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Carlos Biasotti

Ilícito Civil e Ilícito Penal


(Doutrina e Jurisprudência)

2020
São Paulo, Brasil
O Autor

Carlos Biasotti foi advogado criminalista, presidente da


Acrimesp (Associação dos Advogados Criminalistas do Estado
de São Paulo) e membro efetivo de diversas entidades (OAB,
AASP, IASP, ADESG, UBE, IBCCrim, Sociedade Brasileira de
Criminologia, Associação Americana de Juristas, Academia
Brasileira de Direito Criminal, Academia Brasileira de Arte,
Cultura e História, etc.).

Premiado pelo Instituto dos Advogados de São Paulo, no


concurso O Melhor Arrazoado Forense, realizado em 1982, é autor
de Lições Práticas de Processo Penal, O Crime da Pedra, Tributo aos
Advogados Criminalistas, Advocacia Criminal (Teoria e Prática), além
de numerosos artigos jurídicos publicados em jornais e revistas.

Juiz do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo


(nomeado pelo critério do quinto constitucional, classe dos
advogados), desde 30.8.1996, foi promovido, por merecimento, em
14.4.2004, ao cargo de Desembargador do Tribunal de Justiça.

Condecorações e títulos honorícos: Colar do Mérito


Judiciário (instituído e conferido pelo Poder Judiciário do Estado
de São Paulo); medalha cívica da Ordem dos Nobres Cavaleiros de
São Paulo; medalha cultural “ Brasil 500 anos”; medalha “ Prof. Dr.
Antonio Chaves”, etc.
Ilícito Civil e Ilícito Penal
(Doutrina e Jurisprudência)
Carlos Biasotti

Ilícito Civil e Ilícito Penal


(Doutrina e Jurisprudência)

2020
São Paulo, Brasil
Índice

I. Preâmbulo......................................................................11

II. Ilícito Civil.......................................................................13

III. Ilícito Penal.....................................................................23

IV. Casos Especiais................................................................33

V. Prática da “Pendura”.........................................................86

VI. Damásio E. de Jesus: Honra e Glória


do Direito Penal..............................................................99
I. Preâmbulo

Abalizados autores, tendo-a por muito sutil,


nenhuma distinção fazem entre o ilícito civil e o ilícito
penal. Tratar-se-ia – como lhe chamou Giuriati – de
zona cinzenta entre o reino branco do direito civil e o
reino sombrio da delinquência(1).
A melhor doutrina, contudo, reputa configurada a
fraude penal quando o sujeito põe o intento num fim
ilícito.
Advertiu, com efeito, o maior de nossos penalistas:
“Somente integra um crime a fraude que reveste o cunho de
especial malignidade” (Nélson Hungria, Comentários ao
Código Penal, 1980, vol. VII, p. 182).
Pelo que, visto não é a Justiça Criminal o foro
competente para dirimir conflitos que entendem com o
Direito Civil (na esfera das inadimplências contratuais),
constituiria a instauração de persecução penal, em tal
caso, grave exemplo de subversão de princípios capitais
de nosso sistema jurídico.

(1) “(…) la zona grigia fra il regno bianco del diritto civile e il regno nero
della criminalità” (apud Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal,
1990, vol. VII, p. 191).
12

A sanção penal, atentas suas profundas


consequências para o indivíduo, deve-se reservar às
hipóteses em que demonstrada, inequivocamente, a
existência de crime (art. 395, nº III, do Cód. Proc. Penal).
Eis, benévolo e paciente leitor, o conteúdo deste
livrinho (que lhe dedico “ex corde”): reunião de ementas
de votos que proferi na 2a. Instância da Justiça Criminal
do Estado de São Paulo. Tomara lhe agrade e aproveite!
Paz e alegria!
O Autor
Ementário Forense
(Votos que, em matéria criminal, proferiu o Desembargador
Carlos Biasotti, do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo. Veja a íntegra dos votos no Portal do Tribunal de
Justiça: http://www.tjsp.jus.br).

II. Ilícito Civil

Voto nº 4079
Recurso em Sentido Estrito nº 1.324.789/0
Art. 345 do Cód. Penal;
art. 43, nº I, do Cód. Proc. Penal

— É superior a toda crítica a decisão que rejeita de plano queixa-


-crime, sob o argumento de que o fato nela descrito não entende
com a esfera criminal, senão com o Direito Civil, no âmbito das
inadimplências contratuais. A sanção penal, de consequências graves
para o indivíduo, deve-se reservar às hipóteses em que demonstrada,
inequivocamente, a existência de crime (art. 43, nº I, do Cód. Proc.
Penal).
—“Se um fato ilícito, hostil a um interesse individual ou coletivo, pode ser
convenientemente reprimido com as sanções civis, não há motivo para a
reação penal” (Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, 1978,
vol. I, t. II, p. 35).
14

Voto nº 1621
Apelação Criminal nº 1.147.243/1
Art. 171 do Cód. Penal

— Exceto se comprovado inequivocamente que uma das partes obrou


com dolo mediante fraude, eventual prejuízo por inadimplência de
contrato de compra e venda é questão que entende com o Direito
Civil e não pode ser dirimida na esfera criminal.

