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O Contributo das Teorias da Cultura para as Sociedades Contemporâneas

Tiago André M. Pereira

Docente: Orquídea Ribeiro e João Bartolomeu


Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
Teorias da Cultura - 1º ano - 1º semestre
Doutoramento em Ciências da Cultura
Março 2017
Índice

Introdução --------------------------------------------------------------------------------------------- 3

1. “Cultura” uma dimensão progressiva ao longo dos séculos --------------------------------- 4

1.1 Noções do vocábulo “cultura” --------------------------------------------------------------- 4

1.2 A dimensão consciente e científica no indivíduo e na sociedade ----------------------- 6

1.3 Memória, Língua e Identidade -------------------------------------------------------------- 10

2. Subculturas do mundo contemporâneo -------------------------------------------------------- 16

2.1 Efervescência de novos valores sócio-culturais ------------------------------------------ 16

2.2 Globalização na “Era Tecnológica” -------------------------------------------------------- 19

2.3 Neotribalismo e Movimentos “Contra-Cultura” ------------------------------------------ 23

Conclusão ---------------------------------------------------------------------------------------------- 31

Referências Bibliográficas --------------------------------------------------------------------------- 33

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Introdução

No campo das ciências humanas e sociais o conceito de “cultura” é, no mundo atual, tão
abrangente que no decorrer de vários séculos as discussões, os conceitos e resultados
apresentados por diversos autores, tornaram a sua definição questionável.
Em teoria a identidade cultural é subjetiva e evolutiva, não apresentando uma forma
estanque e objetiva. A metodologia de estudo é versátil pois tem de estar inserida num
contexto sócio-económico, histórico e religioso.
Navegando entre um estado material e intelectual, a identidade compreende a memória
do indivíduo que vive sob determinadas práticas e representações culturais da sua sociedade.
Dos símbolos à linguagem, a comunicação é o veículo cultural mais dominante de um mundo
que se quer global.
A cultura ao ser percebida como essência que se revela num processo de constante
evolução e transformação, remete para as ciências indutivas, não exatas. O principio de
indução não trata de uma verdade lógica pura, mas de observações da natureza e de factos da
humanidade para inferir uma conclusão.
O homem é um ser cultural. A cultura está impressa nos nossos genes, mas não é tudo
no ser humano. Permite-lhe criar, renovar, desenvolver-se e evoluir. É indissociável da
memória, a qual é a base da nossa consciência.
Sendo a cultura uma das qualidades mais tipicamente humanas é através das
manifestações culturais e a sua capacidade recreativa, que o indivíduo se diferencia dos
demais existentes. O captar, observar e manifestar está influenciado pela identidade cultural
individual que lhe permite inserir em grupos, comunidades e ser um “Homo Sapiens” social.
O homem é ele e a sua circunstância (José Gasset) 1
Depois do século XVI, o vocábulo latino “human” [humano] usado commumente para
se referir à espécie humana, foi ultrapassado pelo vocábulo germânico “man” [homem].2

1 Frase atribuída a José Ortega y Gasset (1883 - 1955) foi um filósofo, ensaísta, jornalista e ativista político
espanhol. Internet. Disponível em http://kdfrases.com/frase/104958. (consultado em 15/02/2017)
2 Informação sobre o nome da Espécie Humana. Internet. Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/
Names_for_the_human_species (consultado em 16/02/2017)
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Na Taxonomia categorizada como a disciplina ou o processo que define, perante a
diversidade, os grupos de organismos biológicos, 3 o “Homo Sapiens” define o “Ser Sapiente”,
o “Homem Inteligente”. Dentro dessa categoria, foram muitos os rótulos atribuídos às várias
manifestações do homem ao longo da sua evolução histórica.
O “Homo educandus”, “Homo faber”, “Homo ludens” são tudo desígnios atribuídos às
manifestações do “Homem cultural”. O homem ao educar-se, trabalhar/construir novas
ferramentas e divertir-se com elas, cultiva a sua consciência. A consciência da sua capacidade
produtiva e criadora, juntamente com sua criação, é o que determina a sua dimensão cultural.
Este trabalho apresenta as noções/teorias de cultura que se demarcaram, ao longo dos
séculos, no mundo ocidental. Justifica essas noções acompanhando a época histórica em que
eles se manifestaram, de forma a evidenciar a posição/dimensão do vocábulo “cultura” nos
dias de hoje.
É no contexto atual que se revelam fenómenos culturais - Festivais Transformacionais -
nunca antes vistos, por isso complexos do ponto de vista interpretativo. O seu impacto sócio-
cultural começa agora a ser estudado, à escala global, e, é esse o caminho que este trabalho
procura apresentar.

1. “Cultura” uma dimensão progressiva ao longo dos séculos


A problemática que se instala ao definir “cultura” não é atual. Mas é no observar dessa
complexidade que se revela o essencial. “A problematização da noção de cultura é essencial
para a compreensão de modo como as sociedades modernas funcionam e, assim, devemos
refletir sobre as diferentes formas como a palavra tem sido, e é ainda, utilizada”. (Sarmento,
2015: 25)

1.1 Noções do vocábulo “cultura”


O termo “cultura” e a sua adaptação à natureza do meio ambiente leva-nos a discorrer
sobre a antropologia e sociologia, essencialmente, mas a cultura é um conceito transversal que
se reflete na psicologia social, a história, a economia, a linguistica, a psicanálise, entre outras.
A cultura torna possível a transformação da natureza e o seu estudo aproxima-nos do
conhecimento sobre o comportamento humano em diferentes épocas históricas.

3Informação sobre a Taxonomia. Internet. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Taxonomia (consultado


em 16/02/2017)
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A evolução do humano, da sociedade e do mundo em que vive, permitiu aprofundar-se
mais sobre todos as raízes ligadas com a palavra “cultura”. As palavras surgem de uma
necessidade humana de expressar. Elas têm uma história e descrevem a história.
O surgimento do vocábulo latino “Cultura”, na Idade Média, revela, apenas na época,
intenção de designar os cuidados prestados aos campos ou ao gado. A sua evolução é notória
nos meados do século XVI, [Idade Moderna] quando “Culture” passa a estar associado ao
facto de se trabalhar em vista do seu desenvolvimento [da terra ou do espirito] mas, torna-se
distinta no século XVIII, [Idade Contemporânea] para os “pensadores das
Luzes” [iluministas] que designam a cultura própria do homem, refletindo a soma dos saberes
acumulados e transmitidos pela humanidade no seu todo. É também durante o movimento do
Iluminismo que “nasce” o “Homem Científico” e há uma rutura com o poder maior até então -
a igreja.
Ou seja, a cultura é associada às ideias de progresso de evolução, de educação, de razão,
que encontramos no núcleo vivo do pensamento da época.
Filósofos, pensadores, intelectuais debruçaram-se sobre a palavra cultura que trouxe
uma discussão permanente desde a Idade Média ao século XIX.
Mas é durante o século XVIII que outra palavra vem fazer grande sucesso entre os
ilustres pensadores da época - Civilização.
A “civilização” que revela os progressos coletivos e a cultura evoca os progressos
individuais. Definida como um processo de melhoramento das instituições, da legislação, da
educação, a palavra “civilização”, liga-se à conceção progressista da história. É também neste
período histórico que se produz a primeira enciclopédia moderna (1772), na França,
agrupando todos os conhecimentos científicos da altura.
Apesar dos conceitos franceses serem transpostos para a burguesia alemã, esta assegura
que cultura é algo que não se encontra nem no seu povo, nem na sua civilizada nobreza da
corte.
A noção alemã de “Kultur” opõe-se à noção francesa universalista de civilização, pelas
mãos de Johann Herder (1774), que afirma que cada povo, através da sua cultura própria tem
um destino especifico a cumprir, porque cada cultura, exprime a seu modo um aspeto da
humanidade. Herder é considerado, então, o percursor do conceito relativista de cultura.

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O estudo e desenvolvimento do debate franco-alemão entre o século XVIII e o século
XIX é a raiz das duas conceções da cultura, uma particularista e a outra universalista, que se
encontram na base das duas maneiras de definir o conceito de cultura, nas ciências sociais
contemporâneas.
Ao longo do século XIX, a adoção de uma atitude positiva na reflexão sobre o homem e
a sociedade leva à criação da sociologia e da etnologia como disciplinas científicas.
É entre o século XVIII e XX, que o vocábulo “cultura” se distingue em várias frentes e
se revela nas seguintes definições:
- Um processo geral de desenvolvimento intelectual, espiritual e estético. Cultura enquanto
“civilização”, enquanto objeto de estudo da antropologia, disciplina académica que se
estabelece no inicio do século, para estudar e observar uma determinada comunidade;
- Os produtos e práticas da atividade intelectual e artística. Cultura erudita, arte;
- Um determinado modo de vida, de um povo, grupo, período histórico ou da humanidade
em geral. “Culturas” que surge com o crescimento dos estados-nação e interesse
romântico pelo “folclore”; (Sarmento, 2015: 26)

