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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE ARTES

DEPARTAMENTO DE MÚSICA

HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA I


APOSTILA

PROF. REGINALDO GIL BRAGA

Organização: monitores Eduardo Ulrich e Carolina Jung do Amaral. Revisão: monitora Natália
Damiani.
ÍNDICE

1. BRITO e CYMBRON. Tempos da Descoberta: viagens ultramarinas portuguesas ........ 02


2. CASTAGNA. Música na América Portuguesa ................................................................ 14
3. Polifonia Profana e Religiosa em Portugal, séculos XVI – XVII ..................................... 35
4. TINHORÃO. Gregório de Matos: glosa em cantigas no recôncavo baiano ................... 37
5. SEPP. Viagem às missões jesuíticas e trabalhos apostólicos ........................................ 67
6. HOLLER. Os instrumentos musicais no processo [...] ................................................... 78
7. NEVES. Música Sacra Mineira ..................................................................................... 104
8. CASTAGNA. A modinha e o lundu nos séc. XVIII e XIX ................................................ 117
9. KIEFER. História da Música Brasileira ......................................................................... 148

1
BRITO, Manuel Carlos de e CYMBRON, Luísa. Tempos das Descobertas: viagens ultramarinas
portuguesas. In: História da Música Portuguesa. Lisboa, Univ. Aberta, 1992. p. 61-77.

Um tema muito interessante, e sem dúvida dos menos estudados da história da


música portuguesa, é o que diz respeito aos aspectos musicais da Expansão ultramarina. Aqui.
mais uma vez, tal estudo não se poderá restringir àquelas manifestações das quais possuímos
documentos sob a forma de música escrita. As condições climatéricas dos trópicos e as
próprias vicissitudes históricas, nomeadamente o recuo da influência católica no Oriente,
fizeram com que da música europeia que os portugueses levaram para África, para a América e
para a Ásia sobrevivam hoje pouquíssimas fontes locais escritas. No caso particular dos
jesuítas, e tendo em conta a importância da música no seu ensino e missionação, é mesmo
assim surpreendente a quase total ausência, mesmo na Europa, de fontes musicais com eles
relacionados. Quanto aos testemunhos vivos, a situação é diferente em África ou no Brasil,
onde a presença ou a influência portuguesa continuou a ser significativa até ao século XX, e no
Oriente, onde nos aparecem hoje somente vestígios dispersos, e de difícil interpretação
histórica, do encontro entre a tradição musical europeia dos séculos XVI e XVII e as tradições
musicais locais. Estão neste caso a música de certas pequenas comunidades cripto-cristãs, ou a
dos grupos dos chamados “descendentes” dos que ficaram após o desfazer do Império, e que
são os herdeiros e testemunho vivo de uma antiga miscigenação rácica e cultural.
Por outro lado, na sua generalidade os documentos históricos de que dispomos não
fazem habitualmente referência a obras musicais ou mesmo a compositores concretos. Assim,
se é de um modo geral possível, por analogia, aventar hipóteses genéricas sobre os diversos
tipos de música religiosa e profana, popular e erudita, que os portugueses levaram para
longínquas paragens, não temos por outro lado meios que nos permitam relacionar essas
hipóteses com um repertório de obras musicais específicas.
Em relação aos aspectos musicais da Expansão colocam-se essencialmente quatro
ordens de questões:
1. De que modo é que as culturas musicais exóticas dos povos com quem contatamos
em África, no Extremo Oriente e na América impressionaram os cronistas das
viagens.
2. Que tipos de interação é possível encontrar entre as tradições musicais que os
navegadores e os colonizadores levaram na sua bagagem e as tradições musicais
locais, e quais os estilos e práticas musicais locais a longo prazo daí resultantes.
3. O papel da música na missionação.
4. Qual a influência ou influências que a Expansão terá exercido na vida e na prática
musical metropolitanas.

3.1 A visão das músicas extra-europeias nos documentos e na literatura de viagens.

De um modo geral a nossa literatura da Expansão revela uma grande curiosidade


pela cultura dos povos com quem contatamos e, embora naturalmente os cronistas, os
viajantes ou os eclesiásticos que escrevem os relatos não sejam habitualmente músicos, essa
curiosidade estende-se também à prática musical desses povos. Há um certo número de
instrumentos musicais extra-europeus cuja primeira descrição europeia aparece em narrativas
de viagens portuguesas. Assim por exemplo, o comerciante Duarte Lopes, que embarcou para
o Congo em 1578, deixou-nos uma interessante descrição do alaúde ou pluriarco congolês e
do modo como era tocado, descrição essa que é possível associar à salva de prata da segunda
metade do século XVI que se conserva no Palácio da Ajuda, em Lisboa, ostentando as armas de
Portugal ao centro, e na sua cercadura a representação de um cortejo, talvez de um dignitário
do reino do Congo, em que surgem dois tocadores de pluriarco e três tocadores de xilofone.
Ao desembarcar em Mossel Bay, cerca de 200 milhas a Leste do Cabo da Boa
Esperança, no dia 2 de Dezembro de 1497, Vasco da Gama foi recebido por cerca de duzentos

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hotentotes, que traziam doze bois e quatro ovelhas, “e como os nossos, forão eles a terra
começarão a tanger quatro frautas acordadas a quatro vozes de musica”. Camões, nos
Lusíadas (Canto V, lxiii, 5-8), evoca assim a cena:

Cantigas pastoris, ou prosa ou rima,


Na sua língua cantam, concertadas
Co doce som das rústicas avenas
Imitando de Títiro as camenas

Em cartas dirigidas de Goa em 1562 aos Irmãos e Padres da Companhia de Jesus em


Portugal, o Padre André Fernandes refere-se à música dos Tsonga, da região de Inhambane em
Moçambique e descreve os xilofones por eles usados, ou o modo como entre os Chopes era
feito o juramento pelo grande tambor da guerra, pertencente ao rei. Igualmente Frei João dos
Santos, escrevendo em 1586, faz pormenorizadas descrições dos xilofones dos Mateve, da
zona de Manica e Sofala em Moçambique, cujos tangedores compara aos tangedores de
cravos, as quais, pela sua minúcia e rigor, são ainda hoje citadas na literatura estrangeira da
especialidade. O mesmo autor refere-se ainda aos tambores e às trombetas ou cornetas
utilizadas pelos Mateve e ao modo e à situação em que eram utilizados:

quando este rei sai fora de casa, vai rodeado e cercado destes
marombes, que lhe vão dizendo estes mesmos louvores, com
grandíssimos gritos, ao som de alguns tambores pequenos, e de
ferros e chocalhos, que lhe ajudam a fazer maior estrondo e grita.
Serve-se mais o Quiteve do outro gênero de cafres, grandes músicos,
e tangedores que não têm outro oficio mais que estarem assentados
na primeira sala do rei e à porta da rua e ao redor das suas casas,
tangendo muita diferença de instrumentos músicos e cantando a
elles muita variedade de cantigas e prosas, em louvor do rei, com
vozes mui altas e sonoras.

A outros instrumentos se refere o frade dominicano com menos simpatia:

Outros muitos instrumentos tem estes cafres a que elles chamam


músicos, de que usam. mas eu chamo-lhe atroadores de ouvidos,
como são umas cornetas grandes de uns animais bravos que chamam
paraparas e por razão deste nome chamam às cometas parapandas,
as quais têm uma voz mui terrível e espan-tosa que soa tanto como
uma trombeta bastarda. Têm muitos tambores de que usam. ao
modo de atabales, uns grandes e outros pequenos, que temperam e
ordenam de maneira, que uns lhe respondem em tiple e outros nas
demais vozes, ao som dos quais cantam os mesmos tangedores, com
vozes tão altas e desabridas, que atroam toda a terra onde cantam e
tangem.

Na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, publicada em 1614, encontramos um


grande número de referências muito curiosas, se bem que de um modo geral imprecisas, à
música oriental. Mesmo admitindo que existe uma componente ficcional e de convenção
literária nas suas descrições, elas baseiam-se decerto de um modo suficientemente concreto
na realidade vivida pelo autor ao longo da sua vida para poderem ser aceitos como
testemunhos autênticos. O que torna especialmente fascinantes essas referências é o modo
como elas aparecem habitualmente integradas em quadros verdadeiramente
cinematográficos, em que ouvimos distintamente o estrépito e a música das batalhas, dos

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cercos, dos combates navais, dos cortejos profanos e religiosos, das cerimônias dos templos,
mas ouvimos também a requintada e suave música de corte.
São muito frequentes as referências a instrumentos militares, misturados com os
sons terríveis da guerra. Outras vezes, porém, esses sons calam-se e faz-se ouvir uma música
mais suave, utilizada para tentar aliciar os adversários, tal como acontece durante o cerco de
Pegu, na Birmânia:

Começando a correr o tempo das tréguas, ficou tudo quieto de uma


parte e da outra, e os de dentro com os de fora se começaram a
comunicar misticamente, e nestes dias desta quietação, quando
vinham as duas horas antemanhã se tocavam na parte do xemindó
muitos instrumentos suaves ao seu modo, ao som dos quais toda a
gente da idade acudia aos muros ao ver o que aquilo era. Os de fora
então fazendo calar os instrumentos, se dava um pregão com uma
voz muito triste e sentida, por um sacerdote tido na opinião de todos
por homem santo [...]

Por vezes, aos ouvidos europeus de Fernão Mendes Pinto a música cerimonial ou a
música religiosa orientais soam tão mal como a música militar. Eis os termos em que ele
descreve a música que acolheu o embaixador do rei da Birmânia provavelmente em Lhasa, no
Tibete:

tanta diversidade de tangeres bárbaros e desconcertados, que quase


faziam tremer as carnes, porque os mais deles eram sinos, bacias,
tambores, atabales, sestros, cometas e búzios, e sobretudo a grita da
chusma que parecia coisa de encantamento, ou para melhor dizer,
música do inferno, se lá há alguma.

3.2 A interação entre a música portuguesa e as músicas extra-europeias

Desde cedo a música e a dança foram utilizadas pelos portugueses como meio de
comunicação ou de afirmação aquando dos primeiros contatos com outras culturas. Na
famosa carta de Pero Vaz de Caminha a D. Manuel, descrevendo a descoberta do Brasil em
1500, há referências desse tipo dispersas ao longo da narrativa da aproximação entre os
navegadores e os índios. No quarto dia, domingo de Páscoa, 26 de Abril, após a missa cantada
celebrada num ilhéu, e durante a pregação, muitos dos índios que se encontravam sentados
na praia, e que seriam uns duzentos, “levantaram-se [...], tangeram corno ou buzina e
começaram a saltar e a dançar um pedaço”. Caminha anota ainda que:

Além do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante


dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se
então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é
homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com
sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e
eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita.
Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas
ligeiras e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam
muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam
logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para
cima.

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O caso do Brasil exemplifica bem a utilização da música como meio de comunicação
naqueles casos em que o encontro se dá com o homem natural, simples e esquivo como os
animais selvagens. Quando se sabe ou se suspeita que o povo com quem o contato se
estabelece possui alguma forma de organização social, logo de estrutura de poder, é antes a
música cerimonial de trombetas e atabales, juntamente com salvas de artilharia, que é
utilizada, numa dupla função protocolar e de afirmação do poder próprio. Este tipo de
contatos tem já um caráter diplomático e envolve também a oferta de presentes, entre os
quais se incluem os instrumentos musicais, nomeadamente os órgãos, que se pretende
venham a ser posteriormente utilizados na sua função litúrgica pelos missionários.
É assim que. nos finais do século XV os franciscanos enviados por D. João II ao rei do
Congo levaram consigo como oferta órgãos, decerto pequenos instrumentos portáteis,
inaugurando assim provavelmente aquilo a que um investigador inglês chamou a diplomacia
dos instrumentos de tecla: a oferta a soberanos africanos e asiáticos, por parte dos
missionários, embaixadores e negociantes europeus, de órgãos e de cravos, instrumentos que
possuíam a tripla atração do seu mecanismo complexo, da sua decoração, e dos sons que
produziam. Esta nossa iniciativa pioneira, à semelhança de outras, viria a ser posteriormente
seguida pelos holandeses e pelos ingleses das Companhias das índias Orientais.
Frequentemente essas ofertas eram acompanhadas do envio de músicos aptos a tocarem
esses instrumentos. Já no reinado de D. Manuel foram enviados para a Etiópia ou Abissínia
“dois instrumentos de órgãos de grandura da nossa capela, com seus foles e todo o necessário
para eles. Item. Dois tangedores para eles”. Do mesmo modo em 1556 D. João III nomeou
Diogo Fernandes para tangedor de órgãos do rei de Cochim.
Registra-se por outro lado que na bagagem das naus para além de instrumentos de
caráter militar, protocolar ou litúrgico, iam outros de caráter claramente popular. Assim por
exemplo, a expedição de Pedro Alvares Cabral que partiu de Lisboa com destino à índia em 8
de Março de 1500. com treze navios e mil e duzentos homens, levava a bordo trombetas,
atabaques, tambores, séstros (sistres), flautas, tamborins e gaitas de foles, uma das quais,
como vimos, foi utilizada nos primeiros contatos com os índios brasileiros.
A música de corte tinha também o seu lugar nos contatos diplomáticos. Disso é
exemplo o banquete, referido por Fernão Mendes Pinto, que foi oferecido na ilha de Upeh
pelo Bendara de Malaca, a mando do português Pêro de Faria, ao embaixador do rei dos Batas
de Sumatra. O som das charamelas, trombetas e atabales, e a música à portuguesa com
harpas, doçainas e violas de arco, fizeram com que o embaixador metesse o dedo na boca, em
sinal de espanto.
Há dois episódios na Peregrinação que ilustram de um modo especialmente rico o
encontro entre a música portuguesa e a música oriental. O primeiro é o das festas que os
comerciantes portugueses do porto de Ningpo (Liampó) ao Sul de Xangai, fizeram ao corsário
Antônio de Faria:

um domingo antemanhã, [...] lhe deram uma boa alvorada com uma
música de muitos instrumentos suaves [...] E sendo pouco mais de
duas horas antemanhã, com noite quieta e de grande luar, se fez à
vela com toda a armada, [...] acompanhado de muitas barcaças de
remo, em que haviam muitas trombetas, charamelas, flautas, pífaros,
tambores, e outros muito instrumentos, tanto portugueses como
chins, [...]
Em cima do toldo desta embarcação vinha [...] uma rica tribuna [...], e
ao redor dela seis moças de doze até quinze anos, muito formosas,
tangendo em seus instrumentos musicais, e cantando com muito
boas falas, que por dinheiro se trouxeram da cidade de Liampó, [...]
Nesta lantea se embarcou Antônio de Faria, e chegando ao cais com
grande estrondo de trombetas, charamelas, atabales, pífaros, e

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outros muitos tangeres de chins, malaios, champás, siameses,
bornéus, léquios, e outras nações que ali no porto esta-vam ? dos
portugueses, por medo dos corsários de que o mar andava cheio [...]

E ao dirigir-se Antônio de Faria para a Igreja de Ningpo,

levava diante de si muitas danças, pelas, folias, jogos, e entremeses


de muitas maneiras que a gente da terra que conosco tratava, uns
por rogos, outros forçados das penas que lhes punham, também fazia
como os portugueses, e tudo isto acompanhado de muitas
trombetas, charamelas, flautas, orlos, doçainas, harpas, violas de
arco, e juntamente pífaros e tambores, com um labirinto de vozes à
charachina [à moda da China], de tamanho estrondo que parecia
coisa sonhada. Chegando à porta da igreja saíram a o receber oito
padres [...], com procissão cantando Te deum laudamus, a que outra
soma de cantores [...] respondia em canto de órgão tão concertado
quanto se pudera ver na capela de qualquer grande príncipe. E [...]
ouviu missa cantada oficiada com grande concerto, tanto de falas
como de instrumentos musicais
[...] Depois [...]. vieram seis meninos da sacristia. em trajos de anjos
com seus instrumentos de música todos dourados, e pondo-se o
mesmo padre de joelhos diante do altar de Nossa Senhora da
Conceição olhando para a imagem com as mãos levantadas e os
olhos cheios de água. disse chorando em voz entoada e sentida,
como se falasse com a imagem:
— Vós sois a rosa. Senhora. — Ao que os seis meninos respondiam:
— Senhora, vós sois a rosa — descantando tão suavemente com os
instrumentos que tangiam, que a gente estava toda pasmada e fora
de si, sem haver quem pudesse conter as lágrimas [...] Após isto,
tocando o vigário uma viola grande ao modo antigo que tinha nas
mãos, disse com a mesma voz entoada algumas voltas a este
vilancete
[...] Acabada a missa, [...] o levaram a um grande terreiro [...] e,
sentados à mesa, foram servidos por moças muito formosas e
ricamente vestidas ao modo dos mandarins, que a cada iguaria que
serviam, cantavam ao som dos instrumentos que outras tangiam, e a
pessoa de Antônio de Faria foi servida por oito moças muito alvas e
gentis mulheres, filhas de mercadores honrados, que seus pais [...].
trouxeram da cidade, as quais todas vinham vestidas como sereias
que a modo de dança faziam o serviço da mesa ao som de
instrumentos musicais, [...] e quando havia de beber então se
tocavam as charamelas, e trombetas. e atabales. E com esta ordem
duraria este banquete perto de duas horas, nas quais houve também
seus entremeses de autos, um chim e outro português.

Esta descrição ilustra bem até que ponto era possível, em determinadas condições, a
convivência entre várias tradições musicais muito diferentes, mesmo se no caso presente
tivermos eventualmente de descontar alguma dose de hipérbole e de fantasia.
O outro episódio é o de Gaspar de Meireles, cativo na China, o qual tocava viola e
cantava muito bem, sendo frequentemente convidado a tocar em banquetes a troco de uma
esmola. Certo dia em que fora apanhar lenha com Fernão Mendes Pinto, encontrou um

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cortejo fúnebre, com os seus músicos e cantores, e foi forçado pelo mestre da música a
acompanhar o cortejo, cantando e tocando também ele para alegrar o defunto .

3.3 O papel da música na missionação


3.3.1 O Brasil

Desde o início da Expansão a música foi utilizada pelas diversas ordens religiosas
como instrumento privilegiado da missionação. No Brasil, por exemplo, o gosto e a aptidão dos
ameríndios para a música fizeram com que desde o principio os jesuítas se preocupassem em
utiliza-la como veiculo de catequizaçao, certos de que a suavidade do canto fazia entrar nas
almas a inteligência das coisas do céu. Quando em 1552 os “meninos órfãos” (os discípulos
europeus dos jesuítas) numa excursão aos arredores da Baia viram e ouviram as flautas e
trombetas dos índios, escreveram para Lisboa pedindo que lhes enviassem flautas, gaitas,
nésperas (decerto algum tipo de instrumento de percussão popular), ferrinhos com argolinhas
dentro, pandeiros com soalhas e se possível alguns tamborileiros e gaiteiros, com os quais iria
seguro o Pe. Nóbrega à conquista dos sertões. Organizavam-se procissões em que
participavam os índios convertidos e que se metiam pela selva dentro com os meninos índios
cantando música religiosa, e regressando seguidos pela indiada, que se deixava prender pela
música e pelo cortejo.
Quatro meios principais utilizavam os jesuítas para esta catequização musical:
o a adoção dos cantos dos indígenas, com a substituição dos textos originais por
textos religiosos traduzidos em língua tupi;
o o ensino de cânticos religiosos europeus, com o texto traduzido também em
língua tupi;
o a permissão de que os índios utilizassem as suas danças nas procissões e
provavelmente dentro dos templos;
o a representação de autos com música, que incluíam, ao lado dos santos,
personagens retiradas do mundo e dos mitos ameríndios.
Referindo-se à Baía em 1583, o Pe. Fernão Cardim diz-nos que em três aldeias havia
escolas de ler e escrever, onde os padres ensinavam os meninos índios e a alguns mais hábeis
também ensinavam a contar, cantar e tanger, havendo muitos alunos que tocavam flauta,
viola e cravo e oficiavam missas polifônicas, coisa que os pais estimavam muito. Dentre estes
cantores se escolhiam posteriormente os mestres de canto, ou Nheengaraíbos, que por sua
vez ensinavam outros índios “por papel”, isto é através de música escrita. Escrevendo em
1660, o Pe. Simão de Vasconcelos afirma que os índios

São afeiçoadíssimos à música, e os que são escolhidos para cantores


da igreja, prezam-se muito do ofício, e gastam os dias e noites em
aprender e ensinar os outros. São destros em todos os instrumentos
músicos, charamelas, flautas, trombetas, baixões, cornetas e fagotes:
com eles beneficiam em canto de órgão, vésperas, completas, missas,
e procissões, tão solenes como entre os Portugueses.

Até à segunda metade do século XVIII os índios do estado de Pernambuco ainda se


encarregavam da música de igreja das suas aldeias, tocando órgão e cantando. No entanto, a
absorção pela catequese e o aniquilamento pela escravidão contribuíram para que o
ameríndio, apesar de ter concorrido em grande parte para a formação do homem brasileiro,
deixasse poucas marcas evidentes nos seus costumes musicais. Por outro lado, a campanha
jesuítica contra a escravidão do índio e a pouca eficiência do trabalho deste, prejudicado pela
transferência brusca do nomadismo em que vivia para a fixação da vida agrícola,
determinaram a entrada de escravos negros africanos no Brasil desde o início do cultivo da
cana de açúcar.

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Vindos uns do Sudão e do Golfo da Guiné e outros de Angola, do Congo e de
Moçambique, todos eles tinham já uma cultura mais desenvolvida que a dos índios brasileiros.
A sua presença constante na vida dos brancos e a mestiçagem intensa estiveram na origem de
uma interinfluência cultural e musical muito mais ampla e profunda que a do ameríndio, a qual
foi determinante para o desenvolvimento da música popular do Brasil até aos nossos dias.
Além das bandas ou ternos de negros, que até ao século XIX constituíam um elemento
obrigatório das festas populares, existiam também orquestras de negros mantidas pelo luxo de
alguns senhores, para gosto próprio e admiração dos visitantes. Esse costume manteve-se
igualmente desde o século XVI. altura em que já existia ao que parece um conjunto
instrumental regido por um marselhês num engenho da Baía, até ao século XIX. Ainda em
1863, em Minas Gerais, o Barão de Bertiago ofereceu a alguns missionários americanos um
concerto no salão da sua fazenda executado por uma orquestra formada por uns trinta negros
e negras, que tocaram uma abertura de Rossini, o Stabat Mater de Pergolesi e, em
homenagem aos convidados, a Marcha de Lafayette.
Em Minas Gerais a prática e o ensino da música passaram progressiva e
predominantemente para as mãos de mulatos, que formaram as suas próprias corporações, ou
Irmandades de Santa Cecília, segundo o modelo existente em Lisboa. Na capital, Ouro Preto,
no século XVIII, muitas crianças mulatas, órfãs ou abandonadas, eram entregues pelo Senado
da cidade a mestres de música na sua maioria também eles mulatos, um pouco à maneira do
que acontecia nos célebres Conservatórios napolitanos. Era também entre as mulatas que,
pela sua condição social, tinham uma vida mais livre que a das mulheres brancas, que se
formavam as atrizes e até cantoras de ópera, como Joaquina Maria da Conceição Lapinha, que
nos finais do século XVIII se apresentou com sucesso no Teatro de S. Carlos de Lisboa. Entre os
mulatos da colônia vamos encontrar compositores de grande qualidade, como é o caso de
Joaquim Emérico Lobo de Mesquita ou do famoso Pe. José Maurício Nunes Garcia .
Na história da Expansão portuguesa o caso do Brasil é obviamente excepcional, uma
vez que se trata do único território que foi extensivamente colonizado e que veio a dar origem
a uma nação multiracial.

3.3.2 A África

Os testemunhos históricos da nossa presença musical em África parecem por


exemplo mais difíceis de reconstituir. A pouca informação até agora disponível mostra-nos no
entanto que também aí a catequização foi acompanhada por uma educação musical que faria
ainda hoje inveja aos nossos Conservatórios. Vejamos a título de exemplo o que escreve o
governador de Angola Paulo Dias de Novais numa carta enviada de Luanda em 1578:

Cõ as frautas folguey em estremo. Vierão a muyto bom tempo. Os


negros caõtaõ toda a missa pequena de Morales e o motete de Saõto
André a simco e huã Pamge Lingua de Guerreyro e a tangem nas
frautas cõ outras cousas ordinárias com braua abilidade e muyto
afinados; [...j Se lá poder aver Joam Castanho hum par de sacabuchas
e alguas charamelas velhas a bom preço, venhão que saõ muyto
necessárias pera aprederem. porque saõ doze ou treze e tendo todos
os instrumentos aprendem muyto mais. O mestre hé o mais pintado
homem pera os ensinar que pode ser.

Para melhor compreensão do significado deste texto anote-se que Cristóbal Morales
e Francisco Guerrero são dois dos maiores compositores quinhentistas espanhóis.
Da Abissínia sabe-se por sua vez que a alta nobreza, e o próprio Imperador,
colocavam os Filhos a estudar com os missionários portugueses, porque queriam que eles
aprendessem a nossa música. Ali o jesuíta Pe. Luís Cardeira

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Em seis meses formou hua capella de baixos, tenores, & typres, cousa
q igualmente espanta, & consola, assi aos de casa, como de fora.
Preparou [...] huas vésperas, & Missa, a cinco vozes, com grande
sucesso [...] O Emperador em particular gostou tanto destes atos, que
com se lhe repetirem muytas vezes, nam se fartaua de os tornar a
ver, & dizia. Nam fora eu agora como estes, pera os Padres me
ensinarem, & o mesmo dizia de seus filhos, e priuados, desejandolhes
idade pera aprenderem aquellas cousas; & de hum filho pequenino
que tè, disse daqui por diante o entrego aos Padres [...]

3.3.3 O Oriente

Virando-nos agora para o Oriente, Antônio de Gouveia refere como o Xá da Pérsia


apreciava a música dos missionários portugueses, tendo ido ouvi-la no Natal de 1608,
acompanhado da sua comitiva, e como chegou mesmo a corrigir o harpista, que teve de
confessar o seu descuido. Os portugueses usavam também o cravo e a citara para
acompanharem o canto polifónico.

de que o Xà, e os seus mostraram muyto grande contentamento. O


príncipe Manucharham se levãtou de seu lugar, e se foy pera o Choro
onde cantauam, mostrando tanta alegria que segundo nos confessou,
lhe parecia estar no Parayso.

Índia representa naturalmente por si só um capítulo importantíssimo da presença e


interação musical portuguesa no Oriente. Aqui também coube um papel relevante à
Companhia de Jesus, que nos seus Colégios, escolas e igrejas utilizava a música e o teatro com
o mesmo fervor missionário com que o fazia noutros locais do mundo. Já nas naus da índia,
durante as viagens, não só os jesuítas, como também os soldados e os passageiros
representavam diálogos e autos sacramentais. Desde 1558, pelo menos, há notícia da
representação de tragédias latinas no Colégio de Goa, na presença do Vice-rei, e com coros de
meninos cantando. Num diálogo aí representado no dia da leitura das autas de 1564 cantou
um coro acompanhado por um cravo e uma viola de arco. Também em Cochim, no mesmo
ano, se representou uma tragédia no dia da abertura das aulas, no fim de cada um dos cinco
atos da qual havia música de vozes, flautas, charamelas e violas de arco.
Pelo que diz respeito à música religiosa, num relatório de 1579 o Pe. Alessandro
Valignano refere-se por exemplo à música no Colégio de Baçain, dizendo que na sua igreja se
cantavam as missas em polifonia e se faziam todos os demais ofícios como em Goa, mas que,
ao contrário de Goa, não havia ali a comunidade dos meninos cantores portugueses, sendo
necessário arranjar cantores de fora, o que dava muito trabalho. Certas representações eram
aparentemente feitas e cantadas nas línguas locais, como a que se realizou em Coulão, doze
léguas a Sul de Cochim, no Natal de 1567. Ali o Pe. Manuel de Barros fez um presépio e
ensaiou alguns meninos da terra em figuras de pastores, e outros a cantar prosas de festa,
possivelmente em tâmul.
A atitude face à música indígena é por outro lado ilustrada pela determinação do 3°
Concilio Provincial de Goa, de 1585, segundo a qual as mulheres não deviam aprender a bailar,
tanger ou cantar Deqhanins nem outros bailes e cantigas gentílicas, decerto pela mesma razão
porque, para resguardar os convertidos da contaminação indú, se procurava afastá-los das
escolas indús, dos pagodes e das suas cerimônias.
Alguns fidalgos portugueses na índia mantinham a sua própria capela musical
privada. Há por exemplo notícia de um tal Guilherme Pereira, que fora por capitão à China
duas vezes, e que tinha a maior casa e aparato que nunca teve português na índia, de viso-rei

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abaixo, porque trazia mais de trezentas pessoas em sua casa, e tirados alguns feitores seus,
todos os mais eram seus cativos, e tinha sempre em sua casa mestre de capela com
charamelas, frautas, violas de arco.
Voltando-nos justamente para a China, verificamos que em Macau, em 1584, a
escola dos Jesuítas, fundada doze anos antes, tinha mais de duzentos alunos que aprendiam a
ler, escrever e contar, e também música. Mas o caso mais interessante de um músico
português na China é sem dúvida o do jesuíta Pe. Tomás Pereira (1645-1708), o qual
completou os seus estudos no Colégio de S. Paulo em Macau, onde terá em seguida lecionado.
Em 1672 foi chamado à corte do imperador Kam-hi, por referências que da sua ciência havia
dado o astrônomo belga Verbiest. Tendo passado o resto da vida em Pequim, aí construiu
diversos órgãos, alguns por encomenda do próprio imperador, e entre eles um órgão
mecânico, ou automático, que tocava melodias chinesas e incluía um jogo de campainhas. De
um dos órgãos que construiu diz Tomás Pereira, em carta de 1681, que

foi tal o aplauso e concurso que teve, que fomos obrigados a por
soldadesca na Igreja e seu pateo, para evitar desordens dos gentios;
[...] sendo obrigado o Autor a tanger mais de hum mez inteiro cada
dia muitas horas, e muitas dellas a cada 4." para dar vasão a muita
gente que corria e se renovava a cada quarto de hora.

O imperador Kam-hi mandou escrever um livro de teoria musical chinesa em quatro


tomos, com um 5° tomo, em apêndice, redigido por Tomás Pereira e pelo italiano Pe. Pedrini,
sobre os elementos da música europeia, e fez traduzir em tártaro um Tratado de Música
Prática e Especulativa do mesmo Tomás Pereira, porventura a obra anterior. Por sua morte, o
Imperador mandou-lhe construir um rico túmulo, para o qual escreveu ele próprio o epitáfio.
O caso do Japão parece estar bastante bem estudado, e a bibliografia é extensa, em
virtude também do interesse dos próprios investigadores japoneses pelo assunto. As primeiras
reações dos portugueses à música japonesa, tais como aparecem nos escritos do Pe. Luís Frois,
que esteve no Japão de 1563 a 1597, ou do Pe. Lourenço Mexia (1540-99), são bastante
negativas: ambos a consideram dissonante e desagradável, acrescentando que os próprios
japoneses tinham a mesma opinião em relação à música europeia. Tendo em conta esse fato,
resultante da incompatibilidade fundamental entre o sistema ou sistemas musicais japoneses,
e o sistema ocidental, é tanto mais de admirar a rapidez e perfeição com que os japoneses
convertidos aprenderam a música europeia ensinada pelos jesuítas, tornando-se bimusicais e
dando desde essa altura jus também na música à sua reputada curiosidade cultural e
capacidade de assimilação.
Na sua primeira visita ao Japão em 1549, S. Francisco Xavier ofereceu um relógio
musical e provavelmente um clavicórdio ao daimyo de Yamaguchi, e em 1551 Duarte da Gama
desembarcou em Funai ao som de flautas e charamelas, instrumentos esses que poucos anos
mais tarde eram já utilizados nas escolas jesuítas no acompanhamento de coros religiosos. Na
mesma cidade, em 1565, os discípulos dos jesuítas cantavam cantigas ao sábado
acompanhados de viola de arco, e aos domingos e dias de festa motetes polifónicos. Note-se
que o kokyu japonês, um violino de 3 ou 4 cordas que aparece somente nos finais do século
XVI, tem origem na rabeca portuguesa. Existem diversos testemunhos da admiração dos
japoneses pelos cravos e violas e sobretudo pelos órgãos europeus. Entre os discípulos do
seminário de Arima conta-se o Pe. Luís Shiozuka (1576-1637), que se tornou famoso como
instrumentista e mestre de capela, e esteve em Macau e em Manila, antes de voltar ao Japão,
onde foi martirizado.
Um episódio famoso da missionação jesuíta no Japão é o da embaixada à Europa de
quatro jovens príncipes japoneses, organizada pelo Pe. Valignano, e de que se publicaram na
Europa mais de oitenta relatos diferentes. Saídos de Nagasaki em 1582, os quatro jovens
demoraram-se dois anos e meio em Macau e em Cochim, onde estudaram música entre outras

10
coisas. Recebidos festivamente em Lisboa, deslocaram-se depois a Évora onde tocaram no
órgão da Sé Catedral, e em seguida a Vila Viçosa onde tocaram cravo e violas de arco perante o
Duque de Bragança, D. Teodósio II. Em todos esses lugares os jovens embaixadores foram
também acolhidos com música, tanto religiosa como profana. Regressados de Roma, onde o
Papa os recebeu em audiência (tendo a memória da sua visita ficado registada num mural no
Vaticano) tocaram novamente órgão em Évora e cantaram um Te Deum na Sé Catedral.
Um diário da sua viagem à Europa, publicado em Macau em 1590 (De missione
legatorum Japonensium ad Romanam Curiam), inclui um diálogo entre um deles e dois
japoneses convertidos sobre a música europeia e a sua comparação com a música japonesa.
De regresso ao Japão, fizeram-se ouvir perante o ditador Hideyoshi, cantando, tocando harpa,
cravo, alaúde. rabeca, viola de arco e realejo, ou órgão portátil. Um deles, Martinho Hara, viria
a morrer em Macau em 1629. Em 1593, um grupo de negros de um navio português dançou
perante o mesmo Hideyoshi ao som de uma flauta e de um tamborim, um dos primeiros
testemunhos do contato entre africanos e japoneses. Numa outra ocasião Hideyoshi quis que
os negros se lavassem na sua presença, por não acreditar que a sua cor era natural.
Foi nos seminários jesuítas do Japão que se começou a construir um tipo muito
curioso de órgão, feito com canas de bambu, de que se conserva hoje um único exemplar do
século XIX, restaurado e em funcionamento, na Igreja de Las Pinas, nos arredores de Manila.
Aos jesuítas se deve também a publicação no Japão, nos finais do século XVI e inícios do XVII,
de dois livros litúrgicos que contêm em conjunto treze peças com notação musical. Encontram-
se outros vestígios da presença musical europeia num certo número de pinturas e biombos de
temática religiosa e de inspiração ocidental, em que aparecem representados diversos
instrumentos europeus (em especial harpas e alaúdes ou violas dedilhadas). Mas há também
certos cantos religiosos de origem europeia, alguns dos quais parecem derivar do canto
gregoriano, que se mantiveram até ao século XX entre as comunidades cripto-cristãs do Sul do
Japão, e que constituem um de entre vários testemunhos da sobrevivência da influência
musical portuguesa no Oriente. Outros testemunhos da mesma sobrevivência encontramo-los
ainda hoje na música e na dança das comunidades de «descendentes», na índia, no Ceilão ou
em Malaca, por exemplo.

3.4 As influencias da expansão na prática musical metropolitana

Entre as primeiras manifestações da influência musical em Portugal da Expansão


ultramarina conta-se provavelmente a já citada descrição das festas realizadas em Évora em
1490, por ocasião do casamento do filho de D. João II, o infante D. Afonso, com a filha dos Reis
Católicos. Eis o que nos conta o cronista Garcia de Resende sobre o primeiro banquete por
essa ocasião oferecido pelo monarca português:

[...] E ouuc ahi hüa muyto grande representaçam de hum Rey de


Guine [...] c com elles hüa muy grande, e rica mourisca retorta, cm
que vinham duzentos homens tintos de negro, muyto grandes
bailadores, todos cheos de grossas manilhas pollos braços, e pernas
douradas, que cuydauam que eram douro, e cheos de cascaueis
dourados, e muyto bem concertados [...] e faziam tamanho roido
com os muytos cascaueis que traziam [...].'

Outros reflexos intencionais de culturas musicais exóticas vamos encontrá-los mais


tarde, por exemplo, no teatro jesuítico metropolitano. Está neste caso o Chorus brasilicus
cantado em língua tupi e inserido na tragicomédia D. Manuel Conquistador da índia, do Pe.
Antônio de Sousa, que se representou no Colégio de Santo Antão de Lisboa por ocasião da
visita de Filipe II em 1619. A representação desta tragicomédia, escrita, além do tupi, em latim,
português e espanhol, durou dois dias.

11
A presença e influência diretas em Portugal das culturas musicais extra-europeias
(ressalvando o caso particular das comunidades mouras, que mantiveram a sua autonomia até
ao século XVI) parece ter sido esporádica, com uma única exceção que veremos adiante. Há
por exemplo o caso de Rui Gonçalves da Câmara, capitão donatário da ilha de S. Miguel, nos
Açores, o qual trouxe para aquela ilha cinco escravos indianos “que tangiam charamelas e
violas de arco, que era uma realeza haver isto nesta terra”, mas em breve tempo faleceram
todos, talvez por não se terem adaptado ao clima.
A exceção é naturalmente a dos escravos negros que começaram a ser trazidos para
Portugal em grande número desde a primeira metade do século XV. Os quatro séculos da sua
presença em Portugal foram objeto de um fascinante estudo publicado pelo brasileiro José
Tinhorão. Embora o autor, no subtítulo do seu livro, classifique essa presença de “silenciosa”, a
verdade é que cita o testemunho de um italiano que visitou Lisboa nos finais do século XVI, de
acordo com o qual, “ao passo que os portugueses, por gravidade, andam sempre tristes e
melancólicos, não usando rir nem comer nem beber com medo de que os vejam, os escravos
mostram-se sempre alegres, não fazem senão rir, cantar, dançar e embriagar-se publicamente,
em todas as praças”. A mais antiga notícia que temos de danças de autênticos negros africanos
em Portugal é de 1451, durante as festas realizadas em Lisboa, em comemoração do
casamento da infanta D. Leonor, irmã de D. Afonso V, com o imperador Frederico III da
Alemanha. Mas já em 1579, um ano após a morte de D. Sebastião em Alcácer Quibir, um alvará
determinava que:

na cidade de Lisboa & hua legoa ao redor delia se não faça


ajuntamento de escrauos, nem bailos, nem tangeres seus, de dia,
nem de noite, em dias de festa nem pela semana, Sob pena de serem
presos, &. os que tangerem ou bailarem, pagarem cada hum mil reais
para quem os prender, e os q bailarem, & forem presos por estarem
presentes, pagarem quinhètos reaes.''

Tinhorão comenta que tal proibição teria por objetivo contrariar a perpetuação de
cultos religiosos negro-africanos. Mas a cristianização dos negros iria por outro lado ter como
consequência a formação de irmandades ou confrarias destinadas a defender os seus
interesses, ao abrigo da proteção religiosa, nomeadamente a Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário dos Homens Pretos, junto da Igreja de São Domingos de Lisboa. As relações
diplomáticas estabelecidas nos séculos XV e XVI entre a coroa portuguesa e o reino do Congo
(que conduziram inclusive à ordenação episcopal de um filho do rei do Congo) estão na origem
das representações de autos e desfiles da coroação dos reis do Congo feitas pelos membros
daquela Irmandade. Essas representações manter-se-iam até meados do século XIX, acabando
por evoluir para a formação de uma sociedade recreativa dos negros de Lisboa, com o nome
de Reino do Império do Congo, que organizava bailes e possuía a sua própria corte.
Os negros participaram também desde muito cedo nas procissões religiosas, em
especial a procissão do Corpo de Deus, nos peditórios e nas romarias, seja com as suas danças,
como o frenético lundum, seja na qualidade de arautos, tocando pífaros, cornetas, rabecas e
tambores, vestidos com libres escarlates e bonés ou chapéus de dois bicos. Num painel do
início do século XVI existente na Igreja da Madre de Deus em Lisboa aparece já representado
um grupo de músicos negros, tocando quatro charamelas e uma sacabuxa. Mas ainda numa
descrição da Festa de Nossa Senhora do Rosário celebrada na Igreja do Salvador em 1730 se
pode ler que no adro se haviam juntado três marimbas, quatro pífaros, duas rabecas do
peditório, pandeiros, congos e cangas, e o hiperbólico número de trezentos berimbaus.
Infelizmente não nos é possível imaginar como soariam os cantos e as danças dos
negros de Lisboa entre os séculos XVI e XVIII, uma vez que elas sofreram o mesmo destino das
músicas populares e tradicionais em geral, tendo-se perdido na noite dos tempos ao não
ficarem registadas por escrito. Há todavia um repertório que chegou até nós e que pretende

12
refletir, se bem que de modo porventura convencional, o estilo musical dos negros. Trata-se
dos vilancicos religiosos escritos em português de negro, fazendo habitualmente referência a
danças, instrumentos e onomatopéias indígenas, e com música em ritmo de dança.
A esmagadora maioria desses vilancicos era composta por mestres de capela brancos
para as festas do Natal e dos Reis, tendo freqüentemente como tema a adoração do Presépio.
Na própria cena da visita dos Reis Magos a Belém representada nos presépios pintados, as
figuras orientais que aparecem (e com as quais mouros, ciganos e negros se podiam
identificar) eram já um convite ao ecumenismo democrático da celebração, evidenciado nos
seguintes versos de um vilancico cantado na Capela Real de Lisboa em 1658:

Pol criara de la casa venimo


tanta de genta de Angola y de
Cabo Verde de la China y de la
Pérsia. No venimo como escrava sino como cabayera.

O modo como nos presépios o rei da Arábia, Baltazar, era representado em figura de
negro servia de argumento suplementar para a presença e participação dos negros na
celebração natalícia. Um outro vilancico da Capela Real refere-se a negrinhos vestidos com
libres escarlates e bonés vermelhos, como os que apareciam nas procissões do Corpo de Deus.
No entanto, não é possível saber com segurança se em Portugal as personagens que nesses
vilancicos apareceram dançando, tocando e cantando em português de negro seriam por vezes
de fato negros de Angola, de Cabo Verde ou da Guiné, como as fontes indicam, e não músicos
brancos representando esses papéis.
A temática musical da Expansão merece alguns comentários finais. Pelo que se refere
ao contato e interação entre a tradição musical dos portugueses e as diversas tradições locais,
e salvo as exceções acima referidas, foram raras as tentativas práticas de ir ao encontro dessas
tradições sem ser na perspectiva da sua utilização como instrumento de missionação. O
problema central das relações musicais dos portugueses com outros povos parece ser o
mesmo que afetou as suas relações culturais em geral. A sua própria cultura era dominada
pela religião católica, que se caracterizava naquela época por um proselitismo intenso, o que
teve até certo ponto como consequência a negação de outras culturas no que elas tinham de
original e diferente. Esta atitude opõe-se, por outro lado, à inegável capacidade que os
portugueses tiveram de se relacionar e se misturar de modo espontâneo com outras raças e
culturas. Quando esse processo se deu realmente de um modo profundo e duradouro, como
no caso do Brasil, surgiu uma nova cultura que também na música produziu uma
extraordinária síntese de diferentes tradições.
Não nos podemos de qualquer modo esquecer que, ao nível da ideologia, a
perspectiva democrática e igualitária das relações entre povos e culturas diferentes é um
conceito moderno. Mesmo assim, e descontando necessariamente os condicionalismos
históricos da época em que viviam, os portugueses do tempo das Descobertas foram pioneiros
de um tipo de relacionamento natural entre os povos, a Ocidente e a Oriente, de que
encontramos também reflexos no capítulo das relações musicais.

13
CASTAGNA, Paulo. Música na América Portuguesa. In: MORAES, José Geraldo Vinci; SALIBA,
Elias Thomé. História e Música no Brasil. São Paulo: Alameda, 2010. Capítulo 1, p.35-76.
ISBN: 978-85-7939-020-3.

1. Introdução - uma história em construção

A primeira ocasião em que um brasileiro foi à Europa especificamente para uma


tournée de apresentações musicais ocorreu entre 1794-1795, nas cidades do Porto, Coimbra e
Lisboa, em Portugal, para a execução de recitais com árias de óperas. Sabe-se disso pela
Gazeta de Lisboa, que noticiou todas as apresentações, sem poupar elogios. Quem apresentou
esses recitais foi uma mulher, brasileira e negra, que aprendeu música numa casa de fazenda
no interior da Capitania do Rio de Janeiro. Chamava-se Maria Joaquina da Conceição Lapa.¹ A
Gazeta de Lisboa noticiou apresentações suas no Porto, em Coimbra e em Lisboa (no Teatro
São Carlos), entre dezembro de 1794 e janeiro de 1795.² José Maurício Nunes Garcia escreveu
para ela o Coro para o entremês (1808) e uma ária de O Triunfo da América (1809), entre
outras obras. Por outro lado, pouco se escreveu sobre ela e quase nada mais ficou registrado
na história da música brasileira além do seu nome, dos lugares onde cantou e das obras a ela
dedicadas.
Nossa propensão para ignorar o passado musical brasileiro manifestou-se já no
primeiro livro escrito sobre a história da música no país, por Guilherme Melo, em 1908.³ Nessa
publicação, dava-se atenção quase que somente ao folclore musical e à música do século XIX,
abordando a fase colonial com o mesmo superficialismo que seria observado em outras obras
do gênero. Foi somente em 1944 que o alemão Francisco Curt Lange, então radicado no
Uruguai, iniciou pesquisas na região das Minas Gerais, demonstrando a existência, na
capitania, de compositores do século XVIII que foram capazes de suprir a música para as
cerimônias religiosas.⁴ Os trabalhos pioneiros de Curt Lange em Minas Gerais estimularam
estudiosos brasileiros a iniciar pesquisas sobre a história musical de outras regiões do país,
como o fizeram, a partir da década de 1960, Cleofe Person de Matos no Rio de Janeiro, Jaime
Diniz no Nordeste, Régis Duprat em São Paulo e Vicente Salles no Pará, entre outros. Tais
autores deram início a uma investigação ampla sobre a prática musical do período colonial
brasileiro, o que nas últimas décadas adquiriu um caráter mais sistemático e possibilitou um
conhecimento razoável sobre a música no período colonial. Mesmo assim, o que hoje sabemos
ainda está longe de possibilitar a compreensão dos complexos fenômenos que regeram a
recepção, a composição e a execução da música no Brasil, na fase anterior à Independência.

“Música colonial”

Ao falarmos em “música no Brasil colonial”, estamos nos referindo a toda a música


que se produziu no país entre 1500-1822, seja ela de origem indígena, africana ou europeia. A
expressão não define, portanto, um tipo, estilo ou padrão musical único, mas sim a totalidade
da música que se praticou no âmbito geográfico e cronológico que se definiu com a expressão
“colonial”.
A preocupação com a música “do Brasil colonial” reflete a antiga historiografia da
música no Brasil, que adotava como períodos as próprias etapas de nossa evolução política:
colônia, reino unido, império, república. Como a historiografia nacionalista, inclusive a musical,
tomou por objeto o Brasil independente, toda a produção musical que cronologicamente o
precedia foi enquadrada no obscuro período colonial, como fizeram os primeiros historiadores
de nossa música: Guilherme de Melo, Renato Almeida, Mário de Andrade e Luís Heitor Corrêa
de Azevedo. Hoje, a expressão continua a ser utilizada, pois ainda propicia o interesse pelo
período histórico que durante tanto tempo foi negligenciado, mas é certo que, em termos
historiográficos e musicológicos, essa designação encerra vários tipos, estilos e períodos da
evolução das práticas culturais do país, entre elas a musical.

14
Categorias de música no Brasil colonial

Primeiramente, é necessário considerar que, no Brasil, conviveram duas grandes


categorias de música, cuja diferença está em sua função e não em sua aparência. O primeiro
tipo é representado pela chamada música tradicional, dos povos indígenas, africanos e
europeus que viveram no país. Essa categoria musical, de produção espontânea e não
profissional, já existia antes mesmo da colonização do Brasil e uma parcela significativa de sua
função se preservou, com certas alterações, até hoje. A miscigenação racial no país fez com
que, da mistura de elementos musicais praticados por vários povos, surgissem novos tipos de
música, sempre em transformação até os tempos atuais, porém mantendo suas características
espontâneas até hoje. É esse o tipo de música que, a partir do final do século XIX, começou a
ser definido como folclórica ou popular.
Por outro lado, a colonização transferiu para o Brasil uma categoria europeia de
música que era produzida por músicos profissionais, principalmente para cortes, teatros e
instituições religiosas e que, a partir de inícios do século XX, começou a ser chamada de
“erudita” ou “artística”. Essa categoria musical, mais sujeita às regras, mais dependente de
relações econômicas e normalmente criada pelo auxílio da escrita musical, teve, no Brasil, um
desenvolvimento esteticamente dependente de sua evolução na Europa, mas,
funcionalmente, capaz de se adaptar às circunstâncias sociais e econômicas observadas no
período colonial.
Se os tipos de música tradicional se diferenciavam de acordo com os grupos étnicos
pelos quais era praticada, a música “profissional” europeia possuía diferenciações internas de
acordo com as circunstâncias para as quais era produzida. Dois eram os tipos básicos de
música profissional que se praticava na Europa: a música religiosa e a música profana. As obras
religiosas (a maioria delas católicas, no caso brasileiro), escritas para celebrações divinas, como
missas, ofícios, procissões, etc., em igrejas, conventos e mesmo nas ruas ou nas casas
particulares, deveriam obedecer a algumas regras já estabelecidas para essa modalidade,
como a utilização de textos já existentes (normalmente em latim), o caráter religioso e o
respeito à tradição cristã. Por sua vez, a música profana, escrita para circunstâncias não
religiosas, como festas oficiais, celebrações urbanas, diversões sociais ou o próprio ambiente
doméstico, era representada pela ópera ou música de teatro, pela música vocal, para coro ou
solistas acompanhados por instrumentos, pela música destinada a grandes ou pequenos
conjuntos instrumentais, a instrumentos solistas ou até mesmo pela música didática, ou seja,
destinada ao ensino musical.
Na Europa, como no Brasil, a música religiosa foi centralizada em torno dos templos
instalados pela Igreja ou pelas irmandades religiosas, associações de leigos que visavam
garantir a prática religiosa aos seus membros em troca da cobrança de anuidades. Já a música
profana esteve centralizada em torno de entidades urbanas, teatros, cortes e residências de
nobres abastados, que mantinham compositores e executantes para a produção de uma
música exclusiva. Mas se esses dois tipos de música foram igualmente requisitados na Europa,
o mesmo não ocorreu no Brasil. A urbanização, ainda que precária, a partir do final do século
XVIII, e a instalação da corte em torno do Príncipe Regente e depois Rei D. João, no Rio de
Janeiro, após sua chegada em 1808, permitiram o estabelecimento de uma prática de música
que se aproximou da imponência das cortes europeias do período.
O resultado dessas circunstâncias da história brasileira é que a maior parte da música
profissional composta e praticada no período colonial foi religiosa e os exemplos profanos são
quase sempre tardios, a maioria já de inícios do século XIX. Além disso, o desenvolvimento
dessa categoria musical sempre esteve ligado ao desenvolvimento econômico e, portanto, as
regiões brasileiras se diferenciaram na produção musical, tanto quanto se diferenciaram no
progresso material. Por isso, encontramos o surgimento de movimentos musicais derivados de
movimentos econômicos, dos quais o ciclo do açúcar, no Nordeste, e o ciclo da mineração, em
Minas Gerais, foram exemplos marcantes.

15
Música “brasileira” e música “europeia”

Como o tipo de música profissional que se praticou na América Portuguesa foi o


mesmo que se praticou na Europa, torna-se difícil definir, em termos estéticos, o que teria sido
uma “música brasileira” por essa época. Além disso, sendo Brasil uma colônia portuguesa e
sendo as pessoas descendentes de portugueses aqui nascidas também consideradas
portuguesas, não existiam motivos, naquele tempo, para se adjetivar uma obra musical como
“brasileira”. Exemplo interessante se refere a um compositor de nome Félix, que viveu no
século XVIII em local desconhecido. O escritor lusitano José Mazza, naquele mesmo século,
referiu-se ao músico nos seguintes termos: “compôs algumas obras regulares chegadas ao
estilo moderno. Sabendo-se que este autor é português ignora-se de onde é natural, porém
julga-se ser brasileiro”.
O critério que utilizaremos, portanto, para “brasileiro”, em relação a esse tipo de
música e nesse período, somente poderá ser o critério geográfico, pelo qual será referido
como “brasileiro” o que se praticou no Brasil. Daí ser mais conveniente falar-se em prática
musical brasileira a utilizar a expressão música brasileira para esse período, mesmo quando
nos referirmos a um compositor que nasceu, viveu e trabalhou somente no Brasil. As
particularidades da prática musical brasileira que porventura existiram no período colonial não
objetivaram uma diferenciação de nossa música com relação à europeia, foram produtos da
necessidade de adaptar os tipos europeus às novas condições culturais, sociais e econômicas
da colônia, uma vez que se procurava declaradamente e sem qualquer problema de
consciência, a reprodução da música que se praticava no velho mundo.
Com relação à música tradicional, o único tipo pré-cabralino que poderia ser
chamado de “brasileiro” era música dos povos indígenas que habitaram a região, apesar de
sabermos que as linhas territoriais que definiram o Brasil foram marcadas pelos portugueses,
sem atentar para questões culturais ou raciais dos povos que aqui viveram. Mas os tipos
musicais que resultaram de misturas que ocorreram somente no Brasil colonial, poderiam
agora ser chamados de “brasileiros” e não mais “indígenas”, “africanos” ou “europeus”. Neste
caso, a aparência da música refletiu circunstâncias exclusivas da história brasileira e, por isso, a
música tradicional gerada pela miscigenação no país, apresenta características exclusivamente
brasileiras. Este critério é, agora, estético e não apenas geográfico.
Na música profissional nunca se cogitou - até meados do século XIX - a procura de
ritmos, timbres, instrumentação e outros elementos que diferenciasse a música do Brasil da
música europeia. Isso não significa que os músicos profissionais brasileiros somente copiaram
os europeus e que sua música não teve qualquer valor. Sua importância, naquele momento,
não era medida pela inovação estética, mas pela possibilidade de proporcionar aos habitantes
de origem europeia um tipo de música que lhes proporcionasse uma unidade cultural,
participando do estabelecimento e desenvolvimento das comunidades brasileiras.
Obviamente, a própria colonização forçou essas comunidades a adotar os padrões cristãos e
portugueses e, nesse sentido, a música religiosa desempenhou também um importante papel
de coesão e controle social.
É por isso que, quanto mais se compreender a história da música europeia,
especialmente a portuguesa, mais se compreenderá a história da música no Brasil, como
ocorre também na literatura e nas artes visuais. Por outro lado, quanto mais se compreender a
história da música no Brasil, tanto mais se compreenderá a história da música em Portugal e
na própria Europa, pensamento que também poderia ser aplicado às outras ex-colônias de
países europeus.

