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VIDA
Anaxãgoras (c.a. 500 — ca. 428 aC,) foi, como Sócrates, processado por impiedade, Duas
décadas depois, o Sofista Protágoras (480-410 a.C.) também sofreu um processo dessa
espécie, vindo a morrer no exílio, o mesmo ocorrendo com Diágoras, acusado de “ateísmo”.
Sócrates foi condenado a morte por ingestão de cicuta. Seus amigos tramaram para sua
fuga, com uma certa condescendência dos Magistrados, que realmente esperavam que
essa fosse sua decisão. Ele, entretanto, recusou-se a fugir e, aproximadamentetrinta dias
após sua condenação, tomou o veneno. lá em 399 aC,, ano de sua morte, surgiram os
primeiros diálogos de Platão. Em 393 aC., apareceu um panfleto anti-socráticode Policra—
tes: Acusação de Sócrates, que foi respondido por Xenofonte em duas obras: nas Memorabilia
e em uma Apologia de Sócrates.
OBRA
Não há conhecimento de nenhum escrito que possa ser atribuído a Sócrates, e suas
idéias foram difundidas por meio da obra de seus discípulos, especialmente Platão (c.
428/427-347/348 a.C.).
O paradigma platônico 93
atividade principal de Sócrates como inte« decorre do que afirmou ou não. Limita—se,
lecrual: a atividade filosófica desenvolvida pois, a dizer “sim“ ou “não” às perguntas do
através do diálogº. É aqui que chegamos ao adversário, do tipo “se você admite tal e tal
Sócrates filósofo, opositor da Sofistica. coisa, então também acredita que tal e tal
O diálogo era uma forma de debate outra coisa e' verdadeira, não é?”. O jogo
que obedecia a regras claras de argumen— termina ou com o adversário conduzindo
tação e intervenção dos contendores. A o primeiro contendor à refutação 7 a ter
melhor forma de entendê—lo e' como um de rejeitar a tese que propôs inicialmente
jogo com dois interlocutores, um dos , ou a uma aporia, em que o primeiro con—
tendor admite todas as conclusões que seu
quais ajímm uma tese, uma opinião sobre
determinada questão, e o outro contendor adversário pretende deduzir, sem rejeitar
procura extrair, dessa tese, uma conclusão nenhuma delas e sem que ele seja capaz
absurda, inaceitável, contraditória em si de ser refutado. Esse conjunto de regras,
mesma ou com as demais crenças que e sua prática, recebeu posteriormente o
seu adversário estaria disposto a admitir. nome de dialética.
O contendor que afirma a tese deverá, Algumas características desse tipo de
diante de cada conclusão extraída pelo atividade merecem ser frisadas. A primeira
adversário, apenas pronunciar—se se está delas é que, à diferença do discurso, forma
de acordo com a inferência ou não — se típica da Sofistica e dirigida a uma platéia
concorda que aquilo que está sendo dito de ouvintes (Assembléia, Tribunal), o
O paradigma platônico 95
diálogo é uma atividade entre dois interlo— estaria mais próximo a encontrar averdade.
cutores que abre espaço para a intervenção Muitos dos diálogos platônicos da primeira
de ambºs. A platéia é passiva diante do fase são ditos aporétiras porque descrevem
discurso, limitando—se persuadir—se ou te— Sócrates nesse embate intelectual e termi—
jeitar o que o orador pretendeu transmitir. nam numa aporia, isto é, não concluem
Já no diálogo, o interlocutor pode pedir por nenhuma tese, mas apenas reflitªm
esclarecimentos ao adversário, informar— uma crença corriqueira, muito frequen—
lhe que não entendeu o que foi dito e, temente aceita, mostrando que era falsa.
