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I Relações entre o direito internacional e o

direito interno *

PEDRO ROMANO MARTINEZ * *

1. O incremento das relações entre Estados e o consequente


desenvolvimento do direito internacional deram azo a um novo problema
jurídico: o da relação entre o direito interno dos Estados e o ordenamento
internacional.
Concretamente há que resolver dois problemas. O da aplicabilidade
directa ou indirecta das normas de direito internacional no seio de cada
Estado. E, a admitir a aplicabilidade directa, determinar qual o valor das
normas de direito internacional em relação com as de direito interno, ou
seja, qual o lugar que o direito internacional ocupa na hierarquia das
fontes.
De certa forma ligado com o problema principal está o normal­
mente designado treaty makingpower. Cabe, pois, fazer uma referência
ao processo de vinculação do Estado Português a Convenções internacio­
nais.

2. Podem indicar-se três tipos de relação entre o direito inter­


nacional e o direito interno.

a) O direito interno pode ser encarado como prova do costume e


dos princípios gerais de direito internacional. Por exemplo, foi o direito

* O presente artigo corresponde, com ligeiras alterações de actualização, a uns


apontamentos fornecidos aos alunos de Direito Internacional da Universidade Católica
no ano lectivo de 1982/83.
** Bolseiro da Fundação Amélia da Silva de Mello.
164 DIREITO E JUSTIÇA

interno da generalidade dos Estados que começou por consangrar deter­


minadas imunidades diplomáticas; daqui se veio a concluir que o direito
internacional impunha a concessão dessas imunidades.

b) É ao direito interno que compete a qualificação jurídica de


certos factos ou situações que constituem pressuposto da aplicação de
normas internacionais. Por exemplo, é no direito interno de cada Estado
que se encontram as regras que definem quem pode ser representante
diplomático e que determinam quem são os representantes diplomáticos;
também compete ao direito interno fixar em que condições os órgãos do
Estado podem exprimir o seu consentimento para o vincular internacio­
nalmente.

c) Os Estados, como membros de uma comunidade, devem res­


peitar o direito que a rege, sob pena de serem responsabilizados inter­
nacionalmente. A fim de evitarem a responsabilização internacional, os
Estados devem, por um lado, introduzir nos respectivos ordenamentos
jurídicos as normas internacionais e, por outro, evitar que as normas de
direito interno contrariem o direito internacional.
As duas primeiras são relações de influência; a terceira entra no
campo das relações de sistema.

3. As relações de sistema são as que têm levantado o maior número


de problemas e é, normalmente a elas que se faz referência quando se trata
da relação entre o direito internacional e o direito interno.
No plano da doutrina, são, essencialmente duas as correntes que dão
resposta às questões suscitadas por este tipo de relações.

a) O dualismo. A posição dualista foi inicialmente adoptada


pelo alemão Heinrich Triepel na sua obra Volkrecht und Landesrecht,
datada de 1887 e veio a ter vários seguidores, entre os quais se destacou
o italiano Anzilotti
Segundo a teoria dualista, o direito internacional e o direito interno
constituem dois ordenamentos jurídicos iguais, independentes e separa-

1 Vd. Mota de Campos, Direito Comunitário, vol. II, Lisboa, 1983, pp. 140 e
sgs; Silva Cunha, Direito Internacional Público, Lisboa, 1981, pp. 23 e sgs; Azevedo
Soares, Lições de Direito Internacional Público, Coimbra, 1981, pp. 54 e sgs.
RELAÇÕES ENTRE O DIREITO INTERNACIONAL E O DIREITO INTERNO 165

dos, com diversidade de fontes e de destinatários. Por isso, as normas de


direito internacional só têm eficácia interna depois de recebidas ou de
transformadas em direito estadual. Não pode, portanto, haver conflitos
entre os ordenamentos jurídicos internacional e interno, pois os desti­
natários das respectivas normas são distintos; no primeiro caso, são os
Estados e, no segundo, os indivíduos.
A doutrina dualista tem sido criticada sob dois prismas. Em pri­
1 meiro lugar, os dualistas não podem admitir a validade do direito interna­
cional geral ou comum (formado por normas consuetudinárias e princípios
geais de direito), na medida em que ele, regra geral, não é passível de
transformação. E por outro lado, a concepção dualista não tem em conta
o indivíduo como sujeito de direito internacional, o que é admitido pela
mais recente jurisprudência e doutrina internacionais.

b) O monismo. Contrariamente, para as soluções monistas o


direito, seja internacional, seja interno, constitui um único sistema2. Os
defensores da posição monista divergem no que respeita à prevalência do
direito interno ou do direito internacional.

ba) O monismo de direito interno, ou monismo com primado da


ordem jurídica interna tem a sua origem na concepção hegeliana de
Estado3. Parte-se do princípio de que só existe a ordem jurídica esta­
dual, pelo que o chamado direito internacional público não passa de um
«direito estadual externo»; trata-se de regras surgidas da livre vincula-
ção dos Estados nas suas relações externas, que podem ser livremente
revogadas4.
Esta tese acaba por negar a existência do direito internacional.

bb) O monismo de direito internacional, ou monismo com pri­


mado do direito internacional foi sustentado por autores como Kelsen,
Verdross, Scelle, etc.. Esta corrente considera também que a ordem jurí­
dica é homogénea, que há uma unidade do sistema jurídico, mas admite
que o direito internacional ocupa uma posição hierarquicamente superior
à da ordem jurídica estadual5.

