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A psicopatologia na
pós-modernidade*
As alquimias no mal-estar da atualidade
Joel Birman
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A intenção deste estudo é a de circunscrever a
especificidade da psicopatologia na pós-modernidade. Para
isso, procura-se demonstrar as relações daquela com a
medicina e as neurociências, assim como a sua recusa da
psicanálise. Além disso, pretende-se mostrar como o
interesse atual da psiquiatria nas pesquisas sobre as
depressões, as toxicomanias e a síndrome do pânico pode
ser interpretado a partir dos modelos de subjetividade
promovidos pelo mundo pós-moderno.
I. A clínica na atualidade
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e antiga psicopatologia, por um lado, e de uma nova psicopatologia, em
contrapartida, pelo outro. É bom que se diga, logo no início, que as idéias
de novidade e de antiguidade devem ser consideradas aqui de uma maneira
totalmente contextual e conjuntural. Contudo, o fato de sublinhar a
relevância do contexto e da conjuntura não se opõe ao relevo que se confere
à idéia de história, isto é, a uma leitura histórica dos discursos
psicopatológico e psiquiátrico. Ao contrário, as noções de contexto e de
conjuntura apenas podem ser bem apreendidas quando inscritas na trama
de uma temporalidade histórica, à medida que apenas assim a especificidade
do discurso psicopatológico atual pode ser bem evidenciado. É necessário,
pois, circunscrever devidamente este campo, porque a nitidez e a
consistência da interpretação que será aqui avançada e proposta estão na
dependência estrita desta delimitação teórica e histórica.
Vamos delinear aqui, então, este campo atual da psicopatologia,
sublinhando aquilo que é valorizado no registro das publicações es-
pecializadas, antes de mais nada. Estou me referindo às publicações
advindas dos mundos anglo-saxônico e brasileiro, mas acredito, pela
pesquisa que realizei, que o mesmo se possa dizer da psicopatologia
francesa. Assim, o que se pode depreender da leitura, mesmo superficial,
das revistas especializadas?
Antes de mais nada, as publicações são centradas em três enfermidades,
ou síndromes, como vocês quiserem nomear tais perturbações do espírito,
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às depressões, às toxicomanias e à síndrome do pânico. É no campo deste duplo
relativismo que é preciso empreender o interesse da atual psicopatologia nestas
três formas de perturbação do espírito, o que evidencia devidamente a dimensão
histórica do dispositivo psiquiátrico em questão.
É preciso reconhecer, em seguida, que não é evidente o interesse revelado
pela psicopatologia por tais perturbações mentais. Isso é óbvio, venhamos e con-
venhamos. Porém, isso precisa ser não apenas mostrado, mas também demons-
trado. De qualquer maneira, é preciso dar lugar ao espanto que este interesse
provoca, para que se possa interpretar a sua construção histórica. Com efeito,
pode-se até mesmo afirmar que existe algo de estranho e de enigmático nestas
escolhas da psicopatologia recente. Tudo isso é bastante espantoso, seguramente.
Por que afirmo isso?
II. Enigmas?
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da medicina. O desenvolvimento recente das neurociências possibilitou a
reconstrução da medicina mental, aproximando esta, finalmente, da medicina
somática. Completou-se, com isso, o sonho do saber psiquiátrico de se trans-
formar não apenas numa ciência, mas numa especialidade médica.
Pode-se depreender disso o que existe de antigo e de novo na psicopatologia
da atualidade, como afirmei inicialmente. Com efeito, ao se fundamentar no
discurso das neurociências, a psicopatologia consegue se realizar como uma
modalidade de saber médico, se encontrando com a sua antiga pretensão originária
de pertencer ao campo da medicina. Nada mais antigo, pois, que a novidade
apresentada pela psicopatologia contemporânea, que encontra finalmente as suas
origens e seus mitos fundadores, legitimando a sua identidade médica.
