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Carvalho Edmund Husserl Contra o Psicologismo PDF
Carvalho Edmund Husserl Contra o Psicologismo PDF
Edmund Husserl
Contra o Psicologismo
Preleções Informais em torno de uma leitura
da Introdução às Investigações Lógicas
Rio de Janeiro
IAL
1996
i
Atenção:
Este material não foi revisado
por Olavo de Carvalho.
Frithjof Schuon
ii
Sumário
1 Preleção I 3
1.1 A origem da lógica . . . . . . . . . . . . . . . . . 3
1.2 As condições essenciais do conhecimento ci-
entı́fico, ou: a idéia pura de ciência . . . . . . . . . 8
1.3 Condições existenciais para a idéia de ciência pura 19
1.4 Evolução e transformações da idéia de ciência . . . 32
1.5 Evolução da Idéia de Ciência . . . . . . . . . . . . 45
1.6 Caracteres gerais da obra de Edmund Husserl . . . 53
2 Preleção II 66
3 Preleção III 80
4 Preleção IV 106
4.1 Espinha dorsal da história da filosofia . . . . . . . 106
5 Preleção V 130
6 Preleção VI 146
6.1 4. A imperfeição teorética das ciências particulares 149
6.2 5. Complementação teorética das ciências parti-
culares pela metafı́sica e pela teoria da ciência . . . 164
iii
Sumário
9 Preleção IX 220
10 Preleção X 239
11 Preleção XI 267
15 Preleção XV 354
20 Preleção XX 473
iv
Sumário
v
Introdução
1
Sumário
2
1 Preleção I
Rio de Janeiro, 18 de novembro de 1992
3
1 Preleção I
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exigência.
Mas é preciso ainda que o nexo que estabelece a transferência
seja, ele próprio, evidente, ou seja, não pode ser um nexo qual-
quer. Isso porque, se não for evidente, ele também precisará ser
garantido por uma outra evidência — e assim por diante indefi-
nidamente. Temos, assim, outra exigência que é a da existência
de um nexo evidente. Se tenho aqui uma verdade, que chamo de
evidente, e ali uma evidência indireta, tenho de ter um nexo entre
as duas. Porém, se esse nexo não é evidente diretamente, isso quer
dizer que ele é uma evidência indireta que depende de uma outra
verdade evidente; e haverá necessidade de um outro nexo, o qual
se não for evidente vai depender de uma outra verdade evidente,
a qual está ligada por um outro nexo. Se isso não parar nunca,
ou seja, se nunca encontrarmos um nexo evidente entre a verdade
direta e a verdade indireta, acabou-se a nossa Ciência.
Essas são, então, as quatro condições gerais, ou teóricas, da
Ciência. Ciência quer dizer conhecimento verdadeiro. A evidência
indireta não é evidência em si mesma, senão seria uma evidência
direta. Se as duas verdades que nós queremos conectar são real-
mente diferentes uma da outra, inteiramente heterogêneas, estra-
nhas entre si, então, não haverá um nexo evidente possı́vel. Mas
pode haver nexos acidentais. Um nexo só poderá ser evidente na
seguinte situação: se entre a primeira verdade e a segunda verdade
não houver, na realidade, salto algum. Porém, quando examina-
mos retroativamente percebe-se, de fato, que a segunda verdade
é igual à primeira verdade, embora não tivesse assim parecido
de inı́cio. Como se faz isso? Se temos uma verdade evidente
de que estamos aqui e a escada está lá e, eu, partindo da pri-
meira evidência de que estamos aqui e a escada está lá, digo que
para chegar até lá, precisamos nos mover. O quê é mover-se? É
deslocar-se no espaço. O quê é aqui e lá? São diferentes lugares no
espaço. Então, eu dizer que você está aqui, é exatamente a mesma
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1 Preleção I
coisa que dizer que para você estar lá tem que haver um movi-
mento, um deslocamento. Ou seja, eu disse exatamente a mesma
coisa, só que com duas palavras diferentes, e a diferença da frase
me enganou. Dizer que você está aqui é a mesma coisa que dizer
que você não está em outro lugar. Qual é a conexão entre dois lu-
gares? É somente o movimento, que conecta os dois lugares. Na
hora em que eu disse que você está aqui, já está implı́cito que você
não está lá, e que a única maneira de você chegar lá é através do
movimento, ou seja, somente explicitei o que estava implı́cito. Eu
não disse uma coisa nova; não acrescentei um conhecimento novo,
uma informação nova.
Existem conexões ideais como, por exemplo, a medida: daqui
até lá dista cinco metros. Só que a medida, em si mesma, não leva
um corpo até lá. O que o leva é o movimento através desses cinco
metros. No instante em que eu digo que você está aqui, eu já es-
tou implicitamente dizendo que você não está lá, e que só através
do movimento você pode chegar até lá. Retire essas duas coisas
e você verá que a expressão “você está aqui” fica totalmente des-
tituı́da de qualquer significado. O que quer dizer a frase “você está
aqui” sem ela significar que você não está lá? Não quer dizer nada
— isso já está incluı́do. De modo que, a análise do significado do
que eu falei me leva à segunda verdade evidente. Eu não acres-
centei uma segunda proposição, eu apenas desmembrei a primeira
proposição, apenas expliquei o que a primeira queria dizer. Isto
significa que, entre a verdade direta e a verdade indireta, existe
uma relação que é como a do Todo e a da Parte. Esse é que é o
nexo, e que se chama de Silogismo. Silogismo é um conjunto de
três proposições, o qual, dadas as duas primeiras, a terceira de-
corre necessariamente. Um exemplo disso é o famoso: “Todos os
homens são mortais; Sócrates é homem; logo, Sócrates é mortal.
Aquilo que eu digo de todos, evidentemente se refere a cada um,
porque todo e cada um são exatamente a mesma palavra. Portanto,
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assunto”.
O que estamos tentando aqui é colocar a questão de uma ma-
neira séria, com o intuito de resolver o problema, efetivamente.
E o problema é o seguinte: se existem tantos discursos contra-
ditórios, se falam tanta besteira, como fazer para nos orientar no
meio dessa confusão, para ter uma certeza firme de alguma coisa,
ainda que fosse pouca?
Com isso, Sócrates–Platão, inventam a idéia de Ciência, que é o
conhecimento seguro, que é a idéia que, até hoje, orienta quaisquer
esforços cientı́ficos feitos no mundo inteiro para assumir qualquer
coisa.
A idéia pura de Ciência, o ideal de Ciência, é algo que o ho-
mem se esforça para alcançar, com diferentes graus de sucesso. É
como se fosse um objetivo a ser alcançado. E ele não precisa ser
alcançado para que possa existir Ciência efetivamente. Basta que
a Ciência esteja nessa direção, e não numa outra.
Isso significa que mesmo que a Ciência tenha sido um fra-
casso completo, desde os tempos de Platão até hoje, ainda assim,
nós dirı́amos que é esse ideal que continua orientando os nossos
esforços, e nós continuamos tentando. É como disse o Barão de
Itararé, “Num pugilato com o adversário, ele, no fim, chegou à
conclusão que era melhor demonstrar que a corrida de velocidade
era um esporte muito superior”.
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cimento não seria possı́vel. Porém, todo esse raciocı́nio seria falso,
porque ele mesmo pressupõe a repetibilidade do ato intuitivo.
Argumento cético: “Eu não sei nada”. Ora, se nada sei, não sei
nenhum. Eu não posso afirmar que nada se pode afirmar. A não
ser que afirmar tenha duplo sentido. Por exemplo, “Não se pode
afirmar nenhuma regra geral sobre nada”. Então, isto é um regra
geral. Mas, e se colocarmos da seguinte forma: “Não se pode pro-
ferir nenhuma regra geral sobre nada, exceto esta regra”? Sabemos
que há alguma regra geral que é uma exceção à regra geral que, se-
gundo a qual, não há regra geral. A pergunta seria: “De qual das
duas regras ela seria a exceção? Ela é exceção da regra geral, ou é
exceção da inexistência de regra geral?” No primeiro caso, sendo
ela uma exceção, nega a generalidade de regra. No segundo caso,
ela nega a si mesma. Seria a negação da negação.
Assim, os argumentos céticos representam o pré-Mobral. Os
argumentos céticos são todos jogos de palavras, e justamente por
isso, eles exercem um certo fascı́nio. Principalmente para quem
não sabe que eles existem há séculos, e acredita que acabou de
inventar isso. O adolescente está numa fase de ampliar o voca-
bulário, dominar a terminologia e aprender a dominar as palavras.
Então ele é facilmente encantado pela arte de argumentar.
Entendemos que o conhecimento geral, que é o conhecimento
cientı́fico, além de requerer essas condições teóricas, requer
também algumas condições práticas, das quais, a primeira é a do
ato repetitivo, a segunda seria o dispositivo de registro. No mo-
mento que estou olhando para a evidência indireta, ela é o foco da
minha atenção, não é mais aquela evidência direta inicial, porém,
esta não desapareceu completamente. Ela está retida sob forma
de um sinal, que me permite refazer o ato intuitivo, mas que não
estou fazendo no momento em que penso na evidência indireta.
A evidência direta entra num pano-de- fundo, e a evidência indi-
reta ocupa a posição principal. Mas, a primeira não desapareceu,
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que ele vai descobrir depois. São certezas secundárias, e que de-
pendem de uma anterior, que é a certeza de que a consciência está
presente, de que o indivı́duo tem certeza. Esse é o fundamento
subjetivo. Assim, se o homem busca uma evidência, é ele mesmo,
ou seja, a autoconsciência é que é o fundamento do conhecimento.
Com isso, ele traz de volta uma tradição pré-Platão, que é o famoso
“Conhece-te a ti mesmo”, de Sócrates. Aquela linha socrática, que
é a do exame, do livre- exame feito pelo indivı́duo isolado, que não
começa na Academia, começa pelo amador (Sócrates era um em-
preiteiro), pelo indivı́duo que se investiga.
Porém, essa tradição do livre-exame, tão logo começa com
Sócrates, ela fica esquecida durante mais de mil anos, para so-
mente retornar com Descartes. É uma reconquista fundamental,
porque todo o restante do desenvolvimento da Filosofia, desde
Platão até Sto. Tomás de Aquino, é todo um empreendimento co-
letivo. O desenvolvimento das várias ciências e da Filosofia são
sempre feito por grupos humanos, mais ou menos organizados,
como a Academia Platônica, o Liceu Aristotélico, e as Universi-
dades em geral.
Quando Descartes larga tudo isso, como um cidadão comum fe-
chado em sua casa, tentando consigo mesmo, reconstruir dentro de
sua própria mente, o mundo do conhecimento, ele está retomando
a uma das sementes da própria Filosofia, que é de Sócrates.
Kant. A próxima grande retomada é com Kant, que empreende
a busca da certeza, não no sentido cartesiano, na certeza ı́ntima,
mas a pergunta fundamental é: “Por quê todas as ciências não
progridem do mesmo modo?” “Por quê uma vão para frente e ou-
tras não vão?” “E, particularmente, por quê todas as coisas que
estão mais atrasadas são justamente aquelas que tratam dos as-
suntos mais importantes: Biologia, Metafı́sica, etc.?” “Por quê
as ciências que teriam que nos dar respostas dos problemas mais
graves, e mais universais, não progridem tanto quanto deveriam,
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1 Preleção I
Estou preso dentro dela. E, ele diz que o único ı́ndice, o único
sinal que existe de um Deus, ou de uma imortalidade, é a liber-
dade humana. Mas, você não pode provar a liberdade. Você não
pode provar metafisicamente que o homem é livre. Ele diz que a
liberdade é um imperativo categórico. Você tem que agir como se
fosse livre. É como se você estivesse condenado a isso. Eu não
posso provar que o homem é livre, mas eu não posso agir exceto
se eu supuser que eu sou livre. Que eu sou o autor dos meus atos.
Eu não posso agir supondo que os meus atos sejam determinados
por um outro. Ou seja, não existe prova teórica, nem de Deus nem
da liberdade humana. Eu não posso provar que eu sou livre, mas
eu não consigo pensar de outro jeito.
Ele diz que o caminho para Deus é o caminho pelo qual o ho-
mem, ao invés de procurar provas de Deus, procurar desenvolver a
Metafı́sica como ciência, nesse sentido, ele aceita e assume a liber-
dade, na qual implica a própria responsabilidade pelos seus atos,
que você é autor de seus atos. E essa liberdade é que é a chave
da divindade, da imortalidade, etc. O caminho para as respostas
metafı́sicas é um caminho que passa pela vontade humana, e não
pela inteligência. É um caminho prático, e não, teórico.
Por um lado, isto tem um mérito enorme, porque ele libera o
homem para uma espécie de ciência religiosa mais pessoal. In-
clusive, a Igreja Católica jamais o perdoa por isso, porque, nesse
sentido, não adianta você ter uma doutrina externa pronta, com
tantas provas, tantas demonstrações, porque é somente assumindo
a sua própria liberdade que você vai chegar a conhecer alguma
coisa desse outro mundo do divino. Ele diz, “Se não tem prova
de que eu sou livre, que Deus existe, não tem prova que a alma é
imortal”, porém, de fato, eu não consigo agir, a não ser com base
nesses três pressupostos: liberdade, Deus e imortalidade. Cada ato
humano, se for moralmente responsável, ele pressupõe esses três
pressupostos. Então ele diz que existe uma espécie de lógica do
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1 Preleção I
ato moral, porque somente através dessa lógica é que nós pode-
remos adquirir convicção em Deus, porém, essa convicção jamais
poderá ser sustentada em provas, porque se eu pudesse provar que
Deus existe, eu não seria responsável pela minha crença em Deus.
Kant foi um dos grandes mı́sticos da humanidade. Se você está
sozinho, você é livre, é como se fosse um ponto num espaço to-
talmente indeterminado, onde nada te segura, nada te prende, te
exige, e você vai nos caminhos de uma determinada crença, e não
de outra, como uma exigência da tua própria liberdade, e não por
uma prova externa. Assim, nós poderı́amos dizer que, para as pes-
soas que são sinceramente desejosas de uma vida espiritual mais
profunda, Kant te dá uma maneira de salvação. Para quem não
está a fim de nada, mas está só querendo encher o saco da Igreja
Católica, o Kant lhe dá todos os pretextos. Kant também serve.
Porém, a obra de Kant fecha as portas à Metafı́sica como ciência.
Na verdade, ele não fecha totalmente a porta, porque o próprio
Kant tenta no fim da vida desenvolver uma nova Metafı́sica como
ciência, a partir da própria noção de liberdade humana, mas, aı́ ele
morreu.
Assim, se podemos conhecer os objetos de experiência, sendo
que isso está condicionado à nossa estrutura de percepção de
tempo e de espaço, a categorias lógicas, se só nós percebemos do
mundo aquilo que é captável pela forma da esquemática humana,
e se tudo que está para além da experiência exclusivamente da sua
liberdade pessoal, a geração seguinte (não os idealistas, mas os
positivistas, um pouco mais tarde), concluem que essas questões
de ordem metafı́sica, religiosa, etc., dependem do arbı́trio pessoal,
e que portanto são questões que não têm importância cultural al-
guma. Isso foi feito por Comte.
Assim, Comte inaugura a ciência positivista, que trata dos da-
dos da experiência e deixa de lado as questões metafı́sicas. Isso
também é uma grande contribuição, senão as ciências não teriam
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1 Preleção I
(RUPTURA)
• Descartes: retorno a Sócrates; a consciência individual
como sede da ciência verdadeira.
• Kant:
– conhecimento interno (formal)
– conhecimento externo (material)
Idealismo Positivismo
por reação, por reação
surge Marx surge E. Husserl
Este quadro me permite ter uma visão do que está sendo discu-
tido. Qual é o problema? Do quê se trata? Trata-se, em última
análise, sempre da mesma coisa: como atingir um conhecimento
verdadeiro?
Em relação ao que seja conhecimento verdadeiro na sua
idéia pura, dificilmente houve mudança. Aqueles que discutem
questões, tentam abalar a noção de idéia pura do conhecimento,
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1 Preleção I
são sempre filósofos menores, que estão aı́ só para chatear, e es-
timular uma reação de algum grande filósofo. São geralmente os
movimentos céticos que antecedem uma grande reação. São sem-
pre as mesmas dúvidas, sob uma outra forma que provocam uma
reação.
Fichte já está incluı́do aqui, porque Schelling já é uma resposta
a ele. Fichte resolve a questão do Kant pelo modo radical, onde só
existe o eu, o ego. Schelling prometeu mas não realizou, somente
disse, afirmou, que o absoluto unifica o ser, e o saber, o conhecer,
o objeto do sujeito, mas ele não explica completamente como. O
Schelling é uma promessa do conhecimento, e não o conhecimento
efetivo.
Hegel só acredita no conhecimento quando ele está totalmente
desenvolvido num sistema. Hegel faz o sistema do idealismo
e o sistema do desenvolvimento da progressiva manifestação do
espı́rito na vida histórica real, de modo que a noção de teoria e de
prática já foi para as cucuias a muito tempo. A própria teoria é a
distinção da própria prática.
Hegel, Fichte e Schelling são pessoas profundamente voltadas
para o mundo da ação, e não para o mundo da intelecção pura. E,
nesse mundo da ação, para eles, é onde justamente vai aparecer a
idéia. A idéia do espı́rito está justamente ali, no real. Segundo He-
gel, essa manifestação do espı́rito é o tecido da própria História. A
História é a dimensão suprema onde todas as contradições se re-
solvem. Por isso mesmo é que Hegel não aceita as contraposições
estáticas (teoria contra outra teoria). Para ele, a teoria tem de que
ser vista como um momento de um desenvolvimento dialético. A
teoria errada não pode ser totalmente errada. Isto quer dizer que,
o que nós definirı́amos entre o que é uma verdade objetiva, do que
é o processo de descoberta dessa verdade. Para ele, essa distinção
não existe. O processo de descoberta é a própria verdade. Hegel
diz que a história da filosofia é a própria filosofia. A filosofia não
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e erro. Aquela ilusão de que você pode ser guiado de tal maneira
que você será poupado dos erros, dos fracassos, de não estar se-
guro todo dia, isso tudo é sonho, ilusão, poesia e romance. Isso não
existe. Você pode ser guiado durante um perı́odo da sua vida para
evitar quedas traumáticas, de certos erros, decepções, quando tem
doze, quinze, dezesseis anos de idade, os quais podem acabar com
você. Entretanto, as mesmas quedas e decepções, aos vinte e cinco
ou trinta anos de idade, você tem que agüentar sozinho. Ninguém
pode te poupar disso, e se o fizerem, estarão te fazendo um mal. O
importante é saber que nas questões existenciais ninguém tem as
respostas. E, se eu as tivesse, eu não as daria, porque elas só ser-
vem para mim. Kant dizia: “Não é possı́vel você fazer nada a não
ser com base na suposição de que você é o senhor dos seus atos”.
Sempre que nós agimos, o fazemos com base nesse pressuposto,
porém, quando vamos raciocinar, nós erramos. O princı́pio básico
da ação humana é: “Fi-lo porque qui-lo”.
No entanto, como é que eu vou raciocinar, se o que eu fiz, eu
conto a estória errada? Eu raciocino na base de que não fui eu
quem fiz, porque foram as condições externas, porque fui obri-
gado, porque não tinha outro jeito, etc. Existe uma tendência de
que, quando você fez uma coisa que te frustra, você diz que não
era bem aquilo o que você queria, e se não era bem aquilo o que
eu queria, não foi bem eu quem o fez. Se não foi você quem o
fez, significa que você mudou, então, o que você queria naquela
época não é o que você quer agora. Só que isso não é motivo
para você, retroativamente, dizer que não foi você quem fez, exa-
tamente o que fez. Você queria, e se queria, você o fez. Depois,
se deu errado, admita que escolheu errado. Se você não reconhece
isso, não vai aprender nunca. A perda da evidência sobre os seus
próprios atos também contraria os princı́pios fundamentais que ti-
nham sido descobertos por Descartes. A certeza que eu tenho não
te serve nunca. Se você concordou comigo porque acha que eu
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todos os aspectos, até que você o cerca de tal maneira que ele não
aparece mais. Isto quer dizer que esta leitura também tem um sen-
tido psicoterapeuta. Esta leitura restaura o indivı́duo à confiança
na inteligência humana. Só que dá um trabalho enorme.
6 Inı́cio da leitura das investigações lógicas
Prolegômenos à lógica pura
Introdução
1. A discussão em torno à definição da lógica e ao conteúdo de
suas doutrinas essenciais
Ainda hoje estamos longe de uma geral unanimidade com res-
peito à definição da lógica e ao conteúdo de suas doutrinas essen-
ciais.
Sabemos que a Lógica trata das definições, dos silogismos, etc.
Uma coisa é o conteúdo das técnicas lógicas, e quanto a esse
conteúdo não há muito o que dizer, pois todos sabem o que é um
silogismo, premissa maior, premissa menor, etc. Quanto a isso
não há divergência. Mas, não é disso que Husserl está falando.
Ele está perguntando, não qual é o conteúdo das técnicas lógicas,
mas, primeiro, sobre o conteúdo das doutrinas, ou teorias lógicas.
Teorias que respondem ou deveriam responder à pergunta: em que
as técnicas lógicas se fundamentam? E, em segundo lugar: de que
a Lógica trata? Qual é o objeto dela?
Depois de dois mil anos de Lógica, embora a ciência da Lógica
esteja bastante desenvolvida, ainda não se tem clareza sobre o de
que ela está falando. Isto significa que o estudo da Lógica se atém
ao aspecto empı́rico-prático, ou seja, sabemos praticar a Lógica,
sabemos aplicar suas regras, mas não sabemos exatamente o que
estamos fazendo quando fazemos isso. O quê é essa ciência a
que chamamos lógica? Ela é uma formalidade, um conjunto de
esquemas? Ela expressa leis reais que atuam na realidade exterior
ou leis da mente humana? Ninguém sabe ao certo. O próprio
sucesso da Lógica contrasta com a ausência de qualquer clareza
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dado, pois Kant dá como exemplo modelar de Ciência que entrou
pelo caminho seguro, precisamente a Lógica.
No começo do estudo da Lógica, não foi colocado direito com
que fim estavam fazendo aquilo. Qual era o objetivo? Isso quer
dizer que se estuda a Lógica com três finalidades completamente
diferentes. Então, talvez hajam três sı́nteses completamente diver-
sas, e não uma só.
A concepção dos fins de uma ciência encontra sua expressão
na definição dessa ciência. Não que o cultivo frutı́fero de uma
disciplina exija uma prévia e adequada definição do conceito do
seu objeto. As definições de uma ciência refletem apenas as eta-
pas de sua evolução. Não obstante, o grau de adequação das
definições exerce também seu efeito retroativo sobre o curso da
ciência mesma; e este efeito pode ter influxo escasso ou consi-
derável, conforme a direção em que as definições se desviem da
verdade. A esfera de uma ciência é uma unidade objetivamente
cerrada. O reino da verdade divide-se, objetivamente, em distin-
tas esferas; as investigações devem orientar-se e coordenar-se em
ciências, em conformidade com essas unidades objetivas.
Ele diz que se existe uma confusão tão grande quanto ao rumo
que a Lógica deve tomar, quanto à definição mesma da Lógica, se
é o rumo de uma investigação psicológica, se é o rumo de uma
elaboração formal, de uma construção formal (caso dos compu-
tadores), ou se é o rumo de uma fundamentação de ordem me-
tafı́sica, se não existe qualquer clareza quanto a isso, é muito pro-
vavelmente porque os fins da ciência da Lógica não foram aclara-
dos desde o inı́cio.
Uma Ciência é definida em objeto material, objeto formal mo-
tivo, e objeto formal terminativo. Objeto material é “o quê?”;
por exemplo, Economia e História: o objeto de estudo das duas
é o mesmo, que é a sociedade humana. Objeto formal motivo
é o “por quê?” você estudou, por onde, por que lado você se
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partitura para poder tocá-la e, depois de tocar é que ele vai ver se
foi bom ou ruim. A interpretação tem que ser boa senão ela pode
estragar a música, ou pode mudar o seu estilo completamente.
O ouvinte pode gostar da música por razões fortuitas, por exem-
plo, no meio da sinfonia de uma hora, pode haver uma determinada
melodia que o agradou, mas a melodia é um elemento, ela não é a
música. Uma mesma melodia pode ser usada em várias músicas,
com melodias muito ruins, podemos fazer grandes obras. A me-
lodia é como se fosse a matéria-prima. Por exemplo, quando você
vai a um restaurante, você não vai julgar a qualidade da comida
pelo simples estado em que a carne estava quando chegou ao res-
taurante. O que me interessa é saber o que o cozinheiro fez com
essa carne. É aı́ que entra a arte do cozinheiro.
Assim, diz Husserl, existem três direções capitais no que diz
respeito à compreensão do que é a Lógica, ou o que é a Razão, o
que é a dedução matemática. A psicológica diz que a Lógica é uma
ciência natural, experimental, que observa o funcionamento do
cérebro, o nosso modo de pensar. A formal que vê a Lógica como
um conjunto de artifı́cios inventado pelo ser humano para dar ar-
tificialmente, e a posteriori, uma coerência a um pensamento, que
pode ter sido produzido por meios propriamente incoerentes. A
metafı́sica que diz que a Lógica é um conjunto de leis ontológicas,
de leis que regem a própria realidade.
Husserl diz que, apesar da Lógica ser uma ciência muitı́ssimo
antiga, e que com respeito às suas técnicas, não sofreu alteração
desde o tempo de Aristóteles, ela ainda não alcançou clareza
quanto à sua própria natureza, quanto ao que são propriamente
essas técnicas, por que elas funcionam, e qual é o fundamento da
própria Lógica.
Ele destaca dois aspectos: primeiro, a definição da Lógica. A
definição significa o que é o objeto em estudo, e qual é o ângulo
pelo qual essa ciência enfoca esse objeto, e qual é a finalidade.
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no real, aı́ é que ele está mais maluco. Você se informar dos novos
fatos do mundo só aumenta o seu número de problemas. Novos
fatos são novas possibilidades de erros, porque se você já estava
errando com meia dúzia de fatos, quando tiver sessenta, vai errar
dez vezes mais.
Não se trata do conhecimento de novos fatos, mas da correção
do seu julgamento sobre os fatos. Como você interpreta os novos
fatos. Você pode partir de princı́pios falsos que podem servir de
chave para a explicação falsa de milhões de novos fatos, só que
quanto mais fatos você vai explicando por princı́pios falsos, maior
vai ficando a falsidade do conjunto. A preocupação que existe no
ensino atual acerca da atualização é extemporânea, porque você
não precisa. A educação não tem que acompanhar os progres-
sos da Ciência. Se você ensinar um indivı́duo a ter lucidez sufi-
ciente para ele entender a geometria de Euclides, compreendê-la
profundamente, o restante da evolução da geometria, ele capta em
um mês por conta própria. E continua capaz de se informar com
grande rapidez.
A preocupação com a atualização é uma preocupação com o
quantitativo. Não adianta você tentar passar toda a informação.
Depois ele adquire a informação por si. A função da educação não
é ficar correndo atrás das novas conquistas da Ciência. A educação
não é jornalismo, que é uma coisa periódica. Educação significa
ex-ducere, ou seja, levar o indivı́duo para fora. Ou seja, você está
preso dentro de um mundo subjetivo seu, onde você só olha para
dentro, e a educação faz você olhar para fora. Sair do mundo
pequeno e olhar o mundo grande, real, que está à sua volta.
A distinção entre o verdadeiro e o falso leva um tempo para
surgir historicamente. Você pode encontrar tribos de ı́ndios onde
essa distinção ainda não existe. Os ı́ndios, que no século XX
começaram a ter muito contato com o branco, levaram trinta a
quarenta anos para perceber que o branco mentia. O Juruna é um
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precisa fazer, mas não faz. Ele não descreve efetivamente o pro-
cesso da exteriorização do absoluto. Ele fala que existe essa
exteriorização, essa manifestação, que o absoluto se desdobra nas
sucessivas manifestações do ser, mas ele não diz como isso acon-
tece. Ele não diz o que o absoluto faz realmente no processo da
sua manifestação. Ele vai identificar a filosofia da manifestação
do espı́rito com a filosofia da História, que é entendida como um
processo de sucessivas afirmações e negações, que em seguida se
transformam em novas afirmações e negações, e assim por diante.
Nessa altura, acontece uma coisa importante, que a antiga
idéia da dialética, como método da Filosofia, inaugurada por
Aristóteles, é retomada de uma outra maneira por Schelling e He-
gel, onde ela deixa de ser apenas um método humano de descobrir
a verdade e ela passa a ser a própria lei que constitui o real. Para
Hegel e Schelling, a realidade é dialética. Não só o nosso processo
de conhecimento é dialético, mas a própria realidade é dialética,
porque o conhecimento faz parte do processo de desdobramento
do próprio espı́rito, isto é, do próprio real. Para os filósofos do
idealismo alemão, a dialética não era um método de descoberta,
como era para Aristóteles, mas é o próprio processo da existência
do real, da qual faz parte o próprio conhecimento. O processo hu-
mano da descoberta do real, o conhecimento humano, é o próprio
real. Quando o homem descobre algo, é o próprio espı́rito que se
redescobre.
Então, não se pode fazer a distinção entre a teoria e a prática, ou,
entre o real externo e o seu conhecimento. Isso quer dizer que o
processo classificatório e distintivo da Filosofia antiga é aqui aban-
donado, em favor de um processo dialético que engloba as várias
classes e espécies, num todo que está em perpétua transformação
e, naturalmente, a distinção aristotélica entre ciências teóricas e
ciências práticas não existe, porque o conhecimento é um pro-
cesso que se desenrola no tempo, e que é uma prática. Esta prática,
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3 Preleção III
por sua vez, não é separada do real que o conhecer conhece, mas
quando o homem conhece, é o próprio real que se conhece a si
mesmo, na medida em que o próprio homem é real. Os filósofos do
idealismo alemão comprimem, num processo único e dramático,
tudo aquilo que a Filosofia dos séculos anteriores havia se preo-
cupado em distinguir e classificar com atenção. Como se todas
essas práticas e espécies, conceitos, esquemas, etc., fosse visto
por eles, tudo ao mesmo tempo, como um processo dinâmico. É
claro que eles não poderiam ter feito tudo isso se a filosofia an-
terior não tivesse feito todas essas classificações. O processo de
desdobramento analı́tico das partes precede, depois, à sua sı́ntese
final. Essa direção de reunificar o que Kant havia separado é uma,
que começa com o idealismo alemão.
Por outro lado, a outra linha de desenvolvimento, é a linha do
Positivismo, que vem com Augusto Comte, que tenta, não reu-
nificar o que Kant havia separado, mas formalizar a separação e
torná-la definitiva. É toda uma corrente positivista que, de uma
maneira ou de outra, tem sua origem em Comte.
A lógica positivista é psicologista. A orientação formal surge
do conhecimento, se torna quase que um dogma oficial. Isto
traz um certo benefı́cio, porque permite a formação inteiramente
autônoma das ciências positivas que, a partir daı́, começam a pro-
gredir muito rapidamente, na medida que elas não têm que pres-
tar satisfações de ordem metafı́sica. Até o Idade Média, se você
descobrisse u, novo fato cientı́fico, esse fato não era intuı́do até
que você o confrontasse com todas as doutrinas. Por exemplo, o
sistema de Copérnico: toda a Europa leu o livro de Copérnico e
usou os cálculos de Copérnico, e ninguém deu grande importância
a aquilo, porque aquilo não parecia ter conseqüências de ordem
teológica. Foi só quando Giordano Bruno interpretou o sistema de
Copérnico no sentido teológico, extra-oficialmente, é que o pro-
blema se deu.
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3 Preleção III
das filosofias, ele por certo vai ser submetido a uma transformação
por Karl Marx, que vai dizer que o mecanismo fundamental da
História não é o confronto das idéias e das doutrinas no campo
filosófico, mas o confronto das ações humanas reais dentro de um
quadro de relações que delimita a ação humana: relações jurı́dicas,
econômicas, militares, polı́ticas, etc. De maneira que a própria
História, que passa a ser História social, e não a História cultural,
é que passa a ser a chave.
Na obra de Husserl surge a resposta da situação criada pelo
positivismo. Husserl vai à margem do desenvolvimento Hegel-
Marx, na medida onde a autonomia das ciências, permitindo a sua
extensão qualitativa, abre a brecha para a incoerência dentro do
mundo da Ciência. Na medida que surge a incoerência, ou seja,
aquilo que é verdade aqui é desmentido acolá, vai entrando o non-
sense, não só dentro dos interstı́cios entre as várias ciências, mas
dentro do próprio âmbito de cada ciência em particular. Um exem-
plo disto é o caso de Georg Cantor.
Husserl parte do fato que ele chama de “A Crise das Ciências”,
não no sentido de que elas não estejam descobrindo nada, não no
sentido de que elas não progridam, mas no sentido da sua própria
cientificidade, ou seja, são ciências ou não? São ciências verda-
deiras ou são apenas um tecido de conjecturas, retoricamente co-
locadas à sociedade, como que embasadas numa autoridade de um
grupo social determinado que se auto-intitula “a classe cientı́fica”?
Husserl não é, evidentemente, contra as ciências. Ao contrário,
ele apenas quer que elas, de fato, cumpram a sua promessa do
conhecimento apodı́ctico, demonstrativo. E isso é tanto mais im-
portante quanto ele vê a própria civilização européia como fruto,
criação da Ciência, toda ela marcada pelo ideal de Ciência. Por-
tanto, onde estiver um defeito, uma rachadura, uma incoerência no
mundo das ciências, ela se propagará por toda a civilização, mais
cedo ou mais tarde, assim como se fosse uma civilização fundada
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do outro? Não! Isto quer dizer que vocês pegaram a mesma idéia
geométrica, por processos psicológicos que independem de suas
associações de idéias, as quais foram totalmente fortuitas. Isto
quer dizer que, a veracidade dos cálculos geométricos que você
faz, que existem no triângulo, independe do modo psicológico pelo
qual você apreendeu a idéia. Mesmo que fosse o homem das ca-
vernas, o triângulo continuaria tendo três lados, e o quadrado da
hipotenusa continuaria a ser a soma dos quadrados dos catetos.
Assim, Husserl indaga: “É possı́vel a Lógica pura?”, ou seja,
a teoria pura da Ciência. Não apenas a formulação da idéia pura
da Ciência, que é uma coisa, porém é possı́vel formar uma Lógica
inteira? Ou seja, é possı́vel o conjunto total dos critérios do co-
nhecimento de maneira inteiramente pura, sem referência aos da-
dos psicológicos? Ele diz que se não é possı́vel isso, então não é
possı́vel Ciência alguma. Ou destacamos a Lógica da Psicologia,
ou então, essa Lógica não pode fundamentar a própria Psicologia
como ciência.
