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ÁS

M A RIA MONTESSORI

FORMAÇÃO
DO HOMEM
(2.a Edição)

PORTUGÁLIA EDITORA (BRASIL)


PR EFÁ CIO

Poucos são, ainda, os livros de Maria Montessori tra­


duzidos para a língua portuguesa, privando, assim, um
grande número de pessoas de melhor conhecer a obra
monumental dessa grande educadora italiana.
É de se lamentar esse fato, pois, a simples interpre­
tação e comentários de autores ou estudiosos do Sistema
Montessoriano de educação não nos dão, muitas vezes, uma
idéia real de seu verdadeiro valor.
A tradução fiel das palavras, do pensamento de Maria
Montessori. expressos em seus livros publicados, traz até
nós, em toda a sua autenticidade, a fabulosa experiência
psicopedagógica vivenciada por ela, no decorrer do longo
tempo que se dedicou, com entusiasmo e amor, aos problemas
da educação.
A seguir à edição brasileira de “A CRIAN ÇA”, soma-
se hoje, este, que é de importância relevante para o educa­
dor em geral: “Formação do Homem”. Nele, a autora tem
por escopo oferecer de maneira simples mas segura, devi­
damente fundamentada, uma visão do que seja o Homem,
de como se processa o seu desenvolvimento desde a fase
embrionária e como cuidou de sua formação còmo pessoa
humana, contribuindo com subsídios valiosos para todos
aqueles que se preocupam com a educação no seu sentido
mais amplo, sejam os mestres ou os pais.
Neste livro, há informações básicas que devem ser
postas em prática, tendo em vista o educando desde a mais
tenra idade. O que ele encerra são princípios válidos para
a nossa época e que foram preconizados por Maria Mon­
tessori há mais de 60 anos. São princípios que não cadu­
caram porque, além de terem sido alicerçados cientifica­
mente em bases psicopedagógicas profundas, tiveram por
uma verdadeira antevisão dos acontecimentos, por parte
da. genial educadora, uma realidade presente para refe­
rendar o seu incontestável valor atual.
Hoje, o Sistema Montessoriano, no Brasil, é uma pre­
sença alvissareira no campo da educação. O Sistema está
sendo difundido em quase todo o território brasileiro, par­
ticularmente em São Paulo, onde o número de escolas mon­
tessori anas cresce, dia a dia, de maneira surpreendente.
No entanto, para que esse Sistema educacional nãó
seja deturpado no Brasil, mister se faz que haja uma gran­
de bibliografia traduzida, à disposição dos educadores, de

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maneira tal, que seja possível aos interessados no assunto
terem conhecimento global da obra de Maria Montessori,
e possam compenetrar-se da sua realidade integral, tendo
assim, melhores condições de adoçáo do método, sem des­
figurá-lo.
B9te livro deve ser lido por todos os que são educa­
dores ou tenham responsabilidade de educar, e cada idéia
nele exposta deverá ser alvo de meditação profunda. É um
livro que deve ser lido e relido muitas vezes. Ele nos sur­
preende sempre a cada leitura, pela sua atualidade-profun­
didade. Ê daqueles livros capitulados como “livro de cabe­
ceira do educador” ,
Para meditação antecipada do leitor, transcreveremos
a seguir um pequeno trecho do livro, inserido no capítulo:
“A Questão Social da Criança”.
— A história das injustiças contra a criança não está
ainda escrita oficialmente e, por isso, não é aprendida nas
disciplinas históricas das escolas, em nenhum grau. Os
próprios estudantes de história, que têm “títulos” e “espe­
cializações” nessa matéria, não estão mais interessados em
falar. A história refere-se somente ao homem adulto, pois
pomente ele vive diante da consciência. Dessa forma, os
que se especializam na legislação aprendem infinidades de
leis dos tempos passados e dos tempos presentes, não se
importando de não encontrarem leis promulgadas para os
direitos das crianças.
Assim, a civilização passa por cima de uma questão
que nunca foi um problema social
No capítulo “O Estudo do Homem”, destacamos estes
dois parágrafos iniciais que de pronto despertam o inte­
resse t,ara ° que há de vir a seguir:
• u c'i(•ik'i11 romcrnKsc a estudar “o homem” con­
seguiria não só fornecer novas técnicas para a educação
das crioncãs © dos jovens, mas chegaria a uma compreen­
são profunda de muitos fenômenos humanos e sociais, que
estão envolvidos em espantosa obscuridade” .
“A base da reforma educativa e social, necess.íria aos
í i i •i iliu-:. <!<-ve ser construída sobre o estudo científico
do hntmm desconhecido”.
K maia uma pequena citação para refletirmos orofun-
damante, transcrita no capitulo: “A Sociedade Atual”.
Hoje, h humanidade está vencida e escravizada pelo seu
rio ambienta, permanecendo fraca e indefesa.
*A t tc i' ■ ni crescendo rapidamente, tomando
uma forma diferente da do passado, das lutas entre povos

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fortes e vencedores e povos fracos e vencidos. Mas, atual­
mente, a impotência humana atinge o mais alto grau. Hoje,
não há mais segurança”.
“A própria humanidade é que foi vencida e feita
escrava. O impressionante é que a humanidade, que jaz
em uma terrível escravidão, grita, com um estribilho este-
riotipado, que é livre ou independente” .
No entanto, não só hoje, constatamos que o mara­
vilhoso progresso da tecnologia está cercendo o desenvolvi­
mento humano, porque ele não foi realizado tendo em
vista o homem como um ser “livre” que deseja ser feliz. O
homem está encontrando grandes dificuldades em adaptar-se,
sofre e se degrada. O progresso espiritual e social não acom­
panha o progresso material. Há uma defasagem muito gran­
de entre um e outro que precisa urgentemente ser corrigida.
Por que isso está acontecendo?
Será o homem vencido pela máquina?
Toma-se-á o homem escravo dele próprio?
Lendo-se, atentamente, este livro espetacular de Maria
Montessori encontraremos respostas para essas perguntas e
outras indagações que nos afligem e aprenderemos muito
sobre o que é realmente o Homem, o seu valor, o proces­
samento de seu desenvolvimento e o respeito que lhe é devido
como Pessoa Humana.
Por fim, poderemos, ao terminar a leitura desta jóia,
sentir o quão atualizada ela está, e quão genial foi sua autora,
criadora do Sistema de Educação que leva o seu nome, o que
não só é perfeitamente válido ainda hoje como também é,
senão o melhor, pelo menos aquele que sabe reconhecer o
valor e o respeito que são devidos ao ser humano.
À Maria Montessori, privilegiada inteligência posta a ser
viços da humanidade, com dedicação e amor, o profundo agra­
decimento de todos aqueles seus seguidores que labutam no
setor educacional e, por certo, daqueles muitos que, em breve,
estarão participando conosco da tarefa de constuir um Mundo
melhor.
E à Portugália Editora (Brasil) um agradecimento pela
possibilidade que nos dá de ter, finalmente, ao alcance de to­
dos os educadores brasileiros, a obra de Maria Montessori.

Edith Dias Menezes de Azevedo


Diretora da Escola Experimental
“Irmã Catarina”

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INTRODUÇÃO

CONTRADIÇÕES

Quantos anos já se passaram desde quando começamos


nosso trabalho! Em 1907 foi inaugurada a primeira “Casa
das Crianças” e quase em seguida a idéia e a nova obra
parq a educação foram difundidas em todo o mundo. Já são
transcorridos 40 anos e nesse tempo aconteceram as duas
grandes guerras européias e mundiais, sem extinguir aquele
movimento educativo que fincou suas boas raízes em mui­
tos países.
Agora, mais convencidos ainda da importância da Edu­
cação Infantil, desejamos dar novas forças à nossa obra,
proporcionando uma ajuda efetiva para reconstrução desta
sofrida humanidade, que parece esmagada pelos cataclismas
humanos mais espantosos da história.
Quero então levar minha mensagem a essa humanidade
jovem e forte que deve continuar seu caminho, mas tem
muita necessidade de fé e esperança.
Irei dar aqui uma ajuda para a orientação no nosso
trabalho.
Por que respeitam a isto que chamam “Escola Mon-
tessori” e “Método Montessori” , onde há tantas dificuldades,
tantas contradições e tantas incertezas? Por que as escolas
continuam, entre guerras e cataclismas, a se espalhar cada vez
mais em todo o mundo e são encontradas até na ilha do Ha­
vaí, em, Honolulu, em meio ao oceano, entre os nativos da
Nigéria, no Ceilão, na China, entre todas as raças em todos
os países do mundo?
Seriam as escolas perfeitas para os nativos da África,
da índia ou da China e de todos os países, os mais civili­
zados? Se escutássemos os “entendidos” , eles certamente
diríam que não é uma escola verdadeira mente boa, mas
ao mesmo tempo, todos concordariam aue Montessori é o
método educativo moderno mais difundido que existe.
Por aue então se difunde, se não encontramos os mo­
delos perfeitos? Quantos países mudaram suas leis para não
causar obstáculos na difusão do Método Montessori! E por
que? Em aue se basearam? E como é difundido, se não
temos revistas, iniciativas publicitárias, sociedades organiza­
das plenamente de acordo entre si e organicamente coorde­
nadas?
Poder-se-ia dizer então que existe um fermento trans­
formador, cu uma semente que se espalha com o vento.

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Ê também um método que parece egoísta, que parece
querer andar só, não se misturando com nenhum outro; to­
davia, nenhum outro método aproveita continuamente a oca­
sião para pregar a união e a paz mundial.
Quantas contradições! Não se vê aqui algo misterioso?
Há correntes e educadores importantes, como por exem­
plo, a grande sociedade mundial Nevz Education Fellowship,
que pretenderam harmonizar o Método Montessori com ou­
tros novos métodos que continuam a surgir vindos de todos os
lugares.
Em toda parte se deveria dar esse passo depisivo: apro­
veitar todos os esforços daqueles que, em diversas tentati­
vas, têm procurado educar a infância.
É necessário tirar o método de seu isolamento, dar con­
dições para que os estudiosos o avaliem, e sobretudo trans­
miti-lo da melhor maneira para os professores.
Eu sei que muitos dos que dedicaram sua ida a este
método estão encontrando problemas de cooperação.
Outra coisa estranha é que este método criado para
os “jardins de infância” esteja se infiltrando nas escolas ele­
mentares, nas escolas secundárias e até nas Universidades.
Na Holanda, existem cinco Liceu Montessorianos, que
por seus resultados tão bons levaram, o governo holandês
não só a subsidiá-los, mas a torná-los independentes, como
todos os outros colégios reconhecidos. Vi em Paris um colé­
gio particular montessoriano que dava aos alunos muitas
segurança, tornando-os independentes e sem temor dos exa­
mes como tinham os alunos provenientes de outros colégios
franceses. Na íindia, chegou-se à conclusão de que é neces­
sário criar-se a Universidade Montessori.
Mas o método tem seguido também um caminho opos­
to e está sendo aplicado em crianças de menos de 3 anos.
No Ceilão, foram colocadas crianças de somente 2 anos de
idade em nossas escolas e o público pede que sejam aceitas
muitos crianças de um ano e meio. Na Inglaterra são muitos
os berçários que usam o nosso método. Berçários montes­
sorianos estão sendo fundados também em Nova Iorque.
O que é então este método que parte do recém-nas-
cidjo e tende a chegar aos doutores universitários?
Não acontece assim com outros métodos. O método
Frõebel refere-se exclusivamente às crianças que estão abai­
xo da idade escolar, o método Pestalozzi diz respeito somen­
te às escolas elementares; os métodos de Herbart conside­
ram especialmente a escola secundária. Ainda também en-

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tip o« métodos mais modernos, podemos citar o método
Decroly, destinado às escolas elementares; o Plano Dalton,
à* escolas secundárias e assim por diante. Ê verdade que os
métodos clássicos estão sendo modificados, mas os educa­
dores de uma classe não poderiam ser de outra. Nenhum
professor de escola secundária se preocupa como se educa
nos jardins de infância e, muito menos, nos berçários. Uma
classe é bem diferente da outra e os métodos que hoje se
multiplicam dizem respeito a uma ou outra destas categorias
bem distintas.
Aquele que dissesse que existem escolas secundárias de
método Frõebel, seria considerado um insensato e àquele
que quisesse levar à Universidade os métodos dos berçários,
diríamos que estava brincando.
Mas então, por que se fala seriamente em levar o mé­
todo Montessori a todos os graus de educação? O que se
entende por isto? O que se pensa que seja o “Método Mon­
tessori” ?
Continuamente são feitos ainda paralelos e aproxima­
ções. Confrontam-se, por exemplo, os berçários ingleses
com as escolas Montessori; comparam-se os brinquedos e
o modo de tratar as crianças nas duas instituições, com o
propósito de poder harmonizá-los fazendo deles uma coisa
só. Na América, muitos paralelos foram feitos para har­
monizar as escolas froebelianas e as “Casas das Crianças”.
Comparando o nosso material com o froebeliano, se conclui
que todos os dois são bons e seria conveniente usá-los em
conjunto. Existem somente alguns pontos discordantes cotro,
por exemplo, os contos de fadas, os jogos com areia, o uso
do material e outras particularidades que causam muitas dis­
cussões. Também nas escolas elementares se continua a dis­
cutir sobre métodos para ensinar a ler e a escrever ou para
ensinar aritmética e fala-se especialmente da nossa insistên­
cia em ensinar a geometria ou outra coisa mais avançada
durante o período de instrução. Para a escola secundária,
contudo, existem opiniões diversas. Alguns pensam que nós
não levamos bastante em consideração os esportes e alguns
trabalhos, que imprimimos um estilo mais moderno ao en­
sino, introduzindo mecânica e trabalhos manuais. Tudo isso
é colocado ainda mais em evidência pelo fato de que os
programas das escolas montessorianas deveriam ser neces­
sariamente os mesmos das outras ecolas secundárias, pois de
outra forma os alunos não poderiam ser admitidos na Uni­
versidade.
Em suma, nos encontramos em um labirinto. . .

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O QUE Ê O M ÉTODO M ONTESSORI

Pode-se dizer em poucas e claras palavras o que é o


método Montessori,
Se abolíssemos não só o nome, mas também o conceito
comum método para substituí-lo por uma outra indica­
ção, se falássemos de “uma ajuda a fim de que a persona­
lidade humana pudesse conquistar sua independência, de
um meio para libertá-la das opressões, dos preconceitos an­
tigos sobre a educação” , então, tudo se tornaria claro. É a
personalidade humana e não um método de educação que
vamos considerar, é a defesa da criança, o reconhecimento
científico de sua natureza, a proclamação social de seus di­
reitos que devem substituir os falhos modos de conceber a
educação.
Uma vez que a personalidade humana é caracterís­
tica de todo ser humano — sendo homens tanto os euro­
peus como os hindus e os chineses, então onde se encontre
uma condição de vida que ajude a personalidade humana,
isto diz respeito e interessa por sua própria força a todos
os países habitados pelo homem.
O que é então a personalidade humana? Onde começa?
Quando o homem começa a ser homem? Seria difícil deter­
minar. No Velho Testamento, o homem foi criado adulto;
no Novo, se apresenta como uma criança. A personalidade
humana é certamente uma só em vários estágios de desen­
volvimento. Qualquer homem, em qualquer idade, os garo­
tos da escola elementar, os adolescentes, os jovens os adul­
tos em geral, todos sem exceção começaram sendo crianças
e cresceram depois de crianças a adultos sem solução de
unidade de sua pessoa. Se a personalidade humana é uma
em diferentes etapas de desenvolvimento, deve-se então con­
ceber um princípio educativo que abranja todas as idades.
De fato, em nosso curso mais recente, chamamos a crian­
ça: Homem.

O HOMEM DESCONHECIDO

O homem, que aparece no mundo sob a forma de cri­


ança, desenvolve-se rapidamente por um verdadeiro mila­
gre da criação.
O recém-nascido não possui ainda a linguagem nem
outras características relativas aos costumes da espécie; não
tem inteligência, nem memória, nem vontade e nem mesmo

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.1 poder de locomover-se e manter-se de pé; entretanto, esse
ip <í-m-nascido realiza uma verdadeira criação psíquica. Com
u idade de dois anos, fala, anda e reconhece as coisas e,
pusaidos cinco anos, adquire o desenvolvimento psíquico su­
ficiente para ser admitido na escola.
Atualmente, há um grande interesse científico no co­
nhecimento da psicologia infantil nos dois primeiros anos de
idade. Por milhares e milhares de anos a humanidade dei­
xou de lado a criança, permanecendo completamente insen­
sível a essa espécie de milagre da natureza que é o desen­
volvimento de uma inteligência, de uma personalidade. Co­
mo se desenvolve? Através de quais processos e com que
leis?
Se tudo no universo se sustenta sobre leis fixas, é im­
possível que justamente a mente humana se forme ao aqaso,
isto é, sem leis.
Tudo se desenvolve através de processos evolutivos com­
plexos; também o homem, que aos 5 anos toma-se um ser
inteligente, deve ter tido a sua evolução construtiva.
Este campo é, pode-se dizer, ainda inexplorado. Existe
um vazio no conhecimento científico dos nossos tempos, um
campo inexplorado, uma incógnita que diz respeito ao pro­
cesso de formação da personalidade.
A persistência de uma tal ignorância no grau de civili­
zação em que nos encontramos deve ter raízes misteriosas.
Alguma coisa permanece sepulta no inconsciente e é
revestida de preconceitos difíceis de serem superados. Para
que comecemos a exploração científica desse imenso cam­
po obscuro que é o espírito humano, é necessário superar
esses fortes obstáculos. Sabemos somente que na psique hu­
mana existe um enigma ainda não desvendado pelo nosso
interesse, como sabíamos a algum tempo atrás que existia
uma imensa extensão de gelo no Pólo Sul da Terra. E eis
que hoje é feita a exploração antártica sendo encontrado um
continente sepulto, cheio de maravilhas e riquezas com lagos
quentes e muitos seres viventes, mas para se chegar até lá
foi preciso vencer obstáculos tão grandes quanto a espessura
dos gelos que o recobriam e a friagem de um clima diferente
do nosso. O mesmo se pode dizer da exploração daquele pólo
da vida humana que é a criança.
O homem em idade mais avançada (a criança, o ado­
lescente, o jovem, o adulto) provém para nós do desconhe­
cido e avaliamos seus vários aspectos assim como são en­
contrados.

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Nôsãos esforços para conduzir o homem nessas várias
idades sao ainda empíricos, superficiais. Avaliamos como cul-
incapazes, a aparência, os efeitos, sem nos preocu-
pfuüio« com a« causas que os produzem. Acertadadamente,
chama jardim da infância à escola das crianças
de 4 mu g fuioH de idade. Podemos chamar desta maneira a
Indas g» rseolai, especialmente as melhores, aquelas onde
sitt. «e procura o bem e a felicidade das crianças,
paia distingui-las das outras onde ainda reina uma cruel ti-
íafija: pois nas escolas que respeitam o ideal froebeliano, os
edm adotes s«i comportam como os bons jardineiros e os bons
rultÍv*dor©i das plantas.
Atrás do bom cultivador está o cientista. O cientista
iíi Ritiga os segredos da natureza e adquire através de suas
dest uIhuIhn conhecimentos profundos que podem conduzi-
i‘ > nlo só a «valiá-la, mas também a transformá-la. Os cul­
tivadores modernos, que multiplicam as variedades das
fiorei e da» frutas, que beneficiam as florestas, que mu-
dgiH, pod«moi dizer, a face da terra, têm colhido seus prin-
. ipins técnicos na ciência e não em seus hábitos familiares.
Assim também, as flores maravilhosas, de fantástica beleza,
•ií n avos multicoloridos, as orquídeas soberbas, as rosas gi­
gantescas, perfumadas e sem espinhos, as várias frutas ma-
tavilhnsas que têm mudado a face da terra, são o produto
do homem que estudou as plantas cientificamente. Foi a ciên­
cia qu® fez surgir uma nova técnica, foi o cientista que deu
o impulso para a construção de uma verdadeira supernatu-
tmgá fantasticamente mais rica e mais bela do que aquela
qu# uós hoje chamamos de natureza selvagem.

O ESTUDO DO HOMEM

Ne a ciência comèçasse a estudar os homens, conse­


guiria náo mó fornecer novas técnicas para a educação das
11 tflhÇai O dos jovens, mas chegaria a uma compreensão
p».»funda de muitos fenômenos humanos e sociais que estão
ilude envolvidos em espantosa obscuridade.
A base da reforma educativa e social, necessária aos
fUh», deve ser construída sobre o estudo científico do
homem desconhecido.
Mas, como já disse, há muitos obstáculos para se fazer
êgae estudo científico, pois os preconceitos acumulados em
milênios estfio solidificados como majestosas geleiras quase
Inacessíveis, sendo para isso necessária uma exploração co-

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tajoga, uiriM luta contra elementos adversos, para as quais
•*!'> bttHlmn as armas habituais da ciência, isto é, a obser-
iftÇie e a experimentação.
E*l© estudo do homem espiritual, da psicologia, é um
movimento intelectual que está se difundindo desde os pri­
meiros unos deste século. O que diz resepeito ao subconsciente
f<»i uma descoberta fecunda. Ela teve início através de estu­
da adultos doentes mentais, estendendo-se depois a indi­
víduos normais. Mais recentemente a psicologia infantil tam-
Min dômeçou a interessar os estudiosos.
Enquanto esses estudos concluíam que atualmente qua-
í# tõdos os homens têm algumas imperfeições, as estatísti­
cas revelavam de maneira indiscutível a quantidade sempre
n ascente dos loucos e dos criminosos e o aumento do nú­
mero dos menores, o que nos faz pensar nos danos que des­
viam ri humanidade.
As condições sociais, produto da nossa civilização, co­
locam evidentemente obstáculos no desenvolvimento nor­
mal do homem. Não foram criadas ainda para o espírito
as mesmas defesas criadas para a higiene física. Enquanto
hoje são controladas e utilizadas as riquezas da terra e suas
energias, não foi levada em consideração a energia suprema
que é o intelecto do homem; enquanto são explorados os
ebismos das obscuras forças naturais, não foram iluminados
os abismos do subconsciente. O homem psíquico, abandona­
do às circunstâncias externas, está se tornando um destruidor
de suas próprias construções.
Pode-se por isso conceber um movimento universal de
reconstrução, como o único caminho para ajudar o homem
it conservar o seu equilíbrio, a sua normalidade psíquica e
ci sua orientação, nas atuais circunstâncias do mundo exter­
no.
Esse movimento não se restringe a nenhuma nação e
a nenhuma direção política, porque tem em mente valo­
rizar simplesmente o homem, que é o que essencial mente
interessa, acima de todas as políticas e das distinções na­
cionais.
É evidente que para um tal movimento não bastam
mais os conceitos das escolas antigas, onde se ensina de
forma não condizente com os nossos tempos.
A educação é um fato social e humano, um fato de
interesse universal.

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Ela deve basear-se na psicologia, para defender a in­
dividualidade, orientando-a para a compreensão da civili­
zação, porque a personalidade, protegida das desordens dos
acontecimentos, torna o homem consciente da sua posição
real na história. Não é evidentemente um syllabua ou
um arbitrário aquele que informa a cultura de hoje, mas
ocorre um syllabus que dá capacidade de compreender as
condições do homem na sociedade atual, com uma visão cós­
mica da história e da evolução da vida humana, pois de que
serviria hoje a cultura se não ajudasse os homens a conhe­
cer o ambiente do qual devem adaptar-se?„
Enfim, os problemas da educação devem ser resolvidos
baseados em leis de ordem cósmica que vão daquela eterna
construção psíquica da vida humana, àquela mutabilidade
que conduz a sociedade nos caminhos da sua evolução.
O respeito às leis cósmicas é o respeito fundamental.
Somente através dele pode-se julgar e modificar as inúme­
ras leis humanas que se referem ao momento passageiro das
construções sociais externas.

