimento sustentável.

Tratado para o Estabelecimento da Comunidade da África Oriental.


ARTIGO 6. No âmbito do desenvolvimento econômico e social:
h) cooperar no aproveitamento e gestão dos recursos naturais, energia e
ambiente;

CAPITULO XVI
COOPERACAO NO APROVEITAMENTO DOS RECURSOS NA-
TURAIS, DO AMBIENTE E DA VIDA SELVAGEM

ARTIGO 1222
Âmbito e princípios da cooperação
1. Os Estados-membros acordam em tomar, para benefício mutuo, me-
didas concertadas para fomentar a cooperação na gestão conjunta e eficiente
e na exploração sustentável dos recursos naturais no interior do Mercado
Comum;
2. Os Estados-membros reconhecem que a atividade econômica é frequen-
temente acompanhada de uma degradação ambiental, de uma depauperação

FGV DIREITO RIO  222


Direitos Humanos

excessiva dos recursos e de um dano considerável ao patrimônio natural, e


que um ambiente despoluído bem como atraente é um pressuposto para o
crescimento econômico a longo prazo.

LEITURA OBRIGATÓRIA:

CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Os direitos humanos e o meio


ambiente. n Symonides, Janusz. Direitos Humanos: novas dimensões e de-
safios. Brasília: UNESCO Brasil, Secretaria Especial dos Direitos Humanos,
2003 (páginas 177-195).

LEITURA COMPLEMENTAR:

SPIELER, Paula: The La Oroya Case: The Relationship Between Environmental


Degradation and Human Rights Violation.

SHELTON, Dinah. Environmental Rights and Brazil’s Obligations in the


Inter-American Human Rights System. George Washington International
Law Review, 2008/2009, Vol. 40 Issue 3, p. 733.

PATRIOTA, Antonio de Aguiar. An Introduction to Brazilian Environmen-


tal Law. George Washington International Law Review, 2008/2009, Vol. 40
Issue 3, p. 611.

SAMET, Jonathan; GRUSKIN, Sofia. Air Pollution, Health, and Human


Rights. The Lancet, October 2014.

SERAFINI, Leonardo Zagonel. Meio Ambiente e Direitos Humanos: Uma


Perspectiva Integral. Em PIOVESAN, Flávia (Coord.). Direitos Humanos.
Vol 1. Curitiba: Juruá, 2006. P. 147 a 165.

FGV DIREITO RIO  223


Direitos Humanos

AULA 23: A DITADURA MILITAR E A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL

INTRODUÇÃO

O surgimento de novas democracias onde antes havia governos autoritá-


rios, não raro de aparência democrática e forte cunho militar, é um dos lega-
dos mais importantes das últimas décadas. Muitas vezes, esses processos de
ruptura e mudança foram provocados por uma sobreposição de forças ou por
uma necessidade de transigir por parte de quem antes estava no poder. Em
todos os casos, tratam-se de situações nas quais foram aplicadas certas medi-
das, mais ou menos drásticas, como marco inaugural de um novo período na
história daquelas nações. Ao conjunto dessas medidas, que serão estudadas
com mais detalhes adiante, dá-se o nome de justiça de transição.
A esse possível mecanismo de responsabilização por violações de direitos
humanos realizadas ao longo de governos ditatoriais, somam-se outras duas
possibilidades, advindas do Direito Internacional: a persecução no âmbito do
Tribunal Penal Internacional, possível apenas para crimes cometidos a partir
de sua criação, em 2002; e a aplicação da doutrina da jurisdição universal,
permitindo que um indivíduo seja processado em um país por atos que não
foram cometidos no mesmo. O primeiro não será abordado, pois já foi es-
tudado nas aulas de Direito Global II, mas o segundo será tema desta aula.

JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: CONCEITO E CASOS

O International Centre for Transitional Justice define a justiça de tran-


sição, ou justiça pós-conflito, como “o nome que se dá a todo aparato de
resposta a violações aos direitos humanos ocorridas em determinado territó-
rio, que se desenvolve por meio da reparação das vítimas, promoção da paz,
reconciliação e democratização”.
No entanto, é preciso atentar para que esta não se confunda com uma
forma de justificar tribunais de exceção ou de dar roupagem jurídica a anseios
vingativos. A justiça transicional tem como objetivo a pacificação das rela-
ções sociais no âmbito de uma nova realidade nacional, reconhecendo que
para tal pode se fazer necessário o julgamento de responsáveis por condutas
criminosas.
Segundo Antonio Cassese, este processo se realiza em quatro etapas após
o fim dos conflitos armados:

“Em primeiro lugar, deve-se identificar as causas econômicas, po-


líticas, sociais e culturais do conflito. Ainda, afastar o que chama de

FGV DIREITO RIO  224


Direitos Humanos

influência perniciosa que exercem os autores de violações passadas. Em


terceiro lugar, afastar sentimentos de ódio que possam surgir nas socie-
dades pós-conflito, conscientizando-as da necessidade de um projeto
de reconciliação nacional. Por fim, seria necessário o estabelecimento
de instituições e estruturas que favoreçam o diálogo e restabelecimento
das relações sociais”.

Além disso, cabe destacar que o estudo dos mecanismos que a compõem
deve sempre ser um processo de adaptação a partir da observação de outros
casos. O aprimoramento da justiça de transição é, por excelência, fruto de
experiências prévias e da pesquisa jurídica comparada. De forma emblemá-
tica e buscando demonstrar vertentes diversas desta, podem ser citadas duas
experiências distintas: aquela que se observou de forma similar em diversos
países da América Latina (como Argentina, Chile e Peru); e, em seguida, o
caso do Brasil.
No primeiro exemplo — que, na realidade, reúne uma gama de casos —,
o principal fator distintivo foi que os processos de responsabilização foram
iniciados imediatamente após a cessação das violações de direitos humanos
e a anistia, apesar de bilateral — isto é, que exime de responsabilidade tanto
os membros das forças insurgentes quanto os agentes estatais —, foi julgada
inconstitucional pelas respectivas cortes nacionais.
Já na situação brasileira, ocorreu o oposto: as primeiras investigações tive-
ram início apenas com a criação das Comissões da Verdade, a partir de 2012,
e a Lei de Anistia de 1979, igualmente bilateral, teve sua constitucionalidade
confirmada pelo STF na ADPF 153, julgada em 2010. Nesta oportunida-
de, o tribunal entendeu que a Lei 6.683/79 fora recepcionada e estava de
acordo com o ordenamento jurídico pátrio. Entretanto, posteriormente, mas
no mesmo ano, adveio condenação do país pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos, no caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”)
v. Brasil, sob o argumento de que o Estado falhou em investigar os casos de
desaparecimento forçado dos membros do movimento durante a década de
1970. Após esta decisão, foi reacendido o debate sobre a constitucionalidade
da anistia concedida.
No cerne desta discussão, insere-se também um novo fator: a Conven-
ção das Nações Unidas sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra
e dos Crimes contra a Humanidade, de 1968. Isto porque, embora o di-
ploma internacional esteja em vigor desde 1970, o Brasil não o ratificou
(e, consequentemente, também não o publicou e promulgou), levantando
argumentos de que não seria passível de aplicação em âmbito interno ou de
responsabilização internacional.
Cabe, por fim, destacar um último conjunto de medidas de justiça tran-
sicional, mais comumente referido como exemplo de justiça restaurativa: o

