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Senhoras do Santíssimo Feminino

Oi povo, quem aqui escreve é o Gwydyon Drake, um tanto tomado pela emoção por ler o
novo livro da Marcia Frazão, uma das poucas pessoas a quem tenho orgulho de ser
amigo.
"As Senhoras do Santíssimo Feminino", que trata das santas cristãs, vivas e presentes no
sincretismo deste caldeirão, ventre da Deusa, que pariu esta mistura de raças e crenças,
aborda acima de tudo todas as faces do divino feminino, as vezes com a fé das nossas
avós e em outro tanto de heresia e anarquismo pagão, os mais intrincados mistérios do
feminino.
Santas sim, mas ao mesmo tempo mulheres, como se o grau de divindade fosse apenas
uma forma maior e mais pura da humanidade, e sentimos que mais do que santas, estas
mulheres foram apenas e sobretudo humanas.
Assim roubo um trecho do livro e publico aqui na coluna da Marcinha, deleitem-se, e
leiam o que a Rose Maria Muraro afirma na contra capa do livro Que apenas uma
escritora Bruxa como a Marcia pode fazer melhor do que ninguém, uma alquimia do
sagrado e do profano, do cotidiano e do eterno.
Mas chega de Blá bla blá, e fiquem com a Virgínia, que poucos conhecem, mas que no
seu contato com o divino é tão bruxa quanto a Vitalina, a outra avó da Frazão.

Gwydyon Drake

"Sem papas na língua, ele foi claro e franco quando Virgínia perguntou-lhe a razão da
proibição: "Porque paguei por tudo que você está vestindo."
Não sei se porque já tinha dado todas as suas roupas velhas e ficado apenas com as que
Manoel lhe dera para vestir ou por se sentir extremamente humilhada e rebaixada,
Virgínia obedeceu e não saiu. E para não ter que sofrer mais do que já estava sofrendo,
arranjou uma des-culpa para o comportamento do marido e foi à cozinha para lhe
preparar um bolo.

Se fôssemos nós a viver tal desatino, como dois e dois são quatro, faríamos a mala (dele,
é claro) e enxotaría-mos o canalha para o olho da rua. Mas Virgínia era dife-rente e
preparou-lhe a receita de pão-de-ló com recheio de baba-de-moça que sua mãe, Afonsa,
preparava para Joaquim, seu pai, quando precisava se desculpar por algo que não havia
cometido.A receita em si já era a própria expiação de todos os pecados do mundo: trinta
e três gemas a serem separadas das claras e depois minuciosamente despidas da fina
película que as envolve. Eram então separadas nove gemas e nove claras para a massa e
vinte e quatro gemas para o recheio (se o pecado fosse muito grande, as vinte e quatro
claras restantes eram aproveitadas para fazer um pudim de claras, caramelado!). O
preparo era invariavelmente antecedido por uma longa sessão de lágrimas - ingrediente
fundamental à receita - que serviam para umedecer a farinha, pesada e peneirada.
Depois se seguia um breve período de meditação, onde o pecado era recalcado e
trabalhado como massa de pão. Nessa etapa da receita, o teor do pecado era geralmente
emitido em voz alta (na tonalidade aguda das lamentações).

Como Virgínia não era mulher de adulterar receitas, o pão-de-ló foi preparado
exatamente como a receita pedia. "Ai, Jesus, que tola fui eu a querer sair!", logo ela
disse. "Tem cabimento?", nós diríamos. "Ai, Jesus, Maria e José, que ingrata sou eu a
querer cuspir no prato de quem tanto me deu!", sua culpa não se dava por satisfeita.

Depois de muito bem recalcar e trabalhar a massa da culpa e de tê-la feito crescer com o
calor dos seus desejos devidamente mortos e enterrados, chegava o momento crucial em
que as Santíssimas tapavam os ouvidos e se recusavam a ouvir-era a hora do fermento
da prece.

Embora esta receita tivesse mantido os ingredientes intactos no decorrer de muitos


séculos, pelo fato de que fermento é sempre fermento, pouco importa

qual seja a marca, havia na receita um espírito implícito que deixava a escolha do
fermento livre para as mulheres. Assim, algumas escolhiam Nossa Senhora das Dores;
outras, Santa Clara; outras, Nossa Senhora das Graças; outras, Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro; e Virgínia, Santa Maria Goretti, a santa que perdoou o seu assassino:

Ó Deus
Que pela inocência e fortaleza de Maria Coretti
Transformastes o coração do assassino Alexandre.
Fazei que Santa Maria Goretti atinja os corações
de todos aqueles que são tentados pela
paixão desordenada da impureza.
E que pela intercessão da Santa tenham a força
e a graça de vencer a tentação impura.
Ó Deus
Fazei também que todas as jovens se inspirem no exemplo
de pureza e de Fortaleza de Santa Maria Coretti.
Pedimos isto a Vós por Cristo, vosso Filho,
na unidade do Espírito Santo.
Amém.
Santa Maria Goretti,
rogai por nós.

Maria Goretti, porém, explodiu, irritada por ser invocada em tais circunstâncias:

- A dona Virgínia está maluca, se pensa que vou ajudá-la a assar esse pão-de-ló! No que
depender de mim, ele sola!
Depois de uma pequena pausa à espera de aprova-ção, a santa continuou a falar, apoiada
por todas as San-tíssimas:
-Se ela pensa que por eu ter perdoado num mo-mento de extrema fragilidade o
infeliz que me estuprou e depois covardemente me esfaqueou, eu sou obrigada a
perpetuar o "me perdoa por me ferir", ela já pode ir tirando o cavalinho dela da chuva
porque essa camisa eu não visto! Será que ela não vê que é o raio desse pão-de-ló que
faz com que os homens continuem a humilhar as mulheres, a violá-las e até matá-las?