A SOCIEDADE ATU AL

Podemos constatar que o progresso maravilhoso do am­


biente está cerceando o desenvolvimento humano. Que o ho­
mem encontra grande dificuldade em adaptar-se, sofre e se
degrada.
Poder-se-ia dizer que as forças do progresso exterior são
semelhantes às forças de um povo poderoso que invade e
submete um povo fraco e como acontecia nas guerras bár­
baras, o submisso é feito escravo.
Hoje, a humanidade está vencida e escravizada pelo
seu próprio ambiente, permanecendo fraca.
A escravidão vai crescendo rapidamente, tomando uma
forma diferente da do passado, das lutas entre povos fortes e
vencedores e povos fracos e vencidos. Mas, atualmente, a
impotência humana atinge o mais alto grau.
Hoje não há mais segurança. Não podemos salvar as
riquezas. O dinheiro que está no banco pode ser, de um mo­
mento para outro, perdido inteiramente. Se alguém preten­
de acumular riquezas escondendo-as como se fazia na Ida­
de Média, enterrando os tesouros, o dinheiro pode perder
todo o seu valor e’ ser retirado de circulação. O dinheiro de
um país não pode ser exportado. Uma pessoa, ainda que rica,
não pode viver em outro país porque é proibido levar consi-

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f.-.i fliiihei»n m Jóia«, se arriscando a ser revistada e despojada
=i^ àsuã i^n» na Alfândega, como se a propriedade fosse um
f iy lf t
N,i go pode viajar com passaportes que são somente obs-
u!,,g par« o indivíduo e não mais uma proteção como era
nr» passado. Nn própria pátria é necessário andar portando
e . ai ttiiH de identidade, com retrato e impressões digitais,
f umo iiati acontecia nem para os criminosos.
Para poder comprar somente o necessário para a sobre-
Ivlncía é preciso, toda vez, apresentar um cartão, sem o
ijüil nfco se recebe nem mesmo o pão, coisa que acontecia
ãiHigaintnte só aos pobres que viviam de esmolas. Ninguém
tmn sfigurença na vida, pois pode acontecer, de uma hora
pata outra, uma guerra absurda, onde todos, jovens e velhos,
mulhéie» e crianças, estarão em perigo de morte. As habita-
tr.êi g#rã0 bombardeadas e as pessoas precisarão refugiar-se
èm subterrâneos, da mesma forma que os homens primitivos
sm iRÍugiavam em cavernas para se defender de animais fe-
fOfCI, O alimento pode desaparecer e milhões de homens mor­
rerão de fome e peste.
Eis o homem estraçalhado e nu, que se move rijo e ge­
lado pelas intempéries. As famílias se dividem, se destroem;
es crianças ficam abandonadas e andam em bandos como
èelvngens.
Isto não é só para as populações vencidas na guerra; é
pera todos. A própria humanidade é que foi vencida e feita
escrava.
Por que escrava? Porque, vencedores ou vencidos, os
homens são todos escravos, inseguros, amedrontados em dú­
vidas, em hostilidade, obrigados a se defender com espiona­
gem e patifarias, assumindo e alimentando a imoralidade co­
mo forma de defesa. A fraude, o latrocínio tomam novos
aspectos e representam o modo de sobreviver onde as restri­
ções chegam ao absurdo. A covardia, a prostituição, a violên­
cia tornam-se formas habituais da existência. Os valores es­
pirituais e intelectuais que uma vez honravam os homens,
estão perdidos. Os estudos são áridos, fatigantes, sem eleva­
ção, tendo somente o objetivo de encontrar um trabalho que,
todavia, é incerto e inseguro.
O impressionante é que a humanidade, que jaz em uma
terrível escravidão, grita, como num estribilho esteriotipado,
que é livre ou independente. Este miserável povo degradado
díz que é superior. O que aconteceu com esses inflizes? Pro­
curam como bem supremo isto que chamamos democracia,

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isto é, que o povo possa dar sua opinião do modo como é go­
vernado, j>o8sa votar nas eleições.
Mos o voto não é uma ironia? Escolher quem governa!
Quim governa não pode libertar nenhuma das cadeias que
ligam tudo, que impedem cada atividade, cada iniciativa e
todo poder de proteção.
O proprietário é misterioso. O tirano é onipotente como
um deus. É o ambiente que devora e tritura o homem.
Outro dia, um jovem padeiro que trabalhava numa gran­
de máquina de fazer pão, prendeu uma das mãos entre as
engrenagens e estas agarraram depois todo o seu corpo e o
mastigaram. Não é por ventura isto um símbolo das condi­
ções nas quais permanece esta humanidade inconsciente e ví­
tima de seu destino? O ambiente é comparável àquela má­
quina colossal, capaz de produzir fabulosa quantidade de ali­
mento e o operário abatido representa a humanidade deses­
perada e imprudente, que permanece presa e magoada por
aquilo que deveria trazer-lhe abundância. Eis um aspecto do
desequilíbrio entre o homem e o ambiente, do qual a hu­
manidade deve livrar-se, fortalecendo a si própria, desenvol­
vendo seus próprios valores, livrando-se de sua insensatez e
tornando-se consciente de seu próprio poder.
É necessário que o homem reúna todos os seus valores
vitais, suas energias, crescendo e preparando-se para sua liber­
tação.
Não é mais tempo de combater uns aos outros, de pro­
curar subjugar, deve-se ver o homem somente com o objeti­
vo de elevá-lo, de despi-lo das íeis inúteis que é&tão sendo
criadas e que o empurram através do abismp da loucura.
A força inimiga está na impotência do homem a respeito
de seus próprios produtos, está na parada do desenvolvimen­
to da humanidade. Bastaria, para vencê-la, que o homem rea­
gisse e fizesse uma preparação diferente do ambiente que ele
mesmo criou.

O OBJETIVO DA NOVA EDUCAÇÃO

Pode parecer que estamos nos afastando do primitivo


argumento que era a educação, mas este divagar deve abrir
novos caminhos que são necessários percorrer;
Como se ajuda um doente no hospital, a fim de que pos­
sa recobrar a saúde r. continuar a viver, queremos ajudar a

18
humanidade e salvar-se. Devemos ser os enfermeiros neste
vasto hospital que é o mundo.
É necessário levar-se em conta que o problema não se
restringe à escola, como são concebidas hoje, e não diz res­
peito a métodos de educação, mais ou menos práticos, mais
ou menos filosóficos.
Ou a educação contribui para um movimento de liber­
tação universal, indicando o modo de defender e elevar a hu­
manidade, ou torna-se-á semelhante a um órgão que se atro­
fiou por não ter sido usado durante a evolução do organismo.
Existe em nossos dias, como dissemos, um movimento
científico todo novo, que se apresenta com resultados desli­
gados tendentes a uníficarem-se no futuro.
Este movimento, entretanto, não se encontra propria­
mente no campo da educação, mas sim no da psicologia. Tam­
bém na psicologia não encontramos uma preocupação peda­
gógica (conhecer o homem para educá-lo), mas sim, a preo­
cupação que vem de encontro aos sofrimentos e às anorma-
liriH dos homens, principalmente dos adultos. A nova psicolo­
gia por isso nasceu no campo da medicina e não no da edu-
rnçlo,
Esta psicologia da humanidade doente foi levada tam­
bém às crianças agitadas e infelizes, com energias vitais re-
|H(íiiíiImh o recolhidas na anormalidade.
Daste modo, este é o movimento científico que está nas-
para colocar uma barreira aos males espalhados, aju-
ffaíidm 0« ulmos confusas e desorientadas. É este movimento
que precisa sor ligado à educação.
Creiam-me os tentativas da assim dita educação moder­
na, f|u# procuram simplesmente livrar as crianças das supos-
t i i ffpliSióe», não são o melhor caminho.
Dei«ar o aluno fazer aquilo que quer, diverti-lo com le-
çgã m upaçftas. levá-lo quase a um estado de natureza selva­
gem nio é o suficiente. Não se trata de “liberar” algumas
Ifls, í preeilg rtwvn&trüir e a reconstrução requer a elabora-
eI h f|@ ume "elêndfl fio espírito humano” . É um trabalho pa-
gffeliti, um Mahallio feito de pesquisas, para o qual devem
fggtHhuii ffiilhaiãs tia |>r*fiuoos que se dedicam a esse intento.
A.j.mU qn. trabalha paru essa reconstrução deve estar
iSlEfêlidy p®f Uftí ideal grandioso, bem maior do que os ideais
pdilffeMi fpiè têm promovido melhoramentos sociais, levando
Bi#? a vida material de grupos humanos opri-
^-Lí—; injustiça # na miséria.
Esse ideal é universal, é a libertação de toda a huma­
nidade, sendo necessário muito trabalho paciente neste cami­
nho de libertação e de valorização do homem.
Observamos no campo das outras ciências quantos tra­
balham fechados em seus laboratórios, observando as células
em microscópios e descobrindo as maravilhas da vida; quan­
tos em gabinetes químicos experimentam realizações, desco­
brindo os segredos da matéria; quantos trabalham para isolar
a energia cósmica* a fim de conquistá-la e utilizá-la! São estes
inúmeros trabalhadores, pacientes e sinceros, que têm impul­
sionado a civilização.
Alguma coisa semelhante, como já havíamos dito, é pre­
ciso, portanto, também fazer para o homem. Mas, o ideal, o
fim a que se propõe deve ser comum a todos. Ele deve al­
cançar aquilo que os livros religiosos dizem a respeito do ho­
mem: “Specie tua et pulchritudine tua intende, prospere pro­
cede e regna”1, o que podemos parafrasear dizendo: “Com­
preenda a ti mesmo e a tua beleza refletir-se-á no ambiente
rico e pleno de milagres e reina sobre ele”.
Poderão me dizer: “Sim, isto é belo e fascinante, mas
cs crianças crescem, os jovens tornam-se homens e não se po­
de esperar uma elaboração científica, porque nesse ínterim a
humanidade será destruída”.
Eu responderei: “Não é necessário que o trabalho de pes­
quisa seja concluído. Basta compreender a idéia e proceder
sobre as suas indicações”.
Entretanto, uma coisa atualmente já se tornou clara; a
pedagogia! não deve ser guiada, como no passado, pelas idéias
de alguns filósofos e filantropos que estavam impelidos por
sua simpatia, por sua caridade. A pedagogia deve ressurgir
ajudada pela psicologia aplicada à educção, à qual convém
dar rapidamente um nome diferente: Psicopedagogia.
Nesse campo, deverão surgir muitas descobertas. É in­
dubitável que, se o homem permanece ainda desconhecido e
reprimindo, a sua liberação vital deve causar assombrosas re­
velações. É sobre estas revelações que a educação deverá
continuar, assim como a medicina comum se baseia na “vis
medicatri natural” sobre forças curativas que já se encontram
na natureza e a higiene se baseia em conhecimentos de fi­
siologia, isto é, nas funções naturais do corpo. Ajudar a Vida,
eis o princípio fundamental.

* — Toma consciência da tua beleza e da tua formosura e


então prosperás e reinarás. (N.T.)

20
49 %

Na hora em que puderem ser reveladas as vias naturais


sobre as quais procede o crescimento psíquico do indivíduo,
não estará a criança colocada em condições de revelar-se a si
mesma? Eis então que o nosso primeiro mestre será a pró­
pria criança, ou melhor, o ímpeto vital com leis cósmicas que
conduzem inconscientemente, não isto que chamamos a
“vontade da criança” , mas o misterioso querer que dirige a
sua formação.
Posso afirmar que as revelações da criança «ão são difí­
ceis de se obter. A verdadeira dificuldade reside nos antigos
preconceitos dos adultos com relação à criança, nas cegas in­
compreensões e nos mimos, que são formas de educação ar­
bitrárias, baseadas somente no raciocínio e ainda mais sobre
o inconsciente egoísmo do homem, e no seu orgulho de do­
minador, chegando a esconder os valores da sábia natureza.
A nossa contribuição, por enquanto pequena e ainda in­
completa, insignificante no campo científico da psicologia,
iervirá, porém, para ilustrar este enorme obstáculo de pre­
conceitos que podem apagar e destruir as contribuições da
nossa isolada experiência.
Se tivéssemos êxito em somente provar a existência des­
ití preconceitos, já teríamos obtidos um benefício de impor­
tância geral.

/ REVELAÇÕ ES DE ORDEM N A T U R A L NAS


CRIAN ÇAS E SEUS OBSTÁCULOS

Revelações e obsfáculos . . . .

b'()COfdamo-nos bem de como foi iniciado nosso estudo.


Cerca de 40 anos atrás, um grupo de crianças revelou
ym fenômeno inesperado e maravilhoso.
l!«t© fenômeno foi chamado “a explosão da escrita”. Al-
gMiüâs nimiruí começaram espontaneamente a escrever e is-
§i» m propagou logo a um grande número delas. Foi uma ver­
dadeira explosão em conjunto de atividades e entusiasmo.
Aqueles pequenino* carregavam como uma espécie de procis-
ãêti triunfei <• alfabeto, com gritos de alegria. Escreviam in-
te Cobriam o chão e as paredes com sua escrita
tffffrilV fl Heus progresso* foram fantásticos e miraculosos.
depois, poi si só, aprenderam a ler escritas diferentes,
éinsivas e Impressa», letras minúsculas e maiúsculas, e por
fim fes« iíiíi9 p.3|»m ials, arllatica* e góticas.

21
Examinemos um pouco esta primeira revelação. Era eví-
dentemente uma revelação de ordem psicológica e bastante
forte para chamar a atenção do mundo. Era uma espécie de
milagre.
Contudo, qual foi a reação especialmente dos cientistas
da época?
A escrita miraculosa não foi atribuída a um fato psí­
quico, mas a um ‘‘método de educação”.
Escrita e natureza não se podia juntar. A escrita é a con-
seqüência, em geral, de uma paciente e ingrata preparação
na escola, é uma recordação de áridos esforços, de penas su­
portadas, de castigos infligidos e de tormentos para todos que
são alfabetizados. Deveria ser um método verdadeiramente
maravilhoso aquele que tinha êxito em obter resultados tão
brilhantes em uma idade precoce. A curiosidade surgiu em
torno deste método educativo que oferecia a prova de haver
finalmente encontrado um meio para vencer rapidamente o
analfabetismo, que é encontrado nas populações, mesmo nas
mais civilizadas.
Quando apareceram alguns professores da Universida­
de dos Estados Unidos da América para estudar pessoal­
mente este método, o único material que eu tinha para
mostrar eram as letras do alfabeto, separadas uma das outras,
letras que tinham a forma de objetos manejáveis e móveis
e de grandes dimensões.
Alguns destes professores se ofenderam, acreditando que
eu zonbava deles, sem respeitar sua dignidade. Em outras
esferas começaram a dizer que em tudo isso não havia serie­
dade, que falar em milagres era uma mistificação. Sabendo
então que em vez de livros comuns, usávamos objetos, que
poderiam ser adquiridos ou vendidos, tinham medo de
imiscuir-se em coisas de comércio. Uma espécie de amor
próprio afastava da atenção dos grandes esta manifestação
que todavia estava ligada a uma incógnita de ordem psico­
lógica. E assim surge um obstáculo, uma barreira intrans­
ponível entre aquela experiência iluminadora e as pessoas que
pertenciam à alta esfera cultural, aquelas que pela sua cultu» *»
superior teriam podido dècifrá-la e utilizá-la.
Vejamos uma outra forma de preconceitos.
Os pequeninos que escreviam infatigavelmente eram
uma realidade que centenas e milhares de pessoas podiam
constatar. Muitas pessoas puderam se convencer de quo as
letras do alfabeto eram simplesmente ali colocadas, isol.i.l
e nenhum professor fazia esforços para ensinar a escrs

22
As crianças, isto sim, faziam evidentemente esses progressos
por si mesmas.
I Qualquer um podia pensar então que todo segredo con­
\ sistia em haver feito das letras do alfabeto objetos isolados
e móveiá. Que descoberta simples e genial! Por que —
diziam muitos com mágoa — por que eu não pensei nisso
antes? Mas, disse alguém, não é, de fato, uma descoberta.
Já na Antigüidade Quintiliano usou um alfabeto móvel deste
gênero. E assim, caso eu tivesse querido aparecer como uma
genial inventora, seria desmascarada.
Ê curioso entretanto constatar a inércia mental, assim
difusa, que se fixava somente no objeto externo, sem ver
a possibilidade de encontrar algum novo fato psicológico que
considerasse a criança. Uma verdadeira barreira mental
comum a todos, cultos e incultos.
Todavia, era simples pensar: Se a História recorda ainda
o alfabeto móvel de Quintiliano, deveria recordar ainda mais
as realizações a ele devidas.
Será que pessoas entusiasmadas, cheias de alegria, per­
correram as ruas de Roma carregando letras do alfabeto
como se carregassem bandeiras? A população, através da­
quele mágico contato, aprendeu a escrever por si só, sendo
«s ruas de Roma e as paredes das casas recobertas de
palavras escritas? Todos aprenderam a ler sozinhos, não só
Mi ui romanas, mas também as gregas?...
A História haveria por certo registrado esse fato impo­
nente mas. ao contrário, recorda somente as letras móveis,
líítfto não são as letras que têm um influxo mágico; a magia
filo estú nas letras mas sim na psicologia da criança. Nin-
jfUém atf» agora chegou a admitir isso.
Âquelei preconceitos de não crer no extraordinário, a
¥§F§BíihM *1« mostrar-se crédulo para quem quer manter sua
dfiíiidade r superioridade cultural é comum e é um dos
que escondem o novo e inutilizam uma descoberta.
t Ijhh <!* '•coberta deve ter sempre algo novo e a coisa
ffêãp A lima porta aberta para aqueles que têm coragem de
ttm« porta que dá acesso a campos ainda inexplo-
l«fÍPS| um« |H*11M lüntéBtica, maravilhosa, que deveria atingir
a jo if ig j í i í i y i t j ,
Ôü homens de cultura superior são os que deveriam
m t Ê i m m , tornar se ob exploradores destes campos,
uma Ikmmhiu mental e emocional impedindo as
mjE já i».»iir-«iMii o gosto pelos contos de fadas da
ij sgiirto ram giauutiur uma exceção para esta regra.
Já o famoso banquete de Vangelo exprime este fato eterno,
simbolicamente: é necessário um certo grau de simplicidade
e de pobreza para entrar em novos reinos.
Uma história pitoresca que se refere a este fato é encon­
trada nos milagres dos cavalos de Elbefld, os quais se expri­
miam por meio de um alfabeto e faziam cálculos matemá­
ticos. O público afluiu, gente comum e também cientistas.
Mas o Dr. Pfungst, aluno do laboratório de psicologia de
Berlim emitiu sua opinião: “Os experimentos com cavalos
eram causados por terem sido adestrados e não pela suposta
inteligência dos mesmos”. Dessa maneira, o interesse desa­
pareceu, os cientistas que estavam interessados se afastaram
e o velho Von Osten que havia feito a descoberta sobre seus
amados cavalos, morreu humilhado. Depois dele, entretanto,
um jovem, Kroll, repetiu as mesmas experiências com os
cavalos de Von Osten e com outros cavalos cujos milagres
psíquicos eram melhores, especialmente para matemática.
Desta vez os cientistas tiveram coragem e muitos deles
aceitaram o fato, mas por não poder explicá-lo, o colocaram
no campo da psicologia. Assim fizeram Kraemer, Ziegler de
Stoccarda, o professor Beredka, do Instituto Pasteur, o
Dr. Claparède, da Universidade de Genebra, Freudenberg,
de Bruxelas, e muitos outros.
É necessário notar que se tratava de cavalos. Com rela­
ção à criança existe um maior número de preconceitos
acumulados e de interesses práticos, sobretudo o interesse
de defender a criança dos esforços mentais e dos precoces
trabalhos intelectuais. As crianças são para todos, seres va­
zios, às quais convém somente os jogos, o sono e os contos
fantásticos; um trabalho mental sério para tão delicadas
criaturas parece sacrilégio. Ainda mais depois das insistentes
publicações da senhora Bühler, mulher de um conhecido
psicólogo de Viena e pessoa de alto relevo na psicologia
experimental. A Sra. Bühler chegou à conclusão de que as
faculdades mentais das crianças, antes dos cinco- anos, são
absolutamente negativas para toda forma de cultura. Dessa
maneira, foi ela a mensageira, em nome da ciência, de um
abafamento em nossas experiências, sendo estas atribuídas
unicamente a um método de educação incerto e discutível.
Então começaram as críticas; foi dito primeiramente
que não era necessário sacrificar a vida mental dos peque­
ninos para obter resultados inúteis porque um pouco mtiw
tarde, depois dos seis anos de idade, todos podem aprendei

24
a ler e a escrever e se sabe com quanto esforço e sacrifício.
Ê preciso afastar a primeira infância do trabalho penoso
do estudo! Cleparède, grande autoridade em pedagogia, des­
creveu por conta da New Education Fellowship os males
que atingem os escolares por causa do estudo na escola!
Ê verdade, disse Claparède, que estudar é uma necessidade
da nossa civilização, mas se o estudar produz nas crianças
um mal é preciso prejudicar o menos possível! Dessa ma­
neira as escolas novas procuraram eliminar e pouco a pouco
conseguiram que fossem eliminados dos programas muitos
estudos não necessários, como a geometria, a gramática,
muitas partes da matemática etc., substituindo-os pelos jogos
ao ar livre.
O mundo oficial da educação diante disso, separou-se
do nosso trabalho. Quanto aos professores que aprenderam
conosco, eram principalmente pessoas dedicadas à educação
nas creches* froebelianas, e unindo os jogos de Froebel com
o nosso material científico de desenvolvimento mental che­
garam à conclusão de que todos os dois eram bons, podendo
ser usados cm conjunto desde que não fosse introduzido o
alfabeto, a escrita ou matemática nas escolas das crianças
de tenra idade.
Foram, pois, os professores das classes elementares que
tentaram a experiência com o alfabeto, não chegando a
provocar nenhum entusiasmo, nenhuma explosão. Restou
somente nas escolas comuns um modo mais livre de estudar
e de dar ocupação individual e objetiva.
O milagre foi oficialmente desmentido, não chegando a
interessar à psicologia moderna. Ficou para mim o trabalho
<1e indagar cs segredos da psicologia infantil revelados nessa
e xperiência, porque ninguém melhor do que eu podia isolar
a.jueles fatos reais da influência educativa que o pudessem
te» provocado. Era evidente para mim que alguma energia,
particular fri crianças daquela idade, se manifestava e por­
tanto existia.
Me rímo que a experiência ficasse limitada somente àquele
primeiro grupo de crianças, o fato representava a descoberta
>iê pofleies que permaneciam ocultos na psique infantil.
Oalvani não pensou que fosse um milagre quando viu
movei «*# urna rã morta que estava na balaustrada de sua
jciHêlá Hfi houvesse pensado que se tratava de um milagre
dê Fêgayrrêiçiio ou de uma ilusão ótica, estaria dissipada
«qugiã t ut iosidada insistente de sua inteligência indagadora,
i s # >i iiioita se* move, então deve haver uma energia que

25
a faz mover-se, e desta forma foi descoberta a eletri­
cidade.
A manifestação da eletricidade e suas aplicações esta­
vam distantes daquele fenômeno revelador,
Mas se alguém quisesse literalmente repetir a experiên­
cia, para prová-la, não obteria o milagre e acreditaria ter
sido uma ilusão indigna de entrar para o campo da ciência.

Revelações anteriores

As nossas crianças não foram as primeiras a revelarem


energias psíquicas que permanecem geralmente escondidas,
mas foram as mais jovens. Aconteceram revelações anterio­
res com crianças de idade muito mais avançada, isto é, de
mais de sete anos.
A história da pedagogia conta os milagres da Escola
Stanz de Pestalozzi. De repente, seus alunos começaram n
ter progressos imprevistos. As crianças faziam coisas supe
riores à sua idade; alguns tiveram em matemática progresso-
tais que fizeram com que os pais brassem os filhos da escol >
psstalozziana, temendo que estes se fatigassem mentalmentr
Pestalozzi, descrevendo o trabalho espontâneo, infatigável,
seguido de prodigiosos progressos, faz uma confissão eloqüen
te do fato, pois para ele eram estranhos aqueles fenômenos
maravilhosos: Eu era somente um estupefato espectador.
Depois, a chama se apagou sob a benevolência e os
cuidados afetuosos de Pestalozzi e tudo voltou à normali­
dade. É bastante interessante saber o que pensaram seus
admiradores, especialmente os suíços que se orgulhavam de­
le. Todos julgaram o fenômeno de Stanz como um período de
loucura de seu herói e ficaram felizes por ter ele voltado a
fazer um trabalho sério.
Assim, a pedagogia triunfou, sepultando uma revelação
de ordem psicológica.
Tolstói também descreve algo semelhante ocorrido com
os pequenos camponeses que e*le educava com muito entusias­
mo e carinho na Escola de Isnaia Poliana. De repente as cri­
anças se apaixonaram pelas leituras bíblicas, indo à escola pe­
la manhã, mais cedo que de costume, para, por si só, lerem in­
fatigavelmente, mostrando uma alergia que nunca havia se ma­
nifestado antes. Também aqui Tolstói conseguiu um “retorno à
normalidade”.
Quantos fatos semelhantes devem ter acontecido duran­
te a vida de crianças que não conhecemos, por não estarem

26
m
*

perto de alguém que pudesse imortalizá-los na história da


pedagogia!

