A Peste de Atenas e o Colapso dos Costumes Funerários Gregos
Virá a Guerra Dórica e, com ela, a Peste! – antigo provérbio grego
O que os gregos chamavam de “peste” (loimos) aparece em algumas passagens memoráveis
da literatura grega. A Ilíada de Homero, começa com a descrição de uma peste que atinge o exército grego em Tróia: "Apolo./ Desceu do Olimpo, com o coração agitado de ira./ Nos ombros trazia o arco e a aljava duplamente coberta;/ aos ombros do deus irado as setas chocalhavam à medida que avançava./ E chegou como chega a noite./ Depois sentou-se à distância das naus e disparou uma seta:/ terrível foi o som produzido pelo arco de prata./ Primeiro atingiu as mulas e os rápidos cães;/ mas depois disparou as setas contra os homens./ As piras dos mortos ardiam continuamente." (Ilíada, 1, v. 43-52). A peste é a peça central de duas grandes obras clássicas atenienses – Édipo Rei, de Sófocles, e o Livro 2 da História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides. As duas obras foram produzidas quase ao mesmo tempo. A peça Édipo foi provavelmente produzida por volta de 429 a.C., e a peste de Atenas ocorreu em 430-426 a.C.. Tucídides escreve prosa, não verso (como fazem Homero e Sófocles), e trabalhou no campo comparativamente novo da “história”. Seu foco foi a guerra do Peloponeso travada entre Atenas e Esparta, e seus respectivos aliados, entre 431 e 404 a.C.. O relato de Tucídides sobre a peste é notável pelo seu detalhe e aparente objetividade, tanto que alguns estudiosos recentes passaram a considerar a peste mais importante do que a guerra em que surgiu (MORGAN, 1994, p. 197). Apesar de sua aparente devoção em registrar esta doença, ele está relutante em decidir sobre uma causa específica para ela, afirmando no segundo livro de A Guerra do Peloponeso: "Que qualquer um, seja médico ou leigo, diga como cada um percebe a origem provável da peste e quaisquer causas que ele acredita terem poder suficiente para ter produzido uma mudança tão grande; Limitar-me-ei a uma descrição dos sintomas, com base na qual qualquer pessoa que os examinasse reconheceria, por conhecimento prévio, a doença caso ela voltasse a atacar." (Tucídides, em KALLET, 2013, p. 358) Ironicamente, uma das razões pelas quais esta passagem tem atraído tanta atenção é que é impossível determinar que doença causou esta peste, apesar da riqueza de informações fornecidas por Tucídides (MORGAN, 1994, pp. 200-3). Segundo o relato de Tucídides, os atenienses acreditavam que a peste tinha origem no Norte de África (Etiópia) e foi transmitida através da Pérsia no segundo ano da guerra (430 a.C.). A peste chegou no verão, durante um cerco feito por Esparta e atingiu primeiro a cidade portuária ateniense do Pireu, inicialmente causando suspeitas de que o exército invasor havia envenenado as fontes de água. O inimigo continuou com a sua planeada invasão aparentemente sem medo de contaminação, e de facto não pareceu ser afectado por ela, tornando esta suspeita razoável e justificada (KALLET, 2013, pp. 356–357). As populações rurais da Ática foram forçadas a refugiar-se dentro das muralhas da cidade de Atenas. A peste se espalhou rapidamente de pessoa para pessoa e matou rapidamente – em cerca de uma semana (TUCÍDIDES. 2.49). A doença deixou os seus sobreviventes enfraquecidos, não teve um carácter sazonal e as evidências sugerem a possibilidade de ter matado várias espécies (TUCÍDIDES. 2.50). A peste persistiu intermitentemente por mais de três anos, período durante o qual matou um terço da população da cidade (TUCÍDIDES. 3.87). Evidências arqueológicas de uma peste em Atenas foram descobertas na orla do Kerameikos em 1994-1995, quando uma cova escavada foi encontrada contendo mais de 150 esqueletos, acompanhados por humildes bens funerários datados pelos escavadores de 430-426 a.C.. Os falecidos foram dispostos de forma desordenada, em mais de cinco camadas sucessivas, sem qualquer interposição de solo entre elas (BAZIOTOPOULOU). Curiosamente, a cova parece ter permanecido aberta durante algum tempo (dias, semanas?) – os esqueletos dos níveis mais baixos foram colocados no interior de uma forma relativamente mais ordenada do que os de cima, que parecem ter sido amontoados um sobre o outro com pressa crescente (PAPAGRIGORAKIS et al., 2007). Parentes e amigos tinham medo de enterrar seus mortos, com medo de que também pegassem a peste. Os cadáveres, e mesmo as vítimas moribundas, foram deixados sem cuidados e sem sepultamento, em violação dos estritos ritos funerários gregos (TUCÍDIDES. 2.52). Aves carniceiras e cães parecem ter evitado as vítimas da peste, ou podem de fato ter sofrido uma queda populacional após inicialmente se alimentarem deles (TUCÍDIDES. 