1.2 A dimensão consciente e científica no indivíduo e na sociedade


O conceito científico de cultura é fundamental nos estudos das ciências sociais.
Dessa forma, Denys Cuche dedica-lhe um capítulo inteiro, na sua obra “A Noção de
Cultura nas Ciências Sociais” para dar a entender ao leitor o percurso do vocábulo “cultura”
no caminho científico.
Ao defender a cultura como um estudo, a busca da perfeição, Matthew Arnold, defendia
que as oportunidades “deverão estar ao alcance das “massas rudes e desinteressadas da
humanidade” e não apenas às elites ricas e poderosas”. (Arnold APUD Sarmento, 2015: 27)
A influência de Arnold nas políticas educativas do século XX foi notória, geralmente
associada à chamada “cultura erudita”, que viria a estar em causa durante esse período
histórico, devido à revolução tecnológica que gerou novos meios de comunicação (cinema,
rádio, televisão, jornais, etc) e produziu produtos culturais para um mercado de consumidores
em forte expansão.
A segunda metade do século apresenta uma “verdadeira riqueza” em matéria cultural e o
surgimento de disciplinas viradas ao fenómeno é pertinente, levando à manifestação de mais
autores, pensadores e académicos.
A grande revolução política, religiosa, económica, tecnológica e cultural que se fazia
sentir, leva MacDonald a estabelecer “uma dicotomia passível de interpretação política, entre
a cultura de massas e a chamada “folk art”, compreendida aqui como expressão genuína da
cultura popular”. (Sarmento, 2015: 29)

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Folk art grew from below. It was a spontaneous, autochthonous expression of the people,
shaped by themselves, pretty much without the benefit of High Culture, to suit their own
needs. Mass Culture is imposed from above. It is fabricated by technicians hired by
businessmen; its audience are passive consumers, their participation limited to the choice
between buying and not buying. (MacDonald, 1957)

Estes fenómenos culturais levam autores a mostrar a sua preocupação e a discorrer


sobre aquela realidade histórica
Hoggart segue Matthew Arnold na sua preocupação com o declínio cultural e na crença na
educação como forma de o combater, mas utiliza um conceito de cultura mais vasto do que
outros críticos culturais, como Leavis e MacDonald. Para Hoggart, a cultura não é
simplesmente “o que de melhor se sabe e pensa no mundo”, mas todas as atividades,
produtos, práticas e processos artísticos e intelectuais de um certo grupo, num determinado
momento. Hoggart defende que a classe trabalhadora urbana britânica desenvolveu formas
culturais próprias, através das quais podia exprimir-se num determinado momento histórico
(anos 30), e que essas formas estariam então (anos 50) em risco de desaparecer.
O trabalho de Hoggart abre caminho para o futuro. Para o estudo de uma noção mais
alargada de cultura, onde a cultura de massas e a cultura erudita estão incluídas. (Sarmento,
2015: 32)

A partir do momento em que “cultura” passa a ser reconhecido como um fenómeno


sócio-cultural, novas teorias se impõe “A particular way of life, whether of a people, a period,
a group or humanity in general”. (Williams, 1961)
Esta definição anexa cultura a “um sistema de expressão de significados e ideias, não só
através da arte e da aprendizagem escolar/académica, mas também através de
comportamentos normais do quotidiano comum. Exemplo: palmas, assobios e piscar de olho;
vestuário; formas de saudação e cumprimento” (Sarmento, 2015: 33)
Na definição contemporânea de cultura, os pilares da sua fundação são: práticas,
representações, simbologia e ideologia.
Desta forma a cultura deve ser interpretada como
a produção e circulação de significados entre os membros de um grupo ou sociedade, isto é,
os processos através dos quais a cultura é produzida e que formas assume, mais do que as
simples “estruturas de pensamento” e formas de vida que estas revelam. (Sarmento, 2015:
36-37)

A cultura ao preceder e estar na base dos estados-nação torna-se indissociável do poder


Segundo Bassnett e Lefevere, culturas como a francesa, a alemã e a inglesa (e a portuguesa,
acrescentaríamos) utilizam grelhas textuais semelhantes, com ligeiras variações, pois são as
grelhas que herdaram da antiguidade greco-romana, ao longo das vicissitudes comuns da
história. Outras culturas, como a japonesa e a chinesa, têm grelhas textuais próprias e que
não são comuns a outras culturas. Estas grelhas textuais parecem existir nas culturas a um
nível mais profundo do que o da linguagem. Ou seja, as grelhas textuais, são criadas pelo
ser humano, são construções históricas e contingentes; não são eternas, imutáveis nem
sequer “existiram desde sempre”. (Sarmento, 2015: 39)

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Edward Tylor, demarcou-se como o fundador da antropologia britânica, ao apresentar a
conceção universalista da cultura “a cultura é a expressão da totalidade da vida social do
homem. A cultura é adquirida e não releva por isso da hereditariedade biológica”. (Tylor
APUD Cuche, 1999)
Na sua opinião, o estudo das culturas singulares não podia fazer-se sem se
estabelecerem comparações entre elas, uma vez que se ligavam umas às outras segundo um
mesmo movimento de progresso cultural “Entre primitivos e civilizados, não há diferença de
natureza, mas simplesmente de grau de avanço no caminho da cultura”. (Tylor APUD Cuche,
1999)
Franz Boas, ficará na história da antropologia como fundador do método indutivo e
intensivo de campo, ao conduzir pela primeira vez inquéritos “in situ”, por meio de uma
observação direta e prolongada, das culturas primitivas.
Ele é o inventor da etnografia. “Concebia a etnologia como uma ciência de observação
direta: em seu entender, no estudo de uma cultura particular, tudo deve ser registado, até ao
pormenor do pormenor”. (Cuche, 1999)
Boas apresentou as seguintes conclusões:
- não há diferença de “natureza” (biológica) entre primitivos e civilizados, mas apenas
diferenças de cultura adquiridas, por conseguinte e não inatas;
- a organização social é mais determinada pela cultura do que pelo ambiente físico;
- a diferença fundamental entre os grupos humanos é de ordem cultural e não racial;
- a noção de “raça” mostra a ideia absurda, dominante na sua época [e atualmente] de um
nexo entre traços físicos e traços mentais;
- aconselha a prudência, a paciência, o “passo a passo” na investigação;
- tem consciência da complexidade de cada sistema cultural e pensa que só o exame
metódico de um sistema cultural poderá dar conta da sua complexidade;
- elucida o laço que liga um indivíduo à sua cultura; (Cuche, 1999)

O etnocentrismo tanto pode assumir formas extremas de intolerância cultural, religiosa


ou ainda política, como também assumir formas subtis e racionais. “Cada cultura é dotada de
um “estilo” particular, que se exprime através da língua, das crenças, dos costumes, e também
da arte, mas não só; este estilo próprio de cada cultura, influi sobre o comportamento dos
indivíduos”. (Cuche, 1999)
O sociólogo americano, William Summer, apresentou o seguinte termo técnico de
etnocentrismo: “essa visão das coisas segundo a qual o nosso próprio grupo é o centro de
todas as coisas, sendo todos os demais grupos medidos e avaliados por referência ao
primeiro”. (Summer APUD Cuche, 1999)

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A Antropologia Cultural veio, de certa forma, “introduzir a ideia da relatividade das
culturas e da sua impossível hierarquização, a priori; e recomenda, para desembaraçar o
inquérito de qualquer etnocentrismo, a aplicação do método da observação
participante” (Cuche, 1999) método da autoria de Malinowski.
Malinowski, na sua análise funcionalista da cultura, demonstrou que não se pode
estudar uma cultura a partir do exterior e, menos ainda, à distância. “Não se satisfazendo com
a observação direta “no terreno”, foi ele quem sistematizou o uso do método etnográfico
chamado “observação participante”, único modo de conhecimento em profundidade da
alteridade cultural capaz de escapar ao etnocentrismo”. (Cuche, 1999)
A ambição de Émile Durkheim era compreender o social em todas as suas dimensões e
sob todos os seus aspetos, incluindo a dimensão cultural, através de todas as formas de
sociedades. Portanto, a sua abordagem una revela-se mais profunda.
““Civilização” é um conjunto de fenómenos sociais que não se ligam a um organismo
social particular; estendem-se por áreas que excedem um território nacional, ou desenvolvem-
se por períodos de tempo que excedem a história de uma só sociedade. (Durkheim APUD
Cuche, 1999)
Através desta definição ele explicou que a humanidade era una e que todas as
civilizações particulares contribuíram para a civilização humana.
Para ele, existe em toda a sociedade uma “consciência coletiva”, feita das representações
coletivas, dos ideais, dos valores e dos sentimentos comuns a todos os indivíduos dessa
sociedade. Esta consciência coletiva precede o indivíduo, impõe-se-lhe, é-lhe exterior e
transcendente: há descontinuidade entre a consciência coletiva e a consciência individual, a
primeira é “superior” à segunda, porque é mais complexa e mais indeterminada. É a
consciência coletiva que realiza a unidade e a coesão de uma sociedade. (Durkheim APUD
Cuche, 1999)

A escola americana “cultura e personalidade” surge do trabalho de vários antropólogos


que observaram o indivíduo e a sua manifestação cultural. Antropólogos como Ralph Linton e
Abram Kardiner, que seguiam o legado deixado por Boas, perceberam que o indivíduo e a
cultura são concebidos como duas realidades distintas mas indissociáveis que agem uma sobre
a outra: uma só pode ser compreendida pela sua relação com a outra.
Cada indivíduo conhece da sua cultura, apenas, aquilo que lhe é necessário para se adaptar
aos seus diversos estatutos (de sexo, de idade, de condição social, etc) de maneira a poder
desempenhar os papéis sociais correspondentes.
Cada indivíduo tem a sua própria maneira de interiorizar e de viver a sua cultura, ao mesmo
tempo que é profundamente marcado por ela. (Cuche, 1999)

