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1 – Emboscada ()
mais de alhures,/ nem assim ainda repousariam meus braços da matança,/ antes de os
pretendentes expiarem toda a transgressão.” Od. XXII, 61-64), o que, lembrando
formalmente a recusa incondicional por Aquiles da reparação material proposta por
Agamêmnon na Ilíada (IX, 379-387), esclarece que a razão última e essencial para o
massacre é o adultério, confirmando assim a defesa da fidelidade e do casamento
monogâmico como um eixo moral estruturador do conjunto da estória.
2 – Massacre
Como o último verso da revelação da identidade de Odisseu para os pretendentes
já indica e explicita: “agora a vós todos os nós da destruição estão amarrados” (Od.
XXII, 341), Odisseu programa e espera matá-los todos, sem exceção, confirmando o
destino deles, tal como descrito com a mesma imagem dos “nós amarrados” (que
lembra a de uma armadilha de caça) pelo próprio narrador um pouco antes: “(...) tolos,
não percebiam/ que também a todos eles os nós da destruição já foram amarrados.” (Od.
XXII, 332-333). De fato, Odisseu e seus três companheiros de combate não pouparão
nenhum dos pretendentes (por exemplo, Anfínomo, que se distinguia por algum senso
de justiça, será o terceiro a morrer, atingido nas costas por uma lança de Telêmaco, no
instante em que se lançava pra tentar golpear Odisseu com a espada, cf. Od. XXII, 89-
94), e, se não fosse pelas intervenções de Telêmaco, talvez Odisseu matasse até mesmo
o aedo Fêmio (que cantava forçado) e o arauto Médon (que fazia um duplo serviço),
após já ter matado o arúspice Leodes, que se distinguia por não estar moralmente de
acordo com os pretendentes a quem servia (tal como afirmado por ele mesmo e descrito
também pelo próprio narrador: “só a ele a iniquidade/ era odiosa, e indignava-se contra
todos os pretendentes.” Od. XXI, 146-147). Pouco depois de matar sem dó o suplicante
Leodes e poupar os também suplicantes Fêmio e Médon, Odisseu verifica com cuidado
o salão para ter certeza de que nenhum pretendente restara vivo (o símile dos peixes
pegos na rede sugerindo mais uma vez uma imagem de armadilha de caça):
“Odisseu esquadrinhou toda sua casa, caso ainda um varão,
vivo, estivesse oculto, em fuga da negra morte.
Viu-os, absolutamente todos, em sangue e poeira
caídos, muitos, como peixes aos quais pescadores,
rumo à cava praia para fora do mar cinzento,
retiram com rede esburacada, e eles todos,
saudosos das ondas do mar, empilham-se sobre a areia:
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Ver, para um comentário mais detalhado destas duas mortes, em conexão com o tema maior do
banquete, o meu ensaio “O banquete transgressivo dos pretendentes na Odisseia”.
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J.-P. Vernant está justamente comentando este exemplo, quando diz: “Chez Homère déjà la „saleté‟ du
sang ne se réduit pas à une simple tache matérielle : après qu‟on l‟a lavée et effacée avec de l‟eau, il est
encore nécessaire d‟en purifier la souillure, , avec du souffre.” (Vernant, J.-P., “Le pur et l‟impur”, p.
129).
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3 – Tortura
Para deixar mais claro o que estou designando aqui por “tortura”, seria preciso
dizer que o termo apenas especifica um tipo de execução em que o executado ainda tem
um (menor ou maior) tempo de vida, sob sofrimentos (de variado modo) atrozes, antes
de morrer, e não, portanto, a tortura que não visa a matar e deixa o supliciado vivo. No
fim do episódio da matança dos pretendentes, ela está representada pela execução (mais
lenta) de Melântio (ou Preto) e por aquela (mais rápida, mas por enforcamento) das
doze servas infiéis.
Antes, porém, de comentá-las, lembrarei a execução, certamente muito rápida,
mas particularmente violenta, por decapitação, do arúspice Leodes, que inaugura uma
breve série de três suplicações a Odisseu, das quais as duas últimas (do aedo Fêmio e do
arauto Médon), contando cada qual com uma intervenção de Telêmaco, não resultam na
morte do suplicante, quebrando o padrão da Ilíada em que este nunca é poupado, e
deixando ver o quanto a Odisseia privilegia a figura do aedo e também a do arauto (que
exercem, ambos, uma arte do discurso).