II — Forma mental da Infância

Existe então uma energia interior que por si mesma


tende a manifestar-se, mas que permanece sepulta sob as
barreiras dos preconceitos universais. É uma forma mental
da infância que nunca foi reconhecida.
Era, de fato, uma forma mental, e não só o fenômeno
explosivo da escrita, que se revelou nas minhas crianças da
primeira escola de S. Lorenzo.
Acontecia que, ditando a elas palavras muito longas e
também em língua estrangeira, elas as reproduziam foneti­
camente com o alfabeto móvel, mesmo tendo-as ouvido pro­
nunciar somente uma vez. Todos os que têm lido meus livios
conhecem esses fenômenos. Ditávamos, por exemplo, pala­
vras como Darmstadt, Sangiaccato di Novi Bazar, precipi-
tevolissimevolmente, etc.
O que era aquilo que fixava na mente das crianças
aquelas palavras complicadas, de modo que elas pareciam
Aprisionadas na mente com tal segurança como se tivessem
sido esculpidas? E o mais maravilhoso era a calma e a sim­
plicidade das crianças, como se não estivessem fazendo
imnhum esforço. É bom esclarecer que elas não escreviam
U&ando um lápis, mas deviam pegar cada letra nas diversas
i ^partições do alfabetário. A procura não é fácil. Procurar
h letra, apoderar-se dela, colocá-la ao lado de outras letras
Já depositadas a fim de completar a palavra, haveria dis-
tiâído a atenção de qualquer um de nós.
ICste fato maravilhou especialmente os técnicos de edu-
fa çlo comum, porque sabemos o quanto é difícil o ditado
nus PHColas elementares, sabemos quantas vezes uma boa
piotesNora deve repetir a palavra para que a criança a escre­
va, mesmo quando a criança tem oito ou mais anos de
idade, () motivo é que a criança, enquanto escreve se esquece.'
g pm lano, nos primeiros tempos, os ditados são somente
«1ê palavra* curtas e conhecidas.
Hftordemos um fato pitoresco acontecido com o inspe­
tor Di Drmoto quando veio visitar a escola, com aspecto
corno um homem bem precavido contra as possíveis
fidiiiííi aro««, Não quis ditar palavras longas e difíceis sob
3i qnsla podiêl «*conder-8e um truque. Ditou simplesmente
ü y nsm i, Dl Donato, a uma criança de quatro anos. Esta

27
evidentemente não compreendeu bem a pronúncia, compre­
endeu Ditonato e colocou como terceira letra um T. O inspe­
tor, devotado a seus métodos educativos, corrigiu rapida­
mente repetindo mais claramente seu nome: Di Donato.
O menino não se confundiu, para ele é claro que não se
tratava de correção de erro e sim de não haver ouvido bem.
Pegou o t, e em vez de colocá-lo na repartição do alfabe-
tário, deixou-o de lado sobre sua mesa. Compôs com tran-
qüilidade o nome e quando chegou ao fim utilizou o t que
havia deixado de lado. Então, o nome estava todo impresso
em sua mente e a interrupção não trouxe nenhuma dificul­
dade. Ele sabia desde o começo que precisava de um' t para
completar o nome. Foi isto que impressionou vivamente o
inspetor. O erro foi a mais eloquente prova da verdade.
Confesso que não acreditava neste fato surpreendente mas
agora estou convencido. Devo dizer: Incrível, mas verdar
deiro! Depois sem pensar em louvar a criança como havia
pensado em corrigi-la, disse-me: Congratulo-me com a se­
nhora! É realmente um método notável. Ê necessário aplicá-
o nas escolas. Eis que, para um técnico de educação, podia
existir somente um método melhor ou pior. O fato psicoló­
gico permanecia estranho. A barreira de preconceitos de um
educador tornava impossível a compreensão do fenômeno.
Com os métodos comuns — disse — nem mesmo uma
criança de nove anos poderia fazer o mesmo. O cumprimento
era dirigido a mim.
Todavia tratava-se de uma questão de memória. A idéia
de que pudesse existir uma forma de memória diferente
daquela das crianças maiores era inconcebível. A criança
pequena devia ter uma memória mais fraca que a das cri­
anças mais velhas.
Mas o que havia na memória dos pequeninos? Eviden­
temente a palavra estava esculpida em sua mente com todos
os detalhes dos sons que a compunham e numa ordem exata.
A palavra se imprimia, permanecendo inteira na mente e
nada podia cancelá-la. Aquela memória tinha uma qualidade
diferente: colocava na mente uma espécie de visão e a
criança copiava com segurança aquela visão clara e fixa.

A M NEM E

Poderá haver também uma memória diferente da nossa


mente consciente e desenvolvida?

28
Quando hoje os psicólogos modernos consideraram uma
outra forma de memória no inconsciente, que pode fixar-se
também através das gerações, reproduzindo exatamente ca­
racterísticas da espécie, quiseram dar-lhe um outro nome:
Mneme.
A Mneme, nas suas infinitas gradações, baseia-se nos
próprios fatos da vida e da eternidade. Após esta consta­
tação, poder-se-ia reconhecer, na mente da criança de qua­
tro anos, uma fase de desenvolvimento psíquico na qual a
mneme está propriamente no limear da memória consciente,
quase a confundir-se com esta, manifestando-se, todavia
como a última característica de um fenômeno que tem pro­
fundas raízes.
Aquele último indício da mneme vinha de muito longe
e estava ligado às forças criadoras da linguagem. A lingua­
gem materna já estava formada no inconsciente, e com pro­
cedimentos diferentes dos da mente consciente. Esta é a
linguagem que se fixa na personalidade como uma caracte­
rística da raça e que é diferente das línguas estrangeiras
que podem ser adquiridas com a ajuda da memória consci­
ente: linguagens sempre imperfeitas, que são mantidas so­
mente com exercícios contínuos.
É claro que as letras móveis representavam um objeto
relacionado aos sons fixados na mente da criança e provo­
cavam a linguagem tangível no mundo externo. O interesse
demonstrado pela escrita provinha de dentro; era ainda
vibrante uma sensibilidade criativa, como aquela destinada
pela natureza para fixar a linguagem falada no homem e
era esta sensibilidade que despertava o entusiasmo pelo
alfabeto.
O alfabeto italiano tem somente vinte e um sons e com
ejp-B podem ser compostas todas as palavras, infinitas, a
ponto de não ser possível contê-las em um volumoso dicio­
nário. F.ssnn vinte e uma letras eram, pois, suficientes para
tppiesentar o patrimônio de palavras que a criança havia
à iumulado durante o seu desenvolvimento; para fazer ex-
piodii, íjuatie de improviso, toda a linguagem acumulada e
sufi» iente para a criança viver com entusiasmo o seu mi-
IfiffOi

A D ISCIPLIN A

Etaiuineino* outros sérios preconceitos que foram gran-


d«# ubstéml«» pai« a compreensão do nosso trabalho.

29
Recordemo-nos das questões sobre disciplina e veremos
o fenômeno estupendo apresentado por aquelas crianças
que, deixadas livres para escolher suas ocupações, para
fazer sem perturbação seus exercícios, ficavam em ordem
e silenciosas.
Eram capazes de permanecer assim todo o tempo, até
mesmo quando a professora estava ausente. A conduta co­
letiva de harmonia social e a qualidade de suas caracterís­
ticas, sem inveja, sem competição, levavam, em vez disso,
a ajudas recíprocas e causavam admiração. Elas eram aman­
tes do silêncio e o procuravam como a um verdadeiro prazer.
A obediência desenvolvia-se em sucessivos graus de perfei­
ção, levando finalmente a uma obediência feita com prazer,
dir-se-ia, com ansiedade de obedecer muito semelhante a
dos cães, quando seu dono arremessa longe um objeío para
que ele lhe traga de volta. Para obter este estranho fenô­
meno a professora não contribuía ativamente, pois ele não
era conseqüência direta da educação e por isso, não havia
ensinamentos nem exortações, nem prêmios nem castigos,
tudo acontecia espontaneamente.
Portanto, este fato inusitado devia ter alguma causa,
ser produto de alguma influência. Aos que me solicitavam
explicação, eu podia somente responder: Ê a liberdade; da
mesma forma que para a explosão da escrita eu havia res­
pondido: É o alfabeto móvel.
Recordo que um Ministro de Estado, sem excessiva
observação ao fato da espontaneidade, disse-me: A Senhora
resolveu um grande problema: soube reunir disciplina e
liberdade. Este não é um problema que diz respeito à admi­
nistração da escola, ê um problema que diz respeito à
administração das nações.
Evidentemente, também neste caso. estava subentendi­
do que eu tivesse o poder de obter tais resultados. Eu havia
resolvido um problema. Era mesmo impossível, dada a men­
talidade das pessoas, conceber esta outra idéia: Na natureza
das crianças pode advir a solução de um problema insolúvel
para nós, deles vêm a fusão das coisas que para nós são
contrastantes. Seria justo dizer: Estudemos também estes
fenômenos! Trabalhemos juntos para penetrar nos segredos
da psique humana! Mas, que do interior da alma infantil,
pudéssemos tirar qualquer coisa de novo, útil para todos nós,
oualauer luz sobre fatos obscuros da conduta humana, isto
não era compreensível.
É interessante recordar as opiniões e as críticas que

30
vinham de toda parte: dos filósofos como dos pedagogos e
das pessoas comuns.
Alguns destes últimos simplesmente me julgavam uma
inconsciente: Vós não sabeis o que haveis íeito e não vos
apercebeis de haver concluído uma érande obra! Outros
diziam como se o fato fosse uma espécie de exposição fantás­
tica ou um sonho que eu houvesse formado: Como pode ser
desta maneira otimista com relação à natureza humana?
Mas a grande luta, que não é mais interrompida, é derivada
dos filósofos e dos religiosos, os quais atribuíam os fatos,
que tantas centenas de pessoas haviam constatado, a opiniões
minhas. Era para alguns uma seguidora de Rousseau, con­
cordando com ele em acreditar que tudo no homem é bom,
mas tudo se destrói no contato com a sociedade e, havia
colocado na escola uma espécie de romance, como Rousseau
o havia colocado em um livro.
Todavia, discutindo comigo, não se revelava nenhuma
explicação clara ou convincente; uma pessoa conhecida es­
creveu num jornal muito sério: A Montessori é uma pobre
lilósofa. Padres religiosos achavam-me quase contra a fé e
muitos chegaram-se a mim para explicar o fato do pecado
Ktiglnal. Podem imaginar o que deveriam pensar os calvi-
nlsífiH, ou, em geral, os protestantes convictos, da maldade
iíiili do homem!
Ademais eram outros os princípios da filosofia relati-
ttgg è natureza da alma humana que vinham ofender tam-
Mm õ» princípios da técnica da educação escolar. Falava-se
tjn J£6U ensinamento como de um método apriorístico, o qual
! >n prêmios e castigos, propondo-se a obter a discipli-
íffp eites recursos práticos. Julgaram-no um “absurdo”
a também uma contradição quanto às experiências
}-■ »• Ifi-iS universais e ainda um sacrilégio porque é dito que
f l i y i pNMidn os bons e castiga os maus, e este é o mais real
«HitfHitÁ. tilo da moral.
■ ÜiHiVt até um grupo de mestres ingleses que fizeram um
públido declarando que, se fossem abolidos os casti-
|p| gtei ief inm demitidos de seus ofícios porque não pode-
tfiuèer ipm castigos.
t »t»| O® castigos! Não ocorreu-me que fosse uma institui-
ibí Índipengável, dominante na vida de toda a humanidade
« lifltilí Todíit ui homens crescem sob esta humilhação.
iafefi n castigo foi feita investigação da Liga das Nações,
igt Ciífiêhtt; e 0 Inst ituto J. J. Rousseau organizou uma pes-
!rtW Education Fellowship. Foi perguntado

31
aos institutos de educação e a particulares “que espécie de caa
tigos eles usavam para educar as crianças”. É curioso que, ao
■ invés de se ofenderem por uma investigação indiscreta, todos
se apressaram em dar suas informações e alguns institutos pa»
reciam orgulhosos de seu modo de castigar.
Alguns, por exemplo, disseram que era proibido o cas­
tigo imediato, para que não fosse dado sob sentimentos d«
ira; mas o castigo era deligentemente dado no fim de sema­
na, no sábado de repouso, quando se aplicava friamente «
dose de castigo merecida durante toda a semana. Algumas
famílias disseram: “Nós não somos violentos. Quando a cri­
ança faz alguma coisa errada, a mandamos para a cama sem
jantar”. Não há dúvida que o castigo violento estava em gran­
de voga: bofetões, pauladas, insultos, encerramento, terríveis
sustos imaginários. A lista conseguida pela Liga das Nações
no nospo século era a continuação da sabedoria de Salomão:
“Aquele que não usa o bastão com seu filho é um mau pai,
porque condena o filho ao inferno”.
Eu pude comprar em Londres os açoites, que se vendiam
em grande quantidade e eram usados ainda pelos mestres, se
bem que tal uso viesse do passado.
A necessidade destes “meios indispensáveis” para a edu­
cação demonstra que a vida das crianças não foi e não é de­
mocrática, nem a dignidade humana é respeitada.
Desde a Antigüidade está levantada uma barreira mais
no coração do que na mente do adulto: as forças interiores
da criança não são vistas pelo lado intelectual nem pelo mo­
ral.
Nas minhas experiências, as revelações destas obscuras
forças interiores haviam eliminado os castigos. Mas tudo isto
surgiu tão rapidamente que, permanecia incompreensível e
provocara escândalo.
Deixe-me fazer um paralelo ilustrativo: quando se indi­
ca um objeto a um cão, apontando com o indicador a dire­
ção, para que vá buscá-lo, o cão olha fixamente para o indi­
cador e não para o objeto indicado. Seria mais fácil que o
cão mordesse aquele dedo do que compreender e andar na
direção em que está o objeto.
A barreira dos preconceitos agia do mesmo modo, as pes­
soas viam em mim aquele dedo indicador e terminavam por
mordê-lo.
Parecia impossível aceitar simplesmente os fatos eviden­
tes. Deviam ser obra de qualquer pessoa que os houvesse pro­
duzido ou os houvesse imaginado.

32
%

l'-tf isso nós falamos de um ponto cego no coração do


h Sm 4Ui, contudo, sabe tão bem compreender, análogo ao
f ^ . ego no fundo da retina que é o órgão que vê todas as
: • misai, A visão moral da criança caía “o ponto cego”
-í = . 'Oíurto, cala numa barreira de gelo.
K hdamoa de uma “página” na história da humanidade,
tem g, g página que não foi escrita, aquela que se refere à
p fë fifls
Nns volumes colossais e inumeráveis da história da hu-
mãíiiílid# nunca figura a criança e essa nunca foi levada em
míita na política, na estrutura social, na guerra, ou na re-
enfiiirUÇÔO.
O adulto fala como se somente existissem os adultos. A
t •laiita faz parte da vida privada e é um objeto que suscita
õç. ejpg sacrifícios por parte dos adultos merecendo castigo
qUSfldo os perturba. Sonhando com um Paraíso Terrestre no
inundo futuro, uma nova sociedade melhorada, vê somente
a .í í í >
( Kva e a serpente. No Paraíso Terrestre não está a
g iânça.
a .junies que podem levar uma ajuda, uma luz, um ensi-
uma nova visão para a solução dos problemas inex-
fiil* Aveis, nfio penetraram ainda hoje, na mentalidade social,
li ate -is próprios psicólogos não encontraram uma porta aber­
ta para |>enetrar no subconsciente que estão procurando des­
abite m decifrar só através dos males do homem adulto.

ORDEM E BONDADE

Para vencer as barreiras morais seria simples observar-


éiius b disciplina espontânea e a conduta social das crianças
fio inHtHvilhosamente delicada, segura e perfeita.
Quando observamos as estrelas que brilham no firma­
mento, e fiéis em seguir uma trajetória tão misteriosa na pos­
sibilidade de sustentar-se, nós não pensamos: “Oh!, como são
buas bs estrelas” . Dizemos: “Como é maravilhosa a ordem da
Cfiaçlo".
Na conduta das nossas crianças era evidente uma forma
ti0 nrrfam da natureza.
Ordem não quer dizer necessariamente bondade. Istò não
demonstra que o homem “nasce bom” nem que “nasce mau” .
Demonstra somente que a natureza,* no seu processo de cons­
truir o homem, passa através de uma ordem estabelecida. A
ordem não é bondade mas talvez seja o caminho indispensá­
vel para alcançá-la.

33
Até mesmo na organização social externa deverá haver
uma ordem como fundamento. As leis sociais que regem os
cidadãos, a polícia que os controla, são necessárias para obter
o enganjamento social; e mesmo os governos maus, injustos
e cruéis, que levam à guerra, que é o pior feito e o mais desu­
mano, baseiam-se na disciplina e na obediência dos soldados.
A bondade de um governo e sua disciplina são coisas dife­
rentes. Também na escola, sem obter a disciplina dos alunos,
a instrução não poderá progredir, contudo, podem haver for­
mas de educação boas e más. Na minha experiência, a ordem
entre as crianças era proveniente da misteriosa e oculta dire­
tiva interna, que só podia se manifestar através da liberdade.
Para conseguir aquela liberdade seria necessário que
ninguém interferisse para impedir a atividade espontânea das
crianças, num ambiente preparado, que satisfizesse sua ne­
cessidade de desenvolvimento.
Antes de chegar a ser “bom” é necessário entrar “na or­
dem das leis da natureza”. Depois deste plano é possível ele­
var-se e ascender em uma “supernatureza” onde é necessária
a cooperação da consciência.
E quanto ao mau, à “maldade” , é portanto necessário
distinguir a “desordem” da decadência em planos morais in­
feriores. Ser “desordenado” com respeito às leis naturais que
dirige o desenvolvimento normal das crianças não é necessa­
riamente ser “mau”. De fato, os ingleses usam termos dife­
rentes para a maldade das crianças e para a dos adultos: cha­
mam à primeira nauéhtiness e à segunda evil ou banciness.
Agora, podemos dizer com segurança: nauéhtiness infan­
til é uma “desordem” com respeito às leis naturais da vida
psíquica em via de construção, não sendo, portanto, maldade,
mas comprometendo a normalidade futura no funcionamento
psíquico do indivíduo.

SAÜDE E DEVASTAÇÃO

Se, ao invés de “normalidade”, disséssemos “saúde”, isto


é, saúde psíquica das crianças durante o crescimento, então
a coisa tornar-se-ia mais clara, porque faria pensar num fato
análogo às funções do corpo. Dizemos que um corpo é sadio
quando todos os órgãos funcionam normalmente e isto é co­
mum a todos os homens, tanto aos robustos como aos delica­
dos ou de diferentes caracteres físicos. Mas, se qualquer órgão
não funciona bem, se há neles “doenças funcionais”, que não

34
%

são lesões, isto é, doenças orgânicas, e sim somente funciona­


mentos anormais, estas doenças funcionais podem ser corrigi­
das com tratamentos higiênicos, exercícios e similares.
Coloquemos o quadro no campo psíquico. Se são as fun­
ções que podem ser alteradas elas não dependem das carac­
terísticas das raças ou de uma forma individual, de um ego
predestinado a grandes ou miseráveis coisas da vida. Tanto o
gênio quanto o mais comum1 dos indivíduos deve ter certas
funções estabilizadas “normalmente” , deve ser psiquicamente
sadio.
As crianças comumente conhecidas (instáveis, preguiço­
sas, desordenadas, violentas, teimosas, desobedientes etc. . . ),
são “funcionalmente doentes” e podem sarar, seguindo uma
forma higiênica de vida psíquica, isto é, podem “normalizar-
se” , parecendo então com estas crianças disciplinadas que se
revelaram a princípio, trazendo tanta surpresa. Nessa normali-
ziição, as crianças não parecem “obedientes a um professor que
«» instruí e as corrige” , mas encontram ajuda nas leis da na­
tureza, istó é, voltam a funcionar normalmente e assim podem
i pvolnr ao exterior aquela espécie de fisiologia que, como para
o corpo, tem lugar dentro, no labirinto complicado dos órgãos
cia alma.
Isto que se chama “Método Montessori” gira em torno
dã«s« ponto essencial.
Podemos dizer com segurança, através de 40 anos de ex-
|}giiânrin, através de provas repetidas em todas as raças, em
tmtna na países do mundo: a disciplina espontânea foi a base
dê todo* os assombrosos resultados, como a explosão da es­
trita # tantos outros progressos que se manifestaram em se­
guida fi: necessário obter primeiro o “funcionamento normal” ,
,= eàlàdu dn «aúde que chamamos “normalização”.
Assim como um homem doente necessita primeiro sarar
para podêt produzir segundo as possibilidades que existem
flt!$ p©f natureza, também é preciso que a criança primeiro
Ss# normalize" para poder progredir.
Aqui!«' que m psicanalistas procuram fazer é “normalizar”
m adultos nua encontram tanta dificuldade no agir, no rea-
pftipsi propéfitoe sociais.
O que se ieiitn nas clínicas das crianças difíceis é colocar
gin Odsris Itettiiil «uns funções.
Ofá, «UfMiiltAinoe que um método de educação reconhe-
■ é SMewário “normalizar” desde o princípio, e depois
§§i tfiç vista a tmriínuíição deste estado de normalidade. Este

35
método terá como fundamento uma espécie de “higiene psíca”
que auxilia o homem a crescer com boa saúde mental.
Isto não diz respeito à teoria filosófica sobre a natureza
boa ou má dos homens e tampouco a outras idéias abstratas
sobre o que seja o “homem normal” , mas é um fato prático
que se pode tornar universal.

A BASE DO CRESCIM ENTO

A coisa é muito clara. O impulso subsconsciente na ida­


de do crescimento. Isto só pode dar a máxima felicidade às
crianças e impulsioná-las ao máximo esforço para alcançá-lo.
Pode-se dizer que a idade infantil é uma idade de “vida in­
terior” que conduz ao engrandecimento, à perfeição; e o mun­
do externo tem valores somente enquanto oferece meios ne­
cessários para atingir o fim da natureza. Por isso, a criança não
deseja nada mais que as coisas que se adaptam às suas neces­
sidades, e as usam só com as finalidades que reconhecem como
úteis ao seus objetivos. Como a criança não inveja o garoto
maior que ela, também não deseja as coisas que pelo momen­
to lhe pareçam inúteis.
Este é o motivo daquela atitude pacífica e alegre da cri­
ança que, num ambiente favorável escolhe os seus materiais
e as suas ocupações.
A criança mais velha não pode inspirar competição ao
mais novo, mas, ao contrário, admiração e devoção vendo nele
o quadro de seu próprio triunfo, o que é seguro, porque a crian­
ça crescerá, se não morrer. Os meninos maiores não desper­
tam inveja pelo fato de serem maiores. Por isso não são mani­
festados aqueles sentimentos que poderiam ser chamados
“maus”. As nauéhtiness dos pequeninos são manifestações de
defesa ou de inconsciente desesperação, por não poder “fun­
cionar” naquele tempo do qual depende todo o futuro e no
qual cada hora traz um progresso, ou as nauéhtiness são as agi­
tações que provêm da fome mental, afastada dos estímulos do
ambiente, ou das degradações diante da impossibilidade d©
agir. Então, o “fim inconsciente” que se distancia das suas rea­
lizações leva uma espécie de inferno na vida da criança. Ê
a separação da fonte condutora das energias criativas.
Só mais tarde, quando o tempo útil para “formar o pri­
meiro esboço do homem” está terminado, e a criança que teve

36
%
mais ou menos sucesso em realizar os projetos da vida, come­
ça a ter interesse nas coisas externas, podendo vir a ter então
inveja pelo sucesso dos outros. A coisa então é diferente e
pode-se conceber um julgamento de “bondade’' ou de “malda­
de” , isto é, de defeitos de ordem moral contra a sociedade,
que podem justificar a intervenção corretiva da educação.

EDUCAÇÃO D ILA TA D O R A

Ainda neste ponto o conceito que se tem* de corrigir, su­


primindo diretamente os defeitos, é errado. Corrige-se somen­
te “dilatando” , dando espaço, dando meios para a expansão
da personalidade, suscitando interesses mais distantes daque­
les de um outro indivíduo, que somente está se empobrecen­
do ao nosso lado.
Apenas os pobres disputam um pedaço de pão. Os ricos
buo atraídos pelas possibilidades que se oferecem em seu mun­
do. A inveja e a competição são sinais de “restrito desenvol­
vimento mental” , de visão limitada.
Aquele que tem a visão de um “Paraíso” para conquis­
tar nfio se contentará nem com toda a terra e renunciará fa­
cilmente aos bens limitados. ,
Analogamente, pode-se dizer de uma educação que “en­
grandece” e leva mais longe os interesses imediatos que estão
limitados no desconhecido. É a limitação de algo que se vai
ttmquistar, que desperta a inveja e a luta, mas um vasto es-
pggoi Irva a outros sentimentos, e são os sentimentos que apai-
«nimiu e por isso conduzem verdadeiramente os homens em
fÜFifio ao progresso.
1 ÍPSfiH maneira, uma educação de “vastidão” é a plata-
r.Mt.m iohro a qual podemos dissipar certos defeitos morais.
"Itttgt amlrrpT o mundo” no qual se enfranquece hoje a crian­
ç a dèvp ter o primeiro passo da educação. “Libertá-lo das
Ü Éiias que o impedem de avançar” é a técnica fundamen­
t a ‘'Multiplicar para seu rendimento os motivos de interesse
UH# ÜltiifhÇBm mais profundamente as tendências sepultas no
gitrffíU» Convidar a conquistar no ilimitado, mais que repri-
piif o# flisejo» de possuir aquilo que possuem os vizinhos” ,
jgi §utíie psan plano aberto às possibilidades, que se pode e
££ ensinar o respeito às leis externas, estabelecidas por
gsyglg nutra potência natural que é a sociedade dos homens.
E n f i m , « quuitlo moral e também de bondade pode ser
BlgitiFitlft ÜBiente quando a formação da “criança pequena”

37
está superada, sendo então possível discutir os problemas da
filosofia. Mas esses se dirigem antes à grandeza transcedente:
44a obtenção de Deus” , a idéia elevada do mundo e do destino
individual. De fato, aqueles que querem lutar contra o “pe­
cado original” o fazem dirigindo os homens para a grandeza
da redenção.