2
Vd. Silva Cunha, op. cit., p. 26.
3
Vd. Azevedo Soares, op. cit., p. 56.
4
Azevedo Soares, op. e loc. cit..
5 Vd. Mota de Campos, op. cit., p. 140; Azevedo Soares, op. cit., p. 57.
166 DIREITO E JUSTIÇA

O monismo de direito internacional tem sido aceite em posições


radicais e moderadas.

bba) O monismo de direito internacional radical coresponde a


uma intransigente defesa do primado do direito internacional. Conside­
ra-se que as normas de direito internacional são aplicáveis directamente
no seio dos Estados e que não podem ser contrariadas pelas normas de
direito interno, sob pena de nulidade destas últimas6. Além disso, repu­
ta-se que os órgãos políticos de cada Estado exercem um poder que lhes
foi delegado pela Comunidade internacional, na medida em que esta é a
detentora da «competência das competências». Trata-se de uma con­
cepção irrealista, pois o Estado é anterior à Comunidade internacional7.

bbb') O monismo de direito internacional moderado parte igual­


mente do pressuposto da subordinação do direito interno ao direito inter­
nacional, mas admite que, em caso de contradição entre o direito interno
e o direito internacional, a norma de direito interno não esteja nessa-
riamente ferida e nulidade8.
Considera-se que o direito internacional é, essencialmente um sis­
tema jurídico de coordenação, pelo que as relações entre o Estado e os
seus cidadãos regem-se, em primeiro lugar, pelo direito interno, cujos
preceitos se devem coadunar com o direito internacional; e se, porven­
tura, forem contrários a este último, o Estado toma-se responsável no
plano internacional pelas violações a que tal incompatibilidade dê azo9.
Esta é a concepção que tem prevalecido desde o segundo pós-
-guerra.

4. Para além da paridade ou prevalência entre os ordenamentos


jurídicos internacional e interno. Importa verificar da aplicabilidade
directa ou indirecta no direito interno das normas de origem interna­
cional ,0.
Na prática, as exigências técnico-constitucionais deram origem a
três soluções.

6 Vd. Silva Cunha, op. cit., p. 28.


Vd. Azevedo Soares, op. cit., p. 58.
s Vd. Silva Cunha, op. cit., p. 28.
9 Vd. Silva Cunha, op. e loc. cit..
10
Vd. Mota de Campos, op. cit., pp. 137 e 138.

I
RELAÇÕES ENTRE O DIREITO INTERNACIONAL E O DIREITO INTERNO 167

a) A transformação. A transformação é o processo utilizado


para incorporar as normas internacionais no ordenamento interno de cada
Estado. Esta inserção faz-se através de um diploma legal que deverá
respeitar as regras constitucionais de aprovação e de publicação desse
Estado. As normas internacionais são recebidas no direito interno e pas­
sam a valer como tal.
A técnica da transformação, também por vezes designada da
«nacionalização», tem sido utilizada pelos Estados que se mantêm fiéis
à posição dualista, mas vem perdendo actualidade. E o que se passa,
nomeadamente em Itália onde, por força do art.° 10.° da Consituição de
1947 11 e, principalmente, pelo peso da posição de Anzilotti, tanto no
legislador constitucional, com na actual doutrina, as normas internacio­
nais são reproduzidas em diplomas internos12.

b) A cláusula geral de recepção semi-plena. Estar-se-á face a


uma cláusula geral de recepção semi-plana quando a Constituição
distingue entre normas que relevam no espaço jurídico interno auto­
maticamente e normas que só adquirem relevância na ordem interna por
força da técnica da transformação. Haverá, assim, normas internacionais
que, em razão do seu conteúdo, seriam automaticamente exequíveis no
seio do Estado, enquanto outras estariam dependentes da transformação.

c) A cláusula geral de recepção plena. Mediante uma tal cláu­


sula geral, o direito internacional, vigente em cada momento, conver-
te-se automaticamente em direito do Estado, em razão desta recepção
plena e permanente. O direito internacional adquire, assim, relevância na
ordem jurídica interna por força de uma norma geral.
Exige-se normalmente a formalidade da publicação das normas de
direito internacional no jornal oficial do Estado para estas adquirirem
exequibilidade na ordem interna; havendo casos em que, inclusivamente,
esta formalidade é preterida.

11 Onde se dispõe: «O ordenamento jurídico italiano ajustar-se-á às normas de


direito internacional gcralmente reconhecidas».
12 No que respeita aos processos de recepção das normas comunitárias na
ordem jurídica italiana e as tomadas de posição do Tribunal das Comunidades Euro­
peias sobre este problema, Vd. Mota de Campos, op. cit., pp. 254 e sgs e, em espe­
cial, pp. 259 e sgs.
168 DIREITO E JUSTIÇA

Como exemplos de cláusulas gerais de repceção plena pode indi­


car-se o art.s 6.a da Constituição dos Estados Unidos da América, o
art.s 25 .a da Constituição da República Federal Alemã de 1949, o art.a 55.°
da Constituição da República Francesa de 1958, o art.“ 28.® § 1 da Cons­
tituição Grega de 1975 e o art.e 8.e da Constituição Portuguesa de 1976.

