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A vingança na Odisseia: emboscada, massacre e tortura

Teodoro Rennó Assunção


(Faculdade de Letras da UFMG)

1 – Emboscada ()

Alguns elementos permitem identificar a primeira parte da matança dos


pretendentes na Odisseia (canto 22) como uma “emboscada” (): a escolha e
preparação do espaço do mégaron ou salão do palácio (com a retirada das armas e
depois o fechamento dos portões e de portas internas) para a prova do arco no dia (de
interlúnio) da festa de Apolo; a formação secreta de um pequeno grupo para o combate
(Odisseu, Telêmaco, Eumeu e Filécio); o disfarce de mendigo de Odisseu (e todas as
humilhações que ele tem de suportar) e a surpresa do ataque com o arco e flechas, sem
que os incautos pretendentes possam se armar pra se defender; o próprio arco como
instrumento de matança (e não uma lança ou uma espada, com proteção do escudo, em
combate aberto e corpo a corpo), o que – como conjunto – se mostra um tipo de ação
militar coordenada pela astúcia (), que caracteriza precisamente Odisseu.
Foi Anthony T. Edwards quem sugeriu (em Achilles in the Odyssey, p. 22-23,
36-37) que a segunda parte da Odisseia até a matança dos pretendentes estaria
organizada segundo os três elementos básicos do padrão narrativo da emboscada:
planejamento, ocultamento e ataque surpresa. Este padrão foi, no entanto, melhor
especificado por Casey Dué e Mary Ebbott no ensaio “The Poetics of Ambush”
(capítulo 2 do livro sobre o canto 10 da Ilíada: Iliad 10 and The Poetics of Ambush),
com os seis seguintes sub-temas: “(1) seleção dos melhores homens como líderes e/ou
participantes; (2) preparação e armamento pra emboscada; (3) escolha de um lugar pra
emboscada; (4) os emboscados se ocultando e suportando desconforto enquanto
esperam; (5) o ataque surpresa; (6) o retorno pra casa.” (p. 70). Se o sexto sub-tema
deste padrão narrativo (ou macro-tema) claramente não poderá, como tal, estar presente
na matança dos pretendentes (pois Odisseu e Telêmaco já estão em casa), há ainda
outros elementos característicos deste tipo de ação guerreira “de guerrilha” (que se opõe
ao combate armado aberto e corpo a corpo) que, apesar de bem destacados por C. Dué e
M. Ebbott, também não estarão presentes neste contexto da Odisseia, como, por
exemplo, a noite (e a consequente dificuldade de visão), importante no episódio de
espionagem de Odisseu e Diomedes contra Dólon no canto 10 da Ilíada, ou ainda no
episódio do cavalo de madeira conduzido por Odisseu no fim da guerra de Troia (ver a
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versão de Demódoco em sua terceira canção). Isso, no entanto, não invalida a


compreensão da vingança contra os pretendentes como uma emboscada, pois o seu
padrão narrativo básico continua a ser reconhecível, sendo exatamente o próprio do
modo oral de composição narrativa por temas (tal como proposto por Albert Lord em
The Singer of Tales) a sua possibilidade de contração ou expansão.
Mas, como indiquei ao começar, estes elementos que configuram bem uma
emboscada só valem para a primeira parte da matança dos pretendentes, a com o arco e
flechas por Odisseu: são detalhadas as mortes de Antínoo e de Eurímaco – a de
Anfínomo por Telêmaco sendo por meio da lança – e depois generalizadas sem
numeração as de outros e não nomeados pretendentes atingidos por Odisseu (“enquanto
havia flechas para se defender”): “e eles caíam uns sobre os outros.” (Od. XXII, 116 e
118, sempre na tradução de Christian Werner, salvo menção de modificação). Pois,
depois da morte de Eurímaco e o reconhecimento de Odisseu pelos pretendentes e,
sobretudo, depois que Telêmaco pega no depósito (thálamos) as armas para os quatro e
Melântio (ou Preto) para doze dos pretendentes, o modelo de combate irá mudar,
passando a ser um combate de quatro contra doze homens igualmente armados (com
duas lanças, um escudo e um penacho pra cada – não havendo couraças nem cnêmides)
que se enfrentam aberta e conscientemente a uma mais curta distância, não, porém, a
céu aberto, como na planície de Troia, mas no interior do grande salão (mégaron) do
palácio de Odisseu. A força e a habilidade com a lança (pra atacar) e com o escudo (pra
se defender) configuram, assim, um tipo de superioridade guerreira que – contando
também com intervenções decisivas da deusa Atena – lembra a dos Aqueus sobre os
Troianos na planície de Troia na Ilíada, antes e depois da execução do plano de Zeus de
honrar Aquiles com uma vitória temporária dos Troianos. [Ora, é possível perceber em
Odisseu não só a força pra este segundo tipo de combate, mas também uma fúria e
encarnecimento na vingança, que descarta qualquer compromisso e quer eliminar todos
os adversários, semelhantes aos de Aquiles contra os Troianos ao vingar-se da morte de
Pátroclo, sendo possível sugerir (com Egbert Bakker, ver “Odysseus and Achilles” em
The Meaning of Meat and the Structure of the Odyssey, p. 150-156) uma espécie de
“aquilesização” de Odisseu no desfecho da Odisseia, mas não tão paradoxal assim, pois
ela apenas integra dois modos diferenciados e contrastivos de ação e combate, que não
são excludentes, mas complementares.]
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Antes, porém, de comentar brevemente o massacre (e justamente para