Ao se fundamentar nos discursos das neurociências a psicopatologia atual
pôde questionar a causalidade moral das perturbações do espírito, para nos
valermos da linguagem do discurso psiquiátrico originário,4 onde se opunham
as causas morais e físicas das perturbações mentais. Isso porque as neurociências
Com isso a psiquiatria era essencialmente psicanalítica, regulada que era pelos
cânones psicanalíticos. Esta presença podia ser verificada tanto nas tradições
francesa, quanto na inglesa e na norte-americana. Contudo, nos anos 70 tudo
isso se transformou. O paradigma biológico da psiquiatria se impôs,
reconstituindo o discurso psicopatológico em novas bases. Conseqüentemente,
a psicanálise perdeu o lugar de hegemonia no campo da psiquiatria, ficando, pois,
numa posição secundária e subalterna.
Este processo histórico de reconstrução do campo psicopatológico já era
evidente nos Estados Unidos no início dos anos 70, num processo irreversível
iniciado nos anos 60.5 Na França, este processo de autonomização da psiquiatria
face à psicanálise iniciou-se nos anos 80 e está em curso. No Brasil e na América
Latina pode-se reconhecer o mesmo rumo nas novas relações entre a psiquiatria
e a psicanálise.
Porém, todo este processo apresenta ainda uma outra face, que é tão
fundamental quanto a primeira. Com efeito, a psicanálise não perdeu apenas a
hegemonia no campo da psicopatologia, sendo substituída pelo paradigma
biológico, mas, além disso, tem mostrado um interesse crescente pelos modelos
biológicos das neurociências. Vale dizer, a psicanálise passa a incorporar no seu
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discurso os referenciais teóricos do discurso psiquiátrico. Tudo isso des-
caracteriza, evidentemente, o discurso psicanalítico.
Pode-se perceber isso não apenas no registro das novas publicações em
psicanálise, como também nas linhas de pesquisa de laboratórios avançados de
psicanálise na universidade. Isso se passa não apenas na Europa e nos Estados
Unidos, como também na América Latina. A medicalização da psicanálise atingiu
um outro limite, absolutamente novo, do que já conhecíamos de outros momentos
da história do movimento psicanalítico.
Nesta inversão de lugares e de posições estratégicas, a psicanálise fica numa
posição agora secundária no campo da psicopatologia. Além disso, o discurso
psicanalítico começa a fazer bricolagens com os discursos das neurociências e
do cognitivismo, silenciando a sua especificidade. A inversão, enfim, é total, no
horizonte histórico que estamos inscritos, entre a psicanálise e a psiquiatria.
V. Funcionalidades e acontecimentos
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isso na ação terapêutica do medicamento, constituindo-se, pois, uma outra
concepção nosográfica.
Tudo isso revela uma mudança da estratégica médica frente ao mal-estar
corpóreo na sua diversidade. Não se pretende mais a cura, no sentido clássico
da medicina clínica, mas apenas a regulação do mal-estar. Por isso mesmo, o
medicamento se transforma no vetor da nova construção nosográfica, pois aquele
seria o eixo da regulação corpórea. Revela-se, assim, que a leitura do mal-estar
corporal assume uma direção totalmente funcional e não mais etiológica. Além
disso, as dimensões da história do enfermo e do tempo da doença se transformam
em questões secundárias diante do investimento que é realizado sobre o
disfuncionamento corpóreo e espacial da enfermidade. Enfim, o novo discurso
da medicina se centra sobre os acontecimentos corporais, marcados pela sua
pontualidade temporal.
Poderíamos até, se quiserem, articular esta nova construção teórica da
medicina com o sistema atual de cuidado e de assistência, no qual a regulação
flexível dos disfuncionamentos corpóreos é totalmente dominante face não apenas
ao diagnóstico mais conciso e profundo, mas também frente às terapêuticas
etiológicas. Seria nestes termos, enfim, que a medicalização do social se realiza
na atualidade.