5. No que respeita à recepção do direito internacional pelo direito


português importa fazer uma referência às duas últimas Constituições.

a) Quanto à Constituição de 1933, a doutrina não chegou a


adoptar uma posição unânime; foram essencialmente defendidas quatro
teses13, mas é sustentável que, segundo a Constituição do Estado Novo,
o direito internacional e o direito interno constituíam ordens jurídicas
distintas com esferas de validade diferenciadas.
A dúvida residia na interpretação dos art.as 3.® e 4.® da anterior
Constituição onde, respectivamente se dispunha: «Constituem a Nação
todos os cidadãos portugueses residentes dentro ou fora do território os
quais são considerados dependentes do Estado e das leis portuguesas,
salvas as regras aplicáveis de direito internacional.» e «A Nação Portu­
guesa constitui um Estado independente, cuja soberania só reconhece
como limites, na ordem interna, a Moral e o Direito; e, na internacional,
as que derivem das convenções ou tratados livremente celebrados ou do
Direito consuetudinário livremente aceite, cumprindo-lhe cooperar com
outros Estados na preparação e adopção de soluções que interessem à paz
entre os povos e ao progresso da humanidade.»
Principalmente deste último preceito pode inferir-se que as normas
internacionais não tinham aplicação (directa) na ordem interna.
Na revisão constitucional de 1971 foi acrescentado um § l.° ao
art.® 4.® com a seguinte redacção: «As normas de direito internacional
vinculativas do Estado Português vigoram na ordem interna desde que
constem de tratado ou de acto aprovado pela Assembleia Nacional ou
pelo Governo e cujo texto haja sido devidamente publicado.» Com esta
alteração, segundo a maioria da doutrina, foi introduzida, naquela Lei
Fundamental, uma cláusula geral de recepção plena quanto ao direito
internacional convencional.

13 Vd. Jorge Miranda, Direito Internacional Público, Lições policopiadas.


Lisboa, 1985, pp. 7 e sgs; Silva Cunha, op. cit., pp. 32 e sgs..
RELAÇÕES ENTRE O DIREITO INTERNACIONAL E O DIREITO INTERNO 169

b) Com respeito Constituição de 1976 é opinião quase unânime da


doutrina que o art.° 8.e da Constituição consagra uma cláusula de recep­
ção plena. Consagrou-se a regra da aplicabilidade directa das normas
jurídicas internacionais, no sentido de que tais normas, por si próprias,
afectam os particulares, sem que haja lugar à interposição ou mediação
de outras disposições entre essas normas e os respectivos destinatários M.
Contrariamente, Silva Cunha 15, mas só no que respeita ao art.'-’ 8.2
n.° 1 (Direito internacional geral), considera que se trata de uma cláusula
de recepção semi-plena, na medida em que o referido preceito não faz
qualquer referência aos costumes bilaterais ou regionais e nada no texto
constitucional permite concluir que eles sejam abrangidos pela cláusula
de recepção. Mas, no que toca ao direito internacional convencional, o
autor citado partilha também da opinião de que a recepção é plena.
Para a maioria da doutrina, por força do art.° 8.2 da Constituição, há
uma aplicabilidade directa das normas de direito internacional, tanto
convencional como geral, no espaço jurídico português.

6. No que respeita ao problema da hiererquia entre as normas de


direito internacional e de direito interno, há, esencialmente três siste­
mas 16: igualdade entre o direito ordinário e o direito internacional (p. ex.
sistema jurídico inglês); prevalência do direito internacional sobre a lei
ordinária (p. ex. sistema jurídico francês 17); sobreposição do direito
internacional ao direito constitucional (p. ex. sistema jurídico holandês18).
A jurisprudência internacional tem-se pronunciado sempre no
sentido do primado do direito internacional sobre qualquer norma de
direito interno, mesmo de nível constitucional
14
Vd. Mota de Campos, op. cit., p. 146.
15
Op. cit. pp. 39 e sgs c pp. 45 c 46.
16
Vd. Mota de Campos, op. cit., pp. 152 e sgs; Azevedo Soares, op. cit.,
pp. 62 e 63.
17 O art.“ 55.° da Constituição da República Francesa de 1958 dispõe: «Os
tratados e acordos rcgularmente ratificados ou aprovados, desde a sua publicação, têm
autoridade supeior à das leis, sob reserva, em cada caso, de aplicação pela outra parte».
No mesmo sentido dispõe o art.“ 25.° da Constituição da Repúlica Federal Alemã de
1949: «As regras gerais de Direito Internacional constituem parte integrante do direito
federal. Prevalecem sobre as leis e delas resultam, directamente, direitos e deveres para
os habitantes do território federal.»
18 Vd. art.° 63.“ da Constituição Holandesa de 1953-56.
19 Vd. Mota de Campos, op. cit., pp. 157 e sgs onde se faz referência a vários
arestos da jurisprudência internacional.
170 DIREITO E JUSTIÇA

a) O direito internacional geral ou comum faz parte integrante do


direito português (art.® 8.°, n.a 1 da Constituição). Mas sendo estas nor­
mas automaticamente incorporadas na ordem jurídica portuguesa, há que
determinar que lugar ocupam na hirerquia das fontes.
Se as normas internacionais fossem transformadas em normas
internas, elas ocupariam a posição do diploma que as transformasse.
Qualquer oposição de normas resolver-se-ia pelas regras de conflito do
sistema jurídico nacional, pelo que a norma de nível superior excluiria a
aplicação da de nível inferior e, dentro do mesmo nível, lex posterior
priori derogat.
Porém, a Constituição, apesar de ter adoptado um sistema de
incorporação automática, é omissa neste ponto. i