A partir dos anos trinta, a antropologia americana observou “que a cultura não existe
como uma realidade “em si”, fora dos indivíduos, ainda que toda a cultura goze de uma
relativa independência em relação a eles” (Cuche, 1999).
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Seguindo este raciocínio deve observar-se como está a cultura presente nos indivíduos,
como os faz agir, que comportamentos suscita, sendo a hipótese adiantada, precisamente, a de
que cada cultura determina um certo estilo de comportamento [personalidade] comum ao
conjunto dos indivíduos participantes numa cultura dada.
“A sua hipótese fundamental é que, à pluralidade das culturas, deve corresponder uma
pluralidade de tipos de personalidade”. (Cuche, 1999)
O trabalho de Ruth Benedict foi também muito importante para os estudos da escola. Na
sua observação determinou que o que define uma cultura não é a presença ou a ausência deste
ou daquele traço ou complexo de traços culturais, mas a sua orientação global numa ou noutra
direção, “o seu pattern mais ou menos coerente de pensamento e de ação”. (Benedict APUD
Cuche, 1999)
Toda a cultura é coerente porque concorda com os fins que visa, ligados às suas
escolhas a partir da gama das escolhas culturais possíveis.
Para Margaret Mead, a transmissão cultural é observada pelo “modelo” cultural
particular de uma dada sociedade, que determina a educação da criança, e, não pelas
propriedades biológicas.
O processo de “inculturação” revela que: “desde os primeiros instantes de vida, o
modelo impregna o indivíduo, através de todo o sistema de estímulos e de interditos, o que o
leva, uma vez adulto, a obedecer de modo inconsciente aos princípios fundamentais da cultura
(Cuche, 1999)
No seu todo, a escola pôs em evidência a importância da educação nos processos de
diferenciação cultural. A educação é necessária e determinante no homem porque, o ser
humano não tem praticamente programa genético que guie o seu comportamento.
Os próprios biólogos dizem que o único programa (genético) do homem é o de imitar e
aprender. As diferenças culturais entre os grupos humanos são, portanto, explicáveis em
grande parte por sistemas de educação diferentes que incluem os métodos de cuidar das
crianças de tenra idade (aleitamento, cuidados do corpo, modos de deitar, desmame, etc) tão
variáveis de um grupo para outro. (Cuche, 1999)

1.3 Memória, Língua e Identidade


As ciências sociais e humanas são tão complexas como a nossa capacidade atual de
compreender ou conhecer o cérebro humano.
As memórias estão na base do principal poder do ser humano - a consciência - e a
identidade é a sua manifestação.

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Não pode haver identidade sem memória (assim como lembrança e esquecimento)
porque, apenas, a memória permite a auto-consciência da duração. Por outro lado, não pode
haver memória sem identidade, pois “o estabelecimento de relações entre estados sucessivos
do sujeito é impossível se este não tem, a priori, um conhecimento de que esta cadeia de
sequências temporais pode ter significado para ele”. (Candau, 2011)
Ideias transversais em diversas publicações sobre os temas da memória e/ou identidade
- os conceitos de memória e identidade são fundamentais nas ciências sociais;
- existe um certo consenso de que a identidade é uma construção social,
permanentemente redefinida numa relação inter-pessoal com o outro;
- consenso de que a memória é uma reconstrução continuamente atualizada do passado;
- a obsessão pelos “lugares da memória” está diretamente relacionada a diferentes
fatores como a crise das certezas do presente, a diluição das identidades e ao
desaparecimento de referencias;
- memória e identidade estão infinitamente ligadas;

O reconhecimento de estruturas de memória individual e coletivas que se tornam vagas,


numerosas e complexas, com múltiplos processos de aquisição e assimilação, não exclui a
compreensão de novos processos nos quais as grandes memórias desaparecem ou são
destruídas. Mas outras memórias densas e numerosas são elaboradas, com igual força,
fundamentando identidades em renovação constante.
No final do século passado, Pierre Nora contribuiu para a humanidade com “tempos e
lugares de memória”. A história é indissociável da memória, do indivíduo no seu sentido mais
minucioso, mas também da humanidade num contexto mais lato.
O autor revela então “os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há
memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários,
organizar celebrações, porque essas operações não são naturais” (Nora, 1993: 13)
acrescentando “tudo o que é chamado hoje de memória não é, portanto, memória, mas já
história. A necessidade de memória é uma necessidade da história”. (Nora, 1993: 13)
O conceito de memória está associado aos lugares, materiais, como ruas, casas, mas elas
podem destruir-se e a nossa memória perde-se. Essas memórias vivem num tempo
emprestado, ameaçado por possíveis alterações. Por isso muito vulneráveis.

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A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, como Halbwachs o fez, que
há tantas memórias quantos grupos existem, que ela é, por natureza, múltipla e
desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história ao contrário, pertence a todos e a
ninguém, o que lhe dá uma vocação para o universal. A memória se enraiza no concreto, no
espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às
evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e a história só conhece o
relativo. (Nora, 1993: 9)

Construir a realidade social significa adaptar o espaço onde o indivíduo ou o grupo é


integrado. Essa renovação e construção do espaço sócio-cultural, surge da memória ou do
conjunto de memórias que se atualizam
When a group is integrated into part of the space, it transforms that space in its own image,
but at the same time it bends and adapts to the material things that resist it, so that the place
bears the stamp of the group, and vice versa (Halbwachs 1992: 186)

Os valores da memória e da sua importância para a comunicação cultural, são melhor


compreendidos nesta observação
Memory enables us to live in groups and communities, and living in groups and
communities enables us to build a memory (...) Cultural memory deals with the connection
between time, identity and memory in their three dimensions of the personal, the social and
the cultural. (Assmann 2008: 109)

A importância que a memória tem na dinamização dos grupos, do indivíduo e da


humanidade ao longo da sua evolução histórica, é revelada através da observação de Assmann
relativamente ao trabalho, que ele seguiu com minuciosidade, do anterior Halbwachs
The term “communicative memory” was introduced in order to delineate the difference
between Halbwachs’s concept of “collective memory” and our understanding of cultural
memory.
Cultural memory is a form of collective memory, in the sense that it is shared by a number
of people and that it conveys to these people a collective, that is, cultural, identity.
We preserve Halbwachs’s distinction by breaking up his concept of collective memory into
“communicative” and “cultural memory” but we insist on including the cultural sphere,
which he excluded in the study of memory. (Assmann, 2008: 110)

Devido ao fraco impacto e estudos que a cultura tinha no tempo anterior de Halbwachs
comparativamente aos tempos de hoje, onde Assmann observa, é percetível este reajuste
explicado anteriormente
On the social level, with respect to groups and societies, the role of external symbols
becomes even more important because groups which of course do not “have” a memory
tend to “make” themselves one by means of things meant as reminders such as monuments,
museums, libraries, archives and other mnemonic institutions. This is what we call cultural
memory (Assmann, 2008: 111)

Os lugares de memória que geralmente se expressam de forma simbólica, são também


eles relevantes na comunicação cultural. “It would be very difficult to describe the event if
one did not imagine the place” (Halbwachs APUD Truc, 2012: 148)
Desse modo, os lugares são desconectados desses materiais que os caracterizam e são
associados às crenças do grupo. São versões de memória mais simplificada mas mais robusta.

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Como por exemplo o “Boom Festival”. Um local associado com um evento de memória
que um grupo inteiro quer manter. Adota duas formas: a real e o simbólico.
“Symbolic thought disconnects these places from their material surroundings and
associates them with the beliefs of the group, and those beliefs alone. It is almost certainly the
stability of the image that explains the persistence of the beliefs” (Halbwachs APUD Truc,
2012: 149)
Pode concluir-se através do trabalho destes autores que a cultura não pode ser (só) vista
como valor patrimonial, mas que será “necessário interrogar os modos de produção da
cultura, como ela é difundida e quais são seus meios de circulação”. (Certeau, 2003)
A língua é globalmente considerada como um veículo cultural impresso na identidade
cultural quer do indivíduo, quer da sociedade. “A cultura é, fundamentalmente, em seu
entender, um sistema de comunicação”. (Sapir APUD Cuche, 1999)
Dessa forma a cultura pode ser estudada como uma língua
O problema das relações entre linguagem e cultura é um dos mais complicados que se nos
põem. Podemos começar por tratar a linguagem como um produto da cultura: uma língua
usada numa sociedade reflete a cultura geral da população. Mas, noutro sentido, a
linguagem é uma parte da cultura; constitui um, entre outros, dos seus elementos [...]
Mas ainda não é tudo: podemos também tratar a linguagem como condição da cultura, e a
duplo título; no plano diacrónico, uma vez que é sobretudo por meio da linguagem que o
indivíduo adquire a cultura do seu grupo; a criança é instruída e educada pela palavra; é
com palavras que a repreendem ou elogiam.
De um ponto de vista mais teórico, a linguagem revela-se também como condição da
cultura, na medida em que esta última possui uma arquitetura semelhante à da linguagem.
Uma e outra constroem-se por meio de oposições e de correlações ou, por outras palavras,
de relações lógicas. Assim, podemos considerar a linguagem como um alicerce, destinado a
receber as estruturas mais complexas por vezes, mas do mesmo tipo que as suas, que
correspondem à cultura encarada sob diferentes aspetos” (Strauss APUD Cuche, 1999)

Qualquer cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas simbólicos em


cujo primeiro plano figuram a linguagem, as regras matrimoniais, as relações económicas, a
arte, a ciência, a religião.
Lévi-Strauss salientou quatro ideias essenciais do trabalho de Benedict:
- as diferentes culturas são definidas por um certo modelo (pattern);
- os tipos de culturas possíveis existem em número limitado;
- o estudo das sociedades “primitivas” é o melhor método de determinarmos as
combinações possíveis entre os elementos culturais;
- estas combinações podem ser estudadas em si próprias, independentemente dos
indivíduos pertencentes ao grupo e para os quais permanecem inconscientes; (Cuche,
1999)

No contexto atual, o indivíduo apresenta uma crise de identidade notável. Mas o que
caracteriza a identidade? As identidades que um indivíduo adota são, em parte, produzidas
pelos contextos sociais e culturais em que se insere