mais fundamentalmente, a medida que seu São, por assim dizer, diálogos negativos,
objetor extrai, encadeadamente, cada uma em que um novo conteúdo cognitivo não
das conclusões de sua tese, passo a passo, é introduzido, mas outros são eliminados,
pode interferir no processo, concordando porque se mostraram inaceitáveis (contra—
ou discordando do que foi dito. Daí por ditórios, paradoxais, incompatíveis com
que o discurso sol-ista tenha um espaço outras crenças).
privilegiado nos grandes auditórios (no—
Essas características da atividade inte—
vamente: Assemble'ia ou Tribunal), o que
lectual desenvolvida por Sócrates mostram
poderíamos chamar de espaço público,
uma incompatibilidade frontal com aquela
enquanto o espaço típico do diálogo é da Sofistica. Enquanto esta procurava
aquele formado por dois interlocutores em
debate, tentando chegarem mutuamente a a persuasão através de um discurso bem
elaborado, procurando fazer com que o ou—
algo que resista a critica. Este espaço podia
cercar—se de outros ouvintes, que assistiam
vinte adotasse o ponto de vista do orador,
a contenda, mas era sempre um espaço o diálogo é uma atividade que procura,
no de teses mais gerais, como a natureza da saber claramente o que é a justiça. O ad—
justiça ou da virtude. A atividade socrática versario pode ter uma noção confusa do
consistia, assim, em interpelar os mais di— que ela seja, ou simplesmente falsa. Mas
versos personagens da Vida ateniense nos o pressuposto da atividade socrática é que
mais diversos contextos morais, perguntar— haja um padrão invariante e objetivo que
lhes se entendiam que tal ação era correta permite qualificar, para além de qualquer
ou incorreta (moralmente falando) ou o perspectiva individual, se determinada
que entendiam ser a justiça, a virtude, a ação foi justa ou injusta. Esse padrão de
coragem etc., e procurar verificar se o que medida que permite aferir o teor de justiça
diziam resistia a critica, conjuntamente numa ação é chamado de Fºrma dajustiça.
com seu interlocutor. Sócrates não praticava Cada um dos predicados morais ——
uma
uma crítica para um auditório, ainda que ação corajosa, uma ação virtuosa, uma
outras pessoas estivessem frequentemente ação justa etc. — terá um correspondente
presentes e muitas vezes interferissem no padrão que permite aplica—los, um modo
debate. Não interferla no que se poderia de ser, uma forma típica de existir. Buscar
chamar de “opinião pública". Seu alvo era a Forma, portanto, é procurar explicitar
o conjunto de crenças individuais portadas uma definiç㺠de um predicado fundamen—
por seu interlocutor, que lhe incumbia de talmente moral que enfeixa um conjunto
modificar, no sentido de alcançar alguma de propriedades que, se presentes numa
dotada de objetividade. ação, a tornarão, conforme o caso, justa,
Sendo teses morais seu campo privile- piedosa, corajosa, virtuosa, e, se ausentes,
giado de atuação, não é de admirar que, na injusta, ímpia, covarde ou viciosa.
medida em que atingia comportamentos, Dai uma tríplice correspondência,
Sócrates tenha sido acusado de “corromper”
que o método dialógico deve fazer surgir.