Para dar uma solução dever-se-á, em primeiro lugar, cotejar o art.®


8.B, n.® 1 com os art.® l.a, 3.° e 7.a, n.° 1 da Constituição. Os princípios da
soberania e da independência nacional consagrados nestes preceitos i
permitem sustentar a validade de disposições constitucionais contrárias
a normas de direito internacional comum19a. E, por exemplo, o art.® 294.®
da Constituição (Incriminação e julgamento dos agentes e responsáveis
da ex-PIDE/DGS) estabelece uma excepção ao princípio da não retroac-
tividade da lei20.
Nestes termos, as normas de direito internacional comum só
vigoram na ordem jurídica portuguesa se não contrariarem as disposições
do texto constitucional; doutra forma serão inconstitucionais (art.® 277.®,
n.® 1 da Constituição), com ressalva para os princípios de direito inter­
nacional constantes do art.® 7.®, n.® 1 da Constituição e da Declaração
Universal dos Direitos do Homem com respeito à interpretação e à
integração dos direitos fundamentais (art.® 16.®, n.® 2 da Constituição)
que têm valor constitucional, ou até supraconstitucional21.
Quanto às relações entre o direito internacional geral e o direito
ordinário, tem-se defendido a superioridade do primeiro sobre o segundo;
concede-se um carácter supralegal ao direito internacional comum, pelo
que na hipótese de conflito com uma norma de direito ordinário prevalece

”* Vd. Silva Cunha, op. cit., p. 42.


20 Vd. Gonçalves Pereira, «O Direito Internacional e a Constituição de 1976»,
Estudos sobre a Constituição, Vol. I, Lisboa, 1977, p. 41; Soares Martinez, Comentá­
rios à Constituição Portuguesa de 1976, Lisboa, 1978, pp. 303 e 304.
21 Vd. Jorge Miranda, op. cit., pp. 14 e sgs.
RELAÇÕES ENTRE O DIREITO INTERNACIONAL E O DIREITO INTERNO 171

aquele. A lei interna que contrariasse o direito internacional geral seria


materialmente inconstitucional, por violar o art.9 8.a, n.9 1 da Constitui­
ção onde tal direito foi recebido.
Importa, por último, referir que o n.9 1 do art.9 8.° da Constituição
não exige a formalidade da publicação para que o direito internacional
geral faça parte integrante do direito português. A solução é com­
preensível, mas traz como consequência que o cidadão português terá,
não só de conhecer as inúmeras normas diariamente publicadas no jornal
oficial, como tanbém a lei das Nações. Admite-se, por conseguinte, que
um português possa ser punido por desrespeitar um princípio geral de
direito internacional21a.

b) Segundo o art.a 8.Q, n.9 2 da Constituição, o direito internacional


convencional vigora na ordem jurídica portuguesa depois das conven­
ções serem aprovadas ou ratificadas, terem entrado em vigor na ordem
jurídica internacional e de estarem publicadas no Diário da República.
Neste preceito estabelece-se que o período de vigência das normas
constantes de convenções internacionais, regularmente ratificadas ou
aprovadas, se inicia com a sua publicação (se for posterior à entrada em
vigor na Comunidade internacional) e termina no momento em que as
respectivas convenções deixem de vincular internacionalmente o Estado
Português.
Trata-se também de uma cláusula geral de recepção plena que se
coaduna com as regras da Convenção de Viena sobre Direito dos
Tratados, designadamente com o seu art.a 26.° (JPacta sunt servanda)
onde se dispõe: «Todo o Tratado em vigor vincula as Partes Contratantes
e deve por elas ser cumprido de boa fé.» Este cumprimento de boa fé só
se compreende na sua plenitude se os Estados fizerem observar e aplicar
os tratados que concluem pelos respectivos órgãos legislativos, executi­
vos e judiciários 22.
As convenções internacionais ocupam, na hierarquia das fontes,
uma posição infraconstitucional pelas considerações anteriormente adu­
zidas quanto ao direito internacional geral e pelo que se infere do esta­
tuído nos art.°s 2O7.a, 277.°, n.9 2,278.9, n.Q 1 e 280.9 n.° 3 da Constituição

21a Sobre esta questão é de relembrar os julgamentos de Nuremberga e de


Toquio cm que, pela primeira vez, se estabeleceu nitidamente o principio da aplicabili­
dade dirccta e da primazia do direito internacional.
22 Vd. Mota de Campos, op. cit., p. 138.
172 DIREITO E JUSTIÇA