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A identidade tem a ver com pertença, com aquilo que temos em comum com uns e que nos
diferencia de outros. Basicamente, dá-nos um sentido de localização pessoal, um núcleo
estável para a nossa individualidade. Mas tem também a ver com as nossas sociais, o nosso
envolvimento complexo com os outros. (...)
Cada um de nós vive com uma variedade de identidades potencialmente contraditórias, que
lutam dentro de nós por afirmação: como homens ou mulheres, negros ou brancos,
heterossexuais, homossexuais, sãos ou deficientes, Britânicos ou Europeus... a lista é
praticamente infinita e, assim, também o são os nossos possíveis sentimentos de pertença.
Qual deles escolher, revelar, utilizar como “identidade” depende de uma série de fatores.
No centro, no entanto, estão os valores que partilhamos ou queremos partilhar com os
outros. As identidades não são neutras. Por trás da busca da identidade estão valores
diferentes e muitas vezes conflituantes. Ao dizermos quem somos, também estamos a tentar
exprimir aquilo que somos, em que acreditamos e que desejamos. O problema é que essas
crenças, desejos e necessidades estão muitas vezes em conflito evidente, não só entre
comunidades diferentes, mas também dentro dos próprios indivíduos. (Sarmento, 2015: 39)

Mas a identidade não pode ser definida numa definição. A sua complexidade pactua
com o seu objeto de estudo - o indivíduo.
A perspetiva essencialista defende que a identidade é fixada num momento original, que
existe um conjunto inerente de características, verdadeiro, autêntico e imutável, que
pertencem a um determinado grupo, por oposição e distinção de outro, transcendendo a
História.
A perspetiva não-essencialista questiona essa possibilidade de uma identidade ”verdadeira”,
original, estática no tempo e no espaço. (Sarmento, 2015: 39)

Hoje, as grandes interrogações sobre a identidade remetem muitas vezes para a questão
da cultura. Procura-se cultura em todo o lado e pretende encontrar-se identidade para todos.
A cultura, na sua qualidade imaterial, releva-se em processos inconscientes. Já a
identidade remete para uma norma de pertença, necessariamente consciente, porque assenta
em escolhas e oposições simbólicas.
A conceção objetiva e subjetiva da identidade cultural são aspetos que demonstram a
fragilidade da identidade atual, devido à renovação constante de normas e valores,
propulsionados por uma comunicação de massas manipuladora. As duas teorias apresentadas
representam uma verdade duvidosa no mundo atual
A origem [...] seria o fundamento de toda a identidade cultural, quer dizer, aquilo que
definiria o indivíduo de maneira segura, autêntica [objetiva]” e “a identidade repousa, pois,
num sentimento de pertença, de certo modo inato. A identidade é pensada como uma
condição imanente do indivíduo, definindo-a de maneira estável e definitiva [subjetiva].
(Cuche, 1999)

A Identidade não deve ser compreendida como algo absoluto, mas relativo, pois
constrói-se através das estratégias dos atores sociais que apresentam inúmeras variáveis.
Segundo as situações a identidade constrói-se, desconstrói-se e reconstrói-se.
Assim como a cultura, apresenta um movimento dinâmico e reformula-se de maneira
diferente segundo o meio social. “Se a identidade é tão difícil de captar e de definir, é
precisamente devido ao seu caracter multidimensional e dinâmico. É o que lhe confere a sua
complexidade, mas também o que lhe dá a sua flexibilidade”. (Cuche, 1999)
Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 14
Nem o indivíduo, nem o grupo social se encontram encerrados, a priori, numa
identidade unidimensional.
os indivíduos e os grupos investem nas lutas de classificação todo o seu ser social, tudo o
que define a ideia que fazem de si próprios, todo o impensado através do qual constituem
como “nós” por oposição a “eles”, aos “outros”, e a que se ligam por meio de uma adesão
quase corporal. É o que explica a excecional força mobilizadora de tudo o que diz respeito
à identidade (Bordieu APUD Cuche, 1999)

Este trabalho evidencia as três conceções da identidade, muito simplificadas, fornecidas


por Stuart Hall. A sua identificação história abre caminho para, nos parágrafos seguintes,
poder apresentar outras observações relativas à sociedade e ao sujeito
- sujeito do iluminismo [século XVIII]: um ser estável na sua unicidade e individualista;
- sujeito sociológico [século XIX e XX]: um ser de essência interior que é formado e
modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades
que esses mundos oferecem. Um ser fragmentado, composto não de uma única, mas de
várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas;
- sujeito pós-moderno [século XX e XXI]: não tem uma identidade fixa, essencial ou
permanente. É formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais
somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida
historicamente e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em
diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente;
(Hall 2006: 10-13)

Partindo da noção que as sociedades atuais são sociedades de mudança constante, rápida
e permanente e as nações são, todas, híbridos culturais, torna-se percetível que existe uma
crise de identidade atual. “As nações” observou Homi Bhabha, “tais como as narrativas,
perdem as suas origens nos mitos do tempo e efetivam plenamente os seus horizontes apenas
nos olhos da mente” (Bhabha 1990: 1).
O ressurgimento do nacionalismo e de outras formas de particularismo no final do século
XX, ao lado da globalização e a ela intimamente ligado, constitui, obviamente, uma
reversão notável, uma virada bastante inesperada dos acontecimentos, quando nenhuma das
ideologias do Ocidente (liberalismo e marxismo) o faziam prever. (Hall 2006: 96)

Giddens vai mais longe na sua observação ao afirmar: “à medida em que áreas
diferentes do globo são postas em interconexão umas com as outras, ondas de transformação
social atingem virtualmente toda a superfície da terra” - e a natureza das instituições
modernas (Giddens, 1990: 6). Seguindo o estudo de Hall, sobre a identidade cultural da pós-
modernidade, percebe-se que
As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em
declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui
visto como um sujeito unificado. A assim chamada “crise de identidade” é vista como parte
de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos
centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos
indivíduos uma ancoragem estável ao mundo social. (Hall 2006: 7)

A re-definição em curso do conceito globalização, pode levar a um fortalecimento de


identidades locais ou à produção de novas identidades.

Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 15


“A globalização não parece estar a produzir nem o triunfo do “global” nem a
persistência, em sua velha forma nacionalista, do “local”. Alimentada sob muitos aspetos pelo
ocidente, pode acabar por se revelar o descentramento do Ocidente”. (Hall 2006: 96)
A migração, entre os anos 50 e 80, sobretudo, após a segunda guerra mundial, é um dos
exemplos mais impressionantes quando tentamos compreender a homogeneização das
identidades globais
As culturas híbridas são o produto de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem
a uma e, ao mesmo tempo, a várias “casas” (e não a uma “casa” particular). São o produto
da homogeneização das identidades globais.
As culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidade distintivamente novos
produzidos na era da modernidade tardia. (Hall 2006: 89)

2. Subculturas do mundo contemporâneo


Ao longo deste capítulo percebe-se porque é que a definição de cultura é complexa e
apresenta uma manifestação dinâmica, aberta em permanente (re) configuração.
“Um movimento de “contra-cultura” não produz uma cultura alternativa frente à cultura
que denuncia”. (Cuche, 1999)
Quase vinte anos depois da publicação da obra de Cuche, podemos afirmar que
movimentos de “contra-cultura” apresentam, efetivamente, culturas alternativas. “Uma
contra-cultura nunca é, em última analise, mais que uma subcultura”. (Cuche, 1999)
As subculturas que hoje se manifestam através dos “Festivais Transformacionais” - o
fenómeno cultural do novo milénio - são, efetivamente, produto de movimentos alternativos
aos festivais de música convencionais, os quais servem uma sociedade de massas.

2.1 Efervescência de novos valores sócio-culturais


“A cultura por ter o seu carácter material e imaterial, tornou-se algo transcendente e
complexo” (Chartier, 1995: 179). O autor, durante a sua investigação, no final do século XX,
percebeu que a cultura era pensada como um legado recebido, como transmissão de hábitos e
costumes de uma geração para a outra. Os seus estudos, permitiram-lhe concluir que essa
transmissão de geração para geração não era objetiva. “Os textos, os saberes, a subjetividade e
a cultura, não são dotados de um sentido intrínseco, absoluto e único a ser
desvelado” (Chartier, 1990).

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Para o autor, a realidade não é um dado objetivo, mas o que chamamos de realidade é
efeito de um processo de objetivação que remete às praticas concretas dos homens. “os
objetos não são recebidos como uma herança perpetuada por uma tradição”. (Chartier, 1995:
179)
Ao não serem aceites de modo passivo, existe um processo de receção, de apropriação
cultural dos objetos que são utilizados de diferentes formas. “as realidades sociais seriam
sempre construídas e não simplesmente repassadas”. (Chartier, 1995: 180)
A renovação cultural que Chartier escreve no seu artigo, apresenta de uma maneira
sucinta a evolução das práticas e representações das sociedades mais antigas para as mais
modernas.
O autor considera que as culturas tradicionais, camponesas ou populares saíram do
isolamento e perderam as suas raízes com vista a uma cultura nacional ou republicana.
Outra transformação radical situa-se antes e depois da emancipação de uma cultura de
massas, concluindo que a tecnologia da comunicação tenha destruído uma cultura antiga, oral
e comunitária, festiva e folclórica, que era, ao mesmo tempo, criadora, plural e livre. O
destino historiografico da cultura popular é portanto ser sempre abafada, recalcada, arrasada e
ao mesmo tempo, sempre renascer das cinzas (Chartier, 1995: 181).
Para Chartier não faz sentido pensar em homogeneidade cultural, assim como não faz
sentido pensar a cultura popular como carente e dependente da cultura dominante, nem
devemos romantiza-la. “Tanto os bens simbólicos como as práticas culturais continuam sendo
objeto de lutas sociais, em que estão em jogo sua classificação, suas hierarquizações, sua
consagração (ou, ao contrário, sua desqualificação)” (Chartier, 1995: 184).