a juventude, inculcando—lhe novas crenças. Em primeiro lugar, o interlocutor possui
Na medida em que, ao examinar uma ação
crenças. É, em principio, capaz de oferecer
em vias de concretizar—se e considerada alguma definição do predicado moral que
pelo interlocutor como “justa”, Sócrates enxerga na ação que está julgme ou que
lhe perguntava “o que é a justiça?”, vinha está em vias de praticar. No Laqnes, por
a exigir do adversário que explicitasse os exemplo, assistimos a Sócrates buscando,
fundamentos de sua crença. Dai um pres— com seus interlocutores, uma definição
suposto presente já na filosona de Sócrates, da coragem. Lisírnaco e Mele'sias, dois
que se constituiu muito mais como uma personagens desse diálogo, são bons pais
atividade do que um sistema dogmática de familia e estão à procura da melhor
de teses: para cada ação, cada objeto, cada educação para seus filhos. Vão assistir,
fenômeno moral há um padrão objetiva assim, a uma “aula gratis” de preparação
contra o qual se pode medir seu teor de para o combate com dois generais, Nicias e
justiça, coragem, virtude etc. Laques. Sócrates está por ali, como sempre,
Para saber se, por exemplo, uma ação na praça, na rua, interpelando os passantes
e', num caso particular, justa, e' preciso da maneira irritante e sarcástica como cos—
O paradigma platônico 97
tuma fazer. Nícias começa aârmando que a reta, então ela é genérica demais. Pois afinal
hoplomaquia (exercício físico com armas) como distingui—la da loucura? A loucura é,
e'uma excelente preparação para o combate também, urna força da alma, uma energia
e, portanto, uma bela trmla de coragem. psicológica que termina por destemperar
Laques e de opinião oposta: bravura não por completo o indivíduo. Mas o corajoso
decorre de exercícios de treinamento fora não éo louco, de modo que a nova definição
de condições reais. A bravura só é alcan- proposta por Laques também vai por terra.
çada em exercícios no campo de batalha. Diante desse quadro, Laques resmunga que
Fora dessas condições, os aprendizes da sabe o que é a coragem, só que esta se atra—
coragem não obtêm o que buscam. palhando com as palavras, e desiste.
Sócrates ira sustentar que 0 que esta Nícias, tentando mostrar—se mais pers-
em jogo não é a hoplomaquia, não é saber picaz que Laques, propõe que a coragem
se essa prática irá levar alguém a tornar-se seja “o saber das coisas a temer ou a esperar
corajoso, mas, sim, antes de tudo, o que tanto na guerra quanto em todas as outras
é a coragem. Portanto, cabe chegar a um circunstâncias”. Mas saber que coisas se
acordo o que e' isto que se procura, para deve temer e portanto Elgin ou esperar e
então depois buscar os melhores meios portanto buscar, e que coisas ocorrem com
para atingi-lo. A isso, Laques responde, frequência, tanto na guerra quanto em
numa tentativa de oferecer uma definição, quaisquer outros contextos, é simplesmen—
que dizemos que um indivíduo e' corajoso te a própria ciência. A definição proposta
“quando “IH Soldªdo PCTmQIICCC em seu por Nícias, ainda que mais rebuscada, à
posto e se mantém firme contra o inimigo primeira vista, que as de Laques, mostra—se
em vez de fugir”. No entanto, opõe Sócra— ainda mais insatisfatória. Ela faz com que
tes, começando o jogo dialético, há vezes a virtude da coragem e o próprio saber em
em que agir assim não demonstra qualquer geral se identifiquem. De tão ampla, faz
coragem, mas temeridade: falta de bom— com que o saber de um sapateiro deva ser
senso, loucura, expondo—se a perigos aos chamado de coragem, pois afinal sabe que
quais não há como resistir. Sócrates quer coisas temer, que coisas buscar, e também
saber o que é a coragem em todos as caras, e a é capaz de prever o que ocorre. Corn isso,
resposta de Laques mostra—se insatisfatória, os interlocutores simplesmente desistem e o
pois prova que não é capaz de separar uma diálogo termina aporético. Há um ganho: os
ação corajosa, por bravura, de uma ação interlocutores passam a saber que aquilo que
temerária, desperdiçada. acreditavam ser a coragem era, na verdade,
Laques, então, reformula sua definição: uma falsa noção dessa virtude. Livraram—se
de uma crença falsa, capaz de interferir nos
coragem é “uma certa força da alma, se
consideramos sua natureza em geral”. Tem juízos e comportamentos, já que é com base
nela que julgariam ou agiriam.