Voto nº 1933
Apelação Criminal nº 1.168.353/3
Art. 171 do Cód. Penal;
art. 44 do Cód. Penal

— De muito sutil, graves autores não fazem distinção entre o ilícito


civil e o penal. Trata-se – como lhe chamou Giuriati – de zona
cinzenta entre o reino branco do direito civil e o reino sombrio da
delinquência: “la zona grigia fra il regno bianco del diritto civile e il
regno nero della criminalità” (apud Nélson Hungria, Comentários ao
Código Penal, 1980, vol. VII, p. 191). A melhor doutrina, contudo,
reputa configurada fraude penal quando o sujeito põe o intento num
fim ilícito.
— Comete estelionato (art. 171 do Cód. Penal) o agente que falsifica
documentos para obter vantagem ilícita, mediante financiamento de
contrato de compra e venda de veículos automotores, em prejuízo
da instituição-vítima.
— Não se procede à substituição da pena privativa de liberdade por
restritiva de direitos, se isto equivaleria a sancionar a impunidade de
sujeito que se abalizou na vida do crime, dela fazendo profissão.
15

Voto nº 3333
Revisão Criminal nº 386.744/4
Art. 171 do Cód. Penal;
art. 621, nº I, do Cód. Proc. Penal

— Não comete crime de estelionato quem, ao vender a terceiro


cotas de empresa comercial, silencia e não lhe especifica débitos
preexistentes, responsabilizando-se apenas, genericamente, pelo
passivo. É que, tendo-se obrigado já por cláusula contratual
expressa, não lhe corria o dever jurídico de falar.
—“Em linha de princípio, não constitui o silêncio manifestação de vontade,
nem afirmativa, nem negativa, nem tácita” (Orosimbo Nonato,
Da Coação como Defeito do Ato Jurídico, 1957, p. 83).
— Advertiu o maior de nossos penalistas: “Somente integra um crime a
fraude que reveste cunho de especial malignidade” (Nélson Hungria,
Comentários ao Código Penal, 1980, vol. VII, p. 182).
—“O dolo civil não reveste os caracteres jurídicos do estelionato” (Viveiros de
Castro, Questões de Direito Penal, p. 118).
— A condenação do réu, sem prova plena e cabal, é gênero de injustiça
grande, que ao Juiz da revisão criminal toca reparar pontualmente.
16

Voto nº 8640
Recurso de Ofício nº 832.150-3/7-00
Art. 171, “caput”, do Cód. Penal

— Advertiu o maior de nossos penalistas: “Somente integra um crime a


fraude que reveste cunho de especial malignidade” (Nélson Hungria,
Comentários ao Código Penal, 1980, vol. VII, p. 182).
— A inadimplência de obrigação contratual que se não revista de
fraude é modalidade de ilícito da esfera do Direito Civil, e não da
jurisdição penal.
— Sob pena de constituir violência contra o “status dignitatis” do
indivíduo, a instauração de persecução penal unicamente se admite
em face de prova cabal da existência do crime e de indícios
veementes de sua autoria.
17

Voto nº 1379
Recurso de “Habeas Corpus” nº 1.145.535/4
Art. 168 do Cód. Penal

— Configura constrangimento ilegal, remediável por “habeas corpus”,


o ato da autoridade policial que, para resolver pendência entre
terceiro, em cujo nome foi o bem adquirido, e seu possuidor, ordena
contra este medidas drásticas de apreensão e indiciamento por
apropriação indébita.
— Visto não constitui a Justiça Criminal foro apropriado à composição
de litígios decorrentes de inadimplência contratual, possível lesão de
direito ou interesse da parte deve ser apurada por vias ordinárias, na
ampla esfera do Direito Civil.

Voto nº 4472
Recurso em Sentido Estrito nº 1.338.181/7
Art. 171, “caput”, do Cód. Penal;
art. 43, ns. I e II, do Cód. Proc. Penal

— Advertiu o maior de nossos penalistas: “Somente integra um crime a


fraude que reveste cunho de especial malignidade” (Nélson Hungria,
Comentários ao Código Penal, 1980, vol. VII, p. 182).
—“O dolo civil não reveste os caracteres jurídicos do estelionato” (Viveiros de
Castro, Questões de Direito Penal, p. 118).
— Sob pena de constituir violência contra o “status dignitatis” do
indivíduo, a instauração de persecução penal unicamente se admite
em face de prova cabal da existência do crime e de indícios
veementes de sua autoria.
18

Voto nº 4580
Recurso em Sentido Estrito nº 1.347.479/1
Art. 171, “caput”, do Cód. Penal;
art. 43, ns. I e III, do Cód. Proc.Penal

— Advertiu o maior de nossos penalistas: “Somente integra um crime a


fraude que reveste cunho de especial malignidade” (Nélson Hungria,
Comentários ao Código Penal, 1980, vol. VII, p. 182).
—“O dolo civil não reveste os caracteres jurídicos do estelionato” (Viveiros de
Castro, Questões de Direito Penal, p. 118).
— Sob pena de constituir violência contra o “status dignitatis” do
indivíduo, a instauração de persecução penal unicamente se admite
em face de prova cabal da existência do crime e de indícios
veementes de sua autoria.