16
Indígenas, africanos e jesuítas

Quando Pero Vaz de Caminha escreveu sua carta ao Rei D. Manuel, em 1º de maio de
1500, já abordava alguns aspectos da música indígena, dizendo que, após a primeira missa, na
Baía Cabrália, “levantaram-se muitos deles, tocaram corno ou buzina e começaram a saltar e a
dançar bastante”. Caminha também informou que, em outra oportunidade, “dançaram
sempre ao som de um tambor dos nossos, de maneira que se mostram mais nossos amigos
que nós deles”. Assim, ficava claro, no próprio momento da descoberta, que a intenção do
colonizador em relação aos índios e à sua música já estava determinada.
Durante o século XVI foram os viajantes europeus e os jesuítas aqueles que se
preocuparam em descrever a música indígena, pela extrema curiosidade e inusitado que
representavam. Gaspar de Carvajal, testemunha da descida de Francisco de Orellana pelo rio
Amazonas em 1542, surpreendeu-se com as “muitas trombetas e tambores, órgãos que tocam
com a boca (flautas de Pã) e arrabéis de três cordas”.⁷ Em relação aos tupinambá da costa
brasileira, Manuel da Nóbrega, o primeiro provincial da companhia de Jesus no Brasil,
descrevia pela primeira vez, em 1549, o instrumento conhecido como maracá, que os
feiticeiros indígenas usavam em rituais. Hans Staden, o aventureiro alemão que foi aprisionado
no forte de Bertioga em 1554, permaneceu quase um ano cativo dos tupinambá, publicando
sua história em 1557. Em seu livro apresentou gravuras representando cenas de suas
aventuras, algumas delas exibindo cenas musicais.⁸ Staden representou e descreveu o maracá
como uma espécie de “ídolo”, construído com uma cabaça, na qual era fincado um cabo e feita
uma abertura como uma boca, pela qual colocavam pequenas pedras para que chacoalhasse.
Suas gravuras, exibem, além de maracás usados em festas para animar as danças e grandes
trombetas de madeira (provavelmente membiaparas) usadas em guerras para impressionar os
inimigos.
André Thevet, geógrafo do rei da França, que esteve entre 1555-1556 na França
Antártica, foi outro viajante que descreveu a música indígena.⁹ Sua contribuição mais
interessante foram cinco gravuras, nas quais observam-se cenas da vida dos tupinambá em
que a música toma parte: a fabricação do aguaí, espécie de chocalho fabricado dos frutos
secos de uma árvore (arrebenta-cavalo), unidos por um cordão e amarrados nos tornozelos; as
guerras, nas quais se usavam as membiaparas, enormes trombetas de taquara e o guatapi,
instrumento feito de uma grande concha marinha; os enterros, onde o feiticeiro tocava o
maracá, as festas de cauim, ocasião em que tocavam os maracás, os aguaí e as flautas
chamadas membi; as recepções lacrimosas, acompanhadas do toque do maracá e a cura da
doença conhecida como piã, que se fazia com um ritual que empregava a fumaça do petin e
pelo toque do maracá.
Jean de Léry foi outro viajante que esteve na França Antártica entre 1557-1558,
deixando interessantes relatos sobre a vida musical dos tupinambás.¹⁰ Léry presenciou festas
de cauim e rituais de matança de inimigos, sempre feitos com danças e cantos específicos.
Descreveu a fabricação dos aguaí e dos maracás e a utilização das grandes trombetas de
bambu nas guerras, as membiaparas. Escreveu sobre as cangüeras, flautas feitas dos ossos das
coxas e dos braços dos seus inimigos. O viajante impressionou-se com as cerimônias dos
caraíbas, espécie de feiticeiros ambulantes que visitavam as aldeias de tempos em tempos. Os
índios cantavam e dançavam em três rodas, no meio das quais três ou quatro caraíbas
dançavam tocando seus maracás e soprando a fumaça do petin. Léry tentou registrar em
notação musical alguns cantos indígenas que ouviu no Rio de Janeiro: dois deles são
homenagens a animais (ao canindé amarelo, pássaro que fornecia penas, e ao camurupim,
peixe grande que servia de alimento). Três outros fragmentos se referem à cerimônia dos
caraíbas, o primeiro era o que dava início ao ritual, o segundo uma espécie de refrão repetido
durante a cerimônia de quase duas horas e o terceiro, o grito que encerrou a seção.
Surpreendente em Jean de Léry é sua posição oposta aos demais viajantes que nos
deixaram relatos sobre a prática musical indígena. Considerando os índios criaturas que não

17
adoravam ao mesmo Deus dos brancos, estes normalmente encaravam a música indígena
como dedicada ao demônio, relacionando a essa entidade religiosa todos os elementos
estranhos aos ouvidos europeus. Léry, ao contrário, acreditava que, sendo os índios e o Novo
Mundo uma criação também divina, suas características deveriam ser louvadas como
manifestações divinas. Não foi essa, entretanto, a visão que se generalizou no Brasil até o
início do século XX, sendo a música indígena quase totalmente excluída do conceito de música
brasileira.
Esse fenômeno refletiu-se nos relatos subsequentes sobre a música indígena. Poucos
europeus preocuparam-se com o assunto, destacando-se o aventureiro Gabriel Soares de
Sousa em 1587, os jesuítas Fernão Cardim em 1585 e Jácome Monteiro em c.1610, os
capuchinhos Claude d’Abeville em 1614 e Yves d’Evreux em 1615. Tais relatos, a partir da
segunda metade do século XVII, tornam-se cada vez mais raros, pois os índios desapareciam
rapidamente da costa brasileira. Escritores desse período interessados na música indígena,
como Pierre Moreau (1651), Simão de Vasconcelos (1663 e 1672) e outros, passaram a utilizar
quase somente informações dos escritores do século anterior, registrando pouca coisa nova a
partir de então.
Quase desaparecida do olhar branco nas regiões colonizadas do Brasil, a música
indígena somente voltaria a despertar a atenção dos escritores a partir de fins do século XVIII,
com as primeiras viagens científicas para levantamento da fauna, flora, geografia e riquezas
naturais do país, naquela época chamadas “viagens filosóficas”. Durante o século XIX,
naturalistas como Alexandre Rodrigues Ferreira, Karl Friedrich von Martius, Alcide d’Orbigny e
outros deram início a uma nova maneira de descrever a música indígena, com um interesse já
distante da mera curiosidade e procurando registrar as informações agora com maior precisão
e rigor metodológico. A intenção, entretanto, continuava a mesma: conhecer para explorar.
Durante a segunda metade do século XVI e primeira metade do século XVII, período
no qual se observou o maior contato entre os indígenas brasileiros e os colonizadores brancos,
o conhecimento da música de um povo realmente teve importância na vida do outro. Para os
homens brancos, a música indígena interessava não somente como uma curiosidade para os
livros de viagens exóticas, mas também para se conhecer melhor os costumes dos índios e,
com isso, saber lidar com eles. Por outro lado, a música europeia foi inicialmente cantada
pelos índios também como curiosidade, mas sem saberem que com esta música estavam se
entregando à deculturação e à catequese. Os homens que iniciaram essa prática com os índios
brasileiros foram os religiosos da Companhia de Jesus, ordem católica criada em 1534 para
cristianizar o mundo antes que os protestantes o fizessem.
Os jesuítas chegaram na Bahia em 1549 firmemente decididos a cristianizar os índios.
Criaram as aldeias indígenas, nas quais ministravam um ensino básico, que incluía o canto
como auxiliar da catequese. Apenas doze dias após sua chegada, foram capazes de traduzir
para o tupi as principais orações cristãs. Logo deram início ao ensino de orações e de outros
textos religiosos cantados aos meninos indígenas, segundo técnicas muito engenhosas: a
primeira delas consistia em ensinar um texto cristão em língua tupi, cantado com melodia
europeia; a outra era ensinar um texto cristão em tupi, mas utilizando melodia e instrumentos
indígenas.
A segunda técnica foi proibida em 1552 e, a partir de então, somente a maneira
europeia de se cantar foi permitida.¹¹ Tal maneira, esta sim considerada cristã, consistia
basicamente no “cantochão” ou “canto gregoriano” - tipo de canto plano e sem ritmo musical
definido - e nas “cantigas”, canto com ritmo musical bem definido. O cantochão era mais
apropriado para orações, enquanto as cantigas eram mais apropriadas para textos que
continham os ensinamentos básicos da vida cristã. Normalmente, todos esses textos eram
cantados pelos meninos indígenas em tupi, embora sejam conhecidos exemplos brasileiros do
século XVI em português, espanhol e até em latim. José de Anchieta (1534-1597), que chegou
ao Brasil em 1553, foi um dos jesuítas que mais se utilizou das cantigas para a catequese dos
meninos indígenas. Os mais antigos exemplos de orações em tupi utilizadas na catequese - um

18
“Pai Nosso”, uma “Ave Maria” e um “Credo” - foram publicados em 1575 por André Thevet¹² e
podem ter sido ensinados aos índios por jesuítas.
A música foi empregada para o auxílio da catequese durante todo o período em que
os jesuítas atuaram no Brasil colonial, ou seja, entre 1549 e 1759. No entanto, a catequese dos
índios somente proporcionou resultados nas primeiras décadas de trabalho jesuítico, pois já
durante o século XVII os índios estavam desaparecendo da costa do Brasil, devido às doenças
transmitidas pelos brancos, à fuga dessa catequese que mal compreendiam e à sua captura
para serem transformados em escravos. No século XVII a catequese dos índios deslocou-se da
costa leste para o interior e para o norte, passando a ser explorada também por outras ordens
religiosas e fazendo diminuir cada vez mais o interesse do ensino musical entre os indígenas no
Brasil.
Os índios, além de receberem ensino musical básico com finalidades catequéticas,
foram capazes, até meados do século XVII, de participarem ativamente da vida musical
religiosa brasileira. Muitos aprenderam o cantochão, o canto de órgão (polifonia ou música a
várias vozes) e a execução de alguns instrumentos, sobretudo as flautas. Índios músicos já
eram conhecidos desde 1554 e um jesuíta, em especial, destacou-os como um dos primeiros
mestres de música no Brasil: Antônio Rodrigues, mestre do canto e da flauta. Na década de
1580 parece que a prática da música entre os índios já estava bem desenvolvida e os jesuítas
sabiam já selecionar os meninos segundo suas habilidades. José de Anchieta, em 1584,
elogiava os meninos indígenas das aldeias da Bahia pelo empenho no canto de órgão e na
execução das flautas e violas.
Fernão Cardim, em 1585, observou o mesmo desenvolvimento musical nas aldeias da
Bahia, do Espírito Santo e do Rio de Janeiro, afirmando que encontrou índios com habilidade
no canto de órgão e na execução das flautas, cravos e violas.¹³ Surpreendente é o relato de
Francisco Soares, de 1590, que encontrou cantores indígenas muito moços, alguns com menos
de 5 anos, que cantavam em polifonia no coro da igreja e executavam flautas, cravo e órgão.¹⁴
Todos esses relatos demonstram o avanço do projeto jesuítico de utilização da música como
meio de cristianização e que obviamente descartava a música indígena do resultado final.
Polêmicos, os jesuítas tiveram um inegável papel de defensores dos índios da voracidade dos
europeus, mas o preço disso foi sua progressiva deculturação, termo cunhado pelo
pesquisador José Ramos Tinhorão.
Entre 1600 e 1620 as missões jesuíticas da costa começam a entrar em colapso e a
ordem passou a penetrar o interior. O ensino musical começou a se tornar menos eficaz e nas
aldeias já não se encontravam mais aqueles índios cantores da época de Anchieta. Surgiram
então os nheengariba, índios cantores e charameleiros (tocadores de charamelas e outros
instrumentos de sopro) a serviço dos jesuítas que eram levados da costa, sobretudo de
Pernambuco, para suprir a música das aldeias do interior ou do norte do país.¹⁵ Muitos podem
ter sido usados em fazendas, como escravos-músicos, conhecendo-se um bom exemplo no
conjunto de 30 músicos escravos, entre cantores e charameleiros, que existiram entre c.1610-
1613 e dirigido por um músico francês na casa de Baltazar de Aragão, proprietário de um
engenho de açúcar na Bahia.
Embora não deixem de aparecer, as notícias sobre índios músicos, a partir da
segunda metade do século XVII, começaram a se tornar cada vez mais raras. A Fazenda de
Santa Cruz, no atual estado do Rio de Janeiro, talvez tenha sido o último exemplo de um
grande núcleo brasileiro de música religiosa sob comando jesuítico. Ao serem expulsos em
1759, deixaram na igreja da fazenda mais de vinte instrumentos musicais que sugerem uma
prática musical relativamente rica. Mesmo assim, o surpreendente desenvolvimento da música
religiosa entre os índios das missões jesuíticas da América Espanhola entre fins do século XVII e
inícios do século XVIII não encontrou paralelo no Brasil, pelo pequeno significado missioneiro
que a Companhia de Jesus desempenhou entre nós nessa época. Lá atuaram músicos como
Domenico Zipoli (1688-1726), italiano que se instalou em Córdoba, de 1717 até sua morte,
produzindo música religiosa segundo o moderno estilo barroco então usado na Itália, para ser

19
cantada pelos índios reunidos nas missões. O extraordinário repertório missioneiro produzido
na América hispânica, que a partir da década de 1990 começou a circular em dezenas de
publicações e gravações, muitas vezes levou em consideração características dos povos
indígenas que a cultivaram procurando evitar passagens vocais em regiões muito graves e
adotando a homofonia como técnica musical de mais fácil execução. ⁰ ⁴ ⁵ ⁶ ⁷ ⁸ ⁹
A razão de não ter existido uma semelhante produção musical na América
Portuguesa foi demonstrada por Marcos Holler.¹⁶ De acordo com esse musicólogo, as aldeias
jesuíticas brasileiras, anteriores às experiências semelhantes na América Hispânica, acabaram
sendo englobadas pelos núcleos urbanos e os índios, mesmo sob a proteção dos padres e
passaram a trabalhar para os brancos, não lhes restando tempo e energia para se dedicarem
às tarefas religiosas, entre elas a confecção e a execução de instrumentos, o estudo, a cópia e
a composição de música. No Paraguai e na Bolívia, por exemplo, as missões foram instaladas
longe dos núcleos urbanos, o que permitiu maior independência dos índios lá residentes e
maior dedicação á música. Além disso, a rápida extinção das comunidades indígenas da costa
brasileira impossibilitaram o estabelecimento de missões com o porte das que foram
construídas na América Hispânica, impedindo o florescimento do mesmo tipo de prática
musical.
É importante mencionar que, ao lado de uma razoável quantidade de informações
sobre a prática musical ligada aos povos indígenas, foram muito raras as notícias sobre a
música praticada pelos africanos no Brasil até o final do século XVIII. As mais interessantes, no
século XVII são dos cronistas Johan Nieuhof (holandês) e Urbain Souchu Rennefort (francês).
Nieuhof parece ser o primeiro autor a publicar uma ilustração na qual aparecem africanos
tocando instrumentos musicais no Brasil.¹⁷ A interessante ilustração, intitulada “Negers
Speelende op Kalabaßen” (negros tocando em cabaças), representa um casal de africanos em
uma localidade do litoral nordestino, na década de 1640, tocando um caracaxá (instrumento
construído a partir de uma cabaça) e um pandeiro. Urbain Souchu Rennefort, em uma
publicação de 1688, presenciou uma comunidade de origem africana realizar uma festa em
Pernambuco, no dia 10 de setembro de 1666, que provavelmente tem relação com os
congados que chegaram até o presente: “Após irem à missa cerca de quatrocentos homens e
mulheres, elegeram um rei e uma rainha, e marcharam pelas ruas cantando, dançando e
recitando os versos que fizeram, acompanhados de oboés, trombetas e tambores bascos.” ¹⁸
Alguns cronistas, como o P. João Antônio Andreoni em 1711, relatam a existência de
escravos africanos que tocavam trombetas para seus senhores¹⁹ e em Minas Gerais são
conhecidos muitos pagamentos a negros charameleiros que, no século XVIII, tocavam
instrumentos de sopros em festividades religiosas de irmandades integradas por negros. ²⁰ Por
outro lado, se os escritores dos séculos XVII e XVIII deram atenção à música quando
presenciaram festividades na África,²¹ geralmente evitaram discorrer sobre a música
tradicional africana em terras brasileiras, provavelmente pelo fato de tais grupos sociais não
serem nativos na América Portuguesa. Além disso, as festas, rituais, danças e música africanas
foram frequentemente alvo de proibições no século XVIII,²² gerando conflitos que se
arrastaram por todo o século seguinte.²³ Os batuques, calundus e outras manifestações de
origem africana foram geralmente considerados, naquela época, uma prática a ser abolida e
não um fenômeno a ser estudado. Foi somente a partir do início do século XIX, especialmente
no Rio de Janeiro, que os escritores e os pintores começaram a dar maior atenção à música
praticada em comunidades afro-descendentes, surgindo interessantes ilustrações musicais de
autores como Jean-Baptiste Debret, Henri Alken, Frederico Guilherme Briggs, G. Hunt e outros.
No século XIX os intelectuais começam a manifestar um certo interesse em relação à música
das comunidades afro-brasileiras, mas em virtude de um forte etnocentrismo cultural, as
classes dominantes ainda não compreendiam tal música como uma forma de arte, porém
apenas como uma curiosidade.

20
Igrejas coloniais: do cantochão à polifonia

Fora dos núcleos jesuíticos - que além das aldeias compreendeu também colégios e,
a partir de fins do século XVII os grandes seminários - a música religiosa no Brasil também foi
praticada nas igrejas e capelas dos núcleos rurais e urbanos, iniciando um lento
desenvolvimento no Nordeste, sobretudo na Bahia e em Pernambuco. Embora até meados do
século XVIII a maior parte da população brasileira se concentrasse no campo, foram nos
núcleos urbanos - arraiais, vilas e cidades - que se registraram as mais importantes
informações sobre a prática musical religiosa.
Núcleos urbanos possuíam uma catedral quando eram sede de um bispado e uma
matriz quando apenas a igreja principal. Catedrais, no Brasil, tiveram uma organização musical
interna semelhante e, obviamente, mais desenvolvida que a das demais igrejas. Para se
compreender a música nesse tipo de templo, é interessante conhecer um pouco da história da
música da catedral da Bahia, a principal igreja brasileira até meados do século XVIII.
Os cargos responsáveis pela música na catedral de Salvador, como de qualquer outra
no Brasil eram: o chantre, diretor geral, o mestre de capela, diretor musical, ensaiador,
professor e, às vezes, compositor, os capelães, cantores adultos, que cantavam ao lado do
altar, os moços do coro, meninos cantores que cantavam do alto do coro – região do edifício
religioso, normalmente situado sobre a porta de entrada - e o organista, executante de um
instrumento que, até as primeiras décadas do século XVIII, não passou de um pequeno móvel
e, por isso, chamado de positivo.
A catedral da Bahia, embora fundada em 1549, não teve a possibilidade de sustentar
uma prática musical polifônica até meados do século XVII. A partir de cerca de 1670, o
panorama se alterou e lá surgiram os primeiros mestres de capela que puderam dirigir e,
provavelmente, compor música desse tipo. Foram estes o pernambucano João de Lima e o
português Agostinho de Santa Mônica. Para se manter uma prática de música polifônica era
necessário um ensino musical mais acurado e complexo, que previa não somente a “música
prática”, ou seja, o canto e o manejo dos instrumentos musicais, mas também a “música
especulativa”, que significava um estudo teórico da arte dos sons.
João de Lima foi o primeiro mestre de capela que ensinou música especulativa na
Bahia. Deve ter atuado entre c.1670 a c.1680, quando transferiu-se para a catedral de Olinda.
Agostinho de Santa Mônica (1633-1713), natural de Lisboa, ocupou o mestrado da capela em
Salvador entre c.1680 a c.1703.²⁴ Seu trabalho na catedral certamente incluiu a composição e
regência de música polifônica. Um verbete biográfico, escrito em 1737, informa que Santa
Mônica “compôs mais de quarenta missas de canto de órgão, a maior parte das quais se
conserva na livraria de música da Sé da Bahia”.²⁵ Infelizmente, nenhuma dessas obras foi até
hoje localizada.
Caetano de Melo Jesus foi outro mestre de capela da catedral que se destacou pelo
seu trabalho. Não se conhece sua produção como compositor, mas foi parcialmente
preservado um tratado de música para o ensino da música especulativa, iniciado em 1734 e
concluído em 1760, a Escola de canto de órgão, precioso manuscrito ainda inédito em sua
totalidade, cujos dois primeiros volumes totalizam quase 1.200 páginas.²⁶ Esse tratado, escrito
em quatro volumes manuscritos (os dois últimos foram perdidos) e hoje arquivado na
Biblioteca Pública de Évora (Portugal), é o mais antigo texto de teoria musical escrito no Brasil
e um dos maiores já produzidos em língua portuguesa, abordando desde as primeiras noções
de leitura musical até princípios de composição.

O barroco nordestino

O Nordeste brasileiro, que nos primeiros séculos da colonização enriqueceu-se com o


ciclo da cana de açúcar, presenciou um desenvolvimento musical que, a partir da segunda
metade do século XVII já procurava assimilar todos os requintes da prática musical portuguesa.

21
Como o desenvolvimento econômico da região fez com que enormes contingentes
populacionais portugueses se transferissem para lá, o Nordeste assistiu a uma assimilação
maciça da cultura lusitana, que obviamente incluiu a prática da música segundo o gosto
português da época. Essa atividade musical foi centralizada em Salvador, na Bahia, e em
Pernambuco, principalmente em Recife e Olinda, embora também fosse encontrada, com
menor desenvolvimento, em centros próximos do Nordeste, como São Luís (MA), e do Norte,
como Belém (PA).
São Luís (fundada em 1612) e Belém (em 1616) receberam, no século XVII, grande
atenção dos jesuítas, que lá ainda encontravam índios para catequizar. Muitos dedicaram
parte do seu tempo ao ensino e prática musical, como João Maria Gorzoni (1627-1711) e Diogo
da Costa (c.1652-1725), no Pará.²⁷ A organização musical religiosa, no entanto, iniciou-se em
São Luís já em 1629, com o primeiro mestre de capela, Manuel da Mota Botelho. Em Belém, a
música da catedral começou a ser organizada em 1734 pelo Chantre Lourenço Álvares Roxo de
Potflix (c.1699-1756), mas com repertório importado de Portugal, como informou o cronista
José de Morais em 1759: “não tem inveja a mais miúda e delicada solfa da corte, donde se
extraíram para esta catedral os melhores e mais harmoniosos papéis e cantorias”.²⁸ Belém
teve uma certa atividade musical profana no período colonial e, desde 1775, fazia representar
em sua Casa da Ópera obras teatrais com participação esporádica de música, como o Drama
recitado no Teatro do Pará a princípio das óperas e comédias (1793), de José Eugênio de
Aragão e Lima, que começava “no fim de uma alegre sinfonia”. Apesar das pesquisas pioneiras
de Vicente Salles, não foi possível localizar música composta nessas regiões no período
colonial.
O interesse em transladar para o Brasil todas as sofisticações da música lusitana
originou um contato muito grande entre os músicos nordestinos e os portugueses. Vários
compositores baianos e pernambucanos dos séculos XVII e XVIII estudaram ou viveram por
algum tempo em Portugal, de lá trazendo as últimas novidades em música. O primeiro parece
ter sido Francisco Rodrigues Penteado, pernambucano que, após permanecer alguns anos no
Reino até 1648, trabalhou no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde faleceu em 1673. Por outro
lado, compositores e teóricos nordestinos chegaram a interessar os lusitanos e muitos foram
citados em textos portugueses sobre música escritos nos séculos seguintes. O primeiro foi José
Mazza, escritor português falecido em 1797, que citou no seu Dicionário biográfico de músicos
portugueses os músicos baianos Caetano de Melo Jesus e Eusébio de Matos, os
pernambucanos Manoel da Cunha, Inácio Ribeiro Noia, Inácio Terra e Luís Alvares Pinto, além
do português Antão de Santo Elias, que trabalhou na Bahia.²⁹
Essa estreita relação entre a cultura nordestina e a portuguesa fez com que o tipo de
música mais interessante, no Nordeste, fosse aquela que exibisse a maior fidelidade com
certos tipos de música então utilizada em Portugal, obviamente, com preferência para os
gêneros religiosos. Até o centro do século XVII, a música religiosa que se praticava no Brasil,
somente entre os jesuítas conseguiu produzir algo mais que o cantochão e esses primeiros 100
anos de atividade musical, desde o início da efetiva colonização, representaram um período de
formação. Parte do nordeste assistiu, inclusive, à administração holandesa e não católica entre
1630-1654, que interrompeu por um certo tempo a atuação dos mestres de capela. Mas a
prática musical no Nordeste, na segunda metade do século XVII e em todo século XVIII, exibiu
uma rápida assimilação da música portuguesa, partindo do puro cantochão, passando pelo
estilo renascentista e logo chegando ao estilo barroco. A boa música nordestina, nesse
período, era a que mais se parecesse com a portuguesa.

Bahia

Uma das diferenças que existiu entre a prática musical baiana e a pernambucana, no
período colonial, foi uma presença um pouco maior, na Bahia, de música profana. Capital do
Brasil até 1763, Salvador desenvolveu, ao lado de um cristianismo pomposo, pela quantidade e

22
riqueza de suas igrejas, uma vida literária movimentada, que se estendeu desde a Prosopopeia
de Bento Teixeira (1601) até às obras acadêmicas do século XVIII. A música religiosa nos
mosteiros foi tratada como atividade essencial, sobretudo entre os beneditinos, dentre os
quais alguns tornaram-se reconhecidos nessa arte, como os frades Mauro das Chagas (?-
1629), Francisco da Gama (?- 1700/1715), Joaquim de Jesus Maria (?- 1732), Alberto da
Conceição (?- 1767), Manuel de Jesus Maria (1777- 1798) e José de Jesus Maria São Paio
(1721-1810). Um Frei Félix (?- 1700/1715), que nasceu no Rio de Janeiro, segundo o dietário da
ordem, foi instrumentista e “trouxe muita solfa para o mosteiro da Bahia, toda em letra
redonda como então se usava em Lisboa”.³⁰
Dentre os principais músicos baianos do período colonial, destacaram-se o cantor e
compositor de canções Gregório de Matos (1633-1696), seu irmão e compositor religioso
Eusébio de Matos (1629-1692), o compositor português Antão de Santo Elias (1680-1748), que
viveu alguns anos em Salvador e o organista Nicolau de Miranda (c.1661-c.1745), que atuou na
Santa Casa de Misericórdia da capital. Embora esses personagens tenham sido admirados
como músicos extraordinários no período em que viveram, nada do que compuseram,
cantaram ou tocaram chegou até nós. Esse fenômeno tem sido atribuído à decadência que o
estilo barroco sofreu a partir da segunda metade do século XVIII, fazendo com que os músicos
parassem de executar e de copiar essas obras que, pouco a pouco foram se perdendo.
Uma das poucas obras baianas do período colonial, cujos manuscritos foram
preservados, é uma peça escrita para ser executada em uma das muitas academias literárias
que existiram em Salvador e em outras cidades brasileiras no século XVIII. Trata-se de uma
Cantata acadêmica, dedicada ao patrocinador da Academia Brasílica dos Renascidos no ano de
sua fundação (1759), o desembargador José Mascarenhas Pacheco Pereira Coelho de Melo,
recém chegado de Portugal.³¹ A Academia sobreviveu por pouco tempo, pois no ano seguinte o
desembargador fora desterrado pelo Marquês de Pombal por não ter cumprido a tarefa que
viera realizar no Brasil: a expulsão dos Jesuítas. Como resultado de suas atividades, a Academia
Brasílica dos Renascidos deixou um texto sobre a História militar do Brasil, do espanhol D. José
Mirales e a mencionada obra musical, escrita por autor desconhecido.
A Cantata acadêmica de 1759, para soprano, dois violinos e baixo, é uma obra que
interessa à história da música no Brasil por vários aspectos: é uma peça profana, cantada em
português, e o manuscrito possui a mais antiga data já encontrada em papéis de música
copiados no país. Seu texto é um conjunto de exagerados elogios a Coelho de Melo, o patrono
da Academia, com um recitativo em quatro estrofes e uma ária em duas estrofes. A
composição musical, intermediária entre os estilos barroco e clássico, procura imitar certas
impressões sugeridas pelo texto ou affetti, como se dizia na Itália, produzindo curiosos efeitos
de interrelação entre o texto e a música.
Contudo, afora o Recitativo e a ária, quase totalidade da produção colonial baiana foi
perdida. Apesar de serem conhecidos os nomes de muitos músicos que trabalharam na Bahia
no século XVIII, como Antônio de Almeida Jordão, Inácio da Silva Pereira, Manoel de Araújo e
Almeida, Joaquim de Souza Ribeiro, Teodoro Fernandes Moreno e Antônio Francisco Lisboa, o
próximo compositor baiano do qual se recuperaram manuscritos musicais foi somente Damião
Barbosa Araújo (1778-1856), músico natural de Itaparica que viveu entre 1813-1828 no Rio de
Janeiro e produziu grande quantidade de obras musicais na primeira metade do século XIX,
sobretudo religiosas, destacando-se o Memento baiano, já editado e gravado. A música de
Araújo já demonstra que, em sua época, a música que se cultivava na Bahia de há muito se
afastara do estilo barroco, estando agora mais próximo do classicismo que irradiava do Rio de
Janeiro.

Pernambuco

A história da música em Pernambuco no período colonial legou-nos uma grande


quantidade de nomes de músicos e registros que foram cuidadosamente recolhidos pelo

23
pesquisador Jaime Diniz.³² Infelizmente, quase toda a produção musical pernambucana desse
período foi perdida, à exceção de alguns exemplos de Luís Álvares Pinto. Poderíamos supor as
mesmas razões imaginadas para o desaparecimento da música de outras regiões - o
envelhecimento do estilo barroco já no século XVIII - não fosse informações em contrário,
como a de Lopes Neto que, em fins do século XIX assim se referiu às obras de Luís Álvares
Pinto: “são dele todas as peças que ainda hoje se cantam lá [em Recife] nas cerimônias
religiosas”.³³ Mas se essa música foi preservada até fins do século XIX não resistiu às mudanças
litúrgicas do século XX, especialmente ao motu próprio de 1903, que aposentou a maior parte
da música católica ocidental então em uso.
Da igreja matriz de Olinda conhecem-se mestres de capela, dentre os quais, à
exemplo do que ocorreu em Salvador, foram compositores os que atuaram a partir de fins do
século XVII. Os mais citados são Gomes Correia (segunda metade século XVI), Paulo Serrão
(primeira metade do século XVII), José do Nascimento (?- 1733), João de Lima (segunda
metade do século XVII) instrumentista, compositor e mestre de capela também em Salvador -
e Antônio da Silva Alcântara (1771-?), instrumentista e compositor, que produziu Tercetos,
Sonatas com trompas e oboés, Sonatas para violinos, para cravo e para cítara, música para as
Comédias Reais apresentadas no Palácio dos Governadores em 1752, duas missas uma
Ladainha para coro e orquestra, um Te Deum laudamus para quatro coros e instrumentos
executada no Carmo do Recife, um Te Deum a dois coros para a Misericórdia e Antífonas de
Santa Cecília.³⁴ Tudo perdido.
Dentre os músicos recifenses mais citados na documentação da época, inclusive
portuguesa, então os compositores Manoel da Cunha (c.1650-1734), Inácio Ribeiro Noia (1688-
1773), Luís Álvares Pinto (c.1719-c.1789), Joaquim Bernardo Mendonça Ribeiro Pinto (?-1834)
e o organeiro (construtor de órgãos) Agostinho Rodrigues Leite (1722- 1786), que instalou
órgãos em Recife, Olinda, Salvador e um no Rio de Janeiro (o órgão do Mosteiro de São Bento,
concluído em 1773).35 Da música dessa fase restaram somente alguns poucos exemplos de
Luís Álvares Pinto, que foram salvos graças aos esforços do musicólogo Jaime Diniz.
Luís Álvares Pinto foi um dos músicos nordestinos que viajou para Portugal em busca
de formação musical. Viveu em Lisboa entre c.1740 a c.1760, onde foi aluno do compositor e
organista da catedral de Lisboa, Henrique da Silva Esteves Negrão. Na capital portuguesa
obteve prestígio profissional, chegando a ser mestre de música das filhas de Martinho de Melo
e Castro (1716-1796), Secretário de Estado de Portugal, e músico da Capela Real, conseguindo
publicar, em 1761, um tratado de música intitulado Arte de solfejar, destinado a ensinar os
rudimentos de leitura musical. De volta ao Brasil, tornou-se professor de Primeiras Letras e foi
mestre de capela na igreja de São Pedro dos Clérigos do Recife, entre 1778-1789. Em 1776
escreveu uma segunda Arte de solfejar, mais completa que a primeira, mas que nunca
conseguiu publicar, além de um Dicionário pueril para uso dos meninos ou dos que principiam
o abc e a soletrar dicções (1784), obra perdida, que se destinava a ser utilizada em seu curso
de Primeiras Letras.³⁶
Mesmo sabendo-se que Luís Álvares Pinto produziu grande quantidade de obras,
tanto religiosas quanto profanas, a maioria delas foi perdida, como a composição fúnebre a
quatro coros para o funeral do Rei D. José I de Portugal em 1777 e a música da comédia O
amor mal correspondido (1780). Somente foram preservados os exemplos musicais da Arte de
Solfejar de 1776, um Te Deum laudamus, para quatro vozes e baixo contínuo, cuja
orquestração se perdeu, e uma Salve Regina, para três vozes e baixo. Na Arte de Solfejar
(1776), o compositor incluiu 24 Lições de Solfejo, constituídas de exercícios de leitura para
duas vozes, sem texto (uma para ser tocada ao teclado e outra para ser entoada com os nomes
das notas), e cinco Divertimentos Harmônicos exercícios corais a três e quatro vozes, com
textos sacros em latim. Tais obras, assim como o Te Deum laudamus, exibem um estilo
derivado da música barroca que se praticou em Portugal na metade do século XVIII, estilo esse
que preservou características da música polifônica, como a independência das vozes e as
imitações de motivos melódicos.

24
Minas Gerais descobre a Itália

A prática profissional de música em Minas Gerais iniciou-se no final da década de


1710 ou no princípio da década de 1720, com músicos originários de Portugal e de outras
regiões brasileiras. Essa prática iniciou-se com uma música de estilo renascentista que, durante
o século XVIII, foi se renovando de acordo com o crescimento econômico da Capitania e com a
própria renovação da música europeia do período. A música que se praticou em Minas Gerais
nas primeiras décadas utilizou somente vozes e, quando muito, um instrumento musical grave
para o acompanhamento.³⁷
Os grupos musicais eram chefiados por um único músico, que assinava os recibos
para as entidades que financiavam sua execução. Afora a catedral de Mariana, a única igreja
mineira dessa categoria em todo o período colonial, dois tipos de organismos contrataram
músicos em Minas colonial: as câmaras das vilas e cidades, e as irmandades religiosas. Durante
a primeira metade do século XVIII parece ter havido pouca preocupação em se compor música
em Minas, sendo possível que a música então em uso fosse de origem portuguesa. Pouco se
sabe, entretanto, sobre o repertório utilizado em Minas Gerais por essa época e o único
manuscrito até hoje encontrado desse período foi o Manuscrito de Piranga, assim denominado
por ter sido preservado na cidade mineira de Piranga. Esse documento possui composições
musicais em notação proporcional e em estilo antigo (próximo do estilo renascentista), mas
não fornece data, autor das obras e nem mesmo o copista, sendo quase certamente
constituído de música portuguesa.
Representantes dessas primeiras décadas de prática musical em Minas Gerais, que
provavelmente transitou da mera utilização de obras alheias até a composição de música,
estiveram conjuntos da região de Vila Rica (atual Ouro Preto), dirigidos por músicos como os
padres Manoel de Oliveira (1723), Manoel Luís de Araújo da Costa (1725), Antônio de Souza
Lobo (1725-1756) e Antônio Alves Nogueira (1728-1730), além dos músicos leigos Bernardo
Antônio (1721-1723), Francisco Xavier da Silva (1729), Bernardino de Sene da Silveira (1737-
1744), Inácio da Silva Lemos (1737- 1762), Antônio Ferreira do Carmo (1738-1747), Caetano
Rodrigues da Silva (1739- 1783) e Marcelino Almeida Machado (1740-1752), entre outros.³⁸
Com o aumento da competição entre as irmandades, que desejavam realizar as
melhores festas e cerimônias religiosas para aumentar o número de associados (chamados
“irmãos”) e, com isso, garantir uma quantidade satisfatória de anuidades, surgiu uma pressão
sobre os compositores para se executar música própria, que não existisse em outros lugares e
que distinguisse a irmandade contratante das demais. Foi esse mecanismo competitivo que
forçou os músicos mineiros em primeiro lugar à composição e, em segundo, a uma constante
atualização em relação aos estilos religiosos vigentes na Europa, para garantir a própria
sobrevivência enquanto diretores de conjuntos musicais. Na segunda metade do século XVIII,
quando, ao mesmo tempo, a competição aumentava assustadoramente e a produção de ouro
caía de maneira muito rápida, forçando um aumento exagerado do trabalho, Minas assistiu a
interessantíssimos fenômenos relativos à produção musical.
O primeiro deles foi a proliferação de músicos e compositores mulatos, que se viram
forçados a um trabalho intenso para ganhar a vida. O segundo foi a necessidade que esses
compositores tiveram de dominar mais um estilo, agora derivado do classicismo, só que desta
vez com uma perícia nunca antes observada no país. Esse estilo, originário da Itália, foi
assimilado em Minas Gerais ao mesmo tempo que estava sendo assimilado em Portugal,
tamanha era a demanda por música nova no Brasil. Com isso, Portugal passava a ser, para os
músicos mineiros, apenas um intermediário inevitável entre a Itália e o Brasil.
Entre os principais representantes dessa fase da música mineira estiveram os
compositores de Vila Rica (atual Ouro Preto) Inácio Parreiras Neves (c.1730-c.1794), Francisco
Gomes da Rocha (c.1754-1808), Marcos Coelho Neto (1763-1823) e Jerônimo de Souza Lobo
(fl.1746-1803), entre outros. Destacaram-se também, de outras regiões mineiras, José Joaquim

25
Emerico Lobo de Mesquita, da Vila do Príncipe (atual Serro) (1746?-1805) e Manuel Dias de
Oliveira (1735?-1813), de São José del-Rei (atual Tiradentes).
Parreiras Neves e Dias de Oliveira, respectivamente de Vila Rica e São José del- Rei,
foram os que praticaram os tipos musicais mais antigos. Sua música transitou do barroco
tardio para o pré-classicismo, fenômeno que pode ser explicado pelo próprio período em que
viveram. De Parreiras Neves, a maior parte das composições foi perdida, como a obra fúnebre
pela morte de D. Pedro III de Portugal, para quatro coros, quatro baixos, dois fagotes e dois
cravos, regida pelo autor em 1787. Somente três obras suas sobreviveram em manuscritos,
entre elas um Credo e a Oratória ao menino Deus, único oratório sacro do período colonial
brasileiro, escrito em português. De Manoel Dias de Oliveira conhecem-se uma Missa de
oitavo tom, uma Missa pequena em Ré e um Te Deum alternado em lá menor, sendo-lhe
atribuídas várias outras composições, como um Miserere, uma Visitação das Dores para oito
vozes e instrumentos, Motetos de Passos para oito vozes e instrumentos, um Sábado Santo e
outros, todos sem data de composição conhecida.
Francisco Gomes da Rocha atuou em Vila Rica como cantor (contralto) e regente,
além de fagotista e depois timbaleiro do Regimento de Dragões da vila, tendo sido
companheiro de Tiradentes. Sobreviveram em manuscritos somente cinco composições suas,
entre eles a Novena de N. S. do Pilar (1789) e as Matinas do Espírito Santo a 8 vozes (1795).
O compositor que mais plenamente assimilou o estilo clássico e aquele que
certamente tornou-se o mais celebrado em Minas Gerais foi Lobo de Mesquita. Nascido na Vila
do Príncipe (atual Serro) em c.1746, José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita transferiu-se em
c.1776 para o Tejuco (atual Diamantina), onde atuou como organista de 24 várias igrejas e
compositor até 1798. Trabalhou também em Vila Rica entre 1798-1800 e no Rio de Janeiro
entre 1801-1805, cidade onde faleceu. Suas viagens, provavelmente em busca de trabalho,
ilustram o tipo de dificuldade a que os compositores foram submetidos por essa época. Dentre
as obras mais conhecidas de Lobo de Mesquita, pode-se citar a Antífona Regina cæli lætare
(1779), a Missa em Fá Maior (c.1780), o Tercio (1783), os Tractos para o Sábado Santo (1783),
o Salve Regina (1787) e o Responsório de Santo Antônio (s/d), entre outros. Nenhum
compositor mineiro do século XVIII teve tantas obras preservadas quanto Lobo de Mesquita
(cerca de 50). Sua música resume o ideal da música sacra desse período: homofonia,
desinteresse pelo virtuosismo, estrutura concisa e funcional, subserviência total ao texto sacro
e efeito dramático a serviço da fé católica.³⁹
Essa pressão pela prática de uma música nova, exercida pelas irmandades mineiras
atingiu o auge nas três primeiras décadas do século XIX, quando a franca incorporação do
melodismo e do virtuosismo operístico italiano eram as novidades exigidas. Esse estilo, em
Minas Gerais, teve seu melhor representante em João de Deus de Castro Lobo (Vila Rica, 1794
- Mariana, 1832), compositor que, apesar de morrer jovem, escreveu cerca de quarenta obras,
entre elas a Missa em Ré maior, as Matinas de Santa Cecília, a Missa e Credo a oito vozes e os
Responsórios Fúnebres, que o compositor morreu sem poder completar. Seu tratamento
grandioso da música religiosa, somente comparável às obras de José Maurício Nunes Garcia no
Rio de Janeiro, refletiu a máxima utilização da música de igreja como espetáculo público,
repleta de elementos operísticos e do virtuosismo vocal que entusiasmou o público mineiro e
carioca nas primeiras décadas do século XIX. Castro Lobo foi um divisor de águas. Depois dele a
música mineira segue o caminho da simplificação, afastando-se do exagero e do
rebuscamento.
Contemporâneo de Castro Lobo foi o pintor marianense Manuel da Costa Ataíde,
(1762-1830), dotado de alguns conhecimentos de música. Ataíde deixou grande contribuição
para o conhecimento da prática musical mineira do início do século XIX, ao pintar cenas com
músicos em algumas das igrejas nas quais trabalhou. Tipos de instrumentos, posições de
execução, formas de regência e até mesmo a escrita musical foram representados em suas
pinturas. Na igreja de São Francisco de Assis, em Vila Rica, deixou monumental trabalho no
teto da nave, no qual se observa a Virgem cercada de anjos músicos, que executam violinos e

26
violoncelos com arcos de curvatura externa, que de há muito já estavam abolidos na Europa.
Aparecem também flautas de madeira e charamelas - antecessores dos modernos oboés -
além de um trompete, uma trompa, uma harpa e um fagote. Instrumentos estranhos à música
religiosa também foram pintados, como alaúdes, um bandolim e dois triângulos. Alguns anjos
seguram papéis de música enrolados, representando regentes em atitude de direção do coro
ou do conjunto instrumental. Outros seguram partes instrumentais e vocais, sendo as únicas
legíveis a que está próxima da harpa e a que é segura pelo anjo com o trompete.

São Paulo e a música portuguesa

Apesar da antiguidade da colonização em São Paulo, iniciada com o povoamento de


São Vicente em 1532, a prática de música profissional na região desenvolveu-se lentamente
até a segunda metade do século XVIII, acompanhando seu progresso econômico. As notícias
sobre a prática de música religiosa até o centro do século XVII são escassas, resumindo-se
quase que somente às missas em cantochão e à música de festas urbanas, das quais foram
testemunhos os instrumentos citados nos inventários paulistas do período - violas, guitarras,
cítaras, harpas e um pandeiro - instrumentos de acompanhamento harmônico e rítmico para o
canto. A partir de então, iniciou-se a organização da música na matriz da vila de São Paulo,
cujo primeiro mestre de capela, Manuel Pais de Linhares, já atuava em 1649.⁴⁰
Em 1650, no inventário de Pascoal Delgado, de Santana do Parnaíba, foram
encontrados três livros de canto de órgão, indicando já um interesse por essa prática.⁴¹ A partir
de então, tornaram-se cada vez mais frequentes as notícias sobre execução de música religiosa
a várias vozes, com o acompanhamento de um ou dois instrumentos. Participaram, muitas
vezes, os próprios mestres de capela, como Manoel Vieira de Barros e Manuel Lopes de
Siqueira, da matriz de São Paulo, atendendo a serviços fúnebres ou a encomendas das
irmandades da matriz.
O repertório musical que se usou em São Paulo na primeira metade do século XVIII
pode ser em parte conhecido pelo Grupo de Mogi das Cruzes, um pequeno conjunto de obras
em estilo antigo, uma das quais escrita em português, a cantiga Matais de incêndios, para
quatro vozes e acompanhamento instrumental. Todas as obras, copiadas em torno da década
de 1730 por Faustino Xavier do Prado, mestre de capela da matriz de Mogi, Ângelo Xavier do
Prado, seu irmão e Timóteo Leme e outros copistas não identificados, foram na maior parte
compostas por autores desconhecidos – provavelmente portugueses - e aqui copiadas ou
adaptadas para serem utilizadas pelos primeiros grupos musicais da região, de maneira
próxima ao que ocorreu em Minas Gerais na primeira metade do século XVIII.⁴²
Após a criação do bispado de São Paulo em 1745, o terceiro bispo, D. Manuel da
Ressurreição, decidiu por uma organização mais rigorosa da música na nova Sé, de forma a
adequá-la ao desenvolvimento musical observado em outras regiões do Brasil, como em Minas
Gerais e no Nordeste. A primeira tarefa foi modificar a estrutura dos cargos responsáveis pela
musica na catedral, para favorecer sua realização de uma maneira minimamente aceitável. No
entanto, como a evolução da produção musical religiosa em São Paulo não tinha manifestado
os mesmos resultados observados nas regiões citadas, a solução foi importar de Portugal um
músico que fosse capaz de instalar na catedral a prática musical que se desejava para a sede
do bispado. Em 1774, chegou à cidade para realizar essa tarefa, o já experiente compositor
André da Silva Gomes (Lisboa, 1752 - São Paulo, 1844).⁴³
Silva Gomes trabalhou na catedral até 1828, desempenhando também a função de
Professor Régio de Gramática Latina, desde 1797. O pequeno desenvolvimento da atividade
musical em São Paulo fez com que tais atividades fossem centralizadas no mestre de capela e
seu nome o mais celebrado da produção musical religiosa paulista até o centro do século XIX.
Gomes compôs exclusivamente música religiosa e mais de 130 obras foram até hoje
identificadas, dentre as quais se destacam a Missa a 8 vozes e instrumentos (c.1785), o Stabat
Mater (entre 1785-1800), muitos ofertórios, salmos e outros. O estilo de suas composições

27
transitou de um estilo barroco tardio, que o músico trouxe de Portugal, ao classicismo que
incorporou já no Brasil, indicando inclusive, a força com a qual a renovação estética varria do
repertório a música de estilos já ultrapassados. Conhecedor do contraponto, arte quase
totalmente desconhecida pelos compositores mineiros do século XVIII, Silva Gomes produziu
um tipo de repertório bem mais complexo que o dos seus contemporâneos brasileiros, até
cerca de 1800, que pode ser explicado por sua atuação em uma catedral, onde o exagero era a
regra.
Outros compositores atuaram em cidades paulistas no final do período colonial,
como Francisco de Paula Ferreira, nascido em Congonhas (MG), mas transferido para
Guaratinguetá em 1777 onde, desde 1809, atuou como mestre de capela e professor de
gramática latina, e o Frei Jesuíno do Monte Carmelo que, nascido em Santos em 1764,
transferiu-se para Itu em 1781, onde permaneceu até a morte em 1819. Jesuíno trabalhou
como pintor e músico, chegando a construir também um órgão em Santos.⁴⁴ Somente uma
pequena quantidade de obras foi recuperada desse compositor, todas muito simples em
relação aos seus contemporâneos brasileiros, o que denota seu pequeno envolvimento
profissional nessa arte.
Interessante, no caso de Jesuíno do Monte Carmelo, é sua declaração manuscrita de
1815, poucos anos antes de morrer, pela qual confessa ter furtado de seu padre mestre em
Santos, antes de sua partida para Itu em 1781, “algumas poucas músicas que naquele tempo
ele estimava, e que hoje nada valeriam”, além de “ainda depois de me passar para esta Vila
[de Itu] em que moro ainda mandei, por um condiscípulo, copiar outras”.⁴⁵ Esse procedimento
de obtenção de obras musicais - atualmente conhecida como pirataria - ainda que confessado
apenas por Jesuíno, foi prática extremamente comum no que se refere à música religiosa
executada na América Portuguesa, em função da alta competição entre os músicos do período.
E foi principalmente por esse mecanismo que chegou até nós uma grande quantidade de obras
brasileiras antigas, preservadas não em autógrafos, mas em sucessivas cópias, que muitas
vezes omitiam até mesmo o nome do autor.

Rio de Janeiro recebe a Europa

A história da música na Capitania do Rio de Janeiro possui uma fase de


desenvolvimento restrita durante os séculos XVI e XVII - tal como ocorreu em São Paulo -
sendo, no entanto, ainda mais obscura. Existem algumas notícias sobre a prática de polifonia e
instrumentos de acompanhamento, como o órgão, entre frades do Mosteiro de São Bento do
Rio de Janeiro, além do nome de alguns que se destacaram pela atividade musical, como
Francisco da Cruz (?-c.1636), Plácido Barbosa (?-c.1639), Plácido da Cruz (?-1661), Plácido das
Chagas (?-1666), Domingos do Rosário (?-1666), Leandro de São Bento (?-1673), Antônio de
Santa Maria (?-1686) e Agostinho de Santa Maria (?-1707).⁴⁶ Restaram-nos também nomes de
alguns mestres de capela da matriz de São Sebastião nas décadas de 1640 e 1650, os padres
Cosme Ramos de Morais e Manoel da Fonseca.
Os primeiros cariocas que se notabilizaram pela atividade musical, no entanto,
haviam se transferido para Portugal. João Seixas da Fonseca (Rio, 1691 - Roma, 1758) tornou-
se conhecido por escrever a dedicatória e talvez auxiliar financeiramente a impressão das
Sonate da cimbalo di piano e forte detto volgarmente di martelleti (Firenze, 1732), de Ludovico
Giustini, considerada a primeira coletânea publicada de música para pianoforte de toda a
história. Antônio José da Silva, O Judeu (Rio de janeiro, 1705 - Lisboa, 1739), autor de textos de
óperas e comédias, teve seus libretos utilizados nas óperas do português Antônio Teixeira
(1707-1755). O mulato Domingos Caldas Barbosa (Rio, 1738 - Lisboa, 1800) chegou em Lisboa
em 1770 e cinco anos depois começava a ser conhecido por suas modinhas, cujos textos - com
o título de cantigas - foram publicados no Viola de Lereno (Lisboa, 1798 e 1826). Mas da
música produzida no Rio até meados do século XVIII nada restou.

