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Constituição brasileira de 1988

Monista ou dualista?

Antenor Madruga

Ao julgar o Agravo Regimental em


Carta Rogatória no 8279, em 17/06/1998,
o Supremo Tribunal Federal, em voto do
eminente Ministro Celso de Mello, faz refe-
rência à controvérsia doutrinária em torno
do monismo e do dualismo para registrar
que o mecanismo de recepção do direito
internacional na Carta Política brasileira
“constitui a mais eloqüente atestação de
que a norma internacional não dispõe, por
autoridade própria, de exeqüibilidade e de
operatividade imediatas no âmbito inter-
no, pois, para tornar-se eficaz e aplicável
na esfera doméstica do Estado brasileiro,
depende, essencialmente, de um processo
de integração normativa que se acha deli-
neado, em seus aspectos básicos, na própria
Constituição da República”1:
A afirmação de que “a norma interna-
cional não dispõe, por autoridade própria,
de exeqüibilidade e de operatividade ime-
diatas no âmbito interno” deve ser lida com
cautela, pois não se dirige a toda e qualquer
norma internacional, mas apenas à norma
derivada de fonte normativa convencio-
nal do direito internacional. Somente os
tratados internacionais têm a sua eficácia
e aplicabilidade na esfera doméstica de-
pendente “de um processo de integração
normativa que se acha delineado, em seus
1
STF, Agravo Regimental em Carta Rogatória no
8279, julgado em 17/06/1998, Relator Ministro Celso
de Mello.

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aspectos básicos, na própria Constituição jurídicos nacionais (DINH, 2003, p. 318),
da República”. são as máximas repetidas sem hesitação
Em direito internacional, como no nos tribunais da maior parte dos países. O
direito interno, existem vários modos de princípio exceptio non adimpleti contractus foi
formação do direito. O Estatuto da Corte apontado na Corte Internacional de Justi-
Internacional de Justiça, em seu artigo ça, pelo Juiz Schwebel, como um exemplo
38, relaciona os tratados, os costumes e os de princípio geral de direito3, enquanto o
princípios gerais de direito como fontes de juiz Carl-August Fleischhauer negou essa
direito internacional, e faz referência à qualidade para o direito ao controle judi-
jurisprudência e à doutrina como meios cial do governo (judicial review), em face da
auxiliares na determinação das regras ju- inexistência de universalidade4:
rídicas, facultando, sob certas condições, “Judicial review, in varying for-
o emprego da eqüidade. Basear a análise ms, is found in a number of democra-
da eficácia imediata de normas internacio- tic polities, most famously that of the
nais na peculiaridade do procedimento de United States, where it was develo-
incorporação dos tratados empobrece o já ped by the Supreme Court itself. But
inócuo debate sobre monismo e dualismo it is by no means a universal or even
e, pior, torna míope a visão dos juízes em general principle of government or
relação ao direito internacional. law. It is hardly found outside the de-
A falta de um tratado internacional mocratic world and is not uniformly
não significa, ao contrário do que sugere a found in it. Where it exists interna-
1a Turma do Superior Tribunal de Justiça, tionally, as in the European Union, it
ao julgar o Recurso Ordinário no 6, em is expressly provided for by treaty in
23/03/1999 (Rel. Min. Garcia Vieira), que specific terms. The United Nations is
não exista norma de direito internacional far from being a government, or an
de outra fonte. international organization compara-
Ao analisar apenas os tratados e não ble in its integration to the European
encontrar, neles, norma que obrigue o juiz Union, and it is not democratic.”
a reconhecer imunidade de jurisdição a Não se pode afirmar a existência de
Estado estrangeiro2, o STJ não esgotou a princípio geral de direito estabelecendo a
pesquisa de todas as fontes de direito in- imunidade de jurisdição dos Estados sobe-
ternacional. Faltou procurar nos costumes ranos. Se o direito à recusa da jurisdição in-
e nos princípios gerais de direito, como fez terna somente pode ser encontrado no siste-
Cosnard (1996, p. 16-17): ma jurídico que determina as relações entre
“En l’absence de toute convention Estados, não existindo nos ordenamentos
internationales traitant des immuni- jurídicos internos senão por aplicação do
tés des Etats de manière générale, direito internacional, logo, não se pode falar
une éventuelle règle internationale, em princípio geral de direito, mas sim em
déterminant avec plus ou moins de princípio especial de direito internacional.
les cas ou un Etat peut bénéficier de ce Cosnard (1996, p. 16-17), partindo de um
privilège, ne peut qu’un principe gé- outro ponto de vista, também não encontra
néral de droit ou une coutume.” nos princípios gerais de direito a norma que
Os princípios gerais de direito são os
princípios comuns aos diferentes sistemas 3
I.C.J. Reports, 1986, p. 14.
4
Questões de Interpretação e Aplicação da Con-
“Não existe nenhum código, convenção ou tratado
2
venção de Montreal de 1971 Surgidas do Incidente
que obrigue o juiz brasileiro a reconhecer a imunidade Aéreo em Lockerbie (Líbia v. Reino Unido). Objeções
absoluta de jurisdição a todos os atos praticados pelo Preliminares. Julgamento de 27/02/1988. I.C.J Reports
Estado estrangeiro no Brasil”. (Trecho do acórdão). 1998, p. 9.