O mundo dos psicólogos está, até hoje, lesado em todas as pes-
soas que não estudaram Edmund Husserl, e estudaram o restante
da Psicologia. Isto porque tendem a reabsorver nos fenômenos
psicológicos, todo o mundo do conhecimento e a explorar o co-
nhecimento psicologicamente, e portanto você relativiza psicolo-
gicamente, mas, ao mesmo tempo esse mesmo indivı́duo que faz
isso, sabe que a Psicologia não tem fundamento cientı́fico. Resul-
tado: tem que apelar para o mundo do mito. Por isso é que os
junguianos logo vão para o lado do mito, começam a ler o Schel-
ling.
O futuro da Ciência, a cientificidade da Ciência, a sua base
verı́dica, repousa nessa possibilidade: ou existe a Lógica pura,
ou então tudo isso é uma demência. E é justamente isso que
ele vai começar a se esforçar, por etapas, a partir deste livro das
Investigações Lógicas. É um novo São Tomás de Aquino, um novo
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Aristóteles.
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chama de concreto.
Portanto, para poder captar o que é o ponto-de-vista cientı́fico,
nós temos que sair do aspecto concreto para que nós possamos
pegar quais são os encadeamentos de causa que estão necessari-
amente conectados entre si, ou seja, que sempre vêm juntos, e
aqueles que podem vir separados. Ou seja, o impacto de uma bala
depende do seu calibre, e a causa psicológica pelo qual o indivı́duo
matou o outro, depende de acontecimentos anteriores, de ordem
puramente psicológica. Essas coisas não estão conectadas entre
si, mas apenas no indivı́duo real. Assim, coincidiu de que João ti-
nha tais motivos para matar José, e João tinha uma bala de calibre
38. Não poderı́amos, dessa forma, estabelecer uma relação direta
entre o motivo psicológico e o calibre da bala e, portanto, o seu im-
pacto. Essa relação é indireta e estabelecida através de um terceiro
fator que é o indivı́duo ser o autor do ato. Entre o calibre da bala
e o seu impacto existe uma relação necessária, mas entre o calibre
da bala e a motivação psicológica que motivou o tiro não há uma
relação necessária, portanto, isso não pode ser objeto de Ciência.
Não pode existir Ciência das conexões fortuitas porque senão se-
ria uma Ciência inesgotável, nunca chegaria a nada. É como se
você tivesse uma Ciência que estabelecesse uma estatı́stica entre
o horário de partida dos aviões nos aeroportos de todo o mundo
e a quantidade de nascimentos de crianças. Não é impossı́vel que
você até encontre uma certa coincidência, por exemplo, quando
partem mais aviões, nascem mais crianças, porém a nossa razão
percebe que não há uma conexão entre uma coisa e outra, mesmo
quando elas coincidem.
A incapacidade que o indivı́duo tem de sair do plano da ex-
periência concreta e se colocar no plano abstrato que separa as
várias linhas de causa, ela vem junto, necessariamente, com a
impossibilidade que o sujeito tem de distinguir o necessário do
fortuito. Por quê? Porque só existe conexão necessária em li-
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reito de não dar para a criança o que ele não tem. Portanto, ficou
tudo na esfera puramente verbal. Essa estória de reivindicação
pode até acabar descambando para a hipocrisia. Um hipócrita é
um sujeito que se coloca deveres morais que estão acima da capa-
cidade dele. Assim, ele não pode atender ao seu próprio padrão
moral elevado, vive abaixo do padrão, vive se condenando, e ao
mesmo tempo, tendo que se esconder. Ele é um para se mostrar,
e outro para dentro. Naturalmente ele tem um complexo de in-
ferioridade enorme, e para compensar isto, ele terá que encontrar
uma série de procedimentos mais ou menos rituais, compulsivos e
completamente malucos. É um sistema adaptativo muito compli-
cado o relacionamento neurótico. O neurótico é o sujeito que vive
em bases muito complicadas. A relação dele com todas as coi-
sas é indireta, simbólica, cheia de mediações. É um código muito
complexo, e a regra do jogo também é muito complexa.
Quanto mais você exige da sociedade o que ela não pode dar, ou
seja, cada nova lei que proclama mais um novo direito para mim,
é um crime, porque a lei já consagrou muito mais direitos do que
a sociedade brasileira pode atender. Se ela não pode atender, por
quê a lei?
Isso aı́ é só uma das manifestações dessa patologia intelectual.
Eu não vejo esperança de melhora para a sociedade brasileira en-
quanto não houver uma espécie de saneamento da nossa vida in-
telectual; enquanto ela não começar a enxergar claro. Sempre que
existe um debate público, sobre qualquer coisa, é seguro que os
termos reais que aquilo se coloca nunca aparecerão.
Com relação a essa visão do real como um pastiche, onde está
tudo misturado com tudo, não é preciso dizer que as pessoas que
não conseguem enxergar essas distinções reais e que, não obs-
tante, são obrigadas a estudar determinadas ciências, e sentem o
mundo da Ciência como opressivo, quando aparece uma coisa cha-
mada holismo, elas sentem um verdadeiro alı́vio. O holismo é a
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guma. Então você acaba percebendo que aquilo também faz parte
da sua ciência.
Husserl diz que isso não é um problema, ao contrário, você ape-
nas amplia o campo da ciência. Por exemplo, no caso da Zoologia,
é evidente que ela se desenvolveu estudando uma fauna européia.
Só que existem outras espécies de animais, totalmente diferentes,
que você nunca ouviu falar, e que representam desenvolvimen-
tos que seriam inesperados em face daquelas espécies de animais
que você já conhece. Ou seja, espécies de animais que seguiram
uma outra linha de evolução, diferentes das espécies que você já
conhece. Isto não quer dizer que eles devam ser objeto de outra
ciência, porque essas diferentes linhas de evolução que levaram
à constituição dessas outras espécies, são baseadas nos mesmos
princı́pios que fundaram a evolução das espécies conhecidas. As-
sim, a estreiteza do campo não é um problema.
Incomparavelmente mais perigosa é a confusão de esferas,
a mescla do heterogêneo numa presumida unidade, sobretudo
quando radica numa interpretação completamente falsa dos obje-
tos.
Podemos citar o exemplo de mesclas heterogêneas numa pre-
sumı́vel unidade. Se vocês olharem qualquer mapa do mundo,
anterior aos grandes descobrimentos, vocês verão demarcados a
Europa, a Ásia, um pedaço da África, em volta deles um monte
de água, e para além disso, a zona dos monstros marinhos. Isto
quer dizer que a Geografia da Idade Média estudava também os
monstros marinhos. Para que uma ciência possa dizer se para lá
de um certo limite geográfico existem monstros marinhos ou não,
ela poderia utilizar os métodos da Geografia? Com o método da
Geografia podemos delimitar se um determinado ser é monstruoso
ou é normal? É impossı́vel saber disso por meio da Geografia.
Assim, quando a Geografia fala de “zona de monstros ma-
rinhos”, ela está colocando, dentro do seu objeto, uma ordem
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4 Preleção IV
você diz que uma raça é melhor que a outra, você está falando me-
lhor em termos gerais, e não nesse ou naquele ponto. Se assim
fosse, é evidente que uma raça é melhor do que a outra sob certos
aspectos, e pior sob outros aspectos. Entretanto, quando se fala de
uma superioridade geral, a pergunta é: o quê determina essa supe-
rioridade geral? Qual é a ciência que estuda isso? Nenhuma. No
caso, a Antropologia açambarca um objeto que não é, nem da sua
área, e nem de qualquer outra. Qualquer debate sobre isso não vai
dar em nada.
Que um ideólogo discuta sobre isso, tudo bem. Mas um cien-
tista, perder um minuto discutindo sobre isso, é um absurdo. Isso
não é matéria cientı́fica. Ademais, a pergunta “existe uma raça su-
perior?”, é intrinsecamente contraditória, porque uma raça é uma
diferença especı́fica, e não geral. Existe alguma superioridade ge-
ral que possa ser devida a uma diferença especı́fica? Claro que
não! Se existe uma diferença de tipos humanos, só pode haver
uma superioridade — ou inferioridade — que esteja vinculada a
essa diferença mesma. Portanto, jamais poderá ser geral. Entre
seres da mesma espécie, onde há tipos diferentes, jamais poderá
haver uma superioridade geral, sob todos os aspectos.
Isto é o que Husserl quer dizer com “a confusão de esferas”, que
pode chegar ao ponto de uma ciência tomar a seu encargo uma de-
terminada questão que somente poderá ser resolvida pelo saber
universal. Pode acontecer, em outros casos, da ciência simples-
mente tomar a seu encargo um saber que depende de uma outra
ciência, porque se referem a objetos que estão conectados entre
si, por um tipo de nexo, que não aquele que une os objetos dessa
ciência. Isso é metásbases exalogüenos, ou seja, transposição para
um outro gênero. você está falando de um gênero de coisas e,
repentinamente, sem que você perceba você está falando de um
outro gênero de coisas, por exemplo, como no caso da Geografia
da Idade Média, quando ela fala de caracterı́sticas geográficas e,
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ajustar a cor, gire o botão”, etc. Isso não é uma afirmativa sobre a
realidade, isso é um juı́zo hipotético, condicional.
É muito grave que um indivı́duo que tenha formação univer-
sitária não saiba o que é ciência teorética e ciência prática. Um
diagnóstico médico é teorético: “Você tem tal doença”. A te-
rapêutica, a prescrição médica, é prática: “Se você quiser se curar,
tome o remédio tal”.
Existem ciências práticas, inteiras, que não são nada mais do
que a transcrição de uma ciência teorética para a fórmula hi-
potética, quando se trata de objetos de ação humana. A Geome-
tria não é só uma descrição das propriedades, mas a descrição de
operações possı́veis. Idem para a Matemática: 2 + 2 = 4 é igual a
você dizer que, para obter 4, some 2 + 2 — vira uma regra.
Entretanto, nem toda ciência prática é uma transcrição direta
de uma ciência teorética. Há algumas que saem de outras fontes.
Código de trânsito é um juı́zo prático porque ele não diz como o
trânsito é realmente, mas diz o que você deve fazer para obter uma
direção correta.
As pessoas geralmente pensam que qualquer coisa que se refira
à realidade é prático. O prático não se refere à realidade, mas à sua
ação. Numa coisa onde não há interferência do indivı́duo, não há
prática alguma. O teorético representa o que é, independente da
minha ação. As pessoas pensam que o que é teórico não se refere
à realidade, por exemplo, acham que dizer que o triângulo tem três
lados, é prático.
Vejam o que vocês estudaram na faculdade e digam o que é
teórico ou prático. Artes Dramáticas: se você estudasse todas
matérias teoréticas você saberia a Arte Dramática? E se estudasse
somente as matérias práticas? Em qual dos dois casos você saberia
mais? Qual é o objetivo do curso? A Escola de Artes Dramáticas
ensina, fundamentalmente, o que é alguma coisa, ou ela ensina a
fazer alguma coisa? No caso, aqui, predomina o aspecto prático.
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pelo resto da sua vida. Isto será grave se para você os seus pensa-
mentos são importantes. Se eles forem irrelevantes, então não tem
importância alguma. Por exemplo, o sujeito que vive inteiramente
segundo os hábitos do seu mundo, do seu centro de referência.
Claro que ele também tem opiniões, mas ele jamais age segundo a
opinião dele. Então, a opinião dele é irrelevante. Ou seja, a quase
totalidade da humanidade não decide coisa alguma jamais. Não
precisa decidir. Já decidiram por ele. Assim, ele pode ter qualquer
opinião. Pode achar que a Lógica é teorética ou é prática, ou que
o quadrado é redondo, tanto faz.
As opiniões são importantes quando o indivı́duo lhes dá im-
portância prática. Se a sua opinião não é ouvida por ninguém,
nem mesmo por você, então você pode ter qualquer opinião. A
diferença, na escala dos seres humanos, entre os inferiores e os su-
periores, é esta. O homem inferior é aquele cuja opinião, cujo pen-
samento, é irrelevante para ele mesmo. Embora ele goste da sua
opinião, ele pode até defendê-la, mas ele não pretende realmente
agir segundo aquilo que ele pensa em nenhum momento. Ele pre-
tende, às vezes, usar o pensamento como uma espécie de disfarce
para justificar, a posteriori, aquilo que ele já fez. Ou seja, o pen-
samento não tem utilidade nenhum para essa pessoa, é colocado
nela como se fosse um luxo. Talvez, se colocasse um disquete e
computador nessa pessoa ela funcionasse melhor.
Vejam, por exemplo, que a Terra está passando agora por um
processo de modernização da economia, ou seja, implantar o
capitalismo de modo global. Não pode haver capitalismo sem
que haja condições sociais e culturais que permitam o capita-
lismo. Isto quer dizer que muito antes de você introduzir as
modificações econômicas que produzirão esse capitalismo mo-
derno, você começa a introduzir as modificações culturais e psi-
cológicas para isso. Existem órgãos internacionais que estudam
isso, e que planejam a mudança de mentalidade das nações sub-
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como a pureza de um ritual. Se você errar mil vezes, você tem que
recomeçar mil vezes. Você sabe a importância daquele ponto, sabe
as imensas conseqüências que derivam daquilo. E isso é muito im-
portante. Se nós consideramos que nós só temos o direito de ter
essa exigência caso ocupemos os postos de mando na sociedade,
é porque já nos colocamos como ralé. Se você acha que pensar e
examinar as coisas é para o patrão, para o chefe, aı́ não tem mais
jeito. Prestem atenção que, se você pensar dessa maneira, seria o
mesmo que você cuspir na sua própria cara. Para o cientista so-
cial que faz o planejamento das mudanças sociais que irão ocorrer
no Terceiro Mundo, tudo isso é muito importante. Às vezes, a
Fundação Rockfeller paga um sujeito, durante anos, só para ele
pensar uma coisas dessas, porque isso é muito importante para o
conjunto da coisa. Se o intelectual, o estudante brasileiro, acha
que isso é uma questão que para ele não tem importância, que so-
mente as pessoas que têm poder é que tem que pensar nisso, isso
é uma coisa trágica.
A exigência com um rigor, até uma elegância, da inteligência, é
uma exigência necessária. Se você espera que as pessoas, primeiro
te coloquem numa posição social superior, para daı́ você ser um
aristocrata, você não será aristocrata jamais. Se você pensa assim,
você está confundindo aristocracia com dinheiro no bolso. Se o
conhecimento não vale nada em si mesmo, e vale só pelo talão de
cheques, então ele realmente não vale nada. Que o sujeito do talão
de cheques pense assim, eu entendo, mas que o próprio intelectual
também pense assim... Que o ladrão roube, eu entendo. O que eu
não entendo é que você ofereça o seu bolso.
Vejam que a opinião de um único filósofo vale mais do que mi-
lhares de tiros dados por todos os exércitos, porque ele vão dar
tiros por causa da conseqüência dessa opinião. A partir do mo-
mento onde, na Renascença, a classe cientı́fica desistiu da idéia
grega da Ciência como uma espécie de visão global que levava a
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para se ter uma certeza absoluta de que esse raciocı́nio tem funda-
mento, seria necessário recorrer a um pressuposto de ordem me-
tafı́sica, para saber que o real é homogêneo. Que o real é ho-
mogêneo, pode até ser contestado. É uma premissa metafı́sica
como qualquer outra. A maior parte dos indivı́duos que recorre
a argumentos estatı́sticos, eles não têm idéia de que eles estão fun-
dados numa metafı́sica. Eles acham que aquilo é uma exigência
decorrente do próprio fato. Acontece que os fatos jamais são
estatı́sticos em si mesmos. Todo e qualquer fato que acontece,
só acontece de maneira singular e concreta, e nunca nas mesmas
condições. Você faz estatı́stica a partir do momento que você re-
corta certos aspectos homogêneos de todos os fatos, os agrupa num
conceito único e, em seguida, quantifica. Mas, tudo isso é você
quem fez. O fato não vê assim.
Então, o quê legitima o seu experimento? Por quê o raciocı́nio
estatı́stico indica uma probabilidade real? Qual é o fundamento
da indução? Dizer que o percentual é um dado, isso é um ab-
surdo. Um percentual jamais pode ser um dado, porque ele é
uma medição. O percentual é uma interpretação que você está
fazendo em cima dos dados. Nenhuma medição é natural, é dada.
A medição é sempre uma comparação de fatos que tem a ver com
uma determinada unidade que você escolheu por uma razão ar-
bitrária. Ou seja, já é uma construção da mente.
Por quê essa construção funciona? Que ela funciona, é óbvio,
nós sabemos que funciona. Sabemos por nossa própria ex-
periência. Então, é a nossa própria experiência que serve de fun-
damento da indução. Se você disser que a indução funciona por-
que na maior parte dos casos ela funciona, que tipo de raciocı́nio
é esse? É uma indução. Assim, isso forma um cı́rculo vicioso.
Quando você usa como fundamento da coisa que pretende de-
monstrar a mesma coisa que está para ser demonstrada, isso é,
evidentemente, ilógico. A indução funciona porque indutivamente
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Claro que na maior parte dos casos você vai usar a palavra causa
no sentido geral, costumeira, habitual, e as pessoas entenderão no
sentido de que elas estão habituadas a entender, e que nesse sen-
tido, você parecerá estar falando de uma coisa que você sabe o
que é, porque você acredita que os outros saibam do que você está
falando. Mas, nem você, nem os outros, têm uma idéia real do pro-
cesso causal e, na verdade, estão falando de uma convenção: de-
nominando de causa, tal ou qual coisa. No máximo você alcança
isso aı́.
Jung disse: “Você diz que o movimento da bola de bilhar causa
o movimento da outra, mas o fato é que, no fenômeno você não vê
isso. Você só vê uma bola rolando e, depois, você vê a outra bola
rolando. Você não vê conexão causal. Se você falar do impulso de
uma bola na outra, você já pressupõe a idéia de causa. Mas, o quê
é causa? Um exemplo: um fenômeno que contém dentro de si, um
outro. Isso seria uma maneira de ser causa? Por exemplo, quando
você diz: “Quando chove é porque a água estava nas nuvens, e ela
caiu de lá”. Isto quer dizer que a nuvem foi causa da chuva, nesse
sentido. A mãe que traz dentro de si o seu filho, ela é causa do
filho, nesse sentido. Ou seja, no processo vital dela, está incluı́do
esse filho. Mas, e as bolas de bilhar? Existe o efeito, mas ele é
parte da causa, assim como o filho é parte do organismo da mãe?
Será que causa é isto? Ou seja, dá para entender que, onde houver
o organismo da mãe, ali está o fenômeno do filho. Ela o traz como
um prolongamento de si.
Um efeito é um prolongamento da causa, como se fosse uma
parte da causa, que a partir de um certo momento se destaca
dela. A causa estaria para o efeito, como o continente está para
o conteúdo. Se você pega um jarro cheio de água e o carrega,
você carrega a água necessariamente. Efeito seria um sinônimo
de pertinência. Mas, e as bolas de bilhar? Uma estava dentro da
outra, por acaso? O movimento da segunda bola, estava no movi-
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6 Preleção VI
para eles.
Um outro exemplo sobre o princı́pio da homogeneidade: ele
pressupõe um espaço tridimensional, euclidiano, homogêneo, em
todas as direções. Nós sabemos que o espaço tridimensional eucli-
diano é um espaço ideal, não de fato, real. É um espaço metafı́sico,
não um espaço fı́sico. O espaço fı́sico tem outras caracterı́sticas
que a Fı́sica moderna nem apontou. Se o princı́pio da Geome-
tria euclidiana não vale para o espaço real no qual nós vivemos,
nas condições desse Cosmos aqui, significa que o Cosmos não é
homogêneo em todas as direções, nem em todos os tempos. Por
exemplo, por quê você supõe que o homem de Neanderthal, ou
os gregos, os romanos, enxergavam da mesma maneira que nós?
Quando nós dizemos que o céu é azul, será que o que eles cha-
mavam de azul é exatamente igual ao que hoje nós chamamos de
azul? Será que não houve modificações profundas na percepção
humana ao longo da História? Existe uma História cósmica, o qual
existe um tempo em que a História se modifica. Mas, se modifica,
de que vale a nossa indução ao longo dos anos? Ela vale quando
você tem a idéia do campo delimitado ao qual aquilo se aplica.
Qual é o princı́pio de delimitação do campo em, por exemplo, pes-
quisa médica? Nunca perguntaram isto. Tanto não perguntaram
que partem de pesquisas pretensamente universais sobre o fumo, o
câncer, e assim por diante. Mas isso são entidades abstratas. É pre-
ciso que haja um princı́pio de delimitação e especificação de cada
campo. Isto mal começou. quando se fala dos erros da profissão
médica, o erro que o povo é o erro da prática mesma. Mas, esses
erros seriam diminuı́dos em oitenta por cento se não houvessem
os erros no campo biológico.
Entretanto, sempre há um resı́duo de erros práticos, por exem-
plo, incompetência, burrice, desonestidade, e uma série de outros
fatores aleatórios. No entanto, eu acredito, sinceramente, que a
quase totalidade da profissão médica é constituı́da de gente ho-
170
6 Preleção VI
nesta. De gente que, até quer acertar, mas não pode acertar. Na
verdade, o que me espanta é que hajam tão poucos erros, porque
nessas condições era para ter muito mais erros.
Por outro lado, os erros da profissão médica abrem os flancos
a ataques de movimentos alternativos, mı́sticos, que dizem que
a ciência médica está baseada em princı́pios errados. Como os
médicos vêem que existe o problema dos erros médicos, se sentem
culpados, e cedem a esse tipo de argumentação. Quando não é
para ceder. A Ciência não está errada. Nós apenas não estamos
fazendo Ciência. Estamos fazendo outra coisa. Tem que corrigir,
mas dentro da mesma linha de fidelidade ao ideal puro de Ciência.
Qualquer empreendimento humano, se ele não é perpetuamente
corrigido por um retorno ao intuito originário, você se esquece do
que está fazendo ali, acaba caindo na armadilha, e vai parar longe
do proposto original. Se você não sabe o que está fazendo, você
vai sendo gradativamente empurrado, sem perceber, para outro ob-
jetivo.
A Ciência não está errada. A Ciência é um ato humano, uma
vontade humana. Ninguém é cientista forçado, obrigado pelas leis
da natureza. Foi uma série de decisões humanas, sustentadas por
um intuito humano. O que norteia um impulso humano? A noção
de um objetivo. Se você esqueceu o objetivo, e continua achando
que pelo piloto automático vai acabar parando no mesmo ligar,
isso é um absurdo. O sujeito não pode esquecer qual é o objetivo
da investigação: ele deve estar querendo procurar um nexo evi-
dente, fundamentado entre tais ou quais fenômenos. Ele precisa
conhecer esses fenômenos de um modo evidente, e estabelecer en-
tre eles um nexo de evidência, porém que esse nexo seja logica-
mente evidente com o resultado. Fazer Ciência é isto. Não é outra
coisa.
Para cada operação cientı́fica em particular, trata-se de você
lembrar o que é Ciência. Senão, você aperta o botão do piloto
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7 Preleção VII
ver com um outro fato, mas não têm ambos que ver com isso, es-
ses dois fatos são concomitantes? Um é causa do outro? Um é
aspecto, uma parte, do outro?
Na clı́nica médica isso acontece o tempo todo. Por exemplo, um
sinal qualquer que você perceba no corpo de um paciente, isso é
uma evidência, é um dado evidente. Como é que você vai conectar
isto com uma determinada patologia? Você vai dizer que isto é um
sinal daquilo. Mas, é um sinal, em que sentido? Foi a doença
quem causou aquilo, ou aquilo é parte da doença? Na medida
em que você vai interpretando esses sinais, você está enlaçando
os vários conhecimentos à luz de categorias de causa, identidade,
parte e todo, posterior e anterior, etc. Na prática, é exatamente isso
o que você faz.
Entretanto, esses nexos que você descobre entre os fatos, que
fundamento teria? O quê é isso? Então, vai haver um fundamento
teórico dessas fundamentações. Isso é o que se chama de teoria.
Isto quer dizer que, sem a teoria que fundamente os fundamentos,
as coisas não têm nexo algum.
Por quê as pessoas acham que a medicina mágica dos primiti-
vos está errada? Porque ela conexiona as coisas de maneira errada.
Por exemplo, se você fica doente, o sacerdote diz para você pegar
o seu animal totêmico, como uma simpatia, para que a doença seja
curada. O sacerdote está estabelecendo um nexo entre uma coisa
e outra. Daı́, chega o cientista e diz que esse nexo não existe. É
puramente imaginário. O processo da simpatia é simbólico. No
próprio simbolismo você não fundamenta tudo igual. É diferente
você propor um simples nexo analógico e você ver uma ligação
real entre aqueles entes. Por exemplo, essas cadeias de analogias
que se fazem com o simbolismo. Em que medida o sol, o leão, e o
girassol — que estão conectados simbolicamente — estão conec-
tados realmente? Em que medida você, mexendo num deles, você
afeta o outro?
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7 Preleção VII
Porém, não dá para mapear isso de uma maneira tão simples,
porque quando você chega a um nexo, qualquer tipo de ligação
que você estabeleça entre fatos é um nexo. Entretanto, a partir
do momento que você estabeleceu um nexo, por exemplo, “A ic-
terı́cia é um sinal da hepatite”, mas não indica necessariamente a
hepatite, você pergunta: “Por quê?” Qual é a diferença que você
estabelece entre esse nexo que existe, entre icterı́cia e hepatite, e
outro tipo de nexo que indicasse um efeito necessário da hepatite?
Qual é o nexo que você estabelece entre o traçado do eletrocar-
diograma e o estado do coração do paciente? O primeiro nexo é
que você supõe que o traçado acompanha a subida e a descida de
uma tensão elétrica, o que já não é muito exato. Daı́, as variações
da tensão elétrica refletiriam alterações no movimento cardı́aco,
e essas alterações refletiriam determinadas alterações sentidas no
próprio órgão. É toda uma cadeia de nexos. É um sinal muito in-
direto. E cada um desses nexos se fundamenta em alguma coisa
completamente diferente. Para um simples sinal, você precisa de
um conjunto de nexos baseados em fundamentações totalmente
diferentes.
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7 Preleção VII
O motivo pelo qual você crê que o traçado num papel reflete
uma variação de potencial elétrico, e não uma outra coisa, é um.
Só isto já é um conjunto imenso de nexos. Quem te diz que
uma forma gráfica pode ser análoga ao ritmo do tempo? Durante
quanto tempo aquele coração bateu? Como é a medida, e como
fazer com que aquela medida seja precisa, e qual é o princı́pio da
analogia entre estas duas coisas? Na Música, por exemplo, existe
um nexo entre o traçado e o tempo, porque você determinou que
existe. Você convencionou. Mas, não é o que acontece com o
eletrocardiograma. Aquele traçado expressa um transcurso que já
aconteceu. Independe de você.
Por aı́ você vê que há uma série de nexos que depende de uma
fundamentação que vai, em última análise, se apoiar na teoria da
percepção humana. Tudo isto está pressuposto aı́. E se uma destas
teorias cair, cai o eletrocardiograma junto. É como a ponte Rio-
Niterói, onde a fundamentação, a base, está debaixo dágua, e você
passa por ela, porque você acredita que a base está lá, embora você
não saiba se isto é verdade.
Imaginem se vocês vão investigar isso na esfera da Psicanálise.
Um ato que você cometeu ao montar uma frase é interpretado
como um sinal de que você cometeu uma errônea associação de
idéias, o qual é interpretado como uma confusão entre duas esferas
desconectadas, o qual é interpretado como função de existência de
focos de preocupação estranhas ao assunto, a qual é interpretada
como um sinal de uma tensão remanescente de um outro aconteci-
mento, que não tem nada a ver com o assunto, o qual é interpretado
como um sinal de um conflito que aconteceu com o pai e a mãe,
quando você tinha quatro anos de idade. Como isso acontece?
Claro que tudo isto pode estar muito certo, mas não é assim, sem
mais nem menos, como se isso fosse uma coisa evidente.
A Ciência é um bloco totalmente sistemático, onde tudo está
apoiado em tudo. Não há espaços vazios. Por exemplo, no caso
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7 Preleção VII
todos os casos.
O que Husserl diz aqui, que caracteriza a Ciência não é, exata-
mente, os vários saberes que estão ligados, mas que eles estão li-
gados através de nexos fundamentados que, por sua vez, se apóiam
em teorias, ou seja, em sistemas explicativos gerais. Quando você
distingue um nexo causal, de uma simples concomitância, como
no caso da icterı́cia, que seria causada pela hepatite, então você
está discutindo o que é um efeito direto de um determinado estado,
o que é um efeito indireto, e o que é uma fusão de duas correntes
causais.
Qual é a diferença exata entre um nexo causal e uma conco-
mitância? Hume já não dizia que não existe nexo causal nenhum,
que é tudo concomitante? Se é possı́vel tratar desta discussão
sem estar demente, significa que a noção de causa não é assim
tão óbvia. Ela parece óbvia porque nós estamos acostumados a
usá-la no dia-a-dia, e nós confiamos na autoridade da sociedade,
da camada letrada, que deve saber o que está falando. Da mesma
maneira que a criança que acredita que o colo da mãe é o lugar
mais seguro do mundo, e ela não sabe que a mãe dela é esqui-
zofrênica, e não sabe que ela está tramando jogá-la do alto de um
edifı́cio naquele momento! É a sensação de falsa segurança.
Assim, sempre que nós nos apoiamos nesse conceito costu-
meiro, nós estamos, em última análise, nos apoiando no caráter
sistêmico da Ciência. A Ciência é um conjunto indubitável e tudo
deve, em última análise, fazer sentido. Na maior parte dos ca-
sos, são tiros no escuro. Todo mundo sabe que a Ciência é um
conhecimento organizado. Entretanto, a enciclopédia não é um
conhecimento organizado? Se você organiza, por exemplo, pela
ordem alfabética, ele não está organizado? Se você organiza um
conhecimento pela sua ordem didática, do mais fácil para o mais
difı́cil, ele não está organizado? Se você organiza este conheci-
mento pela ordem de utilidade, ou seja, os que são de utilização
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7 Preleção VII
mais freqüentes, também não está organizado? Só que nada disso
é Ciência.
A Ciência não é um saber organizado, mas é um conhecimento
organizado em função da sua fundamentação teórica. De qualquer
outra maneira não é Ciência. A história da Fı́sica não é ciência
fı́sica, é evidente. A sucessão das descobertas fı́sicas não está
organizada exatamente segundo a ordem da sua fundamentação,
porque você pode ter descoberto uma coisa, e ter descoberto a sua
fundamentação depois. A Ciência é uma organização hierárquica
onde a explicação do fundamento teorético ocupa a base, e as ou-
tras conexões vão se apoiando nesta base, até que você chega a po-
der estabelecer nexos entre os dados considerados isoladamente.
Prestem bem atenção que no conceito alquı́mico também nada
está separado. Uma ciência mágica que supusesse um hiato no
real, é uma autocontradição. Ao contrário, a magia pressupõe até
um número de nexos maior, mais estreito, do que a Ciência. A
única crı́tica que nós podemos fazer ao mundo mágico é que ele
é um sistema de nexos tão bem organizados, que é utópico. Não
existe uma explicação geral que dê tanto fundamento a tantas coi-
sas assim. É como se você dissesse que a magia é racional demais.
Nela, tudo está excessivamente explicado.
No fato de que a forma sistemática nos pareça a mais pura
encarnação da idéia do saber não se exterioriza meramente um
traço estético da nossa natureza.
Isto aqui é fundamental. O homem tem, por um lado, uma
espécie de ordem, de totalidade e harmonia. Nesse sentido, nós
poderı́amos dizer que a razão é como uma expressão do senso de
integridade do próprio organismo. Isso existe de fato.
Piaget estuda o surgimento das operações racionais do homem
como atos derivados de uma espécie de impulso de integridade e
de autoconservação do organismo psicofı́sico humano. Isto é o que
nós poderı́amos chamar de fenômeno estético. O estético é aquilo
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Condições teóricas
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Condições práticas
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8 Preleção VIII
da coisa vão fazer uma diferença brutal, mas que não mudam a
essência do objeto. Por exemplo, um carro com pneu careca, e ou-
tro com pneu novo, não faz uma diferença enorme? Mas, em quê
difere cientificamente um carro do outro? Nada, há apenas um
diferença prática, mas, não teórica, de natureza (por exemplo, um
triângulo é diferente de um elefante). A diferença cientı́fica que
interessa é justamente a diferença teórica. Na prática, às vezes,
é até melhor você não saber a teoria da coisa. Aliás, na prática,
tudo é mais fácil que na teoria, porque na prática você conta com
a acidentalidade, com a sorte. As coisas podem se resolver sem
que você tenha a menor idéia. Entretanto, se você quer a solução
teórica perfeita, nesse caso, demora um pouco mais. Se você
não consegue resolver o seu problema em particular, como você
quer resolvê-lo em geral? A importância prática, e a importância
teórica, são exatamente inversas. Um problema tem importância
teórica para você quando ele não tem importância prática urgente,
porque senão não dá tempo de saber a teoria. Nesse sentido fı́sico,
filosofar é não-viver, e viver é não-filosofar. Se eu estou padecendo
do problema pessoalmente, eu sou o último que tem interesse em
teorizar esse problema. E, se eu vou teorizar, é porque aquele pro-
blema não é um problema meu, urgente. É um problema que eu
sinto, por uma identificação, ou às vezes por uma compaixão.
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9 Preleção IX
14 de janeiro de 1993
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9 Preleção IX
importante do que ele parecia ser na época. Às vezes, mostra que
o importante não era nada daquilo que você estava imaginando
naquele momento.
Discute-se hoje o parlamentarismo, e o pessoal se esquece que
ele já existiu, e também foi tentado com todas essas promessas
de resolver os problemas do paı́s, a crise entre o legislativo e o
executivo, etc. A História mostra que aquilo ficou totalmente sem
efeito.
Do mesmo modo, a famosa polı́tica neo-liberal do Collor, que
a dois anos atrás foi celebrada como se fosse a grande virada
histórica do Brasil, e hoje nós vemos que não deu em nada. Do
mesmo modo que eu lhes asseguro, a retirada do Collor, também
será um nada. Historicamente, nada influirá.
Nessa mesma prova da UNICAMP, há uma pergunta relativa à
polı́tica econômica do perı́odo da ditadura, mencionando que ela
era conduzida pelo ministro Delfim Neto, e formulada de forma
tal que, o aluno terá que se posicionar contra, de alguma maneira.
Eu era, evidentemente, contra essa polı́tica econômica, na época;
continuo sendo contra hoje, mas eu acho que você obrigar o aluno
a se posicionar contra um ato de um indivı́duo que é polı́tico, em
pleno exercı́cio do seu mandato, é uma interferência nos aconteci-
mentos presentes. Pelo simples fato do sujeito estar vivo, significa
que a história dele ainda não acabou, e que o que você fala dele
hoje, influenciará os acontecimentos. Mesmo nas épocas de maior
luta ideológica, jamais ocorreu a ninguém, usar o vestibular para
“pichar” um sujeito em particular, vivo e atuante. Um paı́s onde
acontece isso, é um paı́s onde vale tudo. O pior é que num vestibu-
lar, o aluno não a mı́nima condição de discutir a pergunta. Ele está
quase que implorando para ser aprovado. Ele está totalmente inde-
feso quanto a isso. Ele tem que aceitar a jogada nos termos em que
lhe foram propostos, senão ele não passa no vestibular. Normal-
mente, qualquer propagandista, de qualquer ideologia, teria pudor
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9 Preleção IX
de fazer uma coisa dessas. No Brasil as pessoas não têm mais esse
pudor. E são os mesmos que falam da Ética. Eu acho que a própria
preocupação com a Ética mostra um sintoma de uma mente cul-
pada. O Brasil está carregando culpas que ele desconhece, e que
todos estão precisando de um tipo de expiação. E para expiação,
tanto serve o Presidente do paı́s, quanto o Guilherme de Pádua.