28
Como resultado do enriquecimento da cidade do Rio de Janeiro, em virtude da
proximidade com Minas Gerais, a atividade musical na segunda metade do século XVIII
aumentou consideravelmente, fazendo surgir, de forma tão abrupta como ocorrera em Minas,
uma grande demanda para os profissionais da área. Francisco Curt Lange levantou os nomes
de músicos que atuaram na igreja de São José do Rio de Janeiro nos séculos XVIII e XIX. Entre
os que com mais frequência assinaram recibos pela execução de música nas solenidades,
estiveram Francisco Pereira Xavier (no período 1758-1764), Antônio Barreto (1764-1767), José
Ferreira de Souza (1799-1802) e José do Carmo Torres Vedras (1804-1816), além dos
organistas Francisco Inácio de Jesus Maria (1758- 1764), Manoel Ferreira da Cruz (1765-1781)
e Vicente Martins Cordeiro (1782-1817).⁴⁷
Participaram, porém, de uma forma mais ampla na vida musical da cidade, na
segunda metade do século XVIII e inícios do século XIX, o compositor Antônio Nunes Siqueira
(1701-?), mestre de capela do Seminário de São José, o compositor Manuel da Silva Rosa (?-
1793), autor de uma Paixão que se cantou por muitos anos no Rio, o organista Justiniano de
Santa Delfina (?-c.1821), o compositor e professor de música José Joaquim de Sousa Negrão (?-
1832), o organista Policarpo de Santa Gertrudes Silveira (1779-1841) e o conhecido
compositor, professor e mestre de capela Padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830).
Figura de destaque na vida musical carioca do período foi também Joaquina Maria da
Conceição Lapa, a Lapinha, cantora negra lembrada no início do capítulo e que atuou na
Fazenda Santa Cruz, obtendo, ainda no século XVIII, prestígio internacional. Nunes Garcia e a
Lapinha são exemplos notórios de como a produção e a execução musical do repertório sacro
e operístico, no Brasil, dependeu, principalmente na segunda metade do século XVIII, de
músicos negros e mulatos, que continuarão tendo grande importância nos períodos
subsequentes. José Maurício Nunes Garcia, em sua primeira obra, uma Tota pulchra (1783), já
exibia a tendência de assimilação do estilo clássico que caracterizaria a prática musical carioca
do final do século XVIII e primeiras décadas do século XIX. Em 1784 assinou o compromisso da
Irmandade de Santa Cecília, tornando-se músico profissional. Foi ordenado presbítero em
1792 e obteve o posto de mestre de capela da catedral do Rio em 1798. Nesse cargo, suas
obrigações eram compor e reger música para a catedral e para as solenidades oficiais
realizadas no teatro da cidade, o então chamado “Teatro de Manuel Luís”. Por essa época já
ministrava, em sua casa, o curso de música, no qual estudaram, entre outros, Francisco
Manuel da Silva e Cândido Inácio da Silva, músicos importantes no Império.⁴⁸
Quando o temor da invasão francesa forçou a corte lusitana a transferir a capital
administrativa do Reino para o Rio de Janeiro em 1808, mudaram-se os rumos da carreira do
mestre de capela e a prática musical de toda a cidade. Ao chegar ao Rio, o Príncipe Regente D.
João criou a Capela Real e para esta transferiu José Maurício, atribuindo-lhe os encargos de
mestre de capela, organista e professor, além de solicitar-lhe o exercício da atividade de
compositor. Mas em 1811 chegava ao Rio Marcos Portugal (Lisboa, 1762 - Rio, 1830), também
a convite de D. João, para ocupar agora oficialmente o posto de mestre-compositor da Capela
Real. Marcos Portugal já havia residido na Itália, onde 21 óperas suas foram apresentadas,
além de récitas também em teatros da Alemanha, Áustria, França, Espanha, Inglaterra e
Rússia. Ao regressar a Lisboa em 1800, fora nomeado mestre da Capela Real e do Seminário
Patriarcal, além de regente-compositor do Real Teatro de São Carlos, mantendo-se nessas
funções após a intervenção francesa em 1808. No Rio, com enorme prestígio, Marcos Portugal
foi nomeado mestre da Capela Real, mestre de música da família real e diretor de espetáculos
da corte, o que acarretou para José Maurício uma sensível diminuição da atividade
composicional, que passou, a partir de então, a atender encomendas principalmente das
irmandades de São Pedro e de Santa Cecília, da Ordem Terceira do Monte do Carmo e da
Câmara, muitas delas de grande responsabilidade, além de atuar como professor em sua
casa.⁴⁹
No período em que D. João esteve no Rio (1808-1821) ocorreu um extraordinário
aumento na demanda de música, em função do número de portugueses que chegaram no

29
Brasil, interessados em manter o mesmo nível de prática musical a que estavam acostumados
em Lisboa. Houve, portanto, uma ampliação das perspectivas profissionais, que atraiu para o
Rio de Janeiro músicos de várias regiões do Brasil, mas também de Portugal e de outros países
da Europa. Dos compositores, passou-se a exigir a criação de obras religiosas mais
virtuosísticas e o trabalho com gêneros profanos ainda pouco praticados no Brasil, como a
ópera e a música instrumental. O Rio de Janeiro assistia à chegada de um estilo cortesão de
consumo musical, com o qual ainda não estava habituado, mas que a ele teria rapidamente de
se adaptar.
Ao tempo de D. João, as pequenas casas de espetáculo do Rio, como o Teatro de
Manuel Luís (inaugurado possivelmente após o incêndio da Casa da Ópera do Rio de Janeiro,
em 1769), não comportavam mais as apresentações simples e o público restrito que
caracterizaram as exibições do século XVIII. Para os grandes espetáculos profanos sobretudo as
óperas, foi construído o Real Teatro de São João, cuja inauguração se deu em 1813. Destinado
a receber um público numeroso, esse teatro fora construído às feições do Teatro São Carlos de
Lisboa que, por sua vez, imitava o Teatro San Carlo, de Nápoles, grande centro operístico
italiano do século anterior. Iniciaram-se, então, as grandes representações operísticas do Rio
de Janeiro, com obras de Antônio Salieri, Vincenzo Puccitta, Marcos Portugal e Ferdinand Paer.
Mas a representação de óperas no Rio de Janeiro tomou seu maior impulso a partir de 1821,
com obras de Rossini, Mayer e Mozart, entre outros.
Na época de D. João iniciou-se também um desenvolvimento da música camerística
(para pequenos conjuntos instrumentais) e da música orquestral. José Maurício e Marcos
Portugal escreveram Aberturas para orquestra, o gênero preferido para essa formação, entre
os portugueses. Não faltaram no Rio, por essa época, instrumentistas que se dedicaram à
música de câmara, como o clarinetista Silva, os violinistas Manuel Joaquim Correia dos Santos
e Manuel Inácio da Silva Alvarenga, os pianistas Frei Antônio, Simão Portugal e Francisco
Xavier Bachicha, o violoncelista Policarpo, os flautistas Silva Conde e José Leocádio, o violonista
João Leal e o cavaquinista Joaquim Manuel da Câmara - solistas observados por Adriano Balbi
em 1820 - além dos instrumentistas da própria Capela Real.⁵⁰
As obras camerísticas mais antigas que se compuseram no Rio de Janeiro parecem
ter sido os Três duetos concertantes (c.1814) para dois violinos, de Gabriel Fernande da
Trindade (1794-1854), que o autor dedicou quando jovem ao seu professor de violino, o
italiano Francesco Ignazio Ansaldi, chegado no Brasil em 1810 para se tornar o primeiro violino
da Capela Real. No Rio, o primeiro conjunto de obras para piano foi escrito por José Maurício,
como parte do seu Compêndio de música e método de pianoforte, de 1821, que inclui lições e
fantasias (com variações).
Mas o tipo de música que se consagraria em todo o Brasil como o preferido para os
salões era a canção em português, acompanhada inicialmente pela viola ou violão e depois
pelo piano. Modinhas e lundus começaram a ser compostos em abundância no Brasil a partir
do início do século XIX, ou talvez já em fins do século XVIII, em um estilo derivado da ária
operística, ou seja, com uma melodia ágil e exuberante. As modinhas normalmente versavam
sobre saudades ou amores perdidos, enquanto os lundus davam preferência a textos
humorísticos ou satíricos, geralmente com melodia sincopada. Embora as modinhas e lundus
tiveram seu maior desenvolvimento no período imperial, influindo decisivamente na instalação
de uma impressão regular de partituras no Rio, a partir de 1837, foram escritas muitas canções
desse tipo no final do período colonial, por autores como Padre Teles, Joaquim Manuel da
Câmara, José Maurício Nunes Garcia e Marcos Portugal, entre outros.
Em 1816, com o falecimento da Rainha D. Maria I - para o qual José Maurício
escreveu o conhecido Requiem e o Ofício Fúnebre - D. João foi coroado rei de Portugal. Para
cumprimentá-lo e promover o reatamento oficial das relações entre França e Portugal, veio ao
Brasil o Duque de Luxemburgo, acompanhado pelo celebrado compositor austríaco Sigismund
Neukomm, que obteve, no Rio, uma nomeação de professor público de música e o encargo de
composição e execução musical por um decreto de 16 de setembro de 1816. Entre outros,

30
foram seus alunos D. Pedro, sua esposa D. Leopoldina, D. Isabel Maria e Francisco Manuel da
Silva. A partir de 1819 passou a escrever para o Allgemeine Musikalishe Zeitung de Viena,
publicando, em 1820, uma notícia sobre a música no Rio de Janeiro, na qual citou a primeira
audição do Requiem de Mozart no Rio e do Requiem de José Maurício Nunes Garcia em Viena.
Neukomm permaneceu no Brasil até 1821, retornando à Europa poucos dias antes da partida
definitiva de D. João VI. Compôs cerca de vinte obras no Rio e exerceu influência sobre os
músicos do período, principalmente José Maurício Nunes Garcia. Neukomm notabilizou-se por
escrever, entre outras, as primeiras composições camerísticas baseadas em melodias
brasileiras, como L’Amoureux, para flauta e pianoforte, sobre La Melancolie de Francisco
Manuel da Câmara (1819) e O Amor brasileiro, capricho para pianoforte sobre um lundu de
autor desconhecido.⁵¹
Quando D. João VI voltou para Lisboa em 1821, as condições financeiras do país
foram bastante prejudicadas, situação agravada após a Independência em 1822, resultando no
início da decadência da atividade musical da cidade. José Maurício Nunes Garcia foi um dos
compositores prejudicados, chegando a solicitar a D. Pedro I a restituição da pensão outorgada
por D. João. Mesmo em dificuldades, continuou a produzir música para encomendas até 1826,
data da Missa de Santa Cecília, sua composição mais grandiosa. Morreu em 1830, quase ao
mesmo tempo que Marcos Portugal, ambos pobres e esquecidos, em virtude das novas
tendências musicais do Império, que tornavam a música desses compositores já ultrapassada.
Encerrava-se, assim, uma fase importante da prática musical carioca e brasileira. A
música religiosa manteve seu interesse, porém as composições usaram uma quantidade cada
vez menor de recursos composicionais, entrando em uma fase de franca simplificação. A ópera
italiana, a partir de então, tornava-se a principal meta que iria ocupar as próximas gerações de
músicos e compositores cariocas e o ensino musical institucionalizado sua única perspectiva de
realização.

Indicações de escuta

CASTRO LOBO, Pe. João de Deus. Missa e Credo for eigth voices; Associação de Cant Coral
Camerata de Rio de Janeiro; conductor Henrique Morelembaum. Swizerland Preaudio,
[c.1992]. SB CD 6700 (Serie Empires)
HISTÓRIA da música brasileira: Período Colonial; / Orquestra e Coro Vox Brasiliensis regência
de Ricardo Kanji. São Paulo: Eldorado, 1999. CD 946137. 2v.
LADAINHA DE NOSSA SENHORA. Coral de Câmara São Paulo e Orquestra Engenh Barroco;
direção Naomi Munakata. Belo Horizonte: Fundação Cultural Educacional da Arquidiocese d
Mariana, 2003 (Acervo da Música Brasileira Restauração e Difusão de Partituras, v.8)
MISSA. Coral de Câmara São Paulo e Orquestra Engenho Barroco; regência Naom Munakata
Belo Horizonte: Fundação Cultural e Educacional da Arquidiocese d Mariana / Bureau Cultural,
2001 (Acervo da Música Brasileira / Restauração Difusão de Partituras, v.2)
MÚSICA FÚNEBRE. Conjunto Calíope e Orquestra Santa Teresa; direção Júlio Moretzsohn
coordenação musicológica Paulo Castagna. Belo Horizonte: Fundaçã Cultural e Educacional d
Arquidiocese de Mariana, 2003 (Acervo da Músic Brasileira / Restauração e Difusão de
Partituras, v.9).
MÚSICA na Catedral de São Paulo - v.1: obras do Arquivo da Cúria Metropolitana d S. Paulo;
Brasilessentia Grupo Vocal e Orquestra de Câmara da UNESP; regência de Vítor Gabriel. São
Paulo: Paulus, 1999. CD 004383.
QUINTA-FEIRA SANTA. Grupo Vocal Calíope e Orquestra Santa Teresa; direção Júli Moretzsohn.
Belo Horizonte: Fundação Cultural e Educacional da Arquidiocese de Mariana, 2002 (Acervo da
Música Brasileira / Restauração e Difusão d Partituras, v.6)
SÁBADO Santo. Calíope; regência Júlio Moretszohn. Belo Horizonte: Fundação Cultura
Educacional da Arquidiocese de Mariana / Bureau Cultural, 2001 (Acerv da Música Brasileira
Restauração e Difusão de Partituras, v.3

31
SACRED Music from 18th Century Brazil, Vol. I: Luiz Alves da Silva / Ensemble Turicum on
historical instruments. Thun, Claves Records, 1995. CD 50-9521.
TRINDADE, Gabriel Fernandes da. Duetos concertantes; Maria Ester Brandão e Koit Watanabe,
violinos. São Paulo: Paulus, 1995, CD 11100-7.

Notas

1 BRITO, Manuel Carlos de. Estudos de história da música em Portugal. Lisboa: Editorial
Estampa, 1989 p.167-184. (Imprensa Universitária, n.78)
2 BRITO, Manuel Carlos de. op. cit., p.167-184.
3 MELLO, Guilherme Theodoro Pereira de. A música no Brasil desde os tempos coloniaes até o
primeir decênio da República por Guilherme Theodoro Pereira de Mello. Bahia, Typographia
de S. Joaquim 1908. xxv, 366p.
4 LANGE, Francisco Curt. La música en Minas Gerais: un informe preliminar. Boletín Latin
American de Música, Rio de Janeiro, ano 6, n.6, p.409-494, abr. 1946.
5 MAZZA, José. Dicionário biográfico de músicos portugueses. Ocidente, Lisboa, v.23, n.76 ago.
1944 p.363.
6 CORTESÃO, Jaime. A carta de Pero Vaz de Caminha. Sãoo Paulo: Livros de Portugal, 1943
p.117-189.
7 CARVAJAL, Gaspar de. Descubrimiento del Río de las Amazonas según la Relación hasta ahor
inédit de Fr. Gaspar de Carvajal con otros documentos referentes Á Francisco Orellana y su
Compañero publicados á expensas del Excmo. Sr. Duque de T. Serclaes de Tilly con um
introdución histórica y alguna ilustraciones por José Toribio Medina de la Academia de La
Lengua y de la Historia, de la d Buenas Letras de Sevilla y del Instituto Geográfico Argentino.
Sevilla: Imprenta de E. Rasco, 1904. p.64.
8 STADEN, Hans. Warhaftige Historica und beschreibung eyner Landtschafft der wilden
nackete Menschfresser Leuthen in der Newenwelt America gelegen; Faksimile. Wirdergabe
nach der Erstaufgab mit einer Begleitschrift von Richard N. Wegner; Zweite vermehrte Auflage
mit 6 Abbildungen und Karte. Frankfurt a. M., Wüsten & Co. (Faksimiliendruck und Verlag),
1927. 88f. inum., 52p.
9 THEVET, André. La Cosmographie Universelle D'André Thevet Cosmographe Dv Roy. Illvstree
D Diverses Figvres De Choses Plvs Remarquablesc Vevës Par l'Auteur, & incogneuës de no
Ancienz Modernes. Paris : Guillaume Chandiers, 1575. v.2; THEVET, André. Les Singvlarites de
la Franc Antarctique, avtrement nomée Amerique, & de plusieurs Terres & Isles decouuertes
de nostre temps Anvers: Christophle Plantin, 1558. 166 f.
10 LÉRY, Jean de. Histoire D'Vn Voyage fait en la terre dv Bresil, dite Amerique. 4 ed.,
[Genève]: Eustach Vignon, 1600. 478p.
11 CASTAGNA, Paulo. A música como instrumento de catequese no Brasil dos séculos XVI e
XVII. D O. Leitura, São Paulo, ano 12, n.43, p.6-9, abr. 1994; CASTAGNA, Paulo. Fontes
bibliográficas para pesquisa da prática musical no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo,
1991. Dissertação (Mestrado) Escola de Comunicações e Artes da USP. 3v.
12 THEVET, André. op. cit., 1575. v.2. f.925r.
13 CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil; introduções e notas de Rodolfo
Garcia, Batist Caetano e Capistrano de Abreu. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: EDUSP,
1980. 206p. (Coleção Reconquista do Brasil, nova série, v.13)
14 COISAS notáveis do Brasil; apresentação e introdução de A.G. Cunha. Lucas: Instituto
Nacional d Livro e MEC, 1966. v.1.
15 CASTAGNA, Paulo. Uma abordagem musicológica da produção literária de Antônio Vieira
(1608 1697). In: FURTADO, Joaci Pereira. Antônio Vieira: o imperador do púlpito. São Paulo:
Instituto d Estudos Brasileiros da USP, [1999]. p.39-72. (Cadernos do IEB: Cursos e
Conferências)

32
16 HOLLER, Marcos. Uma história de cantares de Sion na terra dos brasis: a música na atuação
dos jesuíta na América Portuguesa (1549-1759). Tese (Doutorado) - Instituto de Artes da
UNICAMP, 2006. 3v.
17 NIEUHOF, Johan. Johan Nieuhofs Gedenckweerdige Brasiliaense Zee- en Lant- Reize.
Amsterdan Jacob van Meurs, 1682. 240p.
18 “Aprés avoir esté à la Messe au nombre environ de quatre cens hommes & de cent
femmes, ils éleurent u Roy & une Reyne, & marcherent par les ruës chantans, dansans, &
récitans des vers qu’ils avoient faits precedez de hautbois, de trompettes & de tambours de
basque.” RENNEFORT, Urbain Souchu de. Histoir des Indes Orientales. Leide: Frederik Harring,
1688. p.291-292.
19 ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil; texto confrontado com o da edição de
1711 com um estudo biobibliográfico por Affonso de E. Taunay; nota bibliográfica de Fernando
Salem; vocabulári e índice antroponímico, toponímico e de assuntos de Leonardo Arroyo. 3
ed., Belo Horizonte: Ed Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1982. 239p. (Reconquista do Brasil; nova
série, v.70)
20 LANGE, Francisco Curt. História da música nas irmandades de Vila Rica; freguesia de Nossa
Senhor da Conceição de Antônio Dias. Belo Horizonte: Imprensa Oficial [Conselho Estadual de
Cultura], 1981 p.147-189 (História da Música na Capitania Geral das Minas Gerais, v.5)
21 CAVAZZI, Giovanni Antonio. Sobre a música e a dança africanas; pesquisa, tradução e notas
de Paul Castagna. Revista Música, São Paulo, v.2, n.2, p.107-115. nov. 1991.
22 CASTAGNA, Paulo. Sagrado e profano na música mineira e paulista da primeira metade do
sécul XVIII. II SIMPÓSIO LATINO-AMERICANO DE MUSICOLOGIA, Curitiba, 21-25 jan. 1998.
Anais... Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 1999. p.97-125.
23 SANTOS, Jocélio Teles dos. Divertimentos estrondosos: batuques e sambas no século XIX.
In: SANSONE Lívio; SANTOS, Jocélio Teles dos (orgs.). Ritmos em trânsito: sócio-antropologia
da músic baiana. São Paulo: Dynamis Editorial; Salvador: Programa A Cor da bahia e Projeto
S.A.M.BA., 1997 p.15-38.
24 CASTAGNA, Paulo. op. cit., 1991.
25 NERY, Rui Vieira. Para a história do barroco musical português (o códice 8942 da B.N.L.).
Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian, 1980. p.57-58.
26 JESUS, Caetano de Melo. Discurso apologético: polémica mvsical do Padre Caetano de Melo
Jesus natural do Arcebispado da Baía; Baía, 1734; edição do texto e introdução de José
Augusto Alegria. Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Música, 1985. 167p.
27 SALLES, Vicente. Música e músicos do Pará. Belém, Conselho Estadual de Cultura, 1970.
297p.
28 ALMEIDA, Cândido Mendes de. Memorias para a historia do extincto Estado do Maranhão
cuj territorio comprehende hoje as provincias do ³ Maranhao, Piauhy, Grao-Pará e Amazonas.
Rio de Janeiro Typ. do Commercio de Brito & Braga, 1860. v.1, p.190-191.
29 MAZZA, José. Dicionário biográfico de músicos portugueses. Ocidente, Lisboa, v.23, n.74,
p.193-200 jun.; n.75, p.249-256, jul.; n.76, p.361-368, ago.; v.24, n.77, p.25-32, set.; n.78,
p.153-160, out.; n.79 p.241-248, nov.; n.80, p.353-368, dez. 1944; v.25, n.81, p.17-24, jan.;
n.82, p.145-152, fev.; n.84, p.85 -100, abr. 1945.
30 SANTOS, Maria Luiza de Queirós Amâncio dos. Origens e evolução da música em Portugal e
sua influência no Brasil. Rio de Janeiro, Comissão Brasileira dos Centenários de Portugal, 1942,
p.215.
31 LAMEGO, Alberto. A Academia Brazilica dos Renascidos: sua fundação e trabalhos inéditos.
Paris /Bruxelles: L’Édition D’Art Gaudio, 1923. 120p. Uma edição desta obra pode ser
consultada em: TONI,
Flávia Camargo; VOLPE, Maria Alice; DUPRAT, Régis. Recitativo e Ária para José Mascarenhas.
São Paulo: EDUSP e Imprensa Oficial, 2000. 178p. (Uspiana Brasil 500 Anos)
32 DINIZ, Jaime. Músicos pernambucanos do passado. Recife, Universidade Federal de
Pernambuco, 1969-1979. 3v.

33
33 PINTO Luís Álvares. Muzico e Moderno Systema para Solfejar sem Confuzão. Recife, 1776.
138p. Manuscrito da coleção particular de D. Pedro Gastão de Orleans e Bragança (Arquivo
Grão Pará, Petrópolis - RJ).
34 DINIZ, Jaime. op. cit., 1969-1979. 3v.
35 MAZZA, José. op. cit.
36 DINIZ, Jaime. op. cit., 1969. v.1, p.64-66.
37 CASTAGNA, Paulo. O ‘estilo antigo’ no Brasil, nos séculos XVIII e XIX. I COLÓQUIO
INTERNACIONAL A MÚSICA NO BRASIL COLONIAL, Lisboa, 9-11 out. 2000. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2001. p.171-215
38 LANGE, Francisco Curt. op. cit., 1981; LANGE, Francisco Curt. História da música nas
irmandades de Vila Rica: Freguesia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto; primeira parte.
Belo Horizonte: Imprensa Oficial [Conselho Estadual de Cultura], 1979. 458p. (Publicações do
Arquivo Público Mineiro, v.1)
39 JUNQUEIRA GUIMARÃES, Maria Inês. L’OEuvre de Lobo de Mesquita compositeur brésilien
(1746?- 1805): contexte historique, analyse, discographie, catalogue thématique, restitution.
Paris: Presses Universitaires du Septentrion, 1996. 659p.
40 DUPRAT, Régis. Música na Sé de São Paulo colonial. São Paulo: Paulus, 1995. 231p.
41 “Foi avaliado tres livros de quãto dorguo e mais quarta passios e papeis em quatro mil rs”.
INVENTÁRIOS e Testamentos, São Paulo, v.40, p.144.
42 CASTAGNA, Paulo. Uma análise codicológica do Grupo de Mogi das Cruzes. IV ENCONTRO
DE MUSICOLOGIA HISTÓRICA, Juiz de Fora, 21-23 de julho de 2000. Anais... Juiz de Fora: Centro
Cultural Pró-Música; Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2002. p.21-71.
43 DUPRAT, Régis. op. cit.
44 ANDRADE, Mário de. Padre Jesuíno de Monte-Carmelo. Rio de Janeiro: Serv.do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, 1945. 194p.
45 ANDRADE, Mário de. op. cit., p.202-205 (nota 1).
46 SANTOS, Maria Luiza de Queirós Amâncio dos. op. cit.
47 LANGE, Francisco Curt. A atividade musical na Igreja de São José do Rio de Janeiro. Revista
de Música Latino Americana / Latin American Music Review, Austin, v.6, n.2, p.201-233,
fall/win.1985.
48 MATTOS, Cleofe Person de. José Maurício Nunes Garcia: biografia. Rio de Janeiro: Fundação
Biblioteca Nacional, Dep. Nacional do Livro, 1996. 373p.
49 MATTOS, Cleofe Person de. op. cit.
50 ANDRADE, Ayres de. Francisco Manuel da Silva e seu tempo: 1808-1865: uma fase do
passado musical do Rio de Janeiro à luz de novos documentos. Rio de Janeiro: Edições Tempo
Brasileiro, 1967. 2v.
51 MEYER, Adriano de Castro. Sigismund Neukomm: sua presença no Brasil. II SIMPÓSIO
LATINOAMERICANO
DE MUSICOLOGIA, Curitiba, 21-25 jan. 1998. Anais... Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba,
1999. p.381-389.

34
TEMA: POLIFONIA PROFANA E RELIGIOSA EM PORTUGAL, SÉCULOS XVI – XVII
Concílio de Trento (1564 - aprovação das decisões em Portugal na vida eclesiástica e social do
país)

1. Polifonia Profana na Renascença Ibérica

Os Quatro Cancioneiros Portugueses:


Representam importante fonte de obras profanas ibéricas, na sua maioria de caráter
lírico-amoroso, com predominância de textos em Espanhol e menor número em Português. A
maioria das peças são “anônimas”, sendo possível algumas atribuições de autoria em
comparação com outros cancioneiros espanhóis. Demonstram influência de técnica italiana,
por exemplo os madrigalismos, sobre compositores espanhóis como Juan de Encina ou Pedro
Escobar.

 Cancioneiro de Elvas
Descoberto em 1940; possui 65 canções anotadas entre 1560 – 1580.

 Cancioneiro Biblioteca Nacional Lisboa


Do século XVI; contém 19 canções: vilancetes, cantigas, um romance.

 Cancioneiro de Belém
Descoberto no início da década de 1960; datado de 1603, com 18 peças que remontam anos
de 1550 – 1580. Compositores identificados: Juan del Encina e Pedro Escobar.

 Cancioneiro de Paris (Biblioteca E.N.S. Beaux Arts)


O maior de todos, com 131 peças, possivelmente coletadas na segunda metade do século XVI.
55 peças polifônicas. Poesias de Camões e outros poetas que tratam da perda da esperança,
desilusão, dor da ausência.

Gêneros principais:
a) Vilancetes = mote (Refrão = 3 versos) + mudanças
(estrofes = 7v).
Temas: Amoroso – poesia letrada da corte; jocoso-satírico
Ritmo de dança: Folia, chacona
Cantigas (Refrão = 4-6v + copla = 8v)
Esquema: ABBA
Caráter lírico-amoroso, mais sério. Texto em Espanhol.

b) Romancetes = quadras com 4 frases musicais que se repetem para cada estrofe.
Caráter narrativo, épico. Texto em Espanhol.

2. Polifonia Litúrgica na Renascença Ibérica (vocal e instrumental)


AUGE: meados do século XVI ao XVII

1ª fase: Prima Pratica – “Stile Antico”. Influência franco-flamenga. Josquin de Près/


Ockheghen/ Gombert.
2ª fase: Transição para o Barroco: cromatismo, dissonâncias, policoralidade e verticalidade.

Repertório: Missas, Motetos, Salmos, Magnificats.

35
Principais compositores

1) Da Escola de Evora:
Duarte Lobo (c. 1565-1646)
Frei Manuel Cardoso (c. 1566-1650)
Felipe de Magalhães (1571-1652)
Discípulos: Estevão de Brito/ E. Lopes Morango/ Frei Manuel Correia
João Lourenço Rebelo (1610-1661)
Diogo Dias de Melgaço (1638-1700)

2) Da Escola de Coimbra (Mosteiro de Sta. Cruz):


Pedro de Cristo (c. 1550-1618)
D. Pedro da Esperança (? -1600)

3. Polifonia instrumental (órgão/ teclado/ harpa)

Antônio Carreira (c.1510-1590) – Mestre Capela Real em Lisboa. Modelos calcados na polifonia
vocal. Também organista.
Manuel Rodrigues Coelho (1583-1633): Flores de Música para o instrumento de tecla e harpa
(1620). 1º livro publicado em Portugal para instrumento. Obra mais independente de modelos
vocais. Também organista da Capela Real.

36
TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34,
1998. P. 17 – 76.

1. INDIVIDUALISMO, VIOLA E CANÇÃO

Quando o Brasil foi descoberto, em 1500, as manifestações culturais que se tornariam


típicas das cidades - entre elas a música dirigida às distrações urbanas, mais tarde chamada
genericamente de música popular - estavam apenas despontando como algo novo nos
principais centros do próprio país descobridor.
Na verdade, saída da era medieval, onde a economia baseada na exploração da terra
privilegiava o mundo rural e seu estável sistema de relações pessoais regulado pelo costume,
a Europa mal começava a estruturar as formas de vida urbana surgidas com a realidade do
predomínio do capital sobre o trabalho, que agora procurava disciplinar os novos tipos de
relações com a impessoalidade da lei. E como a aceleração da divisão do trabalho,
provocada pelo novo modo de produção para o comércio, com base na apropriação de
matéria-prima e pagamento de serviços em dinheiro, gerava uma infinidade de problemas
até então desconhecidos, o Poder foi levado a resolvê-los não mais segundo princípios
consagrados, como antes, mas através de uma profusão de resoluções que os tipificava.
Tais resoluções reais, ou alvarás, disciplinadores das novas questões urbanas, acabavam as-
sim por reduzir o direito coletivo forjado pela antiga economia rural a uma lista de deveres e
obrigações individuais, decorrentes dos princípios do direito romano, revivificado pela
oportunidade de seus conceitos de respeito absoluto à propriedade.
O resultado desse novo quadro de vida urbana sob o moderno regime de relações de
produção pré-capitalista - que assim tendia a abolir o interesse coletivo em favor da
particularidade expressa, caso a caso, na letra da lei - iria fazer-se sentir também no campo
cultural. É que, enquanto os cantos e danças do mundo rural continuavam a constituir
manifestações coletivas, onde todos se reconheciam, a música da cidade - exemplificada no
aparecimento da canção solo, com acompanhamento pelo próprio intérprete - passou a
expressar apenas o individual, dentro do melhor espírito burguês 1 .
Essa tendência à individualização do homem urbano começava, pois, a produzir seus
efeitos no plano da cultura, em Portugal, quando se iniciou a experiência pioneira da
transplantação de uma parte de sua população para o Brasil. E, assim, como do ponto de
vista da história sócio-cultural os duzentos primeiros anos da colonização brasileira
nada mais representaram do que uma reprodução (com pequenas variantes locais) da
realidade da vida na metrópole, não seria hoje possível compreender o quotidiano das
cidades no Brasil até ao século XVIII, sem conhecer como se desenvolveu, a partir do
século XV, o próprio processo de urbanização em Portugal.
O caráter tradicional da ocupação do solo em Portugal fora sempre, como em livro
clássico apontaria Costa Lobo, o da concentração das populações "em cidades, vilas e
aldeias, sendo raríssimas as habitações ou casas distantes destes centros". Ao que ajuntava:
"Um âmbito cultivado circundava as povoações e fornecia a subsistência de seus
moradores: toda a demais região intermédia era um deserto2".
Assim, excetuadas segundo o mesmo autor Lisboa e o Porto, ainda no século XV, "as
demais cidades e vilas, se bem que naturalmente fossem centros onde artífices e mercadores
abasteciam o povo das aldeias adjacentes, eram, contudo, principalmente habitadas por
lavradores que cultivavam as suas herdades nas cercanias”3.
A tradição da sociedade portuguesa implicava, portanto, até ao advento da era das
conquistas e comércio atlântico iniciada na primeira metade do século XV, um quadro de
dispersas populações rurais reunidas à volta de pequenos centros auto-suficientes, a que a
falta de um comércio interno ativo no País, reduzindo a capacidade de expansão,
conduzia necessariamente ao aprofundamento das características locais.

37
A marca cultural de tais comunidades, isoladas nesse panorama de "aldeias e
deserto” - como definia na virada do século XV para o século XVI o cronista Rui de Pina,
lembrando o reinado recente de D. Duarte (1433-1437) -, só podia ser, pois, a da
valorização da identidade regional, através do reconhecimento geral de uma série de
traços comuns, que dissolviam o indivíduo nas manifestações da coletividade. E isso
queria dizer que, quando tal gente rural se divertia em suas pequenas vilas e povoados, suas
danças e cantos constituíam sempre reuniões da comunidade ao ar livre, com rodas e
pares evoluindo nos terreiros - vozes em coro - ao som de instrumentos feitos para
animar o ritmo e dominar o alarido: gaitas, flautas, pandeiros, adufes, atabaques, bombos
e tamboris.
Quando, porém, a crescente monetarização da economia a partir do século XV
estimula a agricultura comercial em detrimento da produção para a subsistência, assim
transferindo de vez o centro dos interesses do campo para as cidades, os pequenos
lavradores entram em crise, e os trabalhadores da terra - jornaleiros transformados em
proletários rurais - iniciam o êxodo para os grandes centros do litoral, onde vão aderir à
aventura das navegações ou constituir a arraia-miúda urbana, em que cada um vive por
si.
A característica cultural desses elementos postos à margem da estrutura econômico-
social como ganha-dinheiros, ou eventuais vadios, será o individualismo, a zombaria, a
pretensa esperteza e a hipocrisia. Ou seja, tudo o que favorecesse a sobrevivência pessoal
em meio aos demais, o que os levava inclusive à busca isolada do próprio entretenimento
na singularidade do canto a solo, com acompanhamento individual, ao, som de sua viola 4.
Um testemunho contemporâneo dessa mudança cultural paralela às transformações
econômicas de Portugal do século XVI aparece com muita clareza - quando bem
interpretado o sentido dos versos - na "tragicomédia" de Gil Vicente Triunfo do Inverno,
de 1529, em que o autor saudoso da velha estrutura agrária começava por lembrar:

Autor
Em Portugal vi eu ja
em cada casa pandeyro
e gayta em cada palheyro
e de vinte anos aca
riam ha hi gayta nem gayteyro.

A cada porta hum terreyro


cada aldeia dez folias
cada casa atabaqueyro
e agora Geremias
he nosso tamburileyro.5

Tal como o próprio Gil Vicente indica ao escrever “e de vinte anos aca", teria sido com
o advento do século XVI que as mudanças sócio-culturais resultantes do modelo de
economia urbana voltado para o exterior passaram a tornar-se mais evidentes. Em
Portugal (e não apenas no interior, mas nas cercanias da própria capital, Lisboa, como
mostram os versos "Soo em Barquerena avia / tambor em cada moinho"), as manifestações
de alegria contavam sempre com tal profusão de gaitas e pandeiros, que dava para
formar dez grupos de foliões em uma mesma aldeia. E sem problema de espaço para o
exercício de tais folgares visto como, no quadro rural ainda não superado pelo modelo
urbano moderno, era comum haver "a cada porta hum terreyro". Com a decadência da
pequena agricultura naquelas manchas de terra cultivadas que garantiam o viver tranqüilo
das povoações tradicionais (e onde o mais "triste ratinho", ou seja, o mais humilde
trabalhador jornaleiro do campo, podia ao menos participar dos folguedos locais com uma

38
alegria agora impossível - "agora nem tem caminho"), o clima de festa mudava-se numa
tristeza que parecia ter ao tambor o lamuriento profeta Jeremias.
O autor do Triunfo do Inverno, aliás, que pouco antes reagira contra o processo de
urbanização esvaziador dos campos na farsa do Clérigo da Beira, de 1526 ou 1528,
aprofunda sua visão do contraste da vida popular do campo e da cidade, passando a
demonstrar - com impressionante modernidade - o reflexo das mudanças na esfera
cultural:

Se olhardes as cantigas
do prazer acostumado
todas tem som lamentado
carregado de fadigas
longe do tempo passado.
O dentam era cantar
é baylar comaa de ser
o cantar pera folgar
o baylar pera prazer
que agora he mao de achar. 6

O advento do novo projeto econômico das navegações, ao substituir a rotineira paz


dos campos pelo clima competitivo e angustiante das cidades, provocara pois seus reflexos
no próprio texto das cantigas: ao contrário do tom alegre do tempo passado, os versos
das cantigas revelavam agora as durezas da vida presente. Fora-se o bom tempo ("que
agora he mao de achar") em que o canto significava apenas demonstração da alegria co-
mum ("o cantar pera folgar") e a dança um exercício de puro gozo ("o baylar pera prazer").
E como para não deixar sem exemplo esse contraste entre o alegre canto coletivo da
gente dos campos e o lamento individual transformado em cantiga pelo angustiado homem
das novas cidades - sujeito a dúvidas metafísicas -, acrescentaria Gil Vicente:

Nam cãtavam de terreyro


terra frida deismelo
no me negueis mi consuelo
que fez hum judeu daveyro
pola muerte de su avuelo. 7

Isto valia por dizer - entendidos os versos "terra frida deismelo / no me negueis mi
consuelo" como citação de uma cantiga popular da época - que jamais se conceberia naqueles
alegres tempos de saudável folgar coletivo ao ar livre, nos terreiros, ouvir alguém a cantar
versos tão fúnebres e pessoais quanto estes do "ó terra fria dizei-me, / não me negueis o
consolo", como fazia o judeu morador em Aveiro, transformando em canção popular a
tristeza pela perda do avô.
Gil Vicente, aliás, reforçava essa preciosa revelação da existência de uma cantiga de
caráter popular urbano, já como autor conhecido, na segunda década do século XVI, ao
acrescentar outra informação importante: apesar de triste, tal cantiga tornará-se popular e
ao som dela se cantava e dançava na cidade porque, ao contrário dos tempos do folgar
despreocupado nos terreiros, era esse tom lamentoso que correspondia, agora, à dura
realidade da vida das pessoas na cidade:

He de feyra em concrusam
e baylam na cada dia
porque sae aa melodia
tal qualfica o coraçam

39
ao reves do que soia.8

Através da obra de Gil Vicente, por sinal, pode concluir-se também que um dos
primeiros tipos de canção urbana - quer dizer, cantada e acompanhada a solo, como as
trovas e romances dos antigos trovadores e jograis, e envolvendo a intenção amorosa do
intérprete - seriam as cantigas de serenata. O mais recuado exemplo desse cantar (que dois
séculos depois se transformaria em gênero, no Brasil, sob o nome de canção de seresta)
apareceria no auto chamado Quem Tem Farelos? com data de 1505, mas certamente
encenado apenas em 1509 (há referência no texto à perda de Arzila pelos portugueses em
1508). Nessa peça ambientada na Lisboa manuelina, que então rapidamente se expandia (o
próprio rei D. Manuel acabara de mudar-se da velha alcáçova do Castelo de São Jorge para a
beira do Tejo, trocando a segurança da fortaleza pelas riquezas do porto), um escudeiro
pobre, mas presumido de trovador e galante, Aires Rosado, pede a viola a seu moço, Apariço
("Dá-me cá esse estromento"), decidido a cantar à porta da amada certamente já recolhida:

Aires. Agora que estou disposto,


irei tanger minha dama.
Apariço. Ja ela estará na cama...
Aires. Pois entonces é o gosto!9

Segundo a rubrica indicativa da cena, o escudeiro "Tange e canta na rua à porta,


de sua dama Isabel e, em começando a cantar `Si dormís, donzella' ladram os cães". A
intenção do autor é, evidentemente, estabelecer o clima de comicidade às custas do
escudeiro (o latido dos cães contraponteia o canto, o que obriga Aires a pedir ao moço
que mate os animais, ou os distraia, dando-lhes pão), mas o realismo vicentino acaba
conferindo à cena o valor de um documento. Em primeiro lugar, o título da música, Se
Dormís, Donzela (tirado do primeiro verso, como de costume), começava por indicar o
objetivo específico da canção de serenata: o da transmissão de um recado amoroso para a
recepção do qual seria preciso que a amada - conservada distante da vida social pela
severa moral patriarcal - não apenas estivesse desperta, mas aparecesse à janela para
demonstrar seu interesse: "Si dormís, donzella / despertad y abrid". Quanto ao sentido
geral da letra da canção escolhida para a serenata (cuja referência em um dos versos ao
rio Guadalquivir indica a voga, em Portugal de inícios do século XVI, do repertório
espanhol da Andaluzia), indicava desde logo uma antecipação, em mais de trezentos anos,
do que as modinhas românticas brasileiras do século XIX transformariam em lugar
comum: o apelo à amada para a aventura do amor, por ser chegada a hora:

Si dormís, donzella,
despertad y abrid.
Que venida es Ia hora,
si queréis partir.10

No caso do escudeiro Aires Rosado dessa farsa de início de Quinhentos, o


requerimento dos versos não chega a ser atendido porque a velha mãe de Isabel intervém, e
despede o pobre amante com a injúria - "Vai comer, homem coitado, / e dá ò demo o
tanger" - mas, quinze anos depois, no Auto de Inês Pereira, outro escudeiro do mesmo tope
consegue melhor sorte ao cantar ante a pretendida, igualmente à viola, não na rua, em
serenata, mas dentro da própria casa. A diferença da sorte entre os dois enamorados,
conforme as situações postas por Gil Vicente em cada peça, revela-se também rica em
informações. A mãe de Isabel decidira em Quem Tem Farelos? expulsar de sua porta o
pretensioso Aires Rosado porque, àquela altura, a proliferação dos cavaleiros "de novas
linhas e apelidos" (como um século antes definira o cronista Fernão Lopes) enchia Lisboa

40
daqueles pretensos escudeiros de casas nobres ("e de parte meu avô / sou fidalgo
afidalgado"), mas o mesmo não acontecia nas províncias. E, assim, quando no Auto de Inês
Pereira a moça da cidade da área rural recusa o filho de um lavrador rico e contrata dois
judeus casamenteiros para que lhe consigam um homem "discreto" (com alguma cultura) e
que "saiba tanger viola", a perspectiva de achar tal candidato em seu meio é tão remota

O marido que quereis,


de viola e dessa sorte,
não nos há senão na corte
que cá não no achareis

que a própria mãe se dispõe a ajudá-la com conselhos: "Se este escudeiro há de vir / e é
homem de discrição / hás-te de pôr em feição, / e falar pouco, e não rir".
Nos dois casos, porém, o que tanto a moça da capital quanto a da cidade menor da
província demonstravam era, afinal - mau grado as diferenças de circunstância -, a sua
comum incompatibilidade com os costumes ligados à predominância da velha estrutura
agrária. E era isso que explicava a atração de ambas pelo personagem simbólico da
sociedade em mudança: o jovem individualista capaz de suprir, com a sua prosápia, a
equivocada posição de valido de uma nobreza falida, e isso usando apenas as novas
qualidades urbanas da desenvoltura pessoal e domínio dos modernos símbolos da
sociedade representados pela arte de cantar e tocar viola.
As cenas em que Gil Vicente movimenta esses seus personagens escudeiros, aliás,
permitem inclusive - embora nada se saiba dos textos musicais que originalmente
acompanhavam os versos - imaginar o estilo de interpretação dessas primeiras canções
destinadas a formar o repertório da futura música popular urbana.
Para começar, havia por certo já por aqueles inícios de Quinhentos diferentes formas
de interpretar as cantigas, conforme o gênero ou a destinação da música. O escudeiro Aires
Rosado de Quem Tem Farelos?, moço da cidade grande, certamente mais despachado,
escolhia para a sua serenata músicas de sabor popular, e que lhe permitiam cantar à viola
com voz "requebrada", como definia seu moço, Apariço, dando a entender a ênfase sobre
o ritmo. O escudeiro do Auto de Inês Pereira, mais provinciano, parecia ainda preso ao velho
repertório herdeiro do estilo dos antigos trovadores palacianos, e por isso preferia usar a
viola para acompanhamento não de uma cantiga do momento, mas de um romance - "Mal
me quieren en Castilla" - que entoaria em tom lamuriento e cheio de ais. E isso como
parece indicar a fala do judeu casamenteiro Vidal, ao referir-se ante o companheiro Latão
à monotonia da longa história cantada pelo moço:

Latão, já é o sono comigo


como oivo guaiado
que não vai esfandegado

O curioso é que o cantar guaiado - expressão segundo Gil Vicente introduzida pelos
judeus em Portugal: "E por má hora dizer ai / dezia-lhe guai" - estava destinado a sobreviver
no Brasil, chegando com esse mesmo nome até fins do século XX entre os vaqueiros e
trabalhadores rurais do estado de Goiás dançadores de catiras ao som de violas
enfeitadas de fitas: "Ai goianinha, / você machucou meu coração, / Ai Ia-ri-la, la-ri-l'ai-
ai...”11
Esse tom de lamento certamente cheio de ais ou guais já devia, por sinal, estar tão
vulgarizado como estilo de interpretação ao tempo da peça, em Portugal, que Gil Vicente
nem se preocupou em registrar os versos da composição por ele escolhida, limitando-se
a citar-lhe o título na rubrica "Canta o Escudeiro o romance `Mal me quieren en Castilla',
e diz Vidal". O comentário do judeu Vidal, porém, indicava que se o estilo era comum, o

41
agrado não era geral, pois ele particularmente preferia o tipo mais "esfandegado", ou seja, o
que pela maior vivacidade rítmica ensejava o cantar "requebrado” 12, como fazia em Lisboa o
escudeiro Aires Rosado, especialista nessa moderna forma de "musiquiar”13.
O que todos os exemplos de cantigas urbanas entoadas a solo por aqueles inícios do
século XVI revelam em comum (pedissem elas interpretações guaiadas ou requebradas) era
o acompanhamento ao som de viola. É bem verdade que tais indicações, tiradas
principalmente de textos do teatro vicentino e pós-vicentino, não chegam a fornecer
pormenores sobre o instrumento, mas, por certas particularidades das situações descritas,
pode supor-se - com boa probabilidade de acerto - que aqueles primeiros cultores da
canção produzida para o individualismo burguês das cidades não usariam todos o mesmo
tipo de viola. Segundo revelam os modernos estudos na área da musicologia, principalmente
quando examinam características de construção dos instrumentos cordofones e suas
afinações, a velha guitarra latina dos antigos trovadores do século XIII ter-se-ia transformado
pela virada dos séculos XIV-XV na vihuela espanhola, que era afinal a mesma viola usada em
Portugal por tocadores palacianos ilustres como Garcia de Resende, com sua seis ordens de
cordas próprias para execução ponteada, ou dedilhada, que fazia supor para seu uso um
estudo de música mais aprimorado. Pois, ao lado desta - e já como a anunciar uma
extensão, ao campo da música instrumental, da diversificação promovida na sociedade
urbana pela divisão do trabalho -, apareceriam então as violas mais simples, chamadas às
vezes de guitarras, menores no tamanho e com número de cordas reduzido geralmente a
quatro ordens, e que qualquer curioso possuidor de bom ouvido podia tocar de golpe ou
de rasgado, suprindo a falta de recursos técnicos com o ritmo da mão direita14.
Inicialmente, como se observa nas cenas descritas por Gil Vicente, a distância social
entre os tocadores de um e outro tipo de viola ainda não era grande, pois os escudeiros
tinham pretensões à nobreza e, bem ou mal, procuravam reproduzir o estilo
trovadoresco palaciano em sua escolha de repertório e interpretação. Ao cabo de pouco
mais de um século, porém, a variante simplificada da viola estava destinada a ganhar tal
difusão entre as camadas mais populares que, em 1650, D. Francisco Manuel de Melo já
podia acusar a perda de prestígio do instrumento junto às pessoas de melhor qualificação
da cidade, tão baixo descera seu uso na escala social. Em seu tratado de moral doméstica
intitulado Carta de Guia de Casados, ao criticar a novidade do uso, pelas mulheres, de
certas capinhas que não julgava decentes, escrevia o moralista: "e já é tão vulgar o uso das
capinhas, que isso mesmo pudera ser o meu desprezo; podendo-se com mais razão dizer
pelas tais capinhas, o que dizia um pechoso pelas violas, que sendo excelente instrumento,
bastava saberem-no tanger negros e patifes, para que nenhum homem honrado a puzesse
nos peitos"15.
A observação de D. Francisco Manuel de Melo (o pechoso, ou caturro, afinal, devia
ser ele próprio) não deixaria de corresponder à realidade pois, contemporaneamente a
estatísticas de Cristóvão de Oliveira, de 1551, e de João Brandão, de 1552, já existiam em
Lisboa quinze ou dezesseis fabricantes de violas, fora outros dez com "tendas de fazer cordas
de violas"16. E era por certo essa democratização no uso do instrumento que ia permitir entre
1545-1557 o aparecimento, no Auto da Natural Invenção, de Antônio Ribeiro Chiado, de
um ator-personagem negro cantor e tocador de guitarra que era a mesma viola popular.
A própria existência de um ator negro entre os artistas de um grupo especializado em
encenar espetáculos em casas de particulares - moda da época que Chiado com muita
oportunidade tomava para tema de seu auto - não apenas demonstrava a forte presença dos
escravos africanos e seus descendentes crioulos entre as baixas camadas de Lisboa (10% de
negros numa população local de cem mil moradores urbanos em 1551), mas a vulgarização
do emprego da viola como instrumento de diversão pessoal até ao nível social mais ínfimo
dos "negros e patifes".
Logo ao início do auto, ao ordenar a um negro que cedesse a cadeira a que se assentara
enquanto todos os demais trabalhavam na preparação do cenário, o dono da casa descobre

42
não ser ele um qualquer, mas o ator e músico a quem cabia o papel de cantar e tocar
guitarra na peça a ser encenada. A primeira reação do burguês contratador da trupe é de
incredulidade ("Nam creo que sois cantor, / há-mo de jurar o autor. / Isto agora quero ver / e
hei-vos d'ouvir tanger / e mais cantar, meu senhor"), mas ante a confirmação das
habilidades do artista preto decide-se a ouvilo, quando então lhe está reservada outra
surpresa: o negro não aceita o discante (como era então chamado o machete ou cava-
quinho) que o dono da casa lhe oferece, mas responde orgulhosamente que possui sua
própria guitarra.

Dono: Mandai-lhe vir um discante,


que isto hei d’exprimentar.
Negro: Nam, que eu trago aqui guitarra.
Dono: Isto é lançar a barra
mais longe do que eu cuidava. 17

Ao passar da surpresa à admiração, é como se o burguês dono da casa já pudesse concluir,


àquela altura dos meados do século XVI, que alguma coisa de novo e insuspeitado estava
acontecendo em meio às mudanças sociais provocadas nas grandes cidades Pelo recente
modelo econômico baseado no comércio internacional:

Perdoe vossa mercê,


vá-se lá pera as figuras...
Autor, comece a vir
bem se pode o negro ouvir,
inda que cante às escuras.18

A novidade de uma música produzida pela gente do povo da cidades, para atender
às expectativas do lazer urbano, estava nascendo em Portugal de Quinhentos. E, tal como
mais tarde viria a confirmar-se no Brasil, essa música popular surgia como criação das
camadas mais humildes dos negros e brancos pobres das cidades, talvez por isso mesmo
chamados de patifes.