II — PR ECO N CEITOS SOBRE A CRIANÇA


NA CIÊN CIA E NA EDUCAÇÃO

A AQUISIÇÃO D A CU LTU RA

Na nossa escola, onde está progredindo esta experiência


educativa, são manifestadas praticamente as tendências natu­
rais de “estender” a cultura e “engrandecer” o “conhecimen­
to”. Parece ser este o caminho natural. Os problemas do en­
sino se invertem: parece que o problema prático do professor
não é mais aquele de dar conhecimentos em limites estabele­
cidos, mas sim, o de “entreter” e o de “dirigir” como fazem os
domadores de cavalos espertos e jovens. Ocorre desta maneira
uma ajuda para entreter e conduzir que não frustra para fazer
avançar.
Também o “modo”* de transmitir a cultura se apresenta
diferente. A técnica do ensinamento nas escolas comuns tinha
como forma uma lenta e sucessiva progressão entre supostas
dificuldades classificadas em precedência. Ao invés disso, as
crianças, deixadas livres no ambiente, têm mostrado técnicas
originais, que não havíamos jamais suspeitado.
A criança aprende realmente por si só quando pode exer­
citar suas próprias energias segundo procedimentos mentais
da natureza, que agem algumas vezes de modo bem diferente
do que se supõe comumente, sendo por isso errados e falhos
os procedimentos em uso nas escolas comuns. O aluno pode
dar surpreendentes resultados só se o mestre aplicar a técnica
científica de uçna “intervenção indireta” para ajudar o desen­
volvimento natural da criança.
Os progressos precoces e extensos da cultura, que se têm
revelado em nossas crianças e que causaram tanta admiração
e tanta oposição por mal-entendidos e incompreensões, par­
tem sempre de um princípio que se refere à psicologia da
criança, isto é, que ela aprende por atividade própria, assu­
mindo a cultura do “ambiente” e não a do professor; não só,
mas (como agora pode-se claramente demonstrar) colocando
também em ação os poderes do subconsciente que permane­

38
cem livres de absorver, como de exprimir-se segundo os pro­
cedimentos naturais da mente absorvente.
Dir-se-á que também o professor faz parte do ambiente
e, de fato é que a criança não pode aprender assim, como se
acredita, só peia obra de um professor que lhe explica as coi­
sas mesmo que seja o melhor e mais perfeito de todos os mes­
tres. A criança, ainda aprendendo, segue as leis interiores de
formação mental e há um intercâmbio direto entre o ambiente
e a criança, enquanto que o professor com suas ofertas de in­
teresses e suas iniciações, constitui em primeiro lugar um tra­
ço de união.
Pode-se observar melhor a aprendizagem quando as ex­
periências são intensificadas e determinadas com o propósito
de conhecer intimamente estes fenômenos. Pode-se constatar
em muitas crianças colocadas em condições adequadas, uma
paixão pela matemática, pelos grandes números, pelas gran­
des operações aritméticas, como também pelos cálculos de ní­
vel muito superior, como o estudo das potências dos números,
a extração da raiz quadrada e cúbica e especialmente pelos
problemas de geometria.
Também é constatada a capacidade de aprender muitas
línguas simultaneamente e de estudar a gramática e o estilo,
í ilo, por exemplo, uma criança de 8 anos na índia que se in­
teressou em ler poemas em língua sânscrita (língua morta) e
traduzindo as histórias védicas do industânico para o inglês,
tmbnt« sua língua materna fosse o gujarati, isto é, um dialeto
hindu. Dessa forma, sua cultura foi estendida através de línguas
vivai a mortas de países estrangeiros.
A tudo isso pode-se acrescentar ainda o interesse pelas
ititiai du natureza, a prodigiosa memória para os nomes e, es-
U atila > Uto, o prazer de aprender as classificações complica-
d#§ das plantas e dos animais: classificações que são muitas
incei 1as e embaraçosas para a memória, e que o órgão
nfit hit glíolíu do programa escolar acreditando ser um esforço
i&Âtil
() tiHmrfüin pelas “classificações” revelou-se através de
af« ifiatÊi iai móvel feito com símbolos; era evidente o prazer
dfe fifül uini ordem mental entre as imagens colocando cada
lifiliU lii tdãdfi em seu lugar. Não era por certo uni exercício
p | Sliínuriiaçif', ma» sim de construção, como o que fazia
ygta erínüçá pequena com a areia molhada. As muitas idéias
y § H ftofttii podei iam sor reunidos em fascinantes construções;

39
assim como com o material de matemática pode-se ordenar e
construir o sistema decimal, reunindo as unidades em hierar­
quias sucessivas tão claras, que a aritmética se apresenta como
uma conseqüência da ordem das unidades. Assim, desta ma­
neira acontece com os fatos históricos que são classificados ao
lado de datas e posição geográfica, construindo na mente um
sistema de fatos culturais no tempo e no espaço.
A natpreza criativa também assim procede. Na constru­
ção da linguagem (língua materna) na criança, esta é, primi-
tivamente, construída pelos sons das palavras e pela gramáti­
ca, isto é, pela ordem na qual a palavra deve estar para ex­
primir o pensamento. Esta é a primeira construção fundamen­
tal que se completa, pouco depois dos dois anos de idade, com
uma quantidade relativamente escassa de palavras. Depois a
linguagem se enriquece espontaneamente com novas palavras,
que encontram uma ordem já estabelecidas para atender a tudo.
O processo adotado, na nossa experiência, sobre cnança
até os nove anos de idade pode estender-se a idades mais
avançadas, podendo-se afirmar que: em todos os graus esco­
lares é necessário não impedir a atividade individual, que, des-,
ta forma, obedece a um “procedimento natural de desenvol­
vimento psíquico”. É verdade que o professor, à medida que
a cultura se eleva, tem um ofíciò sempre mais importante, que
consiste em “estimular o interesse” comumente compreendido
no ensino, porque as crianças, quando se interessam por um
argumento, tendem a permanecer longo tempo, a estudá-lo ou
a prová-lo até que atinjam uma espécie de “maturação” atra­
vés da própria experiência.
Depois disso, tal aquisição está não só garantida, mas
tende a estender-se sempre mais largamente. Agora, o pobre
professor se encontra obrigado a andar além dos limites a que
se havia proposto para os seus ensinamentos. A sua dificulda­
de então não está em ter êxito em “ensinar”, mas no saber
responder à exigência inesperada da parte de seus alunos, e
no dever de ensinar a cada um coisas a que não se havia pro­
posto.
A instrução tende a estender-se por força própria. Mui­
tas vezes, após um longo repouso, uma suspensão de trabalho,
ou imediatamente após o período de férias, os alunos não con­
servam a memória das coisas aprendidas, mas freqüentemente
a cultura se enriquece como por força mágica. Após as férias,
são revelados os poderes de absorver o ambiente mais facil­
mente do que antes.

40
O procedimento da atividade espontânea consiste algu­
mas vezes em um trabalho voluntariamente intensificado e
complicado, que absorve todas as energias mentais por horas
inteiras e até por vários dias consecutivos. Recordo de um me­
nino que queria desenhar um rio, o Reno, tendo em conta to­
dos os afluentes, e para isso deveria buscar os tratados de geo­
grafia em livros não escolares; para seu desenho ele utilizou
uma daquelas cartas milimetradas que são usadas pelos enge­
nheiros em seus desenhos, usando compassos e vários instru­
mentos reunidos com grande paciência no seu intento, Certa-
mente, ninguém teria mais presteza em tal trabalho.
De outra vez vi um jovem que se propôs a executar uma
multiplicação gigantesca de um número de trinta algarismos
por outro de vinte e cinco. Os produtos se acumulavam tanto
qu© o jovem surpreso teve que recorrer ao auxílio de dois com­
panheiros que se ocuparam em colar folhas para conter a ope-
í ação monstruosa no seu enorme desenvolvimento. Depois de
iliiii dias consecutivos de trabalho a multiplicação ainda não
I»avia sido terminada, só terminando no terceiro dia, e os jo-
vatm ©m vez de aborrecidos, pareciam orgulhosos e sastifeitos
du giande trabalho cumprido.
Recordo-me ainda, de quatro ou cinco crianças que se
P? opuseram a executar, em conjunto, a multiplicação algébrica
de {odo o alfabeto por ele mesmo: de fazer o “quadrado do
glfãbêtü", Também desta vez a operação requeria o trabalho
o.uíni wd d© colar sucessivas tiras de papel as quais atingiram
iiiti n uBMimento de cerca de 10 metros.
©a <rubalhos pacientes tinham como efeito tornar a men-
is imãs forte ©ágil, como se faz um pequeno ginástico para o

t m u vez uma criança adquiriu o poder de executar ope-


f!§S#i hsaiHiit© complicadas sobre frações, sem escrever: isto
£ Itiuiu fe«n seu plano mental a imagem dos números e das
ipffiffléíf au< usaivns. Enquanto a criança executava mental-
gítüte & upet m no, sem escrever e sem falar, o professor a exe-
shU vb êMi ievftudo, não tendo jeito de fazê-la de outra forma,
tgüüffter o rãlculo, a criança anunciava o resultado. O pro-
i tjue eia um diretor de escolas inglesas, e que veio visi-
êSiola nu Holanda) notou que o produto dado pela
itio eslava exato. A criança o invés de perturbar-se
fitívaiiieuie, dizendo depois: “Sim, já percebi onde me
F § pmim ihtpois deu o resultado exato. Esta correção
*41« uh. tiasiunt© complicado foi um fato mais mara-

41
vilhoso do que a própria execução, pois a mente da criança
tinha evidentemente essas qualidades particulares, para reter
nela todo esse processo.
De outra vez, uma criança qué havia aprendido a extra­
ção de uma raiz quadrada com os processos indicados pelo
nosso material, mostrou-se intensamente interessada em extra­
ir raízes pof si só, mas com um processo diferente, inventado
por ela, que entretanto não sabia explicar.
Poderia citar inúmeros exemplos. Um dos mais extraor­
dinário foi o paciente trabalho de uma criança que analisou
gramaticalmente, por escrito, todo um pequeno livro, sem tro­
car de ocupação até haver completado seu trabalho que foi
feito em dias sucessivos.
Estas manifestações psíquicas revelam uma espécie de
mecanismo formativo, são exercícios que não têm nenhuma
utilidade externa, nenhuma aplicação prática. Não seria pos­
sível impô-los como se poderia fazer com uma ginástica física,
porque sabe-se ser impossível sustentar artificialmente um in­
teresse vivo e ininterrupto, uma atenção constante por coisas
em si pouco atraentes e sem objetivos. É realmente um esfor­
ço espontâneo e tão grande que seria impossível provocá-lo.
Embora pareça “perda de tempo” o que se apresenta em tan­
tos jovens na variedade de suas ocupações, aqueles mesmos
jovens fazem progressos excepcionais em todos.os ramos da
cultura e também da arte.
Em uma escola indiana, onde havia um mestre especial
para música e para a dança, um grupo de crianças freqüente-
mente se reunia na sala de música quando o mestre não esta­
va, e improvisava bailados que o mesmo não havia ensinado
e que diferenciavam muito dos movimentos rígidos da arte in­
diana, e várias crianças tocavam os instrumentos rítmicos
acompanhando com uma espécie de canto coral inventado por
elas próprias. Todo mostravam um intenso interesse que não
era somente prazer. De tempos em tempos ouvia-se na escola
aquela música inesperada.
Eis então os fenômenos que são muito diversos daqueles
considerados na educação corrente em relação à psicologia “es­
colástica” , a qual considera somente a “vontade” e o “esforçoM
que seriam fatos proveniente das reflexões do intelecto ou dm
coações externas. Aqui, ao contrário, surge do interior de ca»la
reflexão ou aplicação prática e utilitária, uma espécie *1«
ÉLAN V ITA L, a “explosão de manifestações improvisadas #
insuspeitadas”. Todavia, o “progresso” , na real aquisição d#

42
cultura, é evidentemente ajudado por esta energia interior,
muito mais que um esforço voluntário e imposto. E os resul­
tados que se conseguem não estão diretamente em relação
com esses estranhos exercícios de paciência e de trabalho cons­
tante; mas parecem, antes, pertencerem a mcanismos “interio­
res” , que, agindo, dão um impulso de desenvolvimento a to­
da a personalidade no seu conjunto.
De fato, uma das conseqüências mais indiretas é a for­
mação do “caráter”. As crianças não fazem somente progres­
sos na aquisição quase maravilhosa da cultura; mas, parecem
mais conscientes de si, donas das próprias ações, mais seguras
t-tn sua conduta, sem hesitação de timidez ou de medo, pron­
tas também para uma adaptação com outras pessoas, com o
ambiente e suas eventualidades. A alegria de viver e a disci­
plina parecem consequência mais destes atos interiores que
«148 circunstâncias externas. Elas estão então prontas para do­
minar o ambiente. Por estarem equilibradas e mais capazes
ti# orientarem-se e de valorizarem a si mesmas, mostram-se
tmiilo calmas e harmoniosas; e também, por isto, encontram
yffU) maior facilidade em adaptarem-se com outras pessoas.
No decorrer de nossas experiências encontramos também
Bípii « força esmagadora dos preconceitos. Ao mesmo tempo
Mi11 «jua todos se lamentavam da falta de cultura na vida civil
d# ímíssu» tempos, e colocavam em evidência a sua absoluta
iièt gsãidade, opunham-se, quase em defesa da criança, ao de-
Ifttvoivimento cultural nas nossas escolas.
A fun.n da inércia mental via quase como uma heresia
^«datôgirH e mais ainda psicológica, estas revelações de nos­
sas ailauças e combatia o oferecimento de nossos materiáis
fftí# ajudavam tal desenvolvimento. Contra isso vinham ado-
fiUidt) a§ «ifini obertaií sobre o cansaço mental das crianças nas
Pfêfíl# comuns e nos acusavam de forçar as energias intelec-
Itiiii de eriençe, ou denunciavam o nosso intelectualismo. Nós,
ft| ff=m i í t ealavamos completamente inocentes de tudo isso.
J p aúMpifeâ deacrlçfles dos fatos, dos quais citamos somente
Hjfeyui) fie# páginas anteriores, prova que eles nos surpreen-
tfinUí «jiianfn «Irspertavam a maravilhada susepeita nos

tpyéin Haveria portanto ousado provocar as manifestações


§H|g puderes na criança? Não fomos nós, por certo. Foram
| que o# revelaram e nós não fizemos mais que res-
jfftâ iss «esta atmoifeiH «lo liberdade da nossa escola, respon-
Ittèáèf lltfes pMauamehié mm a ajuda pedida. Procuramos en­
tender o aparecimento desses poderes e investigar as condi­
ções que permitiam e, talvez, facilitavam a sua “explosão.” E
somente com a repetição universal desses mesmos fenômenos,
entre crianças de raças tão diversas ou de civilizações muito
mais primitivas que a nossa, fomos obrigados a concluir que
se tratavam de possibilidades “normais” , de poderes verdadei­
ramente humanos, que por muito tempo permaneceram escon­
didos por parte dos adultos que não respeitaram as leis da
formação psíquica e não deram a ajuda que é de direito se
exigir da educação.

A QUESTÃO SOCIAL D A CRIANÇA

Os resultados aos quais nos referimos não são fáceis de


serem obtidos, porque são encontrados enormes obstáculos nos
preconceitos milenares. O que diz respeito à criança e à sua
educação é um campo no qual todos têm experiências desde
a aparição do homem na terra: experiências que tiveram bas­
tante tempo de se consolidarem e de se tornarem universais.
E infelizmente, foram contudo a ciência moderna e as tenta­
tivas dela, que se desenvolveram sobre as manifestações in­
fantis mais superficiais (sob os “efeitos” de circuntâncias ex­
ternas) e se acomodaram com facilidade aos preconceitos que
todo homem tem em relação à criança. É por isso que as ma­
nifestações infantis das quais havíamos falado, não se apre­
sentam à observação dos “homens que observam” , mas ho­
mens que se rendem cegamente aos preconceitos.
Estes preconceitos são tão universais que é difícil fazê-los
reconhecer como preconceitos e se confundem com a evidên­
cia dos fatos, pois que, todos, ou quase todos, vêem somente
a criança conhecida e não a desconhecida. De fato, se diante
de um‘ público afirmar-se que para reformar a educação 6
necessário vencer muitos preconceitos, o pensamento dos ou­
vintes mais avançados, mais “despreocupados” , vai diretamen­
te ao “que se deve ensinar” e não à criança. Eles pensarão
que do ensinamento é necessário distanciar do ensino aquilo
que se considera “preconceitos e erros” a fim de não transml*
ti-los. Alguns dirão que é necessário evitar o ensino de con­
ceitos religiosos dogmáticos, outros que é necessário tolher 0 «
preconceitos entre as castas sociais, outros ainda dirão quo st
deve eliminar certos hábitos de formalidade que estão fora da
moda na sociedade moderno, e assim por diante.

44
Mas que são os preconceitos, que “impedem” ver a crian­
ça de um ponto de vista diferente do habitual, isto parece
ainda inconcebível. Os que se ocupam da psicologia infantil,
ou de educação, devem levar em consideração não os precon­
ceitos sociais dos quais se ocupam os homens modernos, mas
outros preconceitos, os que se referem diretamente à criança,
esta criança nos seus atributos naturais, nos seus poderes, nas
condições anormais de vida.
Observando os preconceitos religiosos, poder-se-á, talvez,
compreender melhor a grandeza e o significado das religiões,
mas não a personalidade natural da criança. Tolhendo os pre­
conceitos das castas sociais, poder-se-á intensificar o acordo e
« harmonia entre os homens na sociedade mas não por isso
Vfif melhor a criança. Se muitas formalidades nas relações so-
i iais são reconhecidamente fúteis, pertencentes a uma época
|M»n«ada, far-se-á a reforma dos costumes, mas não é por isso
que se verá melhor a criança.
Tudo quanto parece contribuir para um progresso social
o» adultos pode completamente prescindir, na opinião
comum, das necessidades vitais do ser infantil. O adulto tem
íjpfipFf visto na sociedade, no seu progresso, somente o adul­
to, ©mcriança tem permanecido um extra-social, uma incógni­
ta dü equação da vida. Daí nasce um preconceito de que a
vida da criança possa modificar e melhorar somente com o en-
ÜR*m preconceito este que impede de ver o fato de que a cri-
jlfiça se Coitrói por si mesma, de que há um mestre dentro de-
te» d# que «té mesmo possui um programa e uma técnica edu-
# de que nós, reconhecendo este mestre desconhecido,
pgdiüiiiofi Ipi o privilégio e a fortuna de nos tomarmos seus
fipÉShmtèa m Bitus fiéis servidores, ajudando-a como coopera­
das
nutro* preconceitos são a conseqüência lógica dis-
I I M* m qu© a mente da criança é vazia, sem direção e sem
bH# f, Hpfflfito, nó« temos a grande e completa responsabili-
I Aê H^gfifhè Im, de guiá-la e de comandá-la; que sua alma
g unia quanl idade de defeitos, tende a decadência e à
igtulê © flutuar como uma pluma levada pelo vento
ifiiri, diHeui«»9 estimular e encorajar, corrigir e guiar
iM il
i, ê ©r>iã*mi coisa. A criança — diz-se — não
I lÜ&fflffltOS « é, pois, incapaz de servir a si mes-
f sdnhsi sfe êj-i^au a fazer tudo por ela, sem pensar que
jirvU por si «ó, Grande peso esta criança sob

45
nossos cuidados e nossa responsabilidade. O adulto diante dela
está seguro de que deve “criar” nela um homem, e que a in­
teligência, a atividade socialmente útil, o caráter deste homem
que chegou em sua casa será portanto obra sua.
Nasce então o orgulho juntamente com a ansiosa respon­
sabilidade. Essa criança deve um infinito respeito e gratidão
aos seus criadores, aos seus salvadores, e se, ao invés disso, se
demonstrar um rebelde, é julgada e deve ser corrigida, sub­
metida até à violência, se necessário. Essa criança para ser
perfeita, deve ser absolutamente passiva, isto é, deve obedi­
ência rigorosa. Ela é um perfeito parasita de seus pais, a fim
de que os pais assumam todo o peso econômico de sua vida,
ela deve depender absolutamente deles. Ê o filho! Ainda que
já tenha se tornado um homem, fazendo a barba todas as
manhãs para ir à Universidade, continua contudo dependen­
do do seu pai e de seus professores como quando era criança.
Fará o que o pai quiser e estudará como querem seus mestres.
Permanecerá um extra-social mesmo quando formado, tendo
talvez 26 anos.
Não poderá escolher um estado matrimonial, sem o con­
sentimento do pai, até a maioridade que é estabelecida não
por seus desejos e sentimentos, mas por uma lei social feita
pelos adultos e igual para todos.
Ele então deve obedecer até para morrer, quando a so­
ciedade lhe diz: “Parasita, prepara-te para matar ou ser mor­
to!” e se não fizer isto, isto é, o serviço militar, não encontra­
rá um lugar na sociedade; será um delinqüente.
Tudo isso desliza no mundo como as águas calmas de
um regato sobre os prados. Esta é a preparação do homem. E
a m ulher.. . é ainda mais dependente e condenada na vida.
As normas deste modo de viver são as bases da socieda­
de. Ninguém pode ser chamado bom se não segui-las.
Dessa forma, desde o nascimento até que todas as regras
ditadas pelos adultos sejam executadas, a criança e o homem
dependente, isto é, os jovens, não são considerados como um
homem pela sociedade. Ao jovem estudante então se diz:
““Pense em estudar, não te ocupes de política, nem de idéias
diferentes daquelas que te foram impostas; tu não tens direi­
tos civis”.
O mundo social abre-se somente depois desta espécie dn
preparação ditadorial.