Num congresso de Psicologia, foi apresentado um perfil psi-
cológico, difamatório, do Collor. Isto é uma atitude criminosa.
Você não pode expor um perfil psicológico de um sujeito vivo,
em público, sem a autorização dele. Não existe perfil psicológico
que possa qualificar moralmente um sujeito. Isso é contra todos
os princı́pios de qualquer ciência. E não importa que seja contra
o Collor, o Guilherme de Pádua, etc., todos eles não valem nada
mesmo, mas mesmo que fosse com o satanás, o drácula, o Hi-
tler, tanto faz, está errado. Estas pessoas podem se sujar porque já
estão sujas. Entretanto, indivı́duos que pretendem passar por auto-
ridades cientı́ficas, por guias da opinião pública, essas têm que ter
um pouco mais de compostura, e se recusar a fazer, e falar, certas
coisas.
Esses indı́cios de perturbação da inteligência, me parecem
muito graves, do que os acontecimentos de ordem fı́sica, por
exemplo, aproveitar o assassinato da Daniela Perez para retomar
a tese sobre a pena de morte, num momento desses... Se há um
momento em que não se deve discutir a pena de morte é justa-
mente agora , porque mesmo que a pena de morte fosse aprovada,
o Guilherme de Pádua não poderia ser enquadrado nela porque a
lei seria posterior ao julgamento dele. Isto é oportunismo estúpido.
Assim como no tempo do Collor, uma coisa esquisita que acon-
teceu, que foi o pessoal de esquerda fazer uma aliança com o pes-
soal mais direitista do paı́s, em torno da idéia do moralismo, hoje,
está acontecendo algo parecido entre o pessoal do teatro e o Ama-
ral Netto: estão todos pregando a pena de morte.
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9 Preleção IX
Tudo isso são sintomas, os quais nós temos que observar, apren-
der a racionar fora do esquema. Para fazer isso, é necessário
que você adquira um mundo próprio, ou seja, você ter uma visão
própria do que você não está enxergando, e as imagens que lhe
são projetadas pelos outros, não te influenciem. Se você não vê as
coisas com os seus próprios olhos, aquilo que está sendo oferecido
não existe para você. Criar esse mundo próprio, para cada um, é o
objetivo da educação. Educação vem do latim ex-ducere, ou seja,
levar para fora. Para fora do ovo, que simboliza toda a estrutura
de valores, hábitos, proibições, leis, de gostos , que você herda do
seu ambiente familiar e que funciona como uma casca protetora
até que você esteja apto a andar com seus próprios pés. Uma das
finalidades da educação é quebrar a casca do ovo para que você
possa sair andando. Esse é um dos sentidos que pode ser interpre-
tado o duplo nascimento: o homem duas vezes nascido — ...(?)
Mukta.
No simbolismo hindu é associado a uma ave. a ave nasce duas
vezes: primeiro quando bota o ovo, e segundo, quando ela quebra
a casca do ovo. Este segundo nascimento é feito através da própria
educação, que funciona como uma espécie de chocadeira, que vai
aquecê-lo, para que você cresça e deseje quebrar a casca. Quem
quebra a casca é a própria ave. Se a educação não intervém no
tempo devido, o ovo chocado apodrece.
O fenômeno atual, que se chama adolescência ...(?) é um si-
nal de um fracasso na educação, na medida em que ela se torna
apenas um meio de aquisição de ofı́cios, ela não serve para li-
bertar o indivı́duo do seu meio familiar, do seu meio de origem,
ao contrário, ele o prende ainda mais a ele. O indivı́duo acredita
ingenuamente que a simples aquisição de um ofı́cio, ou de um em-
prego, vai libertá-lo do meio familiar, quando evidentemente isso
seria o efeito sem a causa. O que liberta você do meio familiar é
quando você consegue um mundo interior maior do que aquele do
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9 Preleção IX
que ele está observando alguma coisa. Acontece que ele não está,
porque dos fatos envolvidos, ele está apenas selecionando certos
aspectos que correspondem ao modelo padronizado da pesquisa,
e desde que haja uma aparência de uniformidade da hipótese, dos
materiais, dos métodos, etc., e do resultado, ele acredita que aquilo
está certo. Mais ainda, hoje em dia, se chama de pesquisa médica
o seguinte: eu dei um remédio para quinze pessoas e elas ficaram
boas, logo... Não há nisso um trabalho de inteligência. É a simples
repetição de uma rotina.
É claro que o mundo cientı́fico, em geral, está tão bem organi-
zado até um certo ponto, que a pesquisa rotineira acabava funcio-
nando, mas quando você, pela pesquisa rotineira, acaba ocupando
novas áreas, aı́ você começa a fazer erros um atrás do outro. A
grande parte dos fracassos da profissão médica, que o pessoal do
movimento alternativo atribui ao fato da Medicina cientı́fica ra-
cionalizar as coisas, vem justamente pelo fato de que ela não é
cientı́fica absolutamente, e ela é completamente racional. Se fosse
cientı́fica mesmo, funcionaria. Não existe mais diferença entre a
pesquisa cientı́fica e a observação empı́rica mais rudimentar. Uma
hipótese cientı́fica tem que ser fundamentada logicamente mesmo.
Os sujeitos fazem uma hipótese qualquer, puramente empı́rica,
por exemplo, eu faço a hipótese de que martelada na cabeça cura
bicho-de-pé. Por quê? Ah!, porque sim! Eu não vou discutir teo-
ria, eu não tenho tempo, porque eu sou um homem de Ciência! Eu
dou martelada na cabeça de quinze pessoas; oito curaram, logo,
está provado cientificamente. Aı́ você faz o cálculo estatı́stico da
probabilidade daquilo acontecer. Só que a estatı́stica não significa
nada, nesse caso, porque nem a hipótese significa nada. A precisão
estatı́stica que se usa entra no fim. A estatı́stica serve para você
avaliar a significância de um resultado em face de uma média já
conhecida anteriormente. Porém, isso não vai introduzir diferença
nenhuma entre um enfoque cientı́fico e uma simples observação
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fala um frase que coincide de ser verdadeira, mas que você não tem
a evidência, ou a prova daquilo. Ou seja, a Ciência se caracteriza,
não só por ser um saber verdadeiro, que se expressa num juı́zo
justo, mas por ser um saber que possui o fundamento dessa justeza
num evidência. Uma frase que é verdadeira, mas da qual você não
possua a evidência, se é verdadeira por acaso, ou por sorte, não é
Ciência de maneira alguma.
certeza que é preciso distinguir da convicção cega, da opinião
vaga, por resoluta que seja.
E por válida que seja. Se temos uma opinião que é verdadeira,
mas cuja prova, cuja evidência, não possuı́mos, isto está fora do
âmbito da Ciência.
A linguagem corrente, porém, não se atém a esse conceito rigo-
roso do saber. Chamamos também ato de saber, por exemplo, o
juı́zo que vem enlaçado com a clara recordação de haver pronun-
ciado anteriormente um juı́zo de idêntico conteúdo, acompanhado
de evidência (“Sei que o teorema de Pitágoras é verdadeiro, mas
esqueci a demonstração”).
Normalmente, não precisamos ter a evidência atual. Se houve
já, anteriormente, um juı́zo de idêntico conteúdo, acompanhado
de evidência, e eu o repito, isto também é um saber que pode ser
aceito como cientı́fico.
Deste modo tomamos o conceito de saber num sentido mais
amplo.
A nota mais perfeita da justeza é a evidência, que é para nós
como que uma consciência imediata da verdade mesma. Mas
na imensa maioria dos casos carecemos deste conhecimento ab-
soluto, e em seu lugar serve-nos a evidência da probabilidade.
A evidência da probabilidade de uma situação A não funda a
evidência de sua verdade (mas funda a evidência da verdade da
probabilidade); mas funda aquelas valorações comparativas e evi-
dentes, pelas quais logramos distinguir as hipóteses e opiniões
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9 Preleção IX
1. Saber
2. Verdade
5. Pode ser:
a) amplo
b) estrito
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10 Preleção X
o sujeito está inocente, e vê que não tem chance de provar a sua
inocência, daı́ ele compra o juiz, que então o absolve, só que pelos
motivos errados. Também, se você não tem provas suficientes para
incriminar o culpado, você poderia comprar o juiz, para que ele o
condene. É possı́vel que tudo isso aconteça.
Nas faculdades de Direito, hábitos de retórica são tão arraigados
nos estudantes que, depois de formados, é difı́cil que um advogado
pense de forma diferente. Não adianta você dar esses conhecimen-
tos para o delegado, se ele não tem o arcabouço teórico que mostre
a ele a necessidade absoluta desses fundamentos. Um delegado é
uma autoridade terminal, não há ninguém por trás dele para in-
vestigar o que ele está fazendo. Mesmo quando vai para a justiça,
o juiz não vai levar integralmente a sério o inquérito, mas vai se
basear nele. Ele já vai receber a coisa toda já dirigida num certo
sentido, mesmo que ele tenha que revogar tudo aquilo. A linha
de investigação de um juiz já está pré-determinada. Pior ainda,
é que pela lei brasileira, o juiz não pode mandar investigar nada,
a não ser dentro daquilo que as partes em conflito tenham colo-
cado. O juiz não pode levantar um terceiro ponto-de-vista, mesmo
que ele saiba que exista. Quem propõe, quem tem a iniciativa na
investigação é, de fato, o delegado. Só que o resultado do inquérito
não tem validade, nem para absolver, nem para condenar alguém.
No Brasil, indiciado e inquérito, já querem dizer a mesma coisa
que condenado. Isto graças a uma nuança criada pela nossa im-
prensa. Se o sujeito for processado, então nem se fala!
Ora, o sujeito ter mil processos, e estar absolvidos em todos,
significa que ele está legalmente inocente. O que importa é o pro-
nunciamento oficial, porque o que não é oficial tem validade sub-
jetiva para quem diz. Assim, a sociedade como um todo, só pode
admitir aquilo que a própria sociedade verificou através do órgãos
constituı́dos exatamente para isso. Se a absolvição de nada vale,
de que vale a condenação? Essa mentalidade está profundamente
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mas diz que é uma falsa regra, e ele irá cumprir uma outra re-
gra, que ele mesmo inventou. Assim, todo o sistema judiciário
vira uma superestrutura ideológica, uma espécie de corrente que
serve para bater na cabeça do adversário. Não é, de fato, uma
regra para ser cumprida. É uma espécie de inversão de todos
os princı́pios de direito. Aqui no Brasil, você vai a uma loja de
eletrodomésticos, você pede um crédito, e eles consideram você
um estelionatário, até prova em contrário. Essa idéia de que a
absolvição nada prova, mas que a condenação prova, é a inversão
total dos princı́pios jurı́dicos. Mesmo a condenação nada prova.
Punir o culpado não é tão importante. Fazer a justiça não é punir
o culpado. Só se deve punir o culpado quando não houver outro
jeito, outra solução. Os juristas romanos já diziam,”...(frase em la-
tim)...”, perfeita justiça, e a perfeita injustiça, ou seja, é para fazer
justiça quando não há outro jeito. Se der para resolver na base da
negociação, será melhor. Quem tem muita experiência disso são
os juizes de varas de famı́lia, que sentenciam alguma coisa, muito
a contragosto. Eles não se interessam em punir. Eles se interes-
sam em chegar a um acordo. Mesmo no caso de casos hediondos.
Isto porque se começa uma seqüência de condenações por crimes
hediondos, ...(?)
Uma vez, Bertrand Russerl escreveu um artigo sobre a China,
dizendo que o povo chinês havia dado um exemplo de amor pela
educação quando os professores, que não recebiam o salário a um
ano, entraram em greve e, em solidariedade, todo o povo da cidade
também havia entrado em greve, e isto foi considerado um sinal de
muito amor pela educação.
Ortega y Gasset escreveu uma carta dizendo: se ele acha
que para nós louvarmos o nosso amor pela educação, nós pre-
cisarı́amos começar por não pagar os professores e, em seguida,
fazer greve em favor deles.(?)
Qual é o raciocı́nio que está implı́cito aı́? A resposta que é dada
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do sentido de autoconservação.
A razão tende a unificar o nosso conhecimento, dar uma forma
unitária, sistemática e perseverante, no mesmo sentido em que o
organismo procura conservar a integridade da sua forma. Quando
o animal come alguma coisa, e rejeita partes, e assimila outras
partes, ele assimila o que é semelhante. Assimilar é tornar similar.
Uma parte do que ele comeu se transforma nele mesmo: o coelho
come alface, e o alface vira coelho (Jean Piaget). E o animal rejeita
o que não é assimilável. Ao assimilar, você está reiterando a forma
do seu organismo. O organismo cresce, na mesma medida em que
ele reitera essa integridade, senão ele morre.
A razão seria uma extrapolação, um abstrato mental, psi-
cológico, desse senso de autoconservação, e por isso mesmo,
as construções racionais conservam a sua integridade, e crescem
ao mesmo tempo. Um sistema dedutivo, axiomático, ele pode
se estender indefinidamente sem perder a unidade de sua forma.
Pergunta-se: a Ciência tende a uma forma sistemática só porque
o homem é assim, ou por algum outro motivo? Husserl responde
que não. Não é só por uma tendência humana à unidade que a
Ciência é unitária, mas porque o real, o objeto do conhecimento
também tem uma integridade. Mesmo que o homem não tivesse
essa tendência, ele teria que se adaptar, de alguma maneira.
Isto é uma posição claramente anti-kantiana. O mundo do co-
nhecimento é de unidades objetivamente distintas, que formam um
todo. Elas formam em si, ainda que você não conheça esse todo.
O sistema não é invenção nossa, mas reside nas coisas; o reino
da verdade não é um caos desordenado; nele rege uma unidade de
leis; e por isto a investigação e a exposição das verdades deve ser
sistemática, deve refletir suas conexões sistemáticas e utilizá-las,
ao mesmo tempo, como escala do progresso, para poder penetrar
em regiões cada vez mais altas partindo do saber já dado ou obtido.
A própria tendência humana à unidade é, de certo modo,
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uma conclusão alguma, você diz que ele é, flagrantemente, burro.
Isto quer dizer que está na raiz de qualquer aprendizado, essa
generalização.
Em terceiro lugar, poderia crer-se possı́vel o pensamento de que
as formas de fundamentação dependem das esferas do conheci-
mento. Mas é patente que isto também não ocorre.
Não importando qual é a esfera do conhecimento a que se
refira, a fundamentação tem essa forma sempre. Se há uma
fundamentação, então existe sempre um recurso explı́cito, ou
implı́cito, a uma lei geral, tomada como certa, ou como evidência.
Não há nenhuma ciência em que não se apliquem leis a casos
singulares,
E não é concebı́vel um outro tipo de ciência. Hoje em dia, há
muita gente falando em ciências esotéricas, tradicionais, etc. A
diferença entre ela e as ciências ditas modernas não é essa; por
exemplo, para Astrologia, Alquimia, o princı́pio é exatamente o
mesmo. Isto quer dizer, sumariamente, que nenhum conhecimento
é irracional. Se eu falo que há um conhecimento ...(?) e inegável, é
porque ele não é irracional, mas ele é a-racional, é extra-racional.
Os princı́pios são, por assim dizer, pré- racionais. Seria irracional
se fosse fundamentar num mesmo esquema que não obedece a essa
forma do todo e parte, ou que a desmente. Isso, de fato, jamais
aconteceu.
isto é, em que não apareçam com freqüência raciocı́nios da
forma que nos serviu de exemplo. Mais ainda: todas as demais
espécies de raciocı́nios se prestam a ser generalizadas de tal modo,
a ser concebidas de maneira tão “pura”, que resultem livres de
toda relação essencial com uma esfera de conhecimentos concre-
tamente delimitada.
Ou seja, não há nenhuma espécie de raciocı́nio que se aplique
somente a um determinado setor da realidade. Você sempre vai
cair nas mesmas. É muito interessante você fazer a averiguação
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até ser falsas, mas que para você conseguir aquele resultado, você
vai precisar engolir desse ou daquele jeito. Se você decidir parar
e examinar aquela coisa, pode ser que você destrua aquela regra.
Isto tornaria a investigação da verdade uma força autônoma e, de
certo modo, hostil à ordem social. Por isso mesmo que Deus, sa-
bendo disso, colocou o amor à investigação da verdade em um
número muito pequeno de cérebros. Senão, seria um problema.
a maior parte das pessoas, de fato, têm que aceitar um monte de
mentiras, e continuar agindo como se aquilo fosse verdade, até
segunda ordem.
A mentira também é psicologicamente e socialmente ne-
cessária, até certo ponto. É o caso da verdade traumática. Vejam
o exemplo do ovo: o ovo é uma casca do indivı́duo. As mentiras
são uma casca para o indivı́duo. Enquanto a criança alcança o seu
desenvolvimento biológico natural, é necessário que ela seja pro-
tegida de verdades traumáticas. A verdade não é fisiologicamente
conveniente àquele indivı́duo, até um certo momento. Então, ele
tem que ser protegido daquilo, mas só até certo momento. Se essa
proteção continua, após o ser humano ter atingido o seu desenvol-
vimento biológico natural, ela se torna lesiva. Viver num mundo
de fantasias é muito bom para quem não tem que tomar decisão
própria. A criança pensa, com a única finalidade de alcançar uma
satisfação, para se manter num estado homeostásico, no qual ela
possa crescer e se desenvolver com critérios.
Para a criança só interessa o pensamento que faz bem a ela, e
não para o meio em geral. Por quê? Porque as decisões dela não
afetam ninguém. Mas, e o pai de famı́lia que tomar uma decisão,
que não reflete o real, mas que é apenas boa para ele? Não é me-
lhor você pensar que você é rico, do que você pensar que é pobre?
Sim, você se sente melhor. Porém, é bom continuar passando che-
que indevidamente com base no pensamento que você queria ser
rico? É claro que não!
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várias.
O que Husserl está dizendo é que isso só é possı́vel porque os
esquemas de provas são sempre idênticos, no tempo, senão, não
seria possı́vel.
Se a forma regular torna possı́vel a existência das ciências, a
independência da forma com relação às distintas esferas do saber
torna possı́vel, de outro lado, uma teoria da ciência. Se não fosse
esta independência, haveria uma série de lógicas coordenadas en-
tre si, mas não haveria uma lógica geral.
O esquema que se usa no diagnóstico diferencial, é o mesmo
que se usa pelo delegado de polı́cia para fazer uma acareação. É
possı́vel uma lógica geral, porque esses esquemas são sempre os
mesmos.
9. Procedimentos metódicos das ciências: fundamentações e
dispositivos auxiliares para as fundamentações.
As fundamentações não esgotam o conceito de procedimento
metódico, embora tenham, uma significação central.
Todos os métodos cientı́ficos, que não tenham por si mes-
mos o caráter de verdadeiras fundamentações, ou são abreviações
e substitutivos das fundamentações, destinados a economizar
o pensamento, ou representam dispositivos auxiliares, que ser-
vem para preparar, facilitar, assegurar ou possibilitar as futuras
fundamentações.
Existem métodos cientı́ficos que não têm, por si mesmos,
caráter de fundamentação. Eles não servem de prova, mas servem,
ou para economizar raciocı́nio, para abreviar, como por exem-
plo, a estatı́stica, ou então, como dispositivo auxiliar que serve
para preparar, para facilitar, assegurar, tornar possı́vel as futu-
ras fundamentações. Por exemplo, classificações que você faz,
com vistas a tornar abarcável o terreno que você vai trabalhar. A
classificação pode ser até fictı́cia, que depois você conserta. Exis-
tem uma série de procedimentos que fazem parte do método, mas
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Eric Weil disse em um dos seus livros que não é possı́vel você
apresentar os pensamentos de um filósofo com maior brevidade do
que ele mesmo apresentou.
Se fosse possı́vel isso, o próprio filósofo o teria feito. Você só
pode acrescentar alguma coisa a mais. Se você lê somente um
livro de Kant, e não a sua obra completa, você não vai ter nunca
uma idéia completa de seu pensamento.
9. Procedimentos metódicos das ciências: fundamentações e
dispositivos auxiliares para as fundamentações.
As fundamentações não esgotam o conceito de procedimento
metódico, embora tenham uma significação central.
Todos os métodos cientı́ficos, que não tenham por si mes-
mos o caráter de verdadeiras fundamentações, ou são abreviações
e substitutivos das fundamentações, destinados a encontrar o
pensamento, ou representam dispositivos auxiliares, que ser-
vem para preparar, facilitar, assegurar ou possibilitar as futuras
fundamentações.
Isto aqui é uma coisa que vocês podiam tomar como um
exercı́cio. Em qualquer discussão sobre método cientı́fico, ao
invés de se falar sobre as fundamentações (porque você deveria
acreditar que tal ou qual afirmação cientı́fica é verdadeira, quais
são os princı́pios e critérios de credibilidade da Ciência), ou se
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est? Sempre que você faz esta pergunta, você chega, às vezes, a
descobertas assombrosas, porque as coisas eram muito diferen-
tes do que vocês imaginaram. Entretanto, se você já parte de
uma determinada definição, determinados conceitos, convencio-
nais, habituais, costumeiros, e “bola” o seu método dali para di-
ante, o seu método também só terá valor consensual, ou hipotético.
Isso aı́ faz com que você possa chegar a determinadas descober-
tas que não deixam de ter validade, mas tem validade dentro de
um corpo de hipóteses tão vasto que para você acreditar nelas,
praticamente você precisaria conceder preliminarmente uma cre-
dibilidade a toda uma enciclopédia de informações. Ou seja, um
monte de pressupostos, mais aquele, mais aquele, etc., então, es-
sas descobertas seriam válidas. Se acontece desses pressupostos
serem compartilhados por toda uma comunidade humana, então
o erro não aparece. Se você parte de crenças comuns a respeito
da natureza de tal ou qual fenômeno, dentro daquela coletividade
não irá surgir dúvida alguma a respeito das conclusões a que você
chegou.
Porém, a inexistência de dúvidas numa determinada coletivi-
dade não quer dizer que as coisas criadas sejam realmente sólidas.
Não é um fundamento autônomo, com começo, meio e fim. É
um fundamento consensual, baseado na crença pública, numa de-
terminada hipótese. Por exemplo, em São Paulo, fizemos uma
investigação preliminar — quid est? –, sobre o dinheiro. O quê é
o dinheiro? Chegamos à conclusão que o dinheiro não é um con-
ceito econômico, mas sim um conceito jurı́dico. Se você abordá-lo
pelo lado econômico ele vai ficar cada vez mais enigmático. Em-
bora você possa calcular todo o comportamento dele, você jamais
sabe o que é, e a partir de um certo ponto, a ciência econômica
se transforma no que ela é hoje, um cálculo exato dos desvios das
suas próprias previsões. Nesse momento você começa a usar uma
técnica, um instrumental cada vez mais aprimorado, para estudar
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classificação, etc.
Tudo isso são esquemas para economizar pensamentos. Porém,
essa economia é duvidosa. Há seqüências inteiras de pensamento
que, teoricamente, você poderia entregar para um computador fa-
zer, e ele, de fato, o fará, de acordo com um linha pré-determinada.
Acontece que me parece que o avanço real da Ciência não é feito
exatamente assim. Em primeiro lugar, o computador não opera in-
tencionalmente. Ele não sabe para o que ele está pensando tudo
aquilo. Mesmo que você tenha mil alternativas, ele só irá ope-
rar dentro de certas linhas pré-determinadas. É como se você não
estivesse ali para observar. É um procedimento amplamente in-
consciente. Isso pode ajudar, e pode atrapalhar.
Exemplos do primeiro grupo de métodos nos são oferecidos
pelos métodos algorı́tmicos, cuja função peculiar é poupar-nos a
maior parte possı́vel do verdadeiro trabalho intelectual dedutivo,
mediante ordenações artificiais de operações mecânicas com si-
nais sensı́veis. Cada um destes métodos representa uma soma
de dispositivos, cuja seleção e ordem estão determinados por um
complexo de fundamentações, que prova em geral que um procedi-
mento dessa forma, ainda que se realize de um modo cego, há de
proporcionar necessariamente um juı́zo particular objetivamente
válido.
Se você pega todos os programas de dedução que estão nos pro-
gramas de computador, tudo isso está baseado nos fundamentos
mesmos da Lógica. Qual é a diferença de você operar com eles, e
você ter uma convicção pessoal dos fundamentos da Lógica? Há
uma grande diferença. A própria facilidade que o indivı́duo realiza
a operação, não implicando da parte dele nenhum esforço pessoal,
pode fazer com que o indivı́duo, no fim, até duvide do resultado
da dedução, quando na verdade, está certı́ssimo.
Quem vai ter que concordar, ou discordar, desse padrão, no fim,
será o indivı́duo. Se você, partindo dos fundamentos da Lógica,
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faz uma dedução inteira, você obtém, no fim, uma certeza pessoal.
Se você entrega isso para o computador, que te dá o resultado no
final, você pode não ter aquele sentimento de certeza, aquela fir-
meza pessoal.
Mas basta de exemplos. Está claro que todo verdadeiro pro-
gresso do conhecimento se verifica nas fundamentações.
10. A idéia de teoria e a idéia de ciência como problemas de
teoria da ciência.
As fundamentações soltas ainda não constituem ciência. Esta
implica certa unidade no conjunto das fundamentações, certa
unidade na série gradual delas; e esta forma unitária tem uma
significação teleológica para alcançar o fim supremo do conheci-
mento, isto é, não a investigação de verdades soltas, mas do reino
da verdade, ou das regiões naturais em que este se divide.
Isto aqui é fundamental, porque toda a articulação que se possa
fazer de método cientı́fico, ela só se justifica em função de uma
determinada finalidade. Esta finalidade é nada mais do que a ne-
cessidade da verdade sobre determinada coisa; vai se fundamentar
no conceito da verdade e na idéia de um objetivo a alcançar. Este
objetivo, que é a idéia pura de Ciência mesma, se ele sai da sua
frente, então toda a operação cientı́fica fica totalmente sem sen-
tido. Você pode sempre se contentar em procurar a verdade den-
tro de certos parâmetros. Por exemplo, definindo como verdade
isso ou aquilo, e começamos a procurar a verdade dentro desses
parâmetros. Não se pode mais chamar isso de Ciência porque se
você se baseia em determinados parâmetros, mais ou menos con-
vencionais, você está ...(?) pensamento hipotético, onde se esses
parâmetros forem efetivos, então, tais ou quais estudos serão ver-
dadeiros. Mas, é próprio do pensamento cientı́fico exigir algo mais
do que a mera hipótese, do que a mera não- contradição.
A verdade descoberta dentro de certos parâmetros convencio-
nais, é sempre uma verdade lógica, ou seja, uma verdade que não
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essenciais, etc.
Este problema aqui é gravı́ssimo. A divisão da Ciência deve
corresponder, em princı́pio, à divisão do ser em esferas, de modo
que você possa estar seguro de que um determinado tema, que
está delimitado de tal maneira, a investigação de um outro tema,
vizinho, não interferirá em nada no andamento das investigações
que você faça.
Nós podemos estar seguros de que as descobertas psicanalı́ticas
não afetem em absolutamente nada as descobertas em Geometria
Descritiva. Isto porque são esferas do ser, realmente independen-
tes. Este é o verdadeiro problema. Por exemplo, desta discussão
do dinheiro, chegamos à conclusão de que a Economia, entendida
como uma ciência autônoma, em relação à ciência do Direito, é
uma coisa absurda. A Economia é uma divisão da ciência jurı́dica.
O exame da questão do dinheiro nos leva, fatalmente, a isso.
Que esta pergunta, simplesmente, não tenha sido feita, se ex-
plica pelo fato de que os indivı́duos sempre tomaram o dinheiro
como uma definição normal. O que se chama de dinheiro dentro
deste contexto? É como se eles falassem, não em dinheiro, mas em
“dinheiros”. Existem fenômenos diferentes chamados de dinheiro
aqui e acolá. Aqui, o pessoal está chamando de ...(?) Isto não
chega a ser uma definição nominal, mas poderia ser uma definição
iniciativa, definitiva, que indica mais ou menos onde está, e como
reconhecer um objeto quando ele se apresenta.
Mas, não diz o que é este fenômeno, em todos os casos. So-
bretudo, não indica o seu parentesco, a sua semelhança, e sua
diferença com outras coisas que levam o mesmo nome, em outros
contextos.
A própria idéia de que uma coisa como o dinheiro, possa ser ob-
jeto de um conceito geral, é uma coisa que para o economista nos
parecia estranho porque ele responderá sempre assim: o dinheiro
varia conforme a sociedade, conforme a época, etc. É como se
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12 Preleção XII
dissesse que este é um fenômeno que só tem acidentes, só tem
propriedades, ele não tem essência. O que é uma absurdidade,
porque se a coisa chega a ter propriedades, se chegam a acontecer
acidentes, é porque algo ela é. O nada não sofre nenhum acidente.
Se nós perguntarmos o quê é o dinheiro, não neste contexto, mas
se buscarmos assim, algo que se denomina dinheiro, e dado o qual,
dele decorre, necessariamente, todas as propriedades reconhecidas
a isto que chamamos de dinheiro, desde que o mundo é mundo, nós
haverı́amos de encontrar alguma coisa.
A conclusão final será de que, o que se chama dinheiro, tem to-
das as propriedades que tem, realmente, e não só nominalmente,
pelo fato de que o dinheiro não é nada mais do que um direito.
Isto jamais foi dito em toda história da Economia. Se você parte
do princı́pio de que o dinheiro é uma unidade de conta usado em
determinado comércio, nós perguntarı́amos: mas como que uma
unidade de conta poderia ter a propriedade produtiva que o di-
nheiro tem? Todos sabem que dinheiro rende dinheiro. Uma sim-
ples unidade de conta não pode ter esta propriedade, portanto, esta
definição está errada.
Mais ainda: o poder de ser desejado, ser ambicionado pelos ho-
mens, isto também é uma propriedade do dinheiro. Se ele é apenas
uma unidade de conta, um sı́mbolo de um valor, então terı́amos
que dizer que a humanidade, ao desejar dinheiro, estaria comple-
tamente louca, porque ela deseja um sı́mbolo. A moeda é desejada
não por um fetichismo, mas é desejada porque ela lhe corresponde
a um direito real, assegurada por uma autoridade. O sujeito que
deseja dinheiro, ele não está desejando um sı́mbolo, o que ele quer
é um direito.
O dinheiro é uma abstração em relação aos bens, e o crédito é
uma abstração em relação ao dinheiro. Tanto o crédito, quanto o
dinheiro, você pode resumir num conceito único, que é um direito.
Em Direito, a definição de dinheiro é uma quantidade determinada
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de uso. Dinheiro não tem valor de uso (a não ser como papel
higiênico...), ele só tem valor de troca. Nós poderı́amos dizer que
as moedas cunhadas em ouro são uma espécie de equı́voco, porque
seria como se fosse uma pompa da autoridade, seria por motivos
simbólicos. Se fizermos uma moeda de plástico, com um valor
facial, e uma assinatura, o que vale é a assinatura, e não o material
plástico. Por isso a moeda de ouro foi um equı́voco, na medida
onde se você tem uma coisa com valor de uso, pode ser que num
determinado momento, o valor de uso seja maior que o direito que
aquela moeda lhe assegura. Então, a autoridade se desmoraliza, e
ela já não é mais dinheiro.
Em suma, o dinheiro não é nada mais do que um direito. O
direito tem que ser provado de alguma maneira, então, você tem
uma moeda, um papel, ou um sinal material que ateste este di-
reito como, por exemplo, um contrato. O dinheiro é um direito, e
a moeda é um documento que atesta este direito. Ou seja, é um
conceito inteiramente jurı́dico, e não econômico em si. O surgi-
mento do dinheiro é um dos fatos da progressiva introdução de
uma ordem jurı́dica na esfera econômica.
O Direito é uma coisa que se alastra. Existe cada vez mais
intervenção do Direito em todos os domı́nios da vida. Isto é uma
das poucas constantes que existem na história do mundo. Cada
vez que o Direito se alastra, significa que a autoridade vai colo-
cando seu dedo em cada vez mais domı́nios da vida. O advento do
dinheiro é um passo importantı́ssimo desse progressivo fenômeno
que o Miguel Reale chama de “jurispação da vida”, ou seja, o Di-
reito vai ordenando, moldando a vida.
Assim, sendo uma realidade de ordem fundamentalmente
jurı́dica, não tem como você explicá-la fora do fenômeno do po-
der, e que a autoridade sem poder é nada. Você resolveria a coisa
inteira na base da Polı́tica e do Direito.
Eu dou um doce para quem conseguir me apresentar um con-
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Machado de Assis, não. A falsidade era uma essência não só psi-
cológica dos personagens, mas a essência da própria estética de
Machado de Assis.
Pegue um livro de Robert Schweitz (?) e ele vai explicar como
que isso se tornou possı́vel. Era preciso uma condição social muito
particular para permitir o surgimento de uma estética dessas. E
como só aqui foi possı́vel essa condição social, Machado de Assis
é um autor que desorienta os leitores estrangeiros, porque é tanta
ambigüidade que fica difı́cil eles compreenderem isso.
Saiu há pouco uma tese, um livro, que prolonga a história da Ca-
pitu, onde ela, com cem anos de idade, conta a sua própria história,
e ela confessa que transou mesmo com o tal de Escobar. Mas, aı́
perdeu a graça, porque o interessante é você ficar sem saber se
aconteceu ou não a transa. Mas, tudo funciona como se fosse.
Essa é a essência do Brasil.
Tudo isso aı́ para dizer que ninguém poderia nos inspirar mais
a isso do que o próprio Husserl, por exemplo, sacar as coisas di-
retamente. Você não pode mudar toda uma tradição que está atrás
de você, mas você a coloca entre parênteses. Você não endossa.
Entretanto, aqui no Brasil, o sujeito com vinte anos de idade já
aderiu a alguma coisa. O sujeito acaba de entrar para uma escola
de Psicologia, e ele já é junguiano, reichiano, freudiano, etc., e fica
nisso o resto da vida. Há pessoas que fizeram toda uma carreira
baseado na idéia de ser representante de, por exemplo, Jung, ou
Reich. Se você não adotasse uma linha única, as pessoas ficam de-
sorientadas, e não sabendo o que fazer com você, então não fazem
nada. É exatamente o que fizeram com o Mário Ferreira.