NOTAS

1. Essa conseqüência do advento do individualismo burguês-comercial do século XVI


foi bem captada em 1940 em Portugal por Fernando LopesGraça, que abria o capítulo "A
melodia vocal, a ópera e a oratória" de seu livro Breve Ensaio sobre a Evolução das
Formas Musicais escrevendo: "A forma musical, porém, que mais cabalmente satisfaz as
aspirações individualistas do Renascimento é a melodia vocal, para uma voz a solo com
acompanhamento instrumental" (ob.. ci..., Lisboa, Editorial "Inquérito" Lda. - Cadernos
Inquérito, Série 1, Arte II., 1940, p. 42).
2. Lobo, Antônio de Sousa Silva Costa, História da Sociedade em Portugal no Século
XV e Outros Estudos Históricos, Lisboa, Cooperativa Editora História Crítica, 1979, p. 96.
3. Ibidem, p. 108.
4. É nesse sentido de indivíduos desprovidos de identidade comum, por se confundirem
numa massa heterogênea - fenômeno de fato contemporâneo do adensamento
descontrolado dos grandes centros urbanos do mundo moderno - que se deve entender a
alegoria contida na lenda histórica veiculada por um monge francês do século XVI sobre as dez
mil guitarras portuguesas encontradas em 1578 no campo de luta, na África, após a perdida
batalha de Alcácer Quibír. Segundo frei Filipe de Caverel, secretário do abade Dom Jean
Sarrazim, enviado em 1582 a Lisboa como embaixador dos antigos Estados de Artois,
contava-se ao tempo, para mostrar a paixão dos portugueses pelas guitarras (que eram, na

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verdade, violas simplificadas, geralmente com quatro ordens de cordas metálicas, que se
tocava "rasgado", ou sem dedilhação), "qu'il a esté trouvé és depouilles du camp du Roy
Sebastien, de Portugal, après Ia route, en laquelle il fut deffait par le roy de Fez et de Maroc,
environ dix mille guiteres, chose incroiable, mais à laquelle aucuns donnent couleur, parce
que les Portugais s'embarquans jouoient ordinairement ce refrain: "LOS CASTEILLANOS
MACTAN LOS TOROS, LOS PORTUGAIOS MACTAN LOS MOROS". O número dos instrumentos
achados entre os despojos das tropas portuguesas é certamente exagerado (dos dezessete
mil combatentes pelo menos cinco mil eram mercenários estrangeiros, o que faria supor a
existência de praticamente uma viola para cada soldado português), mas como metáfora a
informação é perfeitamente compreensível: posto que a base das tropas era formada pela
massa dos pobres e mais gente situada à margem da vida econômica organizada das cidades
(incluindo-se alguns tipos de condenados), o episódio vem comprovar apenas a extrema
popularidade desse primeiro instrumento de cordas realmente posto ao alcance das
maiorias urbanas de tipo moderno.
5. Vicente, Gil, Triunfo do Inverno, editado por Marques Braga, Lisboa, Imprensa
Nacional, 1934, pp. 1-2
6. Ibidem, p. 2.
7. ' Ibidem. Em sua nota de esclarecimento dos versos da cantiga do judeu de Aveiro,
o Prof. Marques Braga, responsável pela edição do Triunfo do Inverno para a coleção
Textos de Literatura Portuguesa, do Centro de Estudos Filosóficos, da Junta de Educação
Nacional, cit., comete o equívoco de apontar a Cantiga como de terreiro, quando Gil
Vicente diz o contrário. Ao escrever "He de feyra em concrusam", o autor do Triunfo do
Inverno opunha exatamente a feira (espaço urbano) ao terreiro (espaço rural). A falta das
aspas na citação dos 2° e 3° versos da cantiga do judeu de Aveiro ("terra frida deismelo /
no me negueis mi consuelo") traiu também o alemão Albin Eduard Beau, que em seu
trabalho A Música na Obra de Gil Vicente (Coimbra, Edições "Biblos", 1939) perdeu a
oportunidade de juntar mais este exemplo de canção a seu minucioso levantamento.
8. Ibidem, pp. 2-3.
9. Vicente, Gil, Auto de "Quem tem farelos?", in Antologia do Teatro de Gil
Vicente, introdução e estudo crítico pela professora Cleonice Berardinelli. Rio de janeiro,
Grifo Edições, Instituto Nacional do Livro, 1971, p. 298.
10. Ibidem, p. 300. Com a exclusão das falas do moço Apariço e do próprio
Escudeiro, a sucessão dos versos cantados por Aires Rosado em sua serenata compõe
a seguinte letra em castelhano: "Si dormís, donzella / despertad y abrid. / Que venida
es Ia hora, / si queréis partir. / Si estais descalza // No cureis de vos calzar, / que
muchas agoas / tenéis de pasar... / Agoas d'Alquivir; /que venida es Ia hora, / si
quereis partir."
11. Apud Gontran da Veiga jardim na comunicação "O cantar guaiado dos
sertões goianos", in Boletim da Comissão Fluminense de Folclore, Ano 1, n° 11, Abril,
1970, p. 21. Teófilo Braga pretende encontrar a origem do cantar guaiado nos cantos
celtas, mas tanto em sua História da Poesia Popular Portugueza quanto em seu Parnaso
Português Moderno o faz sem maiores provas de convicção.
12. A idéia de quebra da inteireza ou da unidade de um todo implícita no
sentido da palavra "esfandegado" em inícios do século XVI é claramente expressa na
fala do personagem judeu do Auto dos Dois Ladrões, de Antônio Lisboa, representado
ao tempo do conde de Vimioso (1515-1549). Ao dizer de seu horror pelas pelejas e
matanças, o personagem judeu afirma que o bom é estar longe da cidade, e não ver
"nem arruídos / nem homens mortos feridos / nem oitros esfandegados / que já nem
tenho sentidos / em ver tantos maus recados".
13. O"neologismo" é do próprio Gil Vicente, que no auto do Quem Tem
Farelos? faz dizer a Velha, ao recusar a entrega da filha Isabel ao escudeiro pretendente:
"Nunca a tu hás de levar. / Para bargante rascão, / que não te fartas de pão / e

44
queres musiquiar".
14. A diferença entre a vihuela palaciana hispano-portuguesa e a guitarra popular
das cidades (surgida provavelmente em Lisboa) é bem estabelecida por Ernesto Veiga de
Oliveira no capítulo sobre a viola, de seu livro Instrumentos Populares Portugueses
(Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1982), em que escreve, à p. 183: “A ‘guitarra’,
embora na mesma linha musical da 'vihuela', tinha sem dúvida caráter mais popular do
que esta e, pelo seu tamanho inferior, menor sonoridade, número de cordas e extensão,
não se prestava para a música complexa escrita para aquele erudito instrumento, que
desenhou aqui o papel que na Europa em geral coube ao alaúde (com o qual, de resto,
como dissemos, ela se pode por vários aspectos comparar, e da qual podia utilizar a
tablatura)”
15. Melo, D. Francisco Manuel de, Carta de Guia de Casados, Lisboa, Nova Edição de
Álvaro Pinto -"Ocidente", s/d (1954), p. 83.
16. Brandão, João, Tratado da Magestade, Grandeza e Abastança da Cidade de Lisboa
na Segunda Metade do Século XVI (Estatística de Lisboa de 1552), publicado em separata do
Arquivo Histórico Português, tomo 11°, Lisboa, 1923, p. 211.
17. "Auto da Natural Invenção", in Autos de António Ribeiro Chiado, Rio de janeiro,
Instituto Nacional do Livro, Ministério da Educação e Cultura, edição preparada por
Cleonice Berardinelli e Ronald Nenegaz, Rio de Janeiro 1964, p. 7
18. Idem

PARTE II – BRASIL COLÔNIA

1. CANTIGAS DA VILA, FOLGARES DO CAMPO

Ao estenderem ao Brasil os dispositivos da súmula legislativa que haviam adaptado


internamente a seus interesses sob a forma de Ordenações, os reis de Portugal iam
promover na nova terra não apenas a reedição de sua estrutura político-administrativa, mas
das próprias conseqüências decorrentes da aplicação do modelo: o estreito intercâmbio
entre o rural e o urbano.
Passado o período inicial das feitorias montadas na costa para garantia da exploração
de produtos naturais, e junto às quais surgiram eventualmente, já no período das capitanias,
as primeiras vilas, como a erigida em São Vicente por Martim Afonso de Sousa em 1532, a
coroa portuguesa resolve finalmente em 1549 instalar em Salvador um Governo Geral
para "[...] conservar e nobrecer as capitanias e povoações do Brasil [...]". Com tal decisão,
transferia-se para a colônia a organização municipal baseada no tradicional sistema dos
Conselhos, consagrado nas Ordenações Afonsinas e Manuelinas do século XVI (e no século
XVII reiterado nas Filipinas, a partir de 1603), e o que acontecia em Portugal com suas
"aldeias e desertos" passou a repetir-se também no Brasil: como a economia agrícola era a
predominante, o núcleo urbano dos municípios funcionava, na verdade, apenas como
centro administrativo da área rural 1. E, assim, com as cidades voltando-se
necessariamente para o campo, seria a cultura do campo que iria projetar-se sobre o
espaço das cidades.
A posição de mero complemento do mundo rural de que se revestiram as cidades
brasileiras até a elevação da colônia à posição de vice-reinado em 1763 - quando o ouro e os
diamantes de Minas e Bahia, e a própria ativação do tráfico de escravos, incentivando a
produção de artigos de escambo, conduzem à diversificação dos serviços nos pólos

45
exportadores de Salvador e Rio de Janeiro - constituiu, na verdade, uma conseqüência
necessária do sistema de produção agrícola para o mercado externo. Iniciado o plantio de
cana em alguns pontos do litoral, o sucesso obtido com as facilidades de escoamento do
açúcar produzido em pelo menos dois pontos, Recife e Salvador, ensejou o aparecimento de
núcleos agro-industriais que, à volta de seus engenhos ou máquinas, passaram a formar
unidades econômico-administrativas praticamente independentes. Assim, como os engenhos
se bastavam (funcionavam praticamente em regime de auto-suficiência, envolvendo o
trabalho de centenas de escravos e dezenas de trabalhadores especializados e funcionários),
as vilas e cidades incrustadas nas áreas dos latifúndios canavieiros, ou em portos fluviais e
marítimos, não surgiam para atender a possíveis exigências de abastecimento ou de trocas
de bens regionais, mas constituíam criações do poder real, destinadas a servir-lhe de postos de
representação administrativos e fazendários. Fisicamente essa representação aparecia sob a
forma de construções que, dividindo o espaço público da praça com o poder espiritual
configurado na Igreja, incluíam invariavelmente a Casa da Câmara e Cadeia (conjunto
arquitetônico que ainda abrigava, às vezes, o açougue de privilégio real e mercadinhos para
vendas a retalho) e o pelourinho, símbolo da autoridade e da justiça2.
Ante tais condições, as vilas e cidades dos dois primeiros séculos da colonização,
não tendo como beneficiar-se da riqueza produzida à sua volta pela falta de um mercado
interno - os lucros da exportação ficavam com os produtores, os impostos eram recolhidos
pela coroa-, abrigavam uma população permanente reduzida e pobre, cuja sobrevivência
dependia de pequenas lavouras de subsistência, o que constituía mais uma forma de
subordinar o meio urbano ao modo de vida rural.
As cidades brasileiras, aliás, estavam destinadas por força de tais condições a chegar ao
século XX convivendo, muitas vezes dentro do próprio perímetro urbano, com
características rurais. Tal como oportunamente observou em sua Contribuição ao Estudo
da Evolução Urbana do Brasil (1500-1720) o arquiteto e sociólogo Goulart Reis Filho, o
fato de os núcleos dedicados à agro-indústria destinada à exportação não garantirem
de forma permanente o abastecimento urbano (quando os preços no mercado
internacional se tornavam atraentes toda a mão-de-obra era mobilizada para o aumento
da produção, com prejuízo da agricultura de subsistência), "os habitantes das povoações
procuravam fugir a esses condicionamentos, por meio de recursos próprios de
subsistência"3.
Entre esses recursos estava o do cultivo de hortas e da criação (principalmente de
aves) nos quintais das casas na própria cidade e, no caso dos moradores mais abastados, a
construção de casas em chácaras na periferia, que funcionavam "como prolongamento das
habitações urbanas propriamente ditas, para as quais enviavam os produtos de subsistência
quando necessário"4.
Essa característica das cidades dos dois primeiros séculos de vida colonial iria
determinar, no plano cultural, o estabelecimento de uma particularidade destinada a tornar-
se uma marca da evolução das atividades e criações destinadas ao lazer urbano no Brasil:
a coexistência de manifestações típicas das cidades sempre ligadas às elites, e de formas
populares de diversão invariavelmente derivadas da tradição rural.
A comprovação histórica dessa afirmação pode ser feita com o simples levantamento de
informações sobre a vida urbana no Brasil, encontradas em documentos da época ou
dispersas nas crônicas ou memórias deixadas por contemporâneos.
Uma informação documental sobre os primeiros sons produzidos pelos descobridores
portugueses já na terra do Brasil consta da própria carta escrita do porto seguro de Vera
Cruz pelo escrivão Pero Vaz de Caminha em 1° de Maio de 1500, dando conta do
achamento ao rei D. Manuel. Segundo Caminha, no quinto dia após a chegada, ou seja, no
domingo, 25 de Abril, o capitão foi com uma equipe até perto da praia de onde os índios lhe
acenavam e, satisfeita a curiosidade - conforme escrevia -, "viemo-nos às naus, a comer,
tangendo trombetas e gaitas, sem mais os constranger"5.

46
Mais tarde, ainda nesse domingo, resolveram descer em terra para tomar conhecimento
de um rio que ali desaguava, "mas também para folgarmos" e, então, um antigo almoxarife
de Santarém chamado Diogo Dias, por "ser homem gracioso e de prazer", resolveu
atravessar o rio para o lado em que se encontravam os índios: "E levou consigo um gaiteiro
nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles
folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita." 6
Ora, como desde logo se observa, excetuado o uso eventual das trombetas - o tubo
longo de metal afunilado, e próprio para toques solenes ou marciais, o que restringe seu
uso -, o instrumento usado pelos marujos portugueses em seu divertimento com os naturais
da terra foi a gaita, que era então o mais popular instrumento da gente do campo em
Portugal. E como a indicar que a maioria dos tripulantes das naus e dos que saíam para a
aventura do mar era gente das regiões rurais então em decadência, o outro instrumento
musical citado logo adiante na carta de Caminha seria exatamente o segundo mais
encontrado, ao lado da gaita galega, entre o povo português: o tamboril.
"Nesse dia enquanto ali andavam [os índios], dançaram e bailaram sempre com os
nossos, ao som de um tamboril nosso, como se fossem mais amigos nossos do que nós
seus.”7
Assim, posto que, além desses sons particulares do mundo rural, o único tipo de
música citada na carta de Pero Vaz de Caminha foi a dos cantos religiosos com que todos os
presentes acompanharam a cruz a ser erguida no local da primeira missa rezada na terra
descoberta ("E com os religiosos e sacerdotes que cantavam, à frente, fomos trazendo-a dali,
a modo de procissão"), pode dizer-se que aí estariam indicados os dois gêneros musicais
que, de fato, iriam prevalecer no primeiro século da descoberta: o rural português na área
dos sons profano-populares, e o erudito da Igreja na das minorias responsáveis pelo poder
civil e religioso.
Realmente, segundo revela a correspondência dos padres jesuítas desde a sua
chegada à Bahia em 1549, até praticamente ao fim do século - quando os documentos
inquisitoriais da "Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil" entremostram um
pouco da vida social de 1591 a 1593 - toda a atividade musical ligada à catequese dos índios
oscila entre esses dois pólos das danças e cantos coletivos populares para o folgar, e dos
hinos e cantos eruditos da Igreja Católica (à base de cantochão e órgão) para os atos
solenes rituais ou de estímulo à devoção religiosa.
Embora certos cantos devotos pudessem às vezes soar quase como cantigas das
cidades, como a cantada por um Francisco Carneiro no batel que conduzia em janeiro de
1550 os sete órfãos de Lisboa e os mais padres da Companhia de Jesus à nau de partida
para o Brasil,

Os mandamentos de Deus
que avemos de guardar
dados pelo Rey dos ceos
pera todos nos salvar.8

e eventualmente alguns outros se prendessem às comemorações do ciclo natalino, onde


havia um quê de festividade profana, tal como nos versos de reis cantados pelos
mesmos órfãos na antevéspera da partida de Lisboa,

Gran Senhor Nos há nacido


Humano e mais divino 9

a verdade é que a semelhança entre a tradição de canto e dança tribal dos naturais da
terra e a dos campos portugueses, caracterizadas ambas pela participação coletiva, iria
determinar a opção dos padres por esta forma, inclusive porque efetivamente era a que

47
melhor se enquadrava aos propósitos da catequese e evangelização em massa.
Em carta escrita da Bahia em 5 de Agosto de 1552 pelo padre Francisco Pires em nome
dos meninos órfãos enviados ao Brasil para atrair à Igreja os meninos índios 10, pediam os
missivistas ao padre reitor em Lisboa lhes mandasse "algunos instrumentos para que acá
tañamos (imbiando algunos niños que sepan tañer), como son flautas, y gaitas, y nésperas
['son instrumentos', como está anotado à margem da carta], y unas vergas de yerro con
unas argollitas dentro, Ias quales tañen da[n]do con un yerro en Ia verga; y un par de panderos
y sonajas". Ao que acrescentava o padre Pires, sempre escrevendo em nome dos órfãos:
"Si viniesse algún tamborilero y gaitero acá, parézeme que no haveria Principal [chefe
indígena] no diese sus hijos para que los enseñassen."11
A excelência dos efeitos da música européia na atração dos indígenas normalmente
arredios era conhecida dos padres jesuítas desde a sua chegada, e já em longa carta datada
de 9 de Agosto de 1549 da Bahia o próprio provincial da Companhia de Jesus no Brasil,
padre Manoel da Nóbrega, ao descrever para o provincial de Lisboa a Festa do Anjo
Custódio, realizada em Salvador a 21 de julho daquele ano, podia registrar:
"Fizemos precissão com grande música, a que respondiam as trombetas. Ficaram os
índios espantados de tal maneira, que depois pediam ao Pe. Navarro que lhes cantasse
assim como na precissão fazia." 12
O espanto dos índios não terá sido menor do que haviam experimentado um mês
antes quando, segundo ainda o mesmo padre Nóbrega, se realizou a procissão de Corpus
Christi pelas ruas enfeitadas com ramos de árvores, incluindo todas as suas "danças e
invenções alegoricas à maneira de Portugal" 13. É que, tal como faz observar o tradutor e
anotador das cartas, padre Serafim Leite, em pé de página esclarecedor, essa procissão de
Corpus Christi - certamente a mais popular e mais espetacular de Portugal - incluía
verdadeiras alas (no estilo das modernas escolas de samba), pois entre as tais "danças e
invenções" havia "mouriscas, danças, coros, músicas, bandeiras, representações
figuradas, folias, etc" 14
Essas folias a que se refere o tradutor das cartas dos jesuítas, aliás, eram desfiles
dançantes típicos da área rural, onde o grupo de folgazões precisa percorrer grandes
distâncias para chegar ao local da festa (tal como acontece até hoje em muitos pontos do
interior do Brasil com folias de Reis que se deslocam numa área de vários quilômetros,
cumprindo jornadas), e constituíram a primeira concessão dos jesuítas ao natural desejo de
diversão mais livre dos devotos. Segundo observaria ainda Serafim Leite, os primeiros
contatos com os índios foram propiciados exatamente pela "música de caráter exclusivamente
popular no gênero de folia", ao que acrescentava, para não deixar dúvida quanto à origem
profana da criação: "Folia a que se não deve atribuir nenhum caráter religioso, mas de simples
e honesta diversão popular" 15
E, assim, graças a essa intromissão do popular dentro das manifestações religiosas (já
tradicional em Portugal tanto nas procissões teatralizadas das cidades quanto nas festas
religiosas do campo), quando em 1583 se realizou na aldeia do Espírito Santo, em
Abrantes, a festa de recepção ao padre Cristóvão de Gouveia, o espetáculo oferecido ao
viajante foi a encenação de um auto pastoril, ao ar livre, que permitia aos atores
apresentar "uma dança de escudos à portuguesa, fazendo muitos trocados [figurações
coreográficas] e dançando ao som da viola, pandeiro e tamboril e frauta, e juntamente
representavam um breve diálogo, cantando algumas cantigas pastoris". 16
Segundo o mesmo responsável por essa informação, o padre Fernão Cardim, que
escrevia na qualidade de cronista encarregado da "narrativa epistolar" da viagem
liderada pelo padre visitador Cristóvão de Gouveia, o Natal já era comemorado naquele
primeiro século da descoberta à maneira das províncias portuguesas, ou seja, com
armação de presépios nas povoações, a que a gente de toda a redondeza acorria para
louvar o Deus Menino com cantos e danças. E isso se comprova quando Fernão Cardim, ao
descrever a comemoração do Natal de 1583 na Bahia (onde o navio da missão ficara

48
retido por falta de ventos, vindo do Espírito Santo com destino a Pernambuco), anota
em seu registro: "Tivemos pelo natal um devoto presépio na povoação, onde algumas vezes
nos ajuntávamos com boa e devota música, e o irmão Barnabé nos alegrava com o seu
berimbau"17.
O padre Barnabé Telo, espanhol da zona serrana da Andaluzia (era de Jaem, à margem
esquerda do rio Guadalquivir, onde os costumes religiosos se pareciam muito com os do
mundo rural português), devia ser pessoalmente grande folião pois, em Dezembro do ano
seguinte, 1584, ainda integrando a comitiva do provincial em sua visita ao Rio de janeiro,
promoveu a adoração do presépio alegremente, no melhor estilo popular. E o registro de
Fernão Cardim não deixa dúvida:
"Neste colégio tivemos o Natal com um presépio muito devoto, que fazia esquecer os
de Portugal [ou seja, que se mostrava superior aos da Metrópole]: e também cá N. Senhor
dá as mesmas consolações e avantajadas. O irmão Barnabé Telo fez a lapa, e à noite nos
alegrava com o seu berimbau.” 18
Era o início, no Brasil, das tradições herdeiras dos antigos autos hieráticos da Igreja
medieval que, transformados depois nos vilancicos natalinos tão cultivados com seus cantos
e danças durante o século XVII, acabariam reaparecendo no Nordeste, já no século XIX, sob
os nomes de presépios e pastoris, e com seu caráter dramático transformado no esquema
mais simples da divisão das pastoras em cordões (um azul e outro encarnado), para o
duelo de danças ao som de loas. A mesma herança popular das dramatizações festivas, do
nascimento de Cristo (iniciadas talvez por S. Francisco de Assis no início do século XIII, como
concluem alguns autores 19), e que da Bahia para o Sul estavam destinadas a originar os
ternos e ranchos de Reis, até sua paganização definitiva no Rio de Janeiro de fins do século
XIX, onde se transformariam nos ranchos de Carnaval, cuja estrutura passaria, afinal, com
suas alegorias e enredos, às escolas de samba 20.
Se, porém, em seu relacionamento secular ou leigo com os indígenas e a própria
sociedade colonial, os jesuítas se mostraram tão inteligentemente abertos (a ponto de o
padre José de Anchieta criar novas letras de assunto pio para "cantigas profanas que
andavam em uso" 21), essas concessões à cultura dos naturais da terra ou ao gosto popular
dos europeus colonizadores estavam absolutamente fora de caso quando se tratava do ritual
religioso nas igrejas. Mesmo a intromissão costumeira de alguns velhos costumes medievais,
que permitia a participação do povo em certas partes da liturgia, foi combatida pelo
próprio Anchieta (seu biógrafo Simão de Vasconcelos chegando a salientar o "zelo com que
procurava evitar na Igreja atos profanos"), e a regra foi sempre a da formação própria de
músicos. Músicos, aliás, que deveriam demonstrar-se capazes de executar o erudito
repertório universal aprovado pela Igreja romana, mesmo quando os recrutados para esse
mister fossem índios convertidos, ainda não bem desligados de sua cultura primitiva. E sobre
isso revelava o biógrafo de Anchieta, padre Simão de Vasconcelos:
"É muito para louvar a Deus, ver nesta gente o cuidado com que já cristãos acodem a
celebrar as festas e os ofícios divinos. São afeiçoadíssimos à música e, os que são escolhidos
dos padres para cantores da Igreja, prezam-se muito do ofício e gastam os dias e as noites
em aprender. Saem destros em instrumentos músicos, charamelas, flautas, trombetas,
baixões, cornetas e fagotes; com eles beneficiam, em canto de órgão, vésperas, completas,
missas, procissões tão solenes como entre os portugueses."22
O resultado dessa orientação universalista, em meio à pobre realidade da sociedade
colonial, foi, inevitavelmente, o isolamento cultural-musical da Igreja que, assim, para
manter a pureza do seu ritual, renunciou à perspectiva de enriquecimento pela troca de
signos sonoros com os indígenas (cuja paixão pela música eles próprios, padres, comprovavam
e enalteciam), ou de maior aproximação com o repertório dos colonizadores brancos. A estes,
por isso - embora presos também aos modelos da música européia adotados pelo Estado nas
ocasiões oficiais -, ia caber afinal o papel de aproveitar a oportunidade a que a Igreja
renunciava, através da incorporação da rítmica africana na progressiva criação de formas de

49
canto e dança de caráter ao mesmo tempo original, local e nacional23.
De fato, apesar de o padre Serafim Leite afirmar em sua notícia sobre "A Música nas
Primeiras Escolas do Brasil" que os padres toleravam nos teatros e nos bailados cantigas
profanas, desde que não "ofendesse a religião ou os bons costumes", acrescentando que
"muitas seriam de letras líricas, de ritmo espontâneo e puro, à maneira das que um Padre
pôs na boca do principal da Aldeia do Espírito Santo em 1560"24, tais cantigas não seriam
certamente próprias para a interpretação profana (como mais tarde viria a acontecer com
as modernas canções urbanas) por estarem sempre ligadas aos enredos e circunstâncias
dos espetáculos para as quais eram compostas.
É de se supor, pois - admitindo como lógico que os portugueses integrados na vida colonial
não deixariam de aproveitar o repertório musical trazido de suas regiões de origem -, ter
havido ainda no século XVI paralelamente a esses cantos coletivos profanos rurais tolerados
pelos jesuítas, e aos cantos religioso-eruditos das igrejas, um tipo de cantiga urbana
semelhante àquela cultivada em Portugal pelos escudeiros retratados nos autos vicentinos.
Algumas informações sobre a existência dessas cantigas a solo, favorecidas pela
proliferação das guitarras ou violas como instrumento acompanhante, são de fato
encontradas no que viria a constituir o melhor (e quase único) repositório de informações
sobre o quotidiano da vida nas cidades coloniais de fins do século XVI: os papéis resultantes
das visitações do Santo Ofício da Inquisição "às partes do Brasil".
A mais antiga referência expressa a versos cantados pelo personagem de uma comédia
encenada em 1580 ou 1581 na matriz de Olinda, por ocasião da festa do Santíssimo
Sacramento, aparece nas Denunciações de Pernambuco, de 1593, confirmando desde logo a
ligação da viola com a canção citadina. Em denúncia apresentada perante o visitador do Santo
Ofício, Heitor Furtado de Mendonça, em 5 de Novembro de 1593, o tabelião olindense
João da Rosa declarou saber pelo irmão, Antônio da Rosa, que "cantando-se hum dia
perante Bento Teixeira cristão novo mestre de moços de leer e screver nesta villa a cantiga
seguinte, trino sollo, e uno, uno solo e trino, no es otro alguno, sino Dios devino, ho ditto
Bento Teixeira dixera que esta proposição era falsa" 25.
Pois, ao averiguar-se esta denúncia seis meses depois, o próprio cantor da música,
Antônio da Rosa, não apenas confirmou o episódio, mas esclareceu ter acontecido o fato
quando ele ensaiava a composição acompanhando-se à viola:
"perguntado que cantiga he huã que falla em - trino solo e uno Dios Devino -, e perante
quem a cantou ella que lha reprovasse ou o que he que disto sabe, disse elle que avera treze ou
quatorze annos [1580 ou 1581, considerada a data do depoimento, 14 de Junho de 1594]
que avendo elle de entrar por figura [quer dizer, como ator] em huã comédia que se fazia
na igreja matris do Santíssimo Sacramento tinha elle huã trova pera cantar na violla da
maneira seguinte: - trino solo y uno, uno solo y trino, no es otro alguno, sino Dios Devino,-e
que estãodo elle então hum dia pella menhaã nesta villa em casa do mestre da capella
Manoel Chaveiro que então morava no fundo da rua da Ladeira da matris ensavandosse
e pondo na violla a ditta cantiga cantando a pera se adestrar nella se achou presente alli
com elle Paulo Abreu que tambem aprendia que ora dizem ser defuncto morador em
Igarassu, e assim mais se achou presente Bento Teixeira cristão novo, mestre de insignar
moços a ler e escreveer, morador nesta Capitania e estando assim todos tres soos
cantando elle testemunha a ditta cantiga na viola lhe disse o ditto Bento Texeira as palavras
seguintes, Não está boa, e que não lhe lembra que mais falassem, nem repetissem, nem
altercassem sobre isto palavra outra nenhua [...]"26
Como o comentário "Não está boa" soasse ambíguo para o inquisidor, por não
indicar se se referia à qualidade da música ou ao mérito da letra, que reafirmava o dogma da
Santíssima Trindade (a união de três pessoas distintas - Pai, Filho, Espírito Santo - num só
Deus), Antônio da Rosa saiu-se com elegância e inteligência dizendo, sem acusar o
investigado, que aquela reprovação não poderia ser a interpretação nem a música, porque
ele se julgava pessoalmente bom músico e bom cantor:

50
"e por não dizer mais foi perguntado se entende elle que o ditto Bento Teixeira diria
as dittas palavras, dizendo que não estava boa a letra nem o sentido della, respondeo
que quanto he acerca da solfa nem da toada não podia o ditto Bento Teixeira dizer que
não estava boa porque allem do ditto Bento Teixeira não saber solfa, elle testemunha era
bom músico e cantava bem, mas que se o ditto Bento Teixeira dixe a ditta palavra que não
estava boa entendendo pella letra ou pela verdade della elle testemunha o não sabe porque
não o declarou como já tem ditto" 27.
O segundo exemplo mais antigo da existência de cantiga não apenas profana, mas até
mesmo de irreverência julgada herética pela Inquisição, é fornecido ainda pelos papéis da
primeira visitação "às partes do Brasil" realizada na Bahia de 1591 a 1593. Convidado a
denunciar tudo o que soubesse ser praticado contra a Fé e a Igreja, o vigário português da
Igreja de São Lourenço, no limite do Camaragibe (então Pernambuco, depois Alagoas), con-
tava a 8 de Outubro de 1591 em Salvador que, "avera três annos" (ou seja, por volta de 1588),
estando ele em Olinda, ouviu um cristão-novo de nome João Dias "cantando esta cantiga

corramos um touro
ai ta valga Dio
contando que não toque
en mi filo Jacob” 28.

Segundo esclarecia o vigário denunciante, constava que esse João Dias, então lavrador
na região de Camaragibe, já viera de Lisboa degradado pela Inquisição como judeu
praticante, e em Pernambuco se revelara tão descuidado com o segredo em torno dos
rituais proibidos praticados na época ("descobria as cousas dos cristãos novos e lhes
chamava judeus"), que a única forma de contê-lo era dá-lo como doido e prendê-lo em
casa, com correntes nos pés, como se fazia com os loucos de verdade. E fora exatamente
numa dessas ocasiões que o padre Francisco Pinto, de visita à casa do comerciante de trigo
Jorge Fernandes da Pederneira - que também era cristão-novo, vira "ao dito Joam Diaz
estar com huns grilhois nos peis" cantando a tal cantiga, aliás registrada com
imperfeição pelo escrivão inquisidor, pois ao que tudo indica constituiria a quadrinha:

corramos hum touro


asi te valga Dio
contando que não toque
em mi fijo Jacob.

Embora os dois exemplos de cantigas quinhentistas registradas nos livros da Primeira


Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil se refiram a Pernambuco, a existência do mesmo
tipo de canções típicas da gente citadina deveria ser freqüente também no segundo maior
centro do Brasil colonial daquele final do século XVI, que era a capital da Bahia e seu
Recôncavo. E, apesar da falta de documentos expressos, uma indicação segura disso estaria
na crítica à sociedade baiana branca de 1585 - cujos dez mil componentes, dentro da
relatividade do conceito de cidade do tempo, deviam compor afinal os grupos mais
próximos do que se poderia chamar de gente urbana - feita pelo jesuíta padre Anchieta, ao
escrever sua Informação da Bahia com visível irritação:
"Os estudantes desta terra, além de serem poucos (as aulas de ler, escrever e contar,
segundo o próprio Anchieta, tinham "até setenta rapazes filhos dos Portugueses"), também sabem
pouco, por falta dos engenhos e não estudarem com cuidado, nem a terra dá de si (quer dizer,
nem o ambiente local convida a isso) por ser relaxada, remissa e melancolica, e tudo se leva em
festas, cantar e folgar."29
A observação de Anchieta sobre o tipo de elite colonial que começava a surgir na Bahia
com a proliferação dos engenhos por toda a região de massapé que bordava o Recôncavo

51
(apenas um, de 1557 a 1558; vários em 1560, segundo carta do jesuíta Rui Pereira;
dezesseis em 1572, conforme Pêro de Magalhães de Gândavo; trinta e seis contados por
Fernão Cardim e Gabriel Soares em 1584, e cinqüenta já entre 1612 e 1626, quando se
escreveu o Livro Que Dá Razão ao Estado do Brasil) ia ser confirmada na segunda metade
do século XVII na poesia satírica atribuída à mais curiosa e rica figura de homem de letras,
músico popular e tocador de viola boêmio do seiscentismo colonial, o baiano formado em
Leis por Coimbra Gregório de Matos Guerra.

NOTAS

1.Essa realidade é resumida por Nestor Goulart Reis Filho em seu livro Contribuição ao
Estudo da Evolução Urbana do Brasil (1500-1720), ao escrever: "A economia colonial esteve,
até meados do segundo século, baseada quase que exclusivamente na agricultura de
exportação. Foi essa a atividade econômica que deu melhores resultados sob a forma de agro-
indústria do açúcar e em função dela organizaram-se as demais. A ela ficaria subordinada a
economia urbana, cujas condições iniciais seriam extremamente modestas" (São Paulo,
Livraria Pioneira Editora - Editora da Universidade de São Paulo, s/d [1968], p. 38).
2. Sobre a presença tradicional do conjunto das Casas de Câmara e Cadeia na
paisagem urbana brasileira, ver a tese de Paulo Thedim Barreto para concurso de
provimento da cadeira de Arquitetura da Universidade do Brasil, publicada sob o título
"Casas de Câmara e Cadeia", in Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº
11, Rio de janeiro, Ministério da Educação e Saúde, 1947, pp. 9-195.
3. Reis Filho, Nestor Goulart, Contribuição ao Estudo da Evolução Urbana do Brasil
(1500-1720), São Paulo, Livraria Pioneira Editora - Editora da Universidade de São Paulo,
s/d [1968], p. 95.
4. Ibidem, p. 95. A existência de chácaras urbanas produtoras de vegetais e legumes
para os moradores da vizinhança chegou em centros importantes como a própria capital
brasileira do Rio de janeiro até a década de 1940. O autor do presente livro, menino criado
no bairro carioca de Botafogo, na zona sul carioca, é testemunha da existência, ainda em
inícios da década de 1950, de uma área cultivada por família de imigrantes portugueses, e
que se estendia desde os fundos do Colégio Ottati, da Rua Marquês de Olinda, até a altura
dos fundos das casas voltadas para a Rua Bambina. O local era conhecido nas proximidades
como "a chácara", e o acesso ao terreno oculto aos trauseuntes pela linha de prédios era
feito por uma passagem de serviço com entrada pela Rua Bambina. Além dessas chácaras
urbanas chegaram também ao século XX os estábulos para a venda de leite de vaca
diretamente aos consumidores dos bairros, e que no Rio de janeiro só desapareceram após
a proibição oficial em 1932.
5. “Carta de Pero Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel", conforme transcrição em
apêndice sob a indicação "Documentos" no vol. 1 da História Administrativa do Brasil, Rio de
janeiro, Departamento Administrativo do Serviço Público - Serviço de Documentação, 1956,
p. 250.
6. Ibidem, p. 252.
7 Ibidem, p. 256.
8. "Carta de P. Pero Domenechi aos Padres e Irmãos de Coimbra-Lisboa 27 de janeiro
de 1550", in Cartas dos Primeiros jesuítas do Brasil, traduzidas por Serafim Leite S. J., São
Paulo, Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954, vol. 1, p. 173.
9. Ibidem, p. 172. Segundo descrição do padre Domenechi, os meninos cantavam
esses versos ao saírem do Colégio dos órfãos de Lisboa em procissão pelas ruas, a caminho
do porto de Belém.
10. Uma prova de que o envio do grupo de meninos alunos do Colégio dos órfãos de
Lisboa, inaugurado em Agosto de 1549, obedecia a uma estratégia de ação ideológica, com
fins práticos, estava na elaboração pelo padre reitor Pero Domenechi, em 1550, de um folheto

52
sob o título "Avisos de como os proues órfãos de Iesu se hão de auer nas peregrinações &
romarias que fizerem. E outras doctrinas & considerações mui proueitosas & necessarias.
Feitos pelo reuerendo padre Pero domeneco Reytor delles". 8° 50 ff. In f. 1v grau.: Jesus
Crucificado. cc. 1550. Talvez impresso em Lisboa por João Barreira e João Álvares. A indicação
é do padre Serafim Leite em nota ao pé das pp. 378-9 do vol. 1 de Cartas dos Primeiros
jesuítas do Brasil, cit.
11. "Carta dos Meninos órfãos [Escrita pelo padre Francisco Pires]. Ao P. Pero
Domenechi, Lisboa. Bahia 5 de agosto de 1552", in Cartas dos Primeiros jesuítas do Brasil,
vol. 1, cit., pp. 3 83-4.
12. "Do P. Manuel da Nobrega ao P. Simão Rodrigues, Lisboa. Bahia 9 de agosto de
1549", in Cartas dos Primeiros. Jesuítas do Brasil, vol. 1, cit., p. 129.
13. "Do P. Manuel da Nóbrega ao P. Simão Rodrigues, Lisboa. Bahia 9 de agosto de
1549", in obra e volume citados, p. 129.
14. Nota n° 26 de Serafim Leite ao pé da p. 129 do vol. 1 das Cartas dos Primeiros
jesuítas, cit.
15. Leite, Serafim, "A música nas primeiras escolas do Brasil", in revista Brotéria, vol.
XLIV, Fasc. 4, Lisboa, 1947, p. 382.
16. Cardam, Fernão, Tratados da Terra e Gente do Brasil, 2' ed., São Paulo, Ed.
Nacional, 1939 (Série Brasiliana, 168), p. 258.
17. Ibidem p. 267. O instrumento tocado pelo padre Barnabé Telo era o berimbau de
boca, muito difundido em toda a Europa.
18. Ibidem, p. 305
19. Em sua notícia sobre essa "primeira expressão de teatro popular no nordeste
brasileiro, notadamente em Pernambuco", publicada sob o título "Presépios e pastoris", in
revista Arquivos números 1-2, da Prefeitura Municipal do Recife, 1943, o poeta Ascenso
Ferreira lembrava: "O atual pastoril, como se observa em todos os comentadores do assunto,
desde Frei Luís de Souza até Pereira da Costa, com escala por Jaboatão, Antônio Joaquim
de Meio, Lopes Gama, Meio Moraes Filho e Teófilo Braga, começou com uma representação
ao vivo do nascimento do Divino Redentor, sendo atribuída a primeira iniciativa nesse sentido
a São Francisco de Assis, em Greciaom, no ano de 1223." (Ob. cit, pp. 137-48.)
20. Sobre a origem das escolas de samba e sua dívida para com a estrutura pré-
existente dos ranchos herdeiros dos autos do ciclo natalino, ver os livros do autor Música
Popular - Um Tema em Debate (3a ed., Editora 34, São Paulo, 1997) e Pequena História da
Música Popular - Da Modinha ao Tropicalismo.
21. A informação é do padre Simão de Vasconcelos, que em sua Vida do Venerável
Padre José de Anchieta (Rio de janeiro, Imprensa Nacional - Instituto Nacional do Livro, 2
vols., 1943) escreve, referindo-se às habilidades do catequista: "Em quatro línguas era destro:
na portuguesa, castelhana, latina e brasílica, em todas elas traduziu em romances pios ou seja,
em letras de teor religioso, com muita graça e delicadeza, as cantigas profanas que andavam
em uso, com fruto das almas; porque deixadas as lascivas, não se ouvia pelos caminhos
outra cousa senão cantigas ao divino, convidados a isso os entendimentos do doce metro de
José" (Ob. cit., vol. 1, p. 34). Em comentário sobre a música dos jesuítas no Brasil o padre
Serafim Leite, ao lamentar a falta de documentos musicais escrevia, à p. 63 de seu livro Artes
e Ofícios dos Jesuítas no Brasil (1549-1760), Lisboa - Rio de Janeiro, 1953: "Vimos que
antes da chegada do P. Pires da Grã em 1553 já estavam generalizadas orações e cantigas
musicadas em língua portuguesa e tupi. Que é feito dessas cantigas que andavam nos
cadernos pessoais dos Padres e Irmãos do Brasil, como instrumento necessário de atração e
catequese?".
22. Vasconcelos, Simão de, Vida do Venerável Padre José de Anchieta, cit., vol. 1, p.
172.
23. Este isolamento da música da Igreja Católica no Brasil é virtualmente confessado pelo
próprio historiador da ação dos jesuítas no período colonial, padre Serafim Leite, quando em

53
seu resumo "A Música nas Primeiras Escolas do Brasil" conclui: "Guardadas as proporções, os
jesuítas do Brasil acompanharam o movimento de seus irmãos da Europa. A música não
constava diretamente de seu programa de ensino, nem a Companhia se formou no grande
movimento contemplativo medieval em que o esplendor do culto era, como o coro, o centro
da vida religiosa (...] A música e os cantos entraram na sua vida como subsídio ativo, útil
no ensino das Letras e das Ciências e na pregação da Fé" (In revista Brotéria, cit., p. 389).
24. Leite, Serafim, "A Música nas Primeiras Escolas do Brasil", in re vista
Brotéria, cit., p. 385.
25. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil - Denunciações e
Confissões de Pernambuco 1593-1595, 1a ed. conjunta, fac-símile das edições de 1929
"Denunciações de Pernambuco 1593-1595", e de 1970 "Confissões de Pernambuco 1594-
1595", editadas por José Antônio Gonsalves de Mello, Recife, Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, Fundação do Património Histórico e Artístico de Pernambuco -
FUNDARPE, 1984, pp. 42-3.
26. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil - Denunciações e
Confissões de Pernambuco 1593-1595, cit., p. 292.
27. Ibidem.
28.Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil - Denunciações e
Confissões da Bahia 1591-1593, São Paulo, Editor Paulo Prado - Tiragem 500 exemplares,
1925, p. 522
29. Informações e Fragmentos Históricos do Padre Joseph de Anchieta, S.J. (1584-
1586), Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1896, p. 37

[SÉCULO XVII]

2. GREGÓRIO DE MATOS: GLOSA EM CANTIGAS NO RECÔNCAVO BAIANO

Na vasta coleção de versos apógrafos a esse crítico de costumes e desabrido forjador


de ironias e sarcasmos Gregório de Matos Guerra, a quem chamariam Boca do Inferno,
projetam-se de forma viva, como imagens em movimento numa tela, centenas de situações
e episódios engraçados ou escatológicos da vida da cidade de Salvador e de outros centros
urbano-rurais do Recôncavo. Embora, é bem verdade, tudo mostrado segundo o ponto de
vista contraditório do filho da elite branca local, levado por imperativo do temperamento
a viver os últimos dez anos da sua fase madura envolvido em pagodeiras e aventuras sexuais
com a gente negra e mestiça (principalmente prostitutas) que preconceituosamente
desprezava.
De volta à Bahia em 1682 ou 1683 1 (saíra em 1650 pelos seus quinze anos, para
estudar em Coimbra) para desempenhar inicialmente a função de tesoureiro do arcebispado,
Gregório de Matos casa-se com uma viúva, perde o cargo, tenta a advocacia e, já em 1684,
inicia andanças boêmias pelos engenhos do Recôncavo baiano, cujos proprietários o
abrigavam naturalmente atraídos por suas qualidades de compositor de coplas e romances
- que acompanhava na viola "que por suas curiosas mãos fizera de cabaço"2 - e ainda de
cantor, pois chegaria a merecer do contemporâneo Gonçalo Soares da Fonseca a décima:

Com tanto primor cantais,


com tanta graca tangeis,
que as potências suspendeis,

54
e os sentidos elevais:
de ambas sortes admirais,
suspendido o brabo Eolo;
mas eu vos digo sem dolo,
que de mui pouco se admira,
pois tocais de Orfeu a lira,
e a pluma tendes de Apolo.3

A leitura das mais de seiscentas composições em versos que compõem o Códice Manuel
Pereira Rabelo permite, de fato, depreender que Gregório de Matos, com suas coplas e
romances compostos a propósito de fatos do dia-a-dia da sua vida, se incluía na mesma
categoria dos filhos das camadas da elite branco mestiça destinadas a inaugurar novas formas
de viver urbano (e que paradoxalmente criticava), como ele próprio percebia e registrava ao
referir-se à forma pela qual as famílias baianas educavam seus "morgadinhos":

Criam-nos com liberdade


nos jogos como nos vícios,
permitindo-lhes, que saibam
tanger guitarra, e machinho.4

Em seu caso pessoal Gregório de Matos não apenas continuava a tradição daqueles
desocupados escudeiros "trovadores" quinhentistas, cultivadores de romances acompanhados
à viola, mas entregava-se já à glosa de quadras e estribilhos de cantigas populares do tempo
sob a forma de décimas (tão comuns duzentos anos depois em Portugal, com o advento da
moda dos "fados" na segunda metade do século XIX), ao desenvolvimento de motes
visivelmente fornecidos por frases populares (como o “Ó meu pai, tu quês, que eu morra?"), e
a composição de coplas para canto de despedidas ("Despedida em cantigas amorosas que fez a
huma dama que se ausentava"), estilo que viria a ganhar no século XVIII a forma de gênero de
canto sob o nome de "cantigas em despedidas"5.
De entre as modalidades de versos cantados, o poeta-músico Gregório de Matos cultivava
predominantemente, ao lado das glosas e cantigas, copias e chansonetas, os romances que lhe
permitiam contar, no estilo popular-tradicional das redondilhas maiores, ora fatos engraçados
ora acontecimentos variados, sempre com fundo de acompanhamento à viola. E nessa sua
preferência por esta forma de canto falado - acompanhado por certo no melhor estilo
monódico vindo do século anterior - o poeta chegaria inclusive ao inconveniente de pretender
cantar em versos a tristeza de uma "dama, que estava no interior de sua casal enojada pela
morte de sua mãe", o que provocou a indignação desta:

Agastaste-vos deveras,
vendo que ali se tangia
em uma casa enojada
tão enlutada, e sentida.

A essa reação mais do que natural o poeta reagiria acusando a ofendida de exagerada,
para concluir com uma meia desculpa que não escondia uma censura:

Já não hei de cantar mais,


nem que o mande a minha amiga,
chorarei vossa dureza,
chorarei minha mofina.6

A variedade e quantidade dos romances (alguns com estribilho, versos sobre motes e décimas

55
cantadas, somadas às glosas, cantigas e chulas, bem como as liras e chansonetas
declaradamente compostas para serem cantadas com acompanhamento da viola), indica, afinal
- a exemplo do que viria a acontecer depois com os versos de Domingos Caldas Barbosa enfeixados
nos dois volumes da Viola de Lereno nos séculos XVIII e XIX -, que também a obra de Gregório
de Matos Guerra deveria ser estudada quase toda não como obra poética mas como versos de
música popular urbana. A prova disso estaria no fato de, de entre as mais de seiscentas
composições em versos recolhidas como do poeta em Portugal, na Bahia, em Angola e,
finalmente, em Pernambuco (onde morreu em 1695), apenas duzentas e sete constituem
sonetos, que era o gênero poético dominante na época, e cuja forma não convidava à
música.
Apreciado sob este ângulo de poeta-compositor urbano pioneiro, em pleno século XVII -
mas não certamente o único, uma vez que a documentação histórica salvaria o nome de pelo
menos outro autor-cantor-tocador de viola contemporâneo, o padre mulato baiano Lourenço
Ribeiro, embora mais ligado este aos salões da elite7 -, Gregório de Matos oferece em seus
versos (sem importar o que lhe possa ser indevidamente atribuído) as mais claras indicações de
que o processo de urbanização da capital da colônia já começava a gerar condições para o
aparecimento de tais tipos de artistas criadores.
Pelo que se depreende de muitas das situações e episódios descritos em versos pelo poeta, a
popularidade da canção a solo começava a revelar talentos citadinos como o cantor Silva Arião
("Pois o Silva Arião da nossa foz! Dessas sereias músicas no mar / suspende os cantos e emudece a
voz"), o também cantor e tocador de viola Chico Ferreira (parceiro de farras de Gregório de
Matos, a quem, segundo o licenciado Rabelo, chamava "seu mestre de solfa, porque com ele
cantava às vezes") e ainda um certo Gil, assim referido por Gregório ao descrever uma "jornada
que fez ao Rio Vermelho":

Assim fomos caminhando


sobre os dous cavalos áscuas
alegres como nas páscoas,
ora rindo, ora zombando:
eu que estava perguntando
pela viola, ou rabil,
quando ouvimos bradar Gil,
que recostado à guitarra
garganteava a bandarra
letrilhas de mil em mil.8

No caso do próprio Gregório de Matos, a variedade mesma dos gêneros de canto


acompanhado, por ele cultivados, faz supor que tocasse sua viola com certa desenvoltura, o
que parece ficar comprovado pelo conteúdo de algumas imagens, expressas sob a forma de
trocadilhos, nos versos em que recusa a uma amante o presente de uns sapatos no valor de um
cruzado:

Um cruzado pede o homem,


Anica, pelos sapatos,
mas eu ponho isso à viola
na postura do cruzado:
Diz, que são de sete pontos,
mas como eu tanjo rasgado,
nem nesses pontos me meto,
nem me tiro desses tratos.
Inda assim se eu não soubera
o como tens trastejado

56
na banza dos meus sentidos
pondo-me a viola em cacos:
O cruzado pagaria,
já que foi tão desgraçado,
que buli com a escaravelha,
e toquei sobre o buraco.
Porém como já conheço,
que o teu instrumento é baixo,
e são tão falsas as cordas,
que quebram a cada passo,
Não te rasgo, nem ponteio
nem te ato, nem desato,
que pelo tom que me tanges,
pelo mesmo tom te danço.
Busca a outro temperilhos,
que eu já estou destemperado [...]9

De saída Gregório de Matos informa sua disposição de responder ao pedido à viola,


cantando "na postura do cruzado", ou seja, na forma de versos em que o significado
resultaria do cruzamento do duplo sentido das palavras. E é o que realmente faz, através de
uma engenhosa manipulação da significação das palavras pois, ao afirmar desde logo que
nada tem a ver o tamanho dos sapatos (que eram medidos por pontos), alega não tocar a viola
por pontos, ou de forma dedilhada, mas pelo processo popular de ferir as cordas todas
de uma vez, que era o chamado toque rasgado. Por essa razão, além de não se meter com
pontos, dizia não se importar com pormenores - "nem me tiro desses trastos" -, o que era
referência às marcações no braço do instrumento, sobre as quais se aperta a corda para
variar os tons. Isso permitia-lhe continuar a cruzar o sentido das palavras informando a
amante que, apesar de tudo, talvez lhe desse o cruzado para os sapatos se ela não tivesse
trastejado, ou perturbado sua harmonia de espírito ("o como tens trastejado / na banza dos
meu sentidos" 10), perturbando-lhe a rotina da vida ("pondo-me a viola em cacos"). Sempre
cruzando os diferentes sentidos das palavras, o poeta reconhecia ter-se aproveitado
sexualmente de Anica, não apenas com titilações no bico dos seios (comparada com a crave-
lha, a pequena cabeça de madeira que se torce para esticar as cordas do instrumento),
mas até tocando-lhe o buraco (que tanto tem no corpo a mulher quanto a viola). Gregório
excluía porém a possibilidade de atender ao pedido da mulher alegando que, além de baixo
(desafinado por defeito), seu instrumento sexual se revelara frouxo como se tivera "falsas as
cordas / que quebram a cada passo". E, assim, concluía que, por todas as razões apontadas,
não desejava mais qualquer novo contato sexual-musical com Anica ("não te rasgo, nem
ponteio"), resolvendo dar-se como pago da recusa do dinheiro, pelo que não recebera em gozos
("que pelo tom que tanges, / pelo mesmo tom te danço"), e recomendando-lhe que
procurasse afinar-se com outro ("busca a outro temperilhos"), pois de sua parte sentia-se
incapaz ("que eu já estou destemperado / estou para me rasgar") [...].
É de crer, pois, ante tal demonstração de conhecimentos de particularidades da música
(ao menos no que se referia ao manejo da viola), que Gregório de Matos usasse essas suas
habilidades na criação, não apenas de composições pessoais, mas no aproveitamento, sob a
forma de glosas, de cantigas postas em voga no seu tempo, para valer-se da popularidade de
suas melodias.
Em termos de contribuição à história das origens da música das cidades no Brasil, aliás,
essa preocupação parodística sob a forma de glosas, aproveitando quadras ou versos
isolados a título de motes, para elaboração de décimas destinadas ao canto com
acompanhamento de sua viola, confere a Gregório de Matos o papel de informante da
mais alta importância.

57
Assim, através do poeta - neste ponto ajudado pelas indicações do contemporâneo
recolhedor de sua obra, o licenciado Manuel Pereira Rabelo - ficamos sabendo que as
composições de poucos versos (geralmente quadras), até hoje denominadas genericamente
de chulas, receberam esse nome por constituírem, na verdade, chularias postas em curso pelos
chulos, ou seja, a gente da mais baixa condição social. E essa denominação de gente chula para
os componentes das camadas mais humildes já trazia implícito o preconceito de classe ante a
própria escolha do termo, pois, ao que tudo indica, o étimo dessa palavra estaria no cigano-
espanhol chul-ló ou chul-li que, através do castelhano chulo daria em português não
apenas o depreciativo chulo, mas o desagradável chulé. 11
Essa atribuição do termo chulo para designar as cantigas dos chulos evidenciava-se
naquele final do século XVIII pela forma como o licenciado Rabelo, ao citar "humas cantigas
que costumavam cantar os chulos naquelle tempo", se referia a elas como "chularias que se
usavam naquelle tempo". Como se verifica, à época de Gregório de Matos ainda não se havia
substantivado no novo termo a qualidade de coisa chula, que era representada apenas pelo
substantivo feminino chularia, sinônimo de chulice, mas não há dúvida de que os motes do
"Meu Deus, que será de mim?" ou do "Banguê, que será de ti?", embora assim representados
apenas por esses versos isolados, deveriam ser de cantigas tão populares entre as camadas
mais baixas da Bahia, que de coisa de gente chula iam passar a chulas.
A chula baseada no mote "Banguê, que será de ti?", aliás, parece indicar a exploração
do tema do destino do homem após -a morte (além do "que será de ti?" o verso fala no
banguê, que era a rede ou padiola em que se conduzia ao túmulo os corpos dos escravos
e dos miseráveis), o que viria a confirma, assim, cem anos depois, o pessimismo detectado por
Gil Vicente ao distinguir nas cantigas representativas da nova sociedade urbana "o som
lamentado /carregado de fadigas". E o fato de a chula do "Banguê, que será de ti?" não ser
cantiga alegre era o próprio poeta quem o confirmava, ao fazer o Demônio - que em sua glosa
em décimas mantinha duelo cantado com a Alma - convidar as gentes a não temerem as
tentações e a aproveitar os prazeres da vida dizendo:

Demónio: Como assim na flor dos anos


colhes o fruto amargoso?
não vês, que todo o penoso
é causa de muitos danos?
deixa, deixa desenganos,
segue os deleites, que aqui
te ofereço: porque ali
os mais, que cantando vão,
dizem na triste canção,
Banguê, que será de ti?12

Em todo o caso se, no fundo, a chula baseada na especulação em torno do destino do


homem após a morte expressa pela idéia do "ó tu, que aí vais para o túmulo no banguê, o
que será de ti?", não deixaria de convidar também otimisticamente os viventes a
aproveitarem a vida com alegria, pois o mesmo Demônio fazia observar em outra décima,
ao espicaçar os temerosos do pecado:

Demónio: Todo o cantar alivia,


e todo o folgar alegra
toda a branca, parda e negra
tem sua hora de folia:
só tu, na melancolia
tens alívio? canta aqui,
e torna a cantar ali,

58
que desse modo o praticam,
os que alegres pronosticam,
Banguê, que será de ti? 13

Quer dizer, já que se havia de morrer de qualquer forma, ao menos que se vivesse mais
descuidosamente, porque o contrário seria o experimentar dois infernos, um durante a vida,
outro depois da morte:

Demónio: Se não segues meus enganos,


e meus deleites não segues,
temo, que nunca sossegues
no florido dos teus anos:
vê, como vivem ufanos
os descuidados de si,
canta, baila, folga, e ri,
pois os que não se alegraram
dois infernos militaram
Banguê, que será de ti? 14

Nessa glosa em que faz o diabo contrapor argumentos hedonistas ao ascetismo


pregado pela alma cristã para alcançar o céu (as falas da Alma terminavam sempre com a
variante cristã do mote "Meu Deus, que será de mim?"), Gregório de Matos deixava clara a
razão da implicância sempre demonstrada pela Inquisição contra o "profano das modas": o
perigo das letras abrigarem heresias, tornando-se assim "mal soante de conceitos", como
no século XVIII definiria o moralista Nuno Marques Pereira em sua obra O Peregrino da
América.
O temor da Igreja, aliás, ainda mais se justificava ao considerar-se que a sugestão
não-ortodoxa desses "tonos ao humano" - como chamavam às cantigas das loas -
permanecia viva durante gerações, dada a persistência no tempo do repertório da música
urbana da época. Uma comprovação disso estaria em que, ao escrever pela segunda década de
Setecentos contra as violações à moral católico-cristã o seu denunciador Compendio
Narrativo do Peregrino da América, o baiano Nuno Marques Pereira citava entre as cantigas
reprováveis de seu tempo uma já conhecida de Gregório de Matos, cinqüenta anos antes.
Das três cantigas populares apontadas por Nuno Marques Pereira como "desonestas" e
portanto perigosas -"porque o mesmo é cantar, que contar" -, duas eram citadas apenas
pelo que tinham de ofensivas a preceitos religiosos [a primeira o estribilho "Oh diabo! ", a
segunda o praguejo "Berra a tua alma" 15], mas a terceira envolvia um conceito mais refinado
de heresia, uma vez que punha em dúvida a justeza dos próprios desígnios do Criador, ao
tentar discutir a transitoriedade da vida através da indignação "Para que nasceste, rosa / se
tão depressa acabaste?".
Nuno Marques Pereira lembra os dois primeiros versos do "tono, que se usava naquele
tempo" - "Para que nasceste, Rosa / se tão depressa acabaste?" - para ilustrar o caso do
castigo divino a um João Furtado, "famoso músico e grande tocador de viola destas modas
profanas, assistente na freguesia de Nossa Senhora do Socorro, no Recôncavo da cidade da
Bahia", que teria morrido após interpretar a herética cantiga. E embora deixasse impreciso
o "naquele tempo", pela citação se ficaria sabendo que suas lembranças moralistas da
segunda década do século XVIII remontavam aos fins do século anterior, uma vez que os versos
do "Para que nasceste rosa?" já figuravam na quadra tomada como mote por Gregório de
Matos para uma glosa em décimas:

Para que nasceste, rosa,


se tão depressa acabaste,

59
nasces na manhã triunfante,
morres despojo da tarde.16

A preocupação da igreja e dos educadores e moralistas católicos com a pureza de


sua doutrina, como era o caso do leigo Nuno Marques Pereira, estava em que os versos das
canções urbanas herdeiras de rua dos antigos trovares palacianos estavam fazendo
recrudescer o desrespeito a uma antiga proibição religiosa da Idade Média, que incluía a
sedução pelos "cantares vãos" na categoria dos "pecados das orelhas" 17. Acostumadas ao
controle (aliás nunca tranqüilo, como se verifica pela proliferação das penitências) do
comportamento de sua freguesia (os paroquianos eram filhos da Igreja ou filiis Eclesiae, de
onde freguês), as autoridades eclesiásticas viam como um desvio - desde logo atribuído à ação
do Demônio - a crescente atração dos moradores das cidades pelas letras de cantigas que não
apenas se imiscuíam em temas da Doutrina Sagrada, mas valiam por verdadeiros convites às
aproximações amorosas consideradas lascivas. E essa preocupação era tal que se dava o
próprio Demônio como compositor e tocador de viola, tal como fazia o mesmo Nuno
Marques Pereira, aliás apoiado em autores da Igreja:
"Porém, eu me persuado, que a maior parte destas modas lhas ensina o Demônio;
porque é ele grande Poeta, contrapontista músico e tocador de viola e sabe inventar modas
profanas, para as ensinar àqueles que não temem a Deus. Conta o Padre Bento Remígio no
seu livro Prática Moral de Curas e Confissões (página 9) e no outro livro intitulado Deus
Momo, que entrando o Demônio em uma mulher rústica, foi um Sacerdote a fazer-lhe os
exorcismos de uma igreja, e entrando-lhe a curiosidade perguntou ao Demônio o que sabia?
Respondeu-lhe, que era músico. E logo lhe mandou vir uma viola, e de tal maneira a tocou, e
com tanta destreza, que parecia ser tocada por um famoso tocador.”18
Pelo que demonstram certas imagens encontradas em versos cantados por Gregório de
Matos Guerra, a preocupação dos responsáveis pela preservação da boa moral não deixava
de ter muitas vezes o seu fundamento, como seria o caso de sua glosa a uma cantiga popular
daquele fim dos anos de Seiscentos que, desde logo, ao tomar como mote, o poeta ajudava a
salvar do esquecimento:

Pobre de ti, borboleta,


imitação do meu mal,
que em chegando ao fogo morres,
porque morres por chegar. 19

Abrasado de desejos por uma mulata prostituta chamada Bárbora, que por qualquer
motivo consentia a dar-se a todos, menos a ele, Gregório de Matos aproveita a sugestão
do tema da cantiga - o destino das mariposas noturnas, que atraídas pelas luzes do fogo se
apressam a correr para elas, pagando com a morte o preço da ilusão - e elabora em décimas
sobre cada um dos versos da quadra uma requintada confissão amorosa, repleta de se-
gundas intenções. A luz ou fogo a que se vai referir em sua glosa é o desejo sexual, e
quando escreve que a essa chama a mulher "morre por chegar", estará querendo dizer
que ela se apressa, louca de desejo, na ansiedade de entregar-se por volúpia a essa
espécie de morte que o orgasmo provoca. Toda a construção da glosa constitui, realmente,
um verdadeiro achado criativo pois, sendo o nome da moça Bárbora, o poeta aproveita a
semelhança sonora com borboleta para chamá-la Barboleta, o que ajuda a aproximar
ainda mais a imagem do inseto que morre pela atração da chama ao da mulher que se
apressa ("morre" de pressa) em atirar-se ao fogo do sexo para chegar ao prazer: "porque
morres por chegar". Aliás, essa chave para a compreensão da glosa a cantiga-mote "Pobre
de ti, borboleta", é fornecida pelo compilador dos versos, licenciado Rabelo, ao consignar
em sua didascália o fato de Gregório de Matos não esconder ele mesmo sua clara motivação
sexual: "Esta cantiga acomoda o poeta com proporção a Bárbora, pelo nome e trato, não

60
deixando de fora os seus amantes desejos".