coragem quem tem energia para resistir ao
medo. Sócrates, sem muita dificuldade, Em segundo lugar, o interlocutor, ao
mostra—lhe que, se essa for a definição cor- julgar a ação alheia ou ao planejar suas pró—
98 Curso de filosofia política ' Ronaldo Porto Macedo Jr.
VIDA
no momento de sua morte, A sentença de morte recebida por Sócrates conduziu Platão a
certeza de que a maioria das formas de governo eram condenáveis, fossem democráticas
ou oligárquicas. Entre a morte de seu mestre (399 a.C.) e a fundação da Academia (387 aC,]
passaram—se doze anos, um periodo sobre o qual não há muitas informações sobre a vida
do filósofo, Sabe—se que ele viajou à Magna Grécia, onde conheceu o pitagórico Arquitas de
Tarentole travou contato com a filosofia eleata. Aos quarenta anos, em 388 a.C., realizou
sua primeira incursão na política, viajando para a Sicília, onde o tirano Dionísio de Siracusa
pretendia formar um governo “filosófico", Ali conheceu um de seus principais amigos, Dion,
cunhado de Dionisio, Platão, entretanto, fez fortes críticas ao luxo, a licenciosidade e à
própria natureza do regime de Dionísio [Carta Vil]. Retomando à Grécia, fundou a Academia,
para dedicar—se a filosofia e a formação educacional. Platão voltou a Sicília ainda mais duas
vezes, em 367 e 361 a.C., na esperança de ver no poder um "rei-filósofo”, nos moldes da
República, mas ambas as incursões foram fracassadas — em 36I a.C.. Platão viu seu amigo
Dion, que conspirava contra Dionísio ii, fundar uma ditadura em Siracusa e acabar assas-
sinado por Calipos, também ele um frequentador do círculo platônico. A Academia, nome
dado a Escola de Platão. foi a primeira instituição de ensino de filosofia da história. Ficava
num local dedicado ao herói Academos [daí o seu nome], um bosque a noroeste de Atenas.
No centro havia um ginásio e, ao lado, um alojamento para estudantes. O local compreen-
dia salas de aula, uma sala reservada às Musas e uma biblioteca. Havia provavelmente um
sistema no qual os alunos mais adiantados eram encarregados de uma parte do ensino.
Aristóteles frequentou essa instituição por vinte anos, O objetivo da Academia era preparar
uma elite de iovens, mediante uma formação científica e filosófica, para o governo da cidade.
Eram ensinadas Matemática, Astronomia. Medicina, Retórica e Dialética. AAcademia foi um
ambiente altamente fértil, marcado pela discussão e pelo ensino, em franca rivalidade com
a instituição de ensino “oficial" de Atenas, fundada pelo orador lsócrates, que também se
O paradigma platônico 101
OBRA
Platão é um dos poucos filósofos da Antiguidade cuja obra chegou praticamente inteira
até nós. Há, entretanto, controvérsias sobre a autoria de vários dos diálogos a ele atribuídos
(Segundo Alcebíades, Clatofari, Epinomis, entre outros).
Períºdo de iuventude
— Hipias Menor, Íon, anues, Cármides, Pralúgoms, Emi/rante, Hípías Maior, Apolagía de Sócrates
e Críton.
Caracterizam—se por terem sido escritos pouco antes ou depois da morte de Sócrates.
Procedem segundo o método critico de exame das falsas crenças, sendo aporéticos.
Diálºgos de transição
— Gárgias, Mirian, Eutidemo, Lisias, Menexeno, Crátilo.
São contemporâneos da fundação da Academia. Neles começam a surgir os temas
propriamente platônicos, como o conhecimento por reminiscência e a exemplaridade da
matemática,
DiâIogus de maturidade
— Fédan, República, Banquete e Fedro.
Díáluyos de velhice
— Teeteto, Parmênides, Sofism, Político, Timeu, Crítius,,Fílebo, Leis e Carta Vil.