46
É necessário reconhecer que durante a história da civi­
lização houve uma evolução. Enquanto no direito romano o
pai podia matar o filho pelo direito que a natureza lhe dava
de havê-lo criado, e as crianças fracas e disformes podiam ser
mortas, jogadas no fundo de um penhasco (o penhasco Tar-
pea), que tinha essa função depurativa da raça, o Cristianis­
mo coloca além do filho, a criança deformada sobre uma lei
que faz com que respeite sua vida. Mas isso não é tudo. Não
■ e pode matar materialmente a criança.
Pouco a pouco a ciência, sob forma de higiene, chega até
à “proteger” a vida da criança das doenças e das crueldades
evidentes, mas acautela-se em ditar as condições sociais ne­
cessárias para proteger a vida de todas as crianças.
A personalidade infantil permanece sepultada sob os
preconceitos da ordem e da justiça. O adulto que está
sempre interessado em defender seus próprios direitos,
tem entretanto esquecido a criança e nem ao menos se aper-
.eirfnj disto. Sobre este plano a vida tem continuado a de-
seuvolver-se e complicar-se até o nosso século.
Derivam do conjunto de tais conceitos os preconceitos
pa» limiares, que são impostos com louváveis objetivos de
pMjteyão e de respeito pela infância.
Por exemplo, a criança pequena não pode ser admitida
em nenhuma forma de trabalho, mas deve ser abandonada
g uma vida de inércia intelectual, podendo somente brincar
de Um esrto modo estabelecido.
Per iiso, se for descoberto, um dia, que a criança é
iifti giãiiijfi trabalhador, que pode aplicar-se verdadeiramente
g rum mncentração, que pode instruir-se, que tem uma dis-
gÉ&jggj em rí própria, isto parecerá uma fábula que não
££3ii?ãtê rui praia mas sim aparecerá como um absurdo.
A» alíMiçoe» não se fixam nesta realidade, por isso, não
#f=§ytle ttn lu/er refletir que pode haver um erro por parte
eis âduítu O fato é simplesmente impossível, inexistente ou,
nio seria.
iHm. a maior dificuldade de libertar a criança e ilumi-
ust teus {.«HÍmrn não está em encontrar uma educação reali-
mas sim em vencer os preconceitos que o adulto
Ésgftfyhi fHUti ei«, Por isso, diziam que se devia reconhecer,
fpU^«F s i oiiifKiluf s6 os preconceitos relativos à criança,
jíf y temt pui outros preconceitos que o adulto construiu
§us vida.
pit# luta contra o* preconceitos é uma questão social
=
I 4 ffisuvH. u'*§ dava acompanhar a renovação de sua edu­

47
cação. É necessário preparar um caminho positivo e deli­
mitado para este objetivo. Se temos em vista diretamente
e somente os preconceitos relativos à criança, então uma
reforma do adulto andará par e passo, porque derrubará
um obstáculo que está nele. Esta reforma do adulto tem
uma importância enorme para toda a sociedade: representa
o despertar de uma parte da consciência humana que está
descoberta pelos impedimentos estratificados, e sem isso
todas as outras questões sociais tornam-se também obscuras,
e seus problemas insolúveis A consciência fica ofuscada
não em alguns adultos, mas em todos os adultos, porque
todos têm crianças e estando ao lado delas com a cons­
ciência ofuscada, agem inconscientemente; não usam aqui
a reflexão, a inteligência, que em outros campos os con­
duzem a um progresso. Existe verdadeiramente um ponto
cego, como o do fundo da retina. A criança, esta desco­
nhecida, esté projeto de homem, incompreendida, julgada
algumas vezes como um acidente matrimonial que abre um
caminho de sacrifícios e de deveres, não desperta em si
maravilhas e admiração.
Deixe que descreva um complexo psicológico: suponha
que ao natural, a criança possa aparecer como um milagre
divino, como os homens vêem a figura de Jesus Menino,
figura inspiradora de artistas e poetas, esperança de reden­
ção para a humanidade inteira, figura augusta a cujos pés
os reis do Oriente e do Ocidente depositaram devotada­
mente suas dádivas. Esta criança, Jesus, é todavia, tam­
bém no culto, uma verdadeira criança, um recém-nascido
inconsciente. Ora, para quase a totalidade dos pais, senti­
mentos grandiosos desabrocham com o nascimento de seus
filhos, que vêm idealizados pela força do amor! Mas depois,
esta criança cresce, começa a trazer aborrecimentos. Quase
com remorso procuram então defender-se dela, ficando con­
tentes quando dorme e procuram fazê-la dormir o máximo
possível. Se possível, colocam-na em mãos estranhas ou
entregam-na a uma enfermeira para que ela a mantenha
longe o maior tempo possível. E se a criança, este ser des­
conhecido e incompreensível, que age por impulsos inconi-
cientes, não se submete, castigam-na, combatem-na, e ela,
sendo frágil, sem nenhuma arma de defesa em sua inteli­
gência e força, deve a tudo suportar, Há então um con­
flito na alma do adulto que a ama, em princípio talvBi
não sem pena, não sem remorso. Mas depois o mecani»*

48
éf *

mo psíquico entre o consciente e o subconsciente encon­


tra no homem uma acomodação; advém, como diz Freud,
uma fuga: o subconsciente prevalece, isto é, sugere: Isto
que quero fazer é para defender a criança, é um dever
que a completa; é um bem necessário, e peto contrário
deve corajosamente agir, porque assim vou Ueducar, e tra­
balhar para construir sua bondade'*. E tendo este alívio, eis
que os sentimentos naturais de admiração e de amor são
sepultados.
Isto se verifica em todos, porque o fenômeno está na
humanidade. Desta forma realiza-se uma espécie de “orga­
nização inconsciente de defesa” entre todos os pais do
mundo. Uns apóiam-se nos outros e a sociedade inteira
forma um subconsciente coletivo, onde todos agem de
acordo, afastando e deprimindo a criança, agindo para seu
bem, cumprindo para com ela um dever mesmo que seja
um sacrifício. E fica sacrificado de tal modo aquela espécie
de remorso, que no conflito permanece sepultado definiti­
vamente entre a solidariedade, ou seja, o fato estabelecido
toma a força de uma sugestão e dá aparência de um sofisma
indiscutível, sobre o qual todos estão de acordo, e os futu­
ros pais são por sua vez sugestionados e preparados para
ns deveres e sacrifícios que devem cumprir para o bem
futuro da criança.
Estas pessoas sugestionadas preparam a consriência para
uma tal acomodação, que a criança é sepultada no subcons­
ciente. Como acontece a todos os sugestionados, também
para estes tudo o que existe foi estabelecido através da
sugestão, e este estado de coisa se perpetua de geração em
geração. Por séculos e séculos a criança seputtada não po­
derá revelar mais nada de sua outra natureza.
Façamos uma espécie de fórmula, de sisrla para indi­
car este fenômeno. O bem é em verdade um mal masca­
rado, um mal organizado que te mlevado uma resolução
subconsciente a graves conflitos. Ninguém auer o mal. todos
querem o bem, mas aquele bem é um mal. Todos o tem
preso por força de uma sugestão que advém do ambiente
rnornlmente uniforme. Existe, portanto, na sociedade uma
Organização do Mal que toma a forma do Bem, e que é
imposta pelo ambiente à Humanidade inteira por Sugestão.
Ko fizermos uma s i g l a destas maiúsculas formaremos
OMBIHS.

49
OM BIH S

O OM BIH S social domina a criança. Todos sentem o


OM BIHS ao invés de ver a sublime criança, o pequenino
irmão do Menino Jesus. E os sentimentos ombihsanistas
cobrem fatalmente toda a vida da criança, enquanto um
ideal luminoso que dela emana permanece só como um
símbolo sobre os altares das religiões.
Quando os homens adultos chegarem por si mesmos à
conclusão de que todos são filhos de Deus e que Cristo
vive em cada um de nós, sendo seu modelo necessariamente
imitado, ao ponto de uma identificação com ele dizendo:
Não sou mais eu quem vive, é o Cristo que vive em mim
farão excessões às crianças. Jesus Menino é separado do
pobre recém-nascido que está sepultado pelo OMBIHS.
Nele, todos veem somente o pecado original que é neces­
sário combater.
Essa pequena história, baseada nos segredos psicológi­
cos da natureza humana, ilustra o fato primordial de uma
crescente e total opressão à criança. Sobre ela, ainda que
isolada na família, agrava-se o preconceito da sociedade
inteira organizada pelos adultos. E durante a evolução e
os movimentos sociais para o direito do homem a criança
será esquecida.
A história das injustiças contra ela não está ainda
escrita oficialmente e por isso não é aprendida nas disci­
plinas históricas das escolas em nenhum grau. Os próprios
estudantes de História, que têm títulos e especializações
nesta matéria, não estão mais interessados em falar nisso.
A história refere-se somente ao homem adulto, pois so­
mente ele vive diante da consciência. Desta forma os que
se especializam na legislação aprendem infinidades de leis
dos tempos passados e dos tempos presentes, não se impor­
tando de não encontrarem leis promulgadas para os direitos
das crianças. Assim, a civilização passa por cima de uma
questão que nunca foi um problema social.
Todavia, a criança é levada em conta quando pode
tornar-se útil aos interesses do adulto. Mas, até mesmo
neste caso, continua a ser o homem cujo destino cai no
ponto cego da consciência. Tomemos um exemplo mais evi­
dente: No tempo da revolução francesa proclamou-se pela
primeira vez os direitos do homem e através disto todos
os homens adquiriram o direito de serem instruídos, de
saber ler e escrever, roubando assim um privilégio acessí­

50
vel à mais alta sociedade e tornando-se um fato universal.
Toria sido lógico que todos os adultos se fizessem pre-
imites a este novo trabalho, pois aquele era um direito
que não se baseava unicamente na rutura violenta de pri­
vilégios, mas exigia um esforço de aperfeiçoamento. Pen-
fõu-10, ao contrário, unicamente na criança e sobre ela ex-
*luaivamente se concentrou o esforço para tal conquista.
Eis aqui, pela primeira vez na história do mundo, a
<Hinça “mobilizada” , meninos e meninas, todos igualmente
§> licitados para o serviço na escola, como em tempo de guerra
Hiõbiliza-se a juventude masculina para o serviço militar.
Todos conhecem a lamentável história! A criança foi
•'lipnada em vida, pois durante toda a infância ficou apri-
Fechada em celas nuas, sentada em bancos de
inárlgira, sob o domínio do tirano que lhe impunha até
como ele queria, aprender o que ele queria e fazer
•jhfí nlp queria. A mão delicada da criança devia escrever,
; sua mente criadora devia fixar-se nas áridas formas do
ifnt mi o que não revelavam nenhuma das vantagens que
^ deln. As vantagens as encontrara o adulto.
Uuanhil histórias de martírio são registradas! As crian-
■ torturadas, seus dedinhos presos às canetas foram
• rum vara e forçados a um exercício cruel. São muitos
s =ním#nt08 daqueles prisioneiros que tiveram até a espi-
fItifiid torcida pela condenação de permanecer sentado
- >-H um banco de madeira dia após dia, ano após ano,
; *• 1« i1p 1í«adíssima idade de crescimento. Na aglomera-
ft* promiscuidade das doenças, sofrendo frio, assim viveu
- naquele campo de concentração. Isso durou até
d?« du século passado. A vantagem era um direito do
--Hi. oiti da criança, mas a ninguém pode ela ser grata,
I HÍftfUim procurou ajudá-la em suas penas. Contudo
r f niigMlem Ainda nos pais aqueles sentimentos naturais de
; meúttf r» amor materno e paterno pelo nascimento do
; É i os ífisf inlo» de proteção aos pequeninos, comum até
- «ítji Animais.
* o#tui ts explica isso, senão como um fenômeno mis-
= dn fõnii iiiicia, ou melhor, o que mais que isto pode
r o iiMMIíf:; e os preconceitos dirigidos à criança?
à fifíssu féfiulõ, procurou-se seriamente atenuar esses
SHéfPUrlo transformar a educação, construindo
p i * AÍs iBdlsâ, inAi* bonitas e modernas, mas isso en-
| i p td u h figura da criança incompreendida e vista
= tiMhtuH,

51
III — AS NEBULOSAS

O HOMEM E OS ANIMAIS

A criança recém-nascida mostra-se diferente do ponto


de vista da hereditariedade dos recém-nascidos dos outros
mamíferos, somente quando a consideramos logicamente.
De fato, os filhotes dos mamíferos herdam, da mesma
forma que todos os outros animais, comportamento especial
que é fixo como são fixos os caracteres morfológicos do
corpo. O corpo está exatamente adaptado às funções que
exercerá na vida: funções que são fixas na espécie. Os hábi­
tos, o modo de mover~se, de saltar, de correr, de trepar,
estão estabelecidos ao nascer e portanto a adaptação ao
ambiente considera a possibilidade de exercitar aquelas fun­
ções características que têm o objetivo não só de manter a
espécie mas de contribuir conjuntamente para o funciona­
mento de toda a natureza (objetivo cósmico). As natas que
saltam, correm, trepam, cavam a terra, são construídas de
modo a corresponder às necessidades de cada um. Também
a ferocidade, a avidez de cadáveres e imundícies contribuem
para a ordem cósmica na superfície da terra. Enfim, o corpo,
na sua rigidez e na sua flexibilidade, é construído de modo
a realizar o “objetivo cósmico” de cada uma das espécies.
São poucas as espécies dotadas da possibilidade de ounl-
quer particularidade e limitadas variações de adaptação
inatas, sendo estas as que podem ser domesticadas pelo
homem. A maior parte dos animais conserva, ao contrário,
uma rigidez absoluta nos caracteres hereditários e não podem
eer domesticados.
Entretanto, o homem tem um poder de adaptação ilimi­
tado no sentido de poder viver em todas as regiões geográ­
ficas. como também o poder de assumir inumeráveis hábitos
e forma de trabalho. Assim, o homem é a única esoécle
capaz de uma indefinida evolução em suas atividades [(<■
mundo externo, o que resulta no desenvolvimento d° civhi
zação. Ê verdadeiramente uma espécie que por natureza nts
está fixa em seu comportamento como todos os outros soibs
viventes. É, como disse recentemente um biólogo, uma eap4=
cie em perpétuo estado de infância, porque desenvolve i#
em progresso' contínuo.
Então, esta é a primeira diferença: o homem não recêh®
por hereditariedade um comportamento fixo.
Uma outra notória diferença é que nenhum filhotê d§
mamífero nasce tão inerte na incapacidade de realizar 81

52
<«mcterísticas do adulto como o homem. Muitos animais,
como os cabritos, os cavalos, os bovinos, sustentam-se quase
«ubitamente de pé e durante o aleitamento correm em dire-
çfto u mãe.
Os. próprios macacos, que são considerados os mais
próximos do homem, apenas nascidos, são vistos vivazes e
inteligentes agarrando-se com energia ao corpo da mãe que
Rio necessita levá-los nos braços. A macaca mãe salta sobre
as árvores com seu recém-nascido que a agarra com os braços
t somo se não bastasse ele também foge e a mãe cansa de
r@$it@endê~lo para mantê-lo próximo.
A criança, ao contrário, permanece inerte por longo
i&inpo. Não fala, enquanto todas as outras espécies rapi­
damente adquirem o latido ou o miado, enfim, reproduzem
l»jf hereditariedade os sons da língua fixa, limitada e pró-
priR li« espécie. Todos os cães, de todas as partes do mundo
e de todas as raças ladram, todos os gatos miam, assim
iodas as aves têm o seu próprio gorgeio, um canto
t a i-íio @ uma linguagem própria que está dentro das ca-
tiiiltleas da espécie.
A longa inércia e incapacidade da criança é verdadei-
n íumíê exclusiva do homem. Na idade na qual um bovino
; - <«)>»* de reproduzir, se bem que tenha um corpo bem
dei que o homem e mais ou menos os mesmos órgãos
íisáaidfigoij este está ainda em um estado infantil e bastante
Ífíf?§ê da maturidade.
1 <jm estudam somente a evolução da forma do corpo
d l seuá tespectivos órgãos, para deduzir a descendência
• >1.« homem e dos animais, não observaram todavia
tttffctenln atenção as diferenças que se revelam sobre
— mtsteilfwa característica da longa infância humana
i aíiéa iHiin isso um vazio que a teoria da evolução ainda
^5 s s R ild ft R U .
li# fstu, poder-se-ia concordar logicamente que o ho-
í um símio evoluído por longos esforços de adaptação
somente por obra desses esforços, porque
Hüt§ evidente semelhança entre o corpo do homem e
= dfi üüéêi o <) crânio e a face de uns restos humanos
#8<» bastante semelhantes e próximos ao de um
«Rpeilo» As articulações e o esqueleto em geral têm
-- iurpipendente«. Aquele que pensa que o homem
Iffl d l via também trepar nas árvores não faz mais
üu !uK h comum desenvolvido fantasticamente
# bíífifes ppliRfliogrâfico« de Tarzan. Mas uma coisa per-

53
manece inexplicável. Pode-se supor um homem primitivo,
de tipo morfológico inferior, que se agarra nas árvores,
mas não se pode admitir que tenha havido um recém-
nascido que falasse, que se agarrasse à mãe, que se pusesse
de p? e subitamente corresse! É difícil encontrar uma razão
pela qual o homem ao mesmo tempo que evolui para uma
espscie superior, isto é, homo sapiens, deva ver o seu recém-
nascido surgir passivo, mudo, sem inteligência e incapaz
de fazer por anos inteiros aquilo que fazia em épocas pre­
cedentes à evolução! Portanto, um dos caracteres verdadei­
ramente humanos, distintamente diferenciados está no recém-
nascido.
Não importa que o fato até hoje não possa ser expli- I
cado. O fato existe e é fácil deduzir que se o recém-nascido I
do homem mostra tão grave inferioridade em relação aos I
filhotes dos mamíferos, esse deve ter uma função especial
que os outros não têm.
Esta função não advém da hereditariedade das formas
infantis precedentes sendo, portanto, relativa a qualquer ca­
racterística nova, acrescentada durante a evolução.
Esta característica não se reconhece observando o ho­
mem adulto, reconhece-se com evidência somente observando
a criança.
Qualquer coisa de novo aconteceu durante os processos
evolutivos que conduziram à realização do homem, da mes­
ma forma que uma característica nova sobreveio com respeito
aos répteis, às aves e aos mamíferos, isto é, o sangue quente
e seus cuidados instintivos pelo ovo e respectivamente pelos
filhote para proteção da espécie. A verdadeira diferença
entre as aves e os répteis não está nos eventuais dentes,
no bico do archeopterix * ou na áonga cauda de muitos
vertebrados, mas sim naquele amor maternal que no início
não existia e que surgiu ao mesmo tempo em que o sangue
quente. São mutações da evolução e portanto não são unica­
mente transformações.

A FUNÇÃO DA CRIANÇA

A criança deve ter uma função especial que não aquela
de somente ser o mais débil em relação ao adulto. Ela ftÉít

* Archeopterix — -um representante de fóssil de páM&ffl


do fim do período Jurássico. (N.T.)

54
é

possui “por nascimento” todos os atributos destinados a


engrandecer-se e fortificar-se para atingir o estado adulto,
pois se já tivfesse as características fixadas, como acontece
para as outras espécies, o homem não poderia adaptar-se
a locais e hábitos tão diversos, nem evoluir em sua forma
social, nem assumir trabalhos tão diferentes.
Este então é diferente dos animais no que diz respeito
à hereditariedade. Não herda evidentemente os caracteres,
mas as potencialidades e formalidades. É então após o nas­
cimento que os caracteres próprios da raça, da qual a crian­
ça pertence, se constroem.
Tomemos como exemplo a linguagem. É certo que o
homem deve possuir e transmitir, por hereditariedade, a
qualidade de todo nova de desenvolver uma linguagem que
está em relação à inteligência e à necessidade de trans­
mitir os pensamentos para uma cooperação social. Mas não
existe uma linguagem particular. O homem não “fala uma
língua” só porque cresce, como um cãozinho que ladra em
qualquer parte do mundo em que se ache, mesmo que
isolado de outros cães. A linguagem vem pouco a pouco,
e se desenvolverá precisamente durante a época inerte e
inconsciente da primeira infância. É aos dois anos ou dois
«nos e três meses que a criança fala corretamente e repro­
duz com precisão a linguagem falada pelos que a circundam.
Nâo reproduz hereditariamente a linguagem do pai e da
mãe. De fato, se uma criança separada de seus genitores
B de seu povo, sendo criada em outro país onde se fala
outra língua, ela assume a linguagem do lugar onde se
encontra.
Um recém-nascido italiano transportado para os Esta­
do* Unidos da América falará inglês com sotaque yankee,
m imo saberá o italiano. É a própria criança então que assu­
me « linguagem e antes de havê-la adquirido era mudo,
■ iiimente dos animais. Aquelas raras crianças das quais
fala a história, chamadas “filhas das selvas” que foram
«mtnQtradaa abandonadas na floresta, tendo sobrevivido ex-
i #p< ionalmente ao abandono, assemelhavam-se aos animais
selvagens, eram mudas, ainda que com doze ou dezesseis
eii»9 <(tunulo foram encontradas. Nenhuma delas reproduzia
aã vozes dos animais no meio dos quais viveram e pelos
•jMfíia luram de certo modo adotadas. Mudo era o famoso
§#ÍvggíMn de Aveyron, encontrado naquela floresta com aprc-
simariaituinti doze anos e educado pelo famoso médico fran­
gi# {laid, o qual descobriu em suas interessantes experiên­

55
cias que a criança não era surda nem incapaz de falar
porque aprendeu a conversar em francês, aprendendo depois
até a ler e escrever nessa mesma língua. Era considerado
por sua aparência um surdo-mudo porque tinha vivido longe
dos homens, das pessoas que falavam,
A linguagem, pois, desenvolve-se ex novo da própria
criança. Ela se desenvolve naturalmente, isto é, tem este
poder hereditário, mas a desenvolve por si mesmo, em si
mesmo, absorvendo-a do ambiente. Nada é mais interessan­
te que os recentes estudos de psicologia relativos a obser­
vações exatas sobre o desenvolvimento da linguagem das
crianças.
As crianças absorvem de certa forma inconscientemente
a linguagem de forma gramatical e enquanto permanecem
aparentemente inertes por muito tempo, de um momento
para outro (ou melhor dizendo, no espaço de dois anos e
três meses mais ou menos), mostram um fenômeno quase
de explosão de uma linguagem já totalmente formada. Logo,
houve um desenvolvimento interno durante o longo período
no qual o pequenino era incapaz de exprimir-se. Ele estava
elaborando nos mistérios de seu inconsciente toda a lingua­
gem com as regras que colocam as palavras na ordem gra­
matical necessária para exprimir o pensamento. Isto é feito
pelas crianças com respeito a todas as línguas possíveis, das
mais simples, como as de certas tribos africanas, às mais
complicadas como o alemão ou russo, sendo todas absorvi­
das exatamente durante o mesmo período de tempo; pois
em toda raça a criança começa a falar pelos dois anos de
idade. Foi assim certamente no passado. As crianças roma­
nas falaram o latim, tão complicado nos casos e nas decli­
nações, tão difíceis de serem aprendidos pelos jovens de
nosso tempo que freqüentam as escolas superiores e na índia,
os pequeninos falaram o sânscrito, que é de uma dificuldade
quase insuperável para os estudiosos de hoje.
A língua Tamil, no Sul da índia, por exemplo, é difi­
cílima para nós, com aqueles sons e aquelas acentuações
quase imperceptíveis que mudam o sentido do discurso so­
mente elevando ou abaixando um pouco o tom de voz, mas
os pequeninos de dois anos nas vilas e nos desertos hindus
falam o Tamil.
Da mesma forma uma das grandes dificuldades para
quem estuda a língua italiana é recordar o masculino e o
feminino dos nomes, pois não há nenhuma regra e como
se não bastasse, alguns nomes podem ser masculinos no

56
*

singular e femininos no plural e vice-versa. Portanto, é


quase impossível ao estrangeiro deixar de cometer erros,
mas as ignorantes crianças das estradas não se atrapalham
mmca e riem-se quando percebem os erros dos estrangeiros.
Algumas vezes, pessoas instruídas, estudiosas da língua
italiana, das regras e dos sons, estão convencidas de que
falam como um italiano e todavia somos obrigados a
di8#r; “Você tem um sotaque estrangeiro, de que naciona­
lidade é?”
As línguas aprendidas e absorvidas durante a infância
§Ím evidentes e inimitáveis: são as respectivas “línguas ma-
próprias do homem ignorante como do culto; lin­
guagem única para todo o homem que a possui nos sons
alfabéticos, na entonação de voz, nas disposições gramati-
- h!§ @ que caracterizam sua origem, de uma nação ou de
=m»ã riça, como podería fazer a cor da pele ou o tipo físico.
<lomo foram fixadas essas diferentes linguagens? Essas
Hnguiiggn# elaboradas através de infinitas gerações, esses
==- que estão sendo evoluídos através do pensamento dos
iir.meHS? Certamente não foi porque a criança prestasse
~í =íí Menção consciente e nem por um estudo inteligente.
í<míi§ u( tem como característica hereditária a faculdade
- í -Mím fular, mas não é por hereditariedade que se
, -nsmiie uma determinada linguagem. O que então se

Poderíamos então fazer uma analogia com as nebulo-


dos astros que são amontoados quase incon-
snfès de gases, impalpáveis, e contudo pouco a pouco
^fjiiíieem e se transformam, tornando-se astros e planetas,
ie jsã»M tecer um paralelo supõe-se uma hereditariedade
linguagem, ©sta seria uma nebulosa inexistente e muda,
•• a (piai todavia não haveria nenhuma possibilidade de
í -^svoivéí se qualquer linguagem. A nebulosa seria a mis-
prtitfieialidade comparável à dos £ens que se encon-
m i f i eéiulna germinativas e que têm sobre os futuros
ü de dirigi-los de modo a formar órgãos com-
im é pifn-taoi em todos os seus tecidos.

“ EM BRIÃO E SPIR ITU A L

ifiaUfíi, que em sua aparência é psiquicamente inerte,


Sjféa lalvgí um embrião no qual se desenvolveram po-
• f =* éfgipi psíquicos do homem? Um embrião onde

$7
existem unicamente nebulosas, as quais têm o poder de
se desenvolverem espontaneamente mas, somente, alimenta­
da pelo ambiente, por aquele ambiente que ó tão variado
nas formas de civilização? Eis porque o embrião humano
deve nascer antes de completar-se e poder desenvolver-se so­
mente após o nascimento, porque suas pontencialidades de­
vem ser estimuladas pelo ambiente.
As “influências internas” serio muitas, como o são no
crescimento físico durante os processos dependentes dos ^ens,
por exemplo, a influência de vários hormônios. Ao invés disto,
no embrião espiritual, existem sensibilidades dirigentes. Por
exemplo, no caso da linguagem, nota-se naa averiguações sen-
soriais, que o senso da audição parece ser o menos desenvolvi­
do durante a primeira semana de vida. Todavia é com o sen­
so auditivo que devemos colher os sons mais delicados da
palavra. Conclui-se, portanto, que o ouvido não ouve somente
como sentido, mas é guiado por sensibilidades especiais para
recolher do ambiente precisamente os sons das palavras e
esses não são unicamente sentidos, mas provocam reações
motoras nas delicadas fibras das cordas vocais, da língua, dos
lábios que são despertados, entre tantos filamentos apropria­
dos, deste modo, para reproduzir estes sons. Todavia, eles
não são expressos imediatamente, mas sim armazenados na
expectativa do tempo em que a linguagem deverá nascer, da
mesma forma que a criança na vida intra-uterina, forma-se
sem funcionar sendo depois estimulada a nascer, num deter­
minado momento, quando seu organismo passa a exercer suas
funções.
Estas são suposições, mas resta o fato que havendo desen­
volvidos internos direitos da energia criativa, estes desenvolvi­
mentos podem chegar à maturação antes de manifestar-se ex­
ternamente.
Quando depois se manifestam eles são caracteres cons­
truídos para formar parte da individualidade.