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pareceria em nada com este mundo! Isto seria a mesma coisa que
dizer que o José é de fato um monte de carbonos, mas acontece
que esse monte de carbonos se agrupou de tal maneira, e com tais
propriedades, que deu num negócio que nós chamamos de José.
Os objetos não têm a sua forma individual determinada pelo fato
de serem compostos de partı́culas, mas por alguma outra coisa.
O mundo das realidades fı́sicas é um mundo abstrativo, que está
colocado, por assim dizer, por baixo deste mundo como a sua
matéria. Também, para mim, é óbvio que não existe nem um único
objeto no mundo que possa ser inteiramente caracterizado apenas
por suas propriedades fı́sicas — não é possı́vel. Como você dis-
tinguiria fisicamente, por exemplo, um jacaré de uma lagartixa?
Será que o jacaré não tem algumas outras propriedades? Será que
é por causa do tamanho? Se existisse uma lagartixa de três metros
de comprimento, ela deveria subir nas paredes do mesmo jeito. O
conjunto das propriedades fı́sicas, quı́micas, de uma determinada
substância não chega a constituir essa mesma substância, indivi-
dual, real, concreta. Mas chega a constituir, por exemplo, uma
espécie. Os objetos que a Fı́sica estuda são classes, não objetos
reais. Ela estuda classes, distinguidas apenas por suas proprieda-
des fı́sicas. Se são classes, são entidades lógicas, e não entes reais.
No fundo, isso é uma espécie de platonismo, você dizer que as
classes são mais reais que os indivı́duos que as compõe. Todo o
mundo da Fı́sica moderna é muito embuı́do da idéia platônica de
encontrar por trás da realidade sensı́vel, uma outra que seria a ver-
dadeira realidade, composta apenas de combinações matemáticas.
Isto seria um platonismo intra-mundano. Ao invés de colocar as
idéias puras no céu, as colocam aqui mesmo, e consideram mais
reais do que os entes fisicamente considerados.
A idéia de dizer, por exemplo, que o sistema de Copérnico é
mais verdadeiro que o sistema de Ptolomeu, na verdade é mais
uma questão de mudança de escala. Copérnico disse que a Terra
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baixo, para o lado, etc., só são válidas se você fixar um ponto, um
Norte. Dentro do movimento conhecido da esfera celeste, você
coloca lá um ponto que se move menos do que os outros e você
o chama de Norte. Entretanto, se você colocar esse conjunto de
uma perspectiva um pouco maior, você também verá que aquele
ponto também não é imóvel. Neste sentido, o sistema ptolomaico
é uma descrição absolutamente perfeita do movimento que o Sol
faz em cima das nossas cabeças. Inclusive a medição nele é rigoro-
samente válida. Tanto que, não só em Astrologia, mas também em
Náutica se utiliza o sistema ptolomaico, que é muito mais simples.
Se fosse calcular heliocentricamente seria a maior complicação.
Então, o ponto de vista geocêntrico é tão válido quanto o he-
liocêntrico, jupteriocêntrico, etc. Qualquer ponto pode ser tomado
como centro. No entanto, até hoje se dá a impressão de que quando
veio sistema de Copérnico se descerrou o véu da ilusão, e nós
percebemos a realidade. É como o sujeito que está no cinema e
faz a grande descoberta: “Ah!, estão todos enganados! Os ato-
res não estão lá na tela! Eles estão, de fato, naquela máquina
lá em cima!!...”, e ele acha que descobriu a realidade, a verdade.
Cada vez que você descerra o véu da ilusão, você tem um snap-
ping (estalar de dedos), você tem uma mudança total do quadro de
percepção, a qual te leva a outra ilusão.
A estrutura real do mundo só pode ser inteligı́vel, só pode ser
captada por uma espécie de inteligência pura, capaz de raciocinar
dentro da relatividade total. Capaz de conceber a relatividade total
dos movimentos do mundo em relação a uma espécie de Norte,
não-fı́sico, em relação ao absoluto não-fı́sico. Quando Einstein
toma como parâmetro a velocidade da luz, todos os movimentos
que se passam aqui são relativos. O único que permanece cons-
tante é a velocidade da luz, e portanto pode ser tomada como ab-
soluta. No entanto, isto é válido provisoriamente. Não como uma
verdadeira teoria cronológica. Einstein só inventou um novo sis-
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tudo o que ele está recebendo de presente? Ele pensa que ele é o
quê? Um proletário explorado? É exatamente o contrário, ele é
um menino mimado, a quem a sociedade dá tudo de melhor. Tal-
vez, poderia existir uma espécie de greve ao contrário, que seria a
prestação de serviços gratuitos.
Pelo fato da universidade dar acesso a pessoas de muito baixo
nı́vel intelectual e moral, nem o mercado atenderá à reivindicação
delas. O sujeito que se formou em algo, não quer saber se aquilo
é socialmente útil, ou se a sociedade precisa daquilo. Ele quer é
saber de ter uma oportunidade para ele. A profissão universitária
que atualmente tem o mais alto salário inicial é a de advogado. Isto
resulta simplesmente do fato de que quando terminou o governo
dos militares, começou o governo dos bacharéis.
É claro que pessoas que estudaram por estes motivos, elas ad-
quirirão o conhecimento pelo mı́nimo indispensável para poder
parecer advogado, médico, engenheiro, etc. E para este mı́nimo,
é claro que os procedimentos algorı́tmicos são uma mão- na-roda,
uma verdadeira maravilha, porque vai pela lei do menor esforço.
Então, é claro que para a quase totalidade dessas pessoas, estes
procedimentos serão a quintessência daquele setor do conheci-
mento, e se apegarão àquilo como se fosse um verdadeiro fetiche,
porque se tirar aquilo, eles estão roubados.
Então, se me perguntarem se eu sou a favor da democratização
do ensino, eu respondo que, ao contrário, sou a favor da elitização,
porque o acesso é excessivo. A sociedade não tem meios de ali-
mentar essa gente toda. Por quê existe o desemprego nessas áreas?
Porque tem gente demais. Evidentemente, não há necessidade de
tanto advogado, filósofo, etc. Então, temos a sociedade inteira,
a começar pelos famintos, os proletários, todos trabalhando, para
que uma casta de privilegiados possa brincar com essas coisas.
A promoção desses processos simplificados, abreviados, à quin-
tessência da própria Ciência, é devido a isso. Quanto mais se pu-
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acha que não, por quê você não vai ver o quê Aristóteles falou re-
almente? Mesmo o pior dos professores é uma oportunidade de
ensino.
Por quê isso acontece em termos de Brasil? Em primeiro lugar,
eu acho que o conhecimento não faz parte da vida brasileira. Você
saber as coisas, não é considera importante. Não é moeda cor-
rente. Eu acho, inclusive, que há elementos cultural-psicológicos
que são adversos a qualquer resultado. Por exemplo, a ênfase que
se dá para o sujeito passar de ano. O importante é passar, ou seja,
é nunca ter estado lá... Isto porque está todo mundo pobre, preci-
sando de emprego, acaba gerando esse tipo de raciocı́nio. Aqui no
Brasil, você querer saber as coisas, você acaba ficando mal visto.
O absurdo é que o paı́s é subdesenvolvido, cheio de dı́vidas, e se
dá ao luxo de oferecer faculdades a pessoas que não querem nada.
Muitos desses desvios filosóficos, que no mundo aparecem como
meramente potenciais e não chegam a se manifestar, aqui eles ad-
quirem corporalidade. Então, como é que você poderia fazer uma
elite cientı́fica, cultural, para fazer as coisas darem certo? Só se
for por mágica! O fato de você saber algo, qualquer coisa, já te
torna uma pessoa suspeita.
O que adianta não é dar verbas para a educação, mas fazer
mudança cultural mais profunda. Uma mudança nos hábitos psi-
cológicos da nação. No panteão dos heróis nacionais, quantos bra-
sileiros são cultuados pelo seu saber? Só Rui Barbosa. Mas, que
tipo de saber tinha o Rui Barbosa? Ele tinha um saber retórico
— só isso. Ou seja, não há um herói cultural. Assim, onde não
há heróis culturais, não há o ideal do sábio. Isto está totalmente
fora do repertório vital dos indivı́duos. É um escândalo, no sentido
bı́blico. O escândalo é um fato cuja constatação faz você perder a
fé na vontade divina. Realmente, o panorama cultural- psicológico
aqui é muito trágico. Este é o único problema real do Brasil.
Vejam, por exemplo, um pai de famı́lia, que está desempregado,
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numa certa idade, se for um pouco honesto, vai ter que entender
que está no lugar errado. No fundo, quase todo mundo se sente
charlatão.
Nós aqui temos que pensar tudo isso, não na escala social. O
Brasil é uma coisa. Nós somos outra coisa. Tudo o que está sendo
dito aqui, tem que ser traduzido para o caso pessoal, e ver como
é que você corrige isso dentro da sua escala. Quando decidi ser
filósofo, eu pautei a minha conduta por essa linha. Se os outros
não entenderem o papel que estou representando, isso é problema
deles. Geralmente não entendem. Mas, pelo menos, eu não fico
“patinando no vazio”, eu sei o que eu estou fazendo. As pessoas
não precisam me entender. Eu estou me entendendo.
O fato é que cada um de vocês vai procurar ver quais são os
valores que determinam, que moldam a conduta, da prática da-
quela ciência, daquela arte, e se pautarem por isso. De modo
que, as pessoas que convivem com você, aos poucos venham a
saber o que você está fazendo ali, qual é o seu propósito real. Por
exemplo, médico, hoje em dia, ignora que você só trata de um in-
divı́duo. Isso faz parte da natureza da profissão médica. Não existe
terapêutica geral. Não é como, por exemplo, um engenheiro indus-
trial, que só vai resolver problemas de ordem geral. No entanto,
o médico não pode tratar de quinze pessoas ao mesmo tempo. A
Medicina é essencialmente clı́nica, o resto é acidental. As pessoas
fazem Medicina como se fosse uma coisa industrial, quando não
é. A divisão de trabalho na Medicina tem nı́veis intransponı́veis,
que em outras esferas isso não acontece. O problema é que as pes-
soas acreditam que essa divisão realmente existem. O especialista,
em princı́pio, é o médico que sabe algo mais de uma determinada
área. a Medicina é clı́nica. O termo clı́nica vem do grego kline,
que significa leito. Clinicar é você sentar no leito e ouvir, tratar,
o doente. As divisões de Engenharia, por exemplo, são radical-
mente distintas. O sujeito para ser Engenheiro Civil não precisa
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boa publicação.
Então é assim: todos nós, num primeiro momento, somos idi-
otas porque já somos treinados para isso. Entretanto, você tem
que reverter essa situação. Você tem que se perguntar por quê fi-
cou chocado com o texto. O jornalismo é uma forma moderna da
retórica. Ele é um modo de escrever que é modulado segundo uma
expectativa de uma determinada reação, que na cabeça do jorna-
lista, às vezes, é a única possı́vel. Ele identifica aquela reação da-
quele público, com as alternativas reais oferecidas pelo problema.
Mas, isso não deixa de ser uma mágica. O perfil dos leitores de
uma revista é um esquema, uma constelação de reações prováveis.
E essa constelação de reações é tida como se fosse uma expressão
completa das alternativas reais existentes em quase cada problema.
Por exemplo, se você discute a Igreja Católica, você tem que ver
o problema atual da Igreja Católica em termos de conservador e
progressista. Ou você é um, ou é outro, ou está em dúvida. Por-
tanto, todo noticiário será feito dentro dessa clave, de modo que
as reações padronizadas possı́veis são tidas como as categorias se-
gundo as quais aquele problema pode ser visto. Tipos de reações
psicológicas se transformam em categorias lógicas. Muitas des-
sas linhas equivalem a posições publicamente assumidas e outras
não, são atitudes mais ou menos inconscientes, habituais, como
por exemplo, esta em torno do amor. Todas as pessoas definem
o amor como se fosse uma coisa mágica, inexplicável, logo, se
dizemos que ele é algo bioquı́mico, elas vão ficar decepcionadas.
Portanto, vamos trabalhar dentro dessa linha: a Ciência desencan-
tou o amor! Uns irão gostar, outros não gostarão, e outros ficarão
em dúvida. A discussão toda vai ser em torno disso.
Mas você pode recusar esse jogo. Uma das finalidades desse
curso é fazer com que vocês atendam a isso: você só tomar parte
do jogo, você só permitir determinadas reações pró, contra, ou de
dúvida, em face de uma determinada alternativa, quando você con-
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divórcio. Eu disse que era contra, mas com a ressalva de que eu era
contra, porque eu era contra o casamento. Este tipo de reação pa-
radoxal vira, às vezes, uma defesa da integridade e da inteligência.
Convidado a optar entre absurdos, o melhor é embolar tudo. Se
isto tudo aqui que estou falando, não é ensinado na faculdade de
Jornalismo, que os princı́pios da retórica são a mãe do Jornalismo,
você nunca vai entender o seu jornalismo. Você nunca será capaz
de colocar os assuntos acima do nı́vel do Jornalismo.
Por outro lado, como as pesquisas cientı́ficas, as correntes ci-
entı́ficas, só adquirem um relevo maior na medida onde alcançam
a imprensa, isto significa que é isto que produz a verdadeira
tragédia, quando os padrões de pensamento exigidos na imprensa
retroagem sobre as pesquisas cientı́ficas. Um sujeito que pesquisa
e é uma autoridade em Teologia, ele não tem autoridade em tudo o
mais — Polı́tica, Sociologia, Economia, etc. A tragédia acontece
quando o Jornalismo, portanto a retórica, acaba tomando conta de
tudo. Acaba moldando a cabeça de todos. Esse é o maior pro-
blema.
A idéia de que existe aqui uma cultura cientı́fica e filosófica de
que o Jornalismo apenas difunde, sem alterar, e não determinar o
conteúdo do que fala, só aumentando o volume de sua voz, essa
idéia é radicalmente falsa. Os quadros de alternativa propostos
pelo Jornalismo acabam, a longo prazo, determinando o própria
condução da pesquisa cientı́fica. Por exemplo, na seleção de prio-
ridades: que chefe de departamento tem a coragem de colocar to-
das as verbas em uma pesquisa que não tenha a menor repercussão
pública? Então, aı́ a imprensa determina. Em São Paulo houve
aquele famoso artigo de um jornal, que disse que a USP estava
decadente porque estava publicando poucos trabalhos cientı́ficos.
Eles encostaram o reitor na parede, e o reitor foi sincero, dizendo
que eles publicavam poucas coisas porque eles descobriam pou-
cas coisas. Você não pode obrigar as pesquisas cientı́ficas a darem
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certo, não é? Assim, o reitor foi sincero, e todo mundo o criticou.
Isso significa que a obrigação de publicar x textos, de tanto em
tanto tempo, haja descobertas ou não, foi adotado nas universida-
des.
O Jornalismo é isso: o jornal tem que sair todo dia, haja notı́cia
ou não. É como o número de páginas determinado pelo que
se chama de espelho publicitário. Se você tem anúncios para x
páginas, você vai ter que preencher aquelas páginas, mesmo que
não tenha acontecido nada. Você que faça cair um avião, ponha
uma bomba num prédio, ou como dizia o comentarista polı́tico
que escrevia uma coluna dele às 10 horas da manhã e, depois, ao
longo do dia, ele se esforçava para que tudo acontecesse do jeito
que ele havia escrito. O Jornalismo é um conjunto de técnicas,
nem sempre a serviço de um poder. O Jornalismo já tem um poder
implı́cito. O problema não é que o lado ruim seja o conflito. O
problema é: quem montou o conflito?
Quando falo de um poder que dirige isso, eu não estou me re-
ferindo à classe dominante de um paı́s. Estou me referindo a uma
mentalidade dominante de uma época, sobre a qual, pouquı́ssimas
pessoas ou grupos, tem um controle direto. Por exemplo, para per-
ceber isto aqui que estou falando, quantas pessoas no Brasil per-
cebem também? Devem ser uma três ou quatro pessoas, as quais
estão profundamente conscientes. E desses, um ou dois trabalham
para, por exemplo, o FMI ou coisa do gênero. Dirigem a coisa
nesse sentido, mas é muito fácil para eles porque não se conhece
outras alternativas.
A direção total dos debates que marcam uma época é, de certo
modo, dirigida por uma classe dominante, mas não por toda a
classe dominante. É só a elite da elite. A CIA deve ter algu-
mas pessoas que estudam exatamente isto: como se montam os
conflitos. Isto é uma retórica, e a retórica é, de certo modo, uma
parte da ciência polı́tica ligada à arte da guerra, à Polemologia.
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diante.
O mundo da retórica, da Polı́tica, da História, da influência hu-
mana sobre o homem, esse mundo é feito de adesões e repulsas,
qual seja, decisões da vontade: a vontade pró, e a vontade con-
tra. A decisão de como montar o quadro não é tomada na esfera
da retórica. Ela requer uma visão maior do que a visão interna
do conflito. Assim, quem monta o conflito, não o monta retorica-
mente. E se você quer entender realmente o que está se passando,
você tem que transcender o quadro da opção retórica e se colocar
acima dela. Para se colocar acima, você tem uma série de pro-
cedimentos dialéticos. Nós vamos ensinar isso mais tarde, mas
também tem as próprias recomendações do senso comum. Entre
as quais, esta velha regra de que “pelos frutos os conhecereis”. Ou
seja, o vencedor não está necessariamente entre os partidos que
estavam em luta.
Por outro lado, hoje se sabe que existe o famoso geopolı́tico
Carl Ritter(?), que foi um dos grandes geógrafos da humanidade,
e Ritter delineou para Alemanha um projeto de três guerras mun-
diais, nas quais ela perderia todas, e cada vez que perdesse, sairia
mais rica. O plano de Ritter está sendo cumprido à risca. A ter-
ceira guerra planejada não envolveria diretamente a Alemanha; se
travava no Oriente Médio. Isto é um documento arquivado no Mu-
seu de Berlim. Está lá, é só ler. Eu não sei, de fato, até que ponto
esse trabalho do Ritter influenciou os fatos. Não sei em que me-
dida essa idéia pode ter sido causa de eventos. De qualquer modo,
os grandes conflitos que se travam na História, os reais conflitos,
nunca estão equacionados do jeito que parecem as guerras do dia.
Por trás da guerra, existe uma outra guerra, que é a que será efeti-
vamente vencida e que você só entende no fim. Você vê isso por
quem ganhou no fim. Isso é um critério infalı́vel, por isso mesmo
que o estudo da História contemporânea, a do dia, é muito difı́cil.
Por isso mesmo é que eu fiquei chocado com a estória do vesti-
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de modo que quando você chega a tomar uma posição, não é mais
uma opção, mas é quase uma imposição dos fatos.
Um ideal filosófico seria você tomar todas as posições como
posições definitivas ditadas pela ordem real das coisas, e reduzir
ao mı́nimo as tomadas de posição subjetivas. Você não defenderá
que 2 + 2 = 4 pelos mesmos modos e pelas mesmas razões do su-
jeito que defende o Lula ou o Maluf. Você pode defender até mais
serenamente, mas com uma certeza muito mais embasada. Às ve-
zes você nem precisa defender, você apenas diz que 2 + 2 = 4;
se você não acredita, aja como 2 + 2 = 4. Você não precisa
persuadir as pessoas. É a diferença entre persuadir e convencer.
Por quê convencer não é vencer? Suadir, quer dizer você influen-
ciar, você empurrar. E o prefixo per, significa em volta. Quando
você persuade, você cerca o sujeito, você o domina. Convencer
é vencer juntos. Os dois admitem a mesma coisa. Numa batalha
dialética não há vencedor. Os dois estão procurando a verdade.
Portanto, na colaboração dialética não interessa quem está com a
tese certa, pois o que está com a tese errada também está ajudando.
Sempre alguma tese vai estar errada, outra vai estar certa, ou uma
combinação das duas, ou a exclusão das duas. O que interessa é o
resultado.
Na discussão dialética, por exemplo, é importante que você bus-
que, para uma tese que você não aceita, tantos argumentos quanto
você busca para a tese que você aceita. É preciso você aprender a
defender o contrário do que você acredita, senão não irá funcionar.
A dialética acontece fechando as alternativas, até que sobra uma
que não tem saı́da, e tem que ser por lá, goste você ou não.
Na retórica é o contrário; o que interessa é você puxar argu-
mentos decisivos em favor da sua tese, e esconder o argumento
contrário. Se for possı́vel não chegar a discuti-los, melhor ainda.
a nossa tese já é pressuposta, não como certa, porém como vence-
dora e como já aceita. Assim como, por exemplo, todos os candi-
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mas isto não depende de mim. Eu sou posso dar a teoria. O efeito
prático é você duvidar, não do que você lê, não da revista, não
se trata de você desconfiar deles, mas desconfiar de você mesmo.
Você achar que a imprensa toda é mentirosa não te liberta da in-
fluência da imprensa, ao contrário, noventa por cento dos artigos
já foram escritos na previsão, e na expectativa de serem lidos por
pessoas que duvidam da imprensa, e que por isso mesmo ficarão,
às vezes, um pouco desorientadas, sem saber se acreditam ou não,
não sabe o que fazer perante as alternativas. Não é tendo uma ati-
tude de distanciamento em relação aos órgãos de imprensa,ou ao
conteúdo do que está sendo lido, que você se libertará, mas você
tendo um distanciamento em relação à sua reação espontânea. É
através dela que eles te pegam. Por exemplo, quando você entra
no mato, para se prevenir contra picada de serpente você não põe
uma mordaça na boca de cada serpente, mas você põe uma bota
na sua perna. Já pensaram que trabalho enorme seria você ter que
fiscalizar a revista Veja, Time, Isto É, Manchete, etc? Fiscalize so-
mente a você! Se você estiver livre de você, da sua própria reação
retórico- emotiva num primeiro instante, você estará livre de todos
eles ao mesmo tempo, sem precisar pensar mal deles. Não se trata
de você se defender de cada inimigo em particular, mas você ze-
lar pela sua segurança em geral. O principal inimigo da liberdade
de consciência não é externo absolutamente. Não há quem possa,
desde fora, violar a sua liberdade de consciência, a não ser pelo
emprego da agressão fı́sica mais extrema. Mesmo assim há quem
resista a essas agressões fı́sicas.
Então, o seu inimigo é você mesmo, é a sua vontade de aderir
a alguma coisa que você gosta, de se sentir participante, é a von-
tade de dar palpite, de ter e manifestar opinião, vontade de exercer
a maldita da liberdade de expressão, em troca da perda da liber-
dade de consciência. É melhor você ficar quieto, guardar a tua
opinião para si, mas estar pensando livremente por dentro, do que
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você abrir a boca, falar para as multidões e ser ouvido, sem ter li-
berdade de pensamento interno. Você tem um liberdade aparente,
mas perdeu a real.
O ideal da liberdade humana é consubstancial à própria
definição do ser humano. Se o ser humano não é livre, então ele é
apenas um bicho. Um cachorro está preso ao seu conjunto de re-
flexos condicionados, não porque alguém o condiciona, mas por-
que ele é apenas um cachorro. Ou seja, você só pode escravizá-lo
desde fora, tomando como base a escravidão interna dele. O in-
divı́duo que estivesse fundamentalmente decidido a não obedecer
um tirano, e que julgasse que a sua liberdade vale mais do que a
vida, ele morre mas não é escravizado.
Por isso que o propósito deste curso não é propriamente defen-
der contra a influência, o falatório da sociedade em torno, mas
contra você mesmo, de certo modo. Todos nós temos uma face
fraca, e esta face deseja ser amada, deseja se sentir protegida, de-
seja se sentir aceita, ela tem um monte de reivindicações afetivas,
que no seu próprio nı́vel são legı́timas até certo ponto. Porém,
elas são legı́timas quando elas buscam o atendimento real e con-
creto. Por exemplo, se eu desejo ser amado, eu tenho que procurar
uma pessoa que me ame. Para quê eu preciso entrar num partido
polı́tico? Para aderir a uma corrente de opinião, para me sentir
amado. Isto é um atendimento simbólico. É irreal, na verdade. Eu
não vou receber o feedback. Se eu torço por um time, eu lhe ga-
ranto que o time não torce por mim. Eu me sento amado porque eu
sou um igual, mas eu estou sendo um pateta, porque estou amando
sem ser amado.
As reivindicações afetivas devem ser atendidas no plano real
delas, que é o plano da interrelação pessoal. O próprio desejo
de opinar é um desejo de atrair atenção para você. Mas se você
quer atenção, por quê você não busca atenção realmente? você
tem certeza de que quando está opinando as pessoas estão pres-
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mas a pergunta é: quero esta liberdade interior ou não? Esta li-
berdade interior é a liberdade em relação ao que os antigos cha-
mavam de “as paixões da alma”: medo, ódio, desejo, preconceito,
etc. Aos seus preconceitos, e não aos dos outros. Um preconceito
é um conceito feito antes do conhecimento da coisa. você nem
ouve o sujeito falar e você já o enquadra e fica contra. É terrı́vel
você viver preso a esse tipo de coisa.
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Capı́tulo II
DISCIPLINAS TEORÉTICAS
COMO FUNDAMENTO DAS NORAMTIVAS
13. A discussão em torno ao caráter prático da lógica.
Uma lógica prática é um imprescindı́vel postulado de todas as
ciências. Kant mesmo adepto, por outro lado, da idéia de uma
lógica pura, falou de uma lógica aplicada.
A questão na verdade discutida em Kant diz respeito a se a
definição da lógica como uma arte toca ao seu caráter essencial.
O que se discute é se o ponto de vista prático é o único em que
se funda o direito da lógica a ser considerada uma disciplina ci-
entı́fica.
O essencial na concepção de Kant não consiste em negar o
caráter prático da lógica, mas em considerar possı́vel a lógica
como ciência plenamente autônoma, nova e puramente teorética,
com caráter de disciplina a priori e puramente demonstrativa.
Segundo a forma predominante da teoria contrária (à de Kant), a
redução da lógica ao seu conteúdo teorético conduz a proposições
psicológicas e eventualmente gramaticais, isto é, a pequenos seto-
res de ciências distintas e empı́ricas.
Vamos pegar um silogismo, por exemplo, “todo homem é mor-
tal; Sócrates é homem; logo, Sócrates é mortal”, e vocês vão tentar
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qualquer desses casos, ele não poderia ser, por si mesmo, o funda-
mento da crença na lógica. Então, a teoria sociológica só complica
um pouco mais. Ela só acrescenta um elo causal a mais.
Vamos tentar uma outra hipótese: as estruturas lógicas estariam
na própria linguagem. Então, quando você aprende a falar, você
aprende as estruturas lógicas junto. E como você não consegue fa-
lar sem estrutura lógica... O que eu quero saber é, se você começou
a pensar logicamente porque aprendeu a lı́ngua, ou se aprendeu a
lı́ngua porque tinha um pensamento lógico? Se eu aprendi a lin-
guagem, me ensinaram a falar, então as frases têm uma estrutura
lógica (sujeito, predicado ,verbo, etc), e para poder continuar fa-
lando eu tenho que admitir a consequencialidade lógica. Então,
o comportamento lógico já existe anteriormente ao aprendizado
da linguagem. Se você tem capacidade de fazer uma coisa caber
dentro da outra, você tem a noção de todo e parte. Noção de ho-
meogêneo: em um prato de sopa, a primeira colherada é de sopa,
a segunda não pode ser de suco de laranja. A própria criança sabe
disso. Se ela não gosta de sopa, e você dá a primeira colherada,
ela não quer mais o resto do prato. E como isto é a própria lógica,
a teoria linguı́stica não pode ser também um fundamento à lógica.
Uma outra hipótese: os princı́pios lógicos entraram na sua
cabeça na hora que você aprendeu a significação. É a experiência
da Marie Hotin(?), que era cega, surda e muda, e aprendeu a se co-
municar aos 29 anos de idade. Até lá, vivia como um bicho: tinha
que ser alimentada, lavada, etc, e não tinha nenhuma comunicação
com ninguém. Até que um dia, a freira que tomava conta dela,
tirou a faca da mão da Marie, e esta ficou muito agitada, começou
a se debater por causa disso. Daı́ a freira fez um sinal na mão dela
esfregando no dorso da mão da menina, e a Marie fez o mesmo
sinal na mão da freira, e a freira entregou a faca. Então, toda a vez
que ela queria a faca ela fazia o mesmo sinal. Este foi o primeiro
signo que ela aprendeu. Foi o primeiro ato psicológico dela que
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perfeito.
Por outro lado, se tudo o que o homem faz tivesse uma causa que
transcende a ele, ele jamais, por si mesmo, seria a causa de nada.
Por exemplo, você tem uma causa, que determina uma outra causa,
que determina uma outra causa, etc, e no meio dessa corrente você
tem um ente, que é um elo dessa corrente, e que também determina
outra causa, e assim por diante. Ora, se tudo o que está para diante
desse ente provém dele é causa dele, e se essas causas fossem
conseqüência de uma causa anterior a esse ser, isso é a mesma
coisa que dizer que esse ente não faz nada, ele é apenas um elo
lógico, um nexo lógico entre outras causas.
Então, esse ente não é um ser causal, ele nada causa; só é cau-
sado. Então, ele tem menos poder que, por exemplo, uma parede,
porque ela tem uma ação que lhe é própria, por exemplo, a ação
de resistir, pois ela se mantém no lugar. Mas, esse ser, supondo
que ele não causasse nada, e fosse apenas um elo, ele seria um elo
lógico. Seria preciso que ele fosse totalmente destituı́do de quais-
quer traços, propriedades, e portanto não é possı́vel que tudo o que
o homem faz tem uma causa fora dele. Aliás, isso não é possı́vel
com relação a nenhum ser realmente existente. Existir é poder ser
causa de alguma coisa.
Voltando à pergunta anterior: quando nós chegamos ao resul-
tado de que a crença nos princı́pios lógicos não tem causa, por
quê todos ficaram perplexos? É aquela piada: um sujeito com-
prou cinco burros numa feira. No meio do caminho, de volta para
casa, ele ficou cansado e montou em um dos burros. Quando ele
chegou em casa,chamou a mulher para ver os burros que ele ha-
via comprado. Ainda montado em um dos burros, ele contou cada
um deles e, surpreso, disse: “Eu comprei cinco burros, mas aqui
só tem quatro!”. E a mulher disse: “Engraçado, eu estou vendo
seis!”. A sensação de vazio ante uma coisa que não tem causa,
você sente a mesma emoção do sujeito que diz que comprou qua-
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tro burros. Então, o único ser que determina que você acredita em
princı́pios lógicos é você mesmo. Nada impede isso.
[ Houve o intervalo da aula e parte dos comentários que o Olavo
fez não foi gravado porque esqueceram o gravador desligado ]
Nesse caso, nós terı́amos um elo de necessidade entre o homem
e a crença na conseqüência lógica. E por isso nós poderı́amos
obrigar ao homem a crer na conseqüência lógica. Nesse caso,
que diferença haveria entre a sensação da persuasão racional e a
coerção?
Aı́ eu estou argumentando, por um lado: primeiro porque não
tem causa; em segundo lugar, isto não é possı́vel porque tudo o
que acontece com um ser tem uma causa fora dele, e é necessário
que ele seja causa de alguma coisa também. Ou seja, nem todos os
seres, sob todos os aspectos, podem estar encaixados na lei de um
determinismo universal, que os abrange completamente. Porque,
se acontecesse isso, todos os seres seriam inócuos, e somente as
causas operariam sobre eles. Não existiriam seres, mas somente
causas.
O primeiro argumento contra o determinismo universal seria
este: um determinismo tem que determinar seres. As causas têm
que atuar sobre seres que efetivamente existem. Porém, se esses
seres, por si mesmos, se reduzem às causas que atuam sobre eles,
então ele não existem funcionalmente, eles são nadas. E um ser
incapaz de qualquer ação sobre qualquer outro ser, também não
pode sofrer a ação do nada.
Esta é a segunda linha de argumento. Ou seja, se de um lado
não encontramos nenhuma causa para que o homem creia nos
princı́pios lógicos, e de outro lado, todo ser tem que ser capaz
de ser causa de alguma coisa, então talvez seja o homem mesmo a
causa. Talvez seja um ato dele, não causado por algo externo.
Em favor desta hipótese, ainda restam vários argumentos, dentre
os quais destaco o seguinte: se nós soubéssemos qual a causa da
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supõem o ser dele. Aquele que não existe não pode sofrer a ação
de causa alguma. Então o que existe de estranho que o próprio
homem seja a causa de alguma coisa, sem que nada cause, através
dele, essa alguma coisa? Dito de outro modo, se até mesmo um
fundo de liberdade metafı́sica você encontra numa pedra, por quê
não deveria encontrar algum também no homem? Porque existe
essa expectativa de determinismo universal, da parte de pessoas
que, no entanto, conscientemente, não acreditam no determinismo
universal.
Se eu perguntar para vocês se acreditam no determinismo uni-
versal, na absoluta fatalidade, que tudo está escrito e pré- deter-
minado, nos seus mı́nimos detalhes, ou seja, existe a objetividade
absoluta, onde nenhum ser é causa de nada, e todos só sofrem
impacto, vocês dirão que não acreditam nisso. Mas, se não acredi-
tam nisso,por quê tiveram aquele sentimento de vazio na hora que
descobriram que a crença na lógica não tem causa? Não é contra-
ditório? Isto significa que você não acredita conscientemente no
determinismo, mas só aceita como conhecimento objetivo o que
for totalmente determinı́stico. Quando nós temos crenças absolu-
tamente incompatı́veis, ou seja, a mente ainda não está formada de
uma maneira lı́mpida, de maneira que ela possa arcar com todas
as conseqüências de suas crenças, então, uma espécie de determi-
nismo implı́cito está presente em todo nossa sociedade. Porque é
a imagem que se tem de que se funciona assim.
A Ciência está encarregada de nos dizer as leis subjetivas que
presidem o acontecer. Portanto, está encarregada de nos descre-
ver o determinismo. A própria Ciência efetivamente já desistiu
de fazer isso há muito tempo. a própria Ciência não acredita em
determinismo. Então, a imagem pública que se tem dela é de
uma espécie de retrato do determinismo universal, e só acredita-
mos numa coisa, encontrando uma explicação cientı́fica, quando
vemos que ela é totalmente independente de qualquer arbı́trio ou
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no entanto pode ser feito ou não. Por exemplo, quando você vai
comprar algo, você pode argumentar pró e contra a compra, mas o
teu argumento não faz você comprar nem deixar de comprar. Você
decide livremente comprar ou não comprar, pesando os argumen-
tos, portanto, você não está determinado a comprar.
Então, poderı́amos perguntar: qual é o valor que o homem en-
cara nesse ideal de um discurso coerente? Que perspectivas ele lhe
abre, que a incoerência não lhe daria? Porém, veja o que disse o
Husserl nesse parágrafo que nós acabamos de ler: ou a lógica será
apenas uma técnica, portanto uma ciência prática,ou se for uma
ciência teórica, seu conteúdo terá de ser psicológico, gramatical,
sociológico, etc. Por isso mesmo que eu lhes perguntei se vocês
conseguirem encontrar um fundamento psicológico, sociológico,
da crença no princı́pio lógico. Eu estou preparando vocês para a
discussão que ele vai fazer do psicologismo.
