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A história contada e vivida

Eloisa Vidal Rosas, psicóloga clínica, terapeuta de família e casal, mestra em Comunicação
(UFRJ), facilitadora de processos coletivos, professora e supervisora da formação em Terapia de
Família no Instituto Noos.
Artigo publicado na revista Nova Perspectiva Sistêmica, número 22, outubro/2003

Resumo: A trajetória clínica e teórica de uma Instituição cuja epistemologia


privilegia o intercâmbio de saberes: clientes, alunos e professores construindo
juntos um processo de ensino/aprendizagem. Essa rede dinâmica possibilita uma
reflexão conjunta contínua, que não permite verdades estabelecidas, oferecendo o
contexto para uma narrativa cuja responsabilidade é compartilhada por todos os
seus atores/autores.

“O senhor... mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas
não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre
mudando. Afinam ou desafinam.”(1)

Terça feira, 11:00 da manhã. Uma casa rosa numa rua tranqüila no Jardim
Botânico, Rio de Janeiro. Começam a chegar pessoas, algumas um papel na mão,
outras puxando o filho; algum casal, mas a maioria vem sozinha. Chegam tímidos,
dizendo à secretária, que gentilmente atende a todos, que vieram se inscrever
para “terapia de família..., foi do Conselho Tutelar..., o doutor mandou..., tenho
uma amiga que fez terapia aqui e adorou!” Recebem um crachá com seu nome e
são conduzidos ao quintal, onde sob uma mangueira centenária, começam a
preencher uma ficha de inscrição. Água? Cafezinho? Banheiro? Alguns vêm de
muito longe mesmo... cansados, assustados, desesperançados. Muitos nem
queriam estar ali... mas o juiz mandou, a assistente social, a coordenadora da
escola. Ficha preenchida com auxílio da equipe, tem início um grupo de conversa.

1
A instalação e manutenção de uma Clínica Social em uma Instituição privada é um
sonho e um desafio.
A experiência de um projeto integrado que inclui a Formação 1, a Clínica Social e a
Pesquisa no Instituto de Terapia de Família do Rio de Janeiro é um processo que
teve início em 19872; a partir da necessidade do curso, o contexto acadêmico
criou a possibilidade da inserção de práticas sistêmicas no atendimento à
comunidade.
Em 1989 foi criada a Clínica Social3, organizada a partir da demanda de famílias
encaminhadas através de um convênio com o Hospital da Lagoa. Em pouco
tempo outras instituições já estavam utilizando o ITF como um recurso numa rede
multidisciplinar. Atualmente recebemos famílias encaminhadas por diversas
instituições das áreas da Saúde e da Educação, além dos Conselhos Tutelares e
das Varas de Família, e também por profissionais, alunos e ex-alunos, clientes e
ex-clientes. O formato atual da Clínica Social vem sendo repensado desde a
criação do que é hoje a espinha dorsal da Instituição, espaço de aplicação e
pesquisa para alunos e professores.
Ao longo de nossa trajetória já passamos por vários modelos de funcionamento e
permanecemos em estado de curiosidade constante a respeito do fazer, do
experimentar, do criar. Utilizamos um método de ação/reflexão no nosso trabalho,
e muito cedo percebemos que nosso grande desafio era conceber os cenários de
mudança no marco de uma ciência do experimentar, onde a aprendizagem se
constituía em uma atividade investigativa.

“A tentativa de desenvolver uma prática terapêutica coerente com o modelo


construtivista não nos traz, e seria contraditório se o fizesse, respostas a todas as
questões que encontramos no nosso cotidiano. Ao contrário, ao deslocar referências
epistemológicas da prática terapêutica, surgem novas questões, enquanto outras,
ainda que não respondidas, mudam ou mesmo perdem seu sentido”(2)

1
O termo “formação” não me satisfaz como descrição desse processo dinâmico, recursivo e reflexivo de
intercâmbio de saberes; entretanto, ainda não encontrei outro que o expresse mais apropriadamente.
2
O ITF foi a primeira instituição particular a oferecer uma formação regular em Terapia Sistêmica de Família
no Rio de Janeiro.