FGV DIREITO RIO  225


Direitos Humanos

caso da África do Sul no período pós-apartheid. Levado a cabo sob a liderança


do ativista, ex-prisioneiro e presidente Nelson Mandela e do arcebispo Des-
mond Tutu, o processo de transição foi marcado pela criação da Comissão de
Verdade e Reconciliação — que serviu de inspiração às comissões brasileiras.
A recepção deste conceito foi bastante controvertida, como demonstra Simo-
ne Martins Rodrigues Pinto:

“Em 1995, quando a África do Sul pós-apartheid estabeleceu a Co-


missão de Verdade e Reconciliação, recebeu duras críticas dos ativis-
tas ocidentais por oferecer anistia aos agentes da opressão. Todavia, os
procedimentos foram baseados na idéia de justiça restaurativa e não
retributiva. Apesar da anistia, o reconhecimento da verdade e a rejeição
social dos atos cometidos funcionaram como um processo de repro-
vação moral. O arcebispo anglicano Desmond Tutu, um dos maiores
defensores das comissões de verdade e da justiça restaurativa, ressaltou
que esta visão é baseada não só em idéias cristãs de perdão para aqueles
que reconhecem seus erros como também no conceito indígena africa-
no de ubuntu”.

A definição de ubuntu, desenvolvida por Tutu, está ligada à busca por


harmonia social. Em suas palavras, “um ser humano só é um ser humano
por meio de outros e, se um deles é humilhado ou diminuído, o outro o será
igualmente” (TUTU, 2000, p. 35, tradução minha). É a idéia de comparti-
lhamento, de pertencimento a uma comunidade.”

JURISDIÇÃO UNIVERSAL

O princípio da jurisdição universal é comumente baseado na idéia de que


certos crimes constituem um ataque contra toda a comunidade internacio-
nal, na medida em que jus cogens, ou normas compartilhadas por todos os
membros daquela comunidade, de modo que cada estado tem um interesse
legítimo em sua repressão.
Tradicionalmente, a jurisdição penal é primariamente ligada à territoriali-
dade do Estado. No entanto, outras formas de jurisdição, com base em outras
ligações (por exemplo, nacionalidade) também existem e abrem o caminho
para a aplicação extraterritorial da jurisdição. Assim, os estados podem exer-
cer jurisdição sobre os crimes que foram cometidos por seus cidadãos no
exterior ou sobre os crimes cometidos contra os seus cidadãos no território
de um estado estrangeiro. Outra forma de jurisdição extraterritorial que foi
desenvolvida ao longo dos anos permite aos estados exercer jurisdição onde
existe um risco para os próprios interesses nacionais

FGV DIREITO RIO  226


Direitos Humanos

As formas de jurisdição extraterritorial acima têm um elemento universal,


mas todas são baseadas na existência de um certo elo no momento da alegada
prática do crime ao estado que exerce a jurisdição. A jurisdição universal, por
outro lado, não tem como base tais elos com o estado, mas sim na natureza
do crime.
Historicamente, a jurisdição universal tem sido aplicada a atores não es-
tatais, tais como piratas e mercadores de escravos. Após a Segunda Guerra
Mundial e as muitas atrocidades que foram cometidas desde então ao redor
do mundo, o princípio foi gradualmente ampliado para aplicar a funcio-
nários do Estado e para cobrir os crimes contra a humanidade, genocídio,
crimes de guerra e tortura. No entanto, o alcance jurídico exato do princípio,
como resultante do direito internacional, manteve-se incerto e continua a ser
debatido. Em 1998, pela primeira vez, um processo de jurisdição universal
foi iniciado contra um ex-chefe de Estado, quando um tribunal espanhol
acusou Augusto Pinochet, ex-presidente e ditador do Chile, por violação dos
direitos humanos cometida por ele no Chile. Após a emissão de mandado de
prisão internacional contra Pinochet, ele foi detido pelas autoridades britâni-
cas, e considerado legalmente passível de extradição. Eventualmente, ele não
foi extraditado para a Espanha e foi autorizado a regressar ao Chile por conta
de sua saúde debilitada. No entanto, neste caso foi o primeiro de muitos
processos de jurisdição universal que foram iniciadas ao longo dos anos que
o seguiram em todo o mundo.
Entretanto, os casos de jurisdição universal que se seguiram se mostra-
ram altamente seletivos. A maioria dos casos que eventualmente levaram à
acusações e julgamentos envolvem autoridades de países africanos, enquanto
que casos contra supostos indivíduos de países poderosos não conseguiram
avançar. Tal exercício seletivo da jurisdição universal deu margem à crítica,
e países poderosos foram acusados ​​de aplicar um duplo critério de prestação
de contas. No entanto, a desaprovação da prática também foi direcionada
para aqueles que se esforçaram para uma ampla aplicação do princípio, como
defensores de direitos humanos que iniciaram processos de jurisdição univer-
sal. Quando as tentativas de trazer tais casos a julgamento inevitavelmente
falharam, seus proponentes foram acusados de ​​ abusar do princípio e, assim,
minar a solidificação da jurisdição universal.