Essencialmente na segunda década do novo milénio, tem-se observado uma influência


das “coisas” sobre os homens avassaladora e isto deve-se ao facto de estarmos, cada vez mais,
conectados ao mundo e aos outros. “A ação dos membros de uma mesma geração, uns sobre
outros, difere da que os adultos exercem sobre as crianças e adolescentes”. (Durkheim, 1995)
A educação, refletida no sistema educacional ocidental, apresenta instabilidades
reveladas em determinado tempo e meio social. “Nas cidades gregas e latinas, a educação
conduzia o indivíduo a subordinar-se cegamente à coletividade, a tornar-se uma coisa da
sociedade. Hoje, esforça-se em fazer dele personalidade autónoma”. (Durkheim, 1995)

Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 17


Ao longo da época da Idade Contemporânea, em pleno século XXI, surge um paradoxo
sem precedente - o ser humano torna-se cada vez mais silencioso, devido à rede global,
internet, à qual se conecta através de um dispositivo móvel e cada vez mais audível através
das redes sociais.
Bauman refere um ditado chinês, da época de Cónfucio, para explicar a sua observação
“se planeia para um ano, semeie milho, se planeia para dez anos, plante uma arvore, se
planeia para 100 anos, eduque as pessoas”. Isso é o que nós estamos esquecendo hoje,
enquanto sociedade global. A cultura da educação hoje é a cultura do imediatismo.
Educação e imediatismo são termos contraditórios. Não se pode ter os dois, ao mesmo
tempo. Desde a altura em que a Grécia antiga inventou o termo paideia, a educação esteve
constantemente em crise porque as circunstâncias mudavam e isso levava a ajustes às novas
informações.
A crise da educação hoje, baseia-se na era da tecnologia da informação é uma biblioteca de
fragmentos, sem algo que os una, os recicle e os transforme em sabedoria, em
conhecimento. Isso destrói algumas das nossas capacidades psicológicas como atenção,
concentração, consistência e o chamado pensamento linear que se baseia no estudo de um
assunto de forma consistente até ao fim. Este paradigma põe os educadores numa posição
muito difícil e lança o desafio de repensar uma nova forma de educação. 4

“Se a educação romana tivesse tido o caráter de individualismo comparável ao nosso, a


cidade romana não se teria podido manter; a civilização latina não teria podido constituir, por
consequência, a civilização moderna, que dela deriva, em grande parte”. (Durkheim, 1995)
Durkheim ao observar o papel da educação na sociedade, percebeu que o sistema
educacional imprime um processo socializador, mas demarca a função homogeneizadora da
função diferenciadora “através da educação, cada sociedade transmite aos indivíduos que a
compõem o conjunto das normas sociais e culturais que asseguram a solidariedade entre todos
os membros dessa mesma sociedade e que são mais ou menos obrigados a fazer suas”.
(Durkheim APUD Cuche, 1999)
Os valores e processos de socialização que foram observados no passado, podem não
ser coerentes e válidos para as sociedades atuais.
Talcott Parsons ao tentar conciliar as análises de Durkheim e as de Freud em 1954,
percebeu que no processo de socialização, o principal era a família, a qual, desempenhava um
papel fundamental e, de seguida, o papel da escola e dos grupos inter-pessoais onde a criança
se inseria, levando-o a concluir que a socialização terminava na adolescência
Nessa altura, ou a socialização foi bem sucedida, e o indivíduo adaptar-se-á bem à
sociedade, ou fracassou, e o indivíduo cairá provavelmente na delinquência. Quanto mais
cedo a conformidade com as normas e os valores da sociedade intervém na existência do
indivíduo, mas tenderá a levar uma adaptação adequada ao “sistema social”. (Parsons
APUD Cuche, 1999)

4 A Fluidez do Mundo Líquido com Zygmunt Bauman (1925 - 2017) Sociólogo e filósofo polaco. Professor
emérito de grande influência e destaque internacional. Transcrição de parte da entrevista. Youtube. 2016.
Internet. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=fd87rwJ_P90. (consultado em 02/12/2016)
Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 18
Esta conclusão, no mundo de hoje, não coaduna com a importância e o impacto
[negativo ou positivo?] que as redes sociais têm seja nos jovens, nos adultos e nas sociedades.
Segundo a abordagem interacionista da cultura, a construção cultural remete para o que
nos está mais próximo seja fisicamente ou nas nossas escolhas e gostos, tais como a cultura
do grupo, a cultura local, a cultura que liga os indivíduos em interação imediata uns com os
outros, e, não a cultura global da coletividade alargada.
Aquilo a que se chama “cultura global” é o que resulta da relação dos grupos sociais
[hoje, prova maior das redes sociais] em contacto uns com os outros e, por conseguinte, da
relação que se estabelece entre as suas culturas próprias
a cultura global situa-se, de certo modo, na interseção das pretensas “subculturas” de um
mesmo conjunto social, que funcionam elas próprias como culturas de parte inteira, ou seja,
como sistemas de valores, de representações e de comportamentos que permitem a cada
grupo identificar-se, orientar-se e agir no espaço social ambiente. (Cuche, 1999)

2.2 Globalização na “Era Tecnológica”


No século passado, a renovação de uma nova geração, trazia novos valores culturais,
novos ideais, novos paradigmas. Hoje, a dinâmica global e a desordem social levam a que os
paradigmas, práticas e representações culturais, se renovem várias vezes dentro de uma só
geração.
O movimento pós-moderno atual, difere do mesmo movimento do século passado
porque o mundo vive no advento da “Era da Informação”. Após a “Era Industrial” que
produziu uma sociedade de consumo, uma sociedade de massas, cujo sistema sócio-
económico era o capitalismo, surge a “Era da Informação” que também pode ser interpretada
como a “Era Tecnológica” ou “Era Digital”.
Nas últimas décadas registou-se um enorme interesse de vários autores em cultura,
identidade e diferença, baseando-se em disciplinas como a História da Cultura, Antropologia
Cultural, Sociologia da Cultura e Estudos Culturais. Burke (2001) aponta para a fragmentação
desses estudos e para a dificuldade em definir o que é “cultura”.
Foucault rejeitava as conceções totalizantes de cultura, ao analisar as práticas culturais do
Ocidente. O importante para ele era a singularidade dos eventos e a raridade dos objetos
que no exercício das práticas culturais não permitia que esse objeto fosse transposto para
outras épocas (O’Brien, 1995)

A história vive nas representações e práticas humanas. “All history involves


representation and all representations are part of history” (Burke, 1994). É dessa forma que
ele defende que o interesse da história cultural não deveria estar na arte, mas nos valores e
símbolos partilhados pelas pessoas

Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 19


Cultural historians might usefully define themselves not in terms of a particular area or
field such as art, literature and music, but rather of a distinctive concern for values and
symbols, wherever these are to be found, in the everyday life of ordinary people as well as
in special performances for elites. (Burke, 1994: 18)

O interesse de Burke enquanto historiador social debruça-se em três frentes:


- os diferentes códigos usados em diferentes grupos sociais, profissionais e religiosos;
- como as variações particulares de linguagem expressam, mantêm e ajudam a criar
comunidades;
- como indivíduos se movimentaram em diferentes grupos ou se ajustaram a diferentes
situações, ao adotarem novos registos;
Através dos seus resultados publicados, Burke contribuiu da melhor maneira para
historiadores mais recentes seguirem o seu raciocínio na hora de perceber e determinar causas
e efeitos de um dos processos mais complexos do século XXI - a renovação do conceito de
globalização.
The era of rapid scientific and technological advancement that we live in has spawned a
communications revolution that is pervading every region of the world and creating a
global information society. Indeed, the new information and communication technologies
are dramatically changing the way people in many parts of the world live, learn,
communicate, work or think about work. The combination of globalization and
technological developments has enabled highly skilled technical personnel living in
developing countries to provide services for industries in developed countries.
Globalization has affected some countries in a process of transition towards a market
economy by confronting them with the inefficiency of their industries and placing demands
for new skills and trades. The obsolete knowledge, skills, and work attitudes of their labor
forces have led to growing unemployment in these countries. Their governments have
difficulty in paying the wages of employees in state-owned industries while initial
investments by transnational corporations appear to thrive, generating some employment
for young urban people.
As a result, relative affluence and a degree of social transformation are evident among
groups of urban youth while many older urban people and rural people in general suffer
acute economic hardship and social exclusion. In contrast, a multicultural organization like
a school or a University, is characterized by a heterogeneous staff and a culture where
diversity is valued on all levels. Diversity is viewed as an advantage for an organization,
rather than as a threat or a problem.
Influence is a two-way process: new recruits (such as minorities and people with foreign
backgrounds) start work at a company, embrace the norms and values of the existing
culture, and also influence and change them. The core values of quality, security, honesty,
ethics, equality etc. apply to everyone but the organizational culture does not demand
conformity to peripheral norms, values, behavior, approaches, perspectives, working styles
and so on. (Kalemis 2015: 1)

A interculturidade não põe em risco as tradições ou nações, porque as tradições são


muitas vezes inventadas e as nações são híbridos culturais que se renovam no seu tempo
histórico. “As tradições que parecem ou pretendem ser antigas são, com frequência, bastante
recentes na sua origem e às vezes inventadas”. (Hobsbawm, Ranger, 1984: 9)
Os costumes associados às chamadas sociedades “tradicionais” e cultura “popular”
devem ser distinguidos de tradições, porque estas são invariáveis, impondo práticas fixas, tal
como a repetição
Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 20
O termo “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui
tanto as “tradições” realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas,
quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e
determinado de tempo - às vezes coisa de poucos anos apenas - e se estabeleceram com
enorme rapidez. (Hobsbawm, Ranger, 1984: 9)