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determina a imunidade de jurisdição. Para haver imunidade de jurisdição — absoluta
ele, a imunidade soberana, ainda que tenha — dos Estados diante de cortes internacio-
fonte em direito internacional, aplica-se nais, ainda que disfarçada em expressões
apenas em conflitos internos, não podendo, como “jurisdição consensual”:
portanto, ser transportada para o direito “... if it sought to be referred to an in-
internacional: ternational court, there will be no juris-
“Or l’immunité des Etats ne diction without consent; or, in the lan-
déploie ses effets que dans l’ordre guage used of municipal jurisdictions,
interne. Même si la première condi- there will still be absolute immunity
tion est remplie, l’immunité n’est pas unless (by treaty or otherwise) there
transposable en droit international has been a waiver of immunity.
public.” ... So now we have a somewhat
Não nos parece correto esse raciocínio, curious situation. The principle of
pois não se está tratando dos efeitos de uma a State’s jurisdictional immunity
regra internacional, mas de sua constitui- (or consensual jurisdiction) is still
ção. A norma internacional, seja ela conven- virtually absolute in its application
cional, seja consuetudinária, seja extraída before international courts, but has
dos princípios gerais de direito, pode ter apparently come to be importantly,
os seus efeitos dirigidos exclusivamente às even severely, restricted in its appli-
ordens jurídicas internas. cation before domestic courts.
Como exemplo de norma internacional ... The position we now seem to have
com efeito eminentemente interno, pode- reached, or be tending towards, is
ríamos mencionar a própria regra consue- that the State of Utopia may never,
tudinária que determina a imunidade de without its prior consent, be imple-
jurisdição dos Estados soberanos e dirige- aded before the International Court
se somente aos tribunais internos, não of Justice on a question of public
se constituindo em exceção oponível aos
international law ; and yet may be
tribunais internacionais. Quanto a esta afir-
both impleaded by an Atlantis court
mação — de que a regra consuetudinária da
applying Atlantis law in a case brou-
imunidade de jurisdição não é uma defesa
ght by a foreign individual”.
aceita diante de tribunais internacionais —,
A posição de Sir Jennings é uma crítica,
é preciso ressaltar a interessante reflexão de
pertinente, à permanência da necessidade
Sir Robert Jennings. Apesar de reconhecer
de consenso para estabelecer a jurisdição
distinções entre o princípio da imunidade
dos tribunais internacionais, enquanto a
dos Estados diante de cortes domésticas de
outros Estados e o princípio da jurisdição imunidade de jurisdição perante tribunais
consensual de cortes internacionais, Sir internos vem sendo cada vez mais restrin-
Jennings concentra-se nas semelhanças gida. Entretanto, a semelhança entre os dois
entre esses dois princípios, ressaltando que institutos de direito internacional — regra
a imunidade jurisdicional na ausência de de jurisdição consensual para tribunais
renúncia e a jurisdição criada pelo consen- internacionais e regra de imunidade de
timento são dois lados da mesma moeda, jurisdição para tribunais internos — não
tendo, ambas, fundamento e causa histórica significa perfeita identidade e não desauto-
na soberania do Estado5. Assim, conclui riza a utilização da imunidade de jurisdição
como exemplo de uma norma internacional
5
“… jurisdictional immunity in the absence of com efeitos dirigidos exclusivamente às or-
waiver, and jurisdiction created by consent, are the
observe and reverse of the same coin. In either case it
dens jurídicas internas, diferentemente da
is State sovereignty that is the underlying rationale and jurisdição consensual, que se dirige exclusi-
historical cause.” (JENNINGS, 1987, p. 4) vamente à ordem jurídica internacional.