2.50). As pessoas deixaram de temer as leis porque acreditavam que morreriam em breve e se envolveram abertamente em comportamentos imorais: ῥᾷον γὰρ ἐτόλμα τις ἃ πρότερον ἀπεκρύπτετο μὴ καθ᾽ ἡδονὴν ποιεῖν – “os homens agora se aventuravam friamente no que haviam feito anteriormente em um canto” (trad. Crawley). A crença nos deuses – que provavelmente eram considerados silenciosos e inúteis nestas circunstâncias – diminuiu: 2.47: ὅσα τε πρὸς ἱεροῖς ἱκέτευσαν ἢ μαντείοις καὶ τοῖς τοιούτοις ἐχρήσαντο, πάντα ἀνωφελῆ ἦν, τελευτῶντές τε αὐτῶν ἀπέστησαν ὑπὸ τοῦ κακοῦ νικώμενοι. - “Súplicas nos templos, adivinhações e assim por diante foram consideradas igualmente fúteis, até que a natureza avassaladora do desastre finalmente as impediu completamente” (tradução. Crawley). 2.53: θεῶν δὲ φόβος ἢ ἀνθρώπων νόμος οὐδεὶς ἀπεῖργε, τὸ μὲν κρίνοντες ἐν ὁμο ίῳ καὶ σέβειν καὶ μὴ ἐκ τοῦ πάντας ὁρᾶν ἐν ἴσῳ ἀπολλυμένους, τῶν δὲ ἁμαρτημάτων οὐδεὶς ἐλπίζων μέχρι τοῦ δίκην γενέσθαι βιοὺς ἂν τὴν τιμωρίαν ἀντιδοῦναι, πολὺ δὲ μείζω τὴν ἤδη κατεψ ηφισμένην σφῶν ἐπικρεμασθῆναι, ἣν πρὶν ἐμπεσεῖν εἰκὸς εἶναι τοῦ βίου τι ἀπολαῦσαι. - “Medo dos deuses ou da lei dos homens, não havia ninguém para contê-los. Quanto ao primeiro, eles julgaram que seria a mesma coisa se os adorassem ou não, visto que viam todos perecendo; e para o último, ninguém esperava viver para ser levado a julgamento por seus crimes, mas cada um sentia que uma sentença muito mais severa já havia sido proferida sobre todos eles e pairava sobre suas cabeças, e antes que isso acontecesse, era apenas razoável aproveitar a vida um pouco” (trad. Crawley). Todos os gregos levavam sua religião muito a sério, então Apolo, como deus da cura e das doenças, estaria automaticamente envolvido de alguma forma. Com a evacuação do campo, os deuses domésticos e os santuários teriam sido abandonados, e este afluxo de pessoas para Atenas exigiria que espaços anteriormente considerados sagrados e, portanto, inabitáveis, precisassem agora de ser povoados (KALLET, 2013, p. 371). De uma perspectiva religiosa, estas duas tendências atrairiam compreensivelmente a ira dos deuses, e da perspectiva moderna isto mostra quão limitados em termos de espaço os atenienses devem ter estado para arriscar tal retribuição divina. Tais confinamentos dentro dos muros da cidade seriam o terreno fértil perfeito para doenças. Tucídides descreve a doença com detalhes horríveis e depois mostra que deixa as suas vítimas tão enfraquecidas tanto na mente como no corpo que os costumes individuais e colectivos entram em colapso, os homens procuram apenas o prazer e recusam-se a lutar, os deuses são esquecidos, os templos são profanados, as piras funerárias roubadas, e os mortos ficam insepultos em Atenas enquanto o campo é devastado (MORGAN, 1994, p. 205). Nielsen (1996) expande este ponto, explicando que “ocorreram mudanças abruptas nas fortunas, quando os ricos morreram e os sem um tostão herdaram a sua riqueza. Como tudo, inclusive o dinheiro, parece efêmero, a autoindulgência e o prazer tornaram-se a ordem do dia. A honra foi deixada de lado, ninguém cumpria as leis e apenas o prazer do momento era valorizado” (NIELSEN, 1996, p. 400). Este tipo de comportamento proporciona um contraste dramático com os atenienses idealizados que Péricles descreveu no seu discurso fúnebre (História da Guerra do Peloponeso, Livro II, 36 a 42), enfatizando a profundidade da decadência moral dos cidadãos quando confrontados com sofrimento e perda tão inimagináveis (NIELSEN, 1996, p. 402; MORGAN, 1994, p. 207).
Ana Margarida Oliveira Nunes
Bibliografia BAZIOTOPOULOU. Mass burial from the cemetery of Kerameikos. In: Stamatopoulou M, Yeroulanou M, eds. Excavating Classical Culture: Recent Archaeological Discoveries in Greece: Studies in Ancient Archaeology I. BAR International Series 1031. Oxford, UK: Archaeopress; 2002:187–201. CRAWLEY, R. (tradução). (1910). Thucydides: The History of the Peloponnesian War. London: Dent. KALLET, L. (2013) Apollo, the Plague, and the War. The American Journal of Philology 134, 3, pp. 355–382. LOURENÇO, F. (tradução). (2013). Homero: Ilíada. Penguin-Companhia MALBEUF, J., JOHNSON, P., JOHNSON, J., e MARDON, A. (2021). The Plague of Athens Shedding Light on Modern Struggles with COVID-19. Journal of Classics Teaching, 22(43), 47-49. MARTINEZ, Javier. (2017). Political consequences of the Plague of Athens. Graeco-Latina Brunensia. MORGAN, TE. (1994) Plague or Poetry? Thucydides on the Epidemic at Athens. Transactions of the American Philological Association (1974–2014) 124, pp. 197–209. NIELSEN, DA. (1996) Pericles and the Plague: Civil Religion, Anomie, and Injustice in Thucydides. Sociology of Religion 57, 4, pp. 397–407. PAPAGRIGORAKIS, M. J., SYNODINOS, P. N. e YAPIJAKIS, C. (2007). Ancient typhoid epidemic reveals possible ancestral strain of Salmonella enterica serovar Typhi. Infect Genet Evol. 2007 Jan;7(1):126-7.
02. Texto suplementar 01 - MUÑOZ, Alberto Alonso. O paradigma platônico. In-- MACEDO Jr, Ronaldo Porto. Curso de filosofia política. São Paulo-- Atlas, 2008. p. 91-116