FGV DIREITO RIO  227


Direitos Humanos

NOTÍCIA 1

Prisão de Pinochet foi o caso mais famoso de aplicação da jurisdição


universal
Juiz espanhol Baltasar Garzón ordenou detenção de ex-ditador chileno
em 1998
12/02/2014 — O Globo

MADRI — O caso mais emblemático do princípio de jurisdição inter-


na— cional consagrado pela Espanha nas últimas três décadas aconteceu em
1998. Em 16 de outubro daquele ano, o ex-ditador chileno Augusto Pino-
chet, então com 82 anos, foi preso numa clínica de Londres, onde se recupe-
rava após ser operado de uma hérnia na coluna. Quinze agentes da Scotland
Yard cum— priram uma ordem judicial emitida pelo juiz espanhol Baltasar
Garzón, que baseou-se na competência atribuída à Audiência Nacional espa-
nhola para acusar Pinochet de crimes de genocídio e terrorismo.
Garzón — que já chegou a acusar Osama bin Laden e funcionários do
governo de George W. Bush por violações dos direitos humanos — ordenou
a detenção de Pinochet para que o chileno fosse interrogado pelo assassinato
e desaparecimento forçado de espanhóis durante a ditadura militar no Chile,
entre 1973 e 1990. No regime de Pinochet, ao menos três mil pessoas foram
mortas, e outras 30 mil torturadas
A ordem emitida por Garzón irritou os advogados de Pinochet. Em no—
vembro, o ex-ditador chileno disse que se sentia “traído” pelo governo britâ—
nico. Em 11 de dezembro de 1998, Pinochet compareceu pela primeira vez
diante de um tribunal londrino e classi cou como “mentira” as acusações
contra ele. Seis dias depois, recuperou a imunidade, embora vigiado. Seus
advogados alegaram que o estado de saúde do ex-governante havia piorado.
Em janeiro de 2000, o Ministério do Interior britânico anunciou que os
exames médicos de Pinochet indicavam que ele não estava em condições de
ser julgado.
O ex-ditador morreu aos 91 anos no Hospital Militar de Santiago, em
dezembro de 2006, sem nunca ter prestado contas com a Justiça. Mas, para
organizações de direitos humanos e especialistas, sua detenção foi um dos
momentos mais marcantes na jurisdição internacional: foi a primeira vez que
se expressou publicamente que um ex-chefe de Estado não teria imunidade
diante de crimes de grande repercussão internacional. O caso também abriu
espaço para ao menos 100 julgamentos contra violadores de direitos huma-
nos nos últimos 15 anos.

FGV DIREITO RIO  228


Direitos Humanos

TRATADOS E JURISPRUDÊNCIA

LEI No 6.683, DE 28 DE AGOSTO DE 1979.


Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido
entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes
políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos
políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de
fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legisla-
tivo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, pu-
nidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).
§ 1º — Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de
qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por mo-
tivação política.
Art. 11.Esta Lei, além dos direitos nela expressos, não gera quaisquer ou-
tros, inclusive aqueles relativos a vencimentos, saldos, salários, proventos, res-
tituições, atrasados, indenizações, promoções ou ressarcimentos.

LEI Nº 9.140, DE 04 DE DEZEMBRO DE 1995.


Art. 1o São reconhecidos como mortas, para todos os efeitos legais, as
pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação,
em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro
de 1988, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos,
achando-se, deste então, desaparecidas, sem que delas haja notícias.
Art. 4º Fica criada Comissão Especial que, face às circunstâncias descritas
no art. 1º desta Lei, assim como diante da situação política nacional compre-
endida no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, tem as
seguintes atribuições: (Redação dada pela Lei nº 10.875, de 2004)
I — proceder ao reconhecimento de pessoas:
a) desaparecidas, não relacionadas no Anexo I desta Lei;
b) que, por terem participado, ou por terem sido acusadas de participação,
em atividades políticas, tenham falecido por causas não-naturais, em depen-
dências policiais ou assemelhadas; (Redação dada pela Lei nº 10.875, de 2004)
c) que tenham falecido em virtude de repressão policial sofrida em mani-
festações públicas ou em conflitos armados com agentes do poder público;
(Incluída pela Lei nº 10.875, de 2004)
d) que tenham falecido em decorrência de suicídio praticado na iminência
de serem presas ou em decorrência de seqüelas psicológicas resultantes de
atos de tortura praticados por agentes do poder público; (Incluída pela Lei
nº 10.875, de 2004)
II — envidar esforços para a localização dos corpos de pessoas desapare-
cidas no caso de existência de indícios quanto ao local em que possam estar
depositados;

FGV DIREITO RIO  229


Direitos Humanos

III — emitir parecer sobre os requerimentos relativos a indenização que


venham a ser formulados pelas pessoas mencionadas no art. 10 desta Lei.

LEI No 10.559, DE 13 DE NOVEMBRO DE 2002.


Art. 2o São declarados anistiados políticos aqueles que, no período de 18
de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988, por motivação exclusivamen-
te política, foram:
I — atingidos por atos institucionais ou complementares, ou de exceção
na plena abrangência do termo;
II — punidos com transferência para localidade diversa daquela onde
exerciam suas atividades profissionais, impondo-se mudanças de local de re-
sidência;
III — punidos com perda de comissões já incorporadas ao contrato de
trabalho ou inerentes às suas carreiras administrativas;
IV — compelidos ao afastamento da atividade profissional remunerada,
para acompanhar o cônjuge;
V — impedidos de exercer, na vida civil, atividade profissional específica
em decorrência das Portarias Reservadas do Ministério da Aeronáutica no
S-50-GM5, de 19 de junho de 1964, e no S-285-GM5;
VI — punidos, demitidos ou compelidos ao afastamento das atividades
remuneradas que exerciam, bem como impedidos de exercer atividades pro-
fissionais em virtude de pressões ostensivas ou expedientes oficiais sigilosos,
sendo trabalhadores do setor privado ou dirigentes e representantes sindicais,
nos termos do § 2o do art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Tran-
sitórias;
VII — punidos com fundamento em atos de exceção, institucionais ou
complementares, ou sofreram punição disciplinar, sendo estudantes; (...)