2
Tentamos manter um olhar atento e cuidadoso, pois temos dois níveis de
solicitação constantes: o respeito ao cliente, que confia e escolhe a Instituição,
com quem estabelecemos um compromisso de um atendimento de muita
qualidade; o respeito ao aluno, que estará estreando como terapeuta de família
frente à Instituição e a seus pares, elaborando seu próprio estilo, com todas as
implicações inerentes a essa situação de prática supervisionada. Um olho no
padre, outro na missa, para atender às necessidades grupais e individuais.
O que começou pequeno foi crescendo e se complexizando. Em 1997 nasceu o
projeto Famílias em Sala de Espera, concebido por alunos de uma das turmas do
ITF4 que, movidos pelo propósito de manterem o vínculo de cumplicidade que
construíram ao longo do curso, propuseram um Projeto que veio ao encontro da
necessidade da Instituição na época – a de otimizar o processo de inscrição e
recepção das famílias. Antes de esse espaço ser instituído, o contato era feito
apenas por telefone. O objetivo precípuo do Projeto era acolher as famílias que às
vezes podiam aguardar por muito tempo o atendimento, pois este depende
sempre da disponibilidade de alguma equipe. Logo nos demos conta que os
ganhos eram muitos maiores...
Conhecer um pouco da história de cada um humaniza o encaminhamento. Vindo
à Sala de Espera, um (ou mais) adulto responsável pela família e crianças acima
de 12 anos, conhece nosso espaço físico, a “cara” da Instituição, nosso jeito de
trabalhar (a sala de espelho, trabalho com equipe, etc.) e participa de um grupo,
onde descobre que há outras pessoas que têm dúvidas, temores e esperanças
semelhantes.

As pessoas que estão presentes nessa terça-feira são convidadas a participar de


um grupo de conversa, onde duas pessoas da equipe funcionam como
facilitadores. Depois de uma explicação sobre nosso trabalho, apresentado
através de um texto que eles vão levar para casa, é proposta uma discussão em

3
Anna Maria Hoette deu início a esse projeto e foi sua coordenadora até 1997.
4
Os alunos da turma 93.1: Júlio Cezar Costa, Maria Beatriz Costamilan, Nádia Moritz, Regina Cantini, Vânia
Izzo, Vera Lucia Mendes e Mara Moulin; todos se mantêm no projeto.

3
pequenos grupos. Os facilitadores oferecem algumas perguntas para discussão,
que variam em torno dos seguintes temas:
Que outros profissionais ou instituições estão envolvidos no caso?
Que outras pessoas significativas podem ser convidadas a participar?
Como você imagina que a sua família poderia se beneficiar de uma terapia?
Qual seria um bom resultado em uma terapia para sua família?
Quais suas dúvidas a respeito desse tipo de terapia?
Quem mais acha que existe um problema?
Eles trabalham juntos por alguns minutos e depois voltam ao grupo maior, às
vezes com um relator encarregado de transmitir o resultado da conversa, outras
vezes, dependendo do número de pessoas presentes, todos falam. Nossa
intervenção tem como organizador o agenciamento, a autoria de que cada um
pode se dar conta através dessa conversa. Buscamos uma conversação aberta,
na intenção de clarificar o que cada um espera, numa negociação com as
possibilidades da Instituição.

“... terapias construtivas envolvem não só a criação de alternativas através da


conversação, mas também a criação de contextos para conversações férteis e vivas,
para o acontecimento de diálogos ao invés de monólogos”. (3)

Uma informação que para nós é importante diz respeito a quem encaminhou a
família. Quando a família começa a terapia, o(a) terapeuta responsável tenta fazer
contato com o profissional ou instituição e, na medida do possível, promover uma
rede de auxílio mútuo, porque deveríamos estar todos trabalhando com o mesmo
objetivo.

“Precisamos também promover a criação de estruturas de interface com o sistema


escolar, o departamento de serviço social e os juizados. Esses espaços deveriam vir a
encarnar a idéia de que estamos todos juntos, porque o que faz as crianças
fracassarem na aprendizagem é a mesma coisa que faz com que fracassem na vida,
sejam mortas na esquina, fiquem grávidas na adolescência.” (4)

4
O encontro dura cerca de uma hora e meia. Durante esse tempo os participantes
trocam informações, fazem perguntas, sugerem estratégias uns aos outros. É
interessante como os temas vão se articulando, conversa puxa conversa...

“Para nós, a conversa terapêutica é um encontro sagrado porque as pessoas se apresentam


vivendo uma grande dor e partilham a sua história. As histórias que compartilham são sempre
profundamente pessoais e elas se expõem muito. São os tipos de historias que, normalmente, as
pessoas só compartilham com seus amigos mais íntimos e com sua família.” (5)

Certa ocasião, inesquecível para nós, uma das pessoas trouxe um problema de
relacionamento com sua filha adotiva; logo outras duas pessoas se manifestaram,
compartilhando suas experiências como filhos adotivos... uma senhora, que
estava visitando o grupo para agradecer à equipe pela oportunidade de uma
terapia que já tinha terminado, tirou da bolsa o poema que havia escrito:

Dedico esse versinho


Ás mães que não são carnais
Pois Deus sempre faz certo
Por linhas tortas demais

Imaginem então uma irmã


Que da mãe herdou um filho
Não procriou nem casou
Ao filho se dedicou

Será então por acaso


As linhas tortas de Deus
Será que são assim tão tortas
Ou aquele filho era seu?