que regulam as incompatibilidades entre o direito internacional con­


vencional e a Constituição. De facto, o sistema de controlo da constitu-
cionalidade não permite que seja aplicada qualquer norma contrária aos
princípios e disposições constitucionais.
No que respeita às relações com o direito ordinário, a maior parte
da doutrina considera que as convenções, na hierarquia das fontes, =
ocupam uma posição supralegal, razão pela qual as suas normas estão
imunes à revogação por disposições do direito ordinário posteriores que
contrariem o seu conteúdo.
Esta tomada de posição resulta de uma interpretação do art.° 8.Q,
n.° 2 da Constituição, segundo a qual, se a aplicabilidade directa das nor­
mas constantes de uma convenção resulta da própria Constituição, não
pode uma lei ordinária contrariar esse tratado; além disso, esta solução
evita que as normas constantes de convenções sej am revogadas por lei ou
decreto-lei posteriores, o que ocasionaria responsabilidade do Estado
Português por violação do direito internacional convencional. Acresce
que esta primazia é uma exigência inelutável e um sólido princípio de
direito internacional23. Neste sentido, o art.a 27.° da Convenção de Viena
sobre Direito dos Tratados, sob a epígrafe «Direito interno e respeito dos
tratados», estabelece: «Nenhuma Parte Contratante poderá invocar as
disposições do seu direito interno para justificar a não execução de um
tratado.» Como argumento puramente formal pode acrescentar-se que o
art.° 122.°, n.° 1 da Constituição, ao estabelecer a obrigatoriedade de
publicação, coloca o direito internacional convencional (alínea b)) entre
as leis constitucionais (alínea a)) e as leis, decretos-leis e decretos
legislativos (alínea c)).
Por conseguinte, o direito internacional convencional tem um valor
supralegal, mas infraconstitucional. Porém, se uma norma constante de
convenção contrariar qualquer preceito de direito interno não o revoga;
fica a sua aplicação suspensa, enquanto aquela convenção vincular inter­
nacionalmente o Estado Português.
Solução diversa é a defendida por Gonçalves Pereira24 que,
perante a omissão do texto constitucional, considera que as conven­
ções e o direito ordinário ocupam o mesmo plano na hierarquia das
fontes.

23 Vd. Mota de Campos, op. cit., p. 316.


24 Op. cit, pp. 40 e 41.
RELAÇÕES ENTRE O DIREITO INTERNACIONAL E O DIREITO INTERNO 173

Esta polémica tornou-se particularmente acesa após a entrada em


vigor do Decreto-Lei n.° 262/83, de 16 de Junho, cujo art.B 4.B estabelecia
que os juros moratórios das letras seriam fixados por portaria. Esta
disposição viola as regras da Lei Uniforme relativa a Letras e Livranças,
assinada em Genebra a 7 de Junho de 1930 e aprovada pelo Decreto-Lei
n.° 23.721, de 29 de Março de 1934, na medida em que permite que, por
portaria25, se estabeleçam juros moratórios superiores a 6%, que é a taxa
fixada nos artBs 48.°, n.B 2 e 49.°, n.B 2 da Lei Uniforme. Acresce que,
apesar do art.B 13.° do Anexo II à referida Convenção estabelecer que as
Altas Partes Contratantes poderiam, querendo, estabelecer uma reserva
aos n.Bs 2 dos art.Bs 48.2 e 49.B, substituindo a taxa de 6% pela taxa legal
em vigor no território da respectiva Alta Parte Contratante, o Estado
Português não apôs qualquer reserva ao tratado26.
O Tribunal Constitucional foi chamado várias vezes a pronun­
ciar-se sobre a constitucionalidade do art.B 4.B do Decreto-Lei n.B 262/83
e, regra geral, considerou que só existiria uma inconstitucionalidade
indirecta, na medida em que o direito internacional não tem valor cons­
titucional 27.
O Supremo Tribunal de Justiça, nas variadíssimas vezes em que foi
confrontado com esta questão, pronunciou-se no sentido da validade do
decreto-lei28.

25 A taxa legal de legal de juro, que durante anos se quedou nos 5% ao ano (art.°
559.° do Código Civil, versão original), foi elevada a 15% pela Portaria n.° 447/80,
de 31 de Julho e a 23% peia Portaria n.° 581/83, de 18 de Maio. Por fim, a Portaria
n.“ 339/87, de 24 de Abril fixou a taxa anual dos juros legais em 15%.
26 Tais reservas foram feitas, por exemplo, pela República Federal Alemã,
Brasil, França, Itália e Japão.
27 Vd., por exemplo, Acórdãos 47/84, D.R.II de 14-7-84; 101/84, D.R.II de
18-2-85; 252/86, D.R. II de 22-11-86; 279/86, D.R. II de 30-12-86; e 4/87, D.R. II de
7-1-87. No sentido da inconstitucionalidade. Vd. Acórdão do Tribunal Constitucio­
nal 62/84 de 19 de Junho.
28 Vd., por exemplo, Acórdão do STJ de 8 de Janeiro de 1987, Tribuna da
Justiça, n.“ 27, p. 25; Acórdão do STJ de 21 de Janeiro de 1987, Tribuna da Justiça,
n.° 28, p. 24; Acórdão do STJ de 5 de Março de 1987, Tribuna da Justiça, n.° 29, p. 26;
Acórdão do STJ de 24 de Abril de 1987, Tribuna da Justiça, n.“ 31, p. 30; Acórdão
do STJ de 5 de Maio de 1987, Tribuna da Justiça, n.° 32/33, p. 28-9; Acórdão do STJ
de20dcMaioc 1987, Tribuna daJustiça, n.“34,p. 18; Acórdão do STJ de 25 de Junho
de 1987, Tribuna da Justiça , n.° 35, p. 15; Acórdão do STJ de 14 de Julho de 1987,
Tribuna daJustiça, n.“ 35, p. 20; Acórdão do STJ de 22 de Outubro de 1987, Tribuna
daJustiça, n.Q36, p. 21-2; Acórdão do STJ de 10 de Novembro de 1987, Tribunal da
Justiça, n.° 36, p. 22.
174 DIREITO E JUSTIÇA

As justificações teóricas desta tomada de posição são variadas29 e,


de entre elas, pode destacar-se o recurso à cláusula rebus sic stantibus, -
prevista no art.a 62.a da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados.