Mote

Pobre de ti, Barboleta,


imitação do meu mal,
que em chegando ao fogo morres,
porque morres, por chegar.

Glosa

Passeias em giro a chama


simples Barboleta, em hora,
que se a chama te enamora,
teu mesmo estrago te chama:
se o seu precipício ama,
quem o seu mal inquieta,
e tu simples, e indiscreta
tens por formosura grata
luz, que traidora te mata,
Pobre de ti, Barboleta.

Ou tu imitas meu ser,


ou eu tua natureza,
pois na luz de uma beleza,
ando ardendo por arder:
se à luz, que vejo acender,
te arrojas tão cega, e tal,
que imitas ao natural,
com que arder por ti me vês,
me obrigas a dizer,
que és Imitação do meu mal.

És, Barboleta, comua


pois a tôda luz te botas,
e eu cego, se bem o notas,
sou só, Barboleta, tua:
qualquer segue a estréia sua,
mas tu melhor te socorres,
quando em fogo algum te torres,
porque eu nunca ao fogo chego,
e tu logras tal sossêgo,
Que em chegando ao fogo morres
Tu mais feliz, ao que entendo,
inda que percas a vida,
porque a dá por bem perdida,
quem vive de andar morrendo:
eu não morro, e o pretendo,
porque falta a meu pesar
a fortuna de acabar:
tu morres, e tu sossegas,
e vais morta, quando cegas,

61
Porque morres por chegar. 20

Graças não apenas a essa sua qualidade de autor de versos feitos para cantar à viola mas
também devido à sua condição de participante e animador de jornadas ou passeios boêmios a
pontos pitorescos afastados da cidade (como era o caso do Rio Vermelho, à época), e em que
o espírito dos excursionistas era o da bandarra, ou seja, o da vadiação alegre, Gregório de
Matos viria a contribuir ademais, em muitos de seus versos, com informações únicas sobre os
mais diferentes tipos de diversões e danças da gente dos primeiros núcleos de vida urbana do
Brasil. Núcleos estes, por sinal, ainda estreitamente ligados à área rural não apenas pela
proximidade dos limites, mas pela sobrevivência, na própria cidade, de roças, granjas, chácaras,
hortas de quintal e até de engenhos, como era o caso do existente entre o perímetro urbano e a
península de Itapagipe21.
Em uma "segunda função que teve com alguns sujeytos na roça de hum amigo junto ao
dique" - conforme anota o licenciado Rabelo - o poeta tomaria conhecimento por aquela
segunda metade do século XVII de uma dança que então devia estar sendo introduzida na
Bahia, pois o tom expresso nos versos é de surpresa ante a novidade do som julgado
"excelente":

Cantou-se galhardamente
tais solos que eu disse, ô
que canta o pássaro só,
e os mais gritam na semente:
tocou-se um som excelente,
que Arromba lhe vi chamar.
Saiu Temudo a bailar,
e Pedro [irmão do poeta], que é folgazão
bailou com pé, e com mão,
e o cu sempre no lugar. 22

Tal como a boa interpretação dos primeiros versos indica, Gregório de Matos
começa por um protesto contra o fato de os músicos participantes do passeio estarem
entoando apenas cantigas a solo, o que deixava os demais na condição passiva de meros
ouvintes ("que canta o pássaro só, / e os mais gritam na semente"). Passa-se então às danças
com a novidade do arromba, na coreogràfia da qual o poeta aponta desde logo a novidade
de vê-la dançada sem movimento dos quadris, quando o rebolado de influência negro-africana
já era característica das danças populares da época:

Pasmei eu da habilidade
tão nova, tão elegante,
porque o cu sempre é dançante
nos bailes desta cidade23

Entre as outras danças cultivadas não apenas nos "bailes desta cidade", ou seja, da área da
capital, Salvador, mas dos distritos e vilas existentes nas áreas agro-industriais dos engenhos,
Gregório de Matos ia referir-se ainda ao gandu (que viu dançar no distrito de Pernamirim,
junto ao engenho do Recôncavo figurado no mapa levantado por Wanderley de Pinho como
Perna Mirim) - "eu tenho grande desejo de / ver bailar o gandu", o que não deixava de ser
curioso, pois uma dança com esse nome iria aparecer citada no século seguinte em Portugal pelo
também satírico frei Lucas de Santa Catarina em um de seus folhetos de cordel da série
Anatómico jocoso:
"Junto à Cruz (referência a um velho cruzeiro de Lisboa, ainda existente em 1753
na esquina da Rua de São Bento, no bairro do mesmo nome), andavão os mochilas

62
(empregados domésticos) ao socairo (à solta?) com o seu gandum por pontos." 24
E considerando que esse gandum português oitocentista, sendo dança das classes baixas
de Lisboa, em grande parte formadas por negros e mestiços (o próprio autor do folheto
afirma que na "função eu vi mulato, que de cantar a amorosa [gênero de cantiga da
época], sem tomar folgo, esteve com a cadêa na mão"), é bem o caso de imaginar se não
seria a mesma dança do gandu baiano citado por Gregório de Matos, o que anteciparia o
intercâmbio de influências coreográfico-musicais comprovadamente verificado entre o Brasil
e Portugal no século XVIII.
Infelizmente, para o melhor conhecimento das particularidades em torno das
primeiras danças urbanas, nem Gregório de Matos na Bahia, nem frei Lucas de Santa
Catarina em Portugal fornecem no caso do gandu quaisquer pormenores sobre seu ritmo ou
coreografia, mas em outras passagens o satírico baiano se revelaria mais informativo, como ao
referir-se em uma chansoneta à existência de uma dança chamada paturi:

Ao som de uma guitarrilha,


que tocava um colomim [curumim, menino índio]
vi bailar na Água Brusca
As Mulatas do Brasil:
Que bem bailam as Mulatas,
que bem bailam o Paturi!

Não usam de castanhetas,


por que cos dedos gentis
fazem tal estropeada,
que de ouvi-las me estrugi:
Que bem bailam as Mulatas,
que bem bailam o Paturi. 25

Pela descrição dessa dança de mulatas (que em Seiscentos começavam a formar o


contingente das mestiças forras e livres destinadas no século seguinte a ter um peso tão
grande na conformação étnico-psicológica da maioria das baixas camadas sociais, até a
classe média), Gregório de Matos faz saber que por aquela década de 1680-1690 já se
dançava na área popular castanholando com os dedos. Ora, se a essa característica do
estalar de dedos própria do fandango ibérico, aqui apontada no paturi, se somar outra
indicação fornecida pelo próprio poeta, sobre umbigadas vistas em festas de pardos de
Salvador em homenagem a Nossa Senhora do Amparo ("e como sobre o moinho / levou tantas
embigadas [...]), pode concluir-se já existirem em seu tempo – embora isoladamente os dois
elementos que, reunidos, fariam no século XVII surgir o lundu.
Essa impressão, aliás, é reforçada por outros pormenores que Gregório de Matos ajunta
ainda à sua descrição da "jocozidade, com que as mulatas do Brasil baylão o paturi".
Assim, quando dedos das dançadeiras, acrescenta o detalhe:

Atadas pelas virilhas


cuma cinta carmesim,
de ver tão grandes barrigas
lhe tremiam os quadris.
Que bem bailam as Mulatas
que bem bailam o Paturi. 26

Ora, quando se recorda que, menos de um século depois dessa descrição de


Gregório de Matos na Bahia, o poeta Tomás Antônio Gonzaga descreveria em suas Cartas
Chilenas como, em Minas "a ligeira mulata em trajes de homem, dança o quente lundum

63
e o vil batuque", compreende-se, afinal, a razão do pormenor coreográfico que então
aponta, ao completar a cena da "moça que levanta a saia / e voando na ponta dos dedinhos, /
pega no machacaz de quem mais gosta, / a lasciva umbigada, abrindo os braços":

Ó dança venturosa! Tu entravas


nas humildes choupanas, onde as negras,
aonde as vis mulatas, apertando
por baixo do bandulho a larga cinta,
te honravam com os marotos e brejeiros,
batendo sobre o chão o pé descalço.27

Era esse gesto ostensivo de apertar "por baixo do bandulho a larga cinta" que Gregório
de Matos apontava como um recurso usado pelas mulatas para ganhar liberdade de
movimento, ao mostrá-las "atadas pelas virilhas, cuma cinta carmesim", o que ia explicar,
aos olhos de Gonzaga, o fato de aparecer "a ligeira mulata, em trajes de homem": é que,
como os escravos negros vestiam costumeiramente calções de algodão amarrados à cintura
com um cordel ou faixa de pano, de forma a manter as bainhas pela altura das canelas,
quando as mulatas se atavam pelas virilhas (isto é, passavam a cinta por baixo das pernas,
puxando a saia para cima, dividida em duas metades), pareceria de fato que usavam calções.

NOTAS

1. Seguimos na cronologia do poeta as datas fixadas por Fernando da Rocha Peres em


seu trabalho Gregório de Matos Guerra: Uma Re-Visão . Biográfica, Salvador, Edição
Macunaíma, 1983, por ter-se este autor baseado apenas em documentos de época, alguns
dos quais pela primeira vez revelados após pesquisas realizadas em arquivos da Bahia e de
Portugal.
2. Informação do recompilador da obra do poeta, licenciado Manuel Pereira Rabelo,
na notícia sobre o autor intitulada "Vida do excelente poeta lírico, o doutor Gregório de
Matos Guerra" com que abre o códice que leva seu nome (desde 1962 em poder do Prof.
Celso Cunha), e o qual serviu de base à edição das Obras Completas de Gregório de Matos,
em sete volumes, promovida por James Amado (Salvador, Editora Janaína Limitada, 1969). O
texto de Manuel Pereira Rabelo aparece reproduzido no volume VII desta edição, das pp.
1689-1721.
3. Apud Manuel Pereira Rabelo, "Vida do excelente poeta lírico, o doutor Gregório
de Matos Guerra", in Obras Completas de Gregório de Matos, cit.. vol. VII, p. 1710.
4. Obras Completas de Gregório de Matos, ed. cit., vol. 1, p. 20.
5. O autor possui em sua coleção de folhetos de cordel oitocentistas uma Relaçam /
Curiosa de Várias / Cantiguas Em Despedidas, / Da Corte Para O Dezerto (sem indicação de
editor e sem data, mas graficamente identificável como da segunda metade do século XVIII),
que comprova a existência do gênero. Bastaria comparar-se a quadra de Gregório de Matos
na sua "Despedida em Cantigas Amorosas" - "Adeus de mim muito amada / Prenda, que me
dais mil dores, / como mais não hei de ver-vos, / adeus, adeus, meus amores," -com a quadra
também final da "Cantiga em Despedidas da Corte Para o Dezerto": "Adeus Corte já me vou /
Para o Dezerto viver, / Por amor de huma tirana / Tanto me faz padecer". Ao deixar a Bahia
em 1694 deportado para Angola, aliás, o próprio Gregório de Matos voltaria ao gênero pois,
segundo a didascália esclarecedora do licenciado Rabelo, "Embarca já o poeta para o seu
degredo, e postos os olhos na sua ingrata pátria lhe canta desde o mar as despedidas", a
forma que encontrou para isso foi um romance que terminava com a quadra: "Adeus praia,
adeus Cidade, / e agora me deverás, i Velhaca dar adeus, / a quem devo ao demo dar".
6. Obras Completas de Gregório de Matos, cit., vol III, p. 750.
7. A informação sobre o padre Lourenço Ribeiro (a que, por sinal, Gregório de

64
Matos satirizava preconceituosamente por ser mulato) é encontrada no "Resumo
cronológico e noticioso da Bahia, desde o seu descobrimento em 1500", de José Álvares
do Amaral (in Revista do Instituto Geográfico e Histórico, Bahia, vol. 28, 1921-1922),
em que o autor registra: "O padre Lourenço Ribeiro, além de aplaudido orador sacro
era excelente cantor de modinhas [impropriedade de José Álvares do Amaral, uma vez
que a modinha ainda não existia no século XVIII, que improvisava ao som da viola, a lira
daqueles tempos. Por isso era muito festejado quando se fazia ouvir nos salões da
melhor sociedade da época. Das suas composições poéticas a tradição não gardou uma
só estrofe” (Ob. Cit., p.232).
8. Obras Completas de Gregérioo de Matos, cit., vol II, p.585. “Letrilha” ´r
espanholismo com significado de copla, cantiga.
9. Obras Completas de Gregório de Matos, cit., vol. VI, pp. 1452-3.
10. Banza é instrumento musical de origem africana (do quimbundo mbanza)
conhecido em Portugal desde pelo menos o século XVI, já com a caixa redonda que viria a
caracterizá-lo com o nome de banjo, conforme se vê por xilogravura que ilustra a capa do
folheto do Auto da Natural Inven ção de Ribeiro Chiado, anterior a 1549. Segundo H. Capello
e R. Ivens em seu De Benguela às Terras de Iácca, banza é também "designação usada em
Cassanje indistintamente para os sobas e suas aldeias" (nota ao pé da p. 285), mas precedido
do prefixo cu em língua bunda compõe o verbo cu-banza, pensar, certamente no sentido
definido pelo dicionarista Moraes de "pasmar de pena e mágoa". Gregório de Matos, como
se vê, usou a palavra nos dois significados mais conhecidos em Portugal e no Brasil, ou seja,
como instrumento musical ("o como tens trastejado [...]) e de pensamento aéreo ("[...] na
banza dos meus sentidos").
11. A origem hispano-cigana do termo é sugerida por Aurélio Buarque de Holanda em
seu Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de 1975, em suas definições das palavras chulé
(que liga ao substantivo chulo) e chula (que dá como feminino substantivado do mesmo
chulo). Chulo, por sua vez, o Prof. Aurélio registra como derivado do espanhol chulo. Em
Portugal da primeira metade do século XVIII chulas eram as mulheres da classe baixa de
Lisboa conhecidas por sua desenvoltura pessoal, e que vendiam frutas e castanhas assadas.
Segundo frei Lucas de Santa Catarina em sua crítica aos tipos femininos do tempo, publicada
na série Anatómico jocoso sob o título de "Totina femea /Universal dispozição para o trato
feminino, e molheril adorno", a chula seria encontrada "em algum canto da rua Direita das
portas de Santa Caterina a vender castanhas, assadas e cozidas, com seu fugareiro, e assador,
e estará sempre rodeada de moxilas, e lacaios".
12. Obras Completas de Gregório de Matos, cit., vol. 1, p. 56.
13. Ibidem, p. 55
14. Ibidem, p. 54.
15. Pereira, Nuno Marques, Compendio Narrativo do Peregrino da America em que se
tratam vários discursos espirituaes, e moraes, com muitas advertências, e documentos
contra os abusos que se achão introduzidos, pela malícia diabolica, no Estado do Brasil. Lisboa,
Na Officina de Manuel Fernandes da Costa, Armo de MDCCXXVIII. As citações são da 6a edição,
completada com a 2' parte até então inédita, Rio de janeiro, Publicações da Academia
Brasileira de Letras, 1939. O repertório da música urbana já chamava a atenção pelo
número das composições nessas primeiras décadas do século XVIII, pois ao citar o caso da
cantiga que termina "Berra a tua alma", escrevia Nuno Marques Pereira: "Outras muitas
músicas desonestas tenho ouvido cantar; como é uma moda que se usou, e ainda hoje se
canta, e acaba dizendo `Berra a tua alma'. Parece que quem tal canta e folga de ouvir cantar,
já estão anunciando o como lhes há de vir a suceder quando forem ao inferno, chorando e
berrando, pelas profanas músicas com que nesta vida pecaram e foram causa de fazerem
pecar a muitos. Mas agradeçam-me estes taes a boa vontade: que eu fôra Ministro da
Justiça, ou tivera poder sobre eles, eu os fizera cantar e berrar ao som dos golpes de um

65
verdugo pelas ruas publicas, para seu castigo e emenda dos mais, que de tais modas usam.
E veriam então se lhes valia o Demonio, por quem chamam" (Ob. cit., vol. 1, p. 217).
16. Obras Completas de Gregório de Matos, cit., vol. IV, pp. 1003-4.
17. O "pecado das orelhas" era incluído entre os sujeitos à penitência, conforme se
pode verificar pelo arrolamento transcrito por Mário Martins in "O penitencia) de Martim
Perez, em medievo-português", publicado no tomo II de Lusitana Sacra, pp. 57-110.
18. ta Pereira, Nuno Marques, Compendio Narrativo do Peregrino da ca...,rica..., cit., vol.
1, p. 216.
19. Obras Completas de Gregório de Matos, cit., vol. III, p. 756. Na edição que
seguimos, de responsabilidade de James Amado, o último verso é citado com erro evidente
do editor ou do próprio manuscrito reproduzido: `porque morrer, por chegar". A décima
que glosa este último verso da quarinha popular mostra ser o correto "porque morres por
chegar".
20. Ibidem, pp. 756-757. Como se vê, o poeta figura sua desejada Bárbora como
ingênua borboleta a girar em torno à luz de seus amores eventuais, sem perceber que essa
mesma chama do prazer que a atrai a leva à perdição. E ao comportar-se assim como quem,
sujeito a uma inquietação, se deixasse atrair exatamente por seu lado mau, não há dúvida
que acharia bela a luz que atraía para a matar. Daí o remata com o primeiro verso da
quadra: "Pose de ti, Barboleta". Na segunda décima sugere o poeta que, ao deixar-se evar
impensadamente pelos que a atraíam, Bárbora-borboleta o imita (pois da mesma forma se
sente atraído por ela), e também se parece com ele, pois que se atira cegamente, com
outros, ao mesmo ardor do desejo "com que arder por ti me vês". E isso leva-o a concluir
com o segundo verso da quadra: "Imitação do meu mal". Na terceira décima o poeta
mostra Barboleta em sua condição de mulher de todos (comua), enquanto ele, cego a
outras luzes, só a ela deseja. Outra seria sensível a essa fidelidade, mas Bárbora preferia
darse a outros, sempre sem pensar em exclusividade, o que afinal valia por uma
vantagem sobre ele: "porque eu nunca ao fogo chego" (quer dizer, não chego a
possuir-te), "mas tu logras tal sossego" (isto é, tens tal sorte), "Que em chegando ao fogo
morres" (que gozas com qualquer um). Na quarta e última décima reafirma que Bárbora é
de fato mais feliz que ele pois, como se vê, mesmo sabendo-se perdida, dava-se por bem
perdida contanto que continuasse a gozar, enquanto ele não tinha a mesma sorte. E o
poeta concluía que era afinal na destruição pessoal a que cegamente se votava que
Bárbora parecia encontrar a sua realização ("tu morres, e tu sossegas"), uma vez que só
pensava em gozar: "Porque morres por chegar".
21. Ver mapa com a situação exata de trinta e um engenhos de Salvador e seu
Recôncavo recenseados por Wanderley Pinto, publicado sob a indicação "O Recôncavo
em 1630", in História Social da Cidade do Salvador, tomo I- Aspectos da História Social
da Cidade 1549-1650, Salvador, Publicação da Prefeitura Municipal do Salvador
Comemorativa do IV Centenário de Fundação da Cidade, 1968, entre as pp. 264 -5.
22. Obras Completas de Gregório de Matos, cit., vol. III, p. 591
23. Ibidem.
24. Anatómico Jocoso..., tomo primeiro, Lisboa, Na Oficina do Dou tor Manuel
Alvarez Solano, 1555, p. 278. O autor, frei Lucas de Santa Catarina, escondia-se sob o
pseudônimo de frei Francisco Rey de Abreu Marta Zeferino.
25. Obras Completas de Gregório de Matos, cit., vol. III, p. 581.
26. Ibidem, pp. 581-582.
27. Gonzaga, Tomás Antônio, Cartas Chilenas, volume Poesia das Obras
Completas de Tomás Antônio Gonzagas, Rio de Janeiro, Intituto Nacional do Livro,
1957, p. 295.

66
SEPP, Padre Antônio. Viagem às missões jesuíticas e trabalhos apostólicos. São Paulo:
Editora Itatiaia Limitada. P. 131 – 249.

CAPÍTULO VIII
DE COMO ESTÃO ORGANIZADAS AS ALDEIAS DOS ÍNDIOS CONVERTIDOS

As aldeias, como disse, estão quase todas localizadas no alto dos barrancos dos rios
muito piscosos Uruguai ou Paraná e contam com setecentas, oitocentas e novecentas, e
muitas até, com mais de mil famílias ou moradias. Sobre família se entende: Pai e mãe, filha e
filhos, e mais seus filhos. Assim, cada aldeia conta com seis a oito mil e mais almas, conta
fraca, porque os índios são muito férteis.
Cada aldeia tem junto à igreja um logradouro amplo e muito bonito, de 400 pés de
comprimento e a mesma largura. As casas formam ruas largas, como nas cidades européias,
mas são de construções diferentes: São muito baixas, não têm assoalho de madeira, mas os
índios moram no chão descoberto. Os muros não são de pedra, mas de terra, que é socada. Os
telhados são cobertos de palha, com exceção de alguns poucos, que, faz pouco tempo,
cobrimos de telhas queimadas. As casas não têm janelas nem chaminés, estão o dia todo
cheias de fumaça e por isso todo pretas. Quando visito meus doentes, o que costumo fazer
diariamente, quase me asfixío de tanta fumaça. Faz pouco, meus olhos tanto me doeram, uns
catorze dias seguidos, ardendo e lacrimejando, que cheguei a temer perdesse a vista.
E dentro da casa - onde está a saleta? Onde o dormitório, a cozinha, adega, dispensa,
e onde o pão na dispensa, e onde o vinho e a cerveja na adega, e onde as panelas e as bacias
de estanho na cozinha, e onde a cama no dormitório? Tudo isto os índios têm reunido numa só
peça. Não há passagem alguma do quarto de dormir para a saleta; sua adega é um porongo
oco, com que buscam a água no rio e do qual também bebem.
Quem pode dependurar sua cama, qual longa rede de pescar trançada de fibras de
palmeira, entre duas árvores, é rico e passa por pobre. Quem não tiver semelhante fortuna,
sobre uma pele de tigre ou um couro de vaca não chão raso; em vez de travesseiro ou
almofada usam um bloco duro ou uma pedra. A baixela de cozinha consiste em uma ou doa;
panelas. Os dentes são as facas, os cinco dedos os garfinhos, a mão é a colher e o porongo
mencionado as taças e os copos. 0 fogão e fornalha é por baixo da cama, quando por cima
estendem a rede. De espêto de assar serve a primeira vara que cai na mão. Nela espetam a
carne, que começam a devorar, enquanto está assando do outro lado. Assim, cozinheiro e
assado terminam juntos, e, enquanto o índio espeta na vara o pedaço seguinte de carne, já
começa a sentir fome. Outros índios, que nem para isso têm paciência, pegam um pedaço de
carne, passam-na três vezes pela fumaça e pelas chamas e enfiam-na logo na boca. E como a
carne é suculenta, o sangue lhes escorre de todos os lados pelo focinho abaixo, e isto lhes é o
suprassumum do gostoso.
A porta da casa tem três palmos de largura e seis palmos de altura. Não é feita de
tábuas, mas de couro de boi; nunca é fechada, porque na casa não há nada que possa ser
roubado. Ela vai ter à saleta, cozinha, dormitório e adega, porque saleta, cozinha, dormitório e
adega são a mesma coisa, isto é, nada mais do que uma choça de palha trevosa. Aí dentro
dormem pai e mãe, irmão e irmã, filhos e netos, quatro cachorros e três gatos, e maior
número ainda de camondongos e ratos, e pululam os grilos e certos coleópteros, que no Tirol
se chamam de baratas e miriápodes. E' fácil adivinhar o cheiro insuportável que tudo isto
emana, numa choupana tão apertada, baixa e pequena. Num palácio assim, portanto, é que a
gente, diariamente, tem que visitar trinta e mais acamados e velhos, em que ministrar-lhes os
Santos Sacramentos, tem que assistir aos moribundos, tem que consolar pais e mães. São
essas as nossas visitas. Em verdade, em verdade, Reverendos Padres e caríssimos irmãos, aqui,
na pessoa desses pobres índios abandonados, encontro realmente meu Jesus sofredor. Aqui,
meu coração enche-se de consolo indizível, cada vez que vou ter a um desses presépios do

67
meu Senhor Jesus. Aqui se desfaz minha alma, quando, visito esses pobres coitados e os vejo,
e principalmente quando, de crucifixo à mão, assisto a um moribundo - não posso conter-me
de dizer: Moriatur anima mea morte istorum. Ó Salvador, fazei com que minha alma regresse
com esta! Vi na Europa morrer muita gente, mesmo religiosos, - mas muito poucos como
estes! Não é possível descrever com quanta paz, com quanta serenidade de conciência, com
quanta modéstia de corpo e alma estes indígenas se despedem da vida! Mesmo numa
enfermidade longa e dolorosa o índio não dará sinal de impaciência ou de má vontade, nem
um só ai ou semelhante gemido, muito menos gemerá ou gritará. Não, não se queixa nem de
fome nem de sede, nem de calor, nem de frio, tão pouco das dores que está sofrendo. No leito
da morte não o preocupam a amada esposa e seus queridos filhos, não o incomodam dinheiro
ou bens, que precisa abandonar, porque tudo quanto possue é um porongo oco. Não tem
dívidas a pagar, nem testamento a fazer, não opreocupam suas inimizades, porque quase não
nas tem. Creio que debaixo do sol não haverá geração que abençoe o temporal com tanta
dignidade e serenidade como estes pobres e simples índios, esquecidos pelo mundo e por ele
abandonados.
Agora alguém me dirá: Meu bom Padre Antônio, se assim for, como bem quero crê-
lo, porque tu o viste 'com os teus próprios olhos: Se assim for - contra que pecam esses índios?
Pois quero responder essa tua pergunta curiosa e não obstante nada revelar da confissão: Dos
dez mandamentos de Deus e dos cinco da Igreja católica os índios só transgridem o sexto. E
também neste nem todos pecam, pois por uma bula de Paulo III temos um privilégio que
permite casar os índios com parentescos de terceiro e quarto grau, sem necessidade de
dispensa51.
Além disso: Quando uma menina alcança os 14 ou 15 anos e um rapaz os 16, então já
é tempo do Santo Matrimônio. Por isso também não demoramos, e evitamos destarte muitos
males. Nenhuma indígena chega à situação de passar alguns anos no estado virginal. E com os
rapazes dá-se o mesmo: Quando chegam seus anos, é impossível contê-los. Esta experiência já
fizeram os primeiros missionários. Também faltam os impecilhos existentes na Europa, se há
bens dotais ou não, se o marido vai sustentar sua mulher e filhos, se poderá prover-se de
moradia e vestuário. Estas cogitações aqui nada impedem, porque o Pai celeste os alimenta,
mesmo que não tenham aprendido nenhum ofício ou profissão.
Dou, pois, a um desses jovens casais uma das casas acima descritas de palácio. E dou-
lhes também as vestes nupciais, a saber cinco côvados de pano de lã para o marido e outro
tanto para a mulher. Cama, ou seja, em couro de boi, também não falta, para ser estendido
sobre o chão raso. E dou-lhes também o banquete nupcial, constante de uma ou mais vacas
gordas, como aliás lhes vou dando carne o ano todo, tanto quanto necessitem. Só uma única
cláusula tem o nosso direito, referente aos bens paternais, que a índia precisa trazer ao seu
marido. E em que consiste isto? Benevolente leitor, deixo que adivinhes e adivinhes, e tão
ligeiro não descobrirás: 0 dom nupcial e o dote que a índia noiva tem que oferecer ao índio, é
o já tantas vezes referido porongo oco, e nada mais. Aliás, nesse porongo prende-se a condirão
de que nele a mulher precisa ir buscar a água do rio ao seu marido. Em compensação, é o índio
obrigado a trazer a lenha para a cozinha. Com esta cerimônia, celebra-se o casamento e é
contraído o santo estado matrimonial. Para as bodas lhes permitimos pequenos jogos e
algumas pequenas dansas. Quando estão casados e quando terminou a Santa Missa, o noivo
vai para aqui, a noiva para acolá, e, quando tudo termina bem, fazem ao meio-dia o primeiro
jantar juntos e convidam eventualmente ainda o pai e a mãe da noiva, todos comendo da
vaca, que lhes dou, e do pouco de sal, de um ou dois pães, um pouquinho de mel, com que se
banqueteiam e vivem regaladamente. Deve notar-se ainda o seguinte: Quando os índios
querem contrair matrimônio, não é o índio que vai pedir a mão da índia, mas, ao contrário, é a
mulher que precisa pedir o marido para o santo matrimônio. Vindo, pois, uma índia ter
comigo, dizendo: Pay, eu quisera contrair matrimônio com esse ou aquele, se tu concordas.
Convido depois o índio a ter comigo e lhe digo: Essa, meu filho, pretende casar-se contigo;
concordas? Se disser Sim - e quase sempre dizem Sim - nada mais é necessário, está tudo

68
certo, realizado o golpe e as bodas estão à porta.
Antes de entrarmos na igreja, consideremos a casa de Deus.
Cada aldeia tem uma linda igreja, uma torre com quatro ou cinco sinos, um ou dois
órgãos, um altar-mor ricamente dourado, dois ou quatro altares laterais, um púlpito
inteiramente dourado. Além disso, há várias imagens, pintadas exclusivamente pelos índios, e
que não são lá tão más. Bem como oito, dez ou mais castiçais de prata, tres cruzes de prata,
um ostensório bem fino e um grande cibório, ambos também de prata. Os cálices aqui, como
também na Espanha, costumam não ser dourados, sendo também brancos no interior, da cor
natural da prata. As toalhas dos altares e as capas de Asperges pra as diversas festas, bem
como tudo que faz parte do Santo Sacrifício da Missa, são tão limpos e asseados e bonitos e de
material tão precioso, que não só poderiam figurar com muita honra em qualquer convento ou
Colégio da Companhia na Europa, como em qualquer igreja episcopal. Esses dias mandamos
confeccionar em Buenos Aires uma alba, que custou 120 Talers.
Todos os sábados temos missa cantada de Nossa Senhora e ladainha. Todos os
domingos missa cantada e sermão. Meus músicos tocam música todos os dias durante a Santa
Missa, e isto, graças a Deus, de maneira bem aceitável. Aos meus reverendos e mui amados
Padres Inácio, Paulo Glettle e todos os outros Padres e mestres de música peço
insistentemente me queiram apoiar neste assunto! Não peço só em meu nome, mas no de
todos os pobres músicos: indígenas, os quais, se se reunir aos de todas as reduções, somam
uns 3000 homens.
Os reverendos Padres e os senhores irmãos Paulo e Grabriel Sepp perguntarão: Se aí
nas reduções cantas tantas missas solenes, ladainhas, vésperas e missas, quem te compõe os
salmos, as ladainhas, os hinos, os ofertórios, quem as missas e os muitos motetes? E quem foi
que ensinou a esses índios a cantar, a tocar o órgão, a tocar trompas, charamelas e fagotes?
Reverendos Padres! Quem ensinou a esses pobres índios abandonados a doutrina
cristã, quem os ensinou a rezar o santo Padre-Nosso, a cozer pão, a fazer roupas, a cozinhar,
pintar, fundir sinos, tocar órgão e harpa, charamela e trombeta, quem os ensinou a fazer
verdadeiros relógios, que não só dão as horas inteiras, mas até os quartos de hora, - quem lhes
ensinou tudo isto, também os instruiu na música e nos ofícios: Foram os primeiros Padres
Missionários, nossos santos predecessores, especialmente alguns Padres neerlandeses, cujo
trabalho e esforço aqui ainda não foram esquecidos e cuja memória nós abençoamos. Estes
ensinaram aos índios a cantar, de resto com extremo esforço e trabalho, porque de suas
composições pode-se depreender que não eram músicos profissionais, mas só criaram de sua
fantasia. O pouco que sabiam, com extremo esforço e trabalho diante dos índios, era repetido
tantas vezes quantas eram precisas, até entrar nas cabeças duras, e com tanta segurança que
homens e mulheres cantam per traditionem até o dia de hoje, em pleno coro, aquelas
melodias nos domingos durante os ofícios. Depois dos neerlandeses veio um Padre espanhol
que entendia um pouco mais, adiantando mais a música com a composição de vésperas,
ofertórios e ladainhas. Mas tudo ainda era feito à maneira mais antiga, como se fosse do
tempo do Velho Testamento e da Arca de Noé. Nenhuma única missa e nenhum salmo tinha
um baixo cantante que por certo constitue o fundamento indispensável; em vez do baixo
cantante era tocado o fagote, para substituir um pouco o fundamento que faltava. Quando,
então, no baixo cantante aparecem pausas, como isto sucede em cada voz, o fagote também
silencia, e então têm os pobres índios que cantar adiante, sem baixo e fundamento, o que em
todo u caso não pode soar muito bem ao ouvido. Por esse motivo, nenhuma missa e nenhum
salmo tem um acompanhamento decente, e se o tivesse teriam que aprendê-lo primeiro.
Oh! Como desejo agora que tivesse eu tomado melhores lições com os reverendos
Padres Glettle. Seidner e outros! O Padre Cristóvão Brunnem, - de certo já terá falecido - antes
de minha partida, anotou-me em Alt-Oettingen, em duas folhinhas de oitava, uma breve
indicação para a composição. Não tivesse eu esse guia, seria o meu fim! Com o auxílio desse
manual comecei, portanto, a compor: uma Missa a catorze compassos, duas vésperas de
Confessore et Beatissima Virgine, também a catorze compassos, bem como duas Ladainhas

69
breves a dezesseis compassos. Devo confessar a verdade: 0 Bom Deus ajuda-me
evidentemente, caso contrário não me seria possível aprender num ano uma língua tão
desesperadoramente difícil como o Guarani, na qual, já um mês após minha chegada, dei
instrução cristã às crianças e administrei todos os Sacramentos - com exceção da Confissão, de
outro modo não seria possível, i par dos acima mencionados negócios espirituais e temporais,
nem de copiar tantas mil notas, quanto menos então de compô-las, e a pesar disso eu o fiz,
graças a Deus. O senhor pai Melchior -- Deus console sua alma! -- teve que aguentar
valentemente com sua Missa e Véspera, porque eu, sabendo quase de cor a sua composição, e
como partes isoladas estivéssem bem fresquinhas em minha memória, quando cheguei,
lembrei-me ora aqui ora ali dum verso, já o Amem daquela Missa, já o Sanctua, depois o Qui
tollis, assim como um trecho das Brevibus, depois das Brevioribus e finalmente das
Brevissimis52. Além disso, fiz o máximo esforço para distribuir tudo por tantas vozes e a pesar
disso manter a mesma tonalidade. Respondei-me! Ó vós, caríssimos, amantíssimos e
revendíssimos Padres Inácio e Paulo, e vos outros, tende piedade deste pobre, abandonado e
indigno co-irmão, que outrora foi vosso colega de Noviciado e condiscípulo, e que agora mora
no fira do mundo como missionário entre pagãos selvagens e que presisa trabalhar até suar
sangue. Tende piedade, por amor ao Cristo, de meus milhares de pobres músicos, e mandai-
me as Missas, as Vesperas breves, breviores e brevissimas, bem como as Ladainhas do senhor
Melchior Glettle, mestre-capela da catedral de Augsburgo. Não tenho coragem de solicitar os
motetes, mas, se apesar disso vierem, seria como se um anjo do céu os trouxesse para o
Paraguai. Mas vós logo me respondereis: Meu caro Padre Antônio do fundo do coração,
folgamos em te enviar tudo, mas quem no-las pagará? Primeiramente eu me comprometo, e
comigo mais seis Padres missionários, de rezarmos seis Santas Missas na intenção daquele,
seja religioso ou leigo, que queira arcar com as despesas. Pelo Padre, porém, que mas enviar,
nós queremos rezar vinte Missas, pelos seus esforços. Depois, não pretendo que as notas
sejam novas. Sejam tão velhas, rasgadas e sujas como queiram, desde que seja legíveis, porque
os músicos indígenas já escrevem bem as notas; de mais a mais estamos mandando fazer para
cada redução os Missais da Impressão de Augsburgo e Antuérpia, o que aqui nenhuma
dificuldade oferece.
E se alguém perguntar para onde mandar o pacote, para que chegue certamente ao
Paraguai respondo-lhe: Se estiver em Gênova ou Roma, então já está no Paraguai, indiferente
se demora um pouco mais Ou menos. O melhor seria entregar a encomenda ao Padre
Procurador em Roma. Esse a passará ao Procurador do Paraguai, que agora é enviado para
Roma. E caso não estiver aí nenhum Procurador, então ao Procurador das Duas índias, que se
mantém ininterruptamente em Roma. Circunstância particularmente feliz seria se um Padre de
nossa Província fosse justamente enviado com a Missão para o Paraguai, que então poderia
logo trazer as notas consigo. Se os levar para Gênova, então já estão no Paraguai! Porque até
aqui, nas reduções dos índios, tudo vem por água e não custa vintém. Caso então fossem
enviados um ou dois. Padres para cá, tudo ficaria essencialmente facilitado, também quanto
ao pagamento. Sim, estes poderiam prestar mais um ato de caridade e bondade para com
todos os nossos Missionários daqui, que tanto me amolam com a música, e trazer mais esta ou
aquela composição. Com o pagamento, digo, é bem fácil. A saber, do modo seguinte: A
Província daqui restitua tudo ao Padre Procurador de Munique, indistintamente se ele gasta
muito ou pouco por um Padre. Tivesse eu sabido disto, quando ainda me achava em minha
Província, e tivesse eu também sabido quais as coisas que muito se precisam e
insistentemente se solicitam no Paraguai, teria eu logo em Munique comprado muitas coisas
para o Paraguai e as levado comigo, e com isto por certo teria prestado a esta Província e a
todos os Missionários um grande obséquio. Imaginem: Que teria custado ao Paraguai haver
gasto mais uns dez ou quinze Reichstaler para uma coisa de tanta necessidade - medidos com
os 80.000 Talers, que a Missão, com a qual eu vim, mais ou menos custou!
Agora poderia o Padre, que fosse enviado para, o Paraguai, retrucar que em Munique
já se faz o orçamento de tudo que deverá levar para Gênova. Está certo, não há dúvida, quanto

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às despesas de viagem, mas não quanto às suas necessidades mais indispensáveis. Mas o que
ele precisar para o Paraguai, seria melhor que ele o comprasse na Alemanha, porque na
Espanha é sete vezes mais caro ou nem poderá ser obtido. A mim, meu Procurador passou
uma carraspana, e até o dia de hoje tenho que ouvi-lo de não haver trazido comigo nenhum
autor musical, e que ele teria com satisfação compensado à Província alemã todas as despesas.
Isto por certo servirá aos Reverendos Padres Procuradores e Superiores de Munique de prova
pelo que digo.
Pode-se avaliar o alto conceito em que a música é tida aqui no Paraguai pelo fato de
o Procurador, que veio conosco, ter comprado nos Países-Baixos um órgão para Buenos Aires,
o qual custou mil Talers, e que antes ele nunca vira e que ainda nem chegou ao Paraguai, de
modo que não se sabe se o instrumento presta alguma coisa ou não. Da Mesma forma
comprou-me ele diversos instrumentos de música na Espanha, entre eles uma espineta, um
clavicórdio, uma trompa marinha e várias charamelas. Eram horrivelmente caros, cotados com
os preços alemães, a pesar disso não valem nada. Tudo isto ele pegou de bom gosto.
Jam Reverend in CHRISTO Patres, nihil amplius superest, quam egeno & pauperculo
suo Parti António in hoc tam desiderato negocio sucurrere per CHRISTI & Magnae Matris
amorem ne graventur: obstringent certe non me solum, negue tot Patres Missionários, sed tot
Indorum millia maximo hoc beneficio, quod hae, viginti sex reductiones animas DEO & Ecclesiae
Romanas mancipatas, Orco erpetas in hunc diem vivas numerant, centum nempe & quatuor
millia. 0 venient Petitae Litanias per Mognae Matris amorem! Veniant Missae: & dictae
Vesaperae! adjungantur dictae. Mottetae: Et tandem Mottetae Domini Kerll, ubi est cantio illa:
plorate ululate Cristo sepulto você sola non indigeo. Quia hae cantantur in Lingua Hispanica, &
non Latina: veniant, inquam, omnia ista, & maritimum iter patiantur aliquid: comporantur in
cistula ligea &.
O assunto da música reteve um pouco minha pena. Mas Deus sabe com quanta
urgência preciso de todas essas coisas. Caso eu receber esses livros preciosos, o senhor Glettle
também teria êxito na América, assim como a Europa sempre o venerou ao máximo. E eu
estaria livre do esforço e trabalho indizível que me causa a composição. O que custa a mim
instruir os índios em nossa música européia só o bom Deus o sabe. De todos os pontos
cardeais e de mais de cem milhas os missionários me mandam os seus músicos, para que os
instrua nessa arte, que lhes é completamente nova, e que difere da velha música espanhola,
que eles ainda têm, como o dia da noite. Até agora nada se sabia aqui de nossas divisões de
compassos e espécies de andamentos, nada dos diversos trinos. Até hoje, os espanhóis, como
vi em Sevilha e Cádiz, não têm notas dobradas, quanto menos então tríplices. Suas notas são
todas brancas, as inteiras, as meias e as notas corais, música velhíssima, antiqualhas que os
copiadores da Província alemã possuem aos caixões e que aproveitam para encadernar
escritos novos. Destarte, portanto, tenho que começar, com estes meus cantores barbudos,
graves, e encanecidos, com o começo da escala tonal, ut, ré, mi, fa, sol, Ia, o que por amor de
Deus faço de muito bom grado.
Neste ano já consegui fazer mestres nos respectivos instrumentos: Seis trombetas de
diversas reduções, três bons tiorbistas, quatro organistas. A estes ainda não cheguei a mostrar
uma partitura, porque seria muito difícil para eles, mas só estudei com eles certas árias,
preâmbulos e fugas. Oh! Como tudo isto me é difícil! Levei este ano trinta charameleiros, dez
cornetas e dez fagotes a ponto de já saberem tocar e cantar todas as minhas composições.
Além disso, já tenho mais de cinquenta tiples, que têm vozes bem boas. Na minha redução
passei para o papel o célebre Laudate Pueri do Padre Inácio Glettle, que sei quase de-cor, e o
ensinei a cantar a oito meninos indígenas. Cantam-no com tamanho garbo, graça e boa forma,
que na Europa dificilmente o acreditariam como cantado por estes pobres indiozinhos, nus e
inocentes. Todos os missionários estão muito satisfeitos e agradecem ao sumo Deus, por lhes
haver enviado, após tantos anos, um homem que agora também imprime à música novo
impulso. Em reconhecimento, este me manda uma barriquinha de mel, o outro açúcar e frutas
americanas. A modéstia e o pudor que competem a um religioso não permitem à pena que

71
esta escreva o quanto os índios me veneram e amam. Considero-me disto sumamente indigno,
e o maior pecador e o mais inútil servo em Cristo.
Deixai-me agora relatar mais alguma coisa, que não pude incluir nos oito cadernos
até agora escritos.
Parece que a natureza teve plena intenção de criar a localidade de Yapeyu para
moradia de homens. A leste flue o rio Uruguai, com suas águas límpidas como cristal, águas
amavelmente murmurejantes, que quanto à salubridade sobrepuja de longe a todas as fontes
argênteas e poços europeus. Constitue esta água nossa bebida comum à mesa. A raizama das
árvores, que cobrem as margens a 400 milhas de ambos os lados com sombra fresca, bem
como as pedras e os grãozinhos de areia, contra os quais as águas turbilhonantes se batem,
aclareia e limpa extraordinariamente. Este rio é tão piscoso, que em certas épocas os índios
podem pegar os peixes com as mãos nuas, como eu também o experimentei várias vezes.
Quem não conseguir arrumar anzol, porque este é aqui muito caro, serve-se do primeiro
alfinete que encontrar. De peixes europeus encontrei aqui, até agora, só uma qualidade, e esta
a pesar disso é ainda de espécie diferente. Os espanhóis chamam este peixe de dorado, que
significa listra de ouro. A diferença é que a truta daqui é muito maior e não tem cor dourada,
mas pintas amarelas. A carne é muito saborosa, nem um pouco aguada, mas substanciosa,
parecida com carne de terneiro. Há, outrossim, uma variedade muito espinhosa, que se parece
um pouco com nossos pequenos alburnetes. No entanto, nossos rios americanos não contêm
carpas, lúcios, enguias e cadozes, mas em compensação outras espécies e muito mais
preciosas, entre elas o piscis rereyra, e sabe que ele renegou às funções da sua seita e idolatria
e abraçou a nossa fé; visto que este mesmo Moreyra, que, pouco antes, recusava por todos os
meios o cristianismo, os move agora como pregoeiro evangélico a aceita-lo; por tudo isso,
refulge a esperança de que a nação inteira, como azevinhas errantes a voejarem aqui e ali,
enquanto a flauta da pregação soa docemente em feliz caça, venha a pousar, em breve, na eira
fecunda da restante cristandade.
Demos, todavia, um salto do ano 1693 a 1695; reconstruamos, porém, ligeiramente o
nosso diário.

CAPÍTULO VI
O PE. ANTÔNIO SEPP É MANDADO DA REDUÇÃO DOS TRÊS SANTOS REIS PARA A REDUÇÃO
CHAMADA DE NOSSA SENHORA DA FÉ E RECEBE ORDEM DO R. PE. PROVINCIAL PARA FAZER
UM ÓRGÃO DE TIPO EUROPEU

É uma necessidade para o varão apostólico fazer tudo para todos, máxime entre
estes índios paupérrimos. Demorei-me, como acima referi, quase três anos na Redução dos
Três Santos Reis para civilizar os índios yapeyranos. Entre outros trabalhos, não foi o menor
instruir em todo gênero de música os índios de várias Reduções, que os padres missionários de
todas as partes enviavam. A estes ensinei a tocar órgão e cítara, àqueles tiorba e cítara feita de
casca de tartaruga, a outros trombeta e flauta, fístula e clarineta e instrumentos de guerra,
àqueloutros guitarra e o suave saltério davídico tocado agilmente com dois pauzinhos; numa
palavra, não só devia instruí-los em todo gênero de música, mas também era forçoso
confeccionar cada vez todos os instrumentos, dos quais principalmente o órgão era
indispensável para cantar na igreja os louvores de Deus.
E assim vendo que a miséria dos órgãos usados até então entre os índios não
provinha tanto da falta de recursos como de seu estado miserável, deu-me o R. Pe. Provincial,
Pe. Lauro Nuñez, ordem de fazer um órgão, como os da Europa, ou de mandar fazê-lo,
reservando-me a superintendência da obra. Não o podendo levar a efeito na Redução dos Tres
Santos Reis por falta de material ordenou-me que fosse para a Redução que em espanhol
chamamos Nuestra Señora de Fee. Ordenou, outrossim, que, na viagem, me detivesse por
alguns meses na cidade de Itapua, onde o Pe. Francisco Azebedo já tinha à mão o material
para a construção do órgão.

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Confiando, pois, mais na virtude da obediência que na própria arte, ponho mãos à
obra. Como, porém, a quantidade de estanho e chumbo arranjada pelo dito Pe. Azebedo só
bastasse para fazer os tubos menores, cuidei que os maiores, do chamado sub-baixo, se
fizessem de tábuas de cedro desbastadas e, com todo o cuidado, aplainadas e polidas. Estas
preencheram tão bem a sua finalidade, que se juraria ser bronze fundido com estanho nglês e
a diferença entre um e outro nem o ouvido mais bem afinado haveria de distinguir. Uma
cousa, entre outras, causou admiração não só aos índios, como também a todos quantos para
lá: iam, aos padres missionários e ao próprio Pe. Provincial, Pe. Lauro Nuñez, então presente: a
saber, que me viam tocar não só com as mãos, mas também com os pés, cousa nunca vista
nem ouvida por eles (pois na Espanha os órgãos não têm o assim chamado pedal, nem
registros de coro ou corneta). Por isso, como disse, todos ficaram estupefatos com o cedro
sonoro, cousa até então inaudita, o qual cantaria, ou melhor, faria ressoar doravante, no
templo de Deus, não a sua própria imortalidade, mas a de seu Criador.

CAPÍTULO XXXIV
NA CELEBRAÇÃO DAS FESTAS, INTRODUZEM-SE DANSAS QUE MUITO DIVERTEM AOS
INDÍGENAS

Vige em toda a Espanha o costume de se fazerem dansas nas festas mais solenes,
também no interior dos templos, nomeadamente na solenidade do Corpo de Deus. Nesta
procissão os espanhóis imitam ao régio salmista, que dansava perante a arca do Senhor.
Por isto, também, constituí oito dançarinos, às vêzes doze e mais. Quando o
celebrante sai da sacristia, estes, de velas acesas na mão, precedem dois a dois. Dois deles vão
queimando continuamente aromas: as nuvens odoríferas se difundem por tôda a igreja.
Outros espalham flores no trajeto que o sacerdote perfaz para aspergir o povo com água
lustral. Ao se começar o intróito, êles permanecem de pé no presbitério, quais efebos régios.
Acompanham depois, em boa ordem, dois a dois, com as velas acesas, ao pregador, tanto
quando sobe, como quando desce do púlpito. Findando o ofício solene, exibem coros e dansas
no vestíbulo da igreja. Durante isto, os índios principais ou caciques tomam assento ou de um
ou de outro lado, como em anfiteatro. Já é a dansa pírrica (dansa de espadas), já a das argolas,
já a corrida troiana pedestre ou equestre. Nesta última, parecem estar escarranchados em
cavalinhos de couro, sôbre uma sela que muito bem lhes senta. Na realidade, porém, estes
cavaleiros falsos andam a pé. Tomar-se-iam por algum Júlio César ou Alexandre em seu
garboso bucéfalo.
Estes graciosos dançarinos atraem a atenção de todos, principalmente, quando
prendo a seus pés chocalhos ou guisos. Pois, durante a dansa, estes chocalhos e guisos, -
ridículos, não há negar, - se entrechocam, produzindo sons ou dissonâncias estrídulas. Para os
ouvidos dos índios, porém, são tão agradáveis, que parece não haver coisa mais gostosa do
que a dansa com tais guisos e chocalhos. O mesmo se dá quando lhes ponho nas mãos
pandeiros de madeira.
Os guisos dos dançarinos fabrico-os do modo seguinte: espatifo uma panela de cobre
já gasta pelo uso quotidiano, até se reduzirem os cacos ao tamanho de uma avelã. Em seguida,
dou a êste fragmento a forma de campainha, para depois, em duas aberturas, introduzir uma
bolinha de chumbo, que prendo com pó de prata e pez grega. E eis-que sai fazendo ruído a
campainha de cobre. Os índios apelidaram-na de aguai; os espanhóis chamam-na cascavelar e
os alemães rollen.
Além disto, procurei suscitar sentimentos de piedade em nossos índios por meio de
cenas teatrais acomodadas a esta gente rude. Na Redução de Santo-Inácio, encenei com rara
felicidade os Primórdios (da vida de nosso santo Padre. Embora tivesse empregado no ensaio
apenas oito dias, representaram tão hàbilmente os seus papéis, que a gente os julgaria atores
europeus, e não índios incultos e. achavascados. Todos se tomaram de pasmo, e os olhos se

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rasaram de sentidíssimas lágrimas. Não falavam espanhol e muito menos latim, mas a língua
nativa do Paraguai, por vêzes em verso, nos denominados entre-atos. Nem, tão-pouco,
careceu o drama de um prólogo e de música, principalmente na passagem em que santo Inácio
dependura suas armas no monte Serrate quando a Beatíssima Virgem lhe aparece cantando e
animando ao jovem recruta para os futuros combates, etc. Tudo isto até agora lhes era coisa
nova e inaudita. Aliás, nem podiam imaginar como sua língua bárbara, inculta e tão difícil de
pronunciar, pudesse ser apta para levar à cena tais episódios da vida dos santos, e muito
menos de exprimir harmonias musicais.
Basta, porém, disto. Passemos, agora, novamente a considerar o estado da nova
colônia.