O psicologismo é uma tendência filosófica dominante durante
mais de cem anos, e até hoje é muito influente subliminarmente,
segundo a qual a validade dos princı́pios lógicos advém de causas
psicológicas, gramaticais, sociológicas, etc. Dito de outro modo, a
lógica seria uma parte da Psicologia, Sociologia, etc. Por exemplo,
a escola sociológica, muito influente, fundada por Durkheimer, até
hoje acredita que as categorias lógicas provém da estrutura so-
cial interiorizada. Ou seja, ao assumir que existe uma analogia
entre as estruturas lógicas e as estruturas sociais, transforma-se
uma analogia numa explicação causal, em seguida transforma-se
a explicação causal numa fundamentação lógica. Isto está muito
destorcido.
Todo o conjunto de negações à lógica pura, Husserl chama de
psicologismo, que é aquele que vai remeter a causa e, implici-
tamente, a validade dos princı́pios lógicos a fatores extra-lógicos,
ou seja, a fatores reais. O que nós dissemos aqui era que não existe
nenhuma causa real, mas talvez possa haver uma causa ideal que
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seria um valor. Mas, um valor não chega a ser uma causa, ele é
apenas uma justificação. Ou seja, a validade dos princı́pios lógicos
não pode depender de nada real. Independe do real, eles têm que
ser válidos. Mesmo aqueles que distinguem o que é causa e o que
é fundamento, mesmo eles acabam misturando as coisas.
Eles não têm outra saı́da: ou eles vão para a lógica pura, que
é uma ciência meramente a priori, totalmente ideal, que fala das
relações e verdades possı́veis, e que não tem absolutamente nada
que ver, não tem nenhum fundamento, causa, na experiência real
humana, que não é causada por nada, é apenas um conjunto de
esquemas das relações e verdades possı́veis, encaradas como um
sistema ı́ntegro e coerente, a qual a adesão é feita somente pelo
livre arbı́trio humano; ou então, nós teremos que aderir a algumas
formas de psicologismo, que são todas estas que nós vimos aqui.
Não é preciso lembrar que o velho Kant, que era o grande adepto
da lógica pura, é também, de todos os filósofos do Ocidente, o
que mais enfatizou a idéia da liberdade humana. Kant era con-
tra — até — você provar que Deus existe. Ele dizia que a prova
objetiva da existência de Deus seria a suma blasfêmia, porque su-
primiria a liberdade humana. A existência de Deus não pode ser
matéria de ciência no sentido objetivo, porque se pudesse, você
seria obrigado a engolir esse Deus, como você tem que engolir
o real empı́rico. Então, Deus se relacionaria com os homens do
mesmo jeito que se relaciona com as pedras, porque Ele coloca
lá umas leis cosmológicas, e as pedras se movem de acordo com
isso. Então, não seria um Deus do homem, seria um Deus para
o homem. Esse mesmo indivı́duo que tanto enfatizou a liberdade
humana, é também o mesmo defensor da lógica pura.
Então, pegando a conexão entre essas duas coisas, por tudo o
que eu falei hoje, a adesão aos princı́pios lógicos puros é um ato
livre do ser humano, e nada pode obrigá-lo. Sendo um ato livre,
nunca é um ato definitivo, é uma opção reiterada. E se é assim, é
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(sem correção do Prof. Olavo de Carvalho)
Capı́tulo II
DISCIPLINAS TEORÉTICAS
COMO FUNDAMENTO DAS NORMATIVAS
13. A discussão em torno ao caráter prático da lógica.
Uma lógica prática é um imprescindı́vel postulado de todas as
ciências. Kant mesmo adepto, por outro lado, da idéia de uma
lógica pura, falou de uma lógica aplicada.
A questão na verdade discutida em Kant diz respeito a se a
definição da lógica como uma arte toca ao seu caráter essencial.
O que se discute é se o ponto de vista prático é o único em que
se funda o direito da lógica a ser considerada uma disciplina ci-
entı́fica.
O essencial na concepção de Kant não consiste em negar o
caráter prático da lógica, mas em considerar possı́vel a lógica
como ciência plenamente autônoma, nova e puramente teórica,
com caráter de disciplina a priori e puramente demonstrativa.
Segundo a forma predominante da teoria contrária (a de Kant), a
redução da lógica ao seu conteúdo teorético conduz a proposições
psicológicas e eventualmente gramaticais, isto é, a pequenos seto-
res de ciências distintas e empı́ricas.
Segundo essa idéia, a lógica seria constituı́da de uma série de
preceitos, normas e regras de ordem prática, cujo único conteúdo
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amar o próximo” quer dizer que quem não o faça não é um ho-
mem “bom”. Em todos estes casos fazemos com que a nossa
valoração positiva, a concessão de um predicado de valor positivo,
dependa do cumprimento de uma condição, cujo não cumprimento
traz consigo o predicado negativo correspondente.
Toda norma implica a idéia de um bem. Em princı́pio, qualquer
norma contém dentro de si a exclusão da norma contrária. Qual-
quer obrigação de fazer alguma coisa, é a obrigação de se abster
de fazer o contrário.
Os enunciados negativos do dever não devem interpretar-se
como negações dos afirmativos correspondentes. “Um guerreiro
não deve ser covarde” não significa que seja falso que um guer-
reiro deva ser covarde, mas que um guerreiro covarde é um mau
guerreiro.
Isto tem uma sutileza. “É falso que um guerreiro seja um co-
varde”, não é mais uma posição normativa; isto é uma proposição
teorética; isto se refere ao verdadeiro e falso. Portanto, uma
proposição normativa negativa, não implica a falsidade do seu
conteúdo. Implica apenas a negação da norma contrária.
“Um guerreiro deve ser valente” e, “Um guerreiro não deve ser
covarde”, como é que, daı́, você vai deduzir o que é um guerreiro?
É conseqüência lógico-formal disso que o dever e o não se ex-
cluam; e o mesmo cabe dizer do princı́pio de que os juı́zos sobre
um dever não implicam nenhuma afirmação sobre um ser corres-
pondente.
Ao estar enunciado um dever, desse dever, você nada pode de-
duzir quanto ao ser a que ele se refere.
Devemos incluir aqui além das proposições com “deve” ou “tem
de”, que dão na mesma também outras proposições como: “para
que um A seja um bom A, basta (ou não basta) que seja B”.
Então, só existem dois tipos de fórmulas de juı́zos normativos:
1) quando o juı́zo é construı́do com Deve, Tem de, Must, Soll,
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e do pior.
Isto é a estrutura magna de qualquer sistema normativo que
exista no mundo. Desde os 10 Mandamentos, até o regulamento
do Flamengo, o regulamento das escolas, etc.
Suscitam-se, pois, análogas questões normativas com relação
aos predicados relativos de valor que com relação aos absolutos.
Que questões? Quais são as condições necessárias e quais são
as condições suficientes. Quando consideramos pior, ou quando
consideramos melhor.
A totalidade destas normas forma evidentemente um grupo cer-
rado, definido pela valoração fundamental. A proposição norma-
tiva, que exige em geral dos objetos da esfera em questão que
satisfaçam na maior medida possı́vel às notas constitutivas do pre-
dicado positivo de valor, ocupa uma posição preeminente e pode
designar-se como norma fundamental.
Se nós estivéssemos falando, p.e., sobre comida, o que signi-
fica o sabor agradável em sentido máximo? Como é que nós po-
derı́amos conceber o máximo de perfeição possı́vel, no sentido
gustativo? Isso seria chamado a norma fundamental.
A norma fundamental seria, simplesmente, a expressão em ter-
mos de proposição, do valor fundamental. Todo e qualquer sis-
tema normativo implica uma norma fundamental, mas não quer
dizer que essa norma fundamental esteja explı́cita.
Este papel é representado, por exemplo, pelo imperativo ca-
tegórico na ética de Kant; igualmente pelo princı́pio da “maior
felicidade possı́vel para o maior número” na dos utilitários (ou
pelo primeiro mandamento da Bı́blia).
O que é imperativo categórico? Kant disse: você deve agir de tal
maneira que qualquer outro ser humano, colocado na sua posição,
naquela situação determinada, estivesse moralmente obrigado a
agir do mesmo modo. Ou seja, uma ação, para o Kant, é boa,
quando ela obedece a um princı́pio de obrigação universal. ...(?)...
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sem perceber. Fazer já é grave, e não perceber, é muito mais grave
ainda. Mas, isto é uma atitude minha. Eu não considero que a
ausência de intenção explı́cita seja desculpa para nada. Aliás, é
exatamente o contrário, porque qualquer coisa que você faz sem
intenção, é porque você faz por hábito. Ou seja, você fez sem
precisar pensar que ia fazer. Mas, essa é uma atitude ética que,
eu mesmo, pensando, cheguei, e que não é compartilhada pela
maioria das pessoas. A tendência natural do meio é dizer que você
fez sem querer!
Então, quer dizer, o sujeito que rouba por hábito é menos cul-
pado do que o que roubou uma vez só. Na verdade, é o sem querer,
querendo, ou seja, significa que eu não quero prestar atenção nesse
assunto. Eu não quero prestar atenção no seu pé que está na frente,
eu quero é ir pisando. Isto é uma má intenção, que se oculta sob
a fachada de uma ausência de qualquer intenção. Quando você
é acusado de alguma coisa qual é a sua tendência imediata? É
examinar para ver se você realmente fez aquilo? O reflexo é exa-
tamente o contrário: é tirar da reta, mediante uma negativa, onde
nós inventamos uma justificação.
A justificativa automática se baseia numa norma fundamental,
segundo ao qual, eu não posso errar. Se eu errei, ou é falso, na
verdade, não errei, ou é um erro aparente, que na verdade é um
acerto. São reflexos que você vê normalmente, no dia-a- dia.
Quando você terminar de fazer esse exame, você vai ver que
você está num meio social onde qualquer consciência moral é
quase proibida. E, daı́, você vai entender porque não existe Ética.
A exigência de que se exista uma Ética, é totalmente utópica.
Particularmente, eu acho muito engraçado que as pessoas quei-
ram que, especificamente, os polı́ticos deveriam ser mais honestos
que o resto da população. Normalmente, é o contrário.
Se você já está num meio onde a falta de conceitos éticos é total,
como é que os polı́ticos deveriam ser honestos? Se não existe o
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melhor para vocês, mesmo que ele seja incompleto, deficiente; não
tem importância.
Você vai ver que existem muito mais vı́cios e virtudes do que
você costuma atribuir às pessoas. Mais ainda, você vai aprender
qual é o nome exato daquelas que você costuma atribuir. Muitas
não tem, sequer, nome.
Se na procura de nomes você passar por, p.e., preguiça, você
não percebe que aquilo é um termo moral, significa que para você,
não é. Então, não considerem.
Procurem só os termos que vocês considerem como morais e/ou
imorais.
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foi ingrato porque você acha que não deve nada a alguém. Ou
seja, você vai rejeitar o qualificativo de ingrato. No caso da deso-
bediência você aceita o termo, mas muda só a valoração.
Há muitos termos que são usados negativamente em geral, mas
que, em si mesmos, não implicam a valoração negativa. Então, são
termos formais, e a ingratidão não é um desses.
O que eu estou querendo saber é se a irreverência é um termo
formal, ou não. Me parece que não. Um termo formal não pode
ser colocado dentro da definição de virtude e vı́cio, porque ele não
é nem virtude, nem vı́cio; tanto podem ser positivos ou negativos,
dependendo do ponto de vista.
A ingratidão é uma situação definida. Você só pode ser ingrato
com quem te ajudou. O problema é que na maior parte dos casos,
usa-se o termo irreverência num sentido metafórico. É como se
usa no Brasil, o termo polêmico. Qualquer pessoa que fale algo
que você não goste você diz que é polêmico. Polêmico, é quando
você fala uma coisa que pode ser questionada e que pode dar a
maior confusão.
Irreverente, propriamente, seria um sujeito que, sabendo que
algo é digno de reverência, por isso mesmo, ele se levanta contra.
Seria como blasfemar.
Se eu não acredito em Deus, ou que Ele exista, o que quer que
eu fale dele não é blasfêmia. Se eu acredito, e estou zangado com
ele, e o xingo, aı́, neste caso, é uma blasfêmia. O ateu, p.e., não
pode fazer sacrilégio.
Da lista dos termos que vocês acham que sejam bons ou ruins,
os que sobrarem constituirão valores, positivos e negativos, que
terão que ser transformados em normas. Quanto menos sobrar,
melhor.
Ingratidão, é o não reconhecimento devido a um benfeitor. É o
não reconhecimento a um benefı́cio recebido.
O que caracteriza o ato da ingratidão? Quando nós podemos
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dade não tem sentido moral algum. Só pode haver uma postura
moral quando é obediência a uma norma clara, uma norma obe-
decı́vel. P.e., você condenar as pessoas que matam na guerra por-
que o Cristianismo diz para não matar, esta não é uma norma obe-
decı́vel. Para que elas não matassem os seus inimigos na guerra
seria preciso que elas desobedecessem os seus superiores e daı́ os
superiores iriam desejar fuzilá-los. Das duas, uma: ou se deixa
fuzilar, ou então tem que matar os seus superiores.
Neste caso, o soldado estaria sendo mais cristão caso ele ma-
tasse o seu próprio sargento ao invés de matar os soldados do
exército adversário. Isto é absurdo!
Para não matar o sargento você teria que deixar que ele o ma-
tasse. Então, a obrigação número 1 do soldado cristão seria ser
morto pelo seu próprio sargento. Pareceria ser mais digno do que
ser morto pelo adversário. Isto também é absurdo!
Então, todo sistema moral tem por trás uma norma fundamen-
tal. Entretanto, você pode fazer milhares de julgamentos fundados
numa norma fundamental inteiramente absurda e incoerente com
outras normas fundamentais, então a sua mente vai ser um com-
posto de sistemas morais incongruentes.
Sistemas morais incongruentes não permitem uma discussão
moral séria. O seu próprio procedimento, o seu próprio julga-
mento não pode ser julgado, porque conforme o momento você
saca deste ou daquele código. não existe diálogo. Ninguém pode
reclamar do que você fala ou do que você faz e isso é a própria
violência.
O julgamento moral baseado no sentimento é apenas mais outro
que existe. O sentimento é egoı́sta, por definição.
No caso da guerra não faz parte da obrigação de um Estado
evitar sofrimento por um Estado inimigo. Isto é um requinte de
moralidade que a única nação que se preocupou com isto foi os
EUA.
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tade no outro sem mais nem menos. A abdicação disto tem que
ser total e definitiva em todas as esferas de vida. Nunca mais na
sua vida você vai fazer do seu impulso uma norma válida. Nunca
mais você vai achar que só porque você está bravo com o sujeito
ele não presta. Ou seja, o seu sentimento vai perder autoridade
para sempre. Se não fizer isto a inteligência não vai avançar. você
tem que dizer assim: “O que eu gosto, ou deixo de gostar, não
interessa. Eu sou apenas mais um e igual a todo mundo. O meu
sentimento não vale mais do que o dos outros”. Isto não é o óbvio.
Ou você chega a uma esfera onde exista uma obrigação que
pode ser cobrada igualmente de todos e você fala em nome desta
obrigação, ou então você vai ter que impor o seu desejo. Então,
não existe o meio termo. É como disse Jesus Cristo: “Quem não
está comigo, está contra Mim”.
É claro que você pode ter o seu desejo, o seu impulso, os quais
poderão ser satisfeitos todas as vezes que os outros concordarem
com isso, e se não concordarem você vai ficar frustrado como todo
mundo ficaria.
Essa coisa sinuosa que evita as definições sérias durante a vida é
uma fuga da realidade, porque é conciliar o inconciliável. Se o su-
jeito adiar isto, a vida nunca começa. Então, você pode fazer o ato
inaugural que é desistir de fazer do seu desejo, do seu sentimento,
uma autoridade, para sempre. Seja ele qual for.
O seu desejo tem o direito de ser atendido sempre que alguém
queira atendê-lo, e fim. Se o outro não quiser, então acabou o seu
direito. A vida é assim.
Para isto significa você descer de uma montanha, desinflar um
balão que coloca o EU acima da humanidade, e entender que você
é só mais um, que não faz diferença alguma. Esta é a realidade.
O que é isto senão a tradução lógica do Mandamento “Amar ao
próximo, como a si mesmo”?
Também pode ser “Detestar o próximo, como a si mesmo”, não
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é? Você tem que julgar o outro com o mesmo padrão que você
usa para julgar a si mesmo, e vice-versa. Se você não fizer esta
tentativa você não sobe a esfera da Razão, jamais. Isto é um impe-
dimento moral básico.
Se eu sei que nós somos membros de uma mesma espécie que
não tem diferença essencial alguma, que enquanto seres viventes,
enquanto animais somos exatamente iguais, temos exatamente os
mesmos desejos, exatamente os mesmos impulsos de base com
uma pequena diferença quantitativa que é ridı́cula, desprezı́vel,
então não tem sentido você colocar você no centro e o outro na
periferia.
Esta é a famosa ilusão do ego que o Budismo diz que você tem
que perder. O ego existe, só que ele é só mais um.
E o sujeito que fala isto aqui que eu estou falando? Quando ele
fala isto ele está com uma autoridade total. Isto o Estado pode até
impor às pessoas, e de fato impõe. Um pouquinho de igualdade
civil existe porque os Estados impuseram, porque se largar o ser
humano solto ele suprime isto no dia seguinte.
O sujeito vai falar de igualdade civil para os outros, e a diferença
civil para ele.
Quem faz uma opção pela Razão diz adeus à violência. Um
sujeito santo não adquire mais direitos que os outros. Você pode
adquirir um mérito, mas não um direito.
P.e., o direito à satisfação dos seus desejos. Você ter direito à
roupa que você gosta, ao padrão de vida que você gosta, à mulher
que você quer, etc., etc., você acha que alguém tem este direito?
Nenhum desejo tem o direito de ser atendido, jamais. O desejo é
atendido porque alguém ...(?)...
Esta opção pela Razão deve se traduzir imediatamente numa
efusão de boa vontade para com o mundo.
A boa vontade significa você colaborar, não encher o saco, res-
peitar, etc., ou seja, o seu desejo cede ao desejo do outro, de boa
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vontade, em nome da paz, da ordem, e daı́ dá tudo certo, senão não
tem conserto.
Se não for assim só resta o Estado tirânico, e você entra no
Leviatã do (Hobbes(?)), onde você precisa de um Estado tirânico
porque os seres humanos são todos animais. Eles vivem em estado
de guerra perpétua, e a guerra só pára quando vem o chefão e
manda parar.
É como criança brigando. não há jeito de você fazer uma briga
de crianças parar se não for fazendo uma violência em cima de
ambos. Chega então uma violência maior que pára uma violência
menor. A rigor, existe tirania no mundo por causa disto.
Então, parta do princı́pio de que os seus julgamentos morais
estão errados. Se estão certos é por sorte, porque a quase totalidade
das vezes você estará equivocado.
Em primeiro lugar, o ato de julgar, em si já é errado. Por quê
você tem que ter uma opinião sobre o comportamento do outro? O
ato de julgar não é um direito seu.
Em geral você julga porque você quer manter um simulacro de
ordem cósmica baseado no princı́pio de que você é certo e o outro
é errado. Mas, isto é a própria desordem cósmica! Você só deve
julgar quando você é obrigado a fazê-lo, e dentro dos limites da
sua obrigação. P.e., um pai é obrigado a julgar o procedimento
do filho porque cabe a ele a educação do filho. Se o filho bate no
outro, ou rouba uma coisa, o pai tem que julgar, até que o filho
seja maior de idade. Bom, daı́, de fato, não é mais da conta dele.
Ele não precisa mais ter opinião nenhuma sobre o que o filho está
fazendo.
Se você é o gerente de uma firma você tem que julgar o pro-
cedimento dos empregados na medida em que ele afete a vida da
empresa, e só. Quando termina o expediente, acabou a necessi-
dade de julgamento.
O julgamento só é lı́cito se for obrigatório. Se você é juiz você
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existe uma lei para todos os seres humanos, e esta lei é o Corão.
Ou seja, o Estado que não esteja explicitamente baseado na
lei corânica é um Estado demonı́aco e que se coincide de um
muçulmano viver num Estado demonı́aco o dever primordial dele
é de destruir este Estado. É bem diferente das Testemunhas de
Jeová.
Os muçulmanos são 14 da população do planeta, espalhados por
quase todos os paı́ses. Se essa interpretação fosse levada à sério
teriam que cair todos os Estados do mundo.
Said Kutuk acabou morrendo enforcado por um governo
islâmico. Os fundamentalistas acham isto uma grande injustiça.
Mas, eu cortaria a cabeça deste sujeito, no ato. Por via das dúvidas
calaria a boca dele, na hora.
O fundamentalismo baseia-se fundamentalmente numa
interpretação polı́tica, literal, da idéia do Estado Islâmico.
Qualquer Estado que não seja explicitamente islâmico deve ser
destruı́do, ipso facto.
Said Kutuk coloca isto como uma obrigação que incumbe a cada
muçulmano em particular. Como um aspecto do (Jihad(?)).
A interpretação que se faz do Jihad é o seguinte: para o Jihad
ser decretado é preciso que toda a comunidade concorde. Isto é
o que está no Corão. Jihad significa esforço, mas o pessoal usa
como Guerra Santa. O Jihad é um esforço excepcional em prol do
mundo islâmico que justifica a matança e o martı́rio alheio, e de si
mesmo.
Então, teoricamente para se decretar a Guerra Santa é preciso
que a comunidade inteira aprove. Na verdade, qualquer um de-
clara Guerra Santa a qualquer hora.
A interpretação do Said Kutuk é que onde quer que haja um
Estado não há um Estado de Guerra Santa perpétua que não precisa
ser decretado explicitamente, ou seja, qualquer muçulmano que
esteja num paı́s não já está em estado de guerra
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Claro que você não pode esperar dos Estados e dos grupos soci-
ais um procedimento moral elevado como você pode esperar dos
indivı́duos, é evidente.
O Estado e a sociedade não tem obrigações morais. Esperar que
isto seja resolvido na esfera da legislação, isto é demência. Cada
lei que você fizesse sobre isto, você vai criar mais e mais injustiças.
não deve haver leis sobre estas coisas. Quanto mais detalhada é a
lei, pior ainda.
As pessoas sempre reivindicam que o Estado faça isso ou deve
fazer aquilo, mas nunca aparece alguém para perguntar: “E se o
Estado não cumprir, quem irá puni-lo?”. Ninguém pergunta isto.
Se você disser que o Governo — Presidente e Ministros — tem
que fazer isso ou aquilo, então você sabe quem tem que fazer e
sabe a quem punir.
No caso do menor abandonado, p.e., é o Estado, a sociedade e a
Famı́lia. O Estado não pode ser punido, a sociedade também não,
e a Famı́lia o menor não tem! Então, ele é um menor abandonado
mesmo. É o abandono oficial. É um cinismo inumano.
O que realmente me espanta é que entre as pessoas letradas in-
teressadas não apareça um para orientar a sociedade e dizer que
isso é inviável.
É claro que eu não tenho a esperança de que nós vamos mudar
esta coisa aqui. Eu tenho a esperança de que vocês cumpram a
sua obrigação apenas. Eu nunca tive nenhuma ambição de atuar
sobre a sociedade como um todo jamais. Aliás, eu acho a vocação
polı́tica um pouco ridı́cula. Para quem gosta é bom...
O simples fato de você na sua conduta colocar esses precei-
tos em execução, você começa mudar o mundo todo. Você cria
uma esfera de boa-vontade irredutı́vel. Isso, um filósofo tem a
obrigação de fazer porque se não fizer a sua cabeça vai parar de
funcionar. Se você tem a Razão, a Inteligência, então você trate
de ser inteligente e racional em primeiro lugar porque, aı́, elas te
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Mas isto tem que ser conquistado. Você passará a ter autoridade
integral. O homem foi feito para isso. Isso é uma constante da sa-
bedoria universal: cada homem está como se colocado no topo da
montanha cósmica. Ele está acima do cosmos. É uma espécie de
ligação direta com o universal. Mas ele só terá essa ligação direta
com o universal se ele não estiver escravo do particular. Então não
é preciso que ninguém me diga o que fazer, Deus me disse.
O mundo da fantasia, pela sua natureza, tem que ser absorvido.
não é uma opção, é uma absorção. Se o mundo lógico não está
completo, se ele não abarcar toda a sua experiência, sua visão do
mundo, sua filosofia, se ela for contraditória com a experiência,
então ela está falha.
Se a sua fantasia disse uma coisa e a sua lógica disse outra, então
a sua lógica descobriu a norma universal mas parece que você não
gosta dessa norma universal. Se você não gosta então você re-
almente não a conhece de maneira completa. É o conhecimento
parcial, puramente hipotético. Você não enxergou a evidência da-
quilo. Se você quer a evidência e ela lhe aparece, que objeção a
sua alma vai ter?
É a estória dos 7 dias da Criação: no sétimo dia, Deus viu que
era bom. Então, você aprova o real na sua totalidade, você vê que
é bom. Você não quer que ele seja de outro modo. A consciência
cósmica é exatamente isso. É você ter essa posição contemplativa
que aceita a realidade cósmica na sua totalidade, e faz de novo
para ver que é bom.
Uma maneira de você ficar fora desse conjunto é você achar que
você é sempre uma exceção. Você fica fora da ordem cósmica. Ela
não te afeta. O seu caso é sempre diferente.
Até você entender que você não é uma exceção, que você é
igualzinho aos outros e que existe mesmo uma lei cósmica para
todos, inclusive você, e que você aceita, ou não aceita.
Essa lei cósmica não pode ser vista por meios intuitivos. Ela
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mais do que você amava antes. Se você não tiver força para isso,
então se não fizer nada você vai ficar morrendo de raiva e acaba
descontando nos outros. Então você devolve a ofensa mas sem o
julgamento moral. P.e., o cachorro te dá uma mordida; você faz a
condenação moral do cachorro? não, você dá uma paulada nele e
pronto! Ninguém fica com raiva de ninguém.
Na sociedade moderna, hoje dia, o Estado arrogou a si o mo-
nopólio da vingança. Hoje você não pode bater numa pessoa mas
você pode entrar com um processo que irá atormentar a pessoa por
anos. Eu acho isso uma injustiça porque você poderia resolver o
problema a nı́vel pessoal.
Você pode expor uma pessoa à execração pública, estragar a
vida dela, porque quando o Estado entra na estória, ele não entra
pouco. P.e., se um sujeito te agrediu fisicamente, você agride ele
de volta e esquece a confusão. Vamos supor que o sujeito te dá
um empurrão e te derruba. Daı́ você mete um processo no sujeito.
Você tem idéia quanto tempo leva um processo na justiça? Quanto
você vai gastar de advogado? Você sabe o que isso vai representar
de impedimento na vida dele? Então, é melhor você da um tiro no
sujeito do que levantar um processo.
Então, quanto mais você tenta legislar e fazer tudo certinho,
mais injustiça você faz.
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de uma simples roupa que você vai comprar você está jogando
com um aprendizado que levou a sua vida inteira. Você tem uma
idéia do caro e do barato de acordo com a extensão do seu bolso
e com o bolso médio, ou seja, você pode comparar o que é caro
ou barato para você com o que uma outra pessoa considere caro
ou barato. Isso não é um julgamento intuitivo, isso é uma dedução
implı́cita a qual você faz muito rapidamente e parece intuitiva.
Aliás, essa é uma distinção que as pessoas habitualmente não
sabem fazer. Todo julgamento que você está habituado a fazer,
que você faz com facilidade, você o faz rapidamente porque você
percorre uma cadeia dedutiva com a velocidade de um computador
e lhe parece intuitivo porque você não se lembra de haver pensado,
mas isso é falso.
O intuitivo seria somente aquilo que sem qualquer prática ante-
rior, e não só sem qualquer necessidade de pensamento mas sem
qualquer possibilidade de pensamento, você reconhece a coisa.
P.e., a presença de uma pessoa; se tem alguém presente ou au-
sente isto realmente você não precisa pensar. Isto é um dado. não
tem nenhum elemento construı́do. Porém, num raciocı́nio banal
como esse, se você vai comprar caro ou barato, você está jogando
com dados que você acumulou durante a vida inteira, com milhões
de comparações que você já fez. É como se já tivesse um programa
automatizado, um raciocı́nio automatizado que pode nos enganar
fazendo-se passar por intuição.
Isso é exatamente o que acontece com os astrólogos quando eles
interpretam o mapa. Eles acham que aquilo é intuitivo quando na
realidade é um sistema classificatório que eles dominam.
Em qualquer avaliação então, haverá um ou vários sistemas nor-
mativos em jogo. Você deve explicitar esses sistemas normativos
para eventualmente poder corrigi-los.
Suponhamos que fosse a compra de um carro. Suponhamos que
o carro esteja dentro da sua disponibilidade financeira e que você
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uma: ou ele vai ter que recomeçar do zero, ou então o filho tem
que ter uma atitude purgativa, onde ele torrará todo o dinheiro
do pai para ele ficar pobre e daı́ recomeçar. Isto é uma verda-
deira demência! Por quê o pai trabalhou tanto se você teve que
recomeçar do zero?! Isto é uma loucura, mas está aı́ implı́cito nos
atos da sociedade.
Na medida em que o Brasil se encaixa na economia capitalista,
ele vai absorvendo esses valores de uma maneira muito rápida. O
que as outras nações levaram séculos para formar, o Brasil em 10
anos assimilou esse valor calvinista. Mudar de código em 10 anos
é de enlouquecer!
Isso tudo sem você contar as contradições internas ao próprio
código e que você tem que se adaptar a ele rapidamente, e mais
ainda, você conserva um pouco dos códigos anteriores, basta isso
para você explicar um pouco a salada que está aı́.
Tudo isso só para enfatizar a imensa importância que todos co-
nhecimentos, toda a esfera das humanidades, perceber, captar e
expressar sistemas normativos é a chave do negócio.
P.e., em História você explicar o que aconteceu, por quê em tal
época se fez isso ou aquilo, você só pode expressar isso em termos
de sistema de valores e normas que estavam ali implı́citos que ser-
viam, ou de motivo, ou de pretexto. P.e, o que D. João VI veio
fazer no Brasil? Como é que você vai explicar esta decisão de re-
tirar a sede do governo daqui para colocar lá? Qual é a explicação
real? Vir para o Brasil porque o Napoleão iria invadir o paı́s é a
causa, e não a motivação.
Por quê entre tantas coisas que eles poderiam fazer, eles esco-
lheram justamente esta? Este tipo de explicação histórica é dado
assim: aqui tem uma causa e se segue um efeito, logicamente,
mecânico, Napoleão vem vindo aı́ e nós temos que dar o fora.
Isso é um absurdo! Como se D. João VI fosse um equipamento
eletrônico que dada a causa, aperta o botão e pronto! Como se não
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existissem alternativas.
Mas é evidente que haviam alternativas e que houve uma es-
colha. Uma escolha polı́tica, evidentemente. D. João VI não foi
obrigado a vir para o Brasil, mas ele achou conveniente, pesando
todos os prós e contras.
Em função de todo um sistema de normas, qual era a norma
fundamental da polı́tica portuguesa? Fazer guerra quando a In-
glaterra quiser. Esta é a norma fundamental. Se você não en-
tende que há esta norma implı́cita, você não entende nada do que
acontece. Ao contrário, os acontecimentos parecem ter uma ni-
tidez lógico-mecânica que só existe na escola. Isto não é uma
explicação histórica, mas uma mentira histórica.
Toda história que se ensina nos colégios e que vicia as pessoas
é uma sucessão de causas e efeitos lógico-óbvias, mecânica. Pa-
rece que ali ninguém pensava, agiam como fantoches, onde dada
uma causa o efeito se seguia automaticamente. É muito simplório,
ridı́culo. Tem que tirar isto da cabeça, apagar.
Cada ato histórico humano foi um ato humano, feito não só por
um sujeito mas por muitos. Seria preciso entender os valores e
normas de um monte de pessoas para você achar a realidade final
de atos.
Se estamos acostumados a raciocinar segundo esses esquemas,
então não teremos nunca uma visão real do que aconteceu.
não tem nada pior do que dizer que a História não pode estudar
só os fatos, mas as causas e os efeitos. Mas, como causa e efeito?!
Isto quem estuda é a Fı́sica! você tem que estudar as causas, os
motivos, os valores, as intenções, os pretextos, e os resultados fi-
nais.
Então, causa e efeito virou uma espécie de fetiche. Mas, dadas
as causas, precisava fazer a Revolução Francesa? não tinham essas
mesmas causas num outro lugar? Por quê não teve uma revolução
na Espanha, ou em Portugal? Ou seja, surgiram as causas, apertou
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o sentimento dele para poder viver dentro dele. Todo mundo vive
com base nisso e não poderia viver com base na crença cética um
único minuto.
Então é como se a crença cética fosse uma armadilha, um jogo
de palavras, do qual você não sabe sair. Você não tem resposta
para a objeção cética, no entanto, você continua vivendo como se
essa objeção não existisse, ad hoc, você dá uma resposta na esfera
prática, você prova o movimento, andando, mas você não tem o
fundamento teórico do conhecimento.
Isso é a mesma coisa que dizer que não existe o conhecimento
teórico, só existe o conhecimento prático, e que todas as Ciências,
no fim das contas, só terão fundamento prático.
Daı́ é que vai surgir, 2000 anos depois, a idéia do pragma-
tismo, que A prova da verdade da Ciência não está na esfera da
verdade propriamente dita mas na sua praticidade, que a Ciência
se demonstra verdadeira quando ela consegue produzir certas
transformações e fim de papo!
Mas isso aı́ é sair do Leão e chegar até o (cão(?)), quer dizer, a
Ciência surge da pretensão de um conhecimento objetivo e, passa-
dos 2000 anos, elas reconhecem que elas não são nada mais do que
uma espécie de convencionalismo que funciona. Era assim que a
coisa estava mais ou menos no tempo de Husserl, e para quem não
estudou Husserl profundamente, está assim até hoje.
Ou seja, a confiança que as pessoas têm na Ciência na esfera
prática, a essa confiança não corresponde uma correspondente fir-
meza teórica. Então você vai ver que no fundo a crença que você
tem na Ciência é uma crença do tipo dogmática, “É sim porque
sim!”
É sim porque funciona, mas esse funcionar também pode ser
uma mera impressão de que funciona mesmo porque são apenas
representações suas. Então, nesse sentido, não existiria propria-
mente nenhum conhecimento teórico, só existem idéias.
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20 Preleção XX
A técnica lhe fazer uma série de coisas, mas de fato não te dão o
conhecimento de nada. O resultado final disto é que a Ciência aca-
bará sendo reduzida apenas a uma simples técnica, como Ciência
normativo- técnica, ela baixa normas, estabelece convenções, e faz
as coisas funcionarem de algum modo, mas você não tem propria-
mente conhecimento de nada.