compreendê-lo melhor), seria útil citar e analisar em seus desdobramentos as razões
alegadas por Odisseu para tanto. Elas coincidem com uma espécie de triunfo após a
morte de Antínoo (o primeiro a ser morto) e também com o desvelamento de sua
identidade para os pretendentes (insensíveis aos vários sinais e anúncios anteriores, e
ainda agora ralhando contra o “estrangeiro” mendigo, porque acreditando tolamente que
ele “matara o varão sem querer”, Od. XXII, 32):
“Cães, críeis que eu não mais chegaria de volta à casa
do território dos troianos, pois pilháveis minha casa,
vos deitáveis com as servas mulheres à força,
cortejáveis, eu próprio ainda vivo, minha esposa,
nem temendo os deuses, que o largo céu habitam,
nem que algum homem se indignasse no futuro:
agora a vós todos os nós da destruição estão amarrados.”
(Od. XXII, 35-41, com modificações)
Pode-se dizer primeiramente que, segundo Odisseu, são três os delitos ou crimes
dos pretendentes e – o que é mais importante – que eles aparecem em uma ordem
crescente de gravidade: 1) a pilhagem ou consumo (verbo ) da “casa”
(), que abarca não só o palácio e as terras, mas também os rebanhos e cereais das
terras cultivadas que serão consumidos em um banquete contínuo; 2) o adultério
efetivado (“vos deitáveis junto”, ) com as servas, já que elas fazem parte
da casa () de Odisseu e estas relações sexuais são realizadas sem o consentimento
do senhor e fora do quadro do casamento; 3) o adultério (ainda que sem relações sexuais
concretizadas) por meio do cortejo (verbo ) a uma mulher casada
(Penélope), cujo marido (Odisseu) ainda está vivo, mesmo que (eu acrescentaria) ele
tenha se ausentado por muito tempo, levando estes a crerem interessadamente que ele já
estivesse morto.
Mas é (após a tentativa capciosa de culpar apenas Antínoo pelo desejo de,
casando-se com Penélope, tornar-se rei de Ítaca, e de matar Telêmaco em uma
emboscada) a proposição de uma generosa “indenização” material (de “tudo que foi
bebido e comido no palácio”, Od. XXII, 56) por Eurímaco (“cada um por si levando
reparação, valendo vinte bois,/ em bronze e ouro”, Od. XXII, 57-58), o que leva
Odisseu a uma recusa aberta e total de qualquer compensação deste tipo (“Eurímaco,
nem se me compensásseis com toda a herança/ paterna que agora é vossa e se somásseis
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mais de alhures,/ nem assim ainda repousariam meus braços da matança,/ antes de os
pretendentes expiarem toda a transgressão.” Od. XXII, 61-64), o que, lembrando
formalmente a recusa incondicional por Aquiles da reparação material proposta por
Agamêmnon na Ilíada (IX, 379-387), esclarece que a razão última e essencial para o
massacre é o adultério, confirmando assim a defesa da fidelidade e do casamento
monogâmico como um eixo moral estruturador do conjunto da estória.

2 – Massacre
Como o último verso da revelação da identidade de Odisseu para os pretendentes
já indica e explicita: “agora a vós todos os nós da destruição estão amarrados” (Od.
XXII, 341), Odisseu programa e espera matá-los todos, sem exceção, confirmando o
destino deles, tal como descrito com a mesma imagem dos “nós amarrados” (que
lembra a de uma armadilha de caça) pelo próprio narrador um pouco antes: “(...) tolos,
não percebiam/ que também a todos eles os nós da destruição já foram amarrados.” (Od.
XXII, 332-333). De fato, Odisseu e seus três companheiros de combate não pouparão
nenhum dos pretendentes (por exemplo, Anfínomo, que se distinguia por algum senso
de justiça, será o terceiro a morrer, atingido nas costas por uma lança de Telêmaco, no
instante em que se lançava pra tentar golpear Odisseu com a espada, cf. Od. XXII, 89-
94), e, se não fosse pelas intervenções de Telêmaco, talvez Odisseu matasse até mesmo
o aedo Fêmio (que cantava forçado) e o arauto Médon (que fazia um duplo serviço),
após já ter matado o arúspice Leodes, que se distinguia por não estar moralmente de
acordo com os pretendentes a quem servia (tal como afirmado por ele mesmo e descrito
também pelo próprio narrador: “só a ele a iniquidade/ era odiosa, e indignava-se contra
todos os pretendentes.” Od. XXI, 146-147). Pouco depois de matar sem dó o suplicante
Leodes e poupar os também suplicantes Fêmio e Médon, Odisseu verifica com cuidado
o salão para ter certeza de que nenhum pretendente restara vivo (o símile dos peixes
pegos na rede sugerindo mais uma vez uma imagem de armadilha de caça):
“Odisseu esquadrinhou toda sua casa, caso ainda um varão,
vivo, estivesse oculto, em fuga da negra morte.
Viu-os, absolutamente todos, em sangue e poeira
caídos, muitos, como peixes aos quais pescadores,
rumo à cava praia para fora do mar cinzento,
retiram com rede esburacada, e eles todos,
saudosos das ondas do mar, empilham-se sobre a areia:
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deles o resplandecente sol tira a vida –


assim os pretendentes, um sobre o outro, empilhados.”
(Od. XXII, 381-389)
É possível, no entanto, além do quantitativo extermínio total dos 108
pretendentes, falar também de uma espécie de escalada da violência durante a matança
deles, mesmo se a grande maioria das mortes não é descrita com precisão. Assim, por
exemplo, das mortes pelas flechas de Odisseu – que formam o primeiro conjunto –
apenas a de Antínoo (cujo pescoço é atravessado, no momento em que ia beber o vinho,
expelindo sangue pelas narinas, e conspurcando a comida, ao derrubar no chão a mesa,
cf. Od. XXII, 15-21) e a de Eurímaco (perfurado no fígado por uma flecha que atingiu
seu peito junto aos mamilos, também jogando no chão – ao cair – uma mesa e uma taça,
cf. Od. XXII, 82-88) são descritas em detalhes, que, porém, acentuam menos a violência
do que uma homologia entre o crime do consumo desenfreado (e sem retribuição) do
patrimônio de Odisseu nos banquetes e o seu modo de morte, com a mistura do sangue
ao vinho e a conspurcação da comida.1 Já a morte de Anfínomo, por uma lança de
Telêmaco nas costas, “no meio dos ombros”, parece ainda mais imediata, e lembra a de
um guerreiro morrendo num combate da Ilíada: “com estrondo o varão caiu, e sua
fronte inteira golpeou a terra.” (Od. XXII, 93 = Il. V, 41 e 57; VIII, 259; XI, 448; e o 1º
hemistíquio de Od. XXII, 94 = Il. IV, 504; V, 42, 540, 617, etc.).
Também das mortes dos doze pretendentes armados só temos a precisão dos
locais do corpo atingidos na de Ctesipo (“o varão vaqueiro de bois/ [o] atingiu no
peito”, Od. XXII, 285-286, morte que se distingue antes pelo discurso de triunfo de
Filécio, que retribui o sarcástico presente de hospitalidade daquele a Odisseu, com outro
da mesma ordem), e na de Leócrito, que se completa com uma descrição genérica
também comum na Ilíada: “Telêmaco feriu Leócrito (...)/ com lança no meio do
estômago, e o bronze o transpassou;/ caiu de frente e golpeou o chão com toda a
fronte.” (Od. XXII, 294-296, onde o 2º hemistíquio do v. 295 = Il. XIII, 388; XV, 342;
XVI, 309, 821; XVII, 579; e o 1º hemistíquio do v. 296 = Il. V, 58), tal como já ocorrera
no único detalhe formular que concluía a morte dos quatro primeiros pretendentes
armados: “Assim todos juntos morderam o chão incomensurável” (Od. XXII, 269). Em
todos os outros oito casos há, além da mera menção de quem mata (Odisseu, Telêmaco,
o porcariço e o vaqueiro de bois) e de quem é morto (Demoptólemo, Euríades, Élato,