ADPF 153 (STF — 2010) — OAB propõe argüição de descumprimento


de preceito fundamental objetivando a declaração de não-recebimento, pela
Constituição do Brasil de 1988, do disposto no § 1o do artigo 1o da Lei n.
6.683, de 19 de dezembro de 1979. A concessão da anistia a todos que, em
determinado período, cometeram crimes políticos estender-se-ia, segundo
esse preceito, aos crimes conexos —-— crimes de qualquer natureza relacio-
nados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

LEITURA OBRIGATÓRIA

VENTURA, Deisy. A interpretação judicial da Lei de Anistia brasileira e o


Direito Internacional. In A anistia na era da responsabilização: o Brasil em
perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Co-

FGV DIREITO RIO  230


Direitos Humanos

missão de Anistia; Oxford: Oxford University, Latin American Centre, 2011,


p. 308 (recomendo a leitura completa, mas para quem achar longo, ignorar
a parte 4 e a conclusão).

LEITURA COMPLEMENTAR:

A anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional


e comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford:
Oxford University, Latin American Centre, 2011 (Livro completo).

JAPIASSÚ, C. E. A. e MIGUENS, M. S. Justiça de Transição. Uma aplica-


ção dos Princípios de Chicago à realidade brasileira. Revista Eletrônica de
Direito Penal AIDP-GB. Ano 1, Vol. 1, Nº 1. Junho 2013.

PINTO, Simone Martins Rodrigues. Justiça transicional na África do Sul:


restaurando o passado, construindo o futuro. Contexto int., Rio de Janeiro,
v. 29, n.2, p. 393-421, Dec. 2007.

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório da Comissão Nacional


da Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volumes 1, 2 e 3.

Comparative Country Studies Regarding Truth, Justice, and Reparations for


Gross Human Rights Violations— Brazil, Chile, and Guatemala, IHRLC
Working Paper Series No. 2, APRIL 2014.

FGV DIREITO RIO  231


Direitos Humanos

AULA 24: O PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL NA PROTEÇÃO DOS


DIREITOS HUMANOS

A aula 24 será ministrada por convidada(s) que atuem com a proteção de


direitos humanos.

NOTÍCIA

De forma geral, a proteção dos Direitos Humanos tem como principais


agentes os próprios Estados. Isso porque eles são os que são sancionados
quando de alguma violação, os que voluntariamente reconhecem e ratificam
os tratados, os que devem implementar medidas e políticas para cessar viola-
ções e promover os Direitos Humanos.
Isto posto, deve-se apontar que, ao lado dos Estados, outros agentes tam-
bém atuam de forma ativa para a tutela dos Direitos Humanos. Os principais
agentes são as Organizações Não-Governamentais. Muitas vezes, tais ONG’s
são capazes de observar violações de Direitos Humanos de forma mais próxi-
ma, atuando em contato direto com pessoas em situações de violação e que
precisam de amparo estatal.
Além de atuar no plano nacional, tais instituições também desempenham pa-
pel fundamental no plano internacional, sendo que na maior parte das convenções
internacionais elas se fazem presentes e apresentam também as suas demandas.
Estas organizações representam o engajamento do povo e da sociedade
com os temas da agenda do Estado, exprimindo quais são os seus desejos e
como reconhecem o valor de determinado bem jurídico, lutando pela sua
tutela. Seu principal papel é de regular e pressionar as ações do governo.
Atualmente, no Brasil, estima-se que existam mais de 350 mil ONG’s,
sendo que muitas delas alcançam reconhecimento internacional.
Alguns cenários políticos conduziram ao crescimento das ONG’s em pro-
teção aos Direitos Humanos no Brasil, tais como a ditadura militar e as Con-
venções de Meio-Ambiente realizadas no Rio de Janeiro (Rio 92 e Rio +20).
Pode-se dizer que a ditadura militar, em função das inúmeras violações a
direitos humanos que foram praticadas, e as Convenções do Rio em função
da grande repercussão e atenção internacionais.

LEITURA OBRIGATÓRIA

Oscar Vilhena Vieira; A. Scott DuPree. Reflexões acerca da sociedade civil e


dos direitos humanos. SUR — REVISTA INTERNACIONAL DE DIREI-
TOS HUMANOS, Ano 1, Número 1 (2004).

FGV DIREITO RIO  232


Direitos Humanos

LEITURA COMPLEMENTAR:

BEETHAM, David. Democracia e os Direitos Humanos: Direitos civis, políti-


cos, econômicos, sociais e culturais. In Direitos Humanos: Novas Dimensões e De-
safios. Organizado por Janusz Symonides. Brasília: UNESCO Brasil, Secre-
taria Especial dos Direitos Humanos, 2003. Disponível em <http://unesdoc.
unesco.org/images/0013/001340/134027POR.pdf> Acesso em 09.07.2015.
Páginas 107 a 137.

Obs. Outro texto poderá ser indicado pela(o) convidada(o).

FGV DIREITO RIO  233


Direitos Humanos

AULA 25: PRIVACIDADE

Nos últimos anos, a coleta e o uso dos dados pessoais dos consumidores
despontam como mais uma fonte de violações aos Direitos Humanos, in-
clusive ao direito à privacidade. Neste sentido, os próprios termos de uso
figuram como um mecanismo potencial de violação.
Em sua origem, o direito à privacidade concentrava-se na proteção frente
ao Estado. Atualmente, contudo, as discussões sobre privacidades também
buscam fazer frente às potenciais atividades violadoras dos entes privados.
A importância do direito à privacidade cresce à medida em que facilita-se
sua violação através de novas tecnologias de informação e comunicação, daí
a necessidade de o artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
prever inclusive que: “No one shall be subjected to arbitrary interference
with his privacy, family, home or correspondence, nor to attacks upon his
honour and reputation. Everyone has the right to the protection of the law
against such interference or attacks.”

DIREITO À PRIVACIDADE NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

Com as revelações de Edward Snowden, whistleblower americano que de-


nunciou ao mundo as práticas de vigilância de dados em massa de agências de
inteligência dos Estados Unidos (em especial o programa PRISM da Agência
Nacional de Segurança/National Security Agency ou NSA) em junho de 2013,
a privacidade se tornou um dos temas centrais da discussão pública global. O
caso Snowden também modificou o comportamento da sociedade quanto à
privacidade: segundo pesquisa do Centre for International Governance Inno-
vation, 64% dos entrevistados estão mais preocupados com sua privacidade
e 39% passaram a proteger mais sua privacidade em reação às práticas de
espionagem norte-americanas. Segundo o especialista em segurança Bruce
Schneier, os dados da pesquisa do CIGI indicam que cerca de 706 milhões
de pessoas ao redor do globo mudaram seus hábitos, buscando proteger-se da
vigilância digital.
Nos últimos anos, a coleta e o uso dos dados pessoais dos consumidores
despontam como mais uma fonte de violações aos Direitos Humanos, in-
clusive ao direito à privacidade. Neste sentido, os termos de uso aparecem
como um mecanismo de violação. Que usuário realmente lê um termo de
uso? Como disse Par Lannero, fundador da “Common Terms and the Biggest
Lie”, a expressão “Eu li e concordo com os termos de uso” é a maior mentira
da Internet. O problema é que há implicações jurídicas no ato do usuário
clicar na opção “Li e aceito os termos de uso” que podem afetar o exercício
de seus direitos à privacidade, à liberdade de expressão e ao acesso a justiça.