[A – A decapitação de Leodes]
A crueldade desta execução está primeiramente no fato de que Odisseu não
considera a posição moral do arúspice (tal como expressa por ele mesmo e também pelo
narrador) desfavorável ao comportamento adúltero e transgressivo dos pretendentes,
mas apenas o serviço (minimamente adequado, supõe-se, aos interesses deles) que ele
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conjunta decepagem dos braços e o deixar rolar a cabeça cortada por entre a multidão de
guerreiros (como faz Agamêmnon com Hipóloco, cf. Il. XI, 145-147), ou o levantar da
cabeça cortada por meio de uma lança que já estava enterrada em um de seus olhos, já
ejetado (como faz o cruel Peneleu com Ilioneu, cf. Il. XIV, 493-500). Mas a única cena
de decapitação iliádica que contém o detalhe da cabeça ainda balbuciando (porque tem
exatamente o mesmo verso que finaliza a cena de decapitação de Leodes: Od. XXII,
329 = Il. X, 457, ainda que com a variante , e ainda o 2º hemistíquio
, “seu pescoço varou pelo meio”, Od. XXII, 328 = Il. X, 455) é
a de Dólon por Diomedes, na missão de espionagem noturna de Odisseu e Diomedes, o
canto X da Ilíada, onde estes dois heróis exercitam sua astúcia e crueldade (Diomedes
ainda mata treze Trácios dormindo), em um tipo de combate que poderíamos
caracterizar como de “emboscada”:
“Disse [Diomedes], e este [Dólon] estava para, com mão pesada o queixo
tocando, suplicar-lhe, e o outro seu pescoço varou pelo meio
com a espada, lançando-se, e cortou ambos os tendões deste.
Do que balbuciava, a cabeça misturou-se à poeira.”
(Il. X, 454-457, tradução minha)
o modo como elas morrerão. Mas é – além da expectativa angustiante deste tipo de
morte já durante a preparação das forcas – a violenta atrocidade da asfixia (pelo nó de
corda enforcando o pescoço), já prenunciada na função do bem esticar o cabo de nau
para cima (: “para pé algum atingir o chão”), o que está bem descrito pelo movimento
agonizante dos pés (que precisamente desejariam tocar o chão, para aliviar a sufocante
perda da respiração): “convulsionaram os pés” (), ou, mais
literalmente, “convulsionaram com os pés”. A agonia descrita pelo verbo (aqui
na 3ª pessoa do plural do imperfeito, caracteriza em Homero – como observa
Manuel Fernández-Galiano no volume III do Comentário sobre a Odisseia de Oxford –
“as convulsões, ofegações e palpitações dos que estão morrendo, por exemplo, as de um
guerreiro atingido (Od. VIII, 526; Il. X, 521; Od. XIII, 573); em Il. XIII, 443 o sujeito é
o coração do homem que morre, implicando a referência aos sintomas cardíacos; aqui
ele indica as contorções e os chutinhos das mulheres sufocando, que lembram o seu uso
em várias imagens do mundo animal: de peixes (Od. XII, 254-255 [...]), veados (Od.
XIX, 229, 231 [...]), carneiros (Il. III, 293), cobras (Il. XII, 203) e bois (Il. XIII, 571).”
(p. 303-304).
Este quadro de ocorrências homéricas confirma bem o quão dramáticos são os
estertores de quem vai morrer e ainda dá um último e agonizante sinal de vida, mas é a
indicação de sua brevíssima duração: “por pouco tempo, de fato não muito”
() o que irônica e paradoxalmente indica a intensificação
do horror que se abre nestes segundos finais.
[Talvez o melhor comentário deste decisivo adjunto adverbial de tempo seja
ainda o dos não-especialistas Adorno e Horkheimer na conclusão do em outros pontos
tão problemático “Excurso I: Ulisses ou mito e esclarecimento” da Dialética do
esclarecimento: “Como um cidadão meditando sobre a execução, Homero consola-se a
si mesmo e aos ouvintes (...), com a constatação tranquilizadora de que não durou
muito: um instante e tudo se acabou. Mas após o “não por muito tempo”, o fluxo interno
da narrativa estanca. Não por muito tempo? Pergunta o gesto do narrador e desmente
sua serenidade. Interrompendo o relato, ele nos impede de esquecer as mulheres
executadas e revela o inominável e eterno tormento daquele único segundo durante o
qual as servas lutam com a morte.” (Adorno e Horkheimer, “Excurso I: Ulisses ou mito
e esclarecimento” in Dialética do esclarecimento. Tradução de Guido de Almeida. Rio
de Janeiro: Zahar, 1985, p. 47-70, p. 70).]
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[Comentários e estudos]
Adorno, Theodor e Horkheimer, Max, “Excurso I: Ulisses ou mito e
esclarecimento” in Dialética do esclarecimento. Tradução de Guido de Almeida. Rio de
Janeiro: Zahar, 1985, p. 47-70.
Bakker, Egbert, “Odysseus and Achilles” in The Meaning of Meat and the
Structure of the Odyssey. Cambridge: Cambridge University Press, 2013, p. 150-156.
Benjamin, Walter, “Antoine Wiertz, „Visiones y pensamientos de una cabeza
cortada‟” in Obras, libro IV/vol.2. Edición de T. Rexroth, traducción de J. Navarro
Pérez. Madrid: Abada Editores, 2010, p. 231-233.
Dué, Casey and Ebbott, Mary, “Chap. 2 - The Poetics of Ambush” in Iliad 10
and The Poetics of Ambush. Washington, D. C.: Center for Hellenic Studies/Harvard
University Press, 2010, p. 31-87.
Edwards, Anthony T., Achilles in the Odyssey. Kögnistein: Verlag Anton Hain,
1985.
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