Todavia, a ponderação das consequências (sinépica 29a) terá sido um
factor determinante no sentido de admitir a validade de uma disposição i
de direito interno contrária a uma norma internacional; na realidade, era
contrário a uma regra de equidade e de boa fé que, numa economia alta­
mente inflaccionária, se continuassem a aplicar taxas de juros moratórios
de 6%.

c) A aplicabilidade directa do direito comunitário está prevista no


art.° 8.°, n.° 3 da Constituição. Este n.a 3 foi introduzido no art.Q 8.3 após
a revisão de 1982 e consagra uma cláusula geral de recepção plena do
direito comunitário.
O que nele vem expressamente preceituado já se induzia do n.a 2 do
mesmo artigo; pois, se as normas constantes de convenções de que
Portugal é parte vigoram na ordem interna e se no tratado constitutivo de
uma organização internacional (de que Portugal é parte) se previsse que
as normas que dela emanassem vinculavam os Estados membros, era de
concluir que o que fosse regulamentado pelos órgãos competentes dessa
organização internacional vigorava directamente na ordem interna por­
tuguesa.

29 Vd. Agostinho Henriques Eiras, «Os Juros nas Leis Uniformes e o Des­
pacho Publicado no Boletim n.2 6/84 da Associação Sindical», Tribuna da Justiça,
n.2 8/9 pp. 6 e 7; Barbosa de Melo, «A Preferência da Lei Posterior em conflito com
Normas Convencionais Recebidas na Ordem Interna ao abrigo do n.2 2 do art.2 8.2 da
Constituição da República (a propósito do n.2 4 do Decreto-Lei n.2 262/83, de 16 de
Junho), Colectânea de Jurisprudência, Ano IX, tomo 4, p. 11; JOSÉ S1MÔES PATRÍCIO,
«Conflito da Lei Interna com Fontes Internacionais: o Artigo 4.2 do Decreto-Lei
n.2 262/83», Boletim do Ministério da Justiça, 332, p. 81; Miguel Amorim, «A Lei
Uniforme sobre Letras e Livranças e os Juros Legais», Tribuna da Justiça, n.215, p. 13;
Ricardo da Velha, «Apontamentos», Tribuna da Justiça, n.2 15, p. 7. Em sentido
contrário, Vd. Amãncio Ferreira, «Ainda a propósito do art.2 4.° do Decreto-Lei
n.2 262/83, de 16 de Junho. Direito Internacional Público e Direito Interno. A Cláusula
«Rebus sic stantibus» em Direito Internacional», Tribuna da Justiça, n.2 20/21, p. 1 e
n.2 22, p. 7.
291 Vd. Menezes Cordeiro, «Os Dilemas da Ciência do Direito no Final do
Século XX», in Introdução à Edição Portuguesa do Pensamento Sistemático e Conceito
de Sistema na Ciência do Direito de Claus-Wilhelm Canaris, Lisboa, 1989, pp. CIX e
sgs.
RELAÇÕES ENTRE O DIREITO INTERNACIONAL E O DIREITO INTERNO 175

Todavia, a inserção deste n.2 3 ficou a dever-se ao facto de estar


- presente no espírito do legislador constitucional de 1982 uma possível
entrada de Portugal no Mercado Comum Europeu, o que veio a verifi­
car-se em 1986.
A doutrina e principalmente a jurisprudência comunitárias, com
base nos art.a 177.2 e 189.2 do Tratado de Roma, têm defendido a apli­
cabilidade directa e a prevalência das normas comunitárias 29b.
Nesta sequência é de admitir que o direito comunitário ocupe uma
posição infraconstitucional pelas razões já referidas com respeito ao
direito internacional geral e convencional, mas supralegal.

7. O treaty making power. As normas que regulamentam o


processo de vinculação de um Estado a uma convenção deveriam
pertencer ao direito internacional, porém, neste campo, as divergências
entre os Estados são muitas e a Convenção de Viena sobre Direito dos
Tratados limitou-se a estabelecer regras muito genéricas, ou então
normas sobre questões determinadas nos art.2s 7.°, 12.° e sgs, e 46.9.
Deixou-se, pois, à liberdade de cada Estado o estabelecimento das regras
específicas.
No direito comparado verifica-se que, na maioria dos casos, as
negociações estão a cargo do chefe de Estado ou do governo, mas são
geralmente conduzidas pelos plenipotenciários. A aprovação cabe ao
parlamento ou ao governo, ou a ambos. Quanto à ratificação há essen­
cialmente três sistemas: de exclusivo monocrático que era o sistema
tradicional; de assembleia em que ratificação é feita por um órgão
colegial; de separação de poderes em que a ratificação cabe ao Chefe de
Estado, mas deve ser precedida de uma aprovação parlamentar.
No que respeita às regras processuais de vinculação de um Estado
a uma convenção há que distinguir as convenções solenes (tratados) dos
acordos em forma simplificada. Estes últimos distinguem-se dos pri­
meiros por não ser necessária a ratificação para vincularem o Estado.
A Constituição não estabelece regras para se saber se determinada
matéria deverá constar de tratado ou de acordo (pode até a mesma
convenção ser um tratado para um Estado e um acordo para outro), mas
não podem ser objecto de acordo em forma simplificada as matérias