FGV DIREITO RIO  234


Direitos Humanos

Pergunte-se: qual o grau de controle que você tem sobre seus dados pessoais
no Facebook? Você sabia que ao aceitar os termos de uso da rede social, você
concede uma licença para uso livre, inclusive comercial, de qualquer material
protegido por direito autoral, como fotos e vídeos?
São problemas novos no campo dos Direitos Humanos e que ainda não
possuem soluções ou estratégias claras de enfrentamento. Por isso mesmo,
são desafios fundamentais para a tutela efetiva do direito à privacidade, entre
outros. Assim, como o jurista deve entender as questões relevantes para a
proteção do direito à privacidade no cenário complexo da Sociedade da In-
formação? Além disso, como pode atuar para desenhar soluções inovadoras?

AFINAL, O QUE É O DIREITO À PRIVACIDADE?

Por muito tempo, as tradições jurídicas de todo o globo, inclusive a brasi-


leira, pensaram o direito à privacidade não como uma proteção integral, mas
como uma proteção à alguns aspectos da privacidade, como o sigilo da cor-
respondência. Ainda assim, esta proteção era pensada através do paradigma
restrito da intercetação, escuta e do grampo...

“situações que são apenas uma parcela dos problemas que podem ocorrer
no tratamento de dados com a utilização das novas tecnologias — não é
possível proporcionar uma tutela efetiva aos dados pessoais na amplitu-
de que a importância do tema hoje merece.” (DONEDA, 2011)

A ideia de um direito à privacidade foi discutida pela primeira vez em


1890, no artigo “The Right to Privacy” dos juristas norte-americanos Samuel
Warren e Louis Brandeis. O artigo causou um grande impacto na cultura
jurídica americana e disseminou a ideia de um direito à privacidade no mun-
do. É possível observar, também, que em sua origem, o direito à privacidade
concentrava-se na proteção frente ao Estado. Atualmente, contudo, as discus-
sões sobre privacidades também buscam fazer frente às potenciais atividades
violadoras dos entes privados.
No âmbito internacional, o direito à privacidade pode ser encontrado de
forma explícita no artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH, adotada em 1948) e no artigo 17 do Pacto Internacional dos Direi-
tos Civis e Políticos (PIDCP, adotado em 1966), além de outras convenções
internacionais e regionais de direitos humanos (KURBALIJA, 2014), como
no parágrafo primeiro do artigo 8 da Convenção Européia sobre Direitos
Humanos (CEDH, adotada em 1950):

FGV DIREITO RIO  235


Direitos Humanos

“No one shall be subjected to arbitrary interference with his privacy,


family, home or correspondence, nor to attacks upon his honour and re-
putation. Everyone has the right to the protection of the law against such
interference or attacks.” — Artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos (grifo nosso)
“1. No one shall be subjected to arbitrary or unlawful interference with
his privacy, family, home or correspondence, nor to unlawful attacks on
his honour and reputation.
2. Everyone has the right to the protection of the law against such inter-
ference or attacks.” — Artigo 17 do Pacto Internacional dos Direitos Civis
e Políticos (grifo nosso)
“Everyone has the right to respect for his private and family life, his
home and his correspondence.” — Parágrafo primeiro do Artigo 8 da Con-
venção Européia sobre Direitos Humanos (grifo nosso)

Observa-se que tanto na DUDH quanto no PIDCP, optou-se pelo ter-


mo ‘privacidade’, enquanto o termo ‘vida privada’ foi utilizado na CEDH.
Ambos, porém, são utilizados como uma garantia ampla ou como um termo
“guarda-chuva”, isto é, uma previsão de um direito que compreende vários
aspectos (como o sigilo da correspondência, por exemplo). Esta distinção
é importante pois, por muito tempo, o direito à privacidade foi entendido
restritamente, o que implica em uma tutela inefetiva no contexto do uso das
novas tecnologias de informação e comunicação (DONEDA, 2011), como
veremos posteriormente.
Em geral, os direitos humanos internacionais são direitos fundamentais
estabelecidos em constituições nacionais, posteriormente positivando-se nos
tratados internacionais. O direito à privacidade — como um termo guarda-
-chuva ou uma garantia integral — entretanto, foi reconhecido como um
direito humano internacional quando ainda nenhuma constituição previa
sua existência: na época da elaboração da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e da Conven-
ção Européia sobre Direitos Humanos, apenas alguns aspectos do direito à
privacidade, como a inviolabidade do lar e da correspondência, eram prote-
gidos constitucionalmente (DIGGELMANN e CLEIS, 2014).
Curiosamente, o direito à privacidade como uma proteção ampla não ge-
rou grandes discussões no processo de elaboração dos referidos documentos
internacionais. Uma hipótese plausível é que, na época, os elaboradores da
DUDH, da PIDCP e da CEDH subestimaram o potencial do direito à pri-
vacidade (DIGGELMANN e CLEIS, 2014).

FGV DIREITO RIO  236


Direitos Humanos

O QUE É SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO?