Anderson (1983) observou que a nação é imaginada “até os membros da mais pequena
nação nunca conhecerão, nunca encontrarão e nunca ouvirão falar da maioria dos outros
membros dessa mesma nação, mas, ainda assim, na mente de cada um existe a imagem da sua
comunhão” e limitada “até a maior das nações, tem fronteiras finitas, ainda que elásticas, para
além das quais se situam outras nações”. (Anderson, 2008)
Na sua observação também revela que a nação é imaginada como uma comunidade
“porque independentemente da desigualdade e da exploração reais que possam prevalecer em
cada uma das nações, é sempre concebida como uma agremiação horizontal e profunda”.
(Anderson, 2008)
Ao posicionar a origem da sua observação num período histórico, percebe que foi no
movimento do Iluminismo [século XVIII], altura em que o reino dinástico e a ordem divina
foram destituídos.
O que se pretende com esta referência a Anderson é evidenciar que os conceitos de
nação, os nacionalismos que agora se expandem, não são mais do que conceitos imaginados,
tais como os grupos, amigos e sociedades virtuais.
Esses conceitos de comunidade, grupo e nação imaginada estão a ser postos em causa,
através do “novo espírito comunitário”, que se formam dos laços produzidos em subculturas e
manifestações culturais, que se apresentam alternativas à cultura da sociedade de massas.

O conceito “Subcultura” não é objetivo e dessa forma permite várias interpretações: o


“Oxford English Dictionary online” apresenta esta noção “a cultural group within a larger
culture, often having beliefs or interests at variance with those of the larger culture.5
Em 1964, Richard Hoggart, cria “The Centre for Contemporary Cultural
Studies” (CCCS) como centro de investigação na Universidade de Birmingham. O centro
marcou posição mundial ao promover a observação de fenómenos culturais baseados em
subculturas, cultura popular e meios de comunicação social [mídia].

5Informação sobre definição da palavra subculture, no dicionário inglês online da Oxford University. Internet.
Disponível em https://en.oxforddictionaries.com/definition/us/subculture (consultado em 21/02/2017)
Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 21
É neste centro que teóricos vastamente reconhecidos dentro do espólio cultural, como
Stuart Hall, se posicionam de forma a deixar a sua contribuição para estudos futuros. A sua
aproximação aos estudos culturais sobre fenómenos relativamente recentes tem permitido
uma melhor compreensão sobre as sociedades e o indivíduo atual.
O termo “Subcultura” surge da extensão dos estudos da Sociologia e dos Estudos
Culturais. Na segunda metade do século XX, ciências como a História da Cultura, a
Sociologia da Cultura e a Antropologia Cultural, ganham dimensão ao observar e estudar as
intervenções socio-culturais do indivíduo nas sociedades.
Este período histórico apresentou uma grande revolução cultural. O florescimento das
artes contemporâneas e dos “mass media” estão na base dessa transformação e ao longo desta
renovação surgem subculturas que se manifestaram, essencialmente, através dos vários
géneros de música - “rock”, “punk”, “electronic dance music” (EDM) - ou das várias
tendências da moda que permitiam identificar estas subculturas, cujos ideais iam contra a
cultura dominante.
O existencialismo particularmente popularizado pelas obras de Sartre pode ter sido o
marco inicial do movimento contracultura, ainda na década de 1940. Partindo em defesa da
liberdade e revelando o pessimismo pós-guerra, principalmente, este movimento questionava
diretamente os valores centrais da época instituídos na cultura ocidental.
Aproveitando a “boleia” do crescimento dos meios de comunicação, estas ideologias
ganham uma dimensão exponencial e aproximam a geração mais jovem de forma global,
promovendo uma integração cultural e humana; e uma vontade de experimentar acirrada pela
liberdade de expressão na espécie humana, entre os jovens. Este movimento desenvolveu-se
na Europa e EUA, onde as pessoas procuravam valores novos.
Então uma subcultura pode ser considerada: um grupo de pessoas dentro de uma cultura
que se diferencia da cultura “mãe” à qual pertence, mas mantendo alguns dos seus princípios.

Por exemplo, o Rock N’ Roll, manifestou-se e evidenciou-se através do movimento


contracultura porque os membros desta subcultura, cultivavam o cabelo comprido, roupas
pretas e rasgadas, e partilhavam a ideologia “Sexo, drogas e rock n’ roll”. Ao afastar-se dos
valores ditos “normais da sociedade” este género musical ganhou projeção através deste
movimento, em curso, na época.

Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 22


Mais de 50 anos depois da sua ascensão mundial, a ideologia Rock “Sexo, Drogas e
Rock n’ Roll” mantêm-se bem viva!
A chamada “old school”, geração que viu nascer e viveu o movimento contracultura,
geração dos anos 50 e 60, não nega a influência que esse movimento libertino, essas
ideologias e valores culturais, tiveram no indivíduo e na transformação das sociedades desse
período histórico.
O estudo das subculturas consiste no estudo do simbolismo associado às roupas, musica
e outras visíveis manifestações no indivíduo que é membro dessa subcultura e também na
maneira como estes símbolos são interpretados pelos membros da cultura dominante. Ou seja,
consiste em fortalecer e elaborar uma análise revelada numa observação dos dois lados - o
maior e o menor. “[...] members of a subculture often signal their membership through a
distinctive and symbolic use of style, which includes fashions, mannerisms and argot”.
(Hebdige, 2002)
Esta grande renovação cultural que aconteceu ao longo dos últimos sessenta anos
permitiu a autores, académicos e cientistas, observarem novos fenómenos na sociedade e
registá-los nos seus estudos. Michel Maffesoli, começou a utilizar o termo “tribo urbana” no
final dos anos 80, para mais tarde falar em “neotribalismo”.
Seriam essencialmente "micro-grupos" que, forjados em meio à massificação das
relações sociais baseadas no individualismo e marcados pela "unissexualização" da aparência
física, dos usos do corpo e do vestuário, acabariam, mediante sua sociabilidade, por contestar
o próprio individualismo vigente no mundo contemporâneo. (Frehse, 2006)

2.3 Neotribalismo e Movimentos “Contra-Cultura”


É no “abrir do novo milénio” que surge a emancipação de manifestações culturais nunca
antes registadas. Graham John, antropólogo australiano, que através da observação
participante, segue o movimento das electronic dance music cultures (EDMCs), desde o inicio
do milénio, tem publicado vários estudos, fundamentais para os novos conceitos emergentes
“EDMCs are intriguing manifestations of liminality in the present” e “[EDMC is] a complex
cluster of “liminoidal” genres” (Graham, 2008: 150)
A sua análise empírica resulta do estudo cientifico acumulado de outros autores e da
observação e participação, em Festivais Transformacionais, da qual a EDMC faz parte e onde
surge o conceito de comunidade - neotribal.

Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 23


O “Neotribalismo” que se vem manifestando em movimentos contra-cultura e eventos
designados como “Festivais Transformacionais”, resulta de comunidades nómadas que se vão
encontrando e relacionando, durante a periodicidade limitada que define cada um do eventos.

A História Cultural, tem permitido o estabelecimento de um novo olhar sobre objetos


que habitualmente têm sido beneficiados por um tratamento historiográfico económico,
político ou demográfico (Barros, 2011: 60).
A cultura é cada vez mais percebida não apenas como “dinâmica”, mas também como
“internamente diversificada”.
Os atores sociais são compreendidos como capazes de circularem entre diversas
alternativas, ou de se utilizarem criativamente de um variado repertório de possibilidades
culturais
Das “regras culturais” de um sistema, das quais tanto se falava em décadas anteriores em
que predominava a abordagem estruturalista, passam a ser preferidas expressões
normalmente empregadas por Pierre Bourdieu, como “performances”, “habitus”, e outras
que coloquem em cena a mobilidade dos atores, o dinamismo de suas práticas, sua
capacidade de desempenharem distintos papéis no mundo cultural (Barros, 2011: 56)

A atenção ao “biculturalismo” é outra tendência importante na Nova História Cultural.


Trata-se de perceber, neste caso, a capacidade dos indivíduos inseridos na sociedade em
transitarem em registros culturais diversificados. “Indivíduos pertencentes a grupos sociais
diversos agem de uma ou outra maneira conforme a ocasião ou as diferentes companhias”.
(Elias APUD Barros 2011: 57)
Os “revivalismos tribais” apresentam, em pleno século XXI, uma nova expressão:
““tribo” torna-se metáfora de formas de integração social numa "urbanidade deficitária de
coesão social". (Frehse, 2006)
As “tribos urbanas”, “tribalismo” e “neotribalismo” derivam todas da observação sobre
o mesmo fenómeno. O conceito sociológico “neotribalismo” comunga com o movimento
contracultura, uma vez que os seus membros se têm focado em viver em sociedades tribais,
em oposição a sociedade de massas e, este novo fenómeno vai, naturalmente, formar redes
sociais [de comunidade] que darão origem a novas “tribos”. “[...] as the culture and
institutions of modernism declined, societies would embrace nostalgia and look to the
organizational principles of the distant past for guidance, and that therefore the post-modern
era would be the era of neotribalism. (Maffesoli, 1996)

Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 24


Tribalismo é um hábito necessariamente humano. Propriedade natural dos seres vivos,
nos termos de o “uno” se identificar com um grupo. O indivíduo ao anexar-se ao grupo cria
laços de proximidade, laços humanos, família. Não em termos de família de sangue, mas
laços familiares de comunhão espiritual.
Este hábito está na origem das comunidades e é o reviver das comunidades na era pós-
moderna, que se tem manifestado em Festivais Transformacionais
Transformational festivals in North America are a progeny of psychedelic trance, Burning
Man, and full-moon rave culture. Transformational festivals incorporate spiritual practices
such as yoga, chanting, meditation and ecstatic dance alongside their primary exhibits of
musical and psychedelic entertainment. The festivals advertise a predominating intention of
providing attendees with multiple avenues of self-development, therapeutic healing, and
spiritual transformation. (Johner, 2015: 8)

No exemplo do Boom Festival (PT) e Burning Man (USA) estes festivais, estas cidades,
estas comunidades nómadas, só existem no espaço e no tempo, durante uma semana “Raves
are good because they don’t happen all the time” (Hutson, 2000: 43) ou seja, as “Raves” ou os
“Festivais Transformacionais” são limitados no tempo, e, essa propriedade pode ser o que
desperta as experiências liminares ou de interstício “The social interstices of EDMCs (re)
produce a sense of immediacy, safety, and belonging, outside and in between the routine
habitus, conventional gender roles or the crushing ennui of workaday lives (Graham, 2008:
154) que são observadas por sociólogos e antropólogos, os quais seguem de perto estes novos
fenómenos culturais ligados essencialmente às EDMCs “The dilemmas inherent to observing
ritual in the contemporary via a liminal/liminoid, sacred/secular division are thus apparent in
the study of trance culture” (Graham, 2008: 163)

Estes festivais permitem a pessoas de toda a parte do mundo reunir-se, para ouvir,
dançar e sentir/produzir vários estilos de música, criar e adorar arte, e um outro conjunto
abrangente de atividades lúdicas, ecológicas e artísticas.
Do ponto de vista político tornou-se um festival apartidário, onde não há grupos sociais
confinados aos valores hierarquizados da sociedade atual, porque todos pertencem a uma
subcultura que se preocupa essencialmente com a comunhão do indivíduo com a natureza, a
comunidade nómada, o bem estar espiritual, os rituais de liminaridade e celebração da vida (?)
A liberdade de expressão está no seu expoente máximo, onde o uso de substâncias
psico-ativas faz parte de uma realidade que não é menosprezada, mas orientada de forma a
minimizar o impacto que possa trazer ao indivíduo

Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 25


In such moments, “freaks” may more approximate the experience of being other than
performing otherness. Here, the ludic reversal or reconfiguration of structure and language
common to festival and carnival performance is replaced with the dissolution of language
and meaning, with a raw experience of self-dissolution or “surrender”, a process most
consciously orchestrated within trance parties. Emically recognized as “going hard”,
“losing it” or being “out there” and often involving the use of chemical alterants such as
“Ecstasy” (MDMA) and “acid” (LSD) the condition may potentiate something of a “limit
experience”, which, as Anthony D’ Andrea (2004: 246) notes, can be sublime and
traumatic: “Pleasure, pain, catharsis, awareness, despair, and happiness underlie such of
non-ordinary sensations and states. Telepathy, mystical visions, paranoia, ego dissolution,
excruciating pleasure, deep insight, serenity, and cosmic love are not uncommon... As an
exercise of intensity and impossibility, these transpersonal practices engender experiences
of personal derailment - deterritorializing asignification - sacred madness with rewards and
dangers” (D’ Andrea APUD Graham, 2008:153)

É orientando o indivíduo [e as comunidades], pedagogicamente, para valores que


convergem, que lhe é permitido encontrar valores humanos [em declínio na sociedade atual],
de forma a idealizar um futuro de comunhão com o próximo e com a Mãe Terra. Estes valores
tem sido observados e defendidos por vários autores
Dancers may experience ekstasis (...) an experience Turner would have deemed “flow”
whereby the rules of engagement to life are dissolved to the point where the ego may give
way to a “non-reflective awareness autonomous in its “freedom” from ideology, language
and culture (Landau APUD Graham, 2008:113)

O Festival Transformacional não apresenta regras específicas, nem objetivas quanto à


sua classificação, mas propriedades que lhes são caracteristicas. A sua identidade cultural
manifesta-se no movimento contracultura, pois apresenta uma realidade alternativa aos
produtos da “cultura de massas”.
[Ravers] experience deep feelings of unlimited compassion and love for everyone around
them... For a few hours they are able to leave behind a world full of contradiction, conflict
and confusion, and enter a universal realm where everyone is truly equal, a place where
peace, love, unity and respect are the laws of the land. (Fritz 1999: 43)

Este género de festivais suportam/defendem a construção de comunidades onde os


valores centrais promovem o crescimento pessoal, responsabilidade social, vida saudável,
expressão criativa e a celebração da vida.
Há, ainda, muito poucos estudos sobre este fenómeno cultural global, no sentido de
entender e perceber, o impacto que estes festivais têm nas sociedades contemporâneas
the “myth” that rave enables a “re-connection with more tribal, primitive, simpler, fuller,
truer, more powerful and ‘more real’ times and experiences more or less explicity sets raves
in opposition to a decayed, empty, superficial and meaningless world”. And the imagined
return to “more real” and perhaps “more human” or other times is ofter facilitated by the
reclamation of other places, such as industrial wastelands, abandoned warehouses, church
basements, and bridge lees. The transforming of such spaces into sites of sacred sociality
evinces a desire for more compassionate, authentic and enchanted communities.(Gauthier
APUD Graham, 2008:160)

Na cultura de massas, observa-se o indivíduo dependente de “iluminados” para lhes


indicar o caminho para a “salvação” ou crescimento pessoal.

Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 26


Os que “escolhem” escapar à manipulação do mundo virtual, das propagandas e dos
sistemas políticos corruptos, percebem que a vida tem um propósito e é na busca desse
propósito que “irmãos e irmãs” criam laços familiares, ao longo do seu caminho na formação
destas novas comunidades. Estes laços possibilitam proteção mútua e reconhecimento de
“seres espirituais” [kindred spirits], ou seja, duas pessoas que formam uma ligação especial ao
partilharem o mesmo laço que os uniu, através de um tipo de experiência num elevado nível
de consciência
The worldwide development of raves and similar collective rituals characterized by all
night communal rituals involving dance, drumming, music, and often the use of
psychedelic substances can be understood as a modern manifestation of the same biological
principles underlying shamanism. The shamanic ritual was a nighttime ceremony which
engaged all of the community in a powerful interaction with the spirit world as the shaman
beat drums or rattled while singing, chanting and dancing. The common underlying
biogenetic structures of shamanism and raves involve: the social functions of ritual; the
effects of dance and music as systems for social bonding and emotional communication;
and the effects on consciousness that produce alterations of emotions, identity and
consciousness and personal healing. (Winkelman, 2015: 7)

O conhecimento cientifico relativo à consciência é bastante limitado e isso revela que,


qualquer alteração exterior que afete diretamente a consciência humana muda por completo a
vida como a conhecemos.
As feromonas, como é do conhecimento público, são substâncias químicas segregadas
por animais e que promovem reações específicas em muitas das espécies de seres vivos.
Por exemplo, perfumes despertam em nós alterações químicas que desencadeiam
reações. No filme “Perfume: The Story of a Murderer” (2006) de Tom Tykwer, o protagonista
desencadeia uma reviravolta na cena final do filme ao libertar uma fragrância que altera por
completo a consciência de todos os que a sentem, levando a multidão a um completo estado
de êxtase e impulso sexual. 6

6 Clip de vídeo da cena do filme referenciado. O protagonista ao manipular a consciência do público é


considerado um anjo. A manipulação acontece através da libertação de uma fragrância que provoca um estado de
êxtase, alucinação e desejo sexual. 2006. Youtube. Internet. Disponível em https://www.youtube.com/watch?
v=xtz6dAjWz3g. (consultado em 27/02/2017)
Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 27
As frequências eletromagnéticas que controlam o globo, que fazem vibrar a energia e a
matéria do qual os seres vivos são compostos, estão a ser alteradas, a nível planetário. 7
Isso, defendem os cientistas e observadores da causa, vai ter um efeito que está para
além do conhecimento que a humanidade possui hoje, e que é regulado pela consciência, o
veículo através da qual todo ser humano está conetado ao planeta Terra e ao Cosmos, ao
mundo material e ao espiritual.
Neste tipo de festivais onde a EDMC é implementada, todos dançam sob uma
determinada frequência transmitida seja pela musica eletrónica, com uma batida constante, ou
em cerimónias de tambor, cânticos, entre outros.
Estas frequências e a alteração/manipulação das mesmas, desencadeiam reações no
cérebro, que podem levar a um estado de êxtase e transcendência dentro de uma comunidade,
em rituais pagãos, como era verificado [e ainda é] em comunidades primitivas [aborígenes;
indígenas] podendo elas serem ou não influenciadas, pelo consumo de substancias psico-
ativas
You don’t have to watch many National Geographics to see the obvious similarities
between parties such as these and the religious ceremonies of more ‘primitive’ cultures.
Ritualistic raving will remain viable because it appeals to the sense of spirit in us that has
been viable since the dawn of human consciousness... (Sylvan 2002: 147)

Observando o inicio da “Era Digital”, percebe-se que a criação/consumo eletrónico é


irreversível. O mundo das máquinas apodera-se cada vez mais da espécie humana.
A modernização da tecnologia e os processos de comunicação, revelam a força motriz
da evolução social, da sociedade da informação.
O cinema, considerado a sétima arte do mundo contemporâneo, tem o poder de imergir
o observador, permite-lhe sonhar, adorar, desejar, mas é no decorrer de todo este conjunto de
sensações, que o cinema revela o seu valor maior - questionar, acreditar.
É perfeitamente normal o espectador discorrer sobre as mensagens morais, éticas,
humanas que o cinema transmite.
Então, aceitando o nosso destino universal, morte, será que podemos identificar
festivais como o Boom ou o Burning Man como uma celebração da vida, o renovar de forças,
o renascer das cinzas?