Foi esta racionalidade funcional que a psicopatologia incorporou também
no seu campo, de acordo com os parâmetros da racionalidade médica. É sempre
a síndrome que está em questão, quando a psicopatologia se volta para a pesquisa
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Assim, pode-se dizer que a psicopatologia da dita pós-modernidade se
caracteriza pelo paradigma biológico, onde as neurociências funcionam como
sendo as referências teóricas daquela. Com isso, as psicoterapias ficam num plano
secundário no campo da intervenção terapêutica, centrada substancialmente nos
psicofármacos. Então a psicanálise passa a ocupar um lugar secundário e
periférico no discurso psicopatológico atual. Além disso, as intervenções assumem
uma incidência pontual, baseando-se em disfuncionamentos onde o registro das
histórias dos sujeitos é algo absolutamente secundário.
Porém, após todo este percurso de caracterização da psicopatologia da pós-
modernidade é preciso agora retomar o nosso ponto de partida, isto é, o fato de
que neste campo psicopatológico se privilegiem as depressões, as toxicomanias
e a síndrome do pânico. É sobre o enigma que isso tudo representa que devemos
nos voltar agora.
Para realizar isso, em contrapartida, é preciso que desconfiemos, por pouco
que seja, das evidências clínicas da psicopatologia. Vale dizer, como não se pode
confiar inteiramente na cientificidade da psiquiatria, é preciso que nos indaguemos
saber as supostas obviedades do consenso psicopatológico. Para isso, necessário
é que nos perguntemos sobre a modalidade negativa de subjetividade que perpassa
a leitura destas diferentes perturbações psíquicas, para que se possa surpreender
qual é o estilo de sujeito que é positivamente destacado na atualidade. Vale dizer,
é preciso caracterizar devidamente qual é o ideal de valores que deve pautar a
forma de ser da individualidade no mundo pós-moderno. Quero dizer com isto
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DE PSICOPATOLOGIA
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se tecendo, indicando, com isso, uma ruptura com a modernidade.
Pode-se afirmar que, pela noção de sociedade do espetáculo, Débord indicara
que a demanda de engendramento do espetacular definia o estilo de ser das
individualidades e da relação entre essas na pós-modernidade. A idéia de espetáculo
se conjuga aqui com as de exibição e de teatralidade, pelas quais os atores se
inserem como personagens na cena social. Tratar-se-ia, antes de mais nada, de
máscaras, mediante as quais as personas se inscrevem e desfilam no cenário
social. Além disso, as metáforas do exibicionismo e da mise-en-scène reenviam
para a de exterioridade, forma primordial pela qual se concebe a economia da
subjetividade na sociedade do espetáculo. Tudo isso remete para as resultantes
maiores desta leitura, isto é, a exaltação do eu e a estetização da existência
realizadas pelos indivíduos.
Pelos imperativos da estetização da existência e de inflação do eu, pode-se
fazer a costura entre as interpretações de Débord e de Lasch, já que a exigência
de transformar os percalços incertos de uma vida numa obra de arte evidencia o
narcisismo que o indivíduo deve cultivar na sociedade do espetáculo. Nesta
medida, o sujeito é regulado pela performatividade mediante a qual compõe os
gestos voltados para a sedução do outro. Este é apenas um objeto predatório
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positiva, já que pelo autocentramento se dedica interminavelmente ao polimento
de sua existência. Vale dizer, se dedica à sedução e ao fascínio do outro, pela
mediação capturante das imagens exibidas na cena social.
Tudo isso tem conseqüências fundamentais na construção do discurso da
psicopatologia na atualidade. Assim, se o sujeito dentro-de-si, demarcando a
noção de interioridade, não define mais o ser do sujeito de maneira absoluta,
rompendo uma longa tradição iniciada no século XVI, isso implica em reconhecer
que a oposição dentro-de-si e fora-de-si perde o poder simbólico de delinear os
territórios e os limites entre o sujeito e o outro. Por isso mesmo, as noções de
alteridade e de intersubjetividade se esvaziam e tendem ao silêncio na sociedade
narcísica do espetáculo. Além disso, neste apagamento de fronteiras entre o
dentro-de-si e o fora-de-si a idéia de temporalidade se esvai, entrando em colapso.