“De acordo com estudo de 2012 da Intel, em um único minuto são gerados
na internet mais de 6 milhões de visualizações de postagens no Facebook. Mais
de 200 milhões de e-mails são enviados. Mais de 2 milhões de pesquisas são re-
alizadas no Google. E o número de dispositivos conectados irá dobrar até 2015.
Isso sem considerar todos os dados que fornecemos para as empresas de telefonia
móvel, para os bancos, para os supermercados com seus cartões de fidelidade.”
(MONCAU, 2013)
A importância do direito à privacidade cresce à medida em que facilita-se
sua violação através de novas tecnologias de informação e comunicação. Em
1928, por exemplo, já discutia-se, nos Estados Unidos, o aumento do poder
governamental em vigiar seus cidadãos e violar sua privacidade, quando da
disseminação da tecnologia telefônica.
A informação sempre foi uma peça-chave para o exercício da autoridade
e controle estatal sobre seu território e sua população. Governos coletam
grandes quantidades de informações pessoais, como registros de nascimento
e casamento, números de identidade, registros criminais, informações fiscais,
registros de imóveis, de propriedade de carros etc. O indivíduo não pode op-
tar por não fornecer seus dados pessoais ao Estado: ainda que migrasse para
outro país, enfrentaria o mesmo problema.
Na Era da Informação que vivenciamos, tecnologias da informação são
utilizadas para a coleta, agregação e processamento destes dados pessoais.
Neste contexto, o direito à privacidade, como um direito “guarda-chuva”, se
tornou um direito chave nas discussões internacionais.

TRÊS GRANDES PROBLEMAS PARA O DIREITO À PRIVACIDADE NA


SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

a) Vigilância digital massificada, cybersegurança e cyberwarfare

Em junho de 2013, o jornal britânico The Guardian passou a publicar uma


série de reportagens sobre a espionagem em massa mantido pela NSA (Na-
tional Security Agency), agência de inteligência dos Estados Unidos. As re-
portagens se basearam em documentos confidenciais fornecidos por Edward
Snowden, ex-funcionário da referida agência. Revelou-se o uso da tecnologia
por governos para rastreamento e monitoramento em massa da comunicação
de usuários de diversos aplicativos conectados à internet.

FGV DIREITO RIO  237


Direitos Humanos

b) Abuso do uso de dados pessoais, sua proteção e a questão dos termos de uso

“[A capacidade de processar grandes quantidades de informações é]


grande ameaça à privacidade dos cidadãos. Por meio do tratamento de
dados (cruzamento de informações coletadas), cada vez mais será possível
traçar um perfil completo dos usuários das tecnologias de informação e co-
municação.” (MONCAU, 2013)

Em uma economia da informação, os dados dos consumidores, inclusi-


ve suas preferências e perfis de consumo, tornarem-se commodities valiosas.
Alguns modelos de negócios, como os de Google, Facebook e Amazon, pos-
suem como elemento-chave a coleta e o processamento destes dados pessoais.
Estima-se, por exemplo, que para cada usuário dos serviços de Google, a em-
presa consegue gerar uma receita de mais de 500 dólares, anualmente, através
dos dados pessoais coletados.
Não se tratam de serviços gratuitos. Na verdade, o preço pago pelo con-
sumidor são seus dados pessoais, coletados através do preenchimento de for-
mulários, pagamentos eletrônicos ou pelo uso de cookies que observam o
comportamento virtual do consumidor (KURBALIJA, 2014). No Brasil, a
regulamentação da proteção dos dados pessoais é dispersa em vários diplomas
legais, como o Marco Civil da Internet, a Lei de Habeas Data, a Lei de Acesso
à Informação e o Código de Defesa do Consumidor.

c) (Abuso da) Privacidade v. Liberdade de Expressão: a questão do direito ao


esquecimento

“A internet é uma fantástica máquina de publicar, conectar e interagir.


Pouca gente, especialmente os mais jovens, imagina as consequências de
relatar sua vida inteira na rede, hoje. Quantos, entre os 13 e 19 anos [ou
mais], escrevem e publicam coisas das quais não se orgulharão muito em
uns poucos anos? Isso sem falar na informação que, mesmo eu e você não
querendo, acaba à disposição dos sistemas de informação pelos quais passa-
mos no dia a dia.
Viktor Mayer-Schönberger diz que sistemas de informação deveriam,
necessariamente, esquecer. As tecnologias para captura, publicação, arma-
zenamento, replicação, busca e disseminação de informação, combinadas
na rede nos últimos anos, criaram uma nova capacidade: a incapacidade
de esquecer.” (MEIRA, 2013)

Imagine que você cometeu um crime nos anos 2000, independente da


gravidade. Você foi julgado, condenado e cumpriu sua pena. Uma notícia do

FGV DIREITO RIO  238


Direitos Humanos

seu ato criminoso — digamos “Estudante da FGV DIREITO RIO agride


colega” — permanece na rede, contudo. Qualquer busca por seu nome em
Google traz, como um dos primeiros resultados, esta notícia. Sem dúvida
alguma, isso afetará sua carreira e sua vida por um tempo indefinido, talvez
muito maior que qualquer pena possível de ser cominada aquele crime. Será
que isto é justo?

ATIVIDADE DE DESIGN INSTITUCIONAL

Os alunos serão divididos em grupos de três pessoas. Cada grupo deverá


escolher um problema para a efetivação do direito à privacidade e desen-
volver uma solução criativa. Não é necessário que o grupo escolha um dos
problemas apresentados na apostila. Além disso, a solução pode ser de algum
aspecto específico do problema, o que deve ser explicitado.
A forma da solução é livre. Pode ser, por exemplo, uma lei nacional, um
tratado internacional, um software, um negócio, uma organização não-go-
vernamental (ONG). Cada grupo terá até 15 minutos para sua apresentação.
Em seguida, o professor e os demais alunos terão 10 minutos para fazer per-
guntas ao grupo.
Serão critérios para a avaliação da apresentação:
1) O grupo conseguiu descrever e delinear com clareza o problema que
pretendem resolver?
2) O grupo conseguiu expor as principais características de sua solução?
As principais característicais de uma solução são aquelas que a tornam pos-
sível e efetiva.
3) A solução apresentada é factível? O grupo conseguiu responder bem as
perguntas do professor e dos demais alunos que colocam em dúvida a facti-
bilidade da solução?
4) Quão criativa é a solução apresentada? O grupo apenas reproduziu
alguma iniciativa já existente?