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Ver, para um comentário mais detalhado destas duas mortes, em conexão com o tema maior do
banquete, o meu ensaio “O banquete transgressivo dos pretendentes na Odisseia”.
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Pisandro, Euridamas, Anfimédon, Polibo e Agelau – sem menção de Eurínomo e de um


último que nem é nomeado) apenas a variação do verbo que indica o golpe de morte:
“matou” (), “atingiu” ( e ), e “feriu” (). Mas, depois da
descrição ligeiramente mais detalhada das últimas três mortes dos doze pretendentes
armados: a de Ctesipo, a de Agelau (que, ao menos, indica que o seu ferimento se dá
“no corpo a corpo”) e a de Leócrito, irá ocorrer uma descrição final mais genérica da
morte dos pretendentes não armados que restaram, que sugere (após um símile de
abutres que caçam e matam aves sem nenhuma defesa, cf. Od. XXII, 302-306) uma
exacerbação da violência, com uma formulação semelhante à da morte de doze
guerreiros trácios dormindo por Diomedes na missão de espionagem noturna com
Odisseu (Il. X, 483-484) e à de vários Troianos por Aquiles dentro do rio Escamandro
(Il. XXI, 20-21) :
“assim eles, num rompante contra os pretendentes,
golpeavam pra um e outro lado. Gemido aviltante deles partia,
cabeças golpeadas, e todo o chão fumegava com sangue.”
(Od. XXII, 307-309, com modificações)
A enormidade da violência do extermínio total destes pretendentes, evidente
quantitativamente no número de 108 (e + alguns serviçais, exceto Fêmio e Médon), está
presente também no sangue expelido destes corpos feridos por golpes mortais e que, em
razão de sua proveniência, “suja” (em um sentido material e religioso), além de mesas e
poltronas, todo o chão do salão do palácio. Assim, pois, esta “sujeira” ou “impureza”
(que vem do sangue e das secreções de muitos corpos que se tornaram cadáveres em
razão dos ferimentos infligidos) deve ser “limpada”, mas em um sentido que é não
exatamente higiênico, mas ritual e religioso, ou seja: ela deve ser purificada. (Cf. “Le
pur et l‟impur” de Jean-Pierre Vernant in Mythe & société en Grèce ancienne, p. 121-
140).
Isso é bem demonstrado – apesar do apoio moral de Zeus e a Atena a esta
vingança – por todo o cuidado posterior de Odisseu com esta “limpeza” que é uma
purificação. Pois ele primeiramente ordena que as servas (que serão executadas) levem
– o que deve ser começado por Telêmaco, Eumeu e Filécio – os cadáveres pra fora do
salão, e limpem – “com água e esponjas esburacadas” – as poltronas e mesas (cf. Od.
XXII, 437-439), algo que é completado pela raspagem do chão com pás por Telêmaco,
Eumeu e Filécio (cf. Od. XXII, 454-455). E, em seguida, uma vez realizada esta
primeira “limpeza”, ele ordena a Euricleia que traga “enxofre” (), “remédio de
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males” (), e “fogo” (), “para que eu fumigue o salão”


() (Od. XXII, 481-482), o que, pouco depois, ele realizará,
estendendo a fumigação à casa e ao pátio (cf. Od. XXII, 494).2
Se – além de quatro ocorrências do termo “enxofre”para designar o
cheiro, deixado na atmosfera, por um raio (Il. VIII, 135; XIV, 415; Od. XII, 417; XIV,
307) – a única outra ocorrência homérica do termo é para a “limpeza” de uma taça (Il.
XVI, 228), antes de uma libação e de uma importante prece de Aquiles a Zeus (cf. Il.
XVI, 231-248), o seu uso para a purificação, em um sentido ritual e religioso bem
marcado, parece confirmado. Ora, em seu comentário a Odisseia, W. B. Stanford
lembra que “em tempos mais tardios o enxofre era usado regularmente para purificações
religiosas (como ele é usado hoje em dia para fumigações médicas; [...])”, e sugere, logo
depois, que “aqui [isto é: no contexto desta ocorrência no canto XXII da Odisseia] a
expressão  („remédio de males‟) e o uso do fogo parecem implicar uma
intenção religiosa.” (The Odyssey of Homer vol. II, p. 389-390).
Há, porém, ainda, um outro plano, mais propriamente humano e que poderíamos
chamar de pré-político (e que é também o do pré-direito), em que a matança de cento e
oito jovens de famílias nobres habitantes de Ítaca e de ilhas vizinhas (mesmo que
justificada moralmente pelo crime de adultério) parece ser muito grave e problemática,
certamente despertando a expectativa – na ausência de leis penais escritas e de tribunais
para julgar homicídios – de uma vingança por parte dos familiares dos pretendentes
mortos, o que – segundo os costumes homéricos – poderia levar quem matou a se exilar,
para fugir da sanha de vingança dos familiares de quem foi morto (como indicam bem
os casos de Pátroclo, Teoclímeno ou do fictício Cretense que mata o irmão de
Idomeneu). O próprio Odisseu formula este tipo de expectativa, quando, preocupado e
insone, em uma conversa com a deusa Atena, ele pergunta:
“Como, nos aviltantes pretendentes, descerei os braços,
um único sendo; eles estão sempre juntos lá dentro.
Além disso, algo maior no juízo cogito:
mesmo que eu os matasse, graças a Zeus e a ti,
para onde eu fugiria? Peço que tu isso ponderes.”