CAPÍTULO XXXV
SITUAÇÃO FELIZ DA NOVA COLÔNIA. HABILIDADE DOS INDÍGENAS PARA QUAISQUER
TRABALHOS MECÂNICOS E SEU PRODIGIOSO TALENTO MUSICAL

Consegui elevar minha colônia a um estiado, a uma forma e condição realmente


ótimas. Elaborei um projeto de leis civis, criei magistratura, instituí um consulado, nomeei
questores, e coloquei à testa da colônia juízes com direito aos fasces. Ao mesmo tempo tratei
de formar um corpo de exército contra repentinas invasões e assaltos da parte dos brasileiros.
Para este fim, investi alguns índios do encargo de general e reparti entre os demais as patentes
de capitães, coronéis, alferes, tribunos, vice-tribunos, embaixadores ou lugar-tenentes,
questores, comissários, centuriões, bem como todos os mais ofícios requeridos para tempo de
guerra.
Feito isto, dediquei todo o interesse à distribuição dos misteres mecânicos, os quais
são sumamente importantes para o progresso de uma república. Pois quem é que não sabe
quão indispensáveis são numa cidade os arquitetos, os ferreiros, os marceneiros, os tecelões,
os fiandeiros, os curtidores, os oleiros, etc., etc. Tudo isto já se encontra aqui em nosso
Paraguai, e até em minha colônia. Qual o cidadão que consentiria em que fossem de: errados
do país os pintores? Quem não estima os músicos? Quem é que não faz conta dos tipógrafos?
Também tais possue-os a nossa América; possue-os, ama-os e os sabe apreciar. Neste ano, o
Pe. João Batista Neuman, da província da Boêmia, acaba de imprimir o martirológio Romano
que sempre fazia grande falta em quase tôdas as Reduções. Bem que se não possa comparar a
impressão com as da Europa, no que respeita aos tipos, nem por isto deixa de ser legível; basta
dizer que todos os dias um indiozinho o lê à mesa, correntemente.
Os índios constroem órgãos, como referi acima. Providenciei a que se fabricassem
cítaras, clavicórdios, saltérios, fagotes, flautas, fístulas, tiorbas e cornetas em diversas
Reduções. Este mês mandei aprontar várias verrumas ou brocas de ferro, que servem para
fazer flautas e fagotes. Os meus índios fabricaram, terebraram, quatro flautas para o
acompanhamento do canto, duas para os altos e duas para os tenores, e um fagote;
instrumento a que os espanhóis dão o nome de baiona, terebraram-nos, digo, com tal
perfeição que é impossível distinguir estes instrumentos por entre os da Europa.
Fiz com que escupissem três pares de galhetas para uso das igrejas. Um índio as
esculpiu com tal perfeição artística, que as uvas, as espigas e as muitas flores dir-se-ia viverem
sôbre o mineral inerte.
Quem foi que ensinou aos meus índios a tecer franjas e bordar rendas? A costurar e
fazer com a agulha corporais, cortinas, casulas e todas as alfaias do culto divino? Quem lhes,
guiou a mão para tornear do chifre aqueles relicários romanos? Quem lhes ensinou a lavrar a
pedra, a burilar, com esforços incríveis, estátuas, altares, púlpitos e a fazer mil outros
trabalhos perfeitíssimos? Foi o Pe. Antônio que, com o auxílio da graça de Deus, ensinou tudo
isto aos seus indígenas, e lhes há-de fazer aprender muito mais ainda, se o misericordioso

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Deus lhe conceder vida.
Não quero mencionar os tapetes de lã que as senhoras da nova colônia há pouco
tempo fizeram, em nada inferiores aos tapetes turcos. Combinaram com suma elegância todas
as cores nos mais variegados cambiantes, de maneira que o branco, o preto, o amarelo e o
azul parecem lutar desesperadamente, querendo cada qual sobressair em elegância, fulgor e
beleza. O conjunto se assemelha à pintura de um mar de ondas multicores e estriadas:
verdadeiro deleite para os olhos. Mandei fazer Panos listrados do mesmo feitio, para
dependurá-los aos domingos e dias festivos na mesa da comunhão.
Não relato aqui os talentos dos demais padres missionários, que inventaram, em sua
indefessa atividade, muitas coisas semelhantes. Ensinaram a fabricar sinos de bronze, a fundir
tachos de estanho, a preparar salitres, e nitratos em pó. Tenho visto, com grande admiração
minha, relógios feitos pelos índios, relógios que dão horas e cujos ponteiros indicam o tempo;
esferas ou cilindros astronômicos, nos quais os indígensa lograram gravar os graus e minutos
com precisão a mais exata. Assim como se nos torna difícil distinguir um ovo do outro, é
igualmente difícil adivinhar qual o relógio feito na Europa e qual o no Paraguai.
Ao ler estas cousas quase incríveis, perguntará, com toda a razão, algum leitor
europeu curioso, quem pôde civilizar a tal ponto estes bugres estúpidos e broncos? Respondo
eu: na verdade, são estúpidos, broncos, bronquíssimos estes nossos selvícolas para todos os
assuntos espirituais, para tudo que reclama trabalho mental e que se não pode ver com os
olhos. Para os serviços mecânicos, porém, têm olhos de lince, O que viram uma só vez, pode-
se estar convencidíssimo que o imitarão. Não precisam absolutamente de mestre nenhum,
nem de dirigente que lhes indique e os esclareça sôbre as regras das proporções, nem mesmo
de professor que lhes explique o pé geométrico. Se lhes puseres nas mãos alguma figura ou
desenho, verás daí a pouco executada uma obra de arte, como na Europa não pode haver
igual. Não será ofensa lançarmos mão aquí de um símile, com aplicação ao nosso caso; ouve,
pois. Se na Europa fizesses a encomenda de um par de sapatos a alguém que não fosse
sapateiro, acaso a tal pessoa se meteria a fazer-te o calçado? Garanto-te, meu amigo que
nesse caso todo o mundo haveria de tomar o teu pedido à conta de ofensa. Eis o que te
haviam de responder: "Faça o senhor os seus sapatos! Que está pensando? Não sou aprendiz
de sapateiro, nem pertenço àquela sociedade! Se quiser comprar um par de botinas é naquela
rua ali que será atendido".
Tal, porém, não sucede na minha colônia paraguaia. Lá te encontras com um índio
qualquer músico de profissão, o qual nunca na vida viu calçados ou, no máximo, avistou à
distância, ou em alguma imagem, cousa parecida a sapato. - Aquí todos os naturais andam
descalços. - Apresentas a tal bugre um par de sapatos europeus e pedes que te faça novo par
igualzinho. Digo-te que, com a maior naturalidade dêste mundo, o índio músico porá mãos à
obra sem titubear. Cortará o couro e aprontará um par de sapatos tão perfeitamente iguais,
que já não distingües qual dos dois foi o que serviu de padrão, se o calçado europeu ou, o
indígena. A cousa mais admirável, porém, é que o mesmíssimo índio te satisfará todos os
pedidos e tôdas as encomendas. É quase incrível o que vou contar agora: vive aqui em São
Miguel um bugre de nome Inácio Paica. É músico distinto, sabe fabricar cornetas e tocá-las,
sabe fazer clarins ou trombetas de guerra; além disto, é ferreiro consumado, cunhador de
moedas, pulidor de objetos de metal, funileiro e fundidor de bacias, caldeirões, tachos e
marmitas. Foi Inácio Paica que fêz um sem-número de campainhas para os meus dansarinos;
sabe trabalhar perfeitamente com o buril, para fazer esferas astronômicas e espingardas.
Esta arma não é de somenos importância. Bem o sabe quem por cúmulo de
infelicidade se vê forçado a render homenagem a Belona e Gadivo. O armamento bélico torna-
se necessidade absoluta, para repelir com destemor qualquer violência. Ainda é bem
conhecido o que sucedeu no século passado: devido à falta de espingardas nenhuma
resistência se pôde fazer aos brasileiros, quando levaram para a escravidão mais de cem mil
índios das nossas Reduções.
Tornemos a falar do nosso Inácio Paica. Aprendeu e exerce com louvor muitos outros

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ofícios. Dificilmente haverá europeu que possa competir com êle. Verdade é que ninguém se
mete em ofício alheio, e quem exerce um emprego sem autorização deve pagar multa. Vale,
pois, o rifão: Não vá o sapateiro além da sola! Daí, quem é ferreiro não pode ser marceneiro, e
vice-versa. Não se permite a ninguém meter a foice em seara alheia. Ao sapateiro pertence o
calçado, mas ai dêle se algum dia lançar mão no pincel de Apeles. Com o nosso Inácio Paica o
caso é bem diverso. É o meu organista por excelência. Todas as manhãs toca corneta na igreja
durante b ofício divino. Terminada a missa, toma sua merenda. Em seguida, derrete o ferro,
funde o aço e, qual Proteu, admirável, vaza com grande perícia centenas de objetos de
variados moldes, configurações e matérias.
No entanto, Inácio Paira não é o único Apolo na trípode. Em cada Redução se pode
topar um ou mais campeões dêstes, mestres em todos os ofícios, mecânicos e exímios
maestros de música. Na Redução de São Tomé vive um certo Gabriel Quiri, músico afamado e
ao mesmo tempo ourives. Faz cálices belíssimos. Mais de uma vez me servi de um dêles na
celebração da santa missa. Faz ainda castiçais de prata, de tamanho considerável e engenhosa
cinzeladura; funde sinos, o maior dos quais, dedicado ao arcanjo São Miguel, pesa quatro mil
libras e se encontra no campanário da minha igreja; fêz também um relógio astronômico, que
se diria feito na Europa; além de construir órgãos novos e reformar antigos, inventa novas
formas e novos tipos de órgãos, no que é sempre bem sucedido. Tudo que venho referindo,
revela o gênio de Gabriel Quiri, digno de admiração da Ameríndia tôda, mas muito mais da
Europa.
Estes índios paraguaios são, por natureza, como que talhados para a música, de
maneira que aprendem a tocar com surpreendente facilidade e destreza tôda sorte de
instrumentos, e isto em tempo brevíssimo. No que concerne ao mestre, quase o dispensam de
todo. Basta que se lhes dê um trecho para ensaiar, que aos poucos o tocarão sem omitir as
passagens e saltos mais difíceis. Na colônia de São João-Batista, recentemente fundada, há um
rapaz de seus doze anos, que toca com dedo firme sonatas, alemandes, sarabandas, correntas
e baletos e outras muitas peças compostas pelos mais insignes maestros europeus, tais como
Henrique Schmelzer, Henrique Francisco Inácio de Bibern e Teubner. Estes nomes são
conhecidos aos instrumentistas e tocadores de cítara. Prelúdios que fazem suar o organista
mais hábil, devido à concentração que exigem, o meu rapazito os toca na cítara davídica ou
harpa, com sorriso nos lábios. Observa-o a dedilhar suavemente as cordas sonoras!
Não é possível verificar a rapidez dos dedos, nem, tão pouco, distinguir se a 'mão
direita agora se precipita na frente, ou se voa em perseguição da esquerda.
Estas cítaras ou harpas são uma novidade inventada por mim nestas terras.
Compreende duas fileiras de cordas, em que se pode exprimir não só os tons inteiros, como
também os semitons da escala cromática. Desta maneira há teclas brancas e pretas, como
num órgão, adaptáveis a qualquer canto, ou seja, para tocar à vontade em dó maior, ou em dó
menor.
Basta o que noticiei até aqui sobre o estado feliz da nova colônia e sobre o raro
talento dos índios, talento este que o Criador da natureza tão liberalmente lhes prodigalizou.
Portanto, se ainda houver quem considere a estes coitados ineptos para especulações
metafísicas, reconheça ao menos neles um tino prático para serviços mecânicos e, sobretudo,
uma propensão rara para a música. Esta última os torna sobremaneira dóceis. Deste modo,
criaturas boçais que são e incapazes de compreender as cousas do espírito, entrar-lhes-ão pelo
ouvido as verdades fundamentais da fé católica.
Cumpre notar bem o que ajunto ao meu relato sobre os paupérrimos índios
paraguaios. Quando os nossos primeiros missionários viram a inteira falta de compreensão
destes bugres para as verdades sobrenaturais, começaram a duvidar seriamente se possuíam o
uso da razão em suficiência para receberem os santos sacramentos. Estes escrúpulos,
fundados em sólidas razões, expuseram-nos no Concílio de Lima. O Concilio, após ter discutido
todas as razões pró e contra, estabeleceu definitivamente que os índios eram idôneos e que
lhes devia administrar os sacramentos como a seres que gozam de pleno uso da razão.

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Mostrara eu antes o talento musical dos índios: assim que os primeiros padres
perceberam a possibilidade de se poder cativar este povo bárbaro pelas harmonias do canto, e
que a maior parte deles ficava como que embevecida, convencionaram entre si que haviam de
condescender à inclinação natural dos bugres, isto é, haviam de arrebanhá-los no grêmio da
santa Madre Igreja, haviam de reuni-los em Reduções e os haviam de amansar pouco a pouco
por meio da música. Introduziram o costume de cantar o louvor divino ou de tocar qualquer
música durante as missas, tanto aos domingos e dias de festa, como todos os dias da semana;
os intrumentos que se tocavam eram outros tantos Orfeus que atraíam à Igreja estas tribus
selvagens e boçais. De pedras imóveis e duros rochedos que eram, tornavam-se moles e
flexíveis. Durante o sacrifício do altar elevavam-se-lhes as inteligências materialistas e assim
chegavam alguma vez a ouvir as doces melodias dos coros angélicos no céu.
Introduzido que foi este louvável costume, conservou-se até nossos dias. Ora são os
órgãos que reboam nos ares, ora as citaras; já é a tiorba, a lira e guitarra que afagam os
ouvidos; já são os clarins, as clarinetas e os tambores que ressoam e ruflam.
Sejam, porém, suficientes as breves citações sobre os trabalhinhos que faço nesta
messe paraguaia, desde o ano de 1693 até 1701. Escrevê-los-ei mais extensamente em
alemão, para que possam ser úteis a muitos e servir-lhes de consolo espiritual.
Tudo que vos escrevo à Europa, - em estilo rude é verdade, mas cheio de sincera
emoção - tudo deve exortar-vos a que vos lembreis sempre em vossas boas obras e
principalmente nas santas missas de mim e de meus índios. É este o meu fim, meu único
desejo. Rezai por mim e pedi ao Pastor Sempiterno não abandone este seu rebanho paraguaio,
a fim de que, pela proteção contínua dos Santos Apóstolos (como a igreja canta na prefação
dos apóstolos), conserve estas ovelhas, lhes aumente a fé e as multiplique em número. Possa
este rebanho pequenino escapar à voracidade do lobo infernal, e ser conduzido do deserto
deste mundo às pastagens felicíssimas e abundantes da vida sempiterna! Sim, possa
encontrar-se comigo, seu indigno pastor, lugar-tenente do Bom Pastor, Jesus Cristo, nas
pastagens eternas. Porque, segundo diz Ezequiel, 34: No mais alto dos montes de Israel estão
situados os nossos pastios; é ali que havemos de nutrir-nos do pasto sadio. Nos montes
eternos, nos montes santos está o nosso descanso, a nossa paz e a nossa segurança.
A Deus uno e trino, as três vezes ótimo-Máximo seja honra e glória por todos os
séculos. Amen.

Na página 250 há uma imagem intitulada “Planta esquemática de uma redução”, na qual
aparece um retângulo grande acima dividido em 8 partes e vários retângulos menores abaixo
desse. Uma legenda de 1 a 11 da seguinte forma: 1 - igreja (a=pórtico, b=torre, c=corredor,
d=sacristia); 2 - residência dos padres; 3 - escola, sala de musica, sala de armar, etc.; 4 –
primeiro pátio; 5 – segundo pátio; 6 – oficinas e armazéns; 7 – hortas dos padres; 8 –
cemitério; 9 – asilo-orfanato (a=jardim); 10 – praça; 11 – blocos de casas de índios.
Na pagina 251 tem a figura de um mapa das Reduções da América do Sul com
ampliação da região dos Trinta Povos (conforme inscrição no livro).

NOTAS

51. A bula citada proíbe que netos e bisneto de irmãos case-1, entre si. Mesmo hoje os
católicos precisam de licença especial para casamento entre primos
52. Vesper breeis, oração vespertina do breviário.

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NEVES, José Maria. Música Sacra Mineira. P. 9 – 20.

INTRODUÇÃO
OS SÉCULOS XVI II E XIX NA BIBLIOGRAFIA MUSICAL BRASILEIRA

A historiografia musical brasileira não faz justiça à música composta e executada no país
durante o período colonial. Quando foram escritas e editadas obras do porte da Storia delia
musica nel Brasile dai tempi coloniali sino ai nostri giorni, de Vincenzo Cernicchiaro (1936), e a
História da música brasileira, de Renato de Almeida (2° ed., 1942), a informação sobre a
música colonial à disposição dos autores era muito limitada e faltava-lhes preocupação com a
busca de dados de primeira mão, então encontráveis em arquivos religiosos e civis e nas
coleções de orquestras e bandas tradicionais. Não sem razão, ambos documentam e analisam
melhor os fatos relativos à vida musical posterior à chegada da Corte portuguesa ao Brasil, em
1808. O desconhecimento das fontes documentais explicava a afirmativa, implícita ou
explícita, de que a verdadeira história musical brasileira se iniciava naquele momento, mas não
justificava a desconfiança com relação à hipotética existência de prática musical,
particularmente na composição, que fosse quantitativa e qualitativamente significativa antes
daquela data. Um velado preconceito colonial permeia as breves observações sobre essa
parcela do passado histórico: a colônia não poderia produzir música que pudesse ser
comparada com as obras criadas e executadas na metrópole ou, melhor dizendo, nas
metrópoles. A norma da historiografia musical brasileira era comparar autores, sendo
absolutamente indispensável que se pudesse dizer, colonialmente, que tal brasileiro era tão
bom como tal outro austríaco. Em seu 150 anos de música no Brasil (1956), Luís Heitor Corrèa
de Azevedo escapa através de sábia delimitarão temporal, tratando de período que vai de
1800 a 1950, ainda que coubessem observações mais aprofundadas sobre os antecedentes
daquele que Luís Heitor considera o maior gênio musical brasileiro do início do século XIX, o
padre José Maurício Nunes Garcia.
Em razão de sua própria estrutura e da limitação do espaço, os poucos estudos
históricos mais recentes, como os de Bruno Kiefer e Vasco Matiz, acabam por abordar a música
colonial de modo excessivamente rápido e, por isso, superficial. Restam os estudos
musicológicos mais específicos, publicados em forma de artigos ou de livros, tratando de
aspectos particulares da prática musical, mas que têm circulação muito mais limitada.
Merecem destaque os trabalhos musicológicos de Francisco Curt Lange, Cleofe Person de
dartos, padre Jaime Diniz, Régis Duprat, Vicent Sales e Gérard Béhague, entre outros, além do
já citado Luís Heitor Corrêa de Azevedo.
Francisco Curt Lange ocupa lugar muito especial no panorama da musicologia histórica
brasileira, particularmente no que se refere ao estudo da música colonial mineira. De fato, foi
ele quem revelou ao Brasil uma das facetas de sua cultura. Na década de 1940, quando iniciou
suas buscas baseado na certeza de que a riqueza arquitetônica do barroco mineiro deveria ter
sua contrapartida musical, e na década de 1950, quando fez executar algumas das peças por
ele restauradas, a música colonial brasileira continuava quase totalmente desconhecida dos
especialistas (intérpretes, professores, críticos, historiadores) e do público das grandes
cidades. É bem verdade que, nessa época, muitas das cidades antigas mineiras (e mesmo de
outros Estados) contavam ainda com seus conjuntos musicais sacros - coros e orquestras,
muitas vezes quase bandas -, que abrilhantavam como podiam as festas religiosas, executando
repertório dos séculos XVIII e XLV; é verdade que alguns desses conjuntos, principalmente em
Diamantina, Ouro Preto, Mariana, Sabará, São João del-Rei, Tiradentes e Prados guardavam
zelosamente, ainda que em ordem só entendida por seus diretores, preciosas coleções de
manuscritos musicais antigos; mas é também verdade que nessa época, e mesmo depois,
dezenas de coleções foram destruídas por seus proprietários, que não viam sentido em
guardar papelada inútil, quando começavam a desaparecer alguns dos antigos conjuntos
sacros, desalojados dos coros das igrejas por movimentos de modernização da liturgia e do

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canto litúrgico. Pode-se afirmar que os músicos interioranos não davam real valor à sua prática
musical e ao acervo de seus arquivos, guardando as tradições por razões de ordem prática: a
função daquela música na liturgia. Como já afirmei algumas vezes, o fenômeno da preservação
ancorava-se na função da música e das corporações musicais, e não na qualidade técnica ou
estética do que produziram os músicos do passado e produziam os do presente.
Caberia aqui a pergunta: teria Curt Lange entendido assim o fenômeno, tendo em conta
que ele percorreu as cidades históricas mineiras em período de grande efervescência de
muitas das corporações musicais? Teria ele podido identificar a imagem sonora do passado
histórico-musical na realidade daqueles conjuntos talvez periclitantes, mas que eram os
herdeiros imediatos daquele passado? Mais ainda: teria sabido valorizar esse presente,
entendendo que seria descabida a comparação entre o desempenho musical daqueles grupos
com padrões interpretativos ditados pela prática profissional encontrada nas grandes cidades
brasileiras e nas metrópoles estrangeiras? Teria ele, enfim, atentado para o fato de que da
tradição interpretativa que poderia ser ainda recolhida (andamentos, ordenação do repertório
nas cerimônias, cor sonora etc.) seria de grande utilidade para a fundamentação de teorias
musicológicas sólidas?
De todo modo, ele lutou pelo destaque que os mestres mineiros mereciam no
panorama da criação artística setecentista, buscou e reuniu enorme quantidade de dados
históricos fundamentais, realizou partituração e revisão de dezenas de obras e começou a
mostrar o produto de seu trabalho musicológico ininterrupto através de concertos, discos,
edições de partituras e estudos musicológicos.
Nos últimos anos foram produzidos muitos trabalhos acadêmicos - sobretudo
dissertações de mestrado e teses de doutorado ou de concursos para professor titular - sobre
a música colonial brasileira e, particularmente, sobre a música mineira. Esses trabalhos,
entretanto, são de acesso difícil, praticamente restrito às bibliotecas das instituições onde
foram apresentados: Escola de Comunicações e Artes da USP, Conservatório Brasileiro de
Música, Instituto Villa-Lobos da Uni-Rio e Escola de Música da UFMG, entre outros.
Ainda são poucos os estudos abrangentes sobre a música brasileira do período colonial,
o que dificulta o estudo dos interessados pelo tema, exigindo busca em muitas fontes
intercomplementares no campo da história, da sociologia, da economia, das artes e da música.
Por essa razão, este catálogo abre-se com brevíssimo panorama da vida musical mineira dos
séculos XVIII e XIX, reunindo dados que possibilitem uma visão de conjunto, com informação
sucinta que se completa e aprofunda nos textos citados na bibliografia.

A MÚSICA EM MINAS GERAIS NOS SÉCULOS XVIII E XIX

Tem sido muito estudada a importância dos ciclos extrativistas no desenvolvimento das
colônias latino-americanas e seu impacto na vida econômica da Península ibérica e de outros
países europeus. A descoberta e a exploração de ouro e prata em zonas de colonização
espanhola ainda no século XVI e, sobretudo, ao longo do século XVII fizeram com que
surgissem diversos centros urbanos importantes, estabelecendo-se missões e paróquias, e
logo as primeiras dioceses, estruturando-se a administração colonial, criando-se centros
educacionais (inclusive de ensino universitário) e desenvolvendo-se vida cultural que atendia
às necessidades das comunidades. Os estudos musicológicos sobre a prática musical no
México, em Cuba, na Venezuela, na Colômbia, no Peru, na Bolívia e na Argentina, para citar
apenas alguns países, provam o enorme desenvolvimento da vida cultural local, revelando
impressionante quantidade de atividades, obras e músicos. Através dos arquivos religiosos e
civis desses países, que foram e são objeto de estudos musicológicos e que possibilitaram a
edição de multas partituras, pode-se conhecer o repertório europeu utilizado nas colônias e
acompanhar a evolução da técnica e do estilo dos compositores europeus que se fixaram na
América espanhola, assim como daqueles brancos ou mestiços já nascidos nas colônias.
Motetos à maneira renascentista, vilancicos barrocos e pré-clássicos, obras sacras e óperas

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podem ser encontrados nos arquivos daqueles países, alguns dos quais já catalogados de
modo sistemático.
No Brasil, o processo colonial foi bem diferente. Até o final do século XVII, as vilas do
litoral, principalmente nas zonas de cultivo da cana, foram os centros da vida econômica e
cultural. Aí apareceram os primeiros colégios e paróquias, aí serão instaladas, muito
lentamente, as primeiras dioceses. E foram os mestres-de-capela e os organistas das igrejas
matrizes e das poucas catedrais (sés) os organizadores da vida musical incipiente. Infelizmente,
os arquivos não conservaram documentação musical, o que impede visão de conjunto análoga
à que se pode ter com relação à América espanhola. Os documentos sobre a prática musical
revelam alguns nomes de músicos, mas Pão a música que produziram.
Os documentos musicais mais antigos encontrados até o momento datam da primeira
metade do século XVIII e coincidem, em grande parte, com a fase inicial e com o apogeu do
Ciclo do Ouro, quando se multiplicaram as vilas do interior, muitas vezes mais ricas e dotadas
de estrutura urbana mais estruturada do que muitas das vilas e cidades litorâneas dos séculos
XVII e XVIII.
A descoberta oficial de ouro em Minas Gerais deu-se por volta de 1693, e a dos
diamantes por volta de 1727. São bandeirantes paulistas os primeiros habitantes das Minas
Gerais, e as primeiras vilas nascem nos pontos de travessia dos grandes rios (locais de pouso e
de abastecimento) e em tomo dos próprios centros de mineração. Pouco a pouco surgem os
primeiros povoados, que atraem forasteiros de diversas procedências (em convivência nem
sempre harmoniosa) e reúnem grande quantidade de escravos negros. Alguns desses
povoados, por sua riqueza e por necessidade de controle administrativo, transformam-se em
vilas, sediando paróquias. Logo surgem os Senados da Câmara, coletivo de administração local,
cujo presidente exercia função análoga à do atual prefeito. O rígido controle exercido pela
Coroa sobre a zona de mineração terá fundamental importância na forma de organização
sócio-política e na vida cultural dessas vilas. A proibição de instalação de impressoras e de
importação de livros (exceto as cartilhas, as tabuadas e os catecismos) fariam com que a
circulação da produção musical ocorresse unicamente através de cópias manuscritas. Se, de
um lado, a inexistência de bibliotecas públicas e de edições locais, presentes na América
espanhola desde fins do século XVI, dificultava a circulação de idéias, de outro trazia para a
Coroa real impossibilidade de controle e censura sobre as cópias que circulavam. Isso talvez
explique a modernidade técnica e estilística dos compositores e a existência de pendência a
posteriori a propósito de obras compostas (há diversos casos de solicitação de bispos à Coroa
para que fossem proibidas obras, consideradas indecentes “tanto na letra como na solfa por
serem quase todos os músicos homens pardos ordinariamente viciosos”) e festividades (vistas
como mais pagãs do que católicas).
A proibição de instalação de mosteiros e conventos terá, igualmente, efeitos notáveis,
destacando-se a importância exercida pelas irmandades, confrarias e ordens terceiras sobre
vida religiosa brasileira dos séculos XVIII e XIX. Reunindo-se em torno da devoção ao
Santíssimo Sacramento, a denominações particulares de Cristo (Nosso Senhor dos Passos,
Nosso Senhor do Bonfim) e de Nossa Senhora (do Rosário, das Mercês, da Boa Morte, do
Carmo e muitas outras) e aos santos, algumas vezes em torno da mística e dos carismas das
ordens religiosas medievais (nas ordens terceiras de São Francisco e de Nossa Senhora do
Carmo), instituem-se sociedades autônomas, ligadas por seus compromissos (estatutos),
construtoras e proprietárias de seus templos, que administram de forma bastante
independente, contratando padres para o exercício de funções profissionais privativas deles:
celebrar missas e bênçãos do Santíssimo, presidir novenas e festividades paralitúrgicas, pregar
sermões, dar orientação espiritual. Se nas matrizes os vigários exerciam autoridade canônica,
por mandato do bispo diocesano, tal não ocorria com os padres capelães e comissários de
irmandades, contrarias e ordens terceiras.
Já nas primeiras décadas do século XVIII estavam estruturadas as primeiras vilas
mineiras, na vida civil e religiosa. Pouco a pouco, as construções efêmeras de quase

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acampamento, taipa frágil com tetos de palha, folhas ou sapé, dão lugar a sólidas edificações.
E o momento da urbanização mais planejada, do aparecimento do casario imponente e das
muitas igrejas de cada vila. E quando surgem também as primeiras casas-da-ópera.
A organização da vida musical e a profissionalização do músico é paralela à formação
das vilas. Ainda que os arquivos civis e religiosos não estejam totalmente explorados, já foram
recolhidos dados que comprovam a existência de prática musical remunerada nos primeiros
anos do século No estudo Como nasceu Ouro Preto: sua formação cadastral desde 1712,
Salomão Vasconcelos cita documento do Arquivo Público Mineiro referente ao pagamento, em
1715, de 12 oitavas de ouro ao violeiro João Rodrigues dos Santos. O Livro de Receita e
Despesas da Irmandade de São Miguel e Almas de Prados registra pagamento à muzica em
1716 (sem especificar obras, autores ou intérpretes). O relato da visita do governador geral a
São João del Rei, em 1717, dá maiores detalhes sobre a música que o acompanhou da entrada
da vila à matriz, especificando que era dirigida pelo mestre Antônio do Carmo, o mesmo que
foi contratado pelo Senado da Câmara, em 1728, para fazer "boa música com dois coros" nas
festividades de São João. Documento de 1724, da diocese do Rio de janeiro (à qual pertenciam
as Minas Gerais), diz que a música em Vila Rica incluía as quatro vozes do quarteto, dois
violinos, duas violas, duas trompas e baixo instrumental. O Livro de Receita e Despesas da
matriz de São José del Rei (hoje Tiradentes) registra igualmente pagamentos realizados,
citando inclusive nomes de quem "fez o compasso" - regente (Julião, em 1740-1741, e Paulo
Roiz de Souza, em 1742-1743, por exemplo). Em 1748, quando é instalada em Mariana a
primeira diocese mineira, o primeiro bispo, dom frei Manoel da Cruz, transferido do Maranhão
(onde certamente havia vida musical importante), nomeia os primeiros membros do Cabido,
inclusive o, mestre-de-capela (padre Gregório dos Reis de Melo), o organista (padre Manoel da
Costa Dantas) e o "chantre" (padre Alexandre Nunes Cardoso). Nessa mesma ocasião, Manoel
do Nascimento Costa foi nomeado mestre-de-capela da matriz do Serro. Esses poucos
exemplos, tomados de grande quantidade de dados conhecidos são suficientes para
demonstrar que a vida musical religiosa estrutura-se desde o nascimento das vilas. Com
relação à música erudita profana setecentista, quase tudo o que se sabe provém de contratos
relativos a festejos e de relatos de viajantes. Há referências a saraus nos quais se executava
música de câmara vocal e instrumental, há descrições de festas "de rua", com seus bailes e
serenatas, como há contratos relativos a óperas, principalmente por ocasião de celebrações da
família real (óperas que certamente alternavam diálogos falados e cenas cantadas, como
naquelas compostas sobre textos de Antônio José da Silva, o Judeu, das quais são conhecidas
duas versões: uma com música de António Teixeira, conservada no Palácio Ducal de Vila
Viçosa, e outra de compositor anônimo, guardada no acervo da Banda Phenix de Pirenópolis).
O Triunfo eucarístico, relato das festas de translado do Santíssimo Sacramento da Igreja do
Rosário para a nova matriz do Pilar de Ouro Preto, em 1733, faz várias menções à música
executada na rua e na igreja. O Parnasso obsequioso, encenado pelo inconfidente Cláudio
Manoel da Costa em 1768, é caracterizado como "drama para se recitar com música", o que
sugere realização operística. A ausência de nomes de compositor nas referências a óperas
reflete costume da época: o autor da ópera era o dramaturgo ou o comediógrafo, com o qual o
compositor apenas colaborava. Isso ocorria tanto na Europa como no Brasil, e aqui gerou
confusões maiores, fazendo com que António José da Silva fosse indevidamente citado como
músico em muitos estudos.
Infelizmente, os arquivos musicais brasileiros não conservaram nada desta música de
destinação teatral, exceto a Oratória ao Menino Deus para a noite de Natal, de Inácio Parreiras
Neves, pertencente ao acervo do Museu da Música da Arquidiocese de Mariana e que, como o
nome o indica, é um oratório, e não uma ópera. Certamente o repertório profano era mais
efêmero que o sacro, e embora houvesse o hábito - e mesmo a exigência - de produção de
obras novas para cada volta do ciclo litúrgico, a existência mesma desse ciclo justificaria a
guarda de peças já executadas. Por outro lado, parte substancial dos acervos de manuscritos
musicais mineiros provém de arquivos de orquestras ou bandas e, mais raramente, de igrejas e

107
irmandades, instituições que tinham maior permanência e costumavam guardar bons arquivos
de documentos. Ainda que os grupos que atuavam na ópera fossem formados basicamente
pelos mesmos músicos que tocavam nas igrejas, não foi sentida por eles a necessidade de
perpetuação desse gênero de música. Não se pode esquecer, entretanto, que era
perfeitamente aceitável a retomada de um mesmo libreto para novo espetáculo, desde que
"ornado" de nova música, ou novamente composto-, o que significa que, com música nova,
nascia nova ópera. De fato, apesar de ter havido maior quantidade de músicas para ópera que
de libretos, estes foram mais conservados pelos arquivos, talvez porque podiam estar na
origem de novas óperas.
Como se disse anteriormente, desde inícios do século XVIII as das zonas de mineração
tinham vida musical intensa, com prática voltada para o abrilhantamento de festas religiosas e
profanas, promovidas e financiadas pelos Senados da Câmara e pelas irmandades, confrarias e
ordens terceiras. Qual teria sido a procedência dos primeiros músicos amantes na região e de
que maneira teria sido realizada a formação de seus colaboradores e sucessora locais?
Os documentos conhecidos hoje não trazem ainda resposta para essa questão. São
levantadas hipóteses aceitáveis, porque quase óbvias: os primeiros mestres atuantes nas
Minas Gerais teriam sido músicos, portugueses ou já nascidos no Brasil, provenientes de
regiões de colonização mais antiga e onde a profissão de músico já estava estruturada (Bahia,
Pernambuco, Maranhão, Rio de Janeiro ou São Paulo). Eram músicos bem formados, capazes
de obter excelentes resultados em trabalho rápido, a julgar pelos muitos relatos que
mencionam a qualidade da música e da interpretação, sempre comparada ao que se fazia na
metrópole. Eram bons compositores, professores e líderes de grupos.
Muitos dos primeiros nomes de músicos encontrados nos livros de registro são já de
naturais da região. Levantamentos mais ou menos pormenorizados dão a garantia de que
eram, em sua grande maioria, mulatos ou negros livres, havendo alguns raros casos de
músicos presumivelmente brancos. Qual seria a razão dessa predominância? Deve-se tomar
em conta a estrutura social das comunidades dessas vilas, nas quais a classe dominante era
formada pelos membros da administração colonial e da hierarquia católica, seguindo-se os
grandes comerciantes e as altas parentes militares. Não sendo zona agrícola, os proprietários
rurais tinham menor importância. Na pirâmide social vinham a seguir os pequenos
comerciantes, os demais militares e, finalmente, os funcionários menores da administração e
os artífices. Aos escravos negros, que muitas vezes representavam a maioria da população das
vilas, cabia todo o trabalho braçal. Os negros forros (que compraram ou ganharam a liberdade)
e os filhos de mãe escrava e pai branco (que, muitas vezes, recebiam carta de alforria no
momento do batismo) acabavam por ficar na incômoda zona intermediária, sem direitos e sem
possibilidade de inserção na vida social, não sendo nem escravos, nem totalmente senhores de
suas vidas. A eles oferecia-se como melhor oportunidade o aprendizado de algum oficio ou
arte, entrando na classe autônoma dos artífices.
A possibilidade de profissionalização na área das artes será atrativa, oferecendo vasto
campo de trabalho no qual não havia competição com as elites, pois no Brasil, como no resto
do mundo ocidental, o artista ocupava posição subalterna, comparável à criadagem, o que não
o impedia de ter certo prestígio social e de ter convívio direto com a classe dominante. A
educação da elite incluía bons conhecimentos artísticos, e até mesmo o aprendizado de canto
e de instrumento, mas nunca com objetivo profissionalizante. Formava artistas de saraus e
mecenas esclarecidos. Não havia também competição com a classe média branca, para a qual
o comércio e o serviço público eram opções profissionais mais interessantes. Para o mulato e,
com menor frequência, para o negro forro, tornar-se um bom oficial ou um bom cantor ou
instrumentalista era ter acesso a mercado efervescente, sempre necessitado de bons
profissionais. Para os que se destacavam, o acesso ao nível de mestre significava realização
profissional completa e possibilidade de vida cômoda.
Esse mecanismo de acesso a posições sociais mais vantajosas explica o surgimento de
várias gerações de artistas mulatos, atuando nas áreas da construção (inclusive o desenho

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arquitetônico), da cantaria, da estatuária, da pintura e da música. Só a criação literária, pouco
ou nada profissionalizada, continuou dominada pelos bacharéis e padres, membros da elite
branca, ainda que fosse exigido do músico mulato bom conhecimento literário, inclusive do
latim. E todos eram profissionais ciosos do valor do que produziam, defendendo seus direitos e
zelando pela ética profissional através de organismos quase sindicais às irmandades religiosas
específicas. Vieram de Portugal as irmandades de São Lucas (dos pintores) e de Santa Cecília
(dos músicos), esta última introduzida no Brasil no final do século XVIII, reunindo músicos que
antes já se agrupavam em irmandades destinadas aos pardos (São José dos Homens Pardos,
Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora da Boa Morte, Nossa Senhora das Mercês).
A organização da profissão e a formação de corporações estáveis vai ocorrer lentamente
ao longo do século XVM Irmandades, confrarias e ordens terceiras contratam serviços anuais
ou para atendimento específico a urna grande solenidade, do mesmo modo que os Senados da
Câmara (responsáveis pelas festividades oficiais do Reino: Corpus Christi, São Sebastião, Anjo
Custódio do Reino, Santa Isabel e, mais tarde, São Borja). Tem início o sistema das
arrematações, que durou aproximadamente até a época da Independência e através do qual
os serviços eram oferecidos em concorrências públicas. Nesses casos, o proponente, que era
um compositor ou um simples arregimentador, devia apresentar inclusive o rol dos
intérpretes, obrigando-se a substituí-los, se necessário, por artistas de igual categoria. Os
serviços eram pagos em oitavas de ouro ou em mil-réis, com valores estabelecidos de acordo
com a duração do contrato, o tipo de música e a quantidade de intérpretes, sem esquecer as
possibilidades econômicas do contratante. Excelente exemplo de arrematação foi aquela
realizada pelo Senado da Câmara de Vila Rica, em maio de 1792, relativa ao Te Deum “pelo
feliz sucesso de se achar desvanecida a pretendida conjuração desta Capitania”, de que saiu
vencedor o violinista Manoel Pereira de Oliveira.
Os valores pagos aos músicos são excelente terna de estudo para definição de seu grau
de profissionalismo de seu status social. Esse tema foi tratado por Tarqüínio Barbosa de
Oliveira no livro inédito A música oficial em Vila Rica, no qual estão transcritos contratos
(inclusive a citada arrematação de 1792) e são examinados os valores relativos das unidades
monetárias utilizadas.
Através dos registros de despesas, pode-se ver que, na primeira metade do século XVIII,
predominam os pagamentos à muzica, sem menção de pessoas, e que só mais tarde, por volta
de 1750, começa a aparecer o nome do contratado (que seria o mestre) e, ainda mais tarde, o
rol dos intérpretes. Não há, de início, definição de corporação musical estável, nem destaque
para a figura do mestre ou do compositor. Conhecendo os nomes de grandes compositores
setecentistas mineiros, pode-se fazer o caminho inverso, encontrando-os na qualidade de
cantores (Francisco Gomes da Rocha, Inácio Parreiras Neves e Florèncio José Ferreira
Coutinho, por exemplo), como instrumentistas (os dois Marcos Coelho Neto, por exemplo), ou
como arrematadores de solenidades. Não há destaque específico para o papel de regente
desempenhado pelo mestre ou por um dos intérpretes. De fato, a implantação dessa
especialidade musical ocorreu muito lentamente, alcançando seu sentido moderno a partir da
primeira metade do século Antes disso, o organista ou outro intérprete, instrumentista ou
cantor, tinha a função de fazer o compasso, recebendo pequena complementação salarial,
muito inferior à que recebia como instrumentista (entre 20 e 25%, nos casos examinados).
No que se refere ao trabalho de compositor, pode-se deduzir que seu pagamento
correspondia ao valor atribuído ao mestre-compositor-intérprete, nos casos de pagamentos
com discriminação de nomes, ou na parte que ele retinha, nos casos de contratos que não
discriminavam o valor dos serviços de cada intérprete e que tinham rateada a soma global
após o pagamento. As diferenças salariais, entretanto, por não serem muito marcantes, não
demonstram especial valorização do intérprete-compositor. Vê-se, entretanto, que os nomes
daqueles que hoje são conhecidos como os grandes compositores do período aparecem
frequentemente e por anos a fio nos contratos e recibos, em clara indicação de re-
conhecimento de seu valor. De um modo geral, os contratos anuais eram automaticamente

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renovados, se não denunciados por uma das partes. Assim, pode-se encontrar, em cada
instituição contratante, ausência de contrato anual por um ou vários períodos, indicando
permanência do mesmo grupo, do mesmo modo que a recontratação da mesma pessoa ou
grupo, com atividades e salários modificados para mais ou para menos; há também casos de
dispensa de serviços ou recusa de proposta de trabalho.
Muzica, Partido da muzica, Muzica do partido, Companhia de muzicos: assim são
indicadas as corporações musicais agrupadas em torno de um músico contratado. Alguma
estabilidade pode ser detectada somente através da maior frequência com que aparecem
alguns nomes. É provável, entretanto, que tenha ocorrido processo de cristalização de diversos
grupos mais ou menos estáveis, sobretudo em razão do rico calendário dos senados,
irmandades, confrarias e ordens terceiras e da fatal superposição de festejos desses
calendários. Corno veio i ocorrer mais recentemente, é provável que, nas vilas de maior
movimento, cada grupo, informalmente estabelecido. acabasse por prestar serviços a uma ou
a várias instituições, desde que houvesse compatibilidade de calendário concorrendo todos,
individualmente ou em novas corporações, nas arrematações dos senados, cujas festas
suprimiam ou adiavam as do santoral. Só em 1776 constituiu-se, em Minas, a primeira
sociedade musical estruturada como coro e orquestra, regida por estatutos: a Companhia de
Muzicos fundada em São João del Rei por José Joaquim de Miranda e que, muito mais tarde,
viria a denominar-se Orquestra Lira Sanjoanense. A ela seguiram-se outras, muitas vezes sem
formalização imediata através de atas e estatutos, mas que se mantiveram coesas e ativas; até
meados do século XX, muitas vezes praticamente transformadas em bandas de música. Apenas
quatro dessas corporações mineiras antigas permanecem vivas e atuantes até hoje: a
Orquestra Lira Sanjoanense e a Orquestra Ribeiro Bastos, de São João del-Rei, a Lira Ceciliana,
de Prados, e a Orquestra Ramalho, de Tiradentes, as duas últimas estruturadas em meados do
século XLX e todas localizadas na mesma microrregião mineira onde são preservadas muitas
das tradições religiosas setecentistas e oitocentistas.
O progresso material da província e as exigências das instituições civis e religiosas
conduziam à produção cultural que ficou, na arquitetura, na escultura e na pintura, como
testemunho do grau de desenvolvimento das técnicas artísticas, assim como dos caminhos
próprios que a estética barroca trilhou na região das Minas. As práticas musicais também
refletem essa efervescência cultural, com o desejo de dar maior brilho às solenidades, segundo
os modelos metropolitanos, com permanente emulação entre as instituições contratantes, que
mostravam seu poderio através da materialidade de sua expressão da fé ou da homenagem
aos governantes. Através de listagens estabelecidas por diversos musicólogos, pode-se
aquilatar a quantidade de músicos atuantes nas diferentes vilas. Através das obras
conservadas nos arquivos, pode-se avaliar o alto grau de desenvolvimento das técnicas
composicionais e interpretativas (pois os cantores e instrumentalistas eram capazes de
resolver rapidamente os problemas técnicos e musicais propostos nas obras). Dentre os
compositores atuantes durante os séculos XVIII e XLX, alguns dos quais com obras incluídas
neste catálogo e na cocção de partituras que ele apresenta, podem-se destacar: António de
Sousa Lobo, José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, Marcos Coelho Neto (pai e filho),
Francisco Gomes da Rocha, Inácio Parreiras Neves, Florêncio José Ferreira Coutinho Jerônimo
de Sousa Lobo, Jerônimo de Sousa Queirós, Manoel Dias de Oliveira, Tristão José Ferreira, João
de Deus de Castro Lobo. Lourenço José Fernandes Braziel e Antônio dos Santos Cunha,
nascidos no século XVIII, e João José de Araújo, Joaquim de Paula Sousa Bonsucesso, Francisco
Martiniano de Paula Miranda, Marcos dos Passos Pereira, Martiniano Ribeiro Bastos,
Presciliano Silva, Firmino Silva, José Maria Xavier, João José das Chagas, João Francisco da
Mata, Carlos dos Passos Andrade e José Vítor da Aparição, nascidos no século XIX.
As obras dos arquivos, os relatórios oficiais e os relatos de viagem permitem dedução a
respeito da constituição dos conjuntos musicais mais frequentes na região. Nos relatos mais
antigos e menos específicos, aparecem descrições de realizações a dois coros de musica, que
podem ser entendidas de dois modos: como emprego de dois conjuntos musicais alternantes,

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um formado pelo clero (canto-chão) e outro constituído de músicos profissionais, em coro a
capela ou em coro-orquestra (canto de órgão ou música polifônica), ou como emprego de dois
conjuntos intercomplementares de vozes e/ou instrumentos. Descrições mais pormenorizadas
apontam claramente para a segunda acepção: nas solenes exéquias celebradas em São João
del Rei, em 175 1, em homenagem a D. João V usou-se obra escrita para quatro coros, cada um
deles composto de vozes e instrumentos, colocados em diferentes locais da igreja (a descrição
da extraordinária celebração barroca em memória de D. João V está transcrita e analisada por
Afonso Ávila no estudo Uma encenação barroca da mote: as solenes exéquias de Dom João
Vem São João del Rei). Além disso, há grande quantidade de peças para dois coros alternados
(na frente e atrás do andor, nas procissões) e para coro duplo.
Com relação à formação desses grupos corais, com um ou dois cantores por naipe e
raramente em grupo maior, é bom lembrar que as mulheres não eram admitidas em conjuntos
profissionais e no serviço religioso (até por determinação da Santa Sé); por outro lado, não há
notícia da existência de castrados ou de verdadeiros sopranistas em Minas, espécies de
cantores que fizeram grande sucesso na Capela Real do Rio de Janeiro e para os quais José
Maurício escreveu muitas árias de suas missas. Relatos sobre a prática musical mineira e
contratos de trabalho apontam para outra direção: a presença de triples meninos sopranos e
de homens falsetistas (contraltos). Como até vinte anos atrás as cantoras não participavam das
Encomendações de almas, restavam ainda resquícios práticos da formação coral antiga,
ficando as partes de soprano e contralto confiadas aos homens, cantando em falsete.
Quando aparecem os primeiros conjuntos instrumentais sacros, diferentes dos grupos
de charameleiros das festas de rua, a formação mais frequente será a de coro a quatro vozes,
dois violinos e baixo instrumental (certamente com função de contínuo). A viola é omitida em
multas das obras mineiras setecentistas, mas pode aparecer com a indicação de obligata (caso
especial e o do Oficio dos defuntos, também chamado Oficio tias violetas, de Lobo de
Mesquita, no qual as violas substituem os violinos. criando sonoridade mais escura e clima de
particular dramaticidade). Em cada obra há uma única parte de baixo instrumental, raramente
cifrada (como muitas das obras mais antigas são conhecidas através de cópias oitocentistas, a
cifragem, Já em desuso, pode ter sido abandonada pelos copistas); mas há casos de emprego
de dois baixos separados, às vezes com a especificação do violoncelo, e mesmo de três partes
diferenciadas (como na missa do português frei José Marques, do arquivo da Orquestra Ribeiro
Bastos, que inclui baixo I, baixo II e baixão). A entrada dos sopros se faz, inicialmente, pela
incorporação de duas trompas, logo aparecendo dois oboés ou duas flautas. Os fagotes podem
ter sido também empregados nessa fase inicial, no contínuo, a julgar pela existência de partes
antigas de basson, que teriam sido substituídos, mais tarde, pelos oficleides e, depois, pelos
bombardinos. A indicação mais antiga de clarineta parece ser de 1783, não muito após sua
primeira utilização por Mozart (1778). No início do século XLX cresce o grupo dos metais, com
assimilação dos trompetes e trombones (veja-se o brilho metálico da Missa a oito vozes do
padre João de Deus de Castro Lobo). Em muitos casos há indicação explícita de trechos para
solistas, vozes ou instrumentos, quando se trata de solista destacado de grupo maior ou
apenas evidenciando linha melódica predominante, quando há um ártico instrumentista do
naipe no conjunto previsto. Nos casos de obras destinadas a cerimônias de rua, a orquestra
restringe-se a duas flautas, duas trompas e baixo, nas obras mais antigas, chegando a maior
contingente de sopros em obras oitocentistas.
Como a maior parte das obras setecentistas aparece nos arquivos de manuscritos
musicais apenas em cópias do século XLX, e como há evidencias de que os copistas interferiam
diretamente nas obras copiadas, com substituição de instrumentos ou instrumentistas
indisponíveis no momento, as partes de flautas encontradas em obras antigas podem ter sido
concebidas para oboés, como partes de clarinetas podem ter sido anteriormente destinadas a
segundo oboé ou segunda flauta, e assim por diante. Infelizmente, a funcionalidade imediata
fez com que os copistas destruíssem (e isso até bem recentemente) as cópias consideradas
velhas e inúteis. Só a comparação sistemática de manuscritos setecentistas e oitocentistas das

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mesmas obras poderá trazer informação mais precisa sobre os tipos de substituição
instrumental que foram mais freqüentes. Mas a resposta não será necessariamente definitiva.
Excelente exemplo desse tipo de problemática pode ser encontrado em Antônio dos Santos
Cunha, de quem a Orquestra Ribeiro Bastos tem partituras integrais e partes separadas dos
Responsórios das Matinas de quinta, sexta e sábado santos, em manuscritos (autógrafos do
compositor?) de fins do século XVIII ou início do século XLX. A comparação das duas versões
mostra diferenças substanciais na estrutura orquestral (vozes, duas trompas e cordas nas
partituras e acréscimo das madeiras, nas partes separadas) e musical (reescrita de diversos
trechos, reequilibrando a instrumentação e dando destaque de solista a instrumentos
incluídos nas partes separadas).
Não está ainda explicado de que maneira se dava o suprimento de instrumentos e
acessórios (cordas, palhetas etc.) nas corporações musicais mineiras do período colonial. Os
primeiros instrumentos devem ter sido importados da Europa, diretamente ou através de
centros coloniais mais desenvolvidos. Há indicações relativas à construção de um órgão em
Diamantina, na segunda metade do século XVIII, mas os dois melhores instrumentos da época,
o da Sé de Mariana e o da matriz de Tiradentes, são de construção alemã e chegaram a Minis
via Portugal, após longa viagem de navio e em lombo de burro, sendo montados por artesãos
locais. Infelizmente, são poucos os órgãos setecentistas conservados em Minas. Sabe-se que
muitos deles, bastante deteriorados, foram desmontados entre as últimas décadas do século
XIX e as primeiras do século XX, talvez porque exigissem grande investimento de manutenção
e fossem considerados desnecessários (a época do contínuo estava superada). O
desaparecimento dos cravos deve ter ocorrido por igual razão, mas muito tempo antes.
Não parece provável que artesãos locais tenham podido construir boas flautas (os
instrumentos mais antigos encontrados são de procedência alemã e francesa) e, muito menos,
oboés, fagotes e trompas. O uso de instrumentos de cordas, principalmente violinos e violas,
de bons construtores alemães e franceses era também habituai, podendo-se encontrar ainda
alguns desses instrumentos na posse de instrumentistas ou de corporações musicais da região.
Mas é certo que, ainda no século XVIII, a necessidade de maior quantidade de instrumentos de
cordas levou os artesãos a dedicarem-se à produção deles. Até meados do século XX viviam na
região artesãos que se dedicavam à construção e ao reparo de instrumentos de cordas,
herdeiros daquela tradição de luteria. A popularidade da rabeca em manifestações folclóricas
brasileiras é outro indício dessa prática de construção, que deve ter tido duas vertentes: a
erudita, com instrumentos mais leves e trabalhados, e a popular.
Ainda está por ser realizado estudo detalhado dos aspectos técnicos e estilísticos do
conjunto da produção musical mineira dos séculos XVIII e XIX. Em razão do desconhecimento
do repertório quinhentista e seiscentista utilizado no Brasil, composto ou não por naturais da
terra, não se pode saber em que medida eram respeitadas as normas composicionais na
metrópole e quais seriam os elementos distintivos da música brasileira nesses dois séculos.
Não se sabe também com clareza como teria ocorrido a transição entre a tradição barroca e a
modernidade clássica. Como os relatos relativos à música produzida na primeira metade do
século XVIII não entram em especificidades técnicas e estilísticas, nem nomeia obras e autores,
fica-se sem saber quais teriam sido efetivamente os modelos musicais dos compositores
mineiros. Indicações mais precisas aparecem por volta de 1750 e podem ser comprovadas, em
certa medida, por documentos de arquivos musicais. Sabe-se que, transferido do Maranhão
centro desenvolvido na primeira metade do século XVIII, o primeiro bispo de Mariana, dom
frei Manuel da Cruz, teve a preocupação de trazer livros de canto gregoriano (há excelentes
exemplares deles no Museu da Música da Arquidiocese de Mariana) e provavelmente cópias
de obras em canto de órgão do repertório maranhense. Antes disso, o bispo do Rio de Janeiro,
de cuja jurisdição dependia a região das Minas, fez chegar repertório polifônico a Vila Rica, de
onde se espalhou, em cópias, para outras vilas. Há noticias de remessa de obras para o Brasil,
em 1741, com indicação de autores como Palestrina, Lassus, A. Scarlatti, Lully, Rameau,
Frescobaldi, Monteverdi e Pergolesi. Em 1750, por solicitação do primeiro bispo de Mariana, é

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remetido de Portugal caixote contendo livros gregorianos e música polifônica para missas,
matinas, vésperas, ofícios fúnebres, novenas. Em 1788 foram enviadas a Minas 18 obras de
Byrd, Haendel, Purcell, Haydn, Mozart e Pergolesi. Essa remessa atendia à solicitação do
quarto bispo de Mariana, dom frei Domingos da Encarnação Pontevel. Na tia correspondência
dos bispos fica evidente o desejo de receber obras “no melhor estilo orquestral, cópias sem
erros, incluindo as vozes”, que fossem "atualizadas" e que incluíssem "órgãos, oito
instrumentos de cordas, seis de sopro, além do acompanhamento de vozes". Restaram em
arquivos musicais mineiros obras de alguns dos compositores anteriormente citados, e
também peças de outros autores clássicos, como I. Pleyel.
Modelos variadíssimos, partindo do Renascimento e chegando ao classicismo, com forte
predominância, nos mineiros setecentistas, da influência da escrita italiana do barroco e de
soluções pré-clássicas e clássicas de gosto italiano. Observando as obras mineiras setecentistas
já recuperadas e divulgadas, pode-se concluir que, mesmo nos casos em que aparece
indicação de baixo contínuo, por cifragem do baixo instrumental, o espírito do barroco já está
praticamente superado. Alguns dos traços característicos do tratamento das cordas revelam
toques do barroco italiano, vertido em linguagem pré-clássica. Predominam o claro
pensamento harmônico (funções tonais e esquemas modulatórios bem definidos), a melodia
acompanhada (localizando-se o canto, sobretudo nos instrumentos que conduzem o discurso),
o tratamento basicamente harmônico do coro (enchimento que faz pensar na função de
“acompanhamento de vozes”, como dizem muitos documentos), a escrita virtuosística das
panes vocais solistas (Inclusive nos duos, trios, quartetos). Destaque-se especialmente a
constituição clássica dos agrupamentos orquestrais, sempre de caráter mais camerístico que
sinfônico.
Na passagem para o século XIX, e, sobretudo durante esse século, assiste-se à
progressiva assimilação dos modismos da ópera italiana, que refletia o gosto do público e dos
músicos, surgindo obras que aceitam essas modernidades, mas guardam o espírito religioso,
ao lado de outras que são autênticos pastichos dos sucessos da época. As influências do
romantismo europeu nascente, conhecido através da obra de Beethoven e de outros
compositores, trarão modificação no pensamento e na escrita musicais, sendo compostas
obras como, por exemplo, a Missa a oito vozes, do padre João de Deus de Castro Lobo
(influência semelhante à sentida rio Réquiem de 1816 e na Missa de Santa Cecília, do padre
José Maurício Nunes Garcia).
Os arquivos mineiros revelam fato importante: o sistemático intercâmbio de obras
musicais. Ao contrário do que afirmam alguns pesquisadores as vilas, ainda que musicalmente
auto-suficientes, não se isolavam. Embora não haja indicação de que os compositores
viajassem muito de vila em vila, é provável que houvesse procura de centros que oferecessem
mais recursos e melhor remuneração (Lobo de Mesquita, por exemplo, passou do Serro a
Diamantina, e dali para Vila Rica e para o Rio de Janeiro). Mais que seus autores, as obras
tinham ampla circulação, através de cópias. Desse modo, obras de muitos compositores
setecentistas e oitocentistas podem ser encontradas em arquivos musicais de diversas regiões,
mostrando, por sua frequência, a popularidade de autores e obras. Entretanto, estudo
comparativo das várias versões da mesma obra, de tanta importância musicológica, é de
realização difícil tanto pela inexistência de sistema nacional de arquivos e de catálogos
editados, quanto pela maneira como os manuscritos se apresentam em cada arquivo.
De fato, todos os acervos incluem grande quantidade de obras sem indicação de autor
ou, ao contrário, com múltipla atribuição de autoria, há grande incidência de obras sem
titulação ou com títulos diferentes em diferentes arquivos, como há grande quantidade de
partes vocais e instrumentais isoladas, inteiras ou fragmentadas, sem nenhuma indicação de
autoria ou de titulação, exigindo acurado trabalho musicológico e grande conhecimento de
repertório para sua identificação. Quando os arquivos estiverem organizados de modo
sistemático e quando forem divulgados seus catálogos, poderão ser feitos, via informática,
cruzamentos de informações que permitam definir ou confirmar autorias, completar obras

113
incompletas (multas obras puderam ser integralmente recuperadas através da reunião de
partes encontradas em arquivos diferentes) e concluir sobre a instrumentação original.
A rica experiência musical mineira do século XVIII prolongou-se ao longo do século XIX,
sofrendo transformações de várias ordens. A capacidade de adaptação dos compositores, das
corporações musicais e das entidades promotoras de festividades assegurou continuidade que
teria sido impossível se tivesse ocorrido fenômeno de estratificação e de cristalização da
prática musical. Já nas primeiras décadas do século XIX, o decréscimo da produção aurífera
deixava marcas profundas na economia local, atingindo não só os investimentos urbanos de
necessidade imediata, mas também diminuindo os recursos destinados à produção artística.
Desde a instalação da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, as vilas mineiras perdiam parte de
sua importância cultural, suplantadas pela capital do Reino. Durante o Império, mesmo a
capital teve dificuldades para manter os padrões musicais atingidos na segunda metade do
século XVIII e desenvolvidos durante as primeiras décadas do novo século.
Em Minas, os recursos para o serviço musical diminuem sensivelmente, ocasionando
paulatina substituição do profissionalismo integral por semi-profissionalismo; os salários
recebidos tornam-se insuficientes para a subsistência dos músicos, obrigando-os a terem
outras atividades profissionais. Se no passado muitos mestres dedicavam-se a atividades de
ensino (em virtude mesmo de suas obrigações como mestres) ou atuavam como
instrumentistas em bandas de corporações militares, permanecendo sempre na área musical,
eles agora deveriam buscar outros ofícios, ficando o próprio ensino da música na categoria de
semiprofissional ou amador. Aos poucos, o que podiam receber por suas atividades musicais
passou a representar parecia ínfima de suas necessidades básicas, transformando-se em mero
acréscimo ocasional no orçamento. Então, as atividades de ensino deixaram de ser
remuneradas, e os velhos mestres passaram a formar instrumentistas e cantores (e,
indiretamente, compositores) movidos pelo amor a suas corporações musicais, pela
necessidade de preencher os quadros de seus grupos e pelo apego à tradição musical-religiosa.
Sabe-se que, em Minas Gerais, as corporações musicais de inúmeras cidades
mantiveram-se ativas até meados do século XX, muitas vezes contando com pequeno efetivo
(mas os grupos setecentistas também eram pequenos), muitas vezes com base instrumental
mais próxima da banda de música (o que exigia adaptação do repertório à nova contingência).
No fim do século XIX, e principalmente na primeira metade do século XX, ocorreu também
sensível modificação do repertório desses grupos, sendo abandonadas peças importantes dos
arquivos, substituídas por adaptações de obras que refletiam outra espécie de piedade
católica, divulgadas; em coletâneas das quais a Harpa de Sião é bom exemplo. Todos os
arquivos mineiros estão repletos de obras de autores alemães e italianos, principalmente,
representantes desse novo tipo de música religiosa. Pode-se levantar muitas hipóteses sobre
essa modificação de repertório, parecendo mais provável que ela respondesse às limitações
técnico-interpretativas dos grupos, que, nesse período, já não tinham formação e pratica
suficientes (em razão do amadorismo, do pouco tempo dedicado ao estudo e aos ensaios e da
vastidão do repertório do ciclo litúrgico) para enfrentar os problemas apresentados pelas
grandes obras setecentistas e oitocentistas. Por outro lado, as obras daquelas antologias
católicas, escritas para duas ou três vozes iguais e harmônio, eram de mais fácil adaptação ao
contingente instrumental disponível do que as composições dos mineiros do passado. O início
do fim ocorre, na maioria das cidades, em razão das modificações introduzidas pela reforma
litúrgica de Pio XII (muitas das peças tradicionais deixavam de ser executadas por não fazerem
parte da nova liturgia, inexistindo, por outro lado, músicas adequadas aos novos textos) e,
pouco mais tarde, por forte movimento de popularização da liturgia, a partir de novos
princípios pastorais (derivado particularmente do Concílio Vaticano II). Muitos bispos e padres
julgavam que só haveria participação do povo se todos atuassem ininterruptamente nas rezas
e cantos, e afirmavam a necessidade de compreensão racional do faro litúrgico, que englobaria
entendimento intelectual dos textos e dos ritos.