O nosso mundo atual, a sociedade atual, o funcionamento de
tudo, depende da Ciência evidentemente. Toda tecnologia de-
pende da Ciência, e nós dependemos da tecnologia 24 horas por
dia.
Então, nós colocamos toda a nossa confiança na eficácia de uma
tecnologia que se funda numa Ciência cujos fundamentos nós des-
conhecemos completamente e que de fato ela não os têm.
Isso aı́ é um contraste muito grande entre a confiança cada vez
maior que nós conferimos à Ciência e a consciência que nós temos
de que ela não tem fundamento, e de que ela é só apenas uma
tecnologia. Tudo isso vem do fato de que a objeção cética jamais
foi enfrentada seriamente.
Diz Husserl que a primeira tentativa de enfrentar isso foi feita
por Descartes, com a idéia do cogito. Descartes foi o primeiro
que tentou encontrar o ponto arquimédico, o ponto firme do qual
pudesse sustentar a construção do mundo do conhecimento.
A segunda tentativa teria sido feita por Kant, o qual na ver-
dade acaba por fim dando razão ao adversário, porque Kant foi
dizer que só existe um conhecimento mais ou menos na esfera
do fenômeno, ou na esfera do puro formalismo, ou nós conhece-
mos puras relações lógicas, que não existem na verdade, ou nós
conhecemos a idéia de fenômeno, mas nunca a objetividade pro-
priamente dirigida à coisa em si.
Ora, a objeção cética, diz Husserl, consiste em última análise
em dizer que tudo aquilo que você conhece lhe aparece de certa
maneira, p.e., você tem percepções sensı́veis, porém as percepções
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sensı́veis nunca são iguais, Você supor as pessoas que você está
acostumado a ver, mas, cada vez que você as vê estavam num lugar
diferente. Então, estavam vestidas e aparentemente não estavam
fazendo as mesmas coisas. Se você somar tudo o que você viu
nelas, você não compõe elas. Soma todas as visões que tem de
uma pessoa, não basta para formar uma pessoa inteira. Então você
supõe que esses seres têm uma unidade e que essa unidade está
por trás de todas as percepções que você teve delas. Essa unidade
é que seria a realidade mesma.
Ora, a realidade é precisamente tudo o que você não conhece, e
o que você conhece é precisamente o que não é realidade. Este é o
ponto da objeção cética.
As coisas só nos são conhecidas à medida que nos aparece, mas
o que nos aparece não são as coisas, são apenas aspectos das coi-
sas.
Para nós só o que aparece é o que não conhecemos, agora, veja
que nós sempre supomos por trás dos vários aspectos dos vários
aparecimentos, das várias manifestações, supomos uma unidade
mas não a conhecemos. Essa unidade é que é a tal da “coisa em
si”.
Quer dizer, 2000 anos de Filosofia não bastaram para resolver
esse problema. Mas não é que não bastaram, na verdade eles tenta-
ram resolver, talvez baseado na idéia de que não dava tempo, p.e.,
Aristóteles estava tão ocupado em desenvolver as Ciências que não
parou para pensar no problema do fundamento das Ciências.
[ Zé: não existe a “coisa em si”, ou não é possı́vel conhecer a
“coisa em si”? ]
Ou uma coisa, ou outra. Ou o objeto propriamente falando nem
sequer existe, e o mundo é apenas uma sucessão de aparências sem
nenhuma consistência em si, ou então se essa objetividade existe
ela não nos é cognoscı́vel e nós só conhecemos apenas aparências.
Então é por isso mesmo que o homem é que deturpa as coisas,
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objeção cética continua aı́ e parece que ela é tão eterna quanto à
própria Filosofia e quanto a própria Ciência, e o fundo de dúvida
permanece.
Isto quer dizer que todo o mundo do conhecimento que foi cons-
truı́do por 2000 anos ainda tem esse ponto preso, ele tem uma
espécie de pecado original, esta marca, esta cicatriz que não foi
apagada até hoje.
Então, o velho problema do fundamento absoluto do conheci-
mento teve que ser recolocado, e na verdade só quem recolocou
mesmo foi o próprio Husserl. Mesmo Descartes, ele se detém
muito pouco nesse assunto, as verdadeiras experiências de Des-
cartes eram pelas Ciências fı́sicas. Ele faz aquele mergulho, num
exame introspectivo, para encontrar o fundamento absoluto e em
seguida trata de fazer outra coisa, exatamente como Aristóteles.
Descartes passou a vida estudando a Fisiologia, a Fı́sica, Ótica,
etc, que era o que verdadeiramente o interessava. Então, o pro-
blema do fundamento do conhecimento que ele trata no livro
“Meditações Metafı́sicas” é uma introdução ao saber, é só uma
introdução.
É claro que ele lança um dos fundamentos importantes, mas ele
não leva esse problema até o fim. Na hora que ele encontra a teoria
do cogito — cogito ergo sum — ele se dá por satisfeito e vai cuidar
de outra coisa.
Mas o cogito ergo sum se é um princı́pio à resposta, ele não é
uma resposta extensiva. Tanto é insuficiente que nós poderı́amos
perguntar, “Do Eu que você descobriu com certeza absoluta — o
Eu existe absolutamente sem dúvida — como é que você faz para
deste Eu, fundamentar o mundo?”
Se o Eu é fundamento, é seguro, então certamente você pode
ter conhecimento do Eu, mas em quê o conhecimento do Eu fun-
damenta as coisas? Como é que faz Descartes? Ele apela para
Deus!
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jeito, até aı́ ninguém pode negar que eles tenham razão. Apenas
com base nesta observação eles diziam que se tudo é conhecido
por um sujeito, nada é conhecido para além do sujeito, que o su-
jeito só se conhece a si mesmo, e portanto o conhecimento não
tem objeto. Portanto, entre o conhecimento falso e o conhecendo
verdadeiro não vai existir diferença alguma.
Porém, o ponto de partida da objeção é verdadeiro, o conheci-
mento está no sujeito mesmo, porque tudo o que eu conheço é uma
aparência, é algo que aparece a mim.
Então, a pergunta fundamental da Fenomenologia é como se
fosse a Ciência do aparecer, fenômeno é a coisa aparecida. Será
que no modo de aparecer ante à consciência já não existem os
traços distintos do verdadeiro e falso?
Como que as coisas me aparecem? Uma fantasia aparece
do mesmo jeito que uma percepção sensı́vel? A percepção
sensı́vel aparece do mesmo jeito que uma construção lógica? Uma
evidência aparece do mesmo jeito que uma probabilidade? Como
é o modo de aparecimento? O quê eu percebo exatamente quando
eu percebo isto aqui? Quando eu percebo uma coisa como ver-
dadeira, esta percepção da coisa como verdadeira não é essencial-
mente distinta da percepção de mera probabilidade? É ali que tem
que ser (procurado(?)) o objeto.
Longe de tentar tirar a questão de dentro da consciência e apelar
a uma suposta “coisa em si”, que está fora da consciência, Hus-
serl acha que é na própria consciência que se tem que encontrar o
fundamento da objetividade. Porque toda tentativa de você dizer
que o conhecimento objetivo é aquele que tem um objeto fora da
consciência vai esbarrar sempre na mesma objeção.
Então, deve existir uma consciência de veracidade que é es-
pecificamente distinta de outras formas de consciência. Esta
consciência de veracidade é o que ele chamava de evidência.
Quando você compara uma percepção sua com o objeto da
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+----------------------------+
| CONSCIÊNCIA TRANSCENDENTAL |
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|
| +---- YANG
|
+---------------------------------------------------------
| +--------+ +-------------+ +-----------------------
| | OBJETO | | CONSCIÊNCIA | | CONSCIÊNCIA REFLEXIVA
| +--------+ +-------------+ +-----------------------
| | | |
| +-----+ +--------+ +----------------+
| | Obj.| | Consc. | | Consc. Reflex. |
| +-----+ +--------+ +----------------+
| | | |
| +-----+ +--------+ +----------------+
| | Obj.| | Consc. | | Consc. Reflex. |
| +-----+ +--------+ +----------------+
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| | Obj.| | Consc. | | Consc. Reflex. |
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porque tem preguiça. E você sabe que você pode fazer isto porque
você tem a tal de Consciência Transcendental, que transcende não
só a esfera dos conhecimentos mas do conhecimento humano em
geral, toda essa cultura, toda essa Ciência, toda a História, tudo o
que aconteceu, toda a esfera da existência. Agora, você sabe que
tem algo em você que está fora da existência ...
Se você começa a ter dúvidas e você se apega a crenças para
escapar da dúvida, então você é apenas um dogmático que está
discutindo com o cético, quer dizer, você ainda está dentro da es-
fera das dúvidas individuais humanas.
Se você levar a dúvida até o fim você vai ter que chegar, olha,
duvidei tudo, neguei tudo, sobrou o quê? Duvidei até o fim, já
botei o Deus de Descartes entre parênteses também, nós podemos
fazer a suspeita de que Deus é um gênio mau, até isso você coloca
em dúvida, você coloca o universo inteiro e mais o que está para
fora do universo, o infinito, o próprio Deus, você colocou tudo; eu
digo, bom, tudo isso para quê?
Para que você tenha a Consciência Transcendental. Agora, você
não se lembra dela, se você (não invade ali(?)) você não poderia
fazer a dúvida nela.
Isto aqui é para vocês entenderem que tipo de coisa é o homem.
O ser humano de fato é um prodı́gio, é uma coisa inexplicável.
Deus fez um negócio ...(?)... totalmente sub-utilizado.
Quem perceber isto aqui vai falar, “Mas o homem é isso aı́?!”,
essa horda de pessoas achando que dá mesmo para elas viverem
uma vida centrada nos seus interesses pessoais; a vida não dá.
Você não pode se identificar com a sua pessoa, não dá para você
se identificar com ela.
Agora, pare para pensar o seguinte: se você tem isto aqui, e
no entanto você vira as costa para isto e vai tratar apenas da sua
vida pessoal, eu digo, uai!, você virou as costas para aquilo que te
sustenta!
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sabendo por espelhismo, você não está centrado nela, você está
colocado embaixo e está recebendo.
[ Olavo desenha um esquema no quadro e faz comentários sobre
ele. ]
+----------------------------+
| CONSCIENCIA TRANSCENDENTAL |
+----------------------------+
|
+--------+
| FORMAS |
+--------+
|
+-----------------------+
| CONSCIENCIA REFLEXIVA |
+-----------------------+
| | |
|
+--------+ | +--------+
| OBJETO --|-- SUJEITO |
+--------+ | +--------+
|
|
+----------------+
| Objeção Cética |
+----------------+
Então, temos o OBJETO e o SUJEITO; existe a CONSCIEN-
CIA REFLEXIVA; da consciência reflexiva pode surgir a Objeção
Cética; é a reflexão sobre a relação Sujeito — Objeto que produz
a objeção cética.
Porém, se você não se contenta com a objeção cética e con-
tinua, você chega à idéia das FORMAS de objeto, das formas
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sujeito ao mesmo tempo, ele está sempre dividido entre a sua ob-
jetividade e a sua subjetividade, entre aquilo que ele é e aquilo que
ele sabe, sendo que você é um monte de coisas que você mesmo
não sabe.
Você escapa disto aqui subindo para a consciência reflexiva, a
totalidade das formas da consciência reflexiva e a totalidade da
cultura.
[ João: existe ainda algum cético? ]
Tem um monte! Existe uma forma pós-Husserliana de ceti-
cismo que é uma espécie de ceticismo de desespero total, que é
uma recusa ativa de um sujeito que escreveu um livro, “A Tirania
do Logos”, que está muito em moda na França... porque isto aqui
(livro do Husserl) é a cruz mesmo.
Se você não gosta disto, bom, então você tem que lutar contra
a tirania do Logos, então não tem consciência reflexiva, então não
tem universalidade, não conhece coisı́ssima nenhuma, nem mesmo
a objeção cética você pode fazer.
Então, só o que lhe resta é você arrancar o seu próprio cérebro,
pegar os miolos de dentro do crânio e passá-lo numa máquina de
moer carne e dar para o gato comer; se o gato ainda quiser comer
uma porcaria dessas ... Você caiu para o infra- animal, é diabólico
mesmo, está abaixo de gente, um bicho superaria.
O quê você acha de um sujeito que faz uma máquina de
suicı́dio? Tem a máquina e o manual do suicida!
Veja, se a inteligência não pode mais ter universalidade, não
pode sequer fazer a objeção cética, mas no entanto você não gos-
tou do Logos, rejeitou completamente, não sobrou nada, nem ce-
ticismo mais, você não pode nem falar contra, então só me resta
falar o non-sense.
Mas se refere o jus sperneandi, o direito de espernear, você pode
ficar louco, pode meter uma bala na cabeça, pode fazer o que você
quiser, mas eu acho mesmo que a Consciência Transcendental é
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o Juı́zo Final, na hora que você chegou ali daı́ não tem mais para
onde ir.
Quer dizer que esse é o ponto final que às vezes separa real-
mente o carneiro dos bodes. Agora, se você tentou atender esses
bodes, eu digo, você não vai poder sequer se disfarçar travestido
de um disfarce de filósofo cético porque nem isso você pode ser
mais. Não dá nem para você falar contra, é horrı́vel, não é?
Se o sujeito está imbuı́do de má-vontade, eu digo, vai ser muito
difı́cil você encontrar um setor onde você possa expandir a sua má-
vontade, não tem lugar nem para ela.
É por isso que na filosofia francesa o impacto da Fenomenologia
foi tal que pegou lá uns caras e esmigalhou com o cérebro deles,
acabou.
O indivı́duo que está imbuı́do de uma má-vontade contra o ho-
mem, contra o conhecimento humano, e no entanto ele pode ter
interesse em Filosofia, então ele vai, vai, vai, estuda bastante, até
que ele chega ao Husserl e vê que dá para dominar essa coisa. Se
na hora que você domina você não gosta, então só lhe resta ficar
doidinho.
Eu acho mesmo que a Fenomenologia é uma mensagem divina,
é um poder divino isso aı́. Quem entra por ali não sai mais, não sai
porque este é o caminho para cima, para cima e para o todo. Para
fora do todo não tem nada.
Então, isso não é uma coisa que você possa explicar facilmente
a um recém-chegado, precisa de uma série de condições, de uma
caminhada toda para você poder chegar ao ponto de dizer tudo o
que eu disse hoje.
Então, primeiro assegurar que o indivı́duo tem a boa-vontade do
conhecimento, se tiver má-vontade não tem jeito, nenhum canal,
nenhuma saı́da por onde ele possa ainda terminar. É uma espécie
de Juı́zo Final mesmo.
Se o sujeito diz, “Mas a verdade não existe!”, mas isso aı́ é a
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baixo.
Por cima não porque você conta com a Consciência Transcen-
dental; por baixo não porque daı́ você entrou na obediência hu-
milde, isso aı́ o cara já é ignorante mesmo, é o néscio. Você não
questiona nada, você acredita, você tem a fé ingênua e você obe-
dece e faz o que lhe mandam.
Você nunca questiona coisa nenhuma, não consegue juntar duas
idéias para poder questionar, você não percebe nem que existe ob-
jeto, nem que existe sujeito, você está na simples obediência ro-
tineira, secular, mas isso é somente por total ignorância; e você
começou a aprender certas coisas, já começou a ter dúvidas, você
já saiu disso. Então, agora você não mais pode ter ...(?)..., ou para
cima, ou você vai para baixo meio manco.
Então, a proposta para a via intelectual, a via de estudos, é isto
aqui. É a atribuição da totalidade essencial das formas, a qual ele
podendo exprimi-la permanecerá insatisfatória, eu digo, você vai
ter um algo mais, mas esse algo mais só você mesmo pode dar, a
cultura não pode te dar.
Na verdade, a sua subida e descida, entre consciência reflexiva
e objeção cética, ela passará a ser entre as formas e a Consciência
Transcendental. você saiu do mundo da dúvida, você está entre
conhecimento e consciência.
Quando eu falei subida e descida inicialmente era entre
consciência reflexiva e objeção cética. Você está preso nessa cruz,
sujeito-objeto, consciência reflexiva-objeção cética.
Então, tem hora onde você vivencia os seus próprios estados,
experiência sensı́vel, etc; tem hora que você está absorvido no
mundo das formas; tem hora onde você tem a consciência refle-
xiva, p.e., quando você vem a esta aula e absorve o que foi repro-
duzido, etc, etc; e tem hora que você cai na objeção cética, você
cai no negativismo total. A vida é isto aqui, é este sobe-e-desce.
Uma vez que você captou isto aqui, Consciência Transcenden-
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20 Preleção XX
tal, você não vai ficar lá evidentemente, você vai descer para o
mundo das formas, que é o conhecimento humano.
Então, a subida e descida não desce mais até a objeção cética,
a objeção cética já está engolida, você chutou ela para cima, ela
virou Consciência Transcendental.
Então, a sua subida e descida é entre o mundo da cultura humana
e o mundo evidente do gênio. você continua tendo um sobe-e-
desce mas é numa outra escala. Neste mundo aqui, acabou, você
já não tem mais.
[ Alexandre: quando o sujeito chega a esse patamar da
Consciência Transcendental é aı́ que ele se torna o causador de
efeitos na vida.. ]
Se quiser. É aı́ que o sujeito escolhe se ele vai ser um sábio, ou
se se retira do mundo. Ou se ele vai para o mundo para ser o trans-
formador do mundo. Isto aqui você tem o resto da sua vida para
você se decidir. ...(?)... esperou 50 anos para resolver o assunto,
não tem nenhuma urgência nisso, você pode passar muitos anos
com esta dúvida.
É o problema Hamletiano, o quê é mais brusco? você se referir
na sua certeza ı́ntima como você enfrenta o erro inicial. Hamlet é
permanentemente ...(?)... e está na fase da indecisão, não encon-
trou a sua vocação final ainda. Hamlet não está errado, ele está
no certo nas duas hipóteses, o protótipo do homem bom, correto,
indivisı́vel porque entende tudo.
Claro que nós podemos interpretar num sentido aqui para baixo,
dizendo que Hamlet é um indeciso. Mas, eu digo, indeciso no
plano da ação, preste bem atenção! No plano da prática ele era
muito indeciso, ele está é quanto ao (uno global(?)) das coisas,
portanto não se trata de um problema de indecisão psicológica, e
sim de decisão espiritual.
Então, isto quer dizer que se tomar uma consciência desse tipo
de proposta o teu esforço tem que ser daqui para cá, subir da
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17 de abril de 1993
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psicologismo.
O psicologismo é a teoria de que o fundamento teórico da lógica
é de ordem psicológica, ou seja, a lógica é uma Ciência, ou arte,
uma técnica portanto, do pensamento coerente.
Esta técnica se basearia nas leis naturais do pensamento. Então,
a forma do pensamento correto, do pensamento coerente, seria
uma dentre todas as formas do pensamento natural.
O pensamento, quer correto, quer incorreto, ele se dá através
de juı́zos, conceitos, proposições, etc, etc, os quais são fenômenos
psicológicos. Ora, quem é que trata dos fenômenos psicológicos?
É a psicologia.
Então, o fundamento teorético da lógica seria, em última
análise, a psicologia, que estuda as leis do pensamento. Isso é
a teoria psicologista.
Daı́, eu fiz um parênteses e decidi retornar, falar uma coisa na
qual Husserl não toca neste livro inteiro, que é o problema da
dúvida cética, porque ele deixará claro, não só neste capı́tulo como
ao longo de todo o livro, que o psicologismo é uma forma de ceti-
cismo. Isso aı́ eu estou adiantando o que ele vai falar mais tarde.
Com relação ao ceticismo mesmo ele nada fala no livro, só men-
ciona que o psicologismo é uma forma de ceticismo.
É uma forma de ceticismo porque a psicologia é uma Ciência de
experiência, é uma Ciência dos fatos, ela observa, e por indução
vai tentando tirar dali as leis do pensamento.
Como Ciência experimental ela se baseia no pressuposto de que
a experiência é uma fonte de conhecimento, e de que a indução é
um processo válido.
Ora, a validade da experiência e a validade da indução são leis
lógicas, não são? De onde a lógica tirou essas leis? Caso o fun-
damento da lógica seja psicológico, a lógica só pode ter usado o
mesmo procedimento que a psicologia usaria, p.e., o procedimento
experimental.
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Ele pergunta por quê a dúvida cética durou tanto tempo. Uma
idéia que é totalmente estúpida não poderia ter durado 2000 anos.
Seria uma espécie de doença. Então, se durou 2000 anos alguma
utilidade deve ter. Qual é a utilidade?
Husserl constata que essa dúvida cética jamais foi respondida
seriamente. Por quê? Porque ela é uma dúvida paralisante, é uma
dúvida que, se levada a sério no campo da prática, resultaria na
paralisia geral do conhecimento, na paralisia geral das Ciências,
e como os filósofos tiveram sempre interessados em desenvolver
as Ciências, os vários conhecimentos, não esperaram até que a
dúvida cética estivesse resolvida.
Dito de outro modo, para falar como Hegel, eles não ficaram à
beira da piscina tentando provar teoricamente a possibilidade de
nadar, eles entraram na água e começaram a nadar.
Isso quer dizer que eles reagiram de acordo com o (são(?)) en-
tendimento humano, de acordo com o entendimento comum.
Nós sabemos pela prática que o conhecimento existe, sabemos
que o conhecimento é possı́vel de algum modo, tanto que acredi-
tamos ter algum conhecimento.
Ora, mas a fé na eficácia do conhecimento não é a mesma coisa
que uma certeza teorética do fundamento absoluto desse conheci-
mento.
Então, a Ciência foi se desenvolvendo com fundamentos por
assim se dizer, pragmáticos, p.e., Aristóteles parte de um pressu-
posto de que a observação ensina alguma coisa e começa a ob-
servar, coletar dados e anotar o que vai encontrando, e assim ele
funda a Biologia, a Psicologia, a História, etc, etc.
Essas Ciências que surgem a partir da lógica de Aristóteles,
e que são quase todas as Ciências que nós temos hoje, Husserl
chama de Ciências Dogmáticas, no sentido kanteano da palavra
dogmático.
Dogmático é um saber que não se questiona criticamente sobre
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dizer.
Porém, isso aı́ é uma coisa que Husserl não diz mas que
eu também estou acrescentando, havia uma espécie de má
consciência no fundo das Ciências de que o fundamento das
Ciências então era meramente pragmático.
Quando chegou no século XIX surge então o pragmatismo as-
sumido, mais ou menos no mesmo tempo em que se desenvolveu
a doutrina psicologista, vai surgindo essa filosofia pragmática, e o
pragmatismo é uma teoria segundo a qual o fundamento do conhe-
cimento cientı́fico é a mera prática, é o proveito prático, a prova
prática, então o conhecimento que se revela útil e capaz de produ-
zir determinados efeitos é tido como conhecimento verdadeiro, e
isso basta para os fins da Ciência.
Charles Pierce, que hoje é um filósofo que está muito em moda,
e que é o pai do pragmatismo, ele diz que o sentido de um conceito
está unicamente nas conseqüências práticas que dele decorram.
Porque um conceito, como ele diz, é um plano de ação, se você
pensa que um quadrado tem 4 lados isso não quer dizer nada mais
senão que quando você desenhar um quadrado você o fará com 4
lados.
De fato, todo conceito tem esse lado pragmático, quer dizer,
para fins de estudo e de avanço das pesquisas basta você saber que
quando você vai fazer um quadrado ele tem que ter 4 lados.
Agora, se você perguntar, “Mas o quadrado em si tem 4 lados?”,
essa pergunta para a esfera da Ciência não tem sentido. Isso quer
dizer que a Ciência foi abandonando, primeira implicitamente, de-
pois explicitamente, a questão dos seus próprios fundamentos, até
chegar ao ponto de que, com o pragmatismo, a questão dos funda-
mentos é abandonada explicitamente.
O pragmatismo já declarará que os fundamentos ontológicos do
conhecimento é uma questão que não tem sentido, que o que inte-
ressa é fazer Ciência e para isso nós nos orientamos pelo sentido
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então, se você não monta o gato, mas monta o cavalo, então o seu
conceito está certo! Quer dizer que a prova do conceito é ação
prática que se desenvolve com base nele; se esta ação funciona,
faz sentido, então o conceito faz sentido.
Porém, acontece que esse pessoal vai mais longe e diz o se-
guinte: o conceito não tem sentido algum além do uso prático, eu
digo, ôpa!, aı́ complicou!
Quer dizer que tudo o que eu sei entre a diferença entre cavalo
e gato é que eu não devo montar no gato. E não interessa saber se
esta diferença é objetiva, se está no cavalo ou está no gato, ou se
é apenas uma convenção útil que eu determinei. Então aı́ você cai
novamente no non-sense.
Então, a partir do psicologismo e do pragmatismo teórico, não o
pragmatismo pragmático, você vai chegar numa série de situações
que representam uma negação da possibilidade da Ciência e já
não apenas a um desinteresse pelo problema do fundamento. Aı́
é a negação dos fundamentos mesmo. As próprias descobertas
cientı́ficas vão produzindo efeitos que negam a possibilidade da
mesma Ciência.
[ Stella: eles não se dão conta?... ]
Claro que se dão conta! Isso aı́ é que nem aquele juiz de Cam-
pinas, que eu vi uma vez interrogando uma testemunha e disse,
“Eu sei que a senhora está mentindo, mas, Ah! eu não sou pago
para isso, fica assim mesmo, diz aı́ o que a senhora acha e eu anoto
aqui.”
É assim que o cientista leva as coisas, “Eu sei que isso tá mal
arrumado, mas, Ah!, que se dane! Isso não é problema meu!”;
ele dá uma solução pragmática. Só que com isso o nego continua
fazendo pesquisa e tirando conclusão sem ter fundamento algum.
Isso aı́ se transfere para a própria lógica; eu acho que a lógica
nunca esteve tão desenvolvida quanto hoje. Depois que inventa-
ram a tal da lógica matemática, você faz lá uma seqüência dedutiva
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21 Preleção XXI
com todos os [passos, tudo certinho, sem nenhum erro, você raci-
ocina perfeitamente, de fato como um computador, só que você
não sabe se isso tem nenhum fundamento. Se não tem nenhum
fundamento, que diferença faz raciocinar logicamente, ou não?
Vejam o quê que aconteceu que muitos homens de Ciência
começaram a ter interesse por negócios mágicos! Eles, “Ah!, va-
mos experimentar de outro modo ...”, p.e., o livro do Paul Feyra-
bend, que se chama “Contra o Método”; é um livro cético, e que
é um dos livros mais famosos em Metodologia que tem aparecido,
e ele diz, “Olha, o método cientı́fico é tão bom quanto qualquer
outro, é tudo mais ou menos uma questão de convenção. A gente
pode usar um raciocı́nio mágico- analógico, mágico- simbólico,
pode usar o cientı́fico, o que funcionar tá bom!”
Agora, o problema é o seguinte: qual é o critério desse “funci-
onar”? Como é que você sabe se funcionou? E tudo o que esse
sujeito fala contra o método cientı́fico é tudo sério.
Agora, quando você pergunta, o quê você propõe no lugar?
Bom, aı́ o cara é mais louco que os adversários dele. Então os
caras da metodologia são simplesmente terroristas, eles querem
estourar tudo logo de vez.
[ João: e ele é o quê? ]
De formação ele é um matemático, astrônomo, coisa assim.
E ele, p.e., mostra a importância do argumento retórico dentro
da Ciência. Ele diz, “Ah!, se funcionar ...”, usa um argumento
retórico.
Ele está muito na moda entre os caras que são contra o raciona-
lismo universitário. Ele não aceita nada e aceita tudo, vale tudo.
Claro que isto é bom do ponto de vista de você quebrar o exclu-
sivismo dos caras que idolatram o método cientı́fico, o método de
Claude Bernard, e acham que só existe aquilo lá.
Essa tradição que vai de Bacon até Claude Bernard também é
uma loucura porque ela acredita que tudo aquilo que você não pu-
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der provar por aquele método, não existe, o que botaria eles numa
situação difı́cil porque pelo método cientı́fico não se pode provar
nem que eles existem.
Você não pode, pelo método cientı́fico, provar que você existe,
não tem nenhum jeito, porque você é um caso singular, e você não
admitir a validade da intuição no equilı́brio individual, então você
não pode provar nem mesmo que você existe, então para quê vai
servir a estatı́stica, a indução, etc, etc? Como é que você pode
fazer indução se não tem fato? Como é que você pode conhecer o
fato se não for pela intuição?
Então, existe todo um cientificismo exclusivista que é tão ...(?)...
que não vale a pena discutir, porém, as objeções que se levantam
contra ele às vezes são mais desastrosas ainda porque o sujeito
destrói aquele pouquinho que tem ali no método cientı́fico e ele
não tem nada para por no lugar.
O Bernard é um defensor da Astrologia, ele acha que a Astro-
logia vale. As crı́ticas que ele faz às rejeições da Astrologia são
muito pertinentes porque ele mostra que tudo o que os cientistas
têm oposto à Astrologia é tudo logicamente inválido e que na ver-
dade qualquer restrição que a Ciência coloque a qualquer tipo de
conhecimento, todas essas restrições são inválidas.
De fato são inválidas, bom, mas então, agora, como é que a
gente faz? Ele não sabe, e como a gente também não sabe então,
por enquanto, a gente vai usando um pouco de tudo! O quê é isso
aı́? É uma solução pragmática.
Pragmática é quando você não tem a solução teórica você dá
uma solução prática! P.e., quando você “cola” numa prova, o quê
é isso? É uma solução pragmática; você não sabe mas você copia
o que o outro escreveu, você não sabe o por quê, você não tem o
fundamento, você não sabe fazer aquele raciocı́nio, mas funciona
como se fosse verdade. Isto é pragmatismo!
Isto quer dizer que com o psicologismo, pragmatismo, etc, etc,
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21 Preleção XXI
sem falar de todas essas idéias mais modernas tipo, Tao da Fı́sica,
etc, que no tempo do Husserl não tinham ainda, mas cujo advento
ele já previa, com tudo isso aı́ você vê que a Ciência não tem mais
validade do que a profecia do Chico Xavier, não tem mesmo.
Não há nenhum meio de você oferecer um fundamento pelo qual
você afirma a maior validade teorética de um desses conhecimen-
tos em relação ao outro, então é tudo uma questão de prática!
Ora, a prática depende do que a maioria das pessoas fazem, quer
dizer que se a maioria das pessoas acreditar em Ciência, ótimo, se
a maioria das pessoas acreditar no Chico Xavier, quem sobrevive
é o Chico Xavier.
Então você cai no relativismo total, e o relativismo é o ceticismo
propriamente dito. Se tudo é igual, tudo vale a mesma porcaria,
isto é, nada! É o cambalatio, é o vale-tudo.
Se todo conhecimento se equivale então não existe mais uma
diferença de fundamento entre os conhecimentos mais válidos ou
menos válidos, não tem jeito de você estabelecer, então vale tudo.
Ora, como a sociedade, p.e., americana está acostumada a acre-
ditar na Ciência então a Ciência tem prestı́gio, mas se amanhã a
maioria mudar e decidir acreditar em algo do tipo Chico Xavier,
uai!, não existe modo de você opor uma barreira.
P.e., por quê esse negócio de bruxaria, feitiçaria, está tudo en-
trando nas universidades? Porque elas sabem que elas não têm
autoridade cientı́fica suficiente para barrar essas coisas! Claro que
tem uns sujeitos de estilo antigo que não gostam disso, mas esses
também não podem oferecer senão um argumento de gosto.
Isto é que é a crise das Ciências, isso aı́ significa que a idéia de
Ciência acabou! E o que quer que sirva para produzir um efeito,
vale!
É claro que na prova pragmática os cientistas-feiticeiros vão
acabar perdendo, e no fundo a esperança do pragmatista é, “Deixa
eles falarem o que quiserem, deixa eles lecionarem bruxaria aqui
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Mas esse mesmo sujeito tem a idéia de um Deus, e para ele su-
por que todos os conhecimentos que ele tem, percepções sensı́veis,
memórias, etc, estejam todos errados, isso só seria possı́vel se um
gênio maligno, se um Deus malvado, tivesse colocado todas es-
sas impressões, percepções, nele para enganá-lo, e essa hipótese é
absurda, então eu rejeito.
Então, o sujeito em última análise volta para o mesmo negócio
aristotélico que é a prova do absurdo da tese contrária, e não a
prova positiva da sua própria tese!
Quer dizer que volta à rejeição liminar, Aristóteles rejeitava pre-
liminarmente, e Descartes rejeita liminarmente; preliminarmente é
antes de chegar na porta. Descartes rejeita na porta, e rejeita por-
que para aceitar esse cosmos nós precisarı́amos acreditar no gênio
mau, no gênio maligno. E a hipótese do gênio maligno é assusta-
dora e moralmente absurda, inaceitável. Então, Descartes ataca a
questão mas um pouco foge dela também.
Husserl então, preocupado com a crise das Ciências, isto é, com
a penetração do absurdo dentro da esfera da própria Ciência, e
com a sobrevivência e o fortalecimento da dúvida cética, diz que
tem que dar um basta final, ou seja, não basta refutar logicamente
o ceticismo porque se você refuta uma forma de ceticismo, pode
surgir outra, e outra, e outra, e nós vamos ter que ficar o tempo todo
fazendo truques lógicos para refutar os truques lógicos céticos.
Então, ele diz, e essa é a grande descoberta, que a própria
objeção cética fornece esta prova. Então, ele, fundando a
contribuição de Descartes à parte de validade que existe na dúvida
cética, e admitindo esta dúvida como uma dúvida filosoficamente
válida, ele chega à conclusão do seguinte, que se a consciência
cósmica negar a totalidade dos seus conteúdos é porque ela trans-
cende esses mesmos conteúdos.
Ora, é ...(?)... a idéia de objetivo e subjetivo, é um conteúdo
da consciência, p.e., o cético diz, “Todos os seus conhecimentos
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escapa da realidade, você diz, “Isso aı́ foi você quem inventou!
Você está inventando!”, não é assim?
Então, para você saber se o negócio é objetivo ou subjetivo é
só perguntar quem foi que inventou. Quer dizer que a noção de
objetivo é a noção de um dado.
Dito de outro modo, é a diferença ente o dado e o construı́do, o
dado e o colocado. Onde está esta distinção? No dentro e no fora?
Não, as duas estão dentro da Consciência Transcendental. Então,
é claro que a esfera da consciência abarca infinitamente o mundo
dos objetos e você não pode definir como objetivo aquilo que está
fora da consciência; objetivo é o traço, é uma caracterı́stica de
alguns dados da própria consciência.
[ Stella: eu não estou vendo a relação entre conhecedor e co-
nhecido? ]
Não é bem isso, aı́ escapamos da relação entre conhecedor e
conhecido. Escapa completamente. Aı́ mudou tudo. Não existe
nada fora da Consciência Transcendental. O sujeito empı́rico, na
verdade ele não conhece nada.
Se você chegou na esfera da Consciência Transcendental, não
existe mais esse tipo de diferença entre o sujeito e o objeto que
você está acostumado a ver no dia-a-dia. o objeto passa a ser um
dado de consciência, você não tem que sair da consciência para
examinar, não existe este encontro, você tem que perguntar onde
que está isso aı́ dentro da consciência. Onde, por quê lado ele
aparece?