Regina Bigio, maio de 2000

5
O membro (ou membros) da família que comparece ao encontro – quinzenal –
leva para casa informações importantes sobre nosso modelo de funcionamento,
sobre o espaço físico, sobre a maneira como são acolhidos. Essa familiaridade
com a Instituição estabelece a possibilidade da formação de um vínculo, onde
família e profissionais da instituição se sentem mais responsabilizados pelo futuro
atendimento.
O tipo de contexto define o tipo de intervenção. Essa premissa de caráter linear
nos leva a pensar em uma predeterminação contextual da intervenção; no entanto,
falando recursivamente, as regras que emergem do contexto redefinem o contexto
mesmo, então é legítimo pensar que

“se varia o contexto, variam também as regras que lhe são próprias” (6)

A princípio, tentamos utilizar nossa equipe de reflexão. À medida que prosseguia a


experiência, verificamos que os membros do grupo funcionam como sua própria
equipe. A equipe de coordenação, mais que tentar explicar ou ensinar o que é
necessário, presta atenção ao processo de mudança e acredita que as conversas
se auto organizam.
Por causa do paradigma mecanicista em que vivemos as mudanças parecem ser
mágicas. Mudança auto organizada é mais como um jardim que como uma
máquina, as coisas crescem todo o tempo por si próprias, impulsionadas por um
desafio interno de vida que visa qualidade e eficiência. Essa mudança é
transformativa, aspectos podem ser planejados, a mudança pode ser antecipada,
mas fundamentalmente esse processo de mudança não é planejável. Esse
pensamento privilegia um contexto que favorece novos insights onde problemas
são espontaneamente resolvidos; é uma mudança do estilo de controle para o de
auto gerência.

“A rede social, assim como uma narrativa, é um sistema auto-organizante


fundamentalmente descentralizado: as redes operam sem hierarquia centralizada,
sem organizadores, sem um líder condutor (a não ser circunstancialmente).(7)

6
Um verbo que tentamos conjugar com maior freqüência é facilitar: elicitar,
sustentar, realçar a mudança auto organizada. Facilitar um encontro é não tentar
controlar os outros em direção a resultados predefinidos, mas ajuda-los a alcançar
o que querem. O facilitador não só ajuda os participantes a se auto administrarem
como ajuda que o processo de pensamento seja auto organizado. As técnicas que
pensamos têm a finalidade de sustentar a dinâmica auto organizada. Esse é um
modelo consistente com nossa epistemologia. O pensamento construtivista e
construcionista social fornece ferramentas para promover uma rede de conversa
que cria o contexto para a reflexão, que promove a autoria, o agenciamento.

Antes de terminar o encontro, geralmente pedimos “uma palavra que para você
sintetize as emoções vividas aqui hoje”. Já há alguma ligação entre as pessoas
desse grupo que se encontrou nessa terça-feira: caras têm nomes, os nomes nos
crachás têm caras e corpos, histórias, humores, têm... um jeito particular. Na
saída, Alice toma mais um café, aproveitando para mais um dedo de prosa com
Joana, tão simpática, uma história tão parecida com a sua... Vão para suas casas,
seus trabalhos, suas vidas, um pouco mais animados, um pouco mais
esperançosos... Maria vai tentar trazer o marido... Sônia sai pensando que seu
filho adolescente não é muito diferente daquele rapazinho que estava se
queixando de dificuldades com seu pai... Seu Antônio vai contar para a mulher que
já que o filho “problemático” não quer se tratar, eles têm que vir a esse grupo com
outros pais que vivem a mesma situação... em tudo se dá um jeito!

A experiência prévia na Sala de Espera permite que a família seja encaminhada à


equipe que mais se adequar ao caso. Além das equipes do curso regular,
contamos com o auxílio de equipes de atendimento especializadas, coordenadas
por membros da nossa equipe de supervisores, que têm como foco os seguintes
temas: Violência Intrafamiliar, Famílias em Situação de Litígio, Famílias com
Usuários de Álcool e Drogas, Transtornos Alimentares, Famílias com Crianças,
além dos Grupos de Mulheres, Homens e Adolescentes que Viveram Situação de

7
Divórcio e Familiares de Pessoas com Transtornos Psíquicos, para onde
encaminhamos os casos específicos.
Com o aumento da demanda das famílias, a fila de espera foi inchando... trazendo
nova preocupação para a equipe: não dá para ficar muito tempo esperando por
terapia!