114
Deriva disso claro fenômeno de simplificação secularizante, que suprimiu gestos e atos
de simbolismo mais refinado e afastou o toque de mistério da liturgia tradicional. Esses bispos
e padres não atentaram para o fato de que a compreensão e a comunicação, principalmente
no âmbito religioso, realizam-se também em níveis não verbais, que a emoção atingida pelos
fiéis em uma missa solene ou em um ofício cantados em latim (que, alias, estavam transcritos
nos velhos missais bilíngües, podendo ser seguidos pelos interessados) suplantava a simples
compreensão das palavras da liturgia ou a seca declamação coletiva de seus textos. Eles não
pensavam, igualmente, que muitos dos textos litúrgicos podem ser de fato inacessíveis às
pessoas mais simples, no que se refere à sua pura literalidade. Alguns padres consideravam
que a qualidade de interpretação de suas orquestras e coros era inaceitável, mas não
contribuíram para o aprimoramento dos músicos. De fato, faltava a esses bispos e padres visão
mais ampla dos fenômenos culturais e da religiosidade popular, como faltava formação
estética mais aprofundada, que lhes permitisse dar o devido valor ao patrimônio artístico sob
sua guarda (muitos destruíram igrejas e venderam adornos e paramentos) e julgar o valor da
música que propunham como substituta do repertório tradicional. Com algum recuo, já se
pode ver hoje que, na melhor das hipóteses, os intelectuais do canto pastoral descobriram os
modalismos nordestinos e desejaram que o Brasil inteiro funcionasse dentro do sistema
modal, igualando cidades, regiões, grupos sociais e suas respectivas experiências culturais; na
maioria dos casos, foi implantada uma espécie de submúsica de consumo que imitou os piores
chavões da música que se ouve no rádio ou no parque de diversões (e por que não na zona?),
trazida para a Igreja ornada de textos que, por sua vez, não revelam as qualidades da literatura
popular e resvalam sempre para uma poesia acadêmica pouco inspirada.
No que se refere aos grupos, adveio diminuição do contingente das corporações, quer
pelo menor atrativo da "profissão", que não remunerava, quer pela menor atuação e
competência pedagógica dos diretores dos grupos. A incidência de um ou de vários dos fatores
antes enunciados trouxe a redução ou a negação da funcionalidade das corporações, razão
primeira de sua existência, levando a maioria delas ao desaparecimento. Atualmente, apenas
nas cidades que souberam manter vivas as tradições religiosas do passado, com suas missas,
ofícios, novenas e procissões, guardou-se viva também a herança musical: São João del Rei
com a Orquestra Lira Sanjoanense e Orquestra Ribeiro Bastos, Prados, com a Lira Ceciliana, e
Tiradentes, com a Orquestra Ramalho (das quatro, a que corre maior perigo de interromper
suas atividades). Coincidentemente, antropólogos interessados em estudar a religiosidade
popular são unânimes em citar essas cidades como fenômenos ímpares e indispensáveis para a
compreensão do catolicismo tradicional brasileiro e da participação do povo em liturgia
complexa.
Os arquivos de manuscritos musicais setecentistas e oitocentistas foram sempre, em
Minas Gerais, propriedade das corporações musicais. Aquelas ainda atuantes conservam
zelosamente os seus; outras tiveram como sucessores bandas de música ainda ativas, que
preservam parte do repertório antigo para coro e orquestra, tendo desaparecido (por
empréstimos, doações ou apropriações de pesquisadores) ou tendo sido destruída (por ser
considerado material inutilizável) parecia substancial do acervo primitivo. Das corporações
desaparecidas, a maior parte dos acervos também desapareceu ou foi incorporada, por doação
ou compra, a outros arquivos. Desse modo, pode-se afirmar que as maiores coleções de
manuscritos musicais podem ser encontradas nas orquestras antes citadas (a Orquestra Lira
Sanjoanense possui também parte do arquivo musical de Aiuruoca), na Lira Nossa Senhora das
Dores (Dores de Campos), no Museu da Música da Arquidiocese de Mariana (que reúne
material que dom Oscar de Oliveira, arcebispo emérito de Mariana e historiador, coletou
naquela cidade e em diversas outras paróquias de sua arquidiocese), no Pão de Santo Antônio
(Diamantina) e no arquivo da Casa do Pilar do Museu da Inconfidência de Ouro Preto (coleção
reunida por Francisco Curt Lange, ao longo de seus trabalhos de pesquisa, e que foi adquirida
há poucos anos pela Flunarte e confiada à guarda daquele museu). Há notícias confiáveis da
existência de pequenas coleções, ainda não examinadas e catalogadas, conservadas por

115
bandas de música de algumas cidades, como sabe-se da existência de pequenas mas seletas )
coleções particulares, como a de Aluísio José Viegas (São João del Rei). Como poucos desses
arquivos estão catalogados ou fichados (Orquestra Ribeiro Bastos, Museu da Música de
Mariana e Casa do Pilar), não se pode ter ideia muito precisa da quantidade de obras
conservadas e da intercomplementaridade das coleções. Como se disse anteriormente, e não é
demais repetir, a catalogação sistemática desses arquivos e a multiplicação (por digitalização
via scanner) da totalidade de seu acervo são de urgente necessidade para a própria
preservação e para o conhecimento dessa importante parcela da memória musical brasileira.

116
Apostila do curso
História da Música Brasileira
Instituto de Artes da UNESP 9

A MODINHA E O LUNDU NOS SÉCULOS XVIII E XIX

Paulo Castagna

1. Introdução

Apesar do interesse crescente em torno da modinha e do lundu, ainda não foi


suficientemente investigada a origem e o desenvolvimento desses gêneros musicais de
importância luso-brasileira. Inicialmente, seu estudo foi uma preocupação maior dos
brasileiros que dos portugueses, mas na década de 1990 essa tendência se inverteu,
sendo impressas importantes contribuições em Portugal.
Um dos primeiro trabalhos sobre o assunto foi publicado por Sílvio ROMERO
(1881), mas foram propriamente os estudos de Mário de ANDRADE (1930 e 1944) que
se tornaram o ponto de partida para a compreensão das principais características da
modinha e do lundu. João Baptista SIQUEIRA (1956) e Eunice Evarina Pereira
MENDES (1959) possuem trabalhos importantes sobre as antigas canções brasileiras,
seguidos de Mozart de ARAÚJO (1963), o primeiro pesquisador que se dedicou às
origens históricas da modinha e do lundu. Essa tendência aparece também em Gerard
BÉHAGUE (1968) e Bruno KIEFER (1977), sendo os trabalhos mais recentes nessa
linha os de Manuel MORAIS (2000), incluindo, no primeiro deles, o estudo de Ruy
Vieira Nery sob a forma de prefácio.
Afora as obras dos autores acima citados, importantes coletâneas foram
impressas por Antônio Alexandre BISPO (1987), pelo Instituto da Biblioteca Nacional e
do Livro (JORNAL DE MODINHAS, 1996) e por Edilson de LIMA (2001).

2. A modinha

Na segunda metade do séc. XVIII desenvolveu-se, inicialmente em Portugal e


posteriormente no Brasil, um estilo peculiar de canção camerística, que acabou sendo
denominada modinha. A origem dessa designação está ligada à moda, que foi, em todo o
séc. XVIII, palavra portuguesa para qualquer tipo de canção camerística a uma ou mais
vozes, acompanhada por instrumentos.
A moda, em Portugal no séc. XVIII, foi um tipo genérico de canção séria de
salão, que incluía cantigas, romances e outras formas poéticas, compostas por músicos
de alta posição profissional. As modas foram tão comuns em Portugal no reinado de D.
Maria I que popularizou-se o dito de que na corte dessa rainha “era moda cantar a
moda” (ENCICLOPÉDIA, v.1, p.494).
A origem da modinha está relacionada um fenômeno europeu - e não apenas
português - da segunda metade do século XVIII. Com a progressiva ascensão da
burguesia e, consequentemente, com a mudança de hábitos da nobreza, surgiu uma
prática musical doméstica ou de salão destinada a um entretenimento mais leve e menos
erudito que aquele proporcionado pela ópera e pela música religiosa. Assim, a música
doméstica urbana, praticada por amigos e familiares em festas ou momentos de lazer,
privilegiou formas de pequeno número de intérpretes, de fácil execução técnica e de
restrito apelo intelectual.
Nessa fase desempenharam especial função na música de salão as canções
acompanhadas, que além dos requisitos acima, uniam a música à poesia, outra arte que
conquistou os saraus domésticos setecentistas. Surgiam, então, canções a uma ou mais
vozes, em idiomas locais e acompanhadas de instrumento harmônico. Na Itália apareceu
a canzonetta, na Espanha a seguidilla, na França a ariette, na Áustria e Alemanha o Lied
e em Portugal a modinha.
Todos esses gêneros de canções foram derivados de algum tipo de canto teatral.
No caso português, existem razões suficientes para se crer que a estrutura melódica das
modinhas foi uma derivação das melodias operísticas, apenas adaptadas ao idioma local e
às particularidades da prática doméstica. Assim, estão presentes nas modinhas, como
nas óperas daquele período, os duos em terças ou sextas paralelas, a ornamentação das
linhas vocais e as melodias ricas em notas diminuídas ou passagens ágeis. Observe-se
tais particularidades no exemplo 1, o dueto Entre a selva de Diana, de autor não
indicado, impresso em 1792 (JORNAL DE MODINHAS, p.15).

Exemplo 1. ANÔNIMO. Entre a selva de Diana (duetto), c.1-7.

Não foi sem razão que vários autores portugueses de modinhas foram também
compositores de óperas, como João de Sousa Carvalho (1745-1798), Marcos Antônio
Portugal (1762-1830) e Antônio Leal Moreira (1758-1819), enquanto outros foram
compositores de música religiosa (naquele tempo já fortemente influenciada pela
ópera), como José Maurício (Mestre da Capela da Catedral de Coimbra), Antônio da
Silva Leite (Mestre da Capela da Catedral do Porto), Antônio Galassi (Mestre da Capela
da Catedral de Braga) e Luís Antônio Barbosa (Mestre da Capela da Catedral de Braga).
Mas a evolução da moda em Portugal recebeu importante contribuição de um
brasileiro, o mulato Domingos Caldas Barbosa (Rio de Janeiro, c.1740 - Lisboa, 1800),
residente em Portugal a partir de 1770 e introdutor nos salões lisboetas de um gênero
particular de canção: a moda brasileira. Caldas Barbosa disfrutou de considerável
ascensão social no Reino: recebeu ordens menores, tornou-se conhecido na corte e
tomou parte na nova Arcádia de Lisboa, sob o pseudônimo de Lereno Selinuntino.
Dividiu opiniões em Lisboa, depois da difusão das modas brasileiras, tendo a seu favor
os marqueses de Castelo Melhor, mas como opositores Filinto Elísio, Antônio Ribeiro
dos Santos e o conhecido Bocage.
Foi somente a partir de 1775 que Caldas Barbosa começou a praticar seu novo
estilo poético, cujos textos foram preferentemente denominados cantigas e publicados
somente em 1798 (Lisboa), com o título Viola de Lereno, enquanto um segundo volume
surgiu em 1826, vinte e seis anos após sua morte. A denominação modinha, entretanto,
foi criação do próprio Caldas Barbosa, registrada por cronistas portugueses pouco
tempo após seu surgimento, como ocorreu com o poeta português Nicolau Tolentino de
Almeida em 1779 (ARAÚJO, p.38):

Cantada a vulgar modinha,


que é a dominante agora,
Sai a moça da cozinha,
e diante da senhora
vem desdobrar a banquinha.

[...]

Já dentre as verdes murteiras,


em suavíssimos acentos
com segundas e primeiras,
sobem nas asas dos ventos
as modinhas brasileiras

Outro caso digno de nota é uma carta do escritor português Antônio Ribeiro dos
Santos a um amigo (Lisboa, final do séc. XVIII), referindo-se a um sarau que assistiu a
contragosto. O texto, de grande valor informativo, tornou-se a mais precisa exposição
do significado das modinhas nos saraus lisboetas do séc. XVIII (ARAÚJO, p.39-40):

“Meu amigo. Tive finalmente de assistir à assembléia de F... [D.


Leonor de Almeida, Marqueza de Alorna] para que tantas vezes tinha sido
convidado; que desatino não vi? Mas não direi tudo quanto vi; direi
somente que cantavam mancebos e donzelas cantigas de amor tão
descompostas, que corei de pejo como se me achasse de repente em
bordéis, ou com mulheres de má fazenda. Antigamente ouviam e cantavam
os meninos cantilenas guerreiras, que inspiravam ânimo e valor; [...]
Hoje, pelo contrário, só se ouvem cantigas amorosas de suspiros, de
requebros, de namoros refinados, de garridices. Isto é o com que embalam
as crianças; o que ensinam aos meninos; o que cantam os moços, e o que
trazem na boca donas e donzelas. Que grandes máximas de modéstia, de
temperança e de virtude se aprendem nestas canções! Esta praga é hoje
geral depois que o Caldas começou de por em uso os seus rimances, e de
versejar para as mulheres. Eu não conheço um poeta mais prejudicial à
educação particular e pública do que este trovador de Vênus e de Cupido;
a tafularia do amor, a meiguice do Brasil e, em geral, a moleza americana
que em seus cantares somente respiram as imprudências e liberdades do
amor, e os ares voluptuosos de Paphos e de Cythera, e encantam com
venenosos filtros a fantasia dos moços e o coração das Damas. Eu admiro
a facilidade da sua veia, a riqueza das suas invenções, a variedade dos
motivos que toma para seus cantos, e o pico e graça dos estribilhos e
retornelos com que os remata; mas detesto os seus assuntos e, mais ainda,
a maneira com que os trata e com que os canta”
O texto de Ribeiro dos Santos, especialmente em seu final, informa com
precisão qual era a novidade, nas modas brasileiras, em relação às portuguesas: os
assuntos amorosos, tratados com ousadia e permissividade. No aspecto melódico,
entretanto, pouco deveriam diferir das modas em uso, mantendo as melodias derivadas
das árias e duetos operísticos. Por isso, Ribeiro dos Santos admira “a facilidade da sua
veia, a riqueza das suas invenções, a variedade dos motivos que toma para seus cantos, e
o pico e graça dos estribilhos e retornelos com que os remata”.
O musicólogo português Manuel MORAIS (2000a) questiona a versão corrente
de que Caldas Barbosa seria compositor e tocador de viola, acreditando que sua
participação na história da modinha teria sido principalmente a de letrista. De fato, não
são conhecidas melodias seguramente compostas pelo mulato carioca, mas tão somente
letras de modinhas. Assim, o adjetivo “brasileira” deve ser entendido, neste caso, como
uma peculiaridade do texto e não exatamente das melodias, ainda que isso demandasse
gestos e maneiras próprias de interpretação das canções. Exemplo típico de uma moda
brasileira é a canção Se tem outra a quem adora, de José Palomino, publicada em
Lisboa em 1792 (JORNAL DE MODINHAS, p.10-12):

Se tem outra a quem adora,


regale-se, meu senhor,
escusa fazer-me agora
ouvidos de mercador

E não se envergonha.
Ora, não me segue.
Cuida que sou bruxa.
Eu não sou pamonha.
Sou pé de moleque.
Sou cocada puxa-puxa,
pois fui a primeira
em ser seu baju,
serei catimpoeira,
serei seu caju

Faça embora o que quiser,


maltrate-me com rigor;
achará muita mulher,
mas não acha tanto amor

E não se envergonha, etc.

Depois que o meu triste peito


estalasse em viva dor,
diga, ingrato, a que respeito
você quis ser-me traidor

E não se envergonha, etc.

Desde o estudo de Mozart de ARAÚJO (1963), acreditou-se que as modinhas


brasileiras possuíam esse nome por serem canções compostas no Brasil e que acabaram
sendo difundidas em Portugal. Embora ainda haja muito a ser estudado sobre essa
questão, tudo indica que o centro geográfico onde surgiram as modinhas foi mesmo
Lisboa, lugar que atraiu contribuições originárias da França, da Itália, do Brasil e outras
regiões com as quais Portugal mantinha contato.
Coletâneas de modinhas, com texto e música, surgiram somente a partir da
última década do século XVIII. Entre 1792 e 1796 foi publicado o Jornal de modinhas,
periódico quinzenal editado em Lisboa pelos franceses Francisco Domingos Milcent e
Pedro Anselmo Marchal. Nos dias 1º e 15 de cada mês, o periódico apresentava uma
nova canção, sendo numeradas de 1 a 24 as canções impressas em cada ano de edição
(julho a junho). O Jornal de modinhas chegou ao quinto ano, mas desse foram
anunciados apenas oito números, tendo sido impresso um total de cento e quatro
canções, das quais poucas dezenas foram reeditadas. Todos os números recebiam a
mesma página de rosto, com as seguintes informações (JORNAL DE MODINHAS,
p.1):

Jornal
DE
MODINHAS
Com acompanhamento de Cravo
PELOS MILHORES AUTORES
DEDICADO
A Sua Alteza Real
Princeza do Brazil
Por P.A. Marchal Milcent.
No primeiro dia e no Quinze de cada Mez, Sahirá
huma Modinha nova.
Preço 200. R.s
LISBOA
Na Real Fabrica e Armazem de Muzica no Largo de Jezus
onde se podera Abonar para a Colecçaõ de cada anno pella quantia de 2880.
na mesma Real Fabrica se acha toda qualidade de Muzica

Afora quatro obras perdidas e dezesseis sem indicação de autoria, dezoito


compositores são mencionados como autores das canções. Em geral, tais compositores
já eram consagrados no meio musical lisboeta e seus nomes conferiam destaque às
canções:

Antônio Bernardo da Silva


Antônio da Silva Leite
Antônio Galassi
Antônio José da Silva
Antônio José do Rêgo
Antônio Leal Moreira
Antonio Puzzi
Corricelli
Francisco Xavier Batista
João de Sousa Carvalho
José Caetano Cabral de Mendonça
José de Mesquita
José Maurício
José Palomino
José Rodrigues de Jesus
Josino
Luís Antônio Barbosa
Marcos Antônio [Portugal]

Observando-se os termos que designam as canções no Jornal de modinhas,


pode-se perceber, em primeiro lugar, que a palavra modinha era raramente utilizada,
apesar de figurar no nome do periódico. Sua diversidade, entretanto, demonstra que a
designação modinha abarcava vários tipos musicais e poéticos:
a voce sola
canzoncina
chula carioca
diálogo entre dois amantes
diálogo jocosério
dueto
duetto
duetto italiano
duetto novo
duetto novo ao som do zabumba
duetto novo por modo de lundu
duo
duo novo
improviso
moda a duo
moda a solo
moda brasileira
moda da copa das caldas
moda do lundu
moda do zabumba
moda nova
moda nova a solo do saboeiro
moda nova brasileira
moda original
modinha a solo
modinha do zabumba
modinha nova
rondó pastoral
tercetto
tercetto noturno
tercetto novo

A grande maioria das canções impressas no Jornal de modinhas está destinada a


dois cantores com acompanhamento instrumental, sendo bem menos freqüentes aquelas
para uma ou três vozes. Quanto ao acompanhamento, são majoritariamente de cravo e,
pelo que se deduz de algumas informações impressas nas partituras, boa parte deles foi
escrita pelo próprio Marchal. Em casos mais raros aparecem acompanhamentos para os
seguintes instrumentos: viola; violino; guitarra (portuguesa); duas guitarras; duas
guitarras e viola; duas guitarras, viola e baixo; cravo e dois bandolins; dois bandolins e
baixo.
Outras coleções foram impressas em Portugal a partir do início do século XIX,
como o Jornal de modinhas novas dedicadas às senhoras, de João Batista Waltmann e a
Divertimento muzical ou collecçaõ de modinhas de Luís José de Carvalho, os dois em
1801 (JORNAL DE MODINHAS, p.x; NERY, p.15). Após seu surgimento na capital
portuguesa, com a colaboração da “meiguice do Brasil” e da “moleza americana”, esse
tipo de canção começou a se difundir pela colônia, provavelmente já na década de 1790.
A existência na Biblioteca da Ajuda, em Lisboa, de um manuscrito intitulado
Modinhas do Brazil, com trinta canções a duas vozes, acompanhadas de viola ou cravo
(BÉHAGUE, 1968), levanta a possibilidade de ser essa uma coletânea de obras
compostas no Brasil na última década do século XVIII. Por outro lado, a inexistência de
outros documentos referentes à prática de modinhas no Brasil, em período anterior ao
século XVIII, pode indicar que o manuscrito Modinhas do Brazil contenha obras
escritas em Portugal, mas com a utilização de elementos de origem brasileira,
especialmente no texto. Alguns dos textos das canções desse manuscrito são de autoria
de Domingos Caldas Barbosa, o que levou BÉHAGUE (1968) a supor que o poeta
poderia ter sido o autor das obras, hipótese já enfraquecida à luz das informações ora
disponíveis (MORAIS, 2000a).
Seja como for, a designação modinha brasileira continuou a ser utilizada no
século XIX, mesmo em canções compostas e impressas no Brasil, o que faz supor que
esse, como o tango brasileiro e a valsa brasileira, designem mais um gênero musical
que a procedência geográfica das composições. A transição do século XVIII para o XIX
fez surgir um novo tipo de canção, obviamente derivada das modinhas setecentistas, que
privilegiou o canto a uma voz. Suas características, de acordo com DODERER (p.viii),
foram as seguintes:

“Pelos finais do século [XVIII] surge em primeiro plano um novo


tipo de Modinhas. Decisivamente cunhada pela cultura musical da alta
burguesia, a Modinha transforma-se agora numa canção de sala a uma
voz com acompanhamento de piano. A linha melódica do canto torna-se
mais diferenciada melódica e ritmicamente e leva pela sua constante
alteração de tempos fortes a uma característica oscilação de acentos.
Mantêm-se os textos literários cheios de sentimentalismo e de penas de
amor que encontram a sua contraparte numa delineação melódica
considerada pelos ouvintes de então como ‘doce e deliciosa’. A par do
uso freqüente dos contrastes maior-menor, a subdominante sobrepõe-se
na constelação tonal. Numa linguagem musical cheia de suspiros e de
ais, é a personagem do homem que quase sempre se dirige à ‘Dona do
seu coração’. A loucura da ópera reflete-se no repertório das Modinhas;
árias ou motivos de óperas especialmente queridas - aos quais se
adaptou um texto português - encontram imediatamente como novas
Modinhas acolhimento entusiástico.”

Foi esse tipo de modinhas que se estabeleceu no Brasil e iniciou um grande


desenvolvimento no século XIX, sendo representante a canção Minha Marília não vive
(MODINHAS, p.25-26), do compositor carioca Cândido Inácio da Silva (exemplo 2). É
essa modinha da primeira metade do século XIX referida por Ernesto VIEIRA (1899,
p.350), em descrição que concorda com as idéias acima apresentadas:

“Modinha. Ária, espécie de romança portuguesa muito em voga


durante os fins do século passado [XVIII] e primeira metade do atual
[XIX]. A modinha era uma melodia triste, sentimental, freqüentemente no
modo menor, com letra amorosa. Muitas modinhas eram também
extraídas das óperas italianas que mais agradavam.”
“A modinha passou de Portugal para o Brasil e ainda ali não foi
de todo abandonada, tornando-se também mais característica pelos
requebros lânguidos com que as brasileiras a cantam. [...]”

Exemplo 2. CÂNDIDO INÁCIO DA SILVA. Minha Marília não vive (modinha), c.1-8.
Deve-se, entretanto, a Grigóry Ivanovitch Langsdorff (1774-1852), Cônsul da
Rússia no Brasil, o primeiro registro musical de uma modinha seguramente cantada em
solo brasileiro (exemplo 3), mais especificamente na Vila de Nossa Senhora do Desterro
da Ilha de Santa Catarina em 1806 (LANGSDORFF, 1818, entre p.54-55;
LANGSDORFF, s.d., f.56), sob a designação ária brasileira (Brasiliaansche Aria em
holandês e Brasilische Arie em alemão). O viajante fez acompanhar o exemplo da
seguinte observação, que também parece ter sido a primeira referente às modinhas no
Brasil (LANGSDORFF, 1818, p.54):

“[...] À noite as pessoas se encontram em pequenos grupos de


familiares, onde se dança, brinca, ri, canta-se e contam-se anedotas,
conforme a tradição portuguesa. Os instrumentos musicais mais usados
são a viola e o chocalho. A música é cheia de expressão, terna e
sentimental. As canções são de conteúdo modesto, freqüentemente
reiterando temas como amor por mulheres, corações sangrentos e
feridos, desejos e saudades. [...]”

Exemplo 3. ANÔNIMO (registrado por Grigóry Ivanovitch Langsdorff). Quando o mal se acaba (ária
brasileira), c.1-16.
Mas a primeira coletânea de modinhas praticadas no Brasil foi publicada pelos
pesquisadores austríacos Johann Baptist von Spix (1781-1826) e Carl Friedrich Philipp
von Martius (1794-1868), enviados pelo rei da Baviera, para realizar um levantamento
botânico, zoológico, mineralógico e etnológico nas províncias de São Paulo, Minas
Gerais, Bahia, Pernambuco, Piauí, Maranhão e Amazonas. Além de seu monumental
levantamento botânico e mineralógico, importante até hoje nos meios científicos, Spix e
Martius publicaram em Munique, entre 1823-1831, três volumes intitulados Reise in
Brasilien (Viagem pelo Brasil), nos quais relataram suas aventuras e apresentaram
importantes aspectos da história, geografia e cultura brasileira.
Martius, responsável pela redação da Viagem pelo Brasil, também era um bom
conhecedor de música e, para enriquecer a publicação, elaborou um anexo musical
intitulado Brasilianische Volkslieder und Indianische Melodien (Canções populares
brasileiras e melodias indígenas), com quatro canções recolhidas em São Paulo, uma em
Minas Gerais, uma na Bahia, uma com a indicação “de Minas e Bahia” e outra com a
indicação “de Minas e Goiás”, além de um lundu instrumental (sem indicação de
localidade) e 14 melodias indígenas.
Embora Martius tenha observado, ao passar pela cidade de São Paulo em 1818,
que, além da viola, “nenhum outro instrumento é estudado” (SPIX e MARTIUS, v.1,
p.141), o autor apresentou suas transcrições dos Volkslieder em versões para canto e
piano. Ainda não se realizaram pesquisas para se determinar com precisão quais
instrumentos de cordas eram utilizados no Brasil para acompanhar o canto nesse
período e se estes possuíam cordas simples ou duplas (na única gravura de seu livro na
qual aparece um instrumento como esse, o mesmo foi representado com seis cordas
simples): o autor austríaco sempre utiliza o termo alemão (e bastante genérico)
“Gitarre” e, apenas uma vez, informa que, entre nós, era denominado “viola”. Quando
esteve no Rio de Janeiro, em 1817, Martius afirmou textualmente (DODERER, p.ix):

“O brasileiro tem, tal como o português, uma boa sensibilidade


para modulações agradáveis e seqüências regulares, dando assim ao seu
canto um maior apoio graças ao acompanhamento simples da viola. A
viola é aqui, como no sul da Europa, o instrumento preferido, ao passo
que o piano é uma muito rara peça mobiliária que se encontra apenas
nas casas ricas.”

Presume-se, portanto, que Martius elaborou um acompanhamento para piano


destinado aos seus leitores austríacos e não exatamente por tê-lo observado no Brasil.
Além disso, as canções brasileiras registradas pelo escritor austríaco receberam a
designação “populares”, mas não com o mesmo significado que o termo possui
atualmente. Tal expressão, para Martius, designaria um aspecto não erudito, distante da
corte, do teatro ou da igreja e mais ligado aos costumes domésticos e familiares,
relativos, porém, à elite e não às classes baixas. É isso o que se deduz da observação que
o autor austríaco fez dessas canções, quando esteve no Rio de Janeiro em 1817
(DODERER, p.ix):

“As canções populares são acompanhadas pela viola e têm a sua


origem tanto em Portugal como no próprio país. É pelo canto e pelos
sons do instrumento que o brasileiro é facilmente levado a dançar,
dando expressão à sua boa disposição através de contradanças sutís, no
ambiente das camadas sociais eruditas, e através de movimentos e
posições mímico-sensuais parecidos com os dos pretos, no ambiente das
camadas baixas.”

Some-se a essas observações o fato de que as modinhas portuguesas e brasileiras


do período monárquico, apesar de alegres e ousadas, repletas de termos de origem
popular, eram divulgadas em refinadas partituras ou manuscritos, obviamente
destinados a freqüentadores dos círculos cultos. É somente na transição do século XIX
para o XX que a modinha atingirá uma difusão social que admitirá a designação
popular.
As observações de Martius são ricas para se compreender o significado que
tiveram as canções que este ouviu no Brasil, no final do reinado de D. João VI.
Denominando-as modinhas e informando que aqui se ouviam tanto as compostas no
país, quanto as trazidas de Portugal, foi capaz de estabelecer a diferença entre as
canções locais e as de origem lusitana. Seu relato mais importante em relação a esse
aspecto foi escrito no Rio de Janeiro, em 1817 (DODERER, p.x):

“[...] As canções populares são de origem portuguesa ou


brasileira. As últimas sobrepõe-se no que diz respeito à naturalidade do
texto e da melodia; mantêm-se dentro do gosto do povo e demonstram, às
vezes, um verdadeiro ímpeto lírico dos autores, na maior parte
anônimos. Amor desprezado, tormentos de ciúme e penas de despedidas
são os objetos da sua ‘musa’ e uma inspirada referência à natureza
oferece a estes poemas um ambiente próprio e sereno. Esta atmosfera
criada parece a uma pessoa européia tanto mais deliciosa e suave
quanto se sente em disposição idílica provocada pela riqueza e pelo
tranqüilo prazer que toda a natureza em volta respira. As canções que
juntamos no Atlas servirão, certamente, para provar a verdade das
nossas palavras.”

Em 1826, o escritor francês Ferdinand DENIS (p.581-582) publicava um relato


não menos interessante sobre o canto das modinhas no Brasil, no qual informa que,
apesar da flagrante simplicidade técnica dessas canções, sua irresistível atraência
contaminava até mesmo os europeus recém chegados ao país:

“[...] Ao mesmo tempo que a música de Rossini é admirada nos


salões, porque é cantada com uma expressão que nem sempre se
encontra na Europa, os simples artesãos percorrem ao serão as ruas
cantando essas encantadoras modinhas, que é impossível ouvir sem com
elas se ficar vivamente comovido; quase sempre servem para pintar os
devaneios do amor, as suas penas ou a sua esperança; as palavras são
simples, os acordes repetem-se de uma forma bastante monótona; mas
têm, por vezes, um tal encanto na melodia, e por vezes uma tal
originalidade que o europeu acabado de chegar não pode cansar-se de
as ouvir e compreende a indolência melancólica desses bons cidadãos
que ouvem durante horas seguidas as mesmas canções.”

Na primeira metade do século XIX, o principal centro de difusão das modinhas,


no Brasil, foi o Rio de Janeiro. As primeiras canções desse gênero começaram a ser
impressas na década de 1830 e centenas foram publicadas até o final do século, por
autores brasileiros ou radicados no Brasil, como os abaixo indicados:

Antônio Carlos Gomes (1836-1896)


Antonio Tornaghi (séc. XIX)
Cândido Inácio da Silva (c.1800-1838)
Francisco da Luz Pinto (?-1865)
Francisco Joaquim de Santana Matos (séc. XIX)
Francisco Manuel da Silva (1795-1865)
Gabriel Fernandes da Trindade (c.1790-1854)
João Mazziotti (?-1850)
José Joaquim Lodi (?-1856)
José Maria da Silva Rodrigues (séc. XIX)
Joseph Fachinetti (séc. XIX)
Padre Telles (séc. XIX)
Rafael Coelho Machado (1814-1887)

A partir da segunda metade do século XIX foram impressas várias coletâneas de


textos de modinhas, como o TROVADOR (1876) e A CANTORA BRASILEIRA
(1878), fenômeno semelhante ao que ocorrera com as modinhas de Domingos Caldas
BARBOSA (1944) no século XVIII. Coletâneas com texto e música são mais comuns a
partir do início do século XX, como é o caso das Canções populares do Brazil, de Julia
Brito MENDES (1911), cujo título já indica uma terceira fase evolutiva das modinhas,
embora a publicação contenha obras compostas desde o início do século XIX.

3. O lundu instrumental

Em meados do século XVIII estabeleceu-se no Brasil uma modalidade de dança


que seria conhecida, já no início do século seguinte, como a dança nacional.
Denominada lundu, londu, landu, landum ou lundum, esse tipo de música parece ter
sido a mais antiga dança brasileira da qual conhecemos exemplos musicais, embora seja
necessário esclarecer em que medida o lundu foi exatamente brasileiro.
Se não existiu qualquer documento português ou brasileiro anterior a 1775 com a
denominação modinha, o mesmo ocorreu em relação ao lundu. Apesar de ter sido
comum no Brasil, durante o século XVIII, um ritual africano denominado calundu,
difundido também em Portugal já no séc. XVII, parece não haver relação direta entre a
música que teria sido utilizada no calundu e a música do lundu nos séculos XVIII e
XIX. Por outro lado, não existe dúvida que o nome dessa dança seja de origem africana,
como informa Ernesto VIEIRA (1899, p.319):

“Lundum ou Landum. Dança chula africana, usada também no


Brasil. O dicionário da língua bunda por Conecatim tem landú, todavia a
forma geralmente seguida é lundum.”
Tudo indica que o lundu tenha mesmo surgido no Brasil, mesmo sendo o
resultado da mescla de elementos musicais e coreográficos de origens diversas. A dança
nacional portuguesa na segunda metade do XVIII era a fôfa, dançada aos pares, ao som
de violas e guitarras (portuguesas); parece não ter sido muito utilizada no Brasil, já que
normalmente não é citada em documentos brasileiros. No Brasil setecentista, ao
contrário, foram predominantemente citadas duas danças: o lundu e o batuque.
O batuque, a julgar pelas descrições e ilustrações disponíveis (as principais
foram publicadas por Carl Friedrich von Martius e por Johann Moritz Rugendas), foi
uma denominação portuguesa genérica para todo tipo de dança de negros, praticada em
fazendas durante o dia e ao ar livre, nos fins de semana ou dias de festa. O batuque era
acompanhado pela percussão de instrumentos idiófonos ou membranófonos ou, mais
comumente, pela batida das próprias mãos, empregando-se também a umbigada, recurso
coreográfico que se difundiu por todo o país em gêneros que ainda são observados entre
populações de origem negra.
Já o lundu parece ter sido uma dança mais difundida socialmente, praticada entre
negros, brancos e mulatos. Carl Friedrich von Martius, que esteve em Belém em 1819,
associou o lundu aos mulatos da cidade, com a seguinte observação (SPIX e
MARTIUS, v.3, p.29): “Para o jogo, a música e a dança, está o mulato sempre
disposto, e movimenta-se insaciável, nos prazeres, com a mesma agilidade dos seus
congêneres do sul, aos sons monótonos, sussurrantes do violão, no lascivo lundu ou no
desenfreado batuque.” Johann Moritz Rugendas (1802-1858), que acompanhou
Langsdorff em uma expedição pelo Brasil entre 1821-1829, confirma a diferença social
que existiu entre o batuque e o lundu, no Malerische Reise in Brasilien (Viagem
pitoresca pelo Brasil), publicado em 1835 (RUGENDAS, p.157-158):

“A dança habitual do negro é o ‘batuque’. Apenas se reúnem


alguns negros e logo se ouve a batida cadenciada das mãos; é o sinal
de chamada e de provocação à dança. O batuque é dirigido por um
figurante; consiste em certos movimentos do corpo que talvez pareçam
demasiado expressivos; são principalmente as ancas que se agitam;
enquanto o dançarino faz estalar a língua e os dedos, acompanhando
um canto monótono, os outros fazem círculo em volta dele e repetem o
refrão.”
“Outra dança negra muito conhecida é o ‘lundu’, também
dançada pelos portugueses, ao som do violão, por um ou mais pares.
Talvez o ‘fandango’, ou o ‘bolero’ dos espanhóis, não passem de uma
imitação aperfeiçoada dessa dança.”
“Acontece muitas vezes que os negros dançam sem parar noites
inteiras, escolhendo, por isso, de preferência, os sábados e as vésperas
dos dias santos.”

Rugendas também produziu duas gravuras com o título “Danse landu”, nas
quais foram retratadas duas situações sociais distintas, em torno da mesma dança. Na
primeira delas (RUGENDAS, 3ª div., pl.18), representou uma cena noturna ao ar livre,
ao lado de uma casa grande e em frente a uma fogueira, envolvendo um casal de
dançarinos, um tocador de viola e dezenove espectadores, constituídos de negros,
mulatos e brancos, entre os últimos um clérigo e um homem armado com espada, ao
lado de sua companheira. O dançarino, vestido à portuguesa, com sapatilha e meias,
mantém os dois braços levantados, com castanholas nas duas mãos, enquanto a
dançarina movimenta-se com as mãos na cintura. Na segunda gravura (RUGENDAS, 4ª
div., pl.17), existe uma cena semelhante, porém ao cair da tarde e junto a um casebre, na
qual observa-se um casal de dançarinos mulatos, ambos descalços, mas realizando os
mesmos movimentos da gravura anterior: o homem com os braços erguidos,
aparentemente estalando os dedos, e a mulher com as mãos na cintura. Treze pessoas,
entre negros e mulatos, presenciam a dança, um deles a cavalo.
Além da difusão social, Rugendas também atesta uma ligação direta entre o
lundu e certas danças ibéricas (portuguesas ou espanholas) como o fandango e o bolero,
nas quais eram utilizadas as castanholas, os estalos dos dedos e o acompanhamento das
violas, chegando até a afirmar que as versões ibéricas seriam derivadas do lundu.
Assim como no caso das modinhas, é bem possível que o lundu tenha passado
por transformações na transição do século XVIII para o XIX. Por outro lado, as
informações conhecidas da segunda metade do século XVIII concordam com aquelas
apresentadas por Martius e Rugendas. O próprio Domingos Caldas Barbosa relaciona o
lundu ao fandango (ARAÚJO, p.22-23):

Eu vi correndo hoje o Tejo,


vinha soberbo e vaidoso;
só por ter nas suas margens
o meigo lundum gostoso.

Que lindas voltas que fez;


estendido pela praia,
queira beijar-lhe os pés

Se o lundum bem conhecera,


quem o havia cá dançar;
de gosto mesmo morrera,
sem poder nunca chegar.

Ai, rum, rum,


vence fandangos e gigas
a chulice do lundum.

[...]

Outra informação importante do final do séc. XVIII pode ser encontrada em uma
carta de 1780 do ex-governador de Pernambuco, D. José da Cunha Grã Athayde e
Mello, segundo a qual além da relação com as danças ibéricas, o lundu era comum entre
brancos e mulatos (ARAÚJO, p.55):

“[...] Os pretos, divididos em nações e com instrumentos próprios


de cada uma, dançam e fazem voltas como arlequins, e outros dançam
com diversos movimentos do corpo, que, ainda que não sejam os mais
indecentes, são como os fandangos em Castella e fofas de Portugal, o
lundum dos brancos e pardos daquele país”.

A descrição mais pormenorizada de um lundu, entretanto, foi-nos deixada nas


Cartas Chilenas (1787), de Tomás Antônio Gonzaga. Neste texto, além de uma vez
mais ser informada a tendência de expansão social do lundu, o poeta indica a presença
da viola e dos estalos dos dedos, mas acusa o uso da umbigada, elemento coreográfico
originário do batuque (ARAÚJO, p.22):

Fingindo a moça que levanta a saia


e voando na ponta dos dedinhos,
prega no machacaz, de quem mais gosta,
a lasciva embigada, abrindo os braços.
Então o machacaz, mexendo a bunda,
pondo uma mão na testa, outra na ilharga,
ou dando alguns estalos com os dedos,
seguindo das violas o compasso,
lhe diz - “eu pago, eu pago” - e, de repente,
sobre a torpe michela atira o salto.
Ó dança venturosa! Tu entravas
nas humildes choupanas, onde as negras,
aonde as vis mulatas, apertando
por baixo do bandulho a larga cinta,
te honravam cos marotos e brejeiros,
batendo sobre o chão o pé descalço.
Agora já consegues ter entrada
nas casas mais honestas e palácios!

Manuel Raimundo QUERINO (p.293) confirma a presença dos traços ibéricos no


lundu oitocentista, apresentando a seguinte descrição da coreografia de uma variante do
lundu denominada lundu de marruá:

“Duas pessoas na posição de dançarem a valsa, davam começo ao


lundu. Depois, apertavam as mãos; levantavam os braços em posição graciosa, a
tocar castanholas, continuando a dança desligadas.”

Outro autor, ARARIPE JUNIOR (p.169-170), mantém a crença de ter existido


relação direta entre o lundu e certas danças ibéricas, apresentando outra descrição de sua
coreografia:

“[...] O lundu, que é tudo que pode haver de mais dengoso em


matéria de canto e coreografia, excede à seguidilha espanhola, com a
qual guarda parentesco, e a dança voluptuária do ventre, das orientais.
Não é tão ideal como a primeira, nem tão brutalmente carnal como a
segunda: é, porém, mais quente do que ambas, sem desabrochar na
lubricidade descabelada das falotomias antigas. No lundu há uma leveza
de pisar, um airoso de porte e uma meiguice de voz, que não se encontra
em nenhuma das manifestações similares de outros povos mestiçados; e
a sua maior originalidade consiste no ritmo resultante da luta entre o
compasso quaternário rudemente sincopado dos africanos e a
amplificação da serranilha portuguesa. Essa fusão de ritmos na
península deu cabimento à caninha verde e à chula, cuja grosseria
diariamente observamos. A mulata, entretanto, vibrátil, ciosa, por vezes
lânguida, pondo os incitamentos desses dois ritmos nos quadris, como
expressão da sexualidade, subordinados ao canto apaixonado, estuoso e
ao mesmo tempo grácil, começou a sincopa-lo a capricho, produzindo
flexuosidades quase inexprimíveis e de um erotismo refinado.”

Como já referido anteriormente, o nome lundu indica a existência de alguma


relação entre essa dança e a cultura africana, que até o momento não foi totalmente
apurada. Por outro lado, os mais antigos exemplos musicais conhecidos de lundu
corroboram sua possível origem ibérica. Uma das peças do anexo musical
Brasilianische Volkslieder und Indianische Melodien (n.9) é o “Landum, Brasilianische
Volktanz” (lundu, dança popular brasileira), a única obra instrumental da coletânea
(exemplo 4) e, ao mesmo tempo, o mais antigo registro musical que se conhece desse
tipo de dança, no Brasil (SPIX e MARTIUS, v.2, p.301).

Exemplo 4. ANÔNIMO (registrado por C.P.F. Martius). Landum (instrumental), c.1-25.

No lundu recolhido por Martius observa-se a variação contínua de um motivo de


quatro compassos, no qual o terceiro e quarto compassos são uma repetição do primeiro e
segundo. Além disso, o motivo alterna um compasso na tônica e um na dominante da
tonalidade utilizada, no caso lá maior. O exemplo apresenta vinte e três variações (há
uma repetição errônea dos dois primeiros compassos da vigésima primeira variação,
logo após o c.92), seguidas de seis compassos finais que não participam do processo de
variação, especificamente destinados ao encerramento da peça. À exceção da sétima
variação, que possui oito compassos (os quatro primeiros iguais aos quatro seguintes),
as demais possuem sempre quatro compassos repetidos de dois em dois, estando os
compassos ímpares na tônica e os pares na dominante.
Ora, o esquema acima descrito é nitidamente aparentado às diferencias
instrumentais, compostas por vihuelistas espanhóis do século XVI, como Luís de
Narváez, Alonso Mudarra, Enriquez de Valderrabano e outros. Esse tipo de música
entretanto, além de não ser um tipo de dança, estava destinado a um ambiente cortesão e
explorava tanto a diversidade musical quanto a destreza manual do executante,
parecendo, em geral, mais exuberante que o exemplo registrado por Martius. Por outro
lado, a prática das variações na Península Ibérica a partir das diferencias acabou sendo
transferida para danças espanholas e portuguesas já no século XVII, chegando até o
fandango do século XVIII.
Nesse aspecto, portanto, não há dúvidas de que o lundu representou a recepção,
no Brasil, de um gênero de dança ibérica que, embora transformada, manteve
características suficientes para se reconhecer sua origem. Essa idéia contradiz a maior
parte das opiniões correntes sobre o lundu, que a dão como dança de origem
exclusivamente africana, problema que decorre principalmente da escassez de exemplos
musicais, cuja análise permita conclusões mais abrangentes.
Felizmente, outros exemplos de lundu do início do século XIX foram
recentemente apresentados pelo musicólogo paranaense Rogério BUDASZ (p.313-317),
procedentes de um manuscrito de música para saltério copiado em Paranaguá (PR) nas
primeiras décadas do séc. XIX, por Antônio Vieira dos Santos (Porto, 1784 - Morretes,
1854). Esse documento contém algumas danças denominadas lundu, lundu da Bahia,
lundu do Rio e lundu de marruá (SANTOS, p.21). Duas delas, sob o título Primeiro
lundu da Bahia e Segundo lundu da Bahia (SANTOS, p.57-62) podem ser parcialmente
observadas nos exemplos 5 e 6.

Exemplo 5. ANÔNIMO (registrado por Antônio Vieira dos Santos). Primeiro lundu da Bahia
(instrumental), c.1-28

Exemplo 6. ANÔNIMO (registrado por Antônio Vieira dos Santos). Segundo lundu da Bahia
(instrumental), c.1-20.
No Segundo lundu da Bahia (exemplo 6), tal como no lundu registrado por
Martius, ocorre a alternância de compassos na tônica e na dominante, também de lá
maior. Um motivo de dois compassos, com ritornello, inicia a dança, sendo repetido
depois de cada variação. Esse motivo contém a mesma repetição interna observada no
lundu impresso por Martius mas, diferentemente deste, as variações possuem apenas
dois compassos, sem a referida repetição. Observe-se, entretanto, que na terceira
variação (c.11-14) a repetição está presente, fazendo supor que, embora nem sempre
indicada, a repetição poderia estar subentendida.
No Primeiro lundu da Bahia (exemplo 5) o esquema formal é próximo ao
exemplo anteriormente analisado, sendo visível apenas um procedimento particular a
partir do c.17, com a fusão do motivo inicial às variações, fazendo com que aquele
tenha um compasso a menos e estas um a mais, porém sempre mantendo a alternância
dos compassos na tônica e na dominante.
Apesar das diferenças entre os lundus registrados por Antônio Vieira dos Santos
e aquele impresso por Carl Friedrich von Martius, é grande sua semelhança no que se
refere ao princípio formal, subsidiando a hipótese de que o tipo de variação que exibem
seria a principal característica melódica dessa dança, ao menos no início do século XIX.
Mais difícil, entretanto, é a tentativa de localizar elementos de origem africana no som
dessa dança, a qual terá de aguardar novos estudos para seu esclarecimento.