A M EN TE ABSO RVEN TE

Certamente, nem todos esses complicados processes se­


guem o funcionamento que se encontra estabelecido no adul­
to, porque a criança não aprendeu uma língua como nós pode­
mos aprender uma língua estrangeira, com o esforço de nos­
sas faculdades mentais, mas ela adquiriu uma construção está­
vel, exata e maravilhosa, como as construções embrionárias

58
m

de um órgão num organismo. Existe, isto sim, nos pequeninos


um estado mental inconsciente que é criativo e que nós cha­
mamos “mente absorvente”. E a mente absorvente constroi-s€
não por esforços voluntários, mas sob a direção de uma “sen­
sibilidade interna”, que chamamos “período sensitivo”, poique
a sensibilidade dura só temporariamente até quando não se
completou a aquisição que a natureza deve fazer. Assim, poi
exemplo, se numa criança a nebulosa da linguagem encontras­
se obstáculos ao desenvolvimento e a sensibilidade de audição
construtiva não funcionasse, então poderia resultar num sur­
do-mudo que tem todos os órgãos do ouvido e da palavra
perfeitamente normais.
É claro que na “criação” psíquica do homem deve haver
algo secreto. Se nós aprendemos tudo através da atenção, da
força de vontade, da inteligência, como pode empreender, sua
grande construção a criança que ainda não é dotada de inte­
ligência, de vontade e de atenção? É evidente que nisso age
uma mente com poderes completamente diferente dos nossos
e por isso pode existir no inconsciente um funcionamento
psíquico diferente do da mente consciente.
A linguagem é um exemplo que pode prestar-se clara­
mente para dar uma idéia da diferença desta mentalidade,
porque ela se presta a um estudo de observação direto e de­
talhado.
Na mente inconsciente não se encontram as diversas difi­
culdades que experimentamos no aprender, por exemplo, uma
língua muito simples, ou uma língua extremamente complica­
da. Evidentemente, como não existem dificuldades, não exis­
tem nem mesmo desenvolvimentos graduais relativos a essas
dificuldades. O todo está retido no mesmo período de tempo.
Ora, esta aquisição não é comparável a um esforço de memó­
ria que nós devemos fazer, nem à habilidade da nossa memó­
ria que deixa facilmente escapar as suas evanescentes con­
quistadas, porque a linguagem na époça inconsciente se grava
indelevelmente tornando-se uma característica que o homem
tem em si, estabelecida. Nenhuma linguagem que se deseje
somar à linguagem materna tomar-se-á uma característica e
nenhuma poderá ser adquirida com tal segurança como a ma­
terna.
Para nós, é algo bem diferente aprender uma língua com
nossa mente consciente. Evidentemente é muito fácil apren­
der uma língua primitiva, simples em sua gramática, como al­
gumas linguagens de povos nativos da África Central, e que
11 eqüentemente os missionários aprendem durante as viagens

59
que fazem através dos oceanos e desertos para chegar ao seu
destina È, entretanto, dificílimo aprender uma língua compli­
cada como o latim, o alemão ou o sânscrito e os estudantes
levam quatro, cinco e até oito anos para estudá-los sem toda­
via conhecê-las perfeitamente. Uma língua viva, mas estran­
geira, não se aprende nunca totalmente; qualquer erro de gra­
mática ou “sotaque estrangeiro” revela que aquela não é a lín­
gua materna de quem fala. E esta língua estrangeira se não é
cuidada continuamente, será esquecida còm facilidade.
A língua materna nao está fixada na memória consciente,
está depositada em uma memória diferente semelhante à que
os psicólogos modernos, biólogos e psicanalistas chamam
“mneme” ou a “memória da vida”, aquela que detém a forma
transmitida por hereditariedade, através da infinidade dos
tempos e que é considerada como um “poder vital”.
Talvez uma comparação superficial possa ilustrar esta
diferença; a comparação entre a fotografia e a representação
gráfica feita conjuntamente com a ajuda da mão e da inteli­
gência, ou seja, a escrita, o desenho, a pintura. Uma máquina
fotográfica com seu filme pode captar num instante qualquer
coisa que lhe chegue através da luz, não sendo um feito maior
captar a figura de uma floresta, ou de uma árvore isolada, um
grupo de pessoas com o ambiente que as circundam ou uma
faCe isolada. Qualquer que seja a complexidade da figura, esta
se fixa do mesmo modo, no mesmo átimo de tempo: o átimo
no qual o obturador se abre e os raios luminosos penetram
para trocar o filme. Se desejamos fotografar a capa de um li­
vro, que contém unicamente um título, ou uma página inteira
coberta de escrita fina, o processo e os resultados são os mes­
mos.
Entretanto, se quisermos reproduzir um desenho a mão,
isso resulta num trabalho mais ou menos fácil e laborioso e o
tempo que se emprega em reproduzir o perfil de um rosto é
bem diferente do necessário para representar uma pessoa in­
teira ou um grupo de pessoas, ou mesmo uma paisagem. O
desenho também não reproduz, ainda que queira, todos os
detalhes, tanto que, para ter-se um documento de um objeto
ou a posição de um corpo exige-se a fotografia e não um dese­
nho. Assim, escrever o título de um livro é coisa fácil e ligeira
comparada a copiar uma página extensa de escrita. Enquanto
a mão trabalha, o objeto se vai representando com a evidên­
cia de sua lentidão, de seus esforços sucessivos. Mas, n máqui­
na fotográfica após captar a imagem, permanece como antes
e nada aparece nela da imagem possuída. É necessário colocar

60
o filme em um lugar escuro, expondo-o a seus reativos qu
agem quimicamente, fixando a imagem longe da luz que
produziu. Após a fixação da imagem pode-se lavar e expor
filme à luz pois a imagem permanece indelével reproduzind
todas as particularidades do objeto fotografado.
Analogamente parece agir a mente absorvente. As imf
gens também aqui devem permanecer ocultas na obscuridad
do inconsciente para serem fixadas por misteriosas sensibíl:
dades, sem que nada apareça exteriormente, sendo soment
depois que o milagroso fenômeno se completa, que a conquii
ta criativa levada à luz da consciência então se firma, indelc
vel, com todas as suas particularidades. Ainda no caso da lir
guagem, esta explode pouco depois dos dois anos, encontrar
do-se em seus lugares as particularidades dos sons, dos pref:
xos e sufixos da palavra, das declinações e das conjuraçõe
dos verbos e das construções das sintaxe. Ê a indelével lingus
gem materna; é uma característica da raça.
A mente absorve! Maravilhoso som da humanidade!
Sem que participe com seu esforço, somente “vivendo’
o indivíduo absorve do ambiente até mesmo um fato complí
xo da cultura, como é a linguagem.
Se essa forma essencial permanecesse no adulto, com
seriam facilitados os estudos! Imaginemos, se pudéssemos i
a um outro mundo, digamos, ao planeta Júpiter e lá encon
trar homens que somente passeando, vivendo, absorvesser
toda a ciência sem estudá-la, adquirindo habilidades sem o
esforços de exercícios! Diríamos nós: “Que milagre afortuna
do” ! Pois bem, essa forma fantástica da mente existe; é
mente dos pequeninos. Ê um fenômeno que permanece escor
dido nos mistérios do inconsciente criativo.
Se isso acontece com a linguagem, para aquela constri;
ção de sons foriada pelos homens durante séculos e milênio
de esforços intelectuais, para esculpir a expressão de pensa
mentos é fácil reconhecer que deve, analogamente, fixar-se n
criança os caracteres psíquicos que diferenciam uma raça d
outra, ou seja, os hábitos, os preconceitos, os sentimentos
em geral todas as características que sentimos “encarnadas
em nós, ou ainda, malgrado as modificações que a nossa inte
ligência, a lógica, o raciocínio, estariam dispostos a produzii
Oandhi disse um dia: “Eu poderei aprovar e seguir muito
dos costumes dos povos do Ocidente, mas jamais poderei car
celar em mim a adoração à vaca”. E quantos pensariam: “Siir
minha religião é absurda segundo a lógica, mas permanec
em mim um sentido misterioso de devoção aos objetos sagra

61
dos; uma necessidade de implorar para viver”. Esses homens
crescidos com as impressões de seus tabus, ainda que tornan­
do-se doutores em filosofia, não puderam cancelá-los. A crian­
ça çonstrói-se verdadeiramente, reproduzindo em si mesma,
como em uma forma de mimetismo-psíquico, as caracteríticas
dos homens que a circundam. E assim, crescendo, não torna-se
simplesmente um homem, mas transforma-se em um homem
de sua raça.
Com essa descrição tocamos um segredo psíquico de im­
portância vital para a humanidade: o segredo da adaptação.

A AD APTAÇÃO

A adaptação, como está convencionada pela teoria da


evolução, terminaria por produzir os “caracteres da espécie”
o que os faz diferir uns dos outros a fim de que se fixem e
que sejam transmitidos inalterados por hereditariedade.
No homem, que deve adaptar-se a todas as condições
e circunstâncias do ambiente e que nunca se fixa em seus
hábitos, porque evolui continuamente no caminho histórico da
civilização, deve haver um “poder de adaptação” rápido que
substitua a hereditariedade no campo psíquico. Ora, esta adap­
tação, se bem que seja demonstrada pelo fato do homem
encontrar-se em todas as regiões geográficas da Terra, em
todas as latitudes, em todos os níveis do mar, ao lado das
altas montanhas, não é algo próprio do adulto. O adulto não
se adapta facilmente, ou melhor, quando nele estão fixados os
caracteres da raça, vive bem somente naquela região e vive
feliz somente quando está imerso nesses caracteres que estão
fixados nele.
A adaptação do adulto que imigra, ou que vive entre
povos de costumes diferentes, exige um grande e penoso es­
forço. Os exploradores são heróis e os que vivem longe de seu
próprio centro de vida são os exilados.
Ao contrário, aqueles que estão adaptados só em seu pró­
prio centro, nas condições estabelecidas pelo seu grupo racial,
são felizes. Os esquimós sentem o fascínio pelo gelo, como os
etíopes sentem atração pela selva, e como quem vive à beira-
-mar é fascinado pelo oceano e os povos do deserto gozam a
poesia das dunas áridas e infinitas. Sofre um grande esforço,
aquele que não está adaptado às novas condições de vida. Os
missionários consideram suas vidas como sacrifício.

62
%

A criação é um instrumento que não só faz amar a cada


uni o próprio ângulo de terra e o prende atada aos próprios
costumes, mas, é também pela mesma razão, o veículo de
passagem através da evolução da civilização. Todo homem
está adaptado em seu tempo, vivendo bem nele. Como nós
não saberíamos mais nos adaptar a um modo de vida social
de mil anos atrás, também o homem de mil anos atrás que
não tinha máquinas e rápidas comunicações, não poderia viver
entre os rumores e os movimentos rápidos do nosso ambiente
mecanizado e ficaria aterrorizado com os milagres que o ho­
mem conseguiu com suas descobertas; entretanto nós encon­
tramos neste ambiente o prazer, ou melhor dizendo, o confor­
to de nossa vida.
O mecanismo é simples e claro: a criança encarna em
si o ambiente que encontra e constrói em si, o homem adapta-
,do a viver. Ela vive, para realizar esta função, um período
embrionário que é próprio unicamente do homem; vive ocul­
tamente na aparência de um ser vazio e inerte.
Somente hoje, após a primeira década do nosso século,
começou-se a estudar a criança e todos que a tem estudado
©itfio chegando à conclusão de que os primeiros dois anos
de vida são o mais importantes, pois neles ocorrem os de­
senvolvimentos fundamentais que caracterizam a personalida­
de. Enquanto o recém-nascido não tem nada, nem mesmo o
poder de mover-se, eis que a criança de dois anos fala, corre,
compreende, reconhece as coisas do ambiente. Depois ainda
mm infância se prolonga, na idade dos jogos para organizar
sumn criações inconscientes tornando-as conscientes de si
mesma.
A vida se divide em período bem distintos. Cada período
.irrínnvolve suas propriedades que são criadas pelas constru­
ídos das leis da natureza.
Se essas leis não forem respeitadas, a construção do
indivíduo pode tornar-se anormal, monstruosa, mas curando-a,
n>m o interesse de descobrir e ajudar as leis do desenvolvi­
mento, podem ser manifestados caracteres mais conhecidos e
étu proendentes, nos quais pouco a pouco se entreveem as in­
ternas o misteriosas funções que dirigem a criação psíquica do
tto ffitm .
As crianças têm grandes poderes que nós ainda não sa­
ltemos utilizar.
Na civilização atual um dos mais ameaçadores perigos
é o de estar contra as leis na educação e o de sufocá-la ou
diformá Ia sob erros dos preconceitos comuns.

63
O CONTATO COM O MUNDO

Isso tudo resulta em um fato lógico: se a criança, após


o nascimento deve formar-se sendo alimentada pelo ambiente,
deveria ser introduzida em contato com o mundo, com a vida
externa dos homens; deveria participar, ou melhor, assistir a
vida dos adultos. Se ela deve encarnar a linguagem da raça,
deveria sentir os homens que falam, assistir as conversações.
Devendo adaptar-se ao ambiente, deveria participar da vida
pública, ser testemunha dos costumes que caracterizam as
pessoas de sua raça.
Que estranha e impressionante conclusão! Se a criança
fica reclusa nos berçários, subtraída da vida social, ela se
verá impedida, diminuída, deformada, e por último, será um
anormal, um incapaz de adaptação, porque lhe foram tirados
os meios necessários para cumprir sua grande função!
Aquela criança que não fala e não se move deverá por­
tanto ser conduzida à sociedade, às funções públicas, tomando
parte na vida dos adultos? Quem teria coragem de fazer tal
afirmação, de tentar uma revolução tão profunda com respeito
aos nossos preconceitos modernos?
Apesar de todos os cuidados higiênicos e do absoluto
repouso a que as crianças atualmente são submetidas, cres­
ce assustadoramente o número de crianças difíceis, de cri­
anças retraídas, sem caráter, tímidas, com uma linguagem
pobre e interrompida por hesitações ou absolutamente de­
formada por balbucios, fato este que nos deixa perplexos
pelas inúmeras anormalidades psíquicas que tanto as atra­
palham na vida social. Todos diriam: “Este é um mal, mas
a vossa providência é absurda”.
E então recorremos à natureza. Porque a função do re­
cém-nascido é aquela, a natureza deve tê-lo promovido para
dar-lhe proteção e facilitar-lhe a função vital necessária à
sociedade.
Pois então, se constata que uma forma de vida natu­
ral e primitiva advém precisamente assim. O recém-nascido,
o pequenino, o embrião espiritual, que deve alimentar-se do
ambiente, preparar a adaptação e construir os caracteres pró­
prios da raça, participou sempre da vida social dos dultos. A
mãe leva a criancinha aos braços e a mantém consigo em
toda parte. A camponesa vai ao trabalho levando consigo a
criança; a mulher que vai ao mercado, que vai à igreja, que
conversa com as comadres, tem sempre a criança agarrada
a si.

64
%

A adaptação é o vínculo que mantém ainda atado à mãe


0 embrião espiritual; é um fato comum a todas as raças. Dessa
maneiro, o mndo que ns mães usam para agarrarem-se à crian­
ça ficando com ms mSos livres par trabalhar é uma das carac-
teríatinm dofj eoBtumes dos povcs. Seja a mãe esquimó que
prende seu filho ás costas, ou a japonesa que o prende ao ora-
bjo, a imllfiMM que o leva sobre o franco, outras, em cantões
suíços o Im n i cabeça. Desta maneira também as mães cum-
piHiii uma segunda função natural, uma função de ordem psí-
f.uiça cumprindo inconscientemente um ato necessário à salva-
çlm d i espécie. A mãe é mais que ninguém uma “revolücioná-
1 iw da educação". Não é uma mestra da criança, não a convida
a observar e a aprender, é simplesmente para ela um meio de
trmiiporte. A mãe não se preocupa se a criança observa ou
não. Para ela, como para todos, a criança é um ser vazio,
mudo, incapaz de inteligência e de movimento. E este é um
meio providencial da natureza. As coisas que a mãe observa
não são observadas pela criança e as coisas que esta observa
fogem à atenção da mãe.
Ê interessante notar isso em uma multidão primitiva,
como por exemplo, num mercado de vilarejo, onde se encon­
tram homens e animais e várias espécies de objetos, de frutas,
d© fazendas, onde as pesoas falam entre si sobre os próprios
feftizerea, Podemos observar então que o pequeno latante, o
NfM embrionário, observa com estranha fixação e com interesse
ftiuitas coisas; ele observa o ambiente nos seus vários aspectos,
tflquanto o mãe fica comprando suas mercadorias e falando
com os pessoas. O mundo, o ambiente no seu conjunto desapa­
rece para a mãè, mas não para a criança. A mãe observa a
fruta que quer comprar, mas a criança ficará encantada em
observar um cão ou um asno nos seus movimentos. Mãe e
filho aio de todo independentes em seus interesses; apesar do
Pequenino estar agarrado de tal modo que deva necessaria­
mente observar em sentido oposto ao dela. A maioria dos ami­
gos que a mãe encontra diz algumas palavras de cumprimen­
to à criança, dando a ela involuntariamente repetidas lições
d» linguagem.
Nas raças pouco evoluídas o aleitamento é muito longo;
dura quase um ano e poderá ainda durar dois. Em todo esse
tempo importante da vida, a criança faz a conquista do ambi­
ente. Verdadeiramente não é mais necessário para o corpo que
• riança ao alimente por tanto tempo do leite materno; não
r neetrairio m.ns a mãe tem instinto de amor para não sepa-

65
íar-se dela e levá-la sempre ainda que a criança naturalmente
aumente de peso.
Um missionário francês, que havia estudado especialmen­
te os costumes dos povos de Bantu, na África Central, mara­
vilhou-se com o fato de que as mães não têm em mente a
idéia de separar-se de seus filhos considerando-se quase como
um só corpo. A criança é parte da mãe. Tendo assistido a uma
solene coroação real, aquele missionário viu a rainha chegar
com a criança ao braço e receber a honra soberana tendo seu
filho junto a si. Ficou maravilhado com o fato de que as mu­
lheres de Bantu pudessem amamentar por tanto tempc, que
geralmente era de dois anos inteiros, isto é, durante toda a
época que interessa atualmente aos nossos psicólogos mo­
dernos.
Não queremos considerar revolucionários esses testemu­
nhos naturais. Nós que observamos com admiração, estamos
dispostos a atribuir o mérito desses costumes, o caráter tran-
qüilo dessas crianças que não são difíceis e não apresentam
“problemas” como os nossos. O segredo está contido em duas
palavras: leite e amor.
A natureza, a sábia natureza, deve ser a base sobre a
qual pode-se construir uma supernatureza ainda mais perfeita.
É certo que o progresso deve superar a natureza e tomar di­
versas formas, porém não pode proceder atabalhoadamente.
Essas breves citações abrem um caminho prático para a
afirmação genérica que começa a invadir nosso mundo cien­
tífico: “a educação deve começar ao nascer”.

CONCLUSÃO

O homem não é nem um corpo vegetativo que vive uni­


camente de alimento material, e nem ao menos está destina­
do unicamente às emoções sensuais. O homem é aq iele ser
superior, dotado de inteligência, que está destinado a uma
grande tarefa sobre a terra: transformá-la, conquistá-la e uti­
lizá-la, construindo um novo mundo maravilhoso, que supera
e se sobrepõe às maravilhas da natureza. É ele quem cria a
civilização. Seu trabalho é ilimitado sendo o objetivo de seus
membros físicos. Desde o seu aparecimento na terra ele é um
trabalhador. Os primeiros relatos da humanidade são as pe­
dras lascadas por suas mãos, favorecendo fins que se aumen­
taram e se estenderam ao infinito. Ele tornou-se o dominador
de todas as coisas viventes, de todas as substâncias e energias
espalhadas no universo. Parece pois “natural ao homem” que

56
a criança comece por absorver o ambiente completando com o
seu trabalho, com as experiências gradativas sobre o ambien­
te que n circunda, o seu desenvolvimento infantil. É com ab-
íiorgfiíi inconsciente e depois com atividades sobre as coisas
ejdõfnii que ela nutre e desenvolve sua qualidade humana.
Eli» eon^trói-se, forma suas características, alimentando seu
espírito,
S© o desenvolvimento se limitasse ao físico, a criança
«cria condenada a uma espécie de fome, jamais saciada pe­
la sua mente e cairia nos males profundos da “desnutrição
peíquica”. Nada de humano poderia desenvolver-se normal­
mente nela. São poucos os que descobriram que as anomalias
psíquicas, evidentes na infância moderna, reveladas aos fins
dos primeiros anos de vida são provenientes de duas coisas:
“desnutrição mental” e “falta de atividade inteligente e es­
pontânea”. São devidas a uma repressão das energias vitais,
destinadas a desenvolver a alma do homem; a uma demolição
das leis que guiam passo a passo o crescimento da criança.
O mundo civilizado torna-se um imenso campo de con­
centração onde todos os homens que nascem são relegados
e feitos escravos, diminuídos em seus valores, alienados em
seus impulsos criativos, subtraídos dos estímulos vivificantes
que cada homem tem direito de encontrar entre os que o
amam.
Esta expressão vaga deve ser concentrada assim: “É ne­
cessário construir uma nova educação que começa ao nascer.
É preciso reconstruir a educação baseando-se nas leis da natu­
reza e não em preconceitos que prejudicam o homem”.
A educação de hoje não se baseia nem mesmo na ciência
dos homens porque, atualmente está se desenvolvendo um
tratamento para os pequeninos “logo ao nascer”, que se apóia
somente no que a higiene acredita e prevê, isto é, boa nutri­
ção, especialmente a artificial, facilitando o afastamento da
mãe que acha conveniente não ter mais leite e o isolamento
da criança em um berçário, confiada a uma mulher desconhe­
cida e privada do amor materno. A criança é também conde­
nada a dormir na escuridão artificial, procurando defendê-la da
luz do dia. Quando esta sai para o mundo externo, é levada
«m um carrinho coberto de modo que não veja nada e quando
vira a cabeça tem diante de si somente a pajem, que é uma
espécie de enfermeira, comumente velha, pois sup5e-se que os
velhos têm irais experiências para cuidar das crianças. O c..

67
rinho afetuoso de uma bela e jovem mãe permanece ignorado
à criança. Ela é um corpo vegetativo; os médicos especialistas
e os psicanalistas ousam dizer definitivamente que ela é um
“tubo digestivo”. O silêncio necessário ao sono, substitui a voz
humana que fala, este “tubo digestivo” é bem estudado: onde
são medidas quantidades e qualidades de alimentos rigoro­
samente regulados e graduados. O corpo é pesado regularmen­
te para acompanhar seu crescimento. Os carinhos, o apalpar
dos membros, sugeridos pelo instinto materno são abolidos,
todavia foi a natureza que os inspirou e são, portanto, estímu­
los para a vida, reclamados pela consciência; são massagens
delicadas que preparam os músculos inertes através de um
exercício passivo que é necessário quando os movimentos
voluntários não estão ainda desenvolvidos.
Algo verdadeiramente estranho! Existe até o temor de
que os carinhos e contatos com a mãe sejam perigosos e inde­
centes podendo suscitar os instintos sexuais naqueles que ape­
nas chegaram ao mundo. Dessa maneira, as crianças estão
em perigo de perder o seu caráter e o poder de adaptação e
orientação no mundo complicado no qual nasceram,
Ê necessário que a sociedade desperte de erros tão pro­
fundes e liberte esses prisioneiros da civilização, preparando
para eles um mundo adaptado as suas necessidades supremas,
que são necessidades psíquicas. Um dos trabalhos mais urgen­
tes na reconstrução da sociedade é a reconstrução da educa­
ção que deve ser feita, dando à criança um ambiente apro­
priado para sua vida. Pois bem, o primeiro ambiente é o mun­
do, e os outros ambientes, como a família, a escola, devem
corresponder à satisfação daqueles impulsos criativos que são
guiados pelas leis cósmicas para realizar o aprefeiçoamento
humano.
Quando os preconceitos forem dominados pelo conheci­
mento, aparecerá então no mundo a “criança superior” , com
seus poderes maravilhosos que hoie Dermanecem escondidos;
aparecerá então a criança que está destinada a formar uma
humanidade capaz de compreender e de controlar a presente
civilização.