TEXTO 1

Os rumos da agenda de proteção de dados e da privacidade na Internet


Por Thiago Luís Sombra (09.07.2016)

A proteção de dados pessoais e o direito à privacidade na internet pare-


cem ter conquistado a agenda dos principais atores estatais, do mercado e da
sociedade civil nos últimos tempos. No Brasil, o Marco Civil da Internet foi
objeto de recente regulamentação (Decreto 8.771/16), a Política de Dados

FGV DIREITO RIO  239


Direitos Humanos

Abertos do Poder Executivo foi instituída (Decreto 8.777/16), o serviço de


música por streaming foi disciplinado pelo Ministério da Cultura (IN MinC
1/16), o Anteprojeto de Proteção de Dados Pessoais foi enviado ao Con-
gresso Nacional (PL 5.276/16) e uma ação direta de inconstitucionalidade
foi proposta no Supremo Tribunal Federal contra o Marco Civil da Internet
(ADI 5.527).
Sob outra perspectiva, União Europeia e Estados Unidos celebraram novo
acordo transnacional para troca de dados (Privacy Shield) após o anterior
(Safe Habor) ter sido declarado nulo pela Corte Europeia de Justiça. E, no
final de maio, entrou em vigor a Diretiva Europeia (n. 680/16) e o Regula-
mento de Proteção de Dados Pessoais (n. 679/16). Em razão destes fatores,
empresas brasileiras estão antecipando a implantação de programas de in-
tegridade e gestão de riscos de dados pessoais (privacy compliance officer e
privacy risk management), de modo a otimizar as suas relações comerciais e
vantagens competitivas com o continente europeu. Isto porque, com a pos-
sível aprovação do Anteprojeto de Proteção de Dados, tais medidas também
deverão ser adotadas no Brasil, o que exigirá a adequação dos setores público
e privado para atender as demandas de usuários. A indústria e o setor de ser-
viços enfrentarão alguns desafios como promover a adaptação de dispositivos
e plataformas a padrões de configuração de proteção da privacidade (privacy
by default e privacy by design).
O súbito redimensionamento do interesse pela proteção dos dados pes-
soais e da privacidade tem uma origem clara: o desenvolvimento vertigino-
so da economia compartilhada. Na sociedade da informação, marcada pelos
processos de disrupção, convergência e digitalização, cada indivíduo pode
ser considerado um centro de produção de riquezas e os seus dados repre-
sentam uma valiosa commodity. Dominar a arte da análise, do tratamento e
do armazenamento de dados pode significar um diferencial competitivo para
qualquer empresa do setor produtivo e de consumo.
A época em que a análise de dados era tema restrito ao setor de tecnologia
passou. Instituições como bancos e seguradoras tornaram-se grandes gestoras
de dados e a elas são impostas obrigações legais como as de armazenamen-
to de informações, de conhecimento do perfil dos seus clientes (Know Your
Client) e de comunicação de operações suspeitas de lavagem de dinheiro e
corrupção (Lei 9.613/98, IN CVM 301/99, IN CMN 2025/93). Os seto-
res hoteleiro, farmacêutico e alimentício, por exemplo, também se tornaram
importantes centros de processamento de dados, cuja manipulação e arma-
zenamento tem lhes permitido compreender melhor as preferências e o perfil
dos consumidores.
E se por um lado a exploração comercial indevida de dados sensíveis, crip-
tografados e anônimos representa uma das preocupações dos atores estatais,
por outro a vigilância em massa praticada pelo poder público constitui o

FGV DIREITO RIO  240


Direitos Humanos

ponto de atenção da sociedade civil. A era da vigilância líquida não é iden-


tificada apenas pela proliferação de agências de segurança e interceptações
telefônicas. Ela se reproduz também na ampliação de controles de acesso,
câmeras em locais públicos, cadastros, fiscalização de comportamentos, iden-
tificação digital e facial.
Mas a contramedida ao afã estatal de vigilância tem encontrado limites es-
pecialmente na Lei de Acesso à Informação, no Marco Civil da Internet e na
Lei de Intercepções, as quais tem permitido um melhor controle da inviola-
bilidade do sigilo dos dados (art. 5.º, XII, da CF). Considerado o maior ges-
tor de informações dos cidadãos, o poder público reúne em bases cadastrais
(SUS, IBGE, Farmácia Popular e FIES) um dos maiores indicativos de que o
Estado pode ser o maior aliado e o maior inimigo da população[1]. Um bom
exemplo deste fenômeno é reproduzido pela Lei 12.654/12, que determina
a coleta de DNA de condenados por crimes hediondos para a manutenção
de um banco de dados estatal de material genético. Por sinal, o tema é objeto
de repercussão geral a ser examinada pelo STF no RE 973.837, Rel. Min.
Gilmar Mendes.
Assim, se outrora a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se limita-
va a proteger o sigilo de comunicação dos dados (RE 418.416, Rel. Min. Se-
púlveda Pertence, Tribunal Pleno, DJ 19.12.2006), o desafio será readequar a
garantia de sigilo aos dados em si considerados, nos moldes do que ocorreu no
julgamento de Riley v. California e do que tem feito o STJ para evitar o acesso
sem autorização judicial por parte das autoridades estatais (HC 124.253/
SP, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, DJe 05.04.2010, RHC
51.531/RO, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe 09.05.2016).
Por esta razão, o desafio regulatório na era digital deve ter como meta for-
talecer os mecanismos de proteção de dados e da privacidade dos cidadãos,
simultaneamente à promoção de um ambiente de governança digital seguro,
estável e simplificado, capaz de fomentar o desenvolvimento econômico e so-
cial. O país precisa superar o modelo simplório de regulação binária “permi-
tir/proibir”, como se tem observado em plataformas disruptivas como Uber e
Airbnb. Para tanto, é essencial compreender que algumas particularidades do
ciberespaço não se reproduzem no mundo físico, o que requer o aprimora-
mento dos marcos regulatórios. Criminalizar a conduta de quem invade um
dispositivo mediante violação de um sistema de segurança, como o faz a Lei
Carolina Dickmann (Lei 12.737/12), certamente pode ser factível no mundo
físico, mas não necessariamente o é em casos de nuvens (cloud computing).
Proteger os dados pessoais e a privacidade num cenário de permanente
fluxo transnacional de informações deve ser parte de uma política pública
estrutural, atenta à cooperação internacional e não suscetível a medidas des-
proporcionais e casuísticas como as decisões judiciais no caso Whatsapp. Aos
cidadãos devem ser franqueados mecanismos para a obtenção de informações

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Direitos Humanos

sobre como seus dados são processados, armazenados e manipulados, em har-


monia com a livre iniciativa da atividade econômica.

TRATADOS E JURISPRUDÊNCIA

LEI Nº 12.737, DE 30 DE NOVEMBRO DE 2012.