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J.-P. Vernant está justamente comentando este exemplo, quando diz: “Chez Homère déjà la „saleté‟ du
sang ne se réduit pas à une simple tache matérielle : après qu‟on l‟a lavée et effacée avec de l‟eau, il est
encore nécessaire d‟en purifier la souillure, , avec du souffre.” (Vernant, J.-P., “Le pur et l‟impur”, p.
129).
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(Od. XX, 39-43, com modificações)


Por sua vez, Eupites (ou Persuasivo), pai de Antínoo, quando, já sabendo da
morte dos pretendentes, propõe, em uma reunião dos parentes destes, uma reação de
vingança, dirá (em uma formulação que também pressupõe a fuga do matador e a
necessidade absoluta de honrar a família lesada com uma compensação):
“Pois mexei-vos antes que ele, rápido, alcance Pilos
ou a divina Élida, onde dominam os epeus:
vamos, ou depois seremos sempre ridicularizados.
Isto é opróbrio a se noticiar também aos vindouros,
se não castigarmos aos assassinos dos filhos
e irmãos; para mim, no juízo não seria doce
viver, mas rápido morreria e aos defuntos me uniria.”
(Od. XXIV, 430-436)
E, de fato, Odisseu (junto com Telêmaco, Eumeu e Filécio, todos eles armados)
se retirará do palácio, no dia seguinte à noite da matança, fugindo para junto de Laerte
(seu pai), que está morando em um sítio, junto com Dólio (ou Finório) e seus filhos.
Mas este sítio é próximo e logo eles são descobertos por alguns parentes dos
pretendentes (liderados por Eupites), começando, então, um novo combate, em que
Laerte (rejuvenescido) mata Eupites, e Odisseu e Telêmaco teriam matado todos os
outros parentes dos pretendentes que ali estavam, se Atena (após haver combinado com
Zeus) não tivesse intervindo para interromper o combate e evitar mais derramamento de
sangue, levando estes últimos, em pânico, a perderem suas armas e, assim, a ter de
voltar para a cidade (cf. Od. XXIV, 521-536). E, após convencer Odisseu (que grita e se
lança atrás deles) a se conter e evitar a cólera de Zeus (que acabou de arremessar um
relâmpago junto a ela), Atena consegue impor “um pacto (ou “juramentos”, ) para
o futuro entre ambas as partes” (cf. Od. XXIV, 539-546).
Mas esta solução algo artificiosa vinda diretamente de uma intervenção divina
(deus ex machina) para interromper definitivamente um conflito entre famílias nobres
de uma mesma região (no caso, com uma enorme “dívida de sangue” creditada aos
familiares dos pretendentes e ainda não saldada por Odisseu e os seus) e terminar a
sucessão sem fim de vendettas que seria esperável entre elas (numa lógica do dom e do
contra-dom de ofensas) é precisamente o que fará, no plano histórico, o direito (com leis
penais e tribunais da cidade para julgar e fazer valer as leis), criando uma esfera pública
ou política que retira o poder particular das famílias ou grupos de retribuir diretamente
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os males sofridos (instante em que justamente elas confirmavam, por oposição às


famílias ou grupos adversários, sua identidade enquanto grupo). O direito atuará, assim,
nesta esfera da regulação pública da retribuição (antes particular) de ofensas e danos,
como a moeda e o mercado atuarão na esfera da regulação pública das trocas, cujos
objetos deixam de ser dons e contra-dons e passam a ser mercadoria, interrompendo um
circuito contínuo e positivo de dívidas. Parece, no entanto, verossímil que – na ausência
de leis penais e tribunais pra julgar homicídios – o circuito infinito de dons e contra-
dons de ofensas (vinganças e contra-vinganças entre famílias) continuasse a valer. (Ver
o artigo de Jesper Svenbro, “Vengeance et société en Grèce archaïque. À propos de la
fin de l‟Odyssée”). A solução pacificadora (por meio das intervenções de Zeus e de
Atena) na conclusão da Odisseia é, porém, idealizada.

3 – Tortura
Para deixar mais claro o que estou designando aqui por “tortura”, seria preciso
dizer que o termo apenas especifica um tipo de execução em que o executado ainda tem
um (menor ou maior) tempo de vida, sob sofrimentos (de variado modo) atrozes, antes
de morrer, e não, portanto, a tortura que não visa a matar e deixa o supliciado vivo. No
fim do episódio da matança dos pretendentes, ela está representada pela execução (mais
lenta) de Melântio (ou Preto) e por aquela (mais rápida, mas por enforcamento) das
doze servas infiéis.
Antes, porém, de comentá-las, lembrarei a execução, certamente muito rápida,
mas particularmente violenta, por decapitação, do arúspice Leodes, que inaugura uma
breve série de três suplicações a Odisseu, das quais as duas últimas (do aedo Fêmio e do
arauto Médon), contando cada qual com uma intervenção de Telêmaco, não resultam na
morte do suplicante, quebrando o padrão da Ilíada em que este nunca é poupado, e
deixando ver o quanto a Odisseia privilegia a figura do aedo e também a do arauto (que
exercem, ambos, uma arte do discurso).