Teresa de Ávila foi a primeira a se manifestar, com cara de nojo:


-Como diz dona Luiza, "já estou de saco cheio". Não posso nem mais sentir o cheiro desse
pão-de-ló porque meu estômago embrulha!

Isto fez Santa Luiza desabafar, com os olhos marejados de lágrimas:


- Esse negócio de mártir já anda me incomodando! Onde já se viu pesar a santidade de
uma pessoa de acor-do com o martírio que ela sofre? Isso é a mesma coisa que incentivar
cada vez mais a violência e a injustiça para que haja mártires, para que não haja falta de
santos no mercado! O martírio que padeci poderia ser evitado se a humanidade fosse
mais justa, mais benevolente, mais igualitária e mais piedosa!

Maria Goretti, no entanto, tinha mais a dizer; ela pre-cisava dar vazão à sua indignação:
- O pior é que até hoje esse perdão não me sai da cabeça! Será que as pessoas nunca
conseguiram perceber que eu também tinha sido ensinada a preparar esse tal pão-de-ló?
Será que não pensaram que eu tam-bém fui criada neste mundo que ensina às mulheres
a se culparem por tudo que lhes acontece? O engraçado é que foi por causa do
assassinato que todo mundo voltou seu coração para a minha pessoa! Foi só por-
que o meu assassino assombrou-se com seus próprios fantasmas e saiu dizendo que
havia se convertido depois que lhe visitei em sonho! Como se eu não ti-vesse nada a
fazer senão aparecer no sonho de alguém cujo rosto até hoje procuro esquecer! Eu até
entendo
que ele possa ter se arrependido e respiro aliviada só de pensar que ele não cometeu
mais o mesmo crime. Mas, ser tida como santa por ter morrida por tamanha perversidade
é diminuir, vulgarizar mesmo, o signi-ficado da santidade e colocar sangue de barata nas
minhas veias!

- Não liga, não, Goretti! - agora era Santa Regina que se manifestava.
- Não há entre nós aquela que não tenha passado por esta transfusão de sangue tão
bizar-ra! Eu, por exemplo, que nasci na Borgonha do século II e abracei o cristianismo
por causa da sua mensagem de paz e de entendimento e caridade entre os homens, eu
também padeci maus pedaços quando o procônsul Olíbrio cismou que eu tinha de me
casar com ele. O peste atentou tanto contra mim que acabei presa e torturada. Mas, você
sabe, ele era um homem abjeto, o tipo de homem que nunca atrairia uma mulher com
um pouco só de juízo. E como eu já estava envolvida com o trabalho iniciado por Cristo,
não houve tortura que pudesse demover meus ideais. O homem ficou uma fera quando
viu que eu não arredava o pé da minha decisão e acabou me decapitando. Ainda me
lembro muito bem do último pensamento que tive antes da espada cortar a minha
cabeça. Eu pedi ao Senhor que aquela fosse a última vez que uma mulher morresse por
defender seus princípios. Pedi que o sangue jorrado do meu pescoço fertilizasse a terra
com as sementes da generosidade e da igualdade entre os sexos e as etnias. E sabe o
que aconteceu? Fiquei vista como a mocinha ingênua e cristã que lutou até a morte em
defesa da sua castidade. Ora pombas! Será que ninguém percebeu que morri por
acreditar que é possível haver um mundo mais justo e generoso? Será que ninguém se
deu conta de que a coisa que Cristo e todas nós queríamos era que o mundo não
precisasse de mártires?

- Tem horas que olho para o passado, tentando encontrar alguma diferença, uma coisinha
qualquer de diferente no comportamento da humanidade, e me assusto por constatar que
nada mudou. Os homens continuam mesquinhos, brigando por um naco de terra e um
naco de pão. Os valores que Cristo pregou, não quando estava na cruz ou no martírio,
mas quando compartilhava sua alegria e sua esperança na possibilidade de um mundo
unido por um só desejo de amor, tornaram-se valores relegados ao segundo plano. E com
um sadismo digno do pior Diocleciano, as pessoas ainda têm o atrevimento de se
reunirem torno da sua crucificação! Como se alguém, altíssimo ou humaníssimo, tivesse
como objetivo último o padecimento e a dor!

Talvez por rebelião santíssima ou por farinha mal peneirada, naquela tarde o pão-de-ló
solou. Amargou na boca de Manoel e fez mal ao seu fígado. Virgínia, que acompanhara a
conversa das santas, não se desculpou pela receita mal preparada. Não ofereceu a ele
nenhum antiácido e recolheu-se mais cedo. Naquela noite chorou, não por se sentir
culpada de algo que não praticara, não por se achar devedora de urna dívida que pagava
todos os dias com juros altos. Uma dívida que pelas suas contas já estava saldada.
Chorou por Afonsa e por todas as mulheres do mundo. Depois pegou no baú a velha
receita de pão-de-ló e a rasgou em mil pedaços. Ajoelhou-se à beira da cama e orou por
Afonsa, pelas mulheres e pelas santíssimas." (Senhoras do Santíssimo Feminino - Marcia
Frazão - Editora Rosa dos Tempos)

17/09/2005

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