Nos Diâlugos, Sócrates aparece inicialmente como o personagem central que conduz o
diálogo, Há, porém, uma perda progressiva de imponência de sua figura, até chegarmos ao
Sofisma e ao Palítím, em que o “Estrangeiro de Elêia" domina a discussão, e às Leis, em que
verdadeiras e os objetos que lhes corres— nenhum ato virtuoso, deve dar conta de
pondem. Na Apºlogia, Sócrates descreve todos os atos virtuosos e de todas as pes—
a tarefa que lhe havia sido colocada pelo soas virtuosas, e não deixar nenhuma fora.
Oráculo de Delfos numa consulta. Este o Deve, além disso, justiãcar racionalmente
havia descrito como o mais sábio dos ho- qualquer juízo ou ato emitido ou praticado
mens. Platão relata que Sócrates concluiu conforme esse saber.
que, de fato, era o mais sábio dos homens A tarefa, portanto, é a mesma de Só—
porque sairia que não sabia, ao passo que crates: busca da explicitação das definições.
os demais acreditam saber, quando na
Não bastam, para tanto, nem definições
verdade nada sabiam. A tarefa de Sócrates,
nominais, nem definições por ostensâo.
após essa declaração do Oráculo de Delfos, As primeiras apenas estipulam um nome
passa a ser a de testar o conhecimento dos
para determinado tipo de objeto ou predi—
que pretendem conhecer mas, realmente,
cado, e são inteiramente arbitrárias. Já as
não conhecem.
segundas apenas exibem exemplos daquele
Ora, esse teste do conhecimento dos
tipo de objeto ou propriedade, não dizem
que afirmavam conhecer exigia a prévia a que tal tipo de objeto ou propriedade e'.
enunciação de definições dos objetos O que se busca não são exemplos, mas o
conhecidos. Assim, no diálogo de mesmo
prºprio belo, o Própria justo, isto é, a ca-
nome, Mênon afirma saber com certeza o racterística genérica presente em todas as
que é a virtude, aliás já tendo feito va'rios coisas assim caracterizadas. A palavra “o
discursos sobre ela. No entanto, bastam
próprio”, que aponta para a propriedade
alguns instantes submetido ao elena/ru:
em geral, não para um ou outro exemplo
socrático para revelar—se incapaz de ofe-
particular, e' um conceito operatório pre—
recer uma dehnição adequada sobre ela.
A questão “o que e' X?” conduz Platão sente na obra de Platão e que, em grego,
é designado pela palavra to autón. A essa
paulatinamente àquela mais fundamental,
“como você sabe o que é X?” Responder, propriedade comum que caracteriza “a
de modo geral, a esta última questão justiça”, “a virtude”, “a identidade" etc. de
determinadas coisas Platão chama seu tidas
pressupõe a elaboração de uma teoria do
— sua Forma, ou sua essência. Isso vale
conhecimento, que permita expor quais os para
todas as realidades, matemáticas, praticas
tipos de conhecimento, seus graus e, mais
hindamentalmente, se e como podemos ou morais. A definição deve, portanto,
conhecer adequadamente o que quer que poder ser juszrfaível e descrever realmente
seja. Ora, sendo assim, o verdadeiro saber seu objeto, exibindo a explicação formal
deve ter pelo menos duas características: de suas características.