Mb Para maiores desenvolvimentos, Vd. Mota de Campos, Op. cit., pp. 177 e
sgs. e pp. 254 e sgs.
176 DIREITO E JUSTIÇA

abrangidas no art.“ 164.“, j) da Constituição-29c nem aquelas a que, no


nível interno, corresponda acto legislativo30.

a) Nas convenções solenes distinguem-se quatro momentos: a


negociação, a aprovação, a ratificação e a publicação.

aa) Compete ao governo negociar e ajustar convenções inter­


nacionais (art.® 200a, n.a 1, alínea b) da Constituição), devendo o Primeiro
Ministro informar disso o Presidente da República (art.a 204.“, n.® 1,
alínea c) da Constituição). Nos termos do art.“ 229.®, n.a 1, alínea s) da
Constituição, as regiões autónomas podem participar nas negociações de
tratados e acordos internacionais que directamente lhes digam respeito.
A Lei Orgânica do Ministério dos Negócios Estrangeiros estabece
que a direcção da actividade internacional do Estado é exercida por
intermédio do Ministério dos Negócios Estrangeiros e executada pelos
serviços que constituem aquela «Secretaria de Estado».
ab) A Assembleia da República compete a aprovação dos trata­
dos de participação de Portugal em organizações internacionais, dos
tratados de amizade, de paz, de defesa, de rectificação de fronteiras e
os respeitantes a assuntos militares (art.“ 164.“, j) da Constituição).
Também compete à Assembleia da República a aprovação de tratados
cuja matéria esteja incluída na sua competência legislativa reservada,
seja reserva absoluta (art.“ 167.“ da Constituição) — como, por exemplo,
tratados que delimitem as águas territoriais, a zona económica exclusiva
ou os direitos de Portugal aos fundos marinhos contíguos (art.“ 167.“, g)
da Constituição) —, seja reserva relativa (art.“ 168.“ da Constituição)31.
Além disso, ainda podem ser aprovados pela Assembleia da República
todos os tratados que o governo entenda submeter-lhe (art.® 164.“, j) da
Constituição).
A aprovação das convenções internacionais pela Assembleia da
República reveste a forma de resolução (art.“ 169.“, n.“ 5 da Consti­
tuição), tendo sido, já na revisão de 1982, rectificado o lapso constante

2,0 Na revisão constitucional de 1989, neste preceito, substituiu-se o termo


«tratado» por «convenção». Poder-se-ia interpretar esta alteração no sentido de que,
hoje, podem ser objecto de acordo em forma simplificada as matérias abrangidas no
art.° 164.°, j) da Constituição; o que não parece de admitir.
30 Vd. Jorge Miranda, op. cit., pp. 28 e 29.
31 Vd. Jorge Miranda, op. cit., p. 37.
RELAÇÕES ENTRE O DIREITO INTERNACIONAL E O DIREITO INTERNO Y11

da primitiva redacção da Constituição (art.a 169.°, n.Q 2), segundo a qual


a aprovação revestia a forma de lei 32.
Os restantes tratados são aprovados pelo Governo. Pois, nos termos
do art.a 200.fi, n.a 1, c) da Constituição, o Governo tem competência resi­
dual no que respeita à aprovação de tratados .
A aprovação de convenções internacionais, quando feita pelo
Governo, reveste a forma de decreto (art.° 200.a, n.a 2 da Constituição) e
é feita em Conselho de Ministros (art.a 2O3.a, n.a 1, d) da Constituição).
ac) O Estado só se vincula a um tratado, no plano internacional,
após a ratificação (adesão ou aceitação33), a qual, segundo a tradição no
direito internacional, compete ao Presidente da República (art.2138.°, b)
da Constituição).
Antes de ratificar uma convenção, o Presidente da República pode
requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da consti-
tucionalidade de qualquer norma dela constante (art.® 278.a, n.a 1 da
Constituição).
Se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela inconstitucionali-
dade de uma norma constante de determinada convenção, o Presidente

32 Vd. Azevedo Soares, op. cit., pp. 64 e sgs. Sobre o processo de aprovação
parlamentar. Vd. Jorge Miranda, op. cit., pp. 39 e sgs.
33 O art.0 11.° da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados dispõe: «O
consentimento de um Estado a estar vinculado por um tratado pode manifestar-se pela
assinatura, troca de instrumentos constitutivos de um tratado, a ratificação, a aceitação,
a aprovação ou a adesão, ou qualquer outro meio convencionado.»
Tradicionalmente, o consentimento de um Estado para vincular-se a uma
convenção internacional manifestava-se pela assinatura, ratificação ou adesão. A assi­
natura é a forma de exprimir o consentimento nas convenções não solenes em que foram
conferidos poderes para vincular o Estado ao diplomata que o representa nas nego­
ciações, enquanto que os tratados só vinculam o Estado com a ratificação feita pelo
chefe de Estado. O consentimento manifcsta-sc pela adesão quando o Estado não
participa nas negociações que precedem a aprovação do texto do tratado.
A ratificação e a adesão são frequentemente substituídas pela aceitação e
aprovação. Não há aqui qualquer distinção conceituai, mas simples inovação termi­
nológica, pois a própria convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (art.° 14.°,
n.° 2) considera que o consentimento expresso por aceitação ou aprovação se exprime
nas mesmas condições e com os mesmos efeitos do que o manifestado por meio de
ratificação ou adesão.
A celeridade que o mundo moderno impõe, inclusivamente às relações inter­
nacionais, levou a que os Estados introduzissem na sua prática uma forma de celebração
de convenções internacionais pela simples troca de instrumentos entre os respectivos
plenipotenciários.
178 DIREITO E JUSTIÇA