AN ALFABETISM O MUNDIAL

A questão do analfabetismo ressurge hoje com novo vigor


como um assunto da atualidade. Não se esgota mais como no
passado, na compilação de frias estatísticas ou no desgnho de

68
*£>)
tf

mapas geográficos, sobre percentuais de analfabetos que, em


várias proporções, existem ainda nas nações da Europa e da
América.
Após a segunda grande guerra, estudou-se os problemas
sociais num plano que superava os limites nacionais e o dos
continentes que têm uniformidade de raça ou de civilização,
estendendo-se a todo o mundo. Uma consequência da guerra
é que os povos asiáticos, os orientais, entraram na esfera de
interesse dos povos ocidentais, com a consciência clara de que
tcdos os povos do mundo já estão coligados. Alguns aconte­
cimentos históricos, como a independência da índia e de ou­
tros países da Ásia, e ao mesmo tempo o esforço de contri­
buir para a educação com uma aliança universal no interesse
de todos, coloca o problema do analfabetismo entre as gran­
des questões atuais. O persistir no mundo de centenas de mi­
lhares, senão de milhões de analfabetos, enquanto já se difun­
dem em todos os continentes os produtos e os instrumentos da
civilização mecânica, constitui um contraste estridente entre
0 progresso material e o progresso morai dos homens, criando
um desequilíbrio universal. De fato, a UNESCO, que estuda
a educação também como meio prático e necessário para esta­
belecer uma maior harmonia entre os povos, coloca em posi­
ção proeminente a luta contra o analfabetismo.
O problema da educação não é certamente o do analfa­
betismo, mas sim um outro problema: o respeito à formação
espiritual e a elevação intelectual da humanidade para adap­
tá-la às novas condições sociais no “novo mundo” , no qual
essa vegeta despreparada e inconsciente. Mas essa educação
deve circular através do analfabetismo, como as ferrovias cir­
culam através dos trilhos das estradas de ferro.
Na índia, hoje independente, entre os objetivos mais
urgentes, é. colocado o da educação do povo.
Ao problema de providenciar alimento para todos segue
imediatamenete o de criar escolas para crianças, instituições
culturais para os adultos e os governos orientais sentem como
•' analfabetismo é um problema fundamental a ser resolvido.
Problema semelhante apresentou-se há um século e meio
fiit às, nas nações da Europa e da América. Disseram elas en-
ííhí quo era necessário remover gradualmente o analfabetismo
1 ã ignorância, dando a todos o conhecimento chamado pelos
inglese» de 3 R: “Reading, Writing, Reckoning” : ler, escrever
s interpretar, mas sobretudo ler e escrever.

69
Grandes obstáculos se opuseram logo a estas tentativas
pois não haviam experiência precendentes que pudessem ser­
vir de orientação. Incorreu-se em muitos erros. Os países ori­
entais, pode-se dizer que são afortunados, pois mesmo havendo
obstáculos, os erros puderam ser evitados! A experiência feita
no Ocidente é para eles de grande valor. O caminho já está
traçado e pode-se avançar a grandes passos em direção ao fim
desejado.
Na Europa, os erros derivados da inexperiência em reali­
zar rapidamente sobre um plano total a educação infantil, re­
caíram sobre suas crianças. Eles foram vítimas de uma forma
de escravidão ainda não havida na história da humanidade.
Poucos conhecem que o primeiro impulso para realizar
este colossal esforço social veio de uma revolução que deu
início a novos tempos na Europa, pois assinalou os princípios
das grandes descobertas científicas e o avançado uso das má­
quinas.
A Revolução Francesa de 1789 apresentou um estranho
fenômeno. Entre as selvagens violências de uma inssurreição
popular, o próprio povo exigiu que entre os direitos do homem
estivesse o de possuir linguagem mais elevada, isto é, a lin­
guagem escrita. Era um pedido estranho e sem precedentes.
Não havia nada a fazer contra a reação do poder opressivo
que empobrecia o povo.
O povo não queria somente pão e trabalho como fez
depois, segundo os ensinamentos de Marx, nem se limitava
a exigir uma mudança nas hierarquias sociais e no governo
político, mas reivindicava o direito humano do ser instruído
para poder usar também esta arte. II da Declaração dos Di­
reitos do Homem e do Cidadão, sancionada em 1791: “A livre
comunicação dos pensamentos e das opiniões é um, dos di­
reitos mais preciosos do homem” : cada cidadão pode, portan­
to, faiar, escrever e publicar livremente. Foi por certo uma
das poucas vezes que ao invés de uma diminuição de traba­
lho, o povo pediu para fazer uma nova aquisição com um
esforço que cada indivíduo deveria cumprir por si só, à custa
de penosa fadiga.
O pedido nascia de algo bem maior que o desejo de rom­
per as cadeias da tirania. De fato, foram necessários três anos
para estabelecer os princípios de uma nova vida social e para
abater a monarquia; mas foi necessário um século para esten­
der ao povo o conhecimento da linguagem escrita.
Se bem que o grito de guerra fosse “liberdade” , esta con­
quista não foi feita através da liberdade, pois se fez necessária

70
a coerção. A realização prática de colossal tarefa não foi atin­
gida pela destruição de uma monarquia que havia desfrutado
do povo, mas foi conquista de uma outra monarquia: o pri­
meiro Império Francês. Napoleão, paladino da Revolução
Francesa, fortaleceu o povo e, percebendo ser impossível que
as velhas pondições fossem restabelecidas, levou decisivamen­
te o povo para uma nova vida. '
Vê-se então a plebe da França transformada, por seu
toque mágico, numa onda que quebra os aguilhões seculares.
Seu gesto épico deu nascimento à unica e verdadeira con­
quista que até hoje permanece: a elevação do nível intelec­
tual do povo, segundo os direitos do homem.
Com o código de Napoleão, a educação obrigatória faz
sua primeira aparição nas legislações das Nações. Uma vez
que Napoleão impôs o seu código aos povos da Europa, esse
princípio de educação conquistou não só a França, mas todo
o Império logo após as terríveis destruições da guerra.
A educação obrigatória foi estabelecida em muitos Esta­
dos europeus, passando depois à América, e iniciando assim a
lenta e difícil tarefa de eliminar o analfabetismo. Todas as
nações civis daquele tempo a assumiram.
A educação das massas abre um novo capítulo na histó­
ria humana que continua a dsenvolver-se e a expandir-se. Era
uma tarefa que requeria um trabalho mental de cada indiví­
duo e a tarefa era confiada às crianças.
Nos primeiros anos do século X IX , a criança entrou na
História como elemento ativo do progresso da civilização, mas
ao rnesmo tempo ela aparece como uma vítima. A criança não
podia compreender, da mesma forma que o adulto, a necessi­
dade dessa conquista essencial à vida da sociedade. Mobiliza­
da aos seis anos de idade, a infância sentiu só os sofrimentos
das prisões e a escravatura de ser forçada a aprender o alfa­
beto e a arte de escrever: qualquer coisa árida e aborrecida
da qual não podia julgar nem a importância nem as vanta-
t.ens futuras. Relegada aos bancos pesados, impulsionada por
castigos, aprendeu sob a coerção, sacrificando não só o seu
débil corpo como também sua personalidade.
Assim, sempre aconteceu na penosa história dos homens.
Todas as grandes conquistas são obtidas à custa de escrava­
tura. Os grandes monumentos egípcios, a expansão marítima
de Roma, tiveram como necessidade primordial o sacrifício
de homens, forçados com açoites ao duro e monótono traba­
lho de transportar blocos de pedra e de mover g s remos. Tam-
W-m para esta nova conquista de um grau mais alto de intelí-

71
gência, para adquirir o uso universal do ler e escrever, a hu­
manidade teve necessidade de escravos e os escravos foram
as crianças.
No princípio do século X X , foi iniciadG um movimento
para aliviar as condições das crianças condenadas a “estudos
forçados'*, porém, por mais que se tivesse feito nesse sentido,
a criança está ainda hoje longe de ser considerada na pleni­
tude de seus direitos naturais de homem.
Não se está ainda suficientemente persuadido de que a
criança que estuda na escola é um homem em potencial; que
seu valor não consiste unicamente em ser o meio de elevar o
povo a um nível mais alto de cultura, de atingir os objetivos
nacionais, de conseguir as vantagens práticas para a sociedade.
Ela possui os “seus próprios valores” e se a humanidade deve
ser melhorada a criança deverá ser melhor conhecida, sendo
respeitada e ajudada, porque a humanidade permanecerá im­
perfeita como o é agora se persistirem os diferentes níveis de
desenvolvimento e as conseqüentes desarmonias que não lhe
permitem avançar no caminho para o progresso. A sucessão
dos infaustos eventos de nossos dias demonstra que é urgente
e essencial cultivar as energias humanas.
Nos países onde atualmente a educação obrigatória faz
sua primeira aparição, podem ser muito importantes as expe­
riências precedentes, podendo estas partirem de um alto nível.
Não é preciso mais considerar a criança como um meio de
progresso, como um escravo que sobre suas costas deve acu­
mular o peso do progresso da civilização. A educação deve
começar ajudando o desenvolvimento da própria criança e,
portanto, como incremento à potencialidade do povo.
As necessidades da criança, as ajudas necessárias para
sua vida, devem ser as preocupações fundamentais da educa­
ção moderna.
“Necessidades das crianças” não são. somente as da vida
física. As da inteligência e as da personalidade como homem,
são muito mais urgentes e muito mais elevadas. A ignorância
é ainda mais fatal ao homem do que a desnutrição e a po­
breza.
Muitos pensam que o respeito pela criança e a considera­
ção por sua vida psíquica significa não esforçá-la, isto é, evitar
o trabalho mental. Ao contrário! Quando se leva em conside­
ração como base as energias naturais ou, em outras palavras,
quando o plano da educação segue psicologia especial do de­
senvolvimento humano, alcançar-se-á não só um vasto e rápi­

72
do progresso na cultura mas se reaiizará também uma inten­
sificação dos valores pessoais.
Os progressos da nossa civilização apóiam-se em bases
científicas. A educação, pontanto, deve também ser colocada
6obre essas bases.
Aprender a ler e escrever é o início da educação obri­
gatória, o fundamento no qual se baseia e é considerado como
um dos muitos objetivos da instrução. É necessário, portanto,
que seja distinto de todo o resto da cultura. A posse da arte
de escrever não é uma pura habilidade mas representa a posse
de uma forma superior de linguagem que se acrescenta à lin­
guagem natural, completando-se e integrando-se com ela.
A linguagem falada se desenvove natural mente em cada
homem, pois sem ela o homem seria um infeliz, um extra-so­
cial, um surdo-mudo.
A linguagem é uma das características que diferencia
o homem dos animais. Ê um dom natural dado somente a ele,
uma expressão de sua inteligência. De que adiantaria possuir
inteligência se o ser humano não fosse capaz de compreender
e transmitir seus pensamentos? Sem linguagem, como poderia
associar-se a outros homens para alcançar um propósito co­
mum, para executar um trabalho?
À linguagem falada se desenvolve naturalmente em cada
dos que estão perto e esta é a razão pela qual os homens,
desde a mais remota antigüidade, procuram outros meios, para
transmitir mais longe seus pensamentos e para fixar suas re­
cordações. Sinais gráficos foram gravados nas rochas ou escri­
tos em peles de animais. Destas tentativas, através de inúme­
ras transformações, chegou-se ~gfadualmente à invenção do
alfabeto. Foi uma aquisição da máxima importância! “Esta
conquista — diz Diringer — é muito maior e mais importante
do que qualquer outra para o progresso da civilização, porque
ela pode unir o pensamento de toda a humanidade através do
desenvolvimento este sucessivo das gerações. A aifabeto con­
sidera não somente este desenvolvimento externo, mas a pró­
pria natureza do homem, porque completa a linguagem natu­
ral, atingindo uma outra forma de expressão.”
Se o homem é superior aos outros animais que não pos-
#U#m uma linguagem articulada, então, o homem que pode
lt*r e escrever é superior aos outros homens que podem somen­
te falar. Somente aquele que escreve possui a linguagem ne-
cèBsúria à cultura dos nossos tempos portanto, a linguagem
escrita não pode ser considerada somente como uma matéria
de estudo e uma parte da cultura, pois é ela uma característica
do homem civilizado.
O progresso da civilização de nossos dias não pode florir
entre homens que possuam somente a linguagem falada, sendo
portanto o analfabetismo o maior obstáculo ao progiesso.
Recentemente, por acaso, tive conhecimento de uma notí­
cia. Na China, além dos movimentos e Chiang-Kai-Shek e dos
comunistas, há um outro movimento, nascido de um jovem
que está dedicando sua inteligência para simplificar a escrita
chinesa. Isto vai de encontro a uma necessidade de seus país,
que ninguém até agora havia compreendido. A atual escrita
chinesa requer o conhecimento de pelo menos 9.000 símbolos,
o que torna impossível remover a ignorância das massas. Aque­
le jovem reformador, sem introduzir novas idéias, nem novas
formas de governos, nem melhores condições econômicas e
nem mesmo liberdade, conquistou na China uma grande po­
pularidade e prestígio.
Ele é evidentemente um grande benfeitor para o povo
chinês, que sente necessidade de tomar parte no progresso
mundial; aquele progresso que só se atinge com a elevação
da personalidade. O povo chinês sente que seu direito fun­
damental e primeiro é possuir as duas linguagem necessárias
ao homem civilizado. As duas linguagem são o ponto de parti­
da e depois vem a cultura.
É necessário por isso distinguir na escola, de um lado as
duas linguagens, ligadas com a formação do homem, e de
cutro, a cultura que deve ser adquirida em um segundo tempo.
Com este propósito, indicarei minha experiência, obtida
através do estudo da criança, que pode ser muito útil àqueles
que se esforçam na eliminação do analfabetismo: a linguagem
escrita pode ser adquirida por crianças de quatro anos, mais
tacilmente do que por aquelas de seis anos, para as quais co­
meça geralmente a educação obrigatória3. Enquanto as crian­
ças de seis anos, com grande aflição e esforço contra a natu­
reza, devem empregar pelo menos dois anos para aprender,
as crianças de quatro anos aprendem a segunda linguagem
em poucos meses4.
Essas crianças aprendem não só sem esforço e aflição
mas também com um grande entusiasmo. O fenômeno que
por mais 40 anos me tocou e fez surgir em mim o desejo

74
*

de dedicar minha vida à educação, foi o fenômeno espon­


tâneo da “explosão da escrita” em crianças de quatro anos.
Esse fato, que ilustrarei mais adiante, tem uma impor­
tância prática de enorme valor. Se de fato a assim dita
educação obrigatória começa com crianças de seis anos,,
elas encontrarão grandes dificuldades, pois, nessa época da
vida, aprender a ler e a escrever faz perder tempo e ener­
gia, impondo às crianças um árido esforço mental que
determina um certo desgosto pelo estudo e por qualquer
instrução intelectual.
Tolhe o apetite de saber antes de começar a nutrir-se.
Ao contrário, se as crianças aos seis anos já soubessem
ler e escrever, a escola poderia começar logo possibilitando
cultura de um modo fácil e interessante e as crianças entra­
riam com entusiasmo no campo dos estudos.
A diferença é fundamental.
As escolas verdadeiramente racionais e modernas, ca­
pazes de obter uma elevação do povo, devem poder contar
com suas novas crianças, aquelas que já possuam as duas
linguagens, as crianças do homem superior adaptadas para
viver em nossos tempos.
Todas as escolas começam sempre a ensinar a ler e
escrever porque a escrita fixa o conhecimento humano, sendo
por isso um procedimento lógico. Uma vez que o objetivo
da escola é dar conhecimento, é necessário dar às crianças
os meios para tornar esses conhecimentos duradouros. Ler e
escrever são as chaves que podem abrir as imensas reservas
do conhecimento humano, reunidas fixadas e acumuladas nos
livros, com a arte da escrita.
Como já havia dito antes, duas coisas devem ser dis-
dntas: a escrita, que por si só é uma arte, e o conhecimento.
A escrita tornou-se acessível a todos depois da inven­
ção do alfabeto, que a simplificou de tal modo tornando-a
acessível à criança.
Tal invenção não somente simplificou mas humanizou*4

í No Brasil a alfabetização obrigatória tem início aos


7 anos. (N.T.)
4 Sendo o processo ortográfico de nossa língua misto,
fonético etimológico, a idade ideal para iniciar a
alfabetização montessoriana em nosso país é dos qua­
tro anos e meio aos cinco anos. (N.T.)

75
a escrita, porque ligou diretamente a linguagem escrita ccm
a falada fazendo daquela um complemento desta.
A linguagem falada é composta de poucos sons essen­
cialmente distintos, de quantidade limitada* porque depen­
dem da possibilidade das combinações dos movimentos dos
órgãos vocais que têm, por sua vez, um limite, que é o mesmo
para toda a humanidade. Em algumas línguas são usados so­
mente 24 ou 26 sons essenciais, em outras, mais; mas os sons
são sempre limitados. Ilimitadas, ou quase, são as combina­
ções destes sons, óu seja. as palavras. Não há limites para que
haja um enriquecimento de palavras numa língua, não há di­
cionário que possa conter todas as palavras que podemos for­
mar unindo letras e sílabas segundo as leis matemáticas das
combinações e permutações.
A linguagem escrita alfabética consiste em dar a repre­
sentação, com sinais gráficos, de cada som que compõe uma
palavra. O resultado 6 que estes sinais são pouco numerosos,
isto é, tão pouco como são os sons. Esta representação é per­
feitamente obtida nas línguas fonéticas. Mais ou menos per­
feitamente toda linguagem escrita é baseada neste simples
princípio. O fato de que nem todas as escritas alfabéticas cor­
respondem foneticamente à linguagem falada é uma dificul­
dade resultante do alfabeto não ter sido aplicado completa­
mente, segundo o seu significado, mas essa dificuldade pode­
rá ser corrigida facilitando assim a escrita. Não há dúvidas de-
que as línguas e as suas traduçpes na escrita estão ainda em
desenvolvimento e continuámente se aperfeiçoando.
Esta é a razão pela qual a aprendizagem da escrita deve­
ria começar de uma análise dos sons da palavra, pois este é o
caminho que deve ser seguido.
A escrita não deveria iniciar-se com os livros usados na
escola atual que começam representando sílabas e palavras
impressas: as cartilhas.
Para o uso correto do alfabeto na aprendizagem da escri­
ta, deveriam ser dados somente os simples sinais do alfabeto,
colocando-os em relação direta com os sons que sao por eles
representados. Dessa maneira as combinações das palavras es­
critas poderiam derivar diretamente da linguagem falada que
já está desenvolvida na mente* Isto é tão simples que pode
levar a escrever como por magia porque os sinais alfabéticos
são geralmente simples, de fácil execução, pouco numerosos
e, portanto, fáceis de serem recordados.
Um raciocínio lógico leva à conclusão de que se este pro­
cedimento fosse aplicado, a escrita deveria surgir espontanea­

76
«•

mente, representando imediatamente toda a linguagem falada


que cada um possui.
Agindo desta maneira, o problema de aprender a escrever
seria resolvido sem dificuldade. Poder-seda não so‘ aprender a
escrever em poucos meses, mas a. escrita poderia também de­
senvolver-se espontaneamente completando-se gradualmente à
medida que a mente vai se concentrando nesse exercício.
O alfabeto diretamente ligado com a linguagem falada é
o modo da alcançar a arte de escrever seguindo uma via inte­
rior, atingindo a habilidade de escrever, que é resultante da
análise da palavra que todos possuem e da atividade da pró­
pria mente interessada nesta mágica conquista.
Se ao contrário, a aprendizagem partir de livros, isto é,
da habilidade de ser, dos livros que apresentam palavras es­
colhidas arbitrariamente que se deve aprender, as dificuldades
se multiplicarão, resultando uma linguagem separada, uma
linguagem escrita escolhida de fora, originada do decifrar síla­
bas e palavras que não têm nenhum interesse.
É como se fosse feita uma tentativa de construir externa-
mente uma outra linguagem começando pelos sons, pelos bal-
bucios sem sentido como aqueles da criança durante o primei­
ro ano de idade, seguindo um processo igual ao usado pela
natureza ao construir a linguagem articulada num ser sem inte­
ligência e sem habilidade motora, como é o homem ao nascer.
Se, ao contrário, o alfabeto for ligado à linguagem falada,
o processo torna-se uma simples tradução da própria lingua­
gem em sinais gráficos.
Então é sempre ligado à palavra que tem um significado
para a mente que o processo da escrita acontece por uma atra­
ção natural.
É dupla, portanto, a linguagem que se possui, e fixada
de uma forma estável. Cs olhos e a mão agem em conjunto
sobre o tesouro que foi acumulado naturaímente através do
ouvido e dos órgãos vocais. Mas, enquanto a linguagem falada
é um sopro que se desvanece no espaço, a linguagem escrita
torna-se algo permanente, que permanece fixo diante des olhos
« que pode ser manejado e estudado.
É por esta sua direta relação com os sons das palavras
qu© o alfabeto representa uma das maiores invenções da hu­
manidade.
Mais que qualquer outra invenção, o alfabeto influenciou
o progresso humano porque modificou o próprio homem, dan­
do-lhes novos poderes superiores à sua natureza, dando a ele

77
a posse de duas linguagens, uma natural e outra supernatural.
Com esta última o homem pode transmitir seus pensamentos
para pessoas distantes, pode fixá-los para seus descendentes,
pode enriquecer-se, através do tempo e do espaço, dos produ­
tos intelectuais de toda a humanidade.
“É surpreendente — diz Diringer — que a história da
escrita seja uma “Cinderela”, tanto para os homens cultos
como para os incultos. Esta história não é objeto de estudo
na universidade, nem na escola secundária, nem na primária
e nenhum museu importante achou necessário oferecer ao pú­
blico uma exposição demonstrativa do desenvolvimento da
escrita.” (D. Diringer, L ’Alfabeto)
Concentrados nos progressos externos, os homens não pres­
taram muita atenção a esse mágico instrumento.
A escrita não é o alfabeto. A escrita é uma série de ten­
tativas para transmitir o pensamento de um modo prático e
permanente. A sua história remonta há milhares de anos. O
homem no princício tentou representar os objetos de seu pensa­
mento por meio de desenhos, depois simbolizou as idéias em
sinais e só recentemente encontrou uma solução simples no
alfabeto.
Não são as idéias que devem ser representadas por meio
de figuras, mas sim, a linguagem nos seus sons componentes,
porque somente a linguagem pode representar genuinamente
as idéias e o conteúdo dos pensamentos mais elaborados. O
alfabeto permite fazer isto porque traduz fielmente a lingua­
gem falada.
No ensinar a escrever, a função do alfabeto não é leva­
da em consideração. Ele é somente apresentado como uma
análise da linguagem falada. Fica submerso na escrita, sem
objetivo e sem interesse.
Constitui por isso um árido princípio de estudos. O seu
objetivo e a sua vantagem ficam escondidos por longo tempo
na mente da criança. A linguagem escrita é ensinada nas lín­
guas perfeitamente fonéticas, do mesmo modo como se ensi­
naria a escrita chinesa, que não tem uma relação direta com
os sons das palavras e que não possui a maravilhosa e prática
simplicidade do alfabeto.
A nossa experiência, que se iniciou com crianças entre
três e seis anos de idade, nos fins de 1906 em Roma, é, eu
creio, o primeiro e único exemplo de ensinar a escrever ligan­
do diretamente os sinais gráficos do alfabeto com a linguagem
falada, sem o uso de livros.

78
*

O resultado maravilhoso e inesperado foi que a escrita


surgiu “explGsivamente” , começando com palavras inteiras, as
quais brotavam sem cessar da mente da criança que com suas
mãozinhas cobriam de palavras a lousa, o chão e as paredes,
em incansável e exaltante traoalho criativo. Esse fenômeno
impressionante acontecia com crianças entre quatro e quatro
anos e meio de idade.
Eu estou certa de qua esta velha experiência poderá
tornar-se útil hoje para combater o analfabetismo, utilizan­
do os recursos da natureza.
Afinal, é um progresso prático colocar a escrita no seu
real e simples aspecto, ligando-a diretamente com a lingua­
gem falada. É um processo prático que pode ser aplicado
tanto à criança quanto a adultos. Então, a escrita torna-se uma
forma de auto-expressão e desperta um interesse e uma ativi­
dade que são exaltados pelo entusiasmo de uma conquista
evidente e de um novo poder que se vai adquirindo. A lingua­
gem escrita, depois de uma primeira fase que se estabelece no
indivíduo, torna-se um talismã que permite penetrar no oceano
da cultura, abrindo mais ou menos largamente, mas abrindo
a todos um novo mundo. Ós livros de leitura e as cartilhas
devem por isso ser abolidos durante o primeiro período no qual
a escrita é adquirida como uma nova forma de auto-expressão.
O alfabeto funciona, então, como uma chave que é girada in­
ternamente.
A cultura em si é algo separado da escrita. Pode-se bem
imaginar um homem de grande experiência e valor moral que
permaneceu analfabeto antes da invenção do alfabeto, mas,
nos nossos dias, é inconcebível um indivíduo iletrado, mesmo
que tenha um grande valor moral, que seja um participante
da cultura própria de seu tempo.
Os dois diferentes aspectos, sob os quais podemos consi­
derar a linguagem, levam a uma distinção que pode ser de
grande ajuda prática.
A linguagem escrita diz respeito a auto-expressão sendo
um simples mecanismo criado na personalidade e que se pode
analisar nas suas partes, sendo essa análise a que tem valor.
Ser letrado ou iletrado, isto é, culto ou ignorante, é uma
outra coisa do que saber escrever ou ser analfabeto.
O escrever está em relação somente com o alfabeto e,
por isso, com a linguagem falada, isto é, com a análise do
som. Ser letrado, instruído ou culto ó penetrar na literatura,
ligada com o mundo externo, com os livros que fixam as ima­
gens e os pensamentos através da leitura.