[A – A decapitação de Leodes]
A crueldade desta execução está primeiramente no fato de que Odisseu não
considera a posição moral do arúspice (tal como expressa por ele mesmo e também pelo
narrador) desfavorável ao comportamento adúltero e transgressivo dos pretendentes,
mas apenas o serviço (minimamente adequado, supõe-se, aos interesses deles) que ele
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lhes prestava, o que, porém, é hiperbolizado, algo abusiva e paranoicamente, pela


suposição de um desejo direto de Leodes por Penélope:
“Vê, se proclamas entre eles ter sido o áugure,
deves ter amiúde rezado no palácio
para que remoto fosse meu doce retorno,
minha esposa te seguisse e gerasse crianças:
por isso não deverias escapar da morte tenebrosa.”
(Od. XXII, 321-325)
A imediata execução com a espada, caída ao chão e deixada por Agelau ao ser
morto (cf. Od. 22, 326-327), é descrita da seguinte e sucinta forma:
“(...). Com ela seu pescoço varou pelo meio.
Do que balbuciava, a cabeça misturou-se à poeira.”
(Od. XXII, 328-329, com modificações)
A decapitação, que por si só pode despertar algum horror ancestral, é confirmada
pelo último verso que não só destaca a cabeça (já separada), mas acrescenta o detalhe
horrorífico e quase grotesco de que a cabeça deste ainda “emitia sons” (como traduz
Frederico Lourenço) ou “balbuciava” (como traduz Christian Werner), ainda que –
como bem indica o particípio presente  – não seja possível definir com
precisão se estes sons ou balbucios chegavam a formar palavras. Pode-se, no entanto,
sugerir (com alguma plausibilidade) que esta cabeça, por alguns segundos e até a
cessação total da vida, ainda teria alguma consciência (como o ato mesmo de emitir
sons atesta), mesmo que seja muito difícil (e esteja fora do horizonte narrativo
homérico) representá-lo. [Ver, por exemplo, mais moderna e comicamente, a partir de
uma decapitação por guilhotina, as “Visões e pensamentos de uma cabeça cortada” de
Antoine Wiertz, publicadas em 1870 e republicadas em 1929 por Walter Benjamin na
revista Das Tagebuch.]
Se é certo que não existe uma tradição qualquer na Grécia antiga deste tipo de
execução capital, ausente não só no código penal posterior, mas – como propôs
Monique Halm-Tisserand (em Réalités et imaginaire des supplices en Grèce ancienne.
Paris: Les Belles Lettres, 1998, “1.A.5 La décapitation”, p. 31-32) – na iconografia e até
mesmo na quase totalidade da tragédia, onde ela é representada mais como uma ameaça
do que uma execução de fato (a exceção sendo Penteu nas Bacantes), podemos, por
outro lado, lembrar que ela está bem atestada em várias cenas da Ilíada (ver, por
exemplo, XVIII, 336; XXI, 555; XXIII, 22), inclusive com toques de horror, como a
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conjunta decepagem dos braços e o deixar rolar a cabeça cortada por entre a multidão de
guerreiros (como faz Agamêmnon com Hipóloco, cf. Il. XI, 145-147), ou o levantar da
cabeça cortada por meio de uma lança que já estava enterrada em um de seus olhos, já
ejetado (como faz o cruel Peneleu com Ilioneu, cf. Il. XIV, 493-500). Mas a única cena
de decapitação iliádica que contém o detalhe da cabeça ainda balbuciando (porque tem
exatamente o mesmo verso que finaliza a cena de decapitação de Leodes: Od. XXII,
329 = Il. X, 457, ainda que com a variante , e ainda o 2º hemistíquio
, “seu pescoço varou pelo meio”, Od. XXII, 328 = Il. X, 455) é
a de Dólon por Diomedes, na missão de espionagem noturna de Odisseu e Diomedes, o
canto X da Ilíada, onde estes dois heróis exercitam sua astúcia e crueldade (Diomedes
ainda mata treze Trácios dormindo), em um tipo de combate que poderíamos
caracterizar como de “emboscada”:
“Disse [Diomedes], e este [Dólon] estava para, com mão pesada o queixo
tocando, suplicar-lhe, e o outro seu pescoço varou pelo meio
com a espada, lançando-se, e cortou ambos os tendões deste.
Do que balbuciava, a cabeça misturou-se à poeira.”
(Il. X, 454-457, tradução minha)

[B – O enforcamento das doze servas]


Enfim, das duas execuções contendo alguma tortura, vejamos, agora, primeiro, a
execução (mais rápida), por enforcamento, das doze servas adúlteras (por se deitarem
com os pretendentes, sem a autorização dos senhores) indicadas e trazidas por Euricleia
a Odisseu, a pedido deste, que é quem as condena à morte (não sem antes elas
realizarem o serviço de transporte dos cadáveres pra fora do salão e o de limpeza das
poltronas e mesas), mas transferindo a sua execução para Telêmaco (com Eumeu e
Filécio), no espaço – também exterior ao salão – “entre a rotunda e o impecável muro
do pátio” (cf. Od. XXII, 442), o que será mantido por Telêmaco, mas – segundo propõe
Odisseu – “tirando-lhes as vidas” com golpes de “espadas aguçadas” (cf. Od. XXII,
443-444), o que Telêmaco não observará. Que a sua nova escolha de uma execução por
enforcamento seja considerada mais envilecedora e infamante é o que se pode
depreender do uso do adjetivo “limpa” (dat. sing. ) para designar a “morte” por
meio de golpes de espada e, portanto, a por enforcamento como “suja”:
“Vede, com morte limpa eu não tiraria a vida
delas, que insultos entornaram sobre minha cabeça
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e nossa mãe, e ao lado dos pretendentes dormiam.”