Art. 1o Esta Lei dispõe sobre a tipificação criminal de delitos informáticos
e dá outras providências.
Art. 2o O Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 — Código
Penal, fica acrescido dos seguintes arts. 154-A e 154-B:
“Invasão de dispositivo informático
Art. 154-A. Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à
rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segu-
rança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem
autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabi-
lidades para obter vantagem ilícita(...)

DECRETO Nº 8.771, DE 11 DE MAIO DE 2016


Art. 1o Este Decreto trata das hipóteses admitidas de discriminação de pa-
cotes de dados na internet e de degradação de tráfego, indica procedimentos
para guarda e proteção de dados por provedores de conexão e de aplicações,
aponta medidas de transparência na requisição de dados cadastrais pela ad-
ministração pública e estabelece parâmetros para fiscalização e apuração de
infrações contidas na Lei no 12.965, de 23 de abril de 2014.

REGULAMENTO (UE) 2016/679 DO PARLAMENTO EUROPEU


E DO CONSELHO E DIRETIVA EUROPEIA N. 680/16
Relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamen-
to de dados pessoais e à livre circulação desses dados. —

LEITURA OBRIGATÓRIA

MARSOOF, Althaf. Online Social Networking and the Right to Privacy:


The Conflicting Rights of Privacy and Expression. International Journal of
Law and Information Technology Vol. 0 No. 0. (obs. as páginas 6-13, onde
está riscado em vermelho, não faz parte da leitura obrigatória).

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Direitos Humanos

LEITURA COMPLEMENTAR:

SOLOVE, Daniel J. A taxonomy of privacy. University of Pennsylvania law


review (2006) 477-564. [pp. 477-491]

MILANOVIC, Marko. Human Rights Treaties and Foreign Surveillance:


Privacy in the Digital Age. Harvard International Law Journal, Volume 56,
nº 1 (2015).

DIGGELMANN, Oliver e CLEIS, Maria Nicole. How the Right to Privacy


Became a Human Right. Human Rights Law Review, 2014, 14, 441-458.

DONEDA, Danilo. A proteção dos dados pessoais como um direito funda-


mental. In: Espaço Jurídico. Joaçaba, v. 12, n. 2, p. 91-108, jul./dez. 2011.

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Sigilo de dados: o direito à privacidade


e os limites à função fiscalizadora do Estado. In: Revista da Faculdade de Di-
reito da Universidade de São Paulo. 1993. V. 88.

KURBALIJA, Jovan. An Introduction to Internet Governance. Geneva: Diplo-


Foundation, 2014. pp. 105-110.

CLARK, Kathleen. Buying Voice: Financial Rewards for Whistleblowing La-


wyers. Legal Studies Research Paper Series. PAPER NO. 15-02-01.

MONCAU, Luiz Fernando. Tecnologia Para Quê? Democracia e Autorita-


rismo em Tempos de Manifestações in: Interesse Nacional. São Paulo: Asso-
ciação Interesse Nacional, 2013. Ano 6, n. 23, outubro-dezembro de 2013.

Factsheet on the “Right to be Forgotten” ruling.

OHM, Paul. Broken Promises of Privacy: Responding to the surprising failu-


re of anonymization. 57 UCLA LAW REVIEW 1701 (2010).

WHITMAN, James. The Two Western Cultures of Privacy: Dignity versus


Liberty. The Yale Law Journal, Vol. 113, No. 6 (Apr., 2004), pp. 1151-1221.

DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janei-


ro: Renovar, 2006.

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Direitos Humanos

FILMES, LITERATURA, ARTIGOS DE OPINIÃO E LINKS ÚTEIS

O documentário “Terms and Conditions May Apply” (2013), dirigido por


Cullen Hoback, fala sobre os Termos de Uso (especialmente os de empresas
como o Google e Facebook) e o potencial destes para violar Direitos Huma-
nos, principalmente o direito à privacidade. Disponível em: <www.tacma.
net>.

A graphic novel “The Private Eye”, escrita pelo ganhador do Eisner, Brian K.
Vaughan. Disponível gratuitamente em: <www.panelsyndicate.com>. A série
em dez exemplares se passa em um futuro no qual a Internet não existe mais,
após um atentado virtual em que todos os dados pessoais dos usuários da
rede, como mensagens privadas, histórico de acesso, informações bancárias
etc., foram expostos. Assim, o principal mote da obra é a relação da sociedade
com a privacidade.

“Privacy Pack” é um conjunto de ferramentas gratuitas para comunicação


e navegação na Internet que protegem a privacidade do usuário. Disponí-
vel em: <https://pack.resetthenet.org/#protect-yourself>. Outro conjunto de
ferramentas gratuitas é disponibilizado pelos produtores do documentário
“Terms and Conditions May Apply”: <http://tacma.net/protection.php>.

LEGISLAÇÃO RELEVANTE

Artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos; artigo 17 do


Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; parágrafo primeiro do ar-
tigo 8 da Declaração Européia sobre Direitos Humanos; artigo 5o da Consti-
tuição da República Federativa do Brasil de 1988, incisos X e XII.

Resolução proposta por Brasil e Alemanha à Assembléia Geral da ONU:


The right to privacy in the digital age.

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Direitos Humanos

MICHAEL FREITAS MOHALLEM


Professor de Direitos Humanos e Coordenador do Centro de Justiça e
Sociedade da FGV DIREITO RIO. É pesquisador do projeto Oxford Reports
on International Law in Domestic Courts, Doutorando e Mestre em Di-
reito Público e Direitos Humanos pela University College London (UCL),
especialista em Ciência Política pela UnB e graduado em Direito pela
PUC-SP. Foi Diretor de Campanhas no Brasil da organização não gover-
namental Avaaz, assessor parlamentar da Liderança do Governo no Se-
nado Federal e assessor jurídico no Ministério da Justiça.

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Direitos Humanos

FICHA TÉCNICA

Fundação Getulio Vargas

Carlos Ivan Simonsen Leal


PRESIDENTE

FGV DIREITO RIO


Joaquim Falcão
DIRETOR
Sérgio Guerra
VICE-DIRETOR DE ENSINO, PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
Rodrigo Vianna
VICE-DIRETOR ADMINISTRATIVO
Thiago Bottino do Amaral
COORDENADOR DA GRADUAÇÃO
André Pacheco Teixeira Mendes
COORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA
Cristina Nacif Alves
COORDENADORA DE ENSINO
Marília Araújo
COORDENADORA EXECUTIVA DA GRADUAÇÃO

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