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O direito internacional de origem con- Ministro Aldir Passarinho: “O
suetudinária, ao contrário do convencional, princípio de direito internacional, se-
não reclama qualquer procedimento formal gundo o qual um Estado estrangeiro
de incorporação para ser válido e eficaz não pode subordinar-se à jurisdição
no Brasil, sendo a norma de imunidade de outro, é postulado que diz com o
de jurisdição dos Estados soberanos uma respeito aos outros Estados e a sua
comprovação dessa afirmação. No julga- soberania é tema sobre o qual se tor-
mento do Recurso Ordinário no 94.804, em naria ocioso dissertar. De observar
12/03/1986, o Supremo Tribunal Federal, que o recorrente invoca o art. 153, §
ainda aplicando uma interpretação extensi- 36, da Constituição Federal, o que a
va da imunidade de jurisdição dos Estados, mim parece bastante.”
reconheceu, para surpresa daqueles que Ministro Rezek: “Em princípio,
cerram fileiras em favor do dualismo, sede portanto, parece-me razoável a in-
constitucional para a aplicação direta da vocação do § 36 do rol das garantias
regra consuetudinária internacional. Veja- como corretivo para um dos erros
mos, de início, o voto do Ministro Rezek6: mais comuns que se têm produzido,
“Sabe-se, com efeito, que em mais em juízo e em sede doutrinária, a
de um caso concreto sucedeu que juí- propósito da imunidade do Estado
zes federais, ou juízes do trabalho, ne- estrangeiro à jurisdição local”.
gassem a referida imunidade por não Ministro Néri da Silveira: “Ora,
encontrá-la prescrita nas Convenções não é admissível afastar do complexo
de Viena de 1961 e 1963, nem em dos princípios inerentes às garantias
qualquer outro tópico do nosso di- implícitas, aí previstas, o postulado
reito escrito. As Convenções, efetiva- da imunidade de jurisdição do Estado
mente, versaram imunidades e outros estrangeiro. É certo, desde logo, que
privilégios do pessoal diplomático esse princípio tem tranqüila aceitação
e do pessoal consular. Aos Estados nesta Corte. (…) Ora, a questão única
pactuantes — entre os quais o Brasil que se discute nos autos, desde o iní-
— não pareceu necessário lançar no cio, é a da imunidade de jurisdição,
texto daquelas avenças a expressão matéria que não vem claramente
escrita de uma norma costumeira sólida, explicitada no texto constitucional —
incontrovertida, plurissecular e óbvia tão ampla e tão assente — pelo que
como a que poupa todo Estado soberano só se expressou no RE, na invocação
de uma submissão involuntária ao juízo do § 36 do art. 153 da Constituição
doméstico de qualquer de seus pares.” Federal. (…) Se representa inovação,
O importante no voto do Ministro quanto à inteligência que empresta
Rezek é observar a fonte consuetudinária ao § 36 do art. 153 da Constituição
da norma de imunidade de jurisdição dos Federal, insere-se na que o vê con-
Estados soberanos. Após terem concorda- sagrando os ‘direitos difusos’ e vê
do quanto à origem consuetudinária da nele norma abrangente das garantias
norma de imunidade, os Ministros do STF inespecíficas de que deve dispor a
procuraram um sustento constitucional ordem constitucional para atender
para a aplicação direta do direito interna- a quaisquer inovações que os fatos
cional geral, produzindo um debate digno lhe imponham. (…) É essa, assim, a
de nota: oportunidade de explicitar que se aga-
6
STF, Recurso Extraordinário n o 94.084, jul-
salham elas [as normas internacionais
gado em 12/03/1986, Relator: Ministro Aldir consuetudinárias sobre imunidade do
Passarinho. Estado] no § 36 do art. 153 da Constitui-

