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Uma arte (quase) esquecida

Um dos métodos divinatórios mais antigos de que se tem notícia é a


geomancia. A palavra grega significa, literalmente, “adivinhar com a terra”,
pois os praticantes dessa arte usavam areia ou pedrinhas para formar
figuras e, com base nelas, fazer suas previsões.1
Apesar do termo grego para designar a prática, o mais provável é que a
geomancia tenha se originado no Oriente Médio e Norte da África. Auto-
res muçulmanos atribuem a criação da geomancia a Enoque e, outros, a
Daniel. Com isso, fica claro que, ao menos na mentalidade muçulmana,
a geomancia era uma arte originária do povo hebreu.
Alguns dos maiores nomes do judaísmo – dentre eles Maimônides
(Rambam) e Nachmânides (Ramban) – fazem alusão à prática, chaman-
do-a de goral hachol (oráculo de areia) ou chochmat hanecudot (sabedoria
dos pontos). Ao longo da história, vários livros chamados Sefer Hagoralot
(Livro dos Oráculos) foram escritos ensinando como responder a per-
guntas das pessoas utilizando a geomancia. Desses vários livros, os mais
famosos são os atribuídos a Achitofel Haguiloni, Saadia Gaon, Avraham
Ibn Ezra e Chaim Vital.
Tanto Ibn Ezra como o autor anônimo de Goralot Hachol vão um
passo além e unem a geomancia à astrologia (usando algo que poderíamos
chamar de “geomancia astrológica”). Eles dividem as figuras possíveis
conforme as doze constelações do zodíaco e os sete planetas básicos,
além do Nodo Norte e Nodo Sul. A base para isso, segundo esses autores,
aparece no próprio Talmud.2

1  Por um erro semântico do inglês, o Feng Shui passou a ser chamado de geomancia
mas, etimologicamente, o termo está incorreto. O Feng Shui procura entender as forças
da terra (geo) para melhor disposição do espaço físico, mas não se trata de um método
divinatório (mancia).
2  Shabat 129b.
2 “uma arte (quase) esquecida”

As 16 Figuras Geomânticas

A base para a geomancia é o uso de 16 figuras. Cada uma delas é com-


posta de quatro linhas, que podem ter um ou dois pontos.3 A combinação
e interação das figuras é o que permite ao geomante/astrólogo enxergar o
padrão por trás de uma questão particular, analisando passado, presente
e futuro de um certo problema.

3  O princípio é similar ao do I-Ching chinês (que usa seis linhas – hexagramas – que
podem estar completas ou divididas, formando 64 diferentes combinações) e ao do Ifá
dos iorubás na África (em especial na Nigéria).
yair aloN 3

Cada uma das figuras tem um nome próprio e uma "personalidade".


Ibn Ezra afirma que seis das figuras são benéficas, seis são maléficas e
quatro são intermediárias.4 Em latim, as dezesseis figuras são: populus
(povo), via (caminho), albus (branco), conjunctio (união), amissio (perda),
puella (menina), fortuna minor (pequena fortuna), fortuna major (grande
fortuna), rubeus (vermelho), puer (menino), laetitia (alegria), acquisitio
(ganho), tristitia (tristeza), carcer (prisão), caput draconis (cabeça do
dragão) e cauda draconis (cauda do dragão).
Além de seus nomes e significados óbvios dados pelos nomes, quando
usadas com a astrologia, cada figura fica sob regência de um planeta.
Como temos sete planetas, cada um rege duas figuras, totalizando catorze
atribuições. As duas figuras restantes são relacionadas ao Nodo Norte e
ao Nodo Sul, perfazendo as dezesseis.
Vejamos abaixo um exemplo de figura geomântica: puella (menina).

Repare nas quatro linhas. A primeira (rosh nassua) é de um ponto,


a segunda é de dois, a terceira de um e a última (shefel rosh) novamente
de um. O planeta associado a ela na geomancia astrológica é Vênus que,
junto com o significado de “menina”, nos faz concluir que essa é uma
figura relacionada a temas como amor, o feminino, as artes, o prazer, os
sentimentos.

4  Curiosamente, Ibn Ezra usa o nome latino das figuras (embora os transcreva uti-
lizando o alfabeto hebraico). Outros autores, como Iossef Albo, no entanto, usam nomes
hebraicos, tanto para as imagens como para partes delas. Albo, por exemplo, chama o
primeiro ponto de cada figura de rosh nassua (cabeça do casamento) e o último de shefel
rosh (rebaixamento da cabeça).
4 “uma arte (quase) esquecida”

Fazendo a pergunta e gerando o mapa da resposta

Ao receber uma pergunta no sistema de geomancia sem envolvimento


com a astrologia, o geomante distribuía as figuras no chamado “escudo
geomante”.

Começando pelo topo à direita e indo para a esquerda (repare que esse
é o mesmo sentido de escrita das línguas semíticas), definiam-se as quatro
mães, as quatro filhas, as quatro sobrinhas, duas testemunhas (direita e
esquerda) e um juiz (uma figura sempre ficava de fora da leitura).
Com o escudo montado, já era possível obter a resposta.
No entanto, como informado anteriormente, alguns autores foram um
passo além e usavam os métodos geomantes em conjunção com o mapa
astral – resultando num tipo específico de astrologia horária.
Nesse último caso, o astrólogo distribuía as quatro mães, quatro filhas
e quatro sobrinhas (deixando de lado as testemunhas e o juiz) em cada
uma das casas do mapa, pela ordem: a primeira mãe na primeira casa, a
segunda mãe na segunda casa etc.5

5  Existiam outros modos de relacionar as figuras geomantes com o mapa, inclusive


permitindo a repetição de uma mesma figura em uma ou mais casas.
yair aloN 5

A figura abaixo representa o mapa como feito na época medieval (e


como feito até hoje na astrologia védica).

Da combinação de ambos os sistemas vinham as informações neces-


sárias sobre o assunto questionado. A casa 1 indica a pessoa que faz a
pergunta (o querente) e a figura que aparecesse ali descrevia seu estado
físico, psicológico e anímico.
Manuscrito italiano (circa 1550-1575) com três textos de geo-
mancia astrológica atribuídos a Ibn Ezra. Repare na junção do
mapa astral (o quadrado na parte de cima da página) e o sistema
geomântico (as duas linhas no centro-inferior da página).
6 “uma arte (quase) esquecida”

A casa sete, por outro lado, representa o marido/esposa, pessoas que


se envolvem amorosamente com o querente, e parceiros em geral. A
figura que “caísse” naquela casa daria informações sobre essa pessoa na
vida do querente. O mesmo processo podia ser aplicado para as demais
casas, conforme o teor da pergunta formulada.
Hoje em dia a geomancia (astrológica ou não) é uma arte quase que
totalmente esquecida, apesar de ter sido usada abundantemente no passado.
Provavelmente, parte disso se deu pelo avanço da astrologia, que podia ser
usada em sua forma oracular – astrologia horária – com igual ou maior
precisão que a geomancia (provavelmente também com um apelo mais
“científico” do que a geomancia, que pode parecer apenas uma questão
de “sorte”). Além disso, é provável que o método foi perdendo influência
quando o “leitor de oráculo” saiu das ruas de areia e pedras das grandes
cidades – atendo o público in situ – para ir ao “consultório”, atendendo o
seu cliente com astrolábios, pergaminhos e ábacos.

Yair Alon

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