compreensão unificada dos fenômenos Com esse esforço de rejeitar exemplos
ao qual se aplica e fornecimento de uma concretas e solicitar a definição da caracte—
explicação racional dos atos inspirados por rística comum a eles, Platão introduz uma
ele e dos juízos a ele referentes. Um conhe- distinção que fará fortuna a partir daí: a di—
cimento sobre a virtude não deve excluir ferença entre a realidade e a aparência. Os
O paradigma platônico 103
duas relações possíveis que os dois mundos dificuldades, entre elas o célebre argu—
podem manter entre si: a participação ou mento do terceiro homem em Metafísica
a semelhança. A, de Aristóteles. Pois para dizer que este
A participaç㺠explicaria a existência da homem assemelha—se a Forma do Homem
coisa sensível. Visto que a única realidade é preciso uma relação de semelhança. Por
efetiva são as Formas, as coisas do mundo sua vez, a relação de semelhança deve ser
sensivel só existem porque participam semelhante a Forma da Relação de Seme—
(tomam parte, são parte) das Formas. lhança. Mas então é preciso introduzir
Platão inverte, assim, a visão comum uma nova relação de semelhança entre a
do mundo material como existente e do relação de semelhança e sua Forma, que
mundo inteligível como dependente deste: deve ser a relação de semelhança da relação
o que realmmte existe são as Formas, e o de semelhança e sua Forma etc. Ou seja,
mundo sensível só subsiste por causa de sua é precisointroduzir um terceiro homem a
participação nelas. que o homem sensível e a Forma do ho—
A relação de semelhança explicaria mem se assemelhariam, e um quarto, e um
por que o mundo sensível e como ele e', quinto, e assim ao inhnito, o que demoliria
e como podemos saber que ele possui tais a própria relação de semelhança.
propriedades — a resposta seria: porque Ontologicamente, as Formas e o mun—
assemelha—re as Formas. As coisas deste do sensivel foram articulados através de um
mundo comportam—se, com muita imper— esquema geométrico descrito no livro VI
feição, desta ou daquela maneira porque da Repúàlíaz. Ali, Platão introduz quatro
procuram imitar as Formas, assemelhando— níveis de conhecimento e de realidade no
se a elas. Essa resposta suscitou inúmeras mundo:
(Formas)
teoremas
de que não pode haver conhecimento colorido político. A dialética socrática tem
sensível. Conhecimentopropriamente dito por objetivo melhorar a alma, permitindo
seguraJnente não, mas na medida em que aos interlocutores alçar—se a atores morais
o mundo sensivel tenta copiar a estrutura conscientes. Assim, a excelência da alma
ideal das Formas, pode—se dizer que há dependerá do conhecimento. Este, por
um conhecimento sensível caracterizado sua vez, proporciona autonomia moral ao
pela probabilidade e por uma estabilidade, indivíduo, o que traz consigo consequên-
ainda que precária. cias imediatamente políticas. O objeto da
politica passa a ser, então, proporcionar aos
indivíduos meios para ganharem qualidade
9 Platão e a Filosofia Política moral. Donde a necessidade de estabelecer
um governo que procure não enriquecer
Platão foi o primeiro pensador oci- a cidade, mas torna—la melhor, colocando
dental a elaborar uma filosofia política a persuasão racional como fundamento
sistemática.. Dotado de uma teoria política, do consenso político. Ao se fazer isso, ai—
de uma teoria da justiça e de uma análise cança—se um Estado justa. Essa concepção
da justiça nas instituições políticas, o “científica” da política não deve ter dei-
pensamento platônico pôde, com isso, xado de chocar os concidadãos de Platão
formular um padrão de medida para aferir (e Sócrates), numa Atenas democratica,
o valor moral das instituições e propor acostumada não a persuasão racional, mas
uma reforma institucional conforme seu ao preenchimento das magistraturas por
modelo. Sua filosofia política supunha a sorteio e por designação por maioria na
transformação completa do modo de ser Assembléia. Para Platão, rais instituições,
do homem, numa radical reforma da vida em particular o debate público institucio—
social. Ao lado de um uso sistemático nalizado, se não estiverem a serviço do bem
de sua teoria das formas, agora aplicada político — ao qual se pode aceder apenas
ao terreno politico, temos como ponto pela via da dialética —, não terão em vista
de partida da análise de Platão a tese de o bem da cidade, mas apenas perseguir o
que a corrupção das instituições políticas prazer dos cidadãos, inclinados a serem
correspondem e são efeitos dos vícios e seduzidos pela retórica, que constitui o
das paixões dos indivíduos. Assim, a única avesso da boa linguagem política.