4. O lundu-canção

Até o momento, os autores que se dedicaram ao estudo do lundu aceitam a


hipótese de que Domingos Caldas Barbosa o tenha introduzido nos salões lisboetas,
porém não como dança instrumental, mas já como uma modalidade de canção. Esse
novo tipo de lundu, que para ser diferenciado da dança instrumental pode ser
denominado lundu-canção, na verdade é um tipo de modinha que possui algumas
características particulares.
Um dos primeiros exemplos de lundu-canção foi impresso no JORNAL DE
MODINHAS (p.52-53 e ARAÚJO, p.79-80) em 1º de maio de 1793, no n.21 do
primeiro ano. trata-se de uma moda do londu composta por José de Mesquita, sob o
texto Já se quebraram os laços (exemplo 7).
Exemplo 7. JOSÉ DE MESQUITA. Já se quebraram os laços (lundu-canção), c.1-32.
A moda do londu de José de Mesquita possui um motivo inicial de quatro
compassos no cravo, reapresentado nos c.17-20, o qual manifesta o mesmo tipo de
repetição interna dos lundus instrumentais anteriormente analisados. A diversidade de
acordes, entretanto, é um pouco maior, mas é evidente uma certa tendência de se
alternar compassos na tônica e na dominante (de fá maior). Paralelamente, a peça está
inteiramente dividida em células de oito compassos, que receberam barras duplas no
exemplo 7, somente para facilitar sua visualização.
Embora não possam ser caracterizadas como variações, tais células exibem,
entre si, contrastes na figuração, ao mesmo tempo que procuram repetir certos padrões
melódicos, como ocorre entre as células dos c.9-12 e 29-32. Observe-se, finalmente,
que, nas citadas células, o terceiro e quarto compassos são uma repetição (com
pequenas modificações) do primeiro e segundo, tal como referido no caso do lundu
instrumental.
Tais características corroboram a hipótese, também corrente, de que o lundu-
canção teria se originado do lundu instrumental. A diferença, entretanto, não seria
apenas musical, mas também social: inicialmente, o lundu-canção fora praticado como
música de salão em meio à elite lisboeta, como uma espécie de imitação do lundu
instrumental dançado por brancos e mulatos brasileiros e, por essa razão, teria mantido
algumas de suas características sonoras.
Há, entretanto, uma outra particularidade verificada em alguns dos lundus
setecentistas, que permaneceu em seus congêneres do século XIX: o caráter sincopado
das melodias vocais. Tal efeito pode ser observado na exemplo 8, Eu nasci sem
coração, sexta canção do manuscrito Modinhas do Brazil, cuja letra é do próprio
Domingos Caldas Barbosa (BÉHAGUE, p.44-61; MORAIS, 2000b, p.71-75; LIMA,
p.224).

Exemplo 8. ANÔNIMO. Eu nasci sem coração (lundu-canção), c.1-15.


Em toda a canção Eu nasci sem coração alternam-se compassos na tônica e na
dominante, observando-se a remanescência do princípio da variação entre os c.3-7 e 9-
13, o que caracteriza esta peça como um lundu, apesar dessa designação não ter sido
especificada no manuscrito. Mas a característica mais evidente nesse exemplo é a forte
sincopação das melodias destinadas ao canto, fenômeno que ainda não pode ser
facilmente explicável a partir das informações ora disponíveis.
É possível que a presença de elementos africanos (ainda não totalmente
identificados) no lundu instrumental tenha feito com que alguns deles fossem
transpostos para o lundu-canção, estando entre eles o uso constante da síncopa. Seja
como for, o lundu-canção, tal como a modinha, começou a ser composto no Brasil a
partir do princípio do século XIX, muitas vezes mantendo a utilização da síncopa.
Inicialmente, a temática amorosa continuou em uso assim como nas modinhas
setecentista.
No decorrer do séc. XIX, contudo, o lundu canção foi abandonando a temática
amorosa, recebendo um caráter satírico, como se observa nas composições de Cândido
Inácio da Silva, Gabriel Fernandes da Trindade, Padre Telles, Francisco Manuel da
Silva e outros. Um dos primeiros exemplos publicados no Rio de Janeiro foi o lundu
Graças aos Céus, de Gabriel Fernandes da Trindade (DODERER, p.17-19), cujo texto é
o que se segue.

Graças aos céus, de vadios


as ruas limpas estão
deles a casa está cheia,
a Casa da Correção

Já foi-se o tempo de mendigar,


fora vadios, vão trabalhar!

Senhor chefe da Polícia,


eis nossa gratidão
por mandares os vadios
à Casa da Correção

Já foi-se o tempo de mendigar, etc.

Sede exato, pois, senhor,


em tal deliberação,
que muita gente merece
a Casa da Correção

Já foi-se o tempo de mendigar, etc.

Na primeira metade do século XIX, o lundu-canção continuou a ser comum no


Brasil, sem deixar de ser praticado em Portugal. Por outro lado, tanto a modinha quanto
os dois tipos de lundu sofreram fortes transformações a partir do final do século XIX,
especialmente relacionadas ao seu desnivelamento social. Já fazendo parte da prática
musical popular, a modinha e o lundu chegaram ao século XX reconhecidos como
gêneros tipicamente brasileiros, apesar de sua origem européia e africana.

5. Referências bibliográficas

ANDRADE, Mário de. Cândido Inácio da Silva e o lundu. Revista Brasileira de


Música, Rio de Janeiro: n.17-39, 1944.
ANDRADE, Mário de. Modinhas imperiaes: ramilhete de 15 preciosas modinhas de
salão brasileiras, do tempo do império, para canto e piano, seguidas por um
delicado lundú para pianoforte, cuidadosamente escolhidas, prefaciadas, anotadas
e dedicadas ao seu ilustre e genial amigo, o maestro Heitor Villa-Lobos. São
Paulo: Casa Chiarato, 1930. 49p.
ARARIPE JUNIOR, T. A. de. Gregório de Mattos. 2 ed., Paris: Garnier, 1910. Apud:
ARAÚJO, Mozart de. A modinha e o lundú no século XVIII: uma pesquisa
histórica e bibliográfica. São Paulo: Ricordi, 1963. p.43-54.
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VIEIRA, Ernesto. Diccionario musical; contendo Todos os termos technicos, com a
etymologia da maior parte d’elles, grande copia de vocabulos e locuções italianas,
francezas, allemãs, latinas e gregas relativas à Arte Musical; noticias technicas e
historicas sobre o cantochão e sobre a Arte antiga; nomenclatura de todos os
instrumentos antigos e modernos, com a descripção desenvolvida dos mais
notaveis e em especial d’aquelles que são actualmente empregados pela arte
europea; referencias frequentes, criticas e historicas, ao emprego do vocabulo
musical da lingua portugueza; ornado com gravuras e exemplos de musica por
Ernesto Vieira. 2 ed, Lisboa: Typ. Lallemant, 1899. 11p., 1 f. inum, 551p., 1p. inum.
KIEFER, Bruno. História da Música Brasileira, dos primórdios ao início do século XX. Porto
Alegre: Editora Movimento, 1976. P. 44 – 63.

PREÂMBULO

História da Música Brasileira — talvez seja pretensioso demais este título para uma
obra que nasceu, antes de mais nada, de uma preocupação didática, preocupação que atingia,
freqüentemente, o limiar da ansiedade em vista da falta de obras didáticas atualizadas, em dia
com as pesquisas mais recentes, da falta de partituras, de gravações... Por outro lado, a
história do nosso passado musical, mais rico do que se costuma pensar, apresenta ainda
lacunas de conhecimento muito sérias.
O melhor que se pode fazer, em tais circunstâncias, é recolher as peças existentes e
juntá-las do melhor modo possível. A presente obra é uma tentativa neste sentido. Talvez sirva
de estímulo para futuras pesquisas, destinadas a contribuir para o desenvolvimento, em
nossos alunos, de uma consciência histórica no terreno da música brasileira, consciência esta
quase totalmente ausente na grande maioria. Realmente, no que se refere à música erudita
brasileira — termo inadequado, mas não há outro - observa-se no Brasil uma nítida e quase
exclusiva consciência européia. Para se convencer disto, basta examinar o que ocorre em nossas
escolas superiores de música.
Com isto tocamos em outra motivação do presente trabalho: o desejo de contribuir,
desde já, para a formação de uma consciência musical brasileira, sem a qual estaremos sempre
na situação de um colonialismo cultural alienante.
Concordamos com a afirmação corrente de que a pesquisa musicológica deve ser isenta
de valoração estética. Uma obra de história da música brasileira, no entanto, não pode ser
omissa neste sentido. Limitar-se ao mero registro de tudo que se produziu musicalmente no
Brasil, em seus quase quinhentos anos de existência, seria contribuir para que se instalasse nos
leitores uma confusão irremediável. Parece-nos inconteste a necessidade da adoção de uma
posição estética e, mais ainda, sócio-histórica, sobretudo no delicado problema da
autoafirmação nacional em termos de música.
Talvez haja gente que fale em subjetivismo condenável. Subjetivismo? Mas onde existe
o indivíduo que tenha adquirido uma posição filosófica ou estética inteiramente a partir de si
mesmo? Pressupondo que um autor tenha conhecimentos sólidos, que tenha
permanentemente o máximo de abertura para a realidade que o cerca, que sua dimensão
social seja a mais larga possível, que tenha consciência histórica, pressupondo tudo isto, o
termo subjetivismo não tem o menor sentido. Seria preferível falar em intersubjetivismo, pois,
a nosso ver, os critérios de valoração resultam, de um modo essencial, do nosso ser-com e ser-
para-os-outros. Uma vez que a arte atinge as profundezas do nosso ser — essencialmente
social — qualquer tentativa de elaborar critérios "científicos", ou seja, "objetivos", para julgar
obras de arte, parece-nos simplesmente ridícula. No máximo tal pretensão serve para
escamotear aspectos indesejáveis do real. Por outro lado, como já dissemos, uma simples
enumeração de fatos e obras não conduz a nada. Por estas razões adotamos uma posição
estética e sócio-histórica que supomos ser, pelo menos, definida.
Dividimos a obra em dois volumes. O primeiro trata da história da música brasileira
desde o descobrimento até o fim do período que denominamos romântico, isto é, até o início
do século atual. O esquema poderá parecer demasiadamente simples, uma vez que se
observam, na música brasileira do século passado, nítidas manifestações pós-românticas.
Acontece, porém, que não pudemos fixar uma linha demarcatória precisa entre as diversas
tendências românticas e pós-românticas que favorecesse uma correspondente divisão em
capítulos. Concluímos então que seria mais útil intitular o último capítulo do primeiro volume
sumariamente de Romantismo e chamar a atenção, quando oportuno, sobre as manifestações
pós-românticas.

148
O segundo volume dará, inicialmente, uma resenha da história da música popular e
semierudita para, depois, abordar o Modernismo o qual, aliás, não deixa de ser, em última
análise, um segundo tempo do Romantismo. Pelo menos no terreno da música. A seguir serão
tratados os aspectos da música contemporânea.
Fomos encorajados para a realização deste trabalho não só pelo desejo de conhecer
dos nossos alunos, mas também pela ação estimulante de Carlos Jorge Appel, fundador da
Editora Movimento. Devemos também gratidão pela colaboração valiosa a Mercedes Reis
Pequeno, chefe da Seção de Música da Biblioteca Nacional; a Cleofe Person de Mattos, autora
de monumental obra sobre o Pe. José Maurício Nunes Garcia; a Olivier Toni que nos forneceu
dados preciosos sobre a Escola Mineira; a Régis Duprat, musicólogo de primeira qualidade; a
Francisco Curt Lange, pelo material fornecido; a Mozart de Araújo e Ênio de Freitas e Castro
por indicações preciosas e material cedido; e, finalmente, a Nídia, companheira de todas as
horas.

Porto Alegre, março de 1976.


Bruno Kiefe

II - O PERÍODO DE D. JOÃO VI

Quando o Rio de Janeiro foi elevado à categoria de Capital do Brasil, em 1763, por D.
José I, a instâncias do Marquês de Pombal, ainda era um porto modesto com cerca de 25.000
habitantes. Daí em diante haveria de crescer rapidamente, apresentando, por ocasião da
chegada da corte de D. João, mais ou menos o dobro. Ê conveniente, para quem estuda a
nossa evolução cultural, ter presente que o Brasil contava, no início do século XIX, cerca de
três milhões de habitantes. Destes, mais ou menos um terço eram escravos!
Era extremamente escassa a vida cultural do Rio de Janeiro durante o período que
antecede a vinda da corte portuguesa. J. A. Castello, citando Capistrano de Abreu, traz as
seguintes considerações: "Vida social não existia, porque não havia sociedade; questões
públicas tampouco interessavam e mesmo não se conheciam: quando muito, sabem se há paz
ou guerra, assegura Lindley. É mesmo duvidoso se sentiam, não uma consciência nacional, mas
ao menos capitaneai, embora usassem tratar-se de patrício e paisano"1. Quanto às demais
artes, Afonso de Taunay pergunta: "No Rio de Janeiro de 1808, que havia de realmente
inspirado pela estética? Talvez só a linda igreja da Glória do Outeiro, o majestoso Mosteiro de
S. Bento, a elegante e tão distinta Igreja da Santa Cruz dos Militares, a preciosa Igreja dos
Terceiros do Carmo e o Aqueduto da Carioca, revestido de grandiosa simplicidade romana"2.
Como cidade, o Rio de Janeiro não apresentava higiene nem conforto; instituições de
ensino mal existiam! Aliás, é sabido que a Metrópole não permitia que se criasse no Brasil uma
vida cultural própria durante o período colonial. A atividade editorial era proibida; não se
imprimiam periódicos no País. Bibliotecas e museus não existiam. Quem escrevia, tinha que
mandar imprimir os textos em Portugal e submeter-se, além disto, a severa censura. Até
mesmo a formação de bibliotecas particulares era dificultada, pois a censura recaía,
igualmente, sobre a aquisição e venda de livros.
Não obstante, a atividade cultural no Rio, durante as últimas décadas do século XVIII,
não foi totalmente nula.
Ayres de Andrade traz o testemunho do navegador Bougainville, o qual, relatando o
que viu por ocasião de sua passagem pelo Rio em 1767, diz: "Em uma sala bastante bonita
pudemos ver as obras primas de Metastásio, representadas por uma companhia de mulatos, e
ouvir vários trechos dos grandes mestres da Itália, executados por uma orquestra regida por

149
um padre corcunda em vestes sacerdotais"3. Talvez tenha sido este o primeiro teatro do Rio
de Janeiro. O povo costumava chamá-lo de Ópera Velha.
Por volta de 1776, um apaixonado pelo teatro, Manuel Luís Ferreira, conseguiu
inaugurar a sua própria casa de espetáculos que passaria a se chamar de Ópera Nova (na Praça
do Carmo, atual Praça 15 de Novembro). Até a chegada da corte de D. João, em 1808, seria
este o único teatro da Capital, pois a Opera Velha desaparecera. Encenavam-se, sobretudo,
peças de teatro. A música tinha a sua vez antes dos espetáculos e nos intervalos."
Um fato que merece destaque é que, durante o governo do vice-rei Luís de
Vasconcelos (1779-1790), verificaram-se as primeiras tentativas no sentido da criação do
teatro de ópera com textos em português. Entre as óperas cantadas em vernáculo figura
L'Italiana in Londra de Cima-rosa, compositor italiano de renome. Não houve, porém,
tentativas de criação de óperas nacionais.
Por outro lado, funcionava no Rio, à semelhança de Lisboa, uma Irmandade de Santa
Cecília, fundada em 1784, congregando músicos profissionais. O Pe. José Maurício Nunes
Garcia foi um dos componentes que assinaram o compromisso de fundação. Diferia esta
Irmandade das demais por reunir objetivos de devoção religiosa com objetivos profissionais.
Aqui no Brasil, o principal mesmo era a defesa de classe, o zelo pela ética e pela capacidade
artística de seus membros músicos. Eis aí a primeira cláusula da ata de compromisso:
"Toda pessoa que quiser exercitar a profissão de músico, ou seja, cantor ou
instrumentista, será obrigado a entrar nesta confraria e para ser admitido por confrade
representará à Mesa, declarando a qualidade de seu estado e a sua naturalidade para que a
Mesa o possa admitir ou excluir sendo notoriamente inábil ou publicamente escandaloso pelo
seu mau procedimento"4.
A vinda da corte de D. João ao Rio de Janeiro, em 1808, provocaria transformações
culturais tão notáveis que J.A. Castello pôde escrever, com todo acerto: "...a transição ocorre
de 1808 a 1821, quando D. João VI preparou o ambiente propício à nossa independência
econômica, política e cultural, favorecendo-nos de tal forma que foi considerado pelo Instituto
Histórico e Geográfico o fundador da nacionalidade brasileira"5.

A estada de D. João no Rio


D. João, o protetor das musas, provocou uma verdadeira revolução cultural no País e
transformou, ao mesmo tempo, o Rio de Janeiro, sede da corte em "centro de irradiação do
pensamento, da atividade mental ao país”6. O que as províncias possuíam de melhor, aí se
concentra e o que a, se faz e se pensa é padrão de valores. Até os nossos dias o Rio ainda
conserva boa parte desta posição.

150
Retrato de D. João VI, de Jean Baptiste Debret (1768 – 1848)

Em 1808 surge o primeiro jornal do Brasil: Gazeta do Rio de Janeiro, semioficial e sob
regime de censura. Na Bahia aparecerá, logo mais, a primeira revista literária e o segundo
jornal.
A criação de instituições como a Biblioteca Nacional, o Museu Nacional e a Imprensa
Nacional, dificilmente poderá ser superestimada. O mesmo vale em relação à Impressão Régia
que editou, durante o período em foco, a quase totalidade dos impressos.
Em 1816 criou-se, por decreto régio, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios.
Integraram o seu corpo docente os componentes da famosa missão artística, contratada na
França pelo Governo. Muito influiu na vinda desta missão o conselho do Conde da Barca. Na
França colaborou Alexandre von Humboldt na escolha dos elementos. Quanto aos motivos que
levaram tantos artistas de renome a abandonarem o solo da França, sobressai o da situação
calamitosa do país após o desastre de Waterloo (1815); no caso de Sigismund Neukomm, no
entanto, o móvel principal foi o seu persistente desejo de conhecer o mundo.
Eis os principais componentes da missão artística de 1816: Joaquim Lebreton, chefe
da missão, pintor; Nicolau Antônio Taunay, pintor; Augusto Maria Taunay, escultor; João
Batista Debret, pintor; Augusto Montigny, arquiteto; Carlos Simão Pradier, gravador;
Sigismund Neukomm, compositor, organista e mestre-de-capela.
A vinda dessa missão foi indiscutivelmente benéfica ao Brasil. Ao mesmo tempo,
porém, criou-se um condicionamento pelas "atividades ligadas ao provimento de modelos
europeus e ao recrutamento de discípulos, de que foram manifestação concreta a fundação de
escolas de artes e de museus e a contratação de mestres estrangeiros. Esses dois aspectos,
cuja benemerência não pode ser posta em dúvida, assinalam a transplantação que, conjugada
à alienação, necessariamente, já no alvorecer do século XIX, persiste como decorrência das
condições objetivas então reinantes".
É interessante registrar aqui o comentário de Lebreton a respeito de Neukomm,
formulado na lista de apresentação: "Compositor de música, excelente organista e pianista, o
mais distinto dos discípulos de Joseph Haydn, de costumes perfeitos e de caráter muito
ameno"8.
Em 1813, fechado o teatro de Manuel Luís Ferreira, inaugurou-se o Real Teatro São
João, o maior das Américas, construído por iniciativa particular e com aprovação régia. A
Estréia deu-se com a peça O Juramento dos Nunes, com música incidental de Bernardo José de
Souza e Queirós. Só no ano seguinte haveria de ser montada a primeira ópera.
Durante a estada de D. João no Rio, representaram-se, ainda no velho teatro de
Manuel Luís, pouco antes de seu fechamento, as seguintes óperas (segundo pesquisas de
Ayres de Andrade): Le due gemelli, de José Maurício Nunes Garcia (1809; Cleofe P. de Mattos,
no entanto, acha mais plausível o ano de 1813); L'oro non compra amore, de Marcos Portugal
(1811); Artaserse, do mesmo autor (1812). No Real Teatro S. João passariam a dominar
autores italianos: Salieri, Puccitta, Paer, Rossini , Generali; singulariza-se o Don Giovanni de
Mozart.

151
Antigo Teatro São João, Rio de Janeiro.

Uma das primeiras iniciativas de D. João, ao se radicar no Rio de Janeiro, foi a criação
da Capela Real, agregada à Catedral. Esta última fora transferida, por decreto régio, para a
Igreja dos Carmelitas, na atual Praça 15 de Novembro. Em ofícios solenes, o número de
músicos, entre cantores e instrumentistas, chegava a cerca de 150. O primeiro mestre-de-
capela: José Maurício Nunes Garcia, cujo talento fora reconhecido pelo regente. D. João tinha
uma predileção especial pelo fausto nos ofícios religiosos. Ayres de Andrade, citando o Pe. Luís
Gonçalves dos Santos, testemunha dos fatos, escreve: "Além disto, Sua Alteza aumentou o
número dos capelães, cantores, ministros, sacristas e serventes da mesma Capela Real, como
também o coro de música com vários músicos italianos e portugueses, que já o eram da sua
Real Câmara e Capela em Lisboa, e com outros desta cidade”9.
De fato, o regente não poupava dinheiro com a música da Capela Real. Mandava vir,
inclusive, sopranistas (castrati) da Europa, os primeiros a apontarem aqui. Se pensarmos na
quantidade enorme de festas religiosas, comemorações familiares e políticas com função
religiosa, poderemos ter uma idéia da intensidade da vida musical na Capela Real. O repertório
consistia, pelo que se sabe, principalmente de obras do Pe. José Maurício o qual, a partir deste
período, teve uma atividade febril. Mais adiante entrará em cena ainda outra figura: Marcos
Portugal.
Ir à igreja era, além de religiosa, também uma função social. Ayres de Andrade
caracteriza bem o fato: "Sua Alteza ia ao teatro s ia à igreja. Era o quanto bastava para que
todo mundo fosse ao teatro e à igreja"10.
Concertos havia poucos e em estilo diferente dos nossos dias. Chamavam-se de
Academias de Música as noitadas musicais em que se apresentavam artistas diversos: cantores
e instrumentistas, com programas ecléticos nos quais figuravam, geralmente, trechos de
óperas. Tais noitadas, no entanto, eram relativamente raras. Em 1815 surge a primeira
sociedade recreativa em cujos estatutos figurava o propósito de promover concertos para
sócios. O nome da sociedade era Assembléia Portuguesa. Cultivava também a dança e o jogo...

152
Debret – Passatempo dos ricos depois do jantar.

Somente a partir de 1823 surgiriam sociedades a promoverem concertos em série,


com ingressos vendidos antecipadamente.
O Regente fazia realizar concertos em Paço. Músicos não faltavam. O gosto que
dominava na corte não era dos melhores; só se admitia ópera italiana — e o mesmo estilo na
música sacra — com seu melodismo fácil e insinuante.
Resta mencionar ainda uma banda, composta de músicos portugueses e alemães,
que atuou no Rio durante a estada da Família Real. Viera capitaneada por Eduardo Neuparth,
nomeado expressamente pela Casa Real para acompanhar a princesa Leopoldina da Áustria na
sua viagem de Livorno até o Rio; Para esta banda o Pe. José Maurício escreveu 12
Divertimentos, infelizmente perdidos.
Em 1811 chega ao Rio o famoso compositor português Marcos Portugal. Nomeado
mestre-de-capela de S.M., o Pe. José Maurício teve que repartir com esta celebridade os
encargos musicais. Pelo menos em termos; na realidade as coisas não correram bem assim,
conforme veremos.

D. João e a música
O gosto pela música estava no sangue dos Braganças. Luiz Heitor, referindo-se ao
regente, diz: "Em matéria de divertimentos, D. João VI só conhece música e religião..."11. E,
citando Manuel de Araújo Porto Alegre (futuro Barão de Santo Ângelo), o mesmo autor reforça
o que disse "...o senhor D. João VI era acompanhado pelos seus padres e pelos seus
músicos"12.
É conhecida a paixão de D. João pelas missas cantadas, solenes, com numerosos
cantores e instrumentistas. Foi este interesse pela música que o levou a proteger José
Maurício; a não poupar dinheiro com os músicos da Capela Real; a mandar vir músicos da
Europa. O efeito de tudo isto sobre o nosso desenvolvimento musical pode ser avaliado facil-
mente.
O esplendor da vida musical na Capela Real suscitava, naturalmente, a concorrência
de outras igrejas. Estabeleceu-se uma competição que muito beneficiou a música no Rio de
Janeiro. Outras conseqüências da vinda de D. João.
O sentimento antilusitano, apesar de mais ou menos vago — con-densando-se, por
vezes, em reações mais decididas, como a Inconfidência Mineira — sempre existiu no Brasil-
Colônia.
As realizações de D. João VI no Brasil, isto é, sua política econômica, social e cultural,
contribuíram poderosamente para o incremento, estruturação e difusão deste sentimento.

153
Surge aí, verdadeiramente, o sentimento nacional, conforme atestam os acontecimentos que
se seguiram à saída do monarca do Brasil.
No que diz respeito à literatura, diz J. A. Castello: "Concomitantemente com as
reformas de D. João VI, e mesmo como uma das conseqüências inesperadas de sua política,
verificou-se a eclosão do sentimento antilusitano, expressão inicial do próprio sentimento
patriótico que havia de estimular o movimento romântico e nacionalista que se manifestaria
logo mais"13.
É que sem cultura — era o caso da sociedade colonial — a condensação do
sentimento nacional não era viável. Sem imprensa periódica, sem livros, instrução, não havia
nem possibilidade de ser estruturado de forma consistente e criadora o sentimento nacional.
As iniciativas de D. João VI favoreceram — claro que não intencionalmente — a
elaboração da autoafirmação nacional.
Na literatura criar-se-ia, ao mesmo tempo, um clima propício para a a implantação
do movimento romântico, cuja fase de definição se estende, conforme J. A. Castello, de 1836 a
1846, respectivamente dos
Suspiros Poéticos e Saudades de Gonçalves de Magalhães, aos Primeiros Cantos de
Gonçalves Dias, estes últimos considerados como sendo a primeira afirmação legítima da
poesia americanista.

A capela Real no ano de 1808 (Segundo Bates), e (IMAGEM) página-título autografa de uma
obra (s.d.) composta por volta dessa época, para a mesma capela.

Compositores do período de D. João V I


Á figura principal é o Pe. José Maurício Nunes Garcia. Embora" tenha nascido no ano
de 1767. será estudado neste capítulo. Ê que, dentro do panorama cultural do período em
foco, José Maurício é uma das figuras essenciais; além disto, o máximo de sua produtividade
ocorre justamente aí. Ao lado do padre-mestre figuram outros dois compositores importantes:
Marcos Portugal e Sigismund Neukomm. O primeiro, português de nascimento, já tinha fama
européia quando veio para cá; o segundo, austríaco, também famoso, fora o discípulo dileto
de Haydn. Ambos não pertencem à história da música brasileira; falaremos deles, no entanto,
em virtude de sua atuação no meio musical do Rio de Janeiro.

154
Pe. José Maurício Nunes Garcia

Não é fácil manter uma posição de equilíbrio na apreciação estética das obras dos
nossos compositores do passado. Observam-se, com freqüência posições extremas: a ufanista
de um lado e, do outro, a do menosprezo.
A nossa condição de país em desenvolvimento, de escassas tradições culturais, em
flagrante situação de inferioridade face aos países de vida cultural mais antiga, facilmente nos
leva a esquecer que só poderemos alcançar uma individualidade nacional se tivermos
consciência das nossas raízes no passado. Isto requer não só a difusão de conhecimentos, mas
também de espírito crítico, pois a mera antigüidade não é citério de valor. Por outro lado, é
preciso insistir nisto: menosprezar este nosso passado em função de valores culturais mais
altos de outras nações, impedirá o nosso crescimento e verdadeira maturação.

José Maurício Nunes Garcia


Quando o regente D. João desembarcou no Rio, no dia 8 de março de 1808, e assistiu
ao solene Te Deum na Catedral (então na Irmandade de N. Sra. do Rosário), teve uma
surpresa: a realização musical excedia em muito o que se podia esperar numa colônia de
Portugal. Era mestre-de-capela e compositor titular o Pe. José Maurício Nunes Garcia. A partir
deste momento, o apreço e a amizade de D. João não mais abandonariam o compositor.
Quem era essa figura que conseguiu se impor de tal forma e, segundo informação de
Manuel de Araújo Porto Alegre, "não só como artista, mas como um sacerdote dos mais
ilustres da sua diocese e a quem sobejavam talentos fora da música?"14.
José Maurício nasceu no Rio de Janeiro, no dia 22 de setembro de 1767, filho de
Apolinário Nunes Garcia e de Victória Maria da Cruz, ambos mulatos. O futuro compositor
tinha apenas seis anos quando perdeu o pai. Sua educação ficou, então, a cargo de sua mãe e
de uma tia. Para avaliar bem o que significava, naquela época, fazer um filho estudar, ainda
mais quando os recursos andavam escassos, basta pensar que no Rio de Janeiro, em 1784,
havia apenas nove escolas primárias... E o que era o ambiente cultural já foi comentado.
A sua musicalidade revelou-se cedo. Damos a palavra a Mário de Andrade para
descrever os fatos: "Afinal arranjou uma viola de verdade e a tangeu, tangeu tanto, que
acabou descobrindo por si o segredo das principais harmonias. Dedilhava as cordas e se punha
cantando romances tradicionais. Logo a vizinhança toda se engraçou pelo menino e ele ia nas
reuniões, cantar os casos do Bernal Francês, da Dona Iria e suspirar modinhas árcades.
— Este menino precisa aprender música...

155
E as duas mulheres trabalhavam mais porque além das roupas, tinham que ajuntar os
oitocentos réis mensais que pagavam a escola de música do mulato Salvador José. Aí José
Maurício aprendeu teoria e dizem violão"15.
Estas aulas com Salvador José não duraram muito. O que é certo é que José Maurício
se instruiu, com avidez e persistência, em partituras de compositores europeus
contemporâneos, sobretudo de Haydn. Sofreu também, entre outras, influências de Mozart e,
nos últimos anos de sua vida, de Rossini.
Mas José Maurício não teve apenas uma formação musical muito sólida. Seus
estudos filosóficos e outros encontram-se sobejamente atestados. Em 1792 ordenou-se padre.
Certamente escolheu este caminho menos por vocação do que por razões que facilitavam o
acesso a uma posição social que lhe faltava por nascimento e por sua cor — e a consecução de
uma posição econômica relativamente tranqüila.
Cleofe Person de Mattos, em seu monumental Catálogo Temático da obra de José
Maurício, publicado pelo Conselho Federal de Cultura, emite opinião divergente: "Parecem
outras as raízes dessa opção, e atenderiam a impulso de natureza musical, entre as quais o de
habilitá-lo melhor à posição de mestre-de-capela"16.
De fato, a música florescia, praticamente, só nas igrejas. O que torna a vocação
sacerdotal de José Maurício não muito convincente é o fato seguinte, narrado por Mário de
Andrade: "Aliás também outro ano forte de comoções pra José Maurício, esse de 1808. As...
limpezas públicas eram muito desleixadas e indecisas e o padre mestre dera um formidável
escorregão nas calçadas pouco limpas do tempo. Em dezembro ficou pai. Não tenho nada com
isso e o filho do padre e da "mula sem cabeça" tradicional, não seria um inútil para o Brasil"17.
Na verdade, José Maurício teve pelo menos seis filhos. "As informações mais precisas
a respeito da sua descendência têm por base a memória deixada pelo mais ilustre dentre eles:
o Dr. José Maurício Nunes Garcia Júnior, médico conceituado, Cirurgião pela Academia
Brasileira de Medicina e Cirurgia, professor de Anatomia na Academia de Belas Artes, Cavaleiro
da Ordem de Cristo, Oficial da Imperial Ordem da Rosa, e o único dos filhos que o Pe. José
Maurício legitimou"18. O Dr. Nunes Garcia foi também compositor e pintor (estudou com
Debret). Deixou um retrato a óleo de seu pai.
A sólida cultura humanística, suas boas relações com D. João, bem como suas
reconhecidas qualidades de pregador, fizeram com que o regente o nomeasse Pregador Régio.
Assistira, anteriormente, a um curso de oratória, ministrado pelo poeta Manuel Ignácio da
Silva Alvarenga (1802).
No tocante ainda à sua carreira musical, registramos que seu nome consta da lista de
membros que assinaram o compromisso de fundação da Irmandade de Santa Cecília em 1784.
O ano de 1798 tornou-se decisivo, pois José Maurício assume a posição de mestre-
de-capela da Catedral e Sé do Rio de Janeiro. "Nomeado mestre-de-capela da Sé, satisfeito seu
velho sonho de músico, sonho ou vocação que lhe orientara os rumos da vida, inicia-se para o
Pe. José Maurício fase de grande produtividade. Cabiam-lhe, em decorrência, funções várias:
organista, regente, compositor. Outras atividades eram paralelas à sua posição: a de professor
de música e a responsabilidade da parte musical nas cerimônias religiosas promovidas na Sé
pelo Senado da Câmara.
Na qualidade de professor, José Maurício atendia ao preparo dos músicos que
atuavam na igreja... Se o curso de Música não era função "vinculada" à Sé, apresenta-se como
indiscutível elo entre o padre-mestre e a Catedral e Sé, antes e depois de 1798"19.

156
A velha “Sé e Catedral” do Rio de Janeiro (Igreja da Irmandade de N. Sra. Do Rosário e S.
Benedito dos Homens de Cor), na qual o padre José Maurício foi batizado e posteriormente
(1978) mestre-de-capela. Reprodução de aquarela de Thomas Ender, em 1817. Página-título
parcialmente autógrafa de uma obra escrita para a velha Sé.

José Maurício ensinou música ao longo de 28 anos. Fê-lo, durante muito tempo,
numa casa que recebera como doação, à rua das Marrecas. "... em seus bancos sentaram-se
algumas das mais destacadas figuras da música: compositores, professores, modinheiros,
cantores, copistas, figuras que brilharam na administração do Brasil Império no terreno da
organização social como no ensino da música, sem falar na massa dos que se perderam no
anonimato das Irmandades, mas deixaram, ao longo do século XIX, no quadro da vida musical
do Rio de Janeiro, em diferentes setores, o rastro de perpetuidade da ação profícua do Pe.
José Maurício"20.
O mais destacado destes alunos foi, sem sombra de dúvida, Francisco Manoel da
Silva, futuro autor do Hino Nacional. Deve ser citado também Cândido Inácio da Silva, que se
tornaria afamado como compositor de modinhas.
Em 1808, com a chegada da corte de D. João, a vida de José Maurício haveria de
mudar sensivelmente. Tornou-se mestre-de-capela da Capela Real, por decreto régio.
Granjeou a admiração de D. João. A produtividade de José Maufício, por força das
circunstâncias, cresce desmesuradamente.
José Maurício, porém, não se limita às suas funções na Capela Real. Atua também em
outras igrejas, estimuladas, como é compreensível, pelas realizações musicais da Capela Real.
O ano de 1819 é assinalado por um acontecimento digno de registro no campo da música: a
execução do Requiem de Mozart, na Igreja do Parto, sob a direção de José Maurício. Tendo em
conta as condições culturais do ambiente e o gosto musical reinante nas altas esferas, é fácil
avaliar a significação do empreendimento. Mais adiante regerá ainda a Criação de Haydn
(1821).
Em 1811 chega ao Rio o mais famoso compositor que Portugal já teve: Marcos
Portugal. José Maurício será obrigado a repartir com ele as funções de mestre-de-capela da
Capela Real. Mas não terá muita chance, daí por diante, de repartir as honras. Marcos Portugal
é absorvente, dominador. A Gazeta do Rio de Janeiro passaria a falar somente dele. José
Maurício consegue salvar em parte a sua evidência, dedicando-se a realizações musicais em
outras igrejas. Na Capela Real "sua posição desmorona, sua produção decai. Já não mais
escreve para a capela do rei"21.
Além do mais, passa a sofrer com o desprezo que os fidalgos e outros cortesãos
votavam a tudo que era brasileiro. Nos últimos dias de sua vida o padre compositor teria dito:
"O que eu sofri daquela gente só Deus sabe"22.
Logo depois da chegada de Marcos Portugal ao Rio, este foi convidado pela princesa
a
D. Carlota Joaquina a ter um encontro com José Maurício a fim de formar um juízo sobre o

157
músico brasileiro. Na verdade procurava atingir seu marido, a quem detestava, porque este
protegia o padre. Segundo Luiz Heitor, resumindo um relato do Visconde de Taunay: "É
marcada para o dia seguinte a entrevista dos dois músicos. Portugal traz uma das sonatas de
Haydn com a qual pretende embaraçar o nosso compositor. Convidado a executá-la, José
Maurício senta-se ao piano. O outro lhe pergunta se já ouvira falar em tal autor e muito se
admira quando José Maurício declara que conhece quase todas as obras de Haydn. José
Maurício reluta um pouco em tocar. Embora conhecendo quase todas as obras de Haydn, que
era de seus autores prediletos ignorava ainda aquela sonata. D.a Carlota intervém, e o padre,
inseguro a princípio e trêmulo começa a decifrar a página aberta na estante. Era assombrosa a
sua faculdade de leitura à primeira vista, assim como os seus dons de improvisador.
Com toda vivacidade e riqueza de colorido, cada vez mais senhor de si, ele termina,
afinal, a sonata, arrebatando o pequeno auditório e o próprio Marcos Portugal, que o abraça
declarando-o seu irmão na arte e dizendo-lhe que espera ter nele um amigo"23.
Luiz Heitor continua dizendo que, infelizmente, tais votos não se podiam realizar.
Marcos Portugal pertencia a essa espécie de gente que procura monopolizar todas as
atividades e todos os proveitos, barrando o caminho aos outros e tentando inutilizar os seus
esforços.
José Maurício nunca saiu do Rio de Janeiro; seu renome, em vida, nunca ultrapassou
os limites da Capital. Mas nem por isto, e muito menos pelas dificuldades decorrentes da
presença de Marcos Portugal e de uma corte hostil, deixou-se desanimar, descumprindo a sua
missão de artista criador.
Depois da saída da corte do Brasil, os dias de agitação política e as dificuldades
econômicas do País não foram, obviamente, propícios à carreira do compositor mulato. A
Capela Real, agora transformada em Capela Imperial, passou por dias difíceis. Além disto, José
Maurício sente-se cansado e enfraquecido pelo trabalho febril durante muitos anos. "Em 1826,
emudece o compositor e imobiliza-se o regente"24. Sua última composição foi a Missa de
Santa Cecília (1826).
Mário de Andrade relata os seus últimos instantes: "Percebeu a chegada da morte.
Pela manhã de 18 de abril de 1830, um século faz, na casa da rua do Núncio n.° 18, ele desceu
a escadinha tortuosa, apertada, difícil de caixão passar, que vinha do sótão em que dormia.
Carregava as suas roupas de cama e as dispôs na alcova da sala de jantar.
O filho perguntou:
— Por quê mudou de quarto, papai?
— Pra dar menos trabalho.
Deitou-se. Daí a pouco principiou cantando o hino de Nossa Senhora que não pôde
acabar mais. Ou acabou no vôo das almas livres, vôo que fez em companhia do antigo parceiro
e antagonista Marcos Portugal, morto nesse mesmo ano"25.
Manuel de Araújo Porto Alegre veio para tirar a máscara em gesso do morto.
As primeiras biografias, de testemunhas das atividades do Pe. José Maurício, devem-
se ao cônego Januário da Cunha Barbosa, publicada no Diário Fluminense, e Manuel de Araújo
Porto Alegre, futuro Barão de Santo Ângelo.
O Visconde de Taunay foi um verdadeiro batalhador em prol da obra de José
Maurício. Empenhou-se no sentido de conseguir a impressão de suas composições por conta
do Governo. Mas não obteve resultado. Luiz Heitor diz que o Visconde apresentou projeto em
1887, mas foi acusado, em plena Câmara, de estar fazendo os senhores deputados perderem o
seu precioso tempo por causa de um rabequista.

A obra de José Maurício


José Maurício compôs muito, embora nem sempre com a mesma intensidade. Sabe-
se de cerca de 400 obras. Destas restaram algo mais que duzentas. Grande parte do material
encontra-se no Rio de Janeiro (Biblioteca da Escola de Música da UFRJ; Cabido Metropolitano),

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em numerosas outras cidades brasileiras e até no estrangeiro. Das outras sabe-se por
referências as mais diversas.
A quase totalidade das composições de José Maurício são de caráter sacro. O número
de obras profanas é reduzido.
Entre as últimas destacamos a ópera Le Due Gemelli, infelizmente perdida (não há
indícios de que José Maurício tenha escrito outra); Doze Divertimentos para Instrumentos de
Sopro (1817), desaparecidos; Sinfonia Tempestade, incompleta (na verdade uma abertura), a
fim de dar uma idéia sobre os gêneros abordados pelo autor.
Entre as obras profanas que vieram até nós sobressaem: Abertura em ré maior, para
orquestra, densa, dramática, talvez a primeira grande manifestação sinfônica brasileira;
Zemira, abertura (sem correspondente ópera) graciosa, equilibrada, com trechos que
expressam "relâmpagos e trovoadas"26, provavelmente composta para uma peça teatral;
Beijo a mão que me condena, única modinha de José Maurício que conseguiu chegar até nós.
A música sacra de José Maurício abrange algumas dezenas de missas (ordinárias),
parte das quais são conservadas, bem como numerosos fragmentos de missas; missas de
requiem entre as quais sobressai aquela composta em 1816 para as exéquias de D.a Maria I,
por encomenda de D. João. Foi o ano em que faleceu também a mãe do compositor. A Missa
de Requiem 1816, densa, profunda, de elevado nível estético do início ao fim, ocupa não só
uma posição de relevo na obra de seu autor, mas ergue-se, a nosso ver, como grande
monumento musical brasileiro.
As obras sacras restantes diversificam-se em grande número de títulos, enfeixados
por Cleofe P. de Mattos, para fins de catalogação, em categorias como: obras avulsas
(Antífonas, Magnificats, Hinos, Ladainhas, Motetos, Novenas, etc); ofícios; obras para
cerimônias religiosas; obras para a Semana Santa.
Estilisticamente José Maurício é um reflexo da Europa. O que ha nele de pessoal
manifesta-se em termos europeus e não através de uma contribuição que revelasse um modo
de ser brasileiro. Globalmente. Uma audicção mais refinada, no entanto, poderá descobrir,
aqui e acolá, sombras do clima modinheiro, quase um prenúncio da aurora do sentimento
nativo na música brasileira erudita.
"Na continuidade de sua carreira criadora, influências apontam em sua obra, além do
reflexo natural do ambiente musical português, imbuído da velha escola napolitana. E, ao
procurar estabelecer uma linha de enquadramento para essas diferentes fases, não se poderá
omitir os nomes de Haydn, Mozart e, posteriormente, de Rossini"27.

IMAGEM - Parte avulsa autógrafa (fagotes) do Requiem de 1816, com as assinaturas dos seus
possuidores, sugerindo a provável trajetória do manuscrito original da famosa obra, desde a
primeira execução até abrigar-se na biblioteca da Escola de Música.

Resultaria difícil, deixando de lado o período de aprendizado, dividir a produção de


José Maurício em fases. De forma alguma pode-se constatar, como pretendiam alguns
comentaristas, uma fase de esplendor seguida de outra, de decadência. Conforme realça
Cleofe P. de Mattos, na pretensa fase de decadência insere-se, por exemplo, a famosa Missa
de Requiem de 1816.
Por outro lado, é certo que a vinda da corte portuguesa, trazendo músicos e
cantores, teve um efeito sensível na produção do padre-com-positor. "O que se executa, a
partir de 1808, o que se ouve, também o que se vê, tudo foi um deslumbramento para o
Padre-Mestre, afeito aos escassos recursos dos conjuntos de igreja ou do teatro de Manuel
Luís. Muda o aspecto exterior de sua obra. Muda o tratamento orquestral, transforma-se o
tratamento vocal pela revelação da técnica dos cantores que apontam para a Real Capela"28.
Nem sempre essa influência do que ouvia — reflexos do espírito da ópera italiana —
foi benéfica. A produção de José Maurício é desigual, não há dúvida. Mas, não obstante,

159
"...pode-se falar com propriedade, em evolução, nesse período em que se faz
progressivamente mais segura a expressão de sua idéia musical"29.
Merece referência especial o uso relativamente freqüente do estilo fugado (quer sob
a forma de fugas verdadeiras, quer sob a forma de fugatos) a revelar seriedade e
preocupações construtivas severas em meio à leviandade do melodismo à italiana que
dominava a corte e que aponta, mesmo, em numerosos trechos da obra mauriciana. Um
exemplo magnífico é encontrado no Kyrie e Fugato da Missa de 8 de Dezembro (1810).
Só uma referência ainda ao instrumento predileto do padre músico: o clarinete. "Ê
nesse instrumento que José Maurício expande suas tendências seresteiras, que chora suas
tristezas no Requiem de 1816, que traduz a sua euforia em obras festivas"30.

Marcos Portugal
Foi discípulo de João de Sousa Carvalho, tido como o melhor compositor lusitano de
óperas, a despeito da muito maior projeção que viria a conquistar Marcos Portugal.
Nasceu em 1762 e morreu, no Brasil, em 1830. Aos vinte e poucos anos compõe uma
série de peças musicadas cômicas e sérias sobre textos em português. A partir de 1792 é
pensionista régio na Itália, país em que haveria de permanecer durante oito anos, alcançando
grande fama com a produção de mais de vinte óperas. Esta sua fama chegou mesmo a trans-
cender as fronteiras da pátria da música dramática.
No começo do século XIX volta a Portugal para assumir os postos de regente da
Capela Real e do Real Teatro S. Carlos (inaugurado em 1793). Continua aí a compor óperas
com libretos em italiano.
Sua posição face à invasão francesa era dúbia. Em 1808 apresentou no S. Carlos uma
ópera sua em homenagem aos franceses por ocasião das comemorações do aniversário de
Napoleão. Por outro lado, participou com realizações musicais dos festejos da libertação de
Portugal. O oportunismo levou-o, então, a se aproximar da corte de D. João no Rio de Janeiro.
Chegou aqui em 1811, sendo tratado regiamente e nomeado mestre-de-capela da Capela Real.
No mesmo ano de sua chegada foi à cena, no Teatro Régio, uma ópera buffa de sua
autoria, intitulada L'oro non compra amore que já obtivera sucesso na Europa. No ano seguinte
foi encenada Artaserse. No Real Teatro S. João foi apresentada a ópera Merope (1817).
Importantes tornaram-se as execuções de obras sacras de Marcos Portugal na Capela
Real. Já antes de sua chegada, em 1810, fora executada a Missa Festiva (o Museu Histórico
Nacional possui uma cópia). Nos anos que seguem, inúmeras missas e outras composições
sacras de sua lavra foram ouvidas na Capela Real, sob a regência do autor.
Não deixa de ser interessante mencionar duas modinhas de Marcos Portugal:
Cuidados, tristes cuidados e Você trata o amor em brinco. Sente-se nelas, muito nitidamente, o
desajuste entre o melodismo italiano e o ritmo da língua portuguesa.
Quando, em 1821, a família real voltou à Europa, Marcos Portugal não a
acompanhou. Permaneceu no Rio até a sua morte em 1830. Foram anos difíceis. Segundo João
de Freitas Branco: "Os nove anos que lhe restavam foram de sofrimento moral e físico. A sua
conduta não fora de molde a multiplicar simpatias e não faltaram certamente as invejas"31.
Faleceu, vítima de um ataque paralítico, em estado de pobreza.
Estilisticamente a produção de Marcos Portugal pertence ao Rococó e à Itália. Com
todos os defeitos, naturalmente. Na música sacra são mais chocantes do que nas óperas. O
compositor português possui, além de um sólido métier, fluência, um melodismo insinuante e
capacidade de invenção melódica. Quanto à relação entre sua fama e o valor de sua obra,
escreve o mesmo Freitas Branco: "Durante mais de cem anos foi exagerado o prestígio do
nome de Marcos Portugal entre os estudiosos da música lusitana. Depreendeu-se da projeção
internacional de sua obra (inegavelmente a maior dos compositores de todos os tempos) um
valor artístico superior ao dos seus colegas e compatriotas. Porém, uma coisa não implica
outra"32.

160
Sigismund Neukomm
Embora curta, a estada deste compositor austríaco entre nós teve algumas
conseqüências que justificam a sua inclusão aqui.
Neukomm nasceu em Salzburgo, cidade natal de Mozart, filho de um professor da
Universidade, no ano de 1778; morreu em Paris em 1858.
Estudou harmonia e contraponto com Miguel Haydn e, posteriormente, em Viena,
com Joseph Haydn, do qual tornou-se o discípulo favorito. A partir de 1806 começa a viajar
pelo mundo, visitando diversos países e adquirindo renome. De 1812 em diante é músico na
casa de Talleyrand, sucedendo, neste posto, a Dussek.
Sabendo da formação da missão artística em Paris, não resistiu à tentação de
conhecer o Novo Mundo. Veio assim ao Brasil em 1816, segundo alguns, na comitiva do Duque
de Luxemburgo, mandado por Luís XVIII ao Rio a fim de reatar as relações com Portugal;
segundo outros, teria viajado com os companheiros da missão.
Neukomm fora contratado como professor de contraponto e harmonia. Na realidade
nunca chegou a assumir o seu cargo; a prepotência de Marcos Portugal atuou também neste
caso. Limitou-se a dar lições de música a D. Pedro (I), à princesa D.a Leopoldina e a Francisco
Manuel da Silva.
Igualmente importante é que se tornou amigo e admirador de José Maurício. Muitos
anos depois de ter voltado a Paris, conversando com o gaúcho Manuel de Araújo Porto Alegre
— é Afonso de Taunay quem o narra — disse a respeito do padre-compositor: "Ah! os
brasileiros nunca souberam o valor do homem que tinham, valor tanto mais precioso, pois era
todo fruto dos próprios recursos"33.

Spix e Martius – Rio de Janeiro visto de colina de Mata-Cavalos.

O nosso interesse por ele prende-se ao fato de ter sido professor de D. Pedro e de
Francisco Manuel da Silva. E mais ainda: é autor da primeira obra com um tema brasileiro: o
Capricho para piano intitulado O amor brasileiro, no qual aproveita um tema de lundu.
O musicólogo Mozart de Araújo descobriu em Paris uma Fantasia para grande
orquestra sobre uma pequena valsa de D. Pedro I. Harmonizou ainda modinhas do compositor
popular Joaquim Manuel e as fez publicar em Paris.
Entre as suas obras destacamos a abertura Le Héros, por ter sido dedicada a Pedro I e
um Te Deum, cantado em 1862, por ocasião da inauguração da estátua de D. Pedro I.
Os cientistas Spix e Martius, referindo-se à estada de Neukomm no Rio de Janeiro ,
informam que "os conhecimentos musicais dos habitantes do Rio de Janeiro Rio de Janeiro não
estavam ainda à altura das missas de Neukomm, escritas no estilo dos mais célebres
compositores alemães. O impulso que o gênio de David Peres dera à música da igreja
portuguesa cessou. Hoje a primeira coisa que se exige numa missa é que ela seja uma sucessão

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de alegres melodias e que longo e pomposo Glória anteceda a curto Credo. É o estilo de
Marcos Portugal, hoje o compositor predileto dos portugueses”34.
Sentindo a inutilidade de sua estada no Brasil, Neukomm fez as malas em 1821 e
voltou à Europa, assumindo seu cargo anterior na casa de Talleyrand. Posteriormente, realizou
ainda muitas viagens pela Europa e até para o Oriente.
Neukomm não é, propriamente, um artista criador. Assimilou com talento as lições e
o estilo de Haydn e de resto...escreveu muito e tornou-se famoso em sua época. Desta fama,
no entanto, não sobrou, praticamente, nada. A sua obra abrange quase todos os gêneros:
missas, óperas, sinfonias, oratórios, cantatas, música de câmara, sonatas.
O nosso interesse por ele prende-se ao fato de ter sido professor de D. Pedro e de
Francisco Manuel da Silva. E mais ainda: é autor da primeira obra com um tema brasileiro: o
Capricho para piano intitulado O amor brasileiro, no qual aproveita um tema lundu.
O musicólogo Mozart de Araújo descobriu em Paris uma Fantasia para grande
orquestra sobre uma pequena valsa de D. Pedro I. Harmonizou ainda modinhas do compositor
popular Joaquim Manuel e as fez publicar em Paris.
Entre as suas obras destacamos a abertura Le Héros, por ter sido dedicada a Pedro I e
um Te Deum, cantado em 1862, por ocasião da inauguração da estátua de D. Pedro I.

Notas de página

1. Castello, José Aderaldo. Manifestações Literárias da Era Colonial. Vol I, São Paulo, Cultrix,
3 ed., 1967, p.193
2. Taunay, Afonso de E. A Missão Artística de 1816. Publicação da Diretoria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Ministério da Educação e Cultura. Rio de Janeiro, 1956, p.3
3. Andrade, Ayres de. Francisco Manuel da Silva e seu tempo, vol. I. Rio de Janeiro. Col. Sala
Cecília Meireles, 1967, p.63.
4. Citação de Ayres de Andrade. Obra cit. P. 78
5. Castello, J. A. – Obra citada p. 194.
6. Ibid. p. 226.
7. Sodré, Nélson Werneck – Síntese de História da Cultura Brasileira. Civilização Brasileira,
Rio, 1972, 2 ed., p.34
8. Taunay, Afonso de. Obra cit. P. 14.
9. Andrade, Ayres de. Obra cit.p. 23.
10. Ibid. p. 128
11. Heitor, Luiz . Música e Músicos do Brasil. Rio, Casa do Estudante do Brasil, 1950, p. 104.
12. Ibid. p. 117
13. Catello, J. A. Obra cit p. 197.
14. Heitor, Luiz. Obra cit. P. 118.
15. Andrade, Mário de. Música, Doce Música. S. Paulo, Martins, 1963, p.132.
16. Mattos, Cleofe Person de. José Maurício Nunes Garcia – Caálogo Temático. Rio, Conselho
Fed. De Cultura, 1970, p.19.
17. Andrade, Mário de. Obra cit. P. 134
18. Mattos, Cleofe P. de. Obra cit. P. 15.
19. Mattos, Cleofe P. de. Obra cit. P. 31
20. Ibid p. 23
21. Ibid. p. 36
22. Heitor, Luiz – Obra cit. 118.
23. Ibid. p. 122.
24. Mattos, Cleofe P. de. Obra cit. P. 11
25. Andrade, Mário de.Obra cit. P. 140
26. Mattos , Cleofe – obra cit. P. 329.
27. Ibid. p. 356

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28. Ibid. p. 356
29. Ibid. p. 357.
30. Ibid. p. 360.
31. Branco, João de Freitas. História da Música Portuguesa. Lisboa. Europa-América, 1959, p.
129.
32. Ibid. p. 129.
33. Taunay, Afonso de E. Obra cit. P. 342.
34. Ibid. p. 348

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