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ção Federal, suscetíveis, desta forma, de ternacional ao direito interno (international
invocação perante esta Corte Suprema, à law is part of the law of the land), pelo menos
qual cabe definir-lhes o alcance no âmbito no que diz respeito às normas que emanam
interno.” de fonte consuetudinária.
O Ministro Rafael Mayer procura um O acórdão do STF no Recurso Ex-
outro fundamento, igualmente constitu- traordinário n o 94.084, embora ainda
cional, para incorporar no direito interno faça uma interpretação desatualizada da
a imunidade própria do direito interna- regra de imunidade de jurisdição dos
cional, considerando-a uma ressalva ao Estados, filiando-se, já em 1986, à teoria
princípio da inafastabilidade da prestação da imunidade absoluta, é uma referência
jurisdicional, previsto no artigo 153, § 4o, na jurisprudência do STF para a correta
da Constituição de 1967/69, e no artigo 5o, compreensão do fundamento normativo
inciso xxxv, da atual Constituição (“a lei dessa prerrogativa soberana, especialmente
não excluirá da apreciação do Poder Judi- no sentido de se afastar a fundamentação
ciário lesão ou ameaça de lesão”): incorreta nas Convenções de Viena sobre
“Entendo que esta questão consti- relações diplomáticas e sobre relações
tucional foi posta com relação ao § 4o consulares, situando-a corretamente no
do art. 153 da Constituição, onde se direito internacional consuetudinário. Esse
estabelece o problema da jurisdição: precedente sobre a correta fonte normativa
nada pode ser subtraído à jurisdição da imunidade de jurisdição dos Estados se-
brasileira, salvo o que se subtrai ria confirmado posteriormente em um caso
necessariamente em razão dos prin- de maior repercussão, a Apelação Cível
cípios do Direito Internacional. Mas 9.696 (Caso Genny de Oliveira)7, no qual o
como eles não souberam localizar, STF finalmente reconhece que o costume
chamaram o § 36, onde está implícito internacional não abriga uma interpretação
também este e suas implicações.” (p. tão extensiva dessa prerrogativa. Transcre-
306). vemos o voto do Ministro Francisco Rezek
Finalmente, o Ministro Moreira Alves na Apelação Cível 9.696, no trecho sobre a
vem discordar de todos os demais: fonte normativa da imunidade de jurisdi-
“Ora, a imunidade de jurisdição ção dos Estados:
de Estado estrangeiro não tem nada “Numa vertente, temos as imuni-
que ver com princípios e garantias dades pessoais resultantes das duas
adotadas pelo regime, até porque to- Convenções de Viena, de 61 e de
dos os regimes, quaisquer que sejam, 63, ambas em vigor para o Brasil e
podem respeitá-la ou não.” relacionadas a primeira com serviço
A despeito das críticas que se possa diplomático e a segunda com serviço
fazer à localização, no rol dos direitos e consular. Quando se cuide, portanto,
garantias individuais, do fundamento para de um processo de qualquer nature-
a aplicação direta da norma internacional za, penal ou cível, cujo pretendido
consuetudinária, é interessante assemelhar réu seja membro do serviço diplo-
o raciocínio do STF ao princípio do direito mático estrangeiro aqui acreditado,
inglês consubstanciado na máxima “Inter- ou em determinadas hipóteses bem
national law is part of the law of the Land”. reduzidas do serviço consular estran-
Ao buscar nos princípios constitucionais geiro, operam em sua plenitude tex-
implícitos (law of the Land) o fundamento tos de Direito Internacional escrito,
de um princípio de direito internacional Tratados, que, num certo momento,
(international law), o STF claramente admi- 7
STF, Apelação Cível n o 9.696, julgada em
tiu a incorporação imediata do direito in- 31/05/1989, Relator: Ministro Sydney Sanches.

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se convencionam lá fora e que en- Referências
traram de vigor para o Brasil, sendo
aqui promulgados. Ficou claro, não BIRD, Stephan. The state immunity act of 1978: na eng-
lish update. v.13. n.4. International Lawyer, 1979.
obstante, que nenhum dos dois textos de
Viena, do romper da década de 60, dizem COSNARD, Michel. La soumission dês Etats aux tri-
da imunidade daquele que, na prática bunaux internes face à la théorie dês immunités des
Etats. Paris: Pédone, 1996.
corrente, é o réu preferencial, ou seja, o
próprio Estado estrangeiro.” DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET,
Como disse o advogado americano Alain. Direito internacional público. 2 ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.
Sthephan Bird (1979, p. 626), “perhaps the
true explanation lies in the fact that howe- JENNINGS, Robert. The place of the jurisdictional
ver much practicing lawyers may deride immunity of state in international and municipal law.
In: Vorträge, Reuen und Berichte aus dem Europa
their academic colleagues and the authority Institut. v. 108, 1987.
of writers, there is, after all, a single law of
nations which is part of the common law
and, indeed, of the civil law”8.

8
BIRD, Stephan. “The State Immunity Act of 1978:
An English Update”. International Lawyer, Fall 1979,
Vol. 13. no 4, p. 626.

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