Objetividade é uma modalidade de aparecimento ante à
consciência. Agora, você só vai se perguntar por um objeto se
ele aparece à consciência; se ele não apareceu você não pergunta
nada.
Se ele apareceu à consciência ele já é conhecido, somente o que
falta é perguntar por onde ele apareceu, mas isso não é perguntar
mais sobre o objeto e sim perguntar sobre a própria consciência.
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mas ele já era um psicologista — ele dedica muito espaço à dis-
cussão dos preconceitos, que ele chama de “ı́dolo”.
Então, ele fala dos ı́dolos do foro, ı́dolos do teatro, ı́dolos da
(raça(?)) pública, que são idéias prontas que você recebe desde
fora. Do mesmo modo, na lógica de Pierce, uma boa parte, muita
atenção é dada ao problema de como se produzem os erros pela
força do hábito, do preconceito, do temor, etc, etc.
Então, quer dizer que os estudos das causas psicológicas, so-
ciológicas, históricas, etc, etc, do erro, começam a fazer parte da
lógica.
Se existe um pensamento natural, que é o pensamento concor-
dante consigo mesmo, e um pensamento não-natural, que é um
pensamento patológico, que é influenciado por outras coisas que
não são ele mesmo, então é evidente que o estudo do erro deve ser
empreendido desde o ponto de vista psicológico e isto faria parte
da Ciência da lógica.
A linha de objeção que Husserl vai seguir mais tarde é que a
psicologia só pode estudar os atos do pensamento, portanto ela
pode estudar o modo pelo qual se produz o erro.
Porém, qual é o conteúdo desse pensamento natural? Como é
que nós podemos saber o quê é um pensamento natural não apenas
na sua naturalidade, isto é, dizer que pensamento natural é aquilo
que é concordante com as suas próprias regras, mas em que con-
siste precisamente esse pensamento natural?
Para saber que um pensamento é natural e o outro é artificial
eu já preciso ter definido a norma do pensamento correto. Para
poder estabelecer a distinção entre o natural e o não-natural eu já
precisaria saber o que é o pensamento correto.
E como eu poderia saber a lei do pensamento correto estudando
apenas os pensamentos que existem? Dentre os muitos pensamen-
tos que você pensa, você sabe que uns são naturais e outros não
são, mas qual é a definição? E como encontrá-la pelo estudo do
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“Talvez lá para cima, é que lá tem umas formas a priori”, mas es-
sas formas a priori não são conhecidas por uma evidência direta,
elas são deduzidas retrospectivamente.
No Kant fica quase um ...(?)..., assim como um imperativo ca-
tegórico, isto é, eu tenho que agir de acordo com uma regra univer-
salmente válida; mas vocês poderiam perguntar, “Por quê?” Daı́
responde o Kant, “Porque ela é um imperativo categórico”. Por
quê é um imperativo categórico? Porque ele ordena imperativa-
mente categoricamente ...
Então, caı́mos no mesmo Descartes, é um ato de fé, porque antes
das formas a priori do entendimento você tem as formas a priori
da sensibilidade, e por quê são essas e não outras?
[ Stella: ele pode não fundamentar, mas ele prova a existência
dessas normas. ]
Ele prova, mas ele faz uma dedução. De fato ele oferece uma
prova de que elas existem, mas ele não discute por quê isso é assim
ou outra coisa. De fato, não tem nenhum motivo.
Se essas provas estão apenas em nós, subjetivamente, e não são
determinadas por nada além de nós enquanto sujeito, elas são uma
puta arbitrariedade.
[ Stella: mas você não arbitra a forma de seu corpo... ]
A forma de seu corpo é um dado externo. A forma não se de-
fine no espaço e tempo? Então, quem é que dá essa forma ao nosso
próprio corpo? São as formas a priori. As formas a priori deter-
minam as formas sobre a qual nós conhecemos o nosso próprio
corpo, e qual é a forma que o corpo tem efetivamente? Não pode-
mos saber porque isto é uma coisa em si.
Não tem meios de você confundir consciência reflexiva, tendo
formas a priori quanto queira, com Consciência Transcendental.
‘A Consciência Transcendental só se chega pela negação absoluta
de todo conhecimento; só se chega realmente pelo caminho do
corte cartesiano levado muito além do que Descartes levou.
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isso.
No sentido cartesiano a dúvida é um limite, você não pode pas-
sar para trás dela, e a dúvida é uma forma de pensamento, então
eu não posso duvidar de que penso na hora que penso, portanto
eu tenho um conhecimento firme, absoluto e inabalável de que eu
mesmo existo.
Se eu mesmo existo, eu posso, com base no fundamento da mi-
nha própria existência, fundamentar a existência das outras coisas.
Este é o projeto cartesiano, fundar a certeza de todas as Ciências a
partir da certeza da existência do ego.
Mas o Husserl é um pouco diferente. Ele não usa a certeza do
ego como fundamento lógico para, com base nela, dedutivamente
fundar as outras Ciências, não é nada disso. Ele vai encontrar as
outras Ciências dentro da consciência mesmo.
Descartes chega no miolo do ego e logo larga ele para trás para
voltar para o mundo dos objetos.
Husserl diz, “Não, está tudo aqui, é aqui mesmo. Você não vai
usar esse ego só como premissa para fundamentar o conhecimento
externo objetivo”, porque Descartes precisa na verdade de duas
premissas, uma é o ego, e a outra é Deus.
Então, se o ego existe dentro disso, então existe o mundo que
Deus mostra ao ego. Neste sentido o ego é o começo de uma ca-
deia dedutiva que vai ser a cadeia dedutiva de todas as Ciências,
que tem na existência do ego e na existência de Deus as suas pre-
missas fundamentais.
Agora, o que Husserl vai fazer não é começar aqui uma
dedução, ele não vai fazer dedução nenhuma, porque a dedução
levaria para fora da consciência, para o mundo dos objetos.
O que Husserl vai fazer é uma descrição do que está dentro da
Consciência Transcendental, não tem dedução, a Fenomenologia
nada deduz, a Fenomenologia é uma Ciência puramente descritiva.
Toda Ciência dedutiva não interessa mais a Husserl, ele se de-
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mais nada. Daı́ quanto mais você estuda, mais burro fica. Você
cria um artificialismo cientı́fico que quanto mais investiga, mais
leva só a contra-senso, a contra-senso, a contra-senso, porque isto
seria a negação da própria Consciência Transcendental, a qual é
(invencı́vel(?)), a qual não acontece de fato, só acontece hipoteti-
camente.
Quando nós vemos que a Consciência Transcendental nega a to-
talidade dos conhecimentos, ela não nega hipoteticamente não, ela
nega de fato. Presta bem atenção, a dúvida universal que ela apre-
senta ela é realizada de fato, e nesse sentido é que é uma prática
ascética.
Descartes explica muitas vezes, isto que ele fez não foi brin-
cadeira e nem uma suposição, mas uma experiência efetivamente
vivida. E isto é que é importante.
Então você levar a consciência, de recuo em recuo, de questio-
namento em questionamento, até a negação de tudo, colocar tudo
entre parênteses, como diz Husserl, é uma coisa que deve ser feita
efetivamente, e somente aı́ é que aparece a Consciência Transcen-
dental em toda a sua ilimitada liberdade, mas em toda a sua inca-
pacidade de se negar a si mesma, porque qualquer negação que ela
faça é mais uma prova dela mesma. Quanto mais ela negar, mais
ela afirma.
É como dizia São Paulo Apóstolo de Deus, “Quanto mais o blas-
femo, mais o louvo”; quanto mais dúvida, mais certeza vai ter da
Consciência Transcendental, então aı́ ela se encontrou, e não pode
se perder mais, em hipótese alguma.
É claro que toda suposta negação da Consciência Transcenden-
tal, que é o fundamento da objetividade do conhecimento, ela não
se realiza efetivamente, é uma dúvida fingida, como p.e. essa
dúvida psicologista.
O psicologista está colocando em dúvida a possibilidade do co-
nhecimento, mas no fundo está afirmando o conhecimento. Ele é
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Quanto mais louco fica, tem uma meia dúzia que sabe mais o
que está se passando e que na hora H você tem que dar o remédio.
Não precisa ser muita gente.
A Fenomenologia é uma espécie de reordenação do cosmos cul-
tural, e não precisa ter um grande número de pessoas empenhadas
nisto, mas precisa ter algumas em cada século para a coisa não
desandar completamente.
A ação disto aqui já se fez sentir beneficamente em muitas es-
feras da vida, em muitas, muitas, muitas. P.e., vejam a própria
tranqüilidade com que os homens encaram hoje instituições dife-
rentes, culturas diferentes, religiões diferentes, é um certo senso de
unidade que permite que você veja tudo isso sem você ficar apavo-
rado com a multiplicidade. A própria convivência com o falso; se
você chegou até aqui, você tem familiaridade com o falso, senão
não ia mais para frente.
Este aspecto ...(?)..., absurdo, do mundo contemporâneo, ele ad-
quire uma nova ordem com isto aqui. Tendo a possibilidade de
uma nova ordem você não fica mais apavorado, você perde o sen-
tido de revolta com o absurdo histórico que nós vivemos e ao invés
de ficar revoltado você, bom, eu acho que dá para fazer alguma
coisa, dá para ir consertando um pouquinho.
A autoridade da influência da Fenomenologia no século XX é
tão grande que ele está ...(?)..., todo mundo passou por isto aqui.
Porém, eu acho que essa influência ainda é parcial no sentido de
que ela não acabou de dizer ainda tudo o que tinha de dizer.
P.e., esta coisa que eu falei da dúvida cética é um texto que só
saiu em 1978, quer dizer, é como se você dissesse, até 1978 eu
não sabia nem para quê que Husserl estava falando tudo aquilo.
O plano só foi explicado em 1978, depois eu comprei um livro
que saiu em 1987, chamado “A Terra não se move”, que é um
conjunto de anotações que ele fez ...[ Troca de fitas. Uma parte
dos comentários se perdeu. ]
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que feche o esquema para você não ter que pensar mais naquilo,
para você tirar o desconforto da contradição. Mas, vamos supor
que estamos analisando o comportamento humano: e se esse com-
portamento é contraditório? O quê você fez? Na hora que você
achou a resposta, é onde você foi parar mais longe do problema,
não é?
Então, o primeiro procedimento para nós evitarmos isso é se ad-
mitir a hipótese de que o problema não tenha solução. Ou seja, é
matar essa idéia de que tudo tem solução. Pode ser que Deus saiba
a solução, mas eu não sei. Não se trata de matar a hipótese de
que haja uma solução, mas matar a hipótese de que todo problema
tenha uma solução de fácil alcance. Isto aqui é um dos preconcei-
tos mais anti-filosóficos que existe, o de que tudo tem que ter uma
solução, e pior ainda, eu sei sempre a solução, e não há problema
que formulado para mim eu não consiga soltar uma resposta. En-
quanto vocês tiverem esse impulso, vocês não vão conseguir co-
locar filosoficamente um problema. E esse impulso é muito arrai-
gado. Por quê? Porque aı́ o impulso parte do equilı́brio biológico.
E para alcançar a esfera do pensamento filosófico esse equilı́brio
tem que ser rompido, para você alcançar um outro equilı́brio de-
pois. Este tipo de equilı́brio que nós alcançamos através destas
respostas é um equilı́brio pragmático, que é o equilı́brio da vida
prática. Acontece que esse equilı́brio da vida prática não vale para
a vida teórica. Ou seja, como é que nós resolvemos os proble-
mas na vida prática? Resolvemos emitindo(?) quase todos os
problemas. Todo mundo sabe que se você for se preocupar com
tudo você fica doido. Mas acontece que isso só vigora para a vida
prática; para a vida teórica, cientı́fica, isso não vale. Ou seja, os
fins que você busca na vida prática não são adaptáveis para a vida
da inteligência. Enquanto a sua inteligência estiver regrada pelos
fins do seu equilı́brio psico-fı́sico ela não está apta a captar o ob-
jeto tal como ele é em si mesmo. Se o seu pensamento funciona
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Não quer dizer que no restante da sua vida prática você deva se de-
sequilibrar. Você só cairá nisso aı́ se você cair na burrada de você
levantar todas as questões filosóficas ao mesmo tempo. Neste caso
toda a sua vida prática vai ficar afetada. Você vai ficar catatônico.
Não é isso que estamos recomendando. Eu só estou dizendo que
não existe nenhuma possibilidade de pensamento objetivo no mo-
mento que o indivı́duo evita este sacrifı́cio.
Portanto, você pode ver que quaisquer discussões em geral são
apenas auto-expressões de pessoas que estão discutindo para man-
ter a sua homogeneidade. É como uma luta de organismos onde os
objetos, as idéias que se discutem estão ali apenas como pretextos.
Trata-se de uma vitória de uma psique sobre uma outra psique, e
não de uma tese sobre outra tese. É uma luta psicológica, como as
que nós vemos nos congressos, nos debates de TV, nas discussões
de botequim, discussão de marido e mulher, onde uma psique vai
sair inteira e a outra vai sair despedaçada, ou as duas vão ter que
entrar num acordo. Mas, e o objeto em discussão? Ele nem mesmo
comparece na discussão. Isto porque a condição preliminar para
cumprir a objetividade não foi cumprida. E essa condição é um
sacrifı́cio do ego.
Em termos astrológicos, na vida prática, nós somos conduzi-
dos marcianamente, reativamente, no sentido de defender a nossa
integridade contra a invasão do objeto, contra a invasão do dado.
Nós rejeitamos o dado. Nós só o aceitamos quando ele se coloca
na nossa frente de uma maneira intransponı́vel. Quando ele é um
muro intransponı́vel você aceita o fato consumado.
Normalmente nós não queremos pensar naquilo que a situação
nos impõe, mas nós queremos pensar naquilo que o nosso or-
ganismo exige. A vida prática consiste em perseverar nesse es-
tado de homogeneidade e fazer com que o mundo circundante ad-
quira uma forma harmônica com o nosso desejo e com a nossa
inclinação. Por exemplo, há uma cena de um romance de Thomas
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Mann, onde ele entra no quarto do filho dele e o quarto está numa
tal bagunça que ele vê ali a própria confusão européia. Ele po-
deria passar dias descrevendo a bagunça que ele não iria ajeitá-la.
Na vida prática isso seria uma demência. O quê você faz na vida
prática? Você, instantaneamente, impõe ao meio um equilı́brio
similar ao teu equilı́brio interno. Você molda de acordo com a
sua conveniência. Você não pergunta o que ele é. Quanto me-
nos tempo você pensar naquilo melhor para você. Porém, na vida
teórica não é possı́vel isso porque ela trata de assuntos que estão
acima da intervenção dos indivı́duos. Assuntos onde a nossa von-
tade não tem arbı́trio e a única coisa a ser feita é olhar e dizer as
coisas como elas são. Por exemplo, se um astrônomo quiser medir
a posição de uma estrela, ele não vai deslocar a estrela daqui para
lá, ele não pode empurrá-la. Portanto, só lhe resta medir com exa-
tidão e dizer que ela está onde está, e não onde você desejaria que
ela estivesse — - “Assim é”. Portanto, o espı́rito da objetividade
se desenvolve quando nós estudamos aquelas coisas nas quais nós
não podemos impedir de maneira alguma. Por isso mesmo que
Platão dizia que a Astronomia era o estudo por excelência para o
desenvolvimento da inteligência teorética, porque você não pode
mexer nas estrelas.
Suponhamos que todo pensamento lógico estivesse submetido
às leis psicológicas. E que fosse possı́vel das leis que regem esse
organismo humano você tirar daı́ as leis que devem reger este ou
aquele objeto de conhecimento. Isto seria dizer que da psicologia
humana você deduz o mundo. É esta a verdadeira impossibilidade
da tese psicologista. Ou seja, se não existe na Lógica um elemento
qualquer que seja totalmente independente do sujeito cognoscente,
então não haverá Lógica alguma. Não haveria esta passagem para
a objetividade. Não haveria este salto para a objetividade. O objeto
não teria poder algum. Isto também não quer dizer que o fato dos
fundamentos da Lógica estarem colocados fora do funcionamento
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o uso costumeiro do meio em que você está, até que tenha obtido
uma solução melhor. Você obedece à sociedade, mas você não va-
lida intelectualmente as leis e costumes. Você segue até segunda
ordem. A hora que você tiver certeza de que aquele costume está
errado você pára. Como na maior parte dos casos nós não vamos
ter certeza alguma, então na maior parte dos casos nós vamos con-
tinuar dançando conforme a música, fazendo o que nos mandam
fazer porque nós não saberı́amos as alternativas. Porém, é claro
que isto se torna extremamente difı́cil numa época onde todas as
normas e princı́pios são questionados. Não tem moral provisória
que agüente! Então, o quê acontece com a inteligência? Vai para
as cucuias. Você não pode se apoiar numa rotina para pensar. Você
é obrigado a pensar sobre os problemas da vida prática o tempo
todo. Se você não sabe, você emburrece, você não vai resolver
nenhum problema da vida prática e muito menos na vida teórica.
Então, os movimentos de contestação, etc, etc, às vezes atingem
os objetivos proclamados, às vezes não atingem, porém este ob-
jetivo aqui atinge sempre. Se não há consenso nenhum a respeito
de valores, nem uso de critérios nenhum na vida prática, tudo se
tornou problemático. Você não sabe mais o que é certo e o que é
errado, e tudo dá discussão. Agora, se você começa a discutir so-
bre tudo, a vida prática pára, e os problemas mais simples acabam
ficando insolúveis. Então, às vezes os movimentos de contestação
são inimigos da injustiça, porém eles sempre são inimigos da in-
teligência — sempre. Às vezes você problematiza as coisas que
o melhor seria não pensar, é melhor deixar a vida prática correr
do jeito que ela é, para só interferir onde você tem certeza de uma
solução melhor. Porém, quanto mais problemas práticos você le-
vantar, menos você vai resolver, e menos você vai descobrir com
a esfera do pensamento teórico.
[ intervalo ]
Então, esta questão do psicologismo, esta questão teórica, está
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psicológica exata. Isto quer dizer que ela não tem o fundamento
da sua própria cientificidade.
Se a Lógica tem um fundamento psicológico, e ao mesmo
tempo a Psicologia é uma ciência, então é absolutamente ne-
cessário que a Psicologia, para ser ciência, já possua esse funda-
mento. E que fundamentos são esses? Na leis psicológicas. Como
não existem ainda as leis psicológicas, então aı́ caı́mos numa im-
possibilidade. Se ela é uma ciência não é o seu próprio funda-
mento, e se ela é seu próprio fundamento, ela não é ciência. Dos
fatos psicológicos deverı́amos poder deduzir leis que fundassem
retroativamente a própria Psicologia, então essa hipótese é um
pouco esquisita mas ainda assim poderı́amos admiti- la... Porém,
o fato é que essas leis não foram induzidas ainda, e a Psicologia
já se oferece como ciência. Então, ela afirma sua própria cientifi-
cidade com base em leis que ela não encontrou ainda mas que ela
vai encontrar no futuro!?!... Aqui nós chegamos de fato à impos-
sibilidade absoluta.
Quer dizer que todo argumento psicologista pressupõe que a
Psicologia já existe, já encontrou os fundamentos da Lógica e por
isso mesmo ela pode afirmar que ela mesma é ciência, mas o fato
é que ela não encontrou ainda. Se o fundamento da Lógica é psi-
cológico, quer dizer, reside em leis que foram tiradas por indução
da observação dos fatos psicológicos, e se por outro lado a Psico-
logia já é uma ciência, isso significa que a Psicologia já observou
esses fatos, já induziu deles as leis, e já fundamentou a sua própria
cientificidade, mas o fato é que a Psicologia não encontrou ne-
nhuma lei exata ainda a respeito do fundamento da mente. Se ela
não encontrou ainda, então não pode ser ciência ainda. Então,
como é que ela proclama a sua cientificidade com base nas leis
que ela pretende encontrar no futuro? Bom, aı́ o negócio fedeu,
não é? Aqui o psicologismo como tese filosófica foi refutado de
uma vez para sempre. Nunca mais ninguém insistiu nessa tese, o
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fera onde existem todos modos. Se um morto pode falar com uma
voz individualizada você tem que supor que existem todas as ou-
tras dimensões intrı́nsecas na individualidade. Ora, isso não seria
possı́vel exceto num mundo de individualidades distintas. Então
nós devemos supor que o mundo dos mortos é um mundo que tem
uma outra forma de corporalidade no qual todos conservam as suas
individualidades.
De outro lado, ele falar é uma ação que transcorre no tempo, a
gravação dura um tempo x, ou seja, ele falou durante o tempo que
transcorreu a gravação. Isto significa que ele é capaz de atuar exa-
tamente dentro da mesma faixa de temporalidade que nós, não é
assim? Então, nós temos que supor que existe um outro mundo in-
corporal, com uma outra forma de corporalidade, onde é possı́vel
atuar dentro da nossa faixa de corporalidade, onde você falando
quinze minutos no gravador, aparecem quinze minutos de fita, por-
que senão você teria que supor não uma capacidade a mais do
morto, mas uma capacidade a mais do gravador, que é a de gra-
var um minuto e aparecer quinze; só que isso contradiz não as leis
da Fı́sica do outro mundo, mas as leis da Fı́sica deste mundo que
é o do próprio gravador. então, aı́ já não seria uma capacidade
do morto e sim uma capacidade do gravador, e aı́ é absurdo! Se
um minuto de gravação é quinze minutos de audição, isso já não
é uma capacidade do morto, é do próprio gravador. Nada impede
que o gravador, ficando como está, e tendo apenas o programa que
tem, um outro ser de uma outra esfera o influencie. Mas para que
o gravador seja influenciado, para que ele possa ser objeto desta
ação, ele sofre esta ação dentro da estrutura e do modo de ser que
é dele. Ele não desenvolve uma outra capacidade, é o morto que
tem a capacidade de gravar nele. Porém, para que um gravador,
tendo gravado um minuto, tocasse quinze, aı́ se trata de uma ca-
pacidade do próprio gravador — por quê? Porque depois que o
morto gravou, o gravador continua tocando...
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dimensão abarca a outra. Porém, nós vemos que para que o morto
pudesse atuar individualizadamente, ele precisaria existir como in-
dividualidade concreta — não existe individualidade abstrata. Mas
você pode dizer que o princı́pio lógico aqui não importa, então, se
não existe princı́pio lógico a diferença entre morto e não-morto é
impossı́vel de distinguir, a diferença de um indivı́duo para o outro
é impossı́vel distinguir, então tanto faz você dizer isso ou aquilo,
tanto faz quem falou, como ter falado ou não falado. Isto significa
que a idéia de que o morto falou subentende os princı́pios lógicos.
Não é possı́vel você afirmar que o morto gravou com uma voz
sem você, no mesmo instante, afirmar a validade dos princı́pios
lógicos.
Agora, o que você questionou é que os princı́pios da Fı́sica ter-
restre tenham, vamos dizer, poder sobre esse morto. Então ele vive
numa outra esfera de corporalidade na qual a Fı́sica terrestre não
age, apenas ele é quem age dentro da nossa esfera sem que esta aja
nele. Mas aı́ é que está o problema!
[ Aluno: se não é a voz do morto, é a voz do quê? ]
Mas é aı́ que termina a minha argumentação; é a voz de alguma
outra coisa. Por quê vocês querem uma solução? Para acomodar.
Mas, nós temos que ir por partes. Até aqui nós só podemos dizer
que é a voz de alguma outra coisa, mas do falecido não é.
Vamos fazer uma outra hipótese: que fosse a voz atuando sepa-
radamente, sem individualidade. Eu digo que isso é muito factı́vel!
Isso é mais possı́vel do que você dizer que é o fulano de tal quem
está falando. Esta é a hipótese que se chama “o resı́duo psı́quico”,
que não tem nada que ver com o indivı́duo mas como se fosse
um pedaço dele que sobrou, assim como pode sobrar o cheiro do
falecido.
A hipótese de ser um resı́duo psı́quico é mais viável porque o
próprio fenômeno da incorporação já sugere que não é uma indi-
vidualidade inteira, mas que é uma parte da individualidade que
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está supondo que esse indivı́duo que você é agora pode consci-
entizar o que se passou a mil anos atrás, vivenciando as mes-
mas experiências com o nı́vel de consciência que ele tem agora
para informação posterior. Mas, se isto é possı́vel, por quê não
é possı́vel a projeção da memória para adiante? Não há nenhum
motivo. Se a individualidade não está presa ao espaço temporal
no qual ela vive agora, então ela não está presa nem para adi-
ante, nem para trás. Quer dizer que se a minha consciência de
agora pode reviver fisicamente experiências que eu tive antes de
ter corpo, experiências que eu tive entre duas encarnações, sig-
nifica que essa consciência está completamente acima de todo o
quadro espaço-temporal de agora, e se ela está acima do quadro
espaço-temporal para trás não há nenhum motivo para que não es-
teja para frente. É absurdo! Então, se terei vidas futuras eu posso
ver o dia de amanhã. Se não existe nenhum limite temporal à
consciência, prestem bem atenção, é uma ausência de limite não
apenas no sentido lógico mas no sentido fı́sico, quer dizer que o
posso experimentar fisicamente experiências que não aconteceram
ainda. Eu digo, qual é a diferença delas acontecerem e não aconte-
cerem? Então, amanhã eu vou dar uma martelada no dedo, mas eu
já posso ter a experiência agora. Eu posso ter a experiência visı́vel
sem a experiência tátil, não tenho dor. Mas por quê não pode ser o
contrário? Ter a dor, sem a experiência visı́vel — me dê uma única
razão. Não tem sentido algum. Portanto, tudo aquilo que você está
revivendo como vidas passadas são apenas vidas possı́veis, vidas
que eu poderia ter vivido, coisas que poderiam ter me acontecido.
Veja, se eu saio deste fio espaço-tempo que me prende, então
não existe diferença entre o atual e o possı́vel, prestem bem
atenção. Por exemplo, você pode cair da escada daqui a pouco,
não é? É perfeitamente possı́vel. Qual é a diferença entre isso ser
possı́vel e isso ser real? Esta diferença não é espaço-temporal?
Quer dizer que dentro das condições espaço-temporal dali é que a
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sua queda foi desencadeada. Por isso mesmo é que você diz que
ela não é apenas uma possibilidade mas que ela se efetivou. Se
efetivou onde? No espaço-tempo. Se eu suprimo o espaço-tempo
não existe realidade, dá para entender? Só existe possibilidade
abstrata. Então eu vejo todas as minhas vidas, mas essas vidas
não foram vividas, elas são apenas vidas possı́veis, naturalmente
compatı́veis, análogas e harmônicas para a minha personalidade.
Então é ficção. Claro que é uma ficção que contém muito ensi-
namento sobre você porque você vê tudo o que poderia ter sido.
Vamos supor que você conseguisse abarcar um bom continente das
suas vidas possı́veis, você compreenderia o esquema das suas pos-
sibilidades, mas dizer que você realmente viveu, ah!, isso é o fim
da picada! O quê quer dizer esse “realmente”?
Aparece alguma coisa, aparece o mundo da analogia, o mundo
dos esquemas de vidas que seriam compatı́veis com você, que ape-
nas você os está completando com imagens. Porém, se você trans-
cender os limites do espaço-tempo da consciência, então não tem
sentido em você falar de realidade, porque a realidade é o espaço-
tempo. De modo que a diferença entre uma coisa ter acontecido e
não ter acontecido, e ela ser apenas possı́vel, é que ela ser apenas
possı́vel não inclui a referência espaço-tempo. Se existir o espaço-
tempo ela acontece ou não acontece. Por exemplo, pode baixar um
elefante celeste aqui e agora? Pode. Vamos aguardar o tempo. Ele
baixou? Não. Então nós sabemos que é uma possibilidade, apenas
uma possibilidade abstrata. Se ele tivesse baixado não seria mais
uma possibilidade porque ele entrou no espaço-tempo. Então, se
você ao mesmo tempo suspender o espaço-tempo e contar vidas
reais, eu digo, aı́ já não dá!
Outra coisa: hoje nós sabemos que a memória humana, a
imaginação humana não é capaz de distinguir entre o efetivo e o
possı́vel. A própria hipnose demonstra isso. Quando o sujeito diz,
olha, fiz hipnose e você regrediu. Bom, se eu faço hipnose e digo
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fera prática, não é? Dito de outro modo, você não vai ter opinião
sobre nada que não é da sua conta. Nada que você não possa de-
cidir pessoalmente você vai ter opinião, até segunda ordem. Sobre
aquilo que você pode decidir, sobre orçamento doméstico, sobre a
educação do seu filho, então você continua tendo opinião; agora,
saber se os mortos falam ou não, para quê ter opinião?
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a fatalidade da descoberta dessa lei. Você tem uma lei causal que
provoca um determinado curso de pensamento o qual inclui como
uma de suas etapas a descoberta dessa mesma lei. A resposta é o
seguinte, “Então, a descoberta dessa lei é fatal!”. Seria impossı́vel
que alguém não a descobrisse.
Se a lei é a regra do processo causal, e ao mesmo tempo ela é um
dos membros, se é ela que determina o conjunto do movimento do
pensar e esse conjunto do movimento do pensar inclui como uma
de suas etapas a descoberta dessa mesma lei, então essa descoberta
é sempre fatal, ela está fada a ocorrer.
Isso é uma absurdidade, porque é claro que você pode fazer
um pensamento lógico sobre milhões de assuntos que não são a
Lógica. P.e., se você começar a fazer um raciocı́nio lógico sobre
Geometria, você continua raciocinando sobre figuras geométricas
indefinidamente, e você nunca vai retornar isso aı́ para descobrir
qual é a regra da estrutura lógica porque o assunto não é esse.
No caso da Lógica é a regra que estrutura o processo, mas ela
não é um assunto do processo, ela é a forma e não um dos elemen-
tos do processo. É como se todo pensamento fosse um pensamento
sobre a Lógica, e não apenas um pensamento lógico.
Imaginemos um homem ideal no qual todo pensar transcorra
como exigem as leis lógicas. O fato de que transcorra assim, terá
naturalmente sua explicação em certas leis psicológicas, que regu-
larão de certo modo o curso das vivências psı́quicas. As leis cau-
sais, segundo as quais o pensamento transcorre necessariamente de
tal modo que possa justificar-se segundo as leis normais da lógica,
não são de modo algum o mesmo que estas normas. O exemplo
da máquina de calcular esclarece por completo a diferença. Nada
colocará as leis aritméticas no lugar das mecânicas para explicar
fisicamente o movimento da máquina.
O cara está confundindo o “hardware” com o “software”. Ele
está confundindo o problema com o equipamento. Hoje em dia é
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[ voltando ao Husserl ]
23. Uma terceira conseqüência do psicologismo e sua refutação
Se o conhecimento das leis lógicas tivesse sua fonte nos fatos
psicológicos, se as leis lógicas fossem, por exemplo, aplicações
normativas de certos fatos psicológicos, possuiriam necessaria-
mente um conteúdo psicológico num duplo sentido: seriam leis
para os fatos psı́quicos e suporiam ou implicariam a existência
destes fatos.
É evidente. Se essas leis tivessem sido obtidas por indução a
partir dos fatos psicológicos, é claro que esses fatos teriam que
existir. Portanto, se não existissem os fatos psicológicos, muito
menos poderiam existir as leis lógicas que deles foram derivadas.
Isto porém é falso. Nenhuma lei lógica implica uma matter of
fact, nem sequer a existência de representações, ou de juı́zos, ou
de outros fenômenos do conhecimento.
Vejam, quando você diz que 2 + 2 = 4, isso supõe que, por
acaso, alguém que pense que 2 + 2 = 4? Vamos supor, antes que
existisse qualquer ser pensante capaz de pensar que 2 + 2 = 4,
2 + 2 dava 5?
Não esqueçam que a Aritmética elementar é idêntica à Lógica.
O que vale para a Aritmética elementar, vale para a Lógica. Por-
tanto, se as leis que regem essas quantidades da Aritmética ele-
mentar não dependem de que ninguém as pense, ou seja, não de-
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+-- Princı́pios
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É por isso que eu digo que a Ciência é uma coisa muito nova
e as descobertas da Ciência exercem sobre a cabeça humana um
impacto desequilibrante. Em troca de 2 ou 3 informações novas
você cria uma imagem do mundo totalmente maluca. Eles têm
um certo desprezo pela intuição dos outros. O que é intuitivo para
eles, catapimba! Mas a intuição alheia para eles é louco.
O conhecimento cientı́fico é muito limitante e ele pode ter um
impacto que torna o sujeito esquizofrênico, porque a Ciência é
uma coisa nova e a humanidade não evoluiu o suficiente para poder
agüentar essa Ciência e colocá-la dentro da concepção racional do
mundo.
Nesse sentido nós podemos dizer que as conseqüências ci-
entı́ficas são verdadeiras com relação a certas partes do real. Essas
concepções antigas, mitológicas, embora erradas com relação a
essas partes, num todo elas são mais verdadeiras. Não é esquisito
você dizer que o trovão é a voz dos anjos. Do ponto de vista do Le-
benswelt é muito mais exato do que você dizer que o trovão é um
efeito acústico de um determinado fenômeno eletro-magnético.
O mito é mais abrangente e por isso ele pode se referir à tota-
lidade da experiência humana muito mais verdadeiro do que tal
ou qual teoria, e a teoria só terá um sentido plenamente racional
se ela conseguir ser inserida dentro dessa imagem, ou seja, den-
tro da imagem do mundo que seja adequada à função do homem
no cosmos, você colocar lá hierarquicamente distribuı́dos os dois
sentidos.
Só aı́ é que vai ser racional, por enquanto não; por enquanto
será racional com relação a este ou aquele ponto à custa de você
ser irracional em relação ao todo. P.e., quando você descobre que
as coisas são compostas de átomos, ou de um montão de partı́culas
sub- atômicas, e daı́ você nega que as cadeiras sejam cadeiras.
Tem um grande filósofo-cientista, (Whitecker(?)), que fez uma
grande conferência dizendo isto, “Estão vendo esta lousa, esta pa-
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25 Preleção XXV
rede? Tudo ilusão, porque realmente são átomos!”, quer dizer, ele
negou uma faixa da realidade e afirmou outra.
Se fosse um pouco mais tarde nós também poderı́amos di-
zer, “Tá vendo todos aqueles átomos? Tudo ilusão! Tudo tem
partı́culas sub- atômicas!...” Então é o caso de você perguntar,
“Quanto custa uma partı́cula sub-atômica?” Qual é o preço? Ah!
não custa nada? Então leve seu carro para casa, de graça, porque
tudo é partı́cula sub-atômica mesmo ...
O quê é isso? É uma informação cientı́fica, verdadeira, rela-
tiva a um determinado aspecto do universo, que é incumbida de se
substituir ao mundo real.