7 Is the Earth’s frequency speeding up? Since the Schumann frequency is said to be “in tune” with the human
brain’s alpha and theta states, this acceleration may be why it often feels like time has sped up and events and
changes in our life are happening more rapidly (Forti, 2015). Internet. Disponível em http://www.trinfinity8.com/
why-is-earths-schumann-resonance-accelerating/ (consultado em 22/02/2017)
Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 28
A alegoria que se segue, pode ou não ser aceite pelo leitor, mas a simbologia, a
ideologia, as práticas e representações identificadas na “Rave” em Zion, no filme “Matrix
Reloaded” (2003) de Lana Wachowski e Andy Wachowski, remetem para o mesmo conceito,
a celebração da vida, da comunidade, no último momento antes das máquinas invadirem o
espaço num ato de guerra. 8
Até porque o filme Matrix é considerado por filósofos, pensadores e intelectuais como
uma alegoria à Bíblia Sagrada.

É nestas comunidades onde ninguém julga ninguém, onde o respeito e o afeto pelo
próximo prevalece acima do extrato social ou do poderio económico capitalista, que os
indivíduos dançam sob a mesma vibração, partilham a mesma energia e experienciam
fenómenos de carácter ritual [ainda pouco estudado] que os fazem transcender para uma zona/
nível fora do seu domínio
the “vibe” is “an active communal force, a feeling, a rhythm that is created by the mix of
dancers, the balance of loud music, the effects of darkness and light, the energy. Everything
interlocks to produce a powerful sense of liberation. The vibe is an active, exhilarating
feeling of ‘now-ness’ that everything is coming together - that a good party is in the
making. The vibe is constructive; it is a distinctive rhythm, the groove that carries the party
psychically and physically”. (Sommer APUD Graham, 2008: 155)

A vibração sentida num espaço de dança suscita no indivíduo um sentido de pertença


“The “vibe” is an experience pervasive to dance cultures, where habitués “rid themselves of
the clichés associated with status incumbency and role-playing and enter into vital relations
with other[s]” (Turner 1969: 128, in Sommer 2001: 72) mas não só “direct, immediate and
total confrontation of human identities which tends to make those experiencing it think of
mankind as a homogeneous, unstructured and free community” (Turner, 1974: 169)

O retorno do indivíduo ao tribalismo pode ser caracterizado como um movimento de


diminuição na sua condição social, uma saída, ou até uma desconexão do poder central
“enable the approximation of the social liminality of communitas for countercultures, cults,
gangs, and other modern agents of antistructure (Turner APUD Graham, 2008: 161)
Ao pesquisar referências diretamente ligadas com estes festivais, percebe-se o quão
recente é este assunto, que assumiu um contorno global.

8 Clip de vídeo da cena do filme referenciado. A “rave” na caverna é estimulada por som tribal, de tambor e
percussão, permitindo estados de transcendência e pertença, onde todos debaixo do mesmo som e da mesma
frequência/vibração celebram o momento, o aqui e agora. É percetível o êxtase do momento, o ritual shamanico
e o aumento da comunhão através da partilha e desejo sexual. 2003. Youtube. Internet. Disponível em https://
www.youtube.com/watch?v=FwbwEZtpEZU. (consultado em 27/02/2017)
Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 29
A origem dos Festivais Transformacionais é mais complexa e profunda do que uma
simples ideia de fazer um festival de música e de um momento para o outro apelidá-lo de
outro nome. Aliás, o que aconteceu foi o oposto. Festivais como o Boom Festival (PT) e o
Burning Man (USA) já tinham décadas de existência, quando foram categorizados e
abrangidos pelo conceito - Festival Transformacional - termo que só viria a chegar a Portugal,
entre 2014 e 2016.
Portanto, o conceito resulta da longa observação participante, dentro e fora destes novos
movimentos sócio-culturais, por várias pessoas, entre as quais estava o dj, produtor de eventos
Jeet Leung.
Numa palestra em 2010, do programa “TED Talk”, canal do “youtube” que conta hoje
com mais de 6 milhões de subscritores, Jeet Leung, apresentou ao mundo online, o termo -
“Festivais Transformacionais”. Dentro dessa categoria, o Boom Festival, aparecia como um
dos poucos na Europa e os “habitantes” do festival foram designados por “psytrancers”. 9
Attempting to sustain the vibration through a vast network that D’Andrea calls a “freak
ethnoscape”, as participants in a “civilizational diaspora”, trance travelers pursue a kind of
transnational “vibe”. Escaping commercial exploitation, they seek refuge and sustenance in
parallet worlds of their own making. But while they may be exiles occupying a place that is
“no-place”, squatters on utopian thresholds, they are less passengers than habitués -
“nomads” who “do not move” (D’ Andrea APUD Graham, 2008: 159)

Segundo Turner existe uma contração da religião como no século XX, e agravada no
século XXI, na minha opinião. Turner defende que o conceito de jogar, brincar, divertir-se de
forma lúdica em eventos EDM, está anexado à renovação e recriação de novos ideais e
simbologia que provocam uma rutura na corrente atual.
Significantly, in his later speculative digressions Turner saw that liminoidal (or ritual-like)
occasions and sites are characterized by the “negative” and “positive” freedoms to which
political philosopher Isaiah Berlin (1958) gave vague attention. That is, emergent
performance genres and aesthetic forms, from sports to “the Arts” and festivals, enable both
the “freedom from” institutional obligations “prescribed by the basic forms of social,
particularly technological and bureaucratic organization” and from “the chronologically
regulated rhythms of factory and office” and the “freedom to” generate “new symbolic
worlds”, to transcend social structural limitations, to play with ideas, with fantasies, with
words, and with social relationships (Turner APUD Graham, 2008: 150-151)

O movimento de certas comunidades em busca de novos valores que não se identificam


na sociedade de massas, tem desenvolvido um poder cultural em minorias como subculturas
que promovem, uma alteração nos pilares base da civilização: religião, economia, cultura,
história e ciência.

9 Jeet Kei Leung at TEDxVancouver. Palestra sobre Transformational festivals. 2010. Youtube. Internet.
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Q8tDpQp6m0A. (consultado em 02/02/2017)
Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 30
Conclusão
Os conhecimentos reunidos por Cuche (1999) e atualizados por Sarmento (2015),
demonstram a dinâmica e a renovação de todos conceitos atribuídos e relacionados à cultura.
Cultura não é conhecimento mas também não é a ausência dele. Não é objetiva ao
contrário do conhecimento. É complexa e profunda.
Permita-me a analogia (!): cultura é consciência e consciência é cultura; a cultura não
existe sozinha; a consciência também não.
A memória é a base da consciência; a cultura manifesta-se através da memória. A
cultura é resultado de um culto; o culto vive na consciência. Um homem culto é um homem
que cultivou a sua consciência.
Ao longo dos vários séculos a palavra “cultura” foi amadurecida e acompanhando o
indivíduo e a sociedade que a precedia. Hoje, tanto se manifesta numa dimensão macro-
existencial como micro. A cultura está para além do que se vê, ao mesmo tempo que a cultura
se manifesta nas práticas, representações, ideologia e simbologia de uma comunidade.
A identidade, memória e língua vivem ameaçadas por um tecnologia super avançada
que nos torna dependentes crónicos e nos incute novas formas de comunicar, estudar e
relacionar. Essa tecnologia é o produto de um mundo que se percebe num período de
transformação.
Os Festivais Transformacionais apresentam novos conceitos e paradigmas, que
permitem ao indivíduo seguir um caminho diferente daquele imposto pela mídia, política,
capitalismo, tecnologia.
Através de vários tipos de rituais [xamanicos, pagãos, comunhão, etc] o indivíduo
experiencia algo que o transcende. Numa zona liminoidal pode atingir um estado de êxtase e
ganhar perceção do que está para além do campo físico.
Esses estados são mais frequentes em rituais de dança “Dance, in its most passionate
and unproductive manifestations, constitutes an ecstatic and unruly embodiment that has been
the subject to suspicion and panic (prohibition) throughout Western history and legitimacy
(productivity) at the hands of contemporary market forces”. (Graham, 2008: 152)
Os estados de elevação espiritual, de comunidade tribal e da preparação de compostos
químicos [poções] para rituais de interceção com reinos sagrados, espirituais, metafísicos
precede-nos e manifestam-se desde os tempos ancestrais, valores que são agora recuperados
“The desire to dance within socially unorthodox and permissive environments has motivated
all forms of EDMC (from disco to rave to trance and beyond)”. (Graham, 2008: 153)

Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 31


As publicações sobre os conceitos e manifestações de liminaridade observados por
Turner (1969), permitiram a Graham (2008), chegar a uma análise empírica, ainda que pouco
conclusiva, relativamente aos fenómenos EDMCs.
Os acontecimentos que se verificam nestas subculturas onde as EDMCs se manifestam,
no caso deste trabalho, Festivais Transformacionais, suscitam um enorme interesse em
diversas disciplinas albergadas dentro das ciências humanas e sociais. “The sense of
connectedness between mind, body, and spirit, between individual and crowd, is a theme of a
wider ‘synchronicity’ of individual components within what comes to look increasingly like a
complex, mechanic network” (Pini, 1997: 121)
As manifestações e estudos de hoje, já não se revêm no passado, mas servem de ponto
de partida para compreender uma nova realidade ou identidade, que se está a construir.
O (epi)fenómeno de contracultura contemporânea identifica um retorno aos valores do
antepassado, de seres humanos cuja consciência, começa agora a despertar.

Tiago André Pereira - PhD - Ciências da Cultura - 32


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