saída para uma reforma da vida política é No Crítan, por exemplo, o principal
a reforma dos próprios seres humanos (ou
personagem do diálogo (Críton) tenta
de pelo menos uma parte deles). persuadir Sócrates, às vésperas da execu-
já nas obras marcadas pela morte recen- ção de sua condenação a morte, a fugir.
te Sócrates — notadamente na Apologia e
de Sócrates concorda, sob a condição de que
no Górgias —, Platão se esforça por formular se examine racionalmente o sentido dessa
o contorno de uma âlosofla política. Nes— proposta. A cidade de Atenas o havia
sas obras, a atividade socrática de interpela— condenado à morte. Fugir seria contrariar
ção pública de seus concidadãos ganha um uma decisão judicial e, assim, contrariar a
110 Curso de filosofia política ' Ronaldo Porto Macedo Jt.
própria lei ateniense. Mas respeitar as leis A tese geral subjacente ao Crímn, à
atenienses é manter o engajamento Civico Apolºgia e ao Gárgias consiste em que a
com sua cidade—mãe. Violar os deveres de finalidade da cidade deve consistir na me-
respeito para com as leis da comunidade é lhoria da alma dos cidadãos, proporcionar-
a mesma coisa, diz Sócrates, que um filho lhes autonomia moral. A filosofia política
violar seus deveres para com os país. Assim, posterior de Platão, a começar com a REA
não existe nenhum direito a desobediência pública, irá afastar—se desse pressuposto de
civil diante de uma lei injusta, já que a base. Embora a finalidade das instituições
decisão pela fuga seria, ela própria, ainda políticas continue consistindo na melhoria
mais injusta do que optar por aceitar seu moral dos cidadãos, não se chegará a ela
cumprimento. Após o exame racional da pela autonomia moral, a qual todos os
proposta de Criton — cuja afeição pelo ami— indivíduos podem aceder pela persuasão
go, porém, não permitirá que ele aquiesça racional. Agora, será por meios estrita—
com essa decisão —, Sócrates decide ficar e mente políticor — uma nova configuração
permitir que lhe seja executada a pena. O institucional, a organização da sociedade, a
Críton apresenta, assim, uma concepção do coerção pela força, e até mesmo a “mentira
poder como “consentimento tácito" que em nome dos interesses do Estado” 7 que
marcará a história da filosofia politica. se atingira a justiça na cidade,
Essa posição de Sócrates, porém, não A República é a primeira obra de filoso-
implica uma adesão incondicional aos fia politica da tradição ocidental. Trata—se
comandos do Estado. Na Apologia, Sócra— de uma das obras mais importantes da
tes pede que seus juizes não o condenem filosofia de modo geral, nela estando esbo-
à morte, visto que, já velho, não deveria çadas uma teoria do conhecimento, uma
viver muito tempo. No entanto, Sócrates teoria da justiça, um critério de avaliação
deixa claro, em seguida, que se o preço a das instituições politicas conjuntamente a
pagar por essa comutação da pena for a um projeto de sociedade ideal, uma das
proibição do exercício público e racional sificação dos regimes politicos conforme
da crítica, então terá de desobedecer. Os sua maior proximidade ao regime ideal e
deveres de um indivíduo para com sua ate' mesmo uma filosofia do direito, com
comunidade, diz ele ali, param no exato considerações sobre o papel das normas
momento em que as determinações estatais jurídicas e as raízes de sua eficácia.