da República só a poderá ratificar se a inconstitucionalidade for expur­


gada mediante reserva aposta ao tratado ou se a Assembleia da República
a vier a aprovar por maioria de dois terços (art.2 279.2, n.2 4 da
Constituição).
A fiscalização posterior da constitucionalidade de normas constan­
tes de tratado está prevista nos art.2 280.2 e sgs. e, em especial no art.2
280.2, n.2 2 da Constituição. A admissibilidade de uma fiscalização da
constitucionalidade, posterior à vinculação do Estado, é criticável, por­ i

que pode acarretar responsabilidade internacional do Estado Português.


No art.2 277.°, n.2 2 da Constituição consagrou-se, em parte, a
doutrina do art.2 46.2 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Trata­
dos 34, pelo que se determinado tratado sofrer de uma inconstitucio­
nalidade orgânica ou formal pode, mesmo assim, vigorar na ordem jurí­
dica portuguesa3S. Logo, a contrario sensu, se a inconstitucionalidade
for material, não pode o tratado vigorar no espaço jurídico português36.
Segundo a tradição do direito internacional e a opinião da maior
parte da doutrina, a ratificação é um acto livre do Presidente da República,
contrariamente ao que se passa quanto à promulgação de leis que
venham, de novo, a ser votadas por maioria de dois terços dos deputados.
Depois de um tratado ter sido ratificado, procede-se à troca dos
instrumentos de ratificação. No caso de tratados multilaterais, como a
troca de instrumentos poderia ser demasiado onerosa, procede-se ao
depósito do instrumento de ratificação junto de um depositário para o
efeito designado.

ad) A publicação do texto do tratado, que é obrigatória (art.2 8.°,


n.2 2 e 122.°, n.2 1, alínea b), 1? parte da Constituição), antecede nor-

34 Onde se dispõe: «A circunstância do consentimento de um Estado a obri-


gar-se por um tratado, ter sido expresso com violação de um preceito do seu direito
interno respeitante à conpetência para a conclusão de tratados, não pode ser alegada por
esse Estado como tendo viciado o seu consentimento, a não ser que essa violação tenha
sido manifesta e diga respeito a uma regra do seu direito interno de importância funda­
mental».
35 Segundo Gonçalves Pereira, op. cit., p. 43, o legislador adoptou, neste
preceito, a pior das soluções tecnicamente concebível, porque optou por um princípio
de reciprocidade em que a inconstitucionalidade orgânica ou formal só não é rele­
vante, se for essa a solução adoptada na ordem jurídica da contraparte. No caso de
tratados multilaterais esta solução é de muito difícil aplicação.
36 Vd. Silva Cunha, op. cit., p. 45.

I
RELAÇÕES ENTRE O DIREITO INTERNACIONAL E O DIREITO INTERNO 179

malmente a sua ratificação; quando assim acontece, após a ratificação é


publicado um aviso (art.a 122.°, n.a 1, alínea b), 2.8parte da Constituição).

b) As convenções não solenes ou acordos são, tal como os trata­


dos, negociadas pelo Governo (art.° 200.a, n.a 1, línea b) da Constituição).
De entre estas convenções há que distinguir: as que implicam
modificações na ordem jurídica interna; as que se situam no âmbito da
competência política e administrativa do Governo.
As primeiras são aprovadas pelo Governo mediante decreto (art.a
200.a, n.a 2 da Constituição). Antes da revisão de 1982, havia quem con­
siderasse que a aprovação de convenções não solenes deveria revestir
a forma de resolução do Conselho de Ministros37. O decreto de aprovação
é simplesmente assinado, e não promulgado, pelo Presidente da República
(art.a 137.°, b) da Constituição); que tem a obrigação de o assinar, pois
não há veto político relativamente a decretos simples38.
Depois da aprovação, o Estado exprime o seu consentimento no
plano internacional por meio da entrega de um instrumento de aceitação
ou de aprovação emitido pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, ou
mediante notificação de que foram cumpridas as formalidades neces­
sárias para a expressão do consentimento do Estado Português.
As restantes convenções (as que se situam no âmbito da compe­
tência política e administrativa do Governo) podem efectuar-se por troca
de notas. Os Estados ficam imediatamente vinculados mediante a assi­
natura aposta nessa nota e, após a troca de instrumentos, considera-se o
acordo consumado.
Note-se, porém, que nem sempre a prática portuguesa tem seguido
esta distinção e há acordos por troca de notas que contêm compromissos
de ordem legislativa.

37 Vd. Gonçalves Pereira, op. cit., p. 42, nota 1.


Quanto a este problema importa referir que, aquando das sanções impostas à
então Rodésia pelo Conselho de Segurança (acto internacional unilateral). Portugal
procedeu à incorporação na sua ordem jurídica dessas medidas sancionatórias, que
envolveriam, entre outros aspectos, a proibição de comércio com a Rodésia, por
resolução do Conselho de Ministros. E, em 1980, Portugal impõe sanções similares ao
Irão, sem ter por base um acto unilateral duma organização internacional, por resolu­
ção do Conselho de Ministros.
38 Vd. Jorge Miranda, op. cit, p. 48.

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