A subjetividade tende a ganhar contornos espaciais, definindo-se por superfícies
de contato e de superposição. Conseqüentemente as idéias de história e de
temporalidade vão desaparecendo da racionalidade psicopatológica, sendo
substituída pela noção de espaço. Enfim, a noção de memória se evapora
progressivamente, num mundo subjetivo espacializado, onde a historicidade e a
temporalidade não importam mais.
Pode-se depreender disso a perda de lugar das psicoses no discurso
psicopatológico na atualidade, à medida que aquelas eram as representações
paradigmáticas do sujeito fora-de-si. Por isso mesmo, as psicoses ocuparam o
lugar privilegiado no discurso psiquiátrico desde as suas origens, até o final dos
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VIII. Alquimias
Dito tudo isso, pode surpreender quais as relações secretas que fundam a
psicopatologia da pós-modernidade. É possível indicar agora as relações
enigmáticas entre as depressões, as toxicomanias e a síndrome do pânico, que
delineiam o campo clínico preferencial da nosografia funcional da psiquiatria na
atualidade.
Assim, na cultura da exaltação desmesurada do eu não existe mais qual-
quer lugar para os deprimidos e os panicados. Esses são execrados, lançados
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no limbo da cena social, já que representam a impossibilidade de serem cida-
dãos da sociedade do espetáculo. Com efeito, a interiorização excessiva do de-
pressivo, marcado pelas cavilações suspirosas, assim como o terror fóbio, que
toma de corpo inteiro a individualidade panicada na cena pública, evidenciam como
tais individualidades não conseguem realizar a tão esperada exaltação de si mes-
mo e se dedicar à artesania de seus figurinos maneiros para se mostrar com
brilho na cena social.
A melancolia e o estilo sofredor de ser não estão mais na moda,
definitivamente, como se passava ainda com as gerações existencialistas e beat,
dos anos 40, 50 e 60. Da mesma forma, as pessoas com estilos mais retraído,
reflexivo e sonhador não se coadunam mais com a ética vigente da exaltação do
eu e do exibicionismo. A mundaneidade pós-moderna valoriza os carreiristas e
os oportunistas, que sabem utilizar os meios de se exibirem e de capturarem o
olhar dos outros, independente de qualquer outra coisa que esteja em jogo em
termos de valores. Daí porque existe um certo conservadorismo político no
universo pós-moderno, à medida que a modernidade sempre foi associada à ética
da ruptura e da utopia em oposição ao exibicionismo barato.
Desta maneira, para os ferrados, que não conseguem dizer “cheguei”, de
peito inflado, a fórmula mágica é a alquimia, para mudar a circulação dos humores.
É preciso dar uma pancada química na bílis negra, nos dizem os novos
especialistas da alma sofrentes. Por este meio seria possível, acreditam aqueles,
retirar as individualidades do cenário dark e inseri-las na cena colorida da
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ma de intervenção terapêutica e de seus desdobramentos inequívocos na cena
do social. Enfim, no estado de inebriamento tóxico as individualidades se sen-
tem como cidadãos de direito da sociedade do espetáculo, nem que seja por um
tempo limitado.
Na tragicomédia da cultura extasiante dos humores e dos brilharecos, a
psicanálise entra inevitavelmente em crise, já que como saber sobre o desejo tem
muito pouco a dizer sobre isso tudo, já que foi em face da exaltação inebriante
do eu que aquela sempre se confrontou. Pretendendo realizar a desconstrução
da majestade clownesca do eu, a psicanálise se funda numa ética que se choca
com os pressupostos da ontologia do espetáculo. Como é que aquela vai sair
desse imbróglio, se é que sairá inteira deste confronto de Titãs, já é um outro
capítulo sobre o mal-estar na atualidade.
Paris, 5 de fevereiro de 1998.
Resumos
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