(Od. XXII, 462-464)
Monique Halm-Tisserand (em Réalités et imaginaire des supplices en Grèce
ancienne, “1.A.3 La pendaison”, p. 17-22) lembra, com razão, que o enforcamento –
muito parcamente mencionado (ou descrito) historicamente – ocorre nas estórias
sobretudo como um modo atroz de suicídio feminino, tal como os exemplos trágicos de
Antígona, Fedra, Jocasta e Leda bem atestam, e, acrescentaríamos, tal como o exemplo
da morte de Epicasta, mãe de Édipo, descrita por Odisseu (na sua narrativa sobre o
Hades para os Feácios), no canto XI da Odisseia, também o atesta:
“e ela foi à casa de Hades, o poderoso porteiro,
após apertar um nó, abrupto, da alta viga do quarto,
tomada pela dor. (...).”
(Od. XI, 277-279)
Mas se o caráter infame e vil deste tipo de morte nos parece dificilmente
explicável apenas por sua conexão com o suicídio feminino (ou simplesmente com o
suicídio), como sugere Monique Halm-Tisserand, talvez possamos encontrar na própria
descrição deste enforcamento coletivo de mulheres na Odisseia algo que indique bem a
atrocidade do sofrimento de quem morre assim (obviamente enquanto não está de todo
morto). Eis como é descrita a ação de Telêmaco e a morte das doze servas:
“Assim falou e o cabo de nau proa-negra,
após prender no grande pilar, jogou em volta da rotunda
e para cima bem esticou, para pé algum atingir o chão.
Como quando melros asa-comprida ou pombas
chocam-se com uma rede disposta num arbusto,
arremetendo para o abrigo, e hediondo leito lhes cabe –
assim elas, em fila, tinham as cabeças, e ao redor de cada uma,
nos pescoços, havia nós para o mais deploravelmente morrerem.
Convulsionaram os pés pouco tempo, de fato não muito.”
(Od. XXII, 465-473, com modificações)
Se o símile dos melros ou pombas chocando-se contra uma rede (novamente
uma armadilha de caça) não parece de todo claro, podemos destacar o adjetivo
“hediondo” () que qualifica o “leito” () com que é comparada a rede
como qualificando também este tipo de morte e antecipando de algum modo o advérbio
 (“o mais deploravelmente”) que define, de maneira superlativamente negativa,
13

o modo como elas morrerão. Mas é – além da expectativa angustiante deste tipo de
morte já durante a preparação das forcas – a violenta atrocidade da asfixia (pelo nó de
corda enforcando o pescoço), já prenunciada na função do bem esticar o cabo de nau
para cima (: “para pé algum atingir o chão”), o que está bem descrito pelo movimento
agonizante dos pés (que precisamente desejariam tocar o chão, para aliviar a sufocante
perda da respiração): “convulsionaram os pés” (), ou, mais
literalmente, “convulsionaram com os pés”. A agonia descrita pelo verbo  (aqui
na 3ª pessoa do plural do imperfeito,  caracteriza em Homero – como observa
Manuel Fernández-Galiano no volume III do Comentário sobre a Odisseia de Oxford –
“as convulsões, ofegações e palpitações dos que estão morrendo, por exemplo, as de um
guerreiro atingido (Od. VIII, 526; Il. X, 521; Od. XIII, 573); em Il. XIII, 443 o sujeito é
o coração do homem que morre, implicando a referência aos sintomas cardíacos; aqui
ele indica as contorções e os chutinhos das mulheres sufocando, que lembram o seu uso
em várias imagens do mundo animal: de peixes (Od. XII, 254-255 [...]), veados (Od.
XIX, 229, 231 [...]), carneiros (Il. III, 293), cobras (Il. XII, 203) e bois (Il. XIII, 571).”
(p. 303-304).
Este quadro de ocorrências homéricas confirma bem o quão dramáticos são os
estertores de quem vai morrer e ainda dá um último e agonizante sinal de vida, mas é a
indicação de sua brevíssima duração: “por pouco tempo, de fato não muito”
() o que irônica e paradoxalmente indica a intensificação
do horror que se abre nestes segundos finais.
[Talvez o melhor comentário deste decisivo adjunto adverbial de tempo seja
ainda o dos não-especialistas Adorno e Horkheimer na conclusão do em outros pontos
tão problemático “Excurso I: Ulisses ou mito e esclarecimento” da Dialética do
esclarecimento: “Como um cidadão meditando sobre a execução, Homero consola-se a
si mesmo e aos ouvintes (...), com a constatação tranquilizadora de que não durou
muito: um instante e tudo se acabou. Mas após o “não por muito tempo”, o fluxo interno
da narrativa estanca. Não por muito tempo? Pergunta o gesto do narrador e desmente
sua serenidade. Interrompendo o relato, ele nos impede de esquecer as mulheres
executadas e revela o inominável e eterno tormento daquele único segundo durante o
qual as servas lutam com a morte.” (Adorno e Horkheimer, “Excurso I: Ulisses ou mito
e esclarecimento” in Dialética do esclarecimento. Tradução de Guido de Almeida. Rio
de Janeiro: Zahar, 1985, p. 47-70, p. 70).]
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[C – Tortura e morte de Melântio]


Se a cruel execução – pela amputação das extremidades (orelhas, narinas,
genitália, mãos e pés) – de Melântio (ou “Preto”), realizada por Eumeu e Filécio (e
talvez Telêmaco), finaliza, após o enforcamento das servas (e com um toque particular
de horror), a vingança contra os pretendentes (e seus auxiliares), ela é a única a conter
uma tortura preliminar (que aqui não resulta diretamente em morte) pela amarração de
seus braços e pernas por trás, e a sua suspensão (com uma corda) junto a um pilar,
realizada por Eumeu e Filécio, segundo as ordens de Odisseu (que, como no caso do
enforcamento das servas, não será o seu executor, ainda que aqui elas sejam cumpridas).
Esta tortura preliminar se dá, antes do começo do combate armado entre os dois grupos,
como punição ao fato de que Melântio (ou “Preto”, nome, com conotação moral
negativa, de uma personagem que já atacara e insultara Odisseu) é pego em flagrante
roubando as armas (lanças, escudos e elmos) para doze dos pretendentes, após a
primeira matança com flechas por Odisseu, quando Telêmaco, por inadvertência, deixa
aberta a porta do depósito (ou quarto, thálamos), onde ele fora buscar primeiro as armas
para os quatro de seu grupo.
À pergunta de Eumeu, que identifica o malfeitor, sobre se deveria matá-lo ou
levá-lo até Odisseu, este responde (dirigindo-se também a Filécio):
“vós, os dois, prendei seus braços e pernas juntos por trás,
jogai-o no quarto e o prendei nas tábuas por trás.
Após amarrar uma corda trançada em torno dele,
puxai-o para o alto do pilar e aproximai-o das vigas
para, ainda vivo por muito tempo, sofrer dores cruéis.”
(Od. XXII, 173-177)
Diferentemente do que ocorre com sua ordem de execução (com golpes de
espada) das doze servas adúlteras, estas ordens de tortura são executadas
obedientemente por Eumeu e Filécio:
“os dois, num salto, agarraram-no e puxaram-no para dentro
pelo topete, ao solo jogaram-no, aflito no coração,
e prenderam seus braços e pernas com laço doloroso,
puxando muito bem as pontas, como ordenara
o filho de Laerte, divino Odisseu muita-tenência;
após amarrar uma corda trançada em torno dele,
puxaram-no para o alto do pilar e o aproximaram das vigas.”
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(Od. XXII, 187-193, com modificações)