Não “possuímos” nossa epistemologia do cotidiano, ela depende de nossa habilidade


de agir…” (4)

Foi então que surgiu a idéia de um “Banco de Terapeutas”, do qual participam


alunos e ex-alunos do ITF, que se organizam em duplas e oferecem horários em
seus consultórios, dentro dos mesmos critérios de atendimento da Instituição,
estratégia que tem se mostrado eficiente e fundamental para a agilização dos
atendimentos. Neste momento temos reuniões mensais com os participantes do
nosso Banco, onde são discutidos os casos em atendimento e as regras de
funcionamento. Um desafio constante é atender à complexidade sem que a
multiplicidade das variáveis paralise nossas intervenções.

Pensamentos finais

“a ação humana se dá numa realidade de compreensão que é criada através da


construção social e do diálogo” (4)

Aprendizagem é um processo cotidiano, dinâmico, contínuo, para a vida toda.


Nosso organizador através desses anos tem sido o diálogo constante entre os
atores desta narrativa: os docentes, os alunos, os clientes e a equipe mais
ampliada, enfim, todas as pessoas que permitem que o sonho seja possível e que
o desafio siga sendo um estímulo, e não um obstáculo. Todos esses personagens
contribuem com seus diferentes saberes para a teia complexa que se vai tecendo,
numa relação recursiva entre crescimento pessoal e crescimento profissional.
Dessa forma, somos todos responsáveis pelos resultados que alcançamos.

8
“…havia um recurso que em nossos projetos – na América Latina – adquire uma
dimensão particular: a esperança… A esperança – diferentemente de outros recursos
(como o dinheiro) – é renovável: quanto mais é utilizada… no lugar de diminuir, cresce
e se desenvolve… não pode ser dada e para ser oferecida requer a construção ou
abertura de um espaço compartilhado… o marco de “compreensão mútua constrói
espaços de contenção que permitem a exploração de dimensões de relação que, de
outro modo, a tornariam uma ameaça possível para a existência emocional, ou uma
invasão inadmissível da intimidade; um contexto de sobrevivência.” (9)

Enquanto escrevo estas últimas linhas, aqui na nossa Biblioteca – um sabiá


cantando sem parar, antecipando a primavera – penso em quantas vidas se
detiveram, em algum momento, numa encruzilhada onde havia, entre outros, um
cartaz apontando para o ITF... não nos damos conta das mudanças de rumo que
imprimimos à nossa trajetória mas, como numa carta náutica, um pequeno desvio
em algum ponto vai desenhar um outro porto de destino.
Ecoam em minha memória as palavras que os participantes da Sala de Espera
nos deixam, como pedras que compõem um infinito mosaico de histórias de vida,
que se entrelaçam com as nossas: diálogo... esperança... ansiedade... novidade...
animação... preocupação... “foi bom”... solidariedade... desgaste... acolhimento...
renovação... ajuda... alívio... peso... união... mexida... desepero... ponte... auxílio...
vou voltar!

Referências bibliográficas:

1. Rosa, João Guimarães, Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 1984. (pg. 21)
2. Rapizo, R., Terapia Sistêmica de Família: da instrução à construção. Rio de
Janeiro: Instituto Noos, 1996. (pg. 95)
3. Pakman, M. Desenhando terapias em saúde mental comunitária: poética e
micropolítica dentro e além do consultório NPS no. 13, abril 1999 (pg 14)

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4. Pakman, M. Desenhando terapias em saúde mental comunitária: poética e
micropolítica dentro e além do consultório, Nova Perspectiva Sistêmica, 13,
abril 99
5. Waldegrave, C. e Tamasese, K. Algumas idéias centrais no método da Just
Therapy, Nova Perspectiva Sistêmica, 19, agosto 2001
6. Selvini Palazzoli, M., Cirillo, S., Selvini, M., Sorrentino, A. Los juegos psicóticos
en la familia, Buenos Aires: Paidos. 1990
7. Sluzki, C. A rede social na prática sistêmica. Casa do Psicólogo, São Paulo,
1997 (pg. 137)
8. Anderson, H. e Goolishian, H. O cliente é o especialista: uma abordagem para
terapia a partir de uma posição de não-saber. Nova Perspectiva Sistêmica, no.
3, Janeiro de 1993
9. Fuks, S. Metáforas de transformação nos finais do século: navegando em
mundos de conversas sobre a intimidade, a comunidade e os espaços de
encontro NPS no. 11, julho 1998

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