Sempre que você pega um cientista, e o nego se mete a opinar
sobre o mundo, só sai besteira. Se alguém pode opinar sobre o
mundo, essa opinião só pode ser metafı́sica ou mitológica, não vai
sair disto. A sua Metafı́sica não vai ser melhor do que a minha
não.
O problema é que a Ciência ganhou um prestı́gio muito grande;
tão grande quanto o prestı́gio do pajé. Mas, é porque o pajé tem
prestı́gio que ele vai poder opinar, p.e., na Mecânica Newtoniana?
Não, e o cara que é newtoniano também não entende nada daquele
negócio que o pajé está falando. Então é uma questão de campos
diferentes, de planos diferentes.
A função básica da Filosofia é justamente articular essas coisas
numa visão coerente, ou seja, assegurar o fundamento racional no
todo.
[ Pergunta: você acha que é possı́vel dizer que a Ciência, até
onde ela chegou, por enquanto ela só fez um desserviço à humani-
dade, porque enquanto a Religião e a Mitologia ofereceu todas as
respostas ...]
Não! A Mitologia teve 10000 anos de chance, a Ciência teve
400 anos. A Ciência é uma coisa nova com a qual a humanidade
não sabe lidar, o qual o indivı́duo está com o sorvete na testa. Nós
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uma coisa instintiva, tem. Não tem se você já foi criado num meio
inter-racial.
Isso é sempre a confusão da percepção sensı́vel habitual com as
essências, ou seja, é uma confusão entre o real e o ideal.
O racismo é uma forma do psicologismo. Você deduz o seu con-
ceito de essência humana num monte de seres humanos parecidos
que você já viu. É uma dedução errada. O conceito humano é um
conceito ideal.
A definição plena do Eric Weil sobre o homem é a definição
ideal. Quando ele diz que o homem é um animal racional ele não
está dizendo por indução que ele é racional, mas que ele deve ser
racional para merecer o nome ideal.
Agora, se você tirou o seu conceito pelo empirismo, se você é
japonês, o homem é isto; na hora que você vê um cara diferente,
ele não é homem.
Você pega um cara desses que acha que só os amigos dele são
seres humanos e você ensina Fı́sica Quântica para ele. O quê você
acha que vai dar? Quantos cientistas, doutores, professores de fa-
culdade, não têm dentro de suas cabeças essas idéias arcaicas?
Eles têm uma ética de botocudos, uma metafı́sica de esquimó.
Então, tem que civilizar a ética deles, a metafı́sica deles, tem que
sumir tudo.
O problema é a civilização parcial dos indivı́duos, porque a
Ciência só mudou um átimo nesses 4 séculos, e numa só direção,
então precisa subir o resto, senão vai ficar doidinho mesmo.
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18 de junho de 1993
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uma única lei de fatos que possa ser logicamente uma possibili-
dade única.
Se uma lei é tirada dos fatos, é dizer que há outras possibili-
dades, mas somente uma dessas possibilidades é manifestada nos
fatos. P.e., na investigação de um crime existem vários culpados,
mas se logicamente devesse existir um e um só, e todos os outros
fossem inconcebı́veis como culpados, então você não precisaria
dos fatos evidentemente.
Toda lei indutiva é sempre uma possibilidade entre outras.
Várias hipóteses tem mais ou menos o mesmo grau de possibili-
dade. Agora, se você demonstra que só uma é possı́vel e as outras
são impossı́veis, então você não desceu para a esfera dos fatos,
você está falando da esfera lógica pura.
Qualquer uma delas é uma só e única verdade que exclui toda
possibilidade distinta.
As leis lógicas dizem respeito à esfera de possibilidade pura. O
que não é logicamente consistente, é impossı́vel. Não é apenas
irreal, é falso.
Aı́ terı́amos que estabelecer uma distinção entre verdade e rea-
lidade. Realidade é aquilo que se dá na esfera dos fatos.
Como é natural, não devemos compreender, dentre as leis de
fatos, aquelas proposições gerais que aplicam aos fatos leis con-
ceptuais puras, isto é, relações universalmente válidas por estarem
fundadas em conceitos puros. Se 3 ¿ 2, também os três livros da-
quela mesa são mais do que os dois livros daquele armário. Mas a
lei aritmética pura não fala de coisas, mas sim de números na sua
pura generalidade.
24. Continuação
Talvez, tratem de escapar à nossa conclusão, objetando que nem
toda lei para fatos nasce da experiência e da indução. Todo conhe-
cimento da lei descansa na experiência, mas nem tudo brota dela
na forma de indução. Em particular as leis lógicas são leis con-
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EXISTÊNCIA | LÓGICA
+-------------------+--------------------+
| Coexistência | Princı́pio |
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| Sucessão | conseqüência |
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fato assim. Só se você negar o seu caráter de fato, p.e., “suponha-
mos que o PC Farias tenha recebido grana, pá, pá, pá...”, se você
já transformou numa suposição já não é fato mais.
Como leis reais, as leis das verdades seriam regras da coe-
xistência e da sucessão. Então uma lei prescreveria o ir e vir
de certos fatos, chamados verdades; e entre estes fatos deveria
encontrar-se, como uma a mais, a lei mesma. A lei mesma nas-
ceria ou pereceria segundo a lei... patente contra-senso..
Se fosse possı́vel isso, deveria haver uma lei que regrasse a co-
existência e a sucessão, e que dentro dessa sucessão passaria a ser
verdade a mesma lei que regra essa mesma sucessão. Isto aı́ parece
o “Exterminador do Futuro”.
A lei passaria a ser verdade. Aı́ você teria uma lei que regra-
ria uma determinada sucessão dentro da qual a mesma lei que re-
gra essa sucessão passaria a ser verdade a partir do momento que
acontecesse, e não antes.
Aliás, falando em “Exterminador do Futuro”, saiu um artigo
em São Paulo, do Conrad Lorentz, chamado “O Exterminador da
Lógica”, porque o Exterminador do Futuro voltava para o passado
para impedir que acontecesse uma coisa no futuro, futuro esse no
qual ele também estava. De modo que o efeito teria o poder de
retroagir sobre a causa, e anular a causa.
O curioso é que as pessoas vêem esse filme e elas sentem as
emoções do filme como reais, embora ele se fundamente numa
hipótese que é impossı́vel. Não é a mesma coisa que uma ficção
cientı́fica qualquer que nega apenas as condições presentes da
percepção do indivı́duo.
Você pode supor estórias onde todas as leis da Fı́sica e da
percepção ...(?)... das revistas, e a imaginação pode operar esta
mudança. Você pode inventar uma outra realidade partindo do
princı́pio da sua possibilidade, ou seja, não é impossı́vel que fosse
assim, e o fato não ser impossı́vel, embora altamente inverossı́mil,
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estão por aı́ pelo (cosmos(?)). Quando você vai ver o quê que está
por aı́, você vê que é o psicologismo.
O “Exterminado do Futuro” é a mesma lei de sucessão que se
torna verdadeiro a partir de um dado momento da mesma sucessão,
mas que faz parte da mesma sucessão. É exatamente isso!
É isso que ele (Husserl) disse aqui, é a lei que regra uma su-
cessão, mas que faz parte da mesma sucessão, como fato, de modo
que ela se torna verdadeira a partir do momento onde ela acontece.
Isto é o “Exterminador do Futuro”.
Vamos supor que fosse, p.e., a lei da evolução das espécies; mas
acontece que a lei da evolução das espécies, nessa hipótese, ela
seria uma espécie de bicho. Além dela ser a regra do conjunto ela
é uma espécie de bicho, e ela só passa a ser verdadeira a partir do
momento onde essa espécie de bicho surge, embora ela já regrasse
toda a evolução anterior.. É uma loucura! Isso é impossı́vel!
Numa sociedade onde se aceitou a hipótese psicologista, o “Ex-
terminador do Futuro” tem todo o direito de exterminar o que ele
quiser.
Isso é uma maneira de você fazer um sujeito acreditar que ele
viu uma coisa que ele não viu, que ele mesmo colocou lá! É mais
ou menos como na propaganda subliminar.
Assistam ao filme e vejam se existe algum sinal que possa fazer
você ter a menção de retorno ao passado. Isso é mais ou menos
aquela estória do Barão de Itararé, “O jovem D. Pedro I era pai do
velho D. Pedro II”.
[ Stella: quando você falou em aulas passadas que um dos mo-
tivos de erro das Ciências é você tomar uma evidência indireto
como direta, isto seria uma definição do que o psicologismo faz
ou uma outra coisa?]
Para o psicologismo praticamente não existe a evidência direta.
Todas as evidências são indiretas, esse é que é o problema. Não
existem evidências intelectuais, só as evidências tiradas da ex-
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19 de junho de 1993
Este texto aqui tem uma vantagem em mostrar para vocês que o
progresso do conhecimento é muito ambı́guo. Me parece que uma
teoria tão bem refutadinha assim, continuasse sendo acreditada por
quase 1 século depois.
As pessoas normalmente imaginam que tudo o que veio antes é
absorvido e transcendido pelo que vem depois. A própria idéia de
progresso é que tudo o que veio antes é absorvido, quer dizer, é
reinserido como elemento dentro de uma outra forma mais abran-
gente. Sem isso não tem progresso.
Assim como no crescimento de um indivı́duo, as fases anteri-
ores não são apagadas, cortadas, elas são reabsorvidas dentro da
personalidade do adolescente e essa por sua vez foi absorvida pela
personalidade do adulto, de modo que você ainda dispõe dos dados
da infância sob uma forma mais sintética.
Claro que você não lembra tudo com todos os detalhes, mas
você tem 2 ou 3 chaves que, puxando pela memória, aparece todo o
resto, de modo que todo o conhecimento adquirido na infância não
foi perdido. Ele foi superado justamente porque não foi perdido.
Se fosse apagado, se perdesse o disquete, você não poderia dizer
que houve progresso.
Normalmente nós imaginamos que cada nova teoria, cada nova
idéia, nova corrente filosófica que surge, absorve as anteriores.
Absorve e supera. Mas essa idéia é muito ingênua, na verdade
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não é assim, porque você absorver o que foi feito antes não é tão
fácil, não é tão rapidinho.
O progresso é muito menor do que você poderia imaginar por-
que ele implica justamente essa absorção do passado, a qual é
problemática e demorada. Muitas vezes o que acontece depois
é simplesmente uma recaı́da num nı́vel anterior, que já tinha sido
superado. Um erro que já foi superado, como a geração seguinte
não sabe que foi superado ela o comete de novo, esquece.
Então, se a gente for medir assim, o quê que houve em termos
de progresso real, primeiro, todo progresso é por sua própria na-
tureza, problemático, ele não é uma coisa que já está garantido
de uma vez para sempre; partindo de uma determinada geração
ter compreendido e superado algo, não é garantido que a geração
seguinte absorverá isso, não tem garantia, nenhuma , nenhuma,
nenhuma. Tem que estar sempre revitalizando.
A reabsorção constante do passado, sintetização, simplificação
de certo modo, de todo o conhecimento passado é uma condição
indispensável para que exista alguma progresso, e essa condição
não se cumpre automaticamente. Ao contrário, é extremamente
difı́cil, e se torna mais difı́cil a cada dia.
No caso, nós temos aqui um exemplo escandaloso de que raras
vezes alguma hipótese foi afastada com tanta minúcia como essa
hipótese psicologista. Talvez tenha sido a teoria mais bem refutada
da História. E, no entanto, ela está aı́...
‘As vezes, a mesma hipótese psicologista aparece sob outro
nome, e as pessoas não reconhecem isso. Se não estiver psico-
logismo escrito na testa os negos não percebem que é.
São teorias parentes, empirismo, psicologismo, sociologismo,
etc, etc. O problema é que as teorias não vêm com o princı́pio
estampado na cara, às vezes está escondido, não é? Você teria
que analisar muito a teoria para você poder chegar no princı́pio.
Você precisa chegar no princı́pio dela, precisa primeiro enunciar
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máquina, por quê você estranha que essa máquina seja tão sujeita à
influência das informações que alguém injeta nela? Se nós somos
máquina nós temos o direito de ser influenciados por quem quer
que aperte o botão!
Daı́ mais adiante ele protesta:
“O técnico representa uma instância inexpugnável. Já que
ninguém pode julgar um técnico melhor do que outro técnico, este
terreno tornou-se autônomo de um apela à Ciência, irrefutável. A
conseqüência inevitável é que o que se diz na Ciência é uma me-
dida que vai muito além da sua competência”.
Ele reclama do abuso da Ciência no campo prático e não per-
cebe o abuso dela no campo teórico. Se a Ciência, de fato, pode
invadir o terreno das relações normativas ideais, por quê na socie-
dade os cientistas não podem também invadir outros campos onde
queiram? Se o abuso já foi feito no terreno teórico, ele vai ser no
ato da prática. Ele está querendo a causa sem o efeito.
Notem bem, tudo isto aqui é um psicologismo enrustido. Você
precisaria pegar a base do quê que esse sujeito precisaria acredi-
tar para ele poder dizer o que ele está dizendo. É preciso você
encontrar o fundamento lógico do quê o cara está falando.
Você precisa supor que ele pensa logicamente — o que é uma
suposição nem sempre válida — e supor que deve haver uma co-
nexão lógica entre os seus princı́pios e suas conseqüências.
Então, partindo das conseqüências afirmadas você remonta até
os princı́pios e daı́ você vê que elas são incompatı́veis com ou-
tras coisas que são afirmadas lá para diante. É você buscar a con-
sistência lógica naquilo. Não só a consistência de uma frase com
a outra, que é uma consistência horizontal, mas uma consistência
em profundidade, isto é, a dependência de várias sentenças em
relação a um mesmo princı́pio.
Entre você dizer que não há diferença entre um homem e um
animal, e você reclamar que as universidades não fomentam o
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uma pedra. Se o homem vê a pedra e sabe que vê a pedra é porque
ele sabe que a pedra não o vê. Ou será que ele não sabe? Esse
sujeito, ao ver a pedra, tivesse a mesma reação que teria ao ver
um outro ser humano, supondo que a pedra o vê, que ela tem uma
opinião sobre ele, que ela gosta dele ou não, ele está vendo com a
imaginação dele.
Quer dizer, ver o objeto é saber algo do quê o objeto sabe a
seu respeito. P.e., se eu vejo um cachorro eu sei que não adianta
eu falar com um cachorro, não adianta eu dar uma explicação, só
adianta eu gritar; ele é sensı́vel a isto. E se eu vejo uma pedra eu
sei que ela não é sensı́vel a isto.
Portanto eu tenho alguma informação a respeito da informação
que o objeto tem a meu respeito. Portanto eu não sou o único
sujeito cognoscente que está em questão, o objeto também é visto
como sujeito cognoscente porque se ele não for visto assim eu não
o conheço absolutamente. Se eu nada sei a respeito do que é o
objeto, eu nada sei a respeito dele. E isso se refere inclusive às
coisas inanimadas.
Eu sei que a pedra é pedra porque eu sei que ela não é bicho. E
eu sei que o animal é um animal porque ele pode me morder, ou
porque a vaca dá leite, e assim por diante. Eu sei algo a respeito
dele. Eu sei algo das relações que ele pode ter comigo e portanto
eu o vejo alternadamente como objeto e como sujeito. E a mim
mesmo eu me vejo alternadamente como sujeito de um conheci-
mento e como objeto de um conhecimento que aquele objeto tem
de mim. Isto está suposto em qualquer relação cognitiva, e isto é
uma coisa que escapou à Filosofia durante muitı́ssimo tempo.
Os caras supuseram que a relação sujeito-objeto é “one-way”.
Se ela for “one-way” ela não acontece. Se eu nada sei sobre o
objeto desde o ponto subjetivo dele, eu nada sei dele, ele é o estra-
nhamento total.
Na verdade, suponha uma pedra cujo ponto de vista você nada
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27 Preleção XXVII
sabe. Você não sabe que a pedra te ignora, você não sabe que
a pedra é insensı́vel, você não sabe que a pedra apenas pesa, ou
seja, você nada projeta sobre ela e portanto você não recebe dela
nenhuma informação. Isto é uma percepção de pedra? Isto é uma
potência de percepção de pedra apenas.
A pedra não se perfilou na sua frente como um objeto distinto.
Você nem sequer a distinguiu de você mesmo. É assim como o
bebê vê a pedra. É uma pré-concepção, vai ter uma percepção dis-
tinta o tempo todo. Tudo aquilo que ele falasse, ele não percebeu
a mais mı́nima atenção...
Esse diálogo entre o sujeito e o objeto está tão automatizado que
nós não pensamos nele, e na hora que nós começamos a pensar,
pensamos que estamos ficando loucos. Mas, não, antes é você
estava louco!
Se eu não me vejo desde o ponto de vista da pedra eu nada
sei sobre a pedra. É só você perguntar a qualquer pessoa, “Essa
pedra fala?”, “Se você pedir para ela vir aqui, ela vem?”, todo
mundo sabe que não, não é? Portanto, você sabe quais são as
possibilidades de ação da pedra; você sabe as suas possibilidades
de ação sobre ela, e sabe as dela também. Isto está subentendido
na percepção.
Agora, normalmente nós não analisamos isso porque esse pro-
cesso se cumpre numa fração de segundos, mas que tudo isso está
ali subentendido, está.
Portanto, o que seria a pedra se eu fizesse a abstração de qual-
quer sujeito cognoscente? P.e., o chão em cima do qual está a
pedra, está recebendo informação dela, ou não? Claro que está,
ela está pesando em cima dele. Então esse sujeito também não
poderia estar ali para que você pudesse pensar na pedra em si. A
pedra tem que estar agindo e ser objeto de ações possı́veis. Uma
pedra em si, p.e., não seria quebrável, não é? Não tem quem a
quebre. Ela perderia esta possibilidade de ser quebrada. Ela não
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27 Preleção XXVII
pode pesar porque para pesar tem que pesar em cima de algo.
Então, a expressão “coisa em si” é auto-contraditória, porque
ser coisa é ter um conjunto de relações com outras coisas. O que
não tem relação com nada é só essência pura, a qual não existe.
Então não há pedra, mas o conceito de pedra. O conceito de pedra
não pesa. Você não pode jogar um conceito de pedra na cabeça do
seu adversário, você não pode nem ter um conceito de pedra no
rim, e assim por diante. Essa é a noção ingênua de objetividade.
A objetividade consiste em, não você abolir o sujeito, mas es-
tabelecer em torno e a propósito do objeto o conjunto das pers-
pectivas que articulam corretamente esse objeto no lugar onde ele
está.
Então é você saber o quê é a pedra desde o ponto de vista do
chão que está embaixo dela, da atmosfera que a cerca, da sua
composição quı́mica, e do seu próprio ponto de vista, e assim por
diante, até você alinhavar as suas várias perspectivas e fazer um
todo concreto, e isso é objetivo.
Tudo o que existe é fenômeno. E o quê tem por trás do
fenômeno? Não tem nada. Quer dizer, que raio de coisa deve-
ria existir por trás do fenômeno pedra? Deveria existir uma outra
pedra? Por quê esta aqui não basta? Quer dizer que a pedra que
acertou na sua cabeça não basta, tem que ser a “pedra em si”?
Aqui a gente poderia chamar de, também, de objetividade su-
pressiva, que é quando o sujeito abole qualquer testemunho do fato
e você separa do acontecimento em si, do fato em si, não enquanto
considerado enquanto fenômeno. Então, o fato em si, seria aquele
fato que não foi fenômeno para ninguém. Mas, o quê é fato? Fato
já é uma relação, não é?
Então, tudo isto aqui vem de uma grossura filosófica que surge,
por incrı́vel que pareça, do sucesso das Ciências Naturais, onde
você acredita que você recorrendo ao mundo dos fatos você vá
obter uma explicação completa.
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Mills e de Spencer
J. St. Mills ensina que o principium contradictionis é “uma de
nossas mais antecipadas e mais imediatas generalizações da ex-
periência”. Ele encontra o seu fundamento primitivo no fato de
que “crer e não crer são dois estados distintos do espı́rito”, que se
excluem mutuamente.. Sabemos isto — prossegue literalmente —
pelas observações mais simples de nosso próprio espı́rito. Perce-
bemos também que a luz e a obscuridade, o ruı́do e o silêncio, a
igualdade e a desigualdade, o andar para frente e o andar para trás,
a sucessão e a simultaneidade, em suma, todo fenômeno positivo
e sua negação, são fenômenos distintos que se encontram em uma
relação de antagonismo extremo. “Considero”, diz ainda, “o axi-
oma em questão como uma generalização de todos estes fatos”.
Quer dizer que, pela experiência repetida, do ruı́do, do silêncio,
da igualdade, nós acabamos induzindo uma lei.
A única dificuldade neste ponto é compreender como pode pa-
recer convincente semelhante teoria. A primeira coisa que sur-
preende é a patente incorreção da afirmação segundo a qual o
princı́pio que diz que duas proposições contraditórias não são ver-
dadeiras e, nesse sentido, se excluem, é uma generalização dos
“fatos” indicadores de que a luz e a obscuridade, o ruı́do e o
silêncio, etc, se excluem; estes são tudo antes que proposições con-
traditórias. Não se compreende muito bem como Mills pretende
estabelecer a conexão lógica destes supostos fatos de experiência
com a lei lógica.
Lemos, com referência a estas leis, o seguinte: They may or
may not be capable of alteration by experience, but the condition
of our existence deny to us the experience which would be requi-
red to alter them. Any assertion, therefore, which conflicts with
one of these laws — is to us unbelievable. The belief in such a
proposition is, in the present constitution of nature, impossible as
mental fact.
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então a onça, que aprecia muito a carne de jacaré vai começar a co-
mer o jacaré pelo rabo, e ele não percebe coisa nenhuma. Quando
percebe ele já está comido pela metade. Quando chega no ponto
onde é sensı́vel é o tempo de sentir e morrer.
A auto-conservação pressupõe o senso da integridade do orga-
nismo. A auto-conservação é tremendamente complexa. É sim-
ples tendência que não se realiza de uma maneira perfeita na maior
parte dos casos. A auto-conservação, ao contrário, ela é que é fo-
mentada pela Razão. Quer dizer, o Piaget quer reduzir a Razão ao
senso de auto-conservação, e o senso de auto- conservação ajuda a
você captar certas estruturas racionais, mas as estruturas racionais,
em si mesmas, elas não têm nada que ver com isso. Nada, nada,
nada...
Então você querer achar uma raiz biológica dos conceitos
lógicos é você forçar no sentido psicanalı́tico. É claro que a
evolução biológica tem algo a ver com a captação de algumas des-
sas noções. Por outro lado, você saber que o ser humano tem ou
não tem um princı́pio de identidade inata é perfeitamente irrele-
vante do ponto de vista lógico.
Se você nasce com o sentido de identidade, ou você o aprendeu
depois, eu digo, ué, o que é que isto muda as coisas do ponto de
vista lógico, do ponto de vista ideal? Primeiro que esta questão já
seria irrelevante; você provar que o sujeito não nasce com o senso
de identidade, mas o adquire depois, não provaria que ele tem uma
vida biológica, provaria apenas que o conhecimento da identidade
tem uma vida biológica.
Este princı́pio que você, pela sua evolução biológica, chega a
conhecer em tal ou qual data, ele vale ou não vale? Esse é que é o
problema.
A validade do princı́pio de contradição, ou do princı́pio de iden-
tidade nada tem a ver com etapas do aprendizado de que você to-
mou conhecimento dele.
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08 de dezembro de 1993
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possı́vel. Então, nós vemos que existe toda uma faixa da realidade
que para o chinês não existe.
[ Aluno: Eu não entendi a relação da lı́ngua chinesa; um ideo-
grama é verbo de ... ]
...Não existe a noção de verbo e substantivo; qualquer coisa
pode ser verbo ou substantivo, conforme o lugar que você po-
nha. Mas todas as palavras têm sempre um significado concreto
porque estão ligadas a algum sı́mbolo, você não tem o totalmente
abstrato. Então quer dizer que aı́ é que cada palavra é substan-
cializada. Por exemplo, você pega a palavra que representaria
confiança, esperança, etc; isso é representado por um indivı́duo
empurrando um muro — o ideograma é mais ou menos assim:
Então, bastou você fazer isto aqui para você conseguir pensar
esta idéia independentemente da sua representação sensı́vel. Na
representação sensı́vel só existem substâncias, não existem puras
relações — como é que você vai ler? Como é que você vai pe-
gar uma pura relação? Por exemplo, a relação de anterioridade,
de posteridade, de predomı́nio, como é que você faz a palavra pre-
domı́nio? você tem que imaginar isso através de sı́mbolos. É uma
trabalheira!
A lı́ngua chinesa é tão boa que até hoje os caras não consegui-
ram unificá-la. Existem milhares de lı́nguas chinesas diferentes,
uma para cada quarteirão, e dois chineses não se entendem entre
si. Você quer saber, é uma porcaria de lı́ngua! Agora, quando ...(?)
olha para o lado de cá é bonito porque é artı́stico. Isso dito por nós,
prestem atenção! Não quer dizer que o chinês mesmo veja todas
essas profundidades.
[ Aluno: Como é que eles fazem uma cadeia abstrativa? ]
Simplesmente não fazem! Dá um trabalho medonho! Então,
você pode dizer, é uma lı́ngua mais estética, e sendo mais estética,
significa que a escrita está mais próxima do desenho, está mais
próxima das artes plásticas. Isto quer dizer que tudo aquilo que
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você pega através das artes plásticas aparece também junto no de-
senho. É a mesma coisa que você dizer, todo livro chinês vem com
figurinha.
A prova de que é uma porcaria de lı́ngua é que ela jamais se
desenvolveu, a literatura chinesa é feita de repetição ao longo dos
milênios. Você tem aqueles modelos de perfeição e a geração se-
guinte aprendia a escrever exatamente igual. Se a lı́ngua fosse tão
profunda como as pessoas imaginam aqui, você acha que não teria
saı́do uma literatura um pouquinho melhor? Então, o chinês não
sai do lugar. O aprendizado de literatura chinesa seria a mesma
coisa como se nós estivéssemos usando ainda a lı́ngua de Cı́cero,
sem poder mudar. Mas se a lı́ngua é tão rica, como é que não sai
uma literatura mais inventiva? Não conseguem nada...
Uma coisa é o chinês tal como nós o vemos, como novidade;
outra coisa é o chinês que é usado pelos chineses, que não estão
percebendo nada dessas profundidades que nós enxergamos. Por
exemplo, uma conhecida minha foi para a China, e eu pedi para
ela comprar os pauzinhos do I Ching. E quem é que sabia o que
era os pauzinhos do I Ching lá na China? Ninguém sabia!
Mas é que o pessoal aqui imagina que todo mundo está imbuı́do
da mentalidade do I Ching. Eu digo, ora, você imagina um chinês
lendo o Evangelho e supondo, “Poxa, lá no Ocidente todo mundo
é bom, todo mundo dá a outra face; aqui é que as pessoas são
ruins...”. O que as pessoas escreveram aqui sobre o I Ching é exa-
tamente a mesma coisa que isso aı́, você encarar o Ocidente inteiro
como se fosse uma expressão do Evangelho — é uma idéia total-
mente idealizada. Você pega um livro de cinco mil anos atrás e
acredita que todo mundo lê aquele livro e que todo mundo pra-
tica aquilo... mas, ora, façam-me o favor!! Isso é absolutamente
ridı́culo! Os caras não sabem o que é I Ching, do mesmo jeito que
as pessoas aqui não sabem o que é Evangelho.
Eu só sei que os pauzinhos do I Ching não tinham em parte
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alguma, ninguém sabia, e ela teve que pedir ajuda a uma outra
pessoa que ia para o interior, onde havia um velhinho que tinha lá
uma lojinha e daı́ ela achou. Ou seja, é tão raro lá quanto aqui; tal-
vez aqui seja mais fácil. Então, tudo isso aı́ são visões idealizadas
e no mais das vezes são propositadamente falseadas...
“O homem ocidental pensa por categorias lógicas.” O quê é
pensar por categorias lógicas? Nunca ninguém jamais pensou por
categorias lógicas. Você pensa psicologicamente, você pensa por
cadeias analógicas, você pensa de modo totalmente irracional. A
lógica é uma conexão ideal que serve para conferir se o seu pen-
samento foi certo. Ninguém pensa com lógica.
Veja as esperanças que as pessoas têm que as crianças lidando
com computadores vão ficar mais inteligentes; elas vão ficar é me-
nos inteligentes, porque elas vão aprender a repetir seqüências que
são puramente lógicas. O computador pensa de maneira lógica
porque ele é um pensamento limitado. Então, não podendo imitar
o processo biológico do pensamento, que seria muito limitado, se-
ria você fazer não um cérebro eletrônico, mas um cérebro de fato,
então você constrói um modelo de cérebro que repete as operações
lógicas e que de fato pensa logicamente. Agora, pensando logica-
mente tem certas operações que ele fará muito melhor do que nós
e tem outras que ele fará muito pior. Ou seja, aquelas que possam
ser decididas por uma cadeia lógica conhecida ele fará com uma
rapidez impressionante; e aquelas onde se trata de você sintetizar
dados por canais desconhecidos, ele simplesmente não fará. Por
exemplo, como é que você vai fazer um computador ter uma auto-
consciência? A não ser que você imagine uma auto-consciência
simplesmente nunca exprimida. Auto-consciência implica a res-
ponsabilidade, culpa, risco, etc, etc, e você teria que fazer um com-
putador que tivesse responsabilidades civis, “agora você tem que ir
para a escola”, “Você não fez o dever de casa”, “Agora você está de
castigo”, “Hoje você vai ficar sem o almoço”, a auto-consciência
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humana seria ligada a tudo isso aı́, então é uma função que ele não
pode ter. Se ele não pode ter auto-consciência, então ele só pode
operar sı́nteses puramente lógicas, ou analógicas segundo uma ca-
deia analógica dada já de antemão.
Se você vai ensinar uma pessoa a pensar assim, o sujeito vai
ficar extraordinariamente burro, porque você pensar logicamente
não serve para absolutamente nada. O normal não é pensar logi-
camente. Para pensar logicamente você tem que ir por uma cadeia
silogı́stica, demora um tempo extraordinário, vocês não entende-
riam uma palavra do que eu estou dizendo se pensassem logica-
mente.
O homem tem a facilidade de suprir muito do que ele desco-
nhece a respeito dos códigos através de um ato de vontade, porque
ele assume a responsabilidade, por isso mesmo que ele entende.
Agora, se você vai ensinar a criança a pensar logicamente, é claro
que ela vai ficar muito burra. E as pessoas que trabalham cons-
tantemente com computadores acabam imitando o computador —
por quê? Porque têm uma visão um pouco idealizada da coisa e
porque quer seguir os passos do computador; mas isso não é nor-
mal, a mente humana pensa por saltos formidáveis que não teria
jamais como você preencher logicamente esses hiatos, e é por isso
mesmo que funciona.
Então, o pensar biológico real é uma coisa, e o pensar lógico
é outra; aliás não existe o pensar lógico, a lógica é a forma ideal
pelo qual o pensamento se molda para ter coerência e integridade.
Por exemplo, você pega a estética de um quadro, e você pega a
fabricação das tintas. Como é que você faz a tinta? É segundo
padrões estéticos, ou seriam padrões quı́micos? Se a fabricação
das tintas tivesse que obedecer à estética, quando é que o indivı́duo
ia terminar de fazer essas tintas? Se o pintor tivesse que pintar o
quadro, se os gestos do pintor tivessem que obedecer à estética
do quadro final, ele não ia terminar o quadro. Quem diz que o
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quadro tem que começar a ser pintado pelo que é o centro da sua
hierarquia? Muitas vezes você não consegue, não dá nem para
começar.
Então, o pensamento é um processo biológico, é um processo
real, que acontece na ordem em que acontece, isto é, qualquer
uma. Há milhares de ordens possı́veis, e você as escolhe conforme
a sua cabeça, conforme a sua inteligência, ou talento, etc, etc.
Agora, a conexão lógica não é real, isto é o que este livro está
mostrando, a conexão lógica é puramente ideal. A conexão lógica
serve para você representar mentalmente...
[ Aluno: ...mas o texto do Eric Weil já dizia isso; ele dizia para
verificar o pensamento, e que na verdade o que produz conheci-
mento é a dialética. ]
Sim, o Weil vai mais além. Na verdade, nem a dialética produz
conhecimento. Ela produz uma sı́ntese lógica, essa é a diferença.
Ela é que funda as ciências. Agora, a conexão lógica é um outro
negócio. A conexão lógica permite você representar o que são os
encadeamentos causais reais. Lógica não é um modo de pensar,
é um modo de você dar ao seu pensamento uma integridade que
reflita as conexões reais dos fatos, conexões necessárias dos fatos.
Vou dar um exemplo: um sujeito mata o outro, ele deu um tiro
na cabeça do outro. Então, este é um fato concreto. Porém, este
fato concreto é composto de muitas linhas causais diferentes. Por
exemplo, você tem a quantidade de pólvora que está dentro da
cápsula, tem uma relação com o peso do projétil, o qual tem uma
relação com o seu impacto. Tudo isso você pode calcular; aı́ são
conexões lógicas. Ou seja, se a pólvora é tanto, o potencial de
explosão é tanto; se você tem tantos grãos de pólvora, com um
projétil de tal peso ele sairá com tal velocidade e batendo no objeto
a tantos metros terá um impacto de tanto. Tudo isso é uma conexão
lógica.
Agora, a partir da hora que a bala bateu na cabeça do sujeito,
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começa uma outra seqüência causal, que é fisiológica, que vai le-
var à morte. Então, acertou um pedaço do cérebro; acertando ali
uma certa cadeia neuronal, paralisa um determinado órgão. Esta
é outra cadeia causal que nada tem a ver com a primeira. Você
não poderia explicar um processo fisiológico da morte pelas leis
da balı́stica. No entanto, essas duas cadeias causais convergiram
no mesmo fato concreto. A lógica serve para quê? Serve para
você montar essas cadeias causais isoladas. Agora, a lógica não
serve para você ver que sujeito matou o outro — por quê? Porque
um sujeito matar o outro é um fato concreto, que por ser secreto
junta infinitas linhas causais que estão unidas num determinado
momento e lugar. Por quê o sujeito morreu? Morreu porque o
projétil saiu com velocidade tal e bateu com um impacto tal na
hora em que a cabeça do sujeito estava na frente.
Além disso, o sujeito para matar o outro tem que ter tido um
motivo, ou seja, é um processo de causalidade psicológica que está
envolvida. Ademais, o crime tem repercussões de ordem jurı́dica.
Tem lá um determinado tipo de crime, que aquela sociedade encara
de uma certa maneira, e que vai ter tais ou quais conseqüências
de ordem judicial. Tudo isso está conectado no mesmo evento.
A lógica é o qenos eficiente. Por outro lado, lhes parecerá mais
cientı́fico.
[ Aluno: Ele confunde uma utilidade prática com um grau de ...
]
...não, mas não tem utilidade prática nenhuma! Veja, isso é uma
coisa que para mim me parece falso; se você pegar as possibilida-
des que têm um computador desses de mesa, e a possibilidade que
um cidadão tem de usá-lo, é uma desproporção total. Um compu-
tador é como se você tivesse4
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