Se esta descrição das ordens de Odisseu e da sua execução por Eumeu e Filécio
pode deixar ainda alguma dúvida quanto à posição corporal específica do supliciado
(supõe-se que vertical, mas sem ser possível determinar se de cabeça pra baixo), ela é
suficiente para indicar o incômodo dos “braços e pernas” presos “juntos por trás”
() e do peso de todo o corpo suspenso, em uma
imobilização que provavelmente dificultaria a própria respiração (ver, no suplício
análogo de Héracles, no Héracles furioso de Eurípides [1395-1398; 1092], a indicação
da “petrificação” dos seus membros e da sua respiração ofegante e agônica, tal como
apontado por Monique Halm-Tisserand, op. cit., p. 164). Estes efeitos torturantes são
genericamente descritos como “dores cruéis” () – ecoado no adjetivo que
depois qualifica o “laço” () como “doloroso” (, literalmente “dor-no-
ânimo”) –, dores que devem, antes da morte (ou seja: “ele ainda vivo”), durar “muito
tempo” (), diferentemente das (“mais rápidas”) do enforcamento das
doze servas.
Mas, no conjunto desta descrição, é um detalhe das ordens de Odisseu
(curiosamente não retomado na execução) o que nos permite situá-la como a primeira
ocorrência de uma forma, atestada histórica e literariamente na Grécia antiga, de
execução mais lenta e dolorosa, denominada : as “tábuas” ()
em que ele deve ser preso “por trás” (), e que parecem referidas na imagem
sarcástica (proferida no insulto de Eumeu) de uma “cama delicada” () em
que Melântio esperaria a aurora (cf. Od. XXII, 195-199), pois este mesmo termo
() aparece designando uma “tábua” ou “poste de madeira” (correspondente ao
) em que eram amarrados e suspensos os supliciados em um tipo de execução
atestado em Heródoto (VII, 33 e IX, 120), Plutarco (Vida de Péricles, 28) e nas
Tesmosfórias de Aristófanes (930-946, 1001 e ss.). Louis Gernet (em “Sur l‟éxécution
capitale” in Droit et institutions en Grèce ancienne, p. 175-211) o descreve como um
modo de execução capital em que o supliciado, assim dolorosamente amarrado e em
exposição, era impedido (pelo carrasco) de receber qualquer ajuda ou alívio,
eventualmente por muitos dias, até morrer (podendo o cadáver continuar exposto aos
animais). Ele o aproxima (como também W. Stanford e M. Fernández-Galiano) da
crucificação, com a seguinte e incisiva ressalva: “a única coisa é que, nesta última, as
mãos e os pés são pregados, e a perda de sangue que daí resulta é de natureza a abreviar
o suplício (...)” (Gernet, L., op. cit., p. 179).
16

Louis Gernet – inteiramente ciente desta ocorrência homérica [assim como de


outra no Ájax de Sófocles (v. 105 e ss., op. cit., p. 210, nota 116) e até mesmo da do
suplício análogo de Prometeu no Prometeu acorrentado de Ésquilo (op. cit., p. 194)] –
propõe, neste artigo, uma definição mais precisa deste tipo de execução capital, a partir
de sua diferença em relação a um outro tipo atestado, também doloroso (mas um pouco
mais rápido e menos infamante), constituído pela lapidação ou precipitação, que visava
punir crimes religiosos ou políticos (entre os quais, curiosamente, seria contado o
adultério, cf. Gernet, L., op. cit., p. 198, nota 66), podendo ter ainda como elementos
negativos marcados a localização fora do território da cidade e a interdição de
sepultamento do cadáver.
Já o  visaria punir, sobretudo, o roubo ou apropriação indevida
(o mais antigo tipo de delito nas civilizações mediterrâneas, e especialmente odiado
pelos camponeses), e mais particularmente o roubo “em flagrante” (),
podendo, então, a vítima do roubo “por as mãos sobre” ou “pegar” o ladrão (manus
iniectio), levando-o, sem a necessidade de um juízo, diretamente para uma execução
que, no entanto, é pública. Diferentemente dos criminosos executados por lapidação ou
precipitação, os ladrões executados por  seriam, enquanto
“malfeitores” (), basicamente de baixa extração social, sendo que – como
bem observa Monique Halm-Tisserand (que cita o caso do arqueiro cita que prende
Mnesíloco nas Tesmosfórias, vs. 931-932, op. cit., p. 162) – também o seriam seus
carrascos. Coincidentemente, assim como o “roubo em flagrante delito” como motivo
(no caso, o das armas pra doze pretendentes), também esta caracterização social baixa
tanto do ladrão quanto do carrasco parece estar bem representada neste episódio da
Odisseia por Melântio (por um lado) e por Eumeu e Filécio (por outro), já que todos são
servos.
Mas, diferentemente do  (cujo modelo ela, de algum modo,
prenuncia), esta tortura de Melântio não chega a efetivar uma execução capital (ainda
que pudesse ter sido esta a intenção de Odisseu), pois ela não é suficientemente longa
para levá-lo à morte, já que Eumeu e Filécio (e talvez, mas não com certeza, Telêmaco),
presumivelmente após baixá-lo de junto do pilar para poder levá-lo até o pátio
(figurando aqui um espaço externo que é próprio às execuções mais infamantes, como
também a das doze servas), irão matá-lo brutal e sanguinariamente por meio da
amputação das extremidades (conhecido como ), no que pôde parecer
17