correm o risco de comprometer a alma O livro I da Pºlítica apresenta uma
do indivíduo. Essa é a única exceção ao critica às concepções convencionalistas
dever de obediência, mesmo se a decisão da justiça, defendidas fundamentalmente
for injusta — pois recusar-se a cumpri-la pela sofistica (ali representadas por um dos
seria ainda pior. Responder injustiça com
51
interlocutores de Sócrates:Trasímaco). Para
mais injustiçanunca será algo justo e nada essa doutrina, as boas ações que os homens
é mais injusto do que prejudicar os seres praticam considerando«as justas não visam
que nos protegeram até aqui. ao bem—estar de sua alma, mas têm por
O paradigma platônico 111
Parte apetitiva da
Artesãos e camponeses
alma Produção econômica Temperança
que receberam. Numa sociedade, porém, a adequação à função natural de cada indi—
em que não há espaço para sua atuação víduo, mas a prevalência da honra. A busca
— como aquela de Atenas —, é natural desenfreada por deter e usufruir riquezas,
que
o filósofo se aparte da vida política, dando por sua vez, levará o regime timocrárico &
origem à imagem de um ser alheio à vida ser substituído pelo regime daqueles que
prática e voltado exclusivamente à busca possuem mais riquezas, o governo dos
de conhecimento. Mas apenas o filósofo,
poucos ricos contra a maioria pobre, ou
consagrado desde sua juventude ao estu- regime oligárquico (de alígar, os “poucos",
do da matemática, formado pelo uso da contra os pallai, os “muitos”). Esse regime,
dialética e familiarizado com a ciência do em que a parte apetitiva da alma coman—
bem, poderá ser o melhor governante. Os da, caracterizasse por distribuir o poder
Elósofos trabalharão na formação da coe—
político e a justiça a partir de um critério
são social, podendo recorrer a persuasão
que leva em consideração exclusivamente
racional, quando for possivel, para justi—
a riqueza individual.
ficar as decisões a tomar, a coação ou até
A crise da oligarquia leva ao regime
mesmo a mentira para o bem geral.
democrático (de demos, o povo), quando
Mas esse governo dos reis-Filósofos
a população se revolta contra os oligarcas
pode entrar em declínio, visto que tudo
e, na medida em que os superam nume»
o que é criado no mundo sensível entra,
ricamente, toma o poder. É o regime
mais cedo ou mais tarde, em corrupção.
que ignora a competência política no seu
A análise desse processo de desagregação
do melhor regime de todos conduz Platão grau mais extremado, tendo como paixão
fundamental a luta pela liberdade e pelo
a apresentar uma teoria da corrupção das
formas de governo, tema que atravessara tratamento igual mesmo daquilo que
não é e não deve ser tratado igualmente.
a filosofia política. A cidade perfeita entra
Mas no momento em que a cidade não
em processo de degeneração no exato
mais suporta a liberdade que escolheu
instante em que os guardiães passam a
desenvolver o gosto pela riqueza. Se os para si e escolhe um protetor, esse indi—
víduo, que agora assume o poder, dará
filósofosgovernantes deixarem de vigiar
origem à última e mais perversa forma
os casamentos, nascerão crianças des«
conformes com a justiça da cidade. Com de regime político: a tirania. Enquanto a
democracia e' a tirania de muitos, a tirania
isso, difunde—se uma falta de igualdade e
correção nas relações sociais, que devem propriamente dita é a tirania de um só.
obedecer ao critério de justiça da cidade No inicio do livro IX da Repúblim, Platão
ideal. No momento em que os guardiães traz à tona as imagens da alma do tirano,
tomam o poder para si, surge o regime escravizada, sempre à mercê do medo e do
timocratico (de tima's, a parte irascivel da apetite, da cobiça e da ira, atormentada
alma, que passa a preponderar naquela por desejos insaciáveis.
sociedade), em que surge uma sociedade Platão, assim, é o primeiro filósofo a
em que o critério de justiça será não mais vincular ética e política, recusando—se,
O paradigma platônico 115
—_.
_.
Bibliograíia Complementar Gárgias, Lisboa: Edições 70, 2002.
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Mênan. São Paulo: Loyola, 2000.
COLEÇÃO os PENSADORES. Platãº,
São Paulo: Abril Cultural, 1973. Diálogºs. São Paulo: Cultrix, 1984.
Parmênides. Safsta e Palítíca.
GOLDSCHMIDT, Victor. A religi㺠de Pla-
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