79
A nossa experiência feita com crianças de quatro anos
(época na qual a escrita pode “explodir” como consequên­
cia dè uma conquista já feita) foi muito importante.
A linguagem se desenvolve até os cincos anos de idade
e a mente se encontra então numa fase de atividade e inte­
resse para tudo aquilo que se liga com a palavra.
É este o tempo, poder-se-ta dizer, “a estação da vida”
na qual a linguagem escrita pode frutificar. A frutificação
não depende somente da semente e da preparação do solo,
mas depende também da estação do ano na qual iremos plan­
tar.
A análise da escrita no seu mecanismo* que permite ligâ-
-la alfabeticamente com a lingagem falada pode ser útil tanto
para as crianças como para os aduítos, mas a época favo^
rável é aquela na qual a linguagem falada espontaneamente
vai se completando e se aperfeiçoando. Este é c período sen­
sitivo psíquico” colocado pela natureza, com tal objetivo, na
criança pequena. Pode-se aqui realmente usar o termo “desen­
volvimento da linguagem escrita” , porque colocando o alfabe­
to em conexão com os sons das palavras, as duas linguagens
se desenvolvem, se expandem e se enriquecem* como se fos­
sem um conjunto orgânico.
A preparação do mecanismo é um processo natural. Tam­
bém a linguagem falada começa com os balbucios prolongados
que fazem funcionar mecanicamente os órgãos da palavra.
Somente aos dois anos de idade, quando os movimentos estão
estabelecidos, a linguagem se desenvolve sob o impulso da in­
teligência, que absorve então novas palavras e continua a aper­
feiçoar a própria construção da linguagem, absorvendo-a do
ambiente e das pessoas entre as quais, vive a criança.
Existem, portanto, duas diferentes fases: uma na qual
o mecanismo (isto é, a ágil função dos órgãos da palavra)
vai sendo preparado através de longos exercícios, e uma segun­
da fase, intelectual, na qual a linguagem desenvolve a sua
construção expressiva.
Esta segunda fase, isto é, o período intelectual do desen­
volvimento natural da linguagem, pode ser ajudada pelo alfa­
beto para o seu aperfeiçoamento do mesmo modo como no
adulto a inteligência se aperfeiçoa com a aquisição da cultura,
quando ele sabe ler e escrever..
O fato importante é que o alfabeto e a conseqüente habi­
lidade de escrever “ajudam” o desenvolvimento da linguagem
na criança e sendo uma real ajuda ao seu desenvolvimento

80
natural, que chega no tempo certo, é absorvida com vital
avidez.
Os símbolos alfabéticos que são dados às crianças, como
nós damos, em forma de objetos separados, que se pode mane­
jar, não agem somente como estímulos que requerem a ativi­
dade da consciência em favor da linguagem articulada, adqui­
rida primeiro inconscientemente mas levam a anlisar os sons
que compõem a palavra, dando também a esses sons uma
forma visível que permanece sempre diante dos olhos.
O alfabeto móvel é um instrumento obediente, que a mão
pode mover fazendo combinações e construindo palavras, como
se faria com as diferentes peças de um quebra-cabeças, que
leva a uma maravilhosa conquista.
E que conquista mais fascinante se poderia encontrar?
Aqueles poucos objetos permitem construir todas as pa­
lavras que uma criança conhece e também as palavras pro­
nunciadas por outros. Este exercício intelectual tão fácil repre­
senta por isso uma ajuda para determinar, aperfeiçoar e esta­
belecer a linguagem falada.
A base destes exercícios é evidentemente a análise da
palavra, isto é, “spilling” , o acabamento. É um exercício intei­
ramente interior que permite fazer uma análise das partes
componentes da linguagem. Isto a criança não faria, nem po­
deria fazer, sem possuir a chave que lhe é dada por esses sinais
visíveis e móveis.
A criança, deste modo descobre sua própria linguagem.
Cada tentativa para construir uma palavra é baseada sobre
uma pesquisa e uma descoberta: a descoberta dos sons que
formam a palavra que ela quer reproduzir.
Estes exercícios podem também interessar o adulto anal­
fabeto e, de fato, foi provado que é assim. O alfabeto pode
•er para todos a chave que conduz à exploração da própria
linguagem, suscitando um novo interesse. O interesse surge,
não só motivado por essa análise que faz superar a dificuldade
de ortografia na linguagem escrita, mas também porque oe
«inais alfabéticos são bem poucos e embora pouco numerosos
podem exprimir toda a linguagem em qualquer forma e em
toda ocasião. Se um adulto, por exemplo, sabe de cor uma
l>oesia ou uma prece, então todas as palavras desta poesia ou
desta prece podem ser construídas. Ê fantástico pensar que
todo» os dias as páginas dos inumeráveis jornais, são todas com
todo» o» dias as páginas dos inumeráveis jornais, são todas
combinações do alfabeto, que as conversas que se escutam no
ambiente onde se vive, tudo aquilo que é transmitido pelo
rádio, são representados por tão poucos objetos: as letras do
alfabeto!
Pode-se oem compreender como o homem iletrado sen­
te-se elevado espiritualmente por este pensamento que pode
ser para ele uma revelação e uma inspiração!
Mas não são estas idéias que fascinam as crianças e sim
as ações das energias vitais. Os exercícios com o alfabeto lhes
dão emoções exaltantes, pornue no período do desenvolvimen­
to da linguagem existem nelas uma chama viva que arde em
cada obra da criação.
Na nossa primeira escola as crianças carregavam freqüen-
temente, como se fossem bandeiras, algüns cartões que repro­
duziam as letras do alfabeto, mostrando-os com seus gritos de
alegria e ímpetos de entusiasmo.
Nos meus livros eu falo das crianças que passeavam
sozinhas, como monges em meditação, analisando as palavras:
‘Tara escrever Sofia preciso d e s - o - f - i - a.”
Uma vez um pai perguntou a seu filho que freqüenta-
va nossa escola: “Você vai bem?” O filho respondeu enfa­
ticamente: “Bem?. . . B - E M - ” , pois aquilo que ele havia
compreendido era uma palavra e logo a analisava em seus
som componentes.
Os exercícios com o alfabeto móvel movimentam inteira­
mente a linguagem e provocam uma atividade propriamente
-intelectual.
É necessário notar, todavia, que em todos esses exercícios
a mão não escreve. A criança pode construir palavras longas e
difíceis sem nunca haver escrito, sem nünca haver segurado
uma caneta.
O exercício de compor a palavra é somente uma prepa­
ração para escrever, mas, nesse exercício são unidos poten­
cialmente as duas coisas: o escrever, porque dos exercícios
resultam objetivamente a palavra escrita e o ler, porque quan­
do se olha aauelas palavras escritas se lê. Por isso, esses con­
tínuos exercícios de construção tanto da palavra falada quanto
da escrita, preparam não só para escrever, mas para escrever
corretamente.
As crianças geralmente escrevem errado quando estnn
na escola. Esta séria dificuldade da escola comum (tanto quo
na América existem hoje clínicas para correção de ortogra­
fia) é resolvida inteiramente com as construções feitas com 0
alfabeto móvel. Este exercício prepara para ler sem livro a
para escrever sem escrever.

82
«■

Ê como eu defino: “a linguagem escrita liberta dos meca­


nismos."
O escrever realmente, isto é, com a mão que traça com a
pena as letras do alfabeto, é somente um mecanismo da edu­
cação sendo, portanto, separado do trabalho intelectual, pois
se pode escrever com uma máquina ou com letras impressas.
A mão é uma espécie de máquina vivente, cujos movimentos
devem ser preparados de modo que ela possa servir à inteli­
gência e essa preparação se faz por meio de exercícios separa­
dos que estabelecem a coordenação motora necessária.
A inteligência é o órgão executivo: é uma outra distin­
ção que exige na prática diferentes processos de preparação.
Quando se começa, como se faz nas escolas comuns a
«prender a escrever escrevendo, encontrar-se-á dificuldades
que, se não forem insuperáveis, serão certamente inibidoras
do trabalho mental. Seria como se o homem, inteligente, cheio
de idéias, desejoso de falar, não tivesse ainda à sua disposi­
ção os mecanismos para a articulação da linguagem falada.
Um processo idêntico é adotado para a linguagem do surdo-
-mudo provocando os movimentos articulados com o esforços
de falar.
O mesmo acontece quando se insiste em preparar a mão
para escrever, fazendo-a escrever.
Se um operário, cuja mão já esteja endurecida, deve
começar a usar uma caneta cuja ponta é muita delicada, ou
um lápis, ele deve empreender exercícios que lhe são difíceis,
penosos e desencorajantes. A pena partida, a mancha de tinta,
a ponta do lábis quebrada constituirão um grande tormento e
seus resultados muito imperfeitos colocarão em prova heróica
a sua vontade. 1
Para as crianças a caneta, na escola elementar, parece
um instrumento de tortura e o escrever, um. trabalho forçado
imposto por coerção e contínuos castigos.
Para isto também a mão deve ter preparação, isto é, deve
aprender a escrita antes de escrever, por meio de uma série
de exercícios interessantes que são uma espécie de ginástica
semelhante àquela usada para dar agilidade aos músculos do
corpo.
A mão é um órgão externo cujos movimentos podem ser
influenciados diretamente pela educação porque esses são visí­
veis e simples, ao contrário do que acontece com o mecanismo
dn palavra que requer segredo e imperceptíveis movimentos
de orgáos escondidos, tais como a língua e as cordas vocais.

83
Também para a mão que escreve são necessárias certas
coordenações, mas estas, entretanto, podem ser analisadas com
a demora na utilização do instrumento usado para escrever, o
fluente movimento necessário para traçar com a pena o minu­
cioso desenhar das letras do alfabeto sustentando, ao mesmo
tempo, a mão leve e firme.
Da mesma forma que trabalhamos com as crianças da
nossa escola, para os adultos podemos inventar trabalhos ma­
nuais que preparem suas mãos para a escrita.
Movendo os objetos nos exercícios sensoriais, as crianças
preparam a mão e todas as ações necessárias para o ato de
escrever (ver: Método de Preparazione Indiretta delia Scrittu-
ra).
Basta somente dar uma indicação exata de como utilizar
os instrumentos da escrita.
A exatidão no manejo dá à criança um novo interesse.
Na época da primeira infância elas são impelidas pela nature­
za a coordenar os movimentos da mão, como se pode observar
no instinto de tomar em tudo, de segurar tudo e de jogar quase
todos os objetos. A mão da criança “na idade dos jogos” é
levada pela própria vida a preparar-se indiretamente para a
escrita. Nesta época a criança tem também paixão pelo desenho.
A imensa vantagem de ter uma mão nova e aninfada
por energias naturais não se encontra mais no adulto e nem
na criança de seis anos, pois estas já passaram e período sen­
sitivo ( a idade do jogo, a idade de tocar) e por isso já se esta­
beleceram ao acaso os movimentos de suas mãos.
No operário, a condição é ainda pior porque, aprendendo
a escrever, deve destruir qualquer coisa que o hábito do tra­
balho já fixou em sua mão.
Justamente por esta dificuldade é importante preparar
a mão do adulto analfabeto com qualquer exercício manual
e especialmente com o desenho, desenho este não livre, mas
conduzido com precisão por qualquer meio que guie a mão e
permita obter resultados visíveis de desenhos decorativos e
bem feitos.
Teríamos assim uma espécie de ginástica preparatória
dos mecanismos da mão que se pode comparar, em sua fi­
nalidade, à outra preparação intelectual da escrita feita com
alfabetário móvel. A mente e a mão vão sendo preparadas
separadamente para a conquista da linguagem escrita, execu­
tando ações diferentes.

84
!ralt( agora o aio finòl, isto é, traçar efetivamente com a
mio o« símbolos alfabéticos que os olhos já conhecem.
( métodos comuns que são usados nas escolas consistem
fazer a criança copiar a letra já traçada e exposta como
mofjpln. Isto parece lógico, mas é somente ingênuo porque os
movlmontos da mão não têm nenhuma correspondência direta
com os olhos. Ver não ajuda a mão a escrever. É somente a
vontade que age quando se executa uma escrita copiando-a
de um modelo.
Não acontece como no caso da linguagem falada, onde
o ouvido e os movimentos da articulação da palavra têm
aquela misteriosa e íntima correspondência, que é uma das
características distintivas da espécie humana. Por isso, copiar
é um esforço artificial que conduz a uma série de tentativas
imperfeitas, fatigantes e desencorajantes.
A mão pode ser preparada diretamente para traçar os
sinais alfabéticcs e se algum sentido pode ajudá-la, este será
o senso tátil, o senso rr iscular, mas não a vista. Para isto pre­
paramos para nossas crianças letras gravadas em lixas, coladas
sobre papel liso, que reproduzem em dimensões e forma as
letras do alfabeto móvel e ensinamos nossos alunos a tocá-las
exatamente, movendo o dedo sobre cada uma, no sentido da
escrita.
Este procedimento é muito simples e no entanto conduz
a resultados maravilhosos, porque a criança, dessa maneira,
poder-se-ia dizer, estampa a forma das letras na mão. Quando
começa a escrever espontaneamente, sua caligrafia é perfeita
e todas as crianças escrevem do mesmo modo, porque todas
tocaram as mesmas letras.
No caso de operários analfabetos, pode-se adotar o mesmo
procedimento. Qualquer operário é capaz de tocar as, letras de
lixa, guiado pelá sensibilidade tátil do dedo, podendo seguir
assim todas as particularidades dos simples desenhos relativos
ao alfabeto.
Eu sei que há cerca de dois séculos um artista que tra­
balhava no Vaticano preparou desta forma a escrita caligrá-
fica, para uso de adultos. Naqueles tempos ainda se escreviam
a mão livros e pergaminhos, finas obras de arte. A caligrafia,
isto é, a bela escrita, era uma necessidade de especialistas,
mas tornava-se dificílimo executar as mínimas particularidades
de uma escrita perfeita.
Aquele artista pensou em fazer tocar os modelos, em vez
de copiá-los e obteve a preparação de calígrafos com uma rapi­

85
dez e exatidão que haveria de requerer de outra forma, um
longo tirocínio, nem sempre seguido de sucesso.
Ê simples como o ovo de Colombo, é prático e lógico.
Então, quando tudo estiver pronto, a mente pode efe­
tivamente escrever e se a mente já se exercitou na construção
das palavras pode “explodir” de repente, escrevendo logo pala­
vras inteiras ou frases, como um prodígio, como um novo
dono da natureza. Assim aconteceu durante a famosa “explo­
são da escrita” nas crianças de quatro anos. Elas escreviam re­
produzindo a letra tocada e por isso escreviam bem, com uma
ortografia correta, já conquistada pela inteligência indepen­
dentemente.
A rapidez com que as crianças aprendem a escrever é
espantosa. Nas minhas experiências elas receberam pela pri­
meira vez o alfabeto no mês de outubro e na época do Natal
(25 de dezembro) escreviam cartas a seus pais. Antes disso
já escreviam na lousa saudações aos visitantes.
É bom por isso refletir que a mão daquelas crianças foi
preparada indiretamente para escrever pelo longo manuseio do'
material sensorial e que a língua italiana é quase perfeitamente
fonética podendo-se escrevê-la inteiramente por meio de so­
mente vinte e um símbolos alfabçticos.
Também nas línguas não fonéticas acontece o mesmo
fenômeno, mas demora um pouco mais de tempo. Em todos
os países de língua não fonética como a inglesa, a holandesa,
a alemã, as crianças foram alfabetizadas também.
Quanto à leitura, ela está, de certo modo, envolvida nos
exercícios com o alfabetário. Em uma língua perfeitamentè
fonética poderia desenvolver-se ainda sem outra ajuda, que
não fosse um forte desejo de conhecer os segredos da escrita.
*
As nossas crianças, quando aos domingos passeavam com
os pais, paravam constantemente diante das lojas conseguindo
ler os nomes que estavam escritos, mesmo os qué eram escritos
com letras de forma e maiúsculas, embora õ alfabeto por elas
conhecido fosse cursivo.
Elas faziam um verdadeiro trabalho de interpretação,
semelhante àquele que se faz para interpretar as inscrições dos
povos desaparecidos.
Tal esforço podia nascer somente de um grande interesse
em compreender aquilo que estava escrito.
Certa vez, na nossa primeira escola, freqüentada por cri­
anças filhas de analfabetos e que por isso não tinham livroí

86
s .
K

em casa, um dos meninos trouxe um pedaço de papel amassa­


do e sujo, dizendo: “Adivinhem o que ó isto” — “Um pedaço
de papel sujo.” — “Não, aqui há uma história”. As outras
crianças se reuniram em volta dele, maravilhadas, e todas se
convenceram da prodigiosa verdade.
Depois disto eles pegavam os livros e arrancavam as fo­
lhas para levá-las para casa.
Essa experiência mostra-nos que a aprendizagem da leitu­
ra depende mais da atividade mental que do ensinamento.
Com a idade de cinco anos as crianças lêem livros in­
teiros e a leitura lhes dá satisfação e divertimento, do mesmo
modo como os contos de fadas e as histórias com as quais os
adultos procuram entretê-las.
As crianças se interessam pelos livros quando sabem ler.
Isto é tão óbvio que parece supérfluo dizer.
Nas escolas comuns, a leitura começa diretamente do®
livros, as crianças devem aprender a ler, “lendo”.
Os primeiros livros de leitura são compostos baseados em
velhos preconceitos que levam em consideração imaginárias
dificuldades sucessivas de superar, começando com palavras
curtas, para chegar às longas, de sílabas simples, às compostas
e assim por diante, isto é, colocam obstáculos que devem ser
superados a cada passo.
Mas essas dificuldades não existem. As crianças encon­
tram na própria linguagem materna palavras cürtas e longas e
sílabas de toda a espécie. Basta então somente fazer uma aná­
lise dos sons e encontrar para cada um os sinais .alfabéticos cor­
respondentes. Isso é assim, por mais que possa parecer uma
coisa difícil de compreender para aqueles que ainda não conhe­
çam essa verdade! A leitura não deve ser usada para superar
dificuldades como as acima descritas.
Ela é o ingresso da linguagem escrita no campo da cultu­
ra. Não é como a escrita um meio de auto-expressão. Seu ob­
jetivo é colher e reconstruir através dos sinais alfabéticos, as
palavras e as idéias expressas por outras pessoas que falam no
•ilêncio.
A leitura também necessita de uma preparação.
Ainda que não seja possível descrever com particularida­
de os meios que usamos para essa preparação, quero novamen-
fr repetir que a leitura não começa nos livros. Nós a iniciamos
Com uma série de materiais que começam com pequenos car­
io©« onde está escrito o nome de um objeto conhecido. A crian­
ça procura entender o sentido da palavra lida, colocando o

87
cartãozinho ao lado do objeto que nele está indicado. Num
período sucessivo são escritas nos cartãozinhos frases curtas
que indicam uma ação para ser executada.
Indicar nomes ensina a distinguir uma parte da oração;
indicar ações faz distinguir uma outra parte, isto é, nos verbos.
Assim, as primeiras leituras podem ser preparadas de tal
medo que se possa introduzir o estudo gramatical da lingua­
gem.
A criança de dois anos não possui somente palavras, mas
também as sucessivas combinações necessárias para exprimir
o pensamento na linguagem materna. Porque não bastam as
palavras para dar o sentido. É também necessária a ordem
em que as colocamos para tornar claro o significado do que
queremos expressar.
Da mesma forma como a análise das palavras, nos seus
9ons componentes, durante o período da construção alfabética
ajuda as crianças na realização consciente de sua própria lin­
guagem, também a leitura, baseada nas partes do discurso,
facilita o conhecimento da construção gramatical, das funções
de cada parte da oração e da ordem que cada uma deve ocu­
par para tornar claro o período.
A gramática assume desse modo uma forma “construtiva”
ajudada por uma análise, não sendo como se costuma fazer
nos métodos comuns, uma espécie de anatomia que separa o
discurso nas suas partes, para analisá-las.
As pequenas leituras gramaticais são curtas, fáceis e cla­
ras e ao mesmo tempo interessantes, sobretudo, porque são
também acompanhadas de atividades motoras, não só da mão,
mas de todo o corpo. Estas ativas leituras gramaticais condu­
zem a um desenvolvimento das ações e dos jogos, que ajudam
a explorar a linguagem, isto é, aquela maneira de exprimir-se
que foi adquirida inconscientemente.
Por isso: a exploração da linguagem que já se encontra
construída é feita por meio de atraentes exercícios práticos,
ligados com a leitura.
Para que a leitura das frases se torne atraente elas são
preparadas com escritas não somente grandes mas em vária«
e vivas cores. Isto torna não só mais fácil a leitura, mas per
mite distinguir com facilidade as diferentes partes da oração,
É neste ponto, nesta época da vida, que a criança pode
ser ajudada a corrigir os defeitos gramaticais de sua lingua­
gem, do mesmo modo que a construção alfabética ajuda a
ortografia.

88
No procedimento desta experiência se apresentam fatos
que são de difícil compreensão para aqueles que ainda não
estejam trabalhando em nosso método. Por exemplo: o fato
de não existir uma progressão sucessiva entre os exercícios, por
serem feitos em conjunto e podendo ser repetidos muitas vezes
àqueles que já tinham sido feitos. Os que seriam considerados
mais difíceis nas escolas comuns podem anteceder outros exer­
cícios considerados mais fáceis, alterando-se uns aos outros,
na mesma manhã. Pode acontecer que uma criança de cinco
anos, que já sabe ler livros inteiros, volte a tomar parte en­
tusiasticamente nas leituras gramaticais, participando de jogos
que já conhece.
A leitura apresenta-se então diretarnente no plano da
cultura, porque não se limita somente a fazer ler, mas pene­
tra no progresso do conhecimento: o estudo da própria língua.
Durante esse brilhante procedimento são encontradas e supe­
radas todas as dificuldades gramaticais. Também aquelas pe­
quenas variações que as palavras devem suportar para adapta­
rem-se às particularidades de um discurso expressivo: os pre­
fixos, os sufixos, as flexões, tornam-se uma exploração interes­
sante. As conjugações dos verbos têm suscitado uma espécie
de análise filosófica que faz compreender como o verbo numa
oração é a voz que fala das ações, não é a indicação de ações
efetivas que se estão concluindo e ergue diante da consciência
as diversas latitudes do tempo. Os verbos irregulares (tão di­
fíceis de aprender) já existem na linguagem e é necessário
somente descobrir que são irregulares.
Ê completamente diferente de quando se estuda a gramá­
tica de uma língua estrangeira, onde todas as coisas devem
«er aprendidas.
Mas não se estuda porventura assim nas escolas comuns,
ã gramática, a língua materna?
A própria língua é estudada como se fosse uma língua
©etrangeira.
Prescinde-se do trabalho divino e misterioso da criação,
*!<> maior milagre da natureza.
Ê fácil compreender que as leituras gramaticais, com sua
simplicidade e clareza possam ser usadas também pelos adul­
tos analfabetos.
Do outra forma eles, para aprender a ler, deve: iam es-
fgrçar Ne para compreender a escrita de um livro que não
nenhuma atração na uniformidade monótona da estam-
l»s Isso requer a dificuldade de conhecer ao n :mo tempo

89
dois alfabetos diferentes: aquele com o qual se escreve e aque­
le com o qual se lê.
A exploração gramatical da linguagem ajuda não só a
leitura mas também consegue estimulantes satisfações pois,
vai de encontro à linguagem que já se possui, enquanto ler
os livros faz concentrar sobre pensamentos que vêm de fora.
Praticamente, pois, para ensinar uma massa de homens
analfabetos não seria fácil encontrar muitos professores que
conhecessem bem a gramática, mas um material preparado
pode assumir esta imperfeição de professores improvisados e
a fadiga de ensinar para o próprio professor é aliviada.
Numa recente experiência feita na Inglaterra depois da
segunda grande guerra, uma professora escocesa disse: “Eu
me sentia embaraçada, com as muitas coisas a fazer, mas o
material supria a minha insuficiência, a classe estava se tor­
nando uma verdadeira feitoria gramatical com operários, to­
dos ocupados e alegre.”
A cultura em si mesma não deve ser confundida, como
disse no princípio, com aprender a ler e a escrever.
A criança de cinco anos não é culta porque possui a lin­
guagem escrita, mas porque é inteligente e pode ter apreendido
muitas coisas.
De fato, as nossas crianças, aos seis anos, possuem já
muitos conhecimentos sobre biologia, geografia, matemática,
que são devidos diretamente ao uso de um material visível e
manejável.
Este, portanto, é um argumento diferente daquele que
desejo tratar aqui. Propus-me a tratar somente da atuali­
dade que é a eliminação do analfabetismo nas massas.
A cultura pode ser transmitida através da palavra, do
rádio, e por meio de discos e projeções de filmes cinemato­
gráficos. Mas sobretudo deve-se deixar operar através de ati­
vidades, com a ajuda de materiais que permitam à criança
adquirir a cultura por si mesma, impulsionada pela natureza
de sua mente que obedece às leis de seu desenvolvimento.
Isto demonstra que a cultura é absorvida pela criança através
de experiências individuais, com as repetições de exercícios in­
teressantes, para os quais sempre contribui a atividade das
mãos, órgãos que cooperam para o desenvolvimento da inteli­
gência.
INTRODUÇÃO
CONTRADIÇÕES

I — AS REVELAÇÕES DE ORDEM N ATU R AL NAS


CRIANÇAS E SEUS OBSTÁCULOS

II — PRECONCEITOS SOBRE A CRIANÇA NA


CIÊNCIA E NA EDUCAÇÃO

III — AS “NEBULOSAS”
AN ALFABETISM O M UN DIAL

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