uma justaposição ou desdobramento (o efeito sendo justamente enfático ou hiperbólico


quanto à atrocidade do sofrimento) de dois modos diferentes de execução capital:
“E para fora arrastaram Preto pelo pórtico e pátio;
dele as narinas e orelhas com bronze impiedoso
cortaram e os genitais arrancaram, crua refeição aos cães,
e deceparam-lhe as mãos e os pés com ânimo rancoroso.”
(Od. XXII, 274-277)
Se a “amputação das extremidades” () – que não está
representada iconograficamente e jamais esteve no repertório legal de penas capitais –
foi sempre considerada uma prática bárbara pelos historiadores gregos (ver os
testemunhos de Heródoto e Arriano recolhidos por Monique Halm-Tisserand, op. cit., p.
28-29), na Odisseia mesma ela aparece uma vez antes, mas apenas enquanto uma
ameaça de Antínoo ao mendigo Iro, caso ele perca o duelo pra Odisseu-mendigo, de
enviá-lo a (coincidentemente) um reino fabuloso, o do ultra-sádico rei Équeto (ou
“Apresador”):
“te enviarei ao continente, após te lançar em negra nau,
rumo ao rei Apresador, flagelo de todos os mortais,
que deve te cortar o nariz e as orelhas com impiedoso bronze,
arrancar os genitais e dar crua refeição aos cães.”
(Od. XVIII, 84-87)
Ora, a execução por amputação de extremidades descrita como acontecida (e não
apenas imaginada), a de Melântio (ou Preto) por Eumeu e Filécio, é ainda mais cruel,
porque (como se não inteiramente satisfeita com as orelhas, as narinas e a genitália do
punido) se completa com a mutilação das mãos e dos pés. Monique Halm-Tisserand
(op. cit., p. 25-26) observou, com pertinência, as nuances dos verbos que designam de
variada maneira a amputação: “o nariz e as orelhas são, nos dois casos, cortados por um
golpe de espada (uso do verbo apotémno)”; “os pés e as mãos”, no exemplo de
Melântio, “são decepados por repetidos golpes, uma diferença sublinhada pelo uso do
verbo kópto”; “enfim, o sexo da vítima é, nos dois casos, não mais cortado por meio do
bronze, mas arrancado (exerúo), antes de ser lançado cru aos cães” (op. cit., p. 25), ato
em que – como bem lembrou a autora – se associam a infâmia da emasculação e a da
profanação do cadáver por meio de sua exposição a animais carniceiros (cf. Halm-
Tisserand, op. cit., p. 25-26).
18

No entanto, o narrador omite ou silencia a descrição da morte de Melântio


enquanto tal. Depois de dizer que um sujeito não nomeado “eles” (expresso na
desinência de 3ª pessoa do plural do verbo) “deceparam-lhe as mãos e os pés com
ânimo rancoroso”, ele irá simplesmente (e sem transição) dizer que eles lavaram as
mãos e os pés (cf. Od. XXII, 478), como se necessitando purificá-los da “sujeira” do
(provavelmente em profusão) sangue de Melântio morto. Mas é difícil e como que
interditamente horrendo imaginar o sofrimento de quem se esvaiu em sangue, saído dos
ferimentos doloridos causados pela amputação das sensíveis extremidades, até morrer.
Estes minutos (um pouco mais largos do que os segundos de convulsão dos pés das
escravas enforcadas) são inomináveis e “Homero” prefere não dizer explicitamente o
que pode ser conjecturado: “e sangrou até morrer”.

Bibliografia básica citada


[Texto grego e traduções da Odisseia]
Homeri Odyssea. Recognovit Helmut van Thiel. Hildesheim: Olms, 1991.
Homero, Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2003.
Homero, Odisseia. Tradução de Christian Werner. São Paulo: Cosac Naify,
2014.

[Comentários e estudos]
Adorno, Theodor e Horkheimer, Max, “Excurso I: Ulisses ou mito e
esclarecimento” in Dialética do esclarecimento. Tradução de Guido de Almeida. Rio de
Janeiro: Zahar, 1985, p. 47-70.
Bakker, Egbert, “Odysseus and Achilles” in The Meaning of Meat and the
Structure of the Odyssey. Cambridge: Cambridge University Press, 2013, p. 150-156.
Benjamin, Walter, “Antoine Wiertz, „Visiones y pensamientos de una cabeza
cortada‟” in Obras, libro IV/vol.2. Edición de T. Rexroth, traducción de J. Navarro
Pérez. Madrid: Abada Editores, 2010, p. 231-233.
Dué, Casey and Ebbott, Mary, “Chap. 2 - The Poetics of Ambush” in Iliad 10
and The Poetics of Ambush. Washington, D. C.: Center for Hellenic Studies/Harvard
University Press, 2010, p. 31-87.
Edwards, Anthony T., Achilles in the Odyssey. Kögnistein: Verlag Anton Hain,
1985.
19

Fernández-Galiano, Manuel, “Books XXI-XXII” in Fernández-Galiano, M.;


Heubeck, A.; Russo, J., A Commentary on Homer’s Odyssey vol. III. Oxford: Oxford
University Press, 1992, p. 129-310.
Gernet, Louis, “Sur l‟éxécution capitale : à propos d‟un ouvrage récent” in Droit
et institutions en Grèce ancienne. Paris: Flammarion, 1982 (1ª edição 1968), p. 175-
211.
Halm-Tisserand, Monique, Réalités et imaginaire des supplices en Grèce
ancienne. Paris: Les Belles Lettres, 1998.
Stanford, William B., “Commentary” in The Odyssey of Homer vol. II.
Houndmills and London: Macmillan, 1988 (First Edition: 1948).
Svenbro, Jesper, “Vengeance et société en Grèce archaïque. À propos de la fin
de l‟Odyssée” in Verdier, R. et Poly, J-P. (eds.), La vengeance. Études d’éthnologie,
d’histoire et de philosophie vol. iii. Paris : Éditions Cujas, 1981, p. 47-63.
Vernant, Jean-Pierre, “Le pur et l‟impur” in Mythe & société en Grèce ancienne.
Paris : François Maspero, 1974, p. 121-140.

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