Voto nº 4946
Recurso de Ofício nº 1.368.173/4
Art. 1º da Lei n º 1.521/51;
art. 38 do Cód. Proc. Penal

— Advertiu o maior de nossos penalistas: “Somente integra um crime a


fraude que reveste cunho de especial malignidade” (Nélson Hungria,
Comentários ao Código Penal, 1980, vol. VII, p. 182).
— A inadimplência de obrigação contratual que se não revista de
fraude é modalidade de ilícito da esfera do Direito Civil, e não da
jurisdição penal.
— Sob pena de constituir violência contra o “status dignitatis” do
indivíduo, a instauração de persecução penal unicamente se admite
em face de prova cabal da existência do crime e de indícios
veementes de sua autoria.
19

Voto nº 7799
“Habeas Corpus” nº 1.003.154-3/7-00
Arts. 171 e 176, parág. único, do Cód. Penal;
art. 659 do Cód. Proc. Penal

—“As atribuições do Ministério Público, bem compreendidas, são as mais belas


que existem” (De Molénes; apud J.B. Cordeiro Guerra, A Arte de
Acusar, 1a. ed., p. 99).
— Segundo a comum opinião dos doutores e a jurisprudência de
nossos Tribunais, não comete crime de estelionato o acadêmico de
Direito que, por festejar a data comemorativa da instituição dos
cursos jurídicos no País – 11 de agosto –, pratica a denomina
“pendura”, isto é: dirige-se a uma casa de pasto e, após comer à tripa
forra e entrar galhardamente pelas bebidas, chama a seu pé o dono
do estabelecimento e comunica-lhe, em discurso de pompa e
circunstância, que aquele troço de estudantes quer homenageá-lo
como a amigo e benfeitor da velha e gloriosa Academia de Direito
do Largo de São Francisco, além de significar-lhe eterna gratidão
pelo “oferecimento” do memorável banquete.
— Em escólio ao art. 176 do Código Penal escreveu Damásio E. de
Jesus: “Entendeu-se haver mero ilícito civil e não penal, uma vez que o
tipo exige que o sujeito não possua recursos para o pagamento dos serviços”
(Código Penal Anotado, 17a. ed., p. 674).
— Dispõe o art. 659 do Cód. Proc. Penal que, se o Tribunal verificar ter
já cessado a violência ou coação ilegal de que se queixa o paciente,
lhe julgará prejudicado o pedido de “habeas corpus”.
—“Julga-se o habeas corpus prejudicado quando o impetrante obtém, durante
a ação, a situação jurídica reclamada” (STJ; HC nº 1.623/2; 6a. T.;
rel. Min. Vicente Cernicchiaro; j. 18.12.96).
20

Voto nº 3815
Apelação Criminal nº 1.304.831/4
Art. 171, “caput”, do Cód. Penal;
art. 78, § 1º, do Cód. Penal

— De muito sutil, graves autores não fazem distinção entre o ilícito


civil e o penal. Trata-se – como lhe chamou Giuriati – de zona
cinzenta entre o reino branco do direito civil e o reino sombrio da
delinquência: “la zona grigia fra il regno bianco del diritto civile e il
regno nero della criminalità” (apud Nélson Hungria, Comentários ao
Código Penal, 1980, vol. VII, p. 191). A melhor doutrina, contudo,
reputa configurada fraude penal quando o sujeito põe o intento num
fim ilícito.
— O sujeito que adquire a terceiro estabelecimento comercial (padaria)
e dá-lhe em pagamento imóvel penhorado e notas promissórias, que
não resgata, demais de dilapidar o novo patrimônio, incorre nas
penas de estelionato (art. 171, “caput”, do Cód. Penal), por seu claro
propósito de, mediante fraude, obter vantagem ilícita em prejuízo
alheio.
— Não se procede à substituição da pena privativa de liberdade por
restritiva de direitos, se isto equivale a sancionar a impunidade de
sujeito que abraçou a vida do crime, dele fazendo profissão.
21

Voto nº 12.531
“Habeas Corpus” nº 990.09.131649-0
Arts. 168, § 1º, nº III, e 116, nº II, do Cód. Penal;
art. 93 do Cód. Proc. Penal

— Não entra em dúvida que, a despeito do princípio da presunção


de inocência, consagrado na Constituição da República (art. 5º,
nº LVII), subsiste a providência da prisão preventiva, quando
conspiram os requisitos legais do art. 312 do Código de Processo
Penal: garantia da ordem pública, conveniência da instrução
criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, desde que
comprovada a materialidade da infração penal e haja indícios de
sua autoria.
— Não requer o despacho de prisão preventiva o mesmo rigor que
deve encerrar a decisão definitiva de condenação. É o escólio de
Damásio E. de Jesus ao art. 312 do Cód. Proc. Penal: “A prisão
preventiva exige prova bastante da existência do crime e indícios
suficientes de autoria. Não é necessária a mesma certeza que deve ter o
juiz para a condenação do réu” (cf. Código de Processo Penal Anotado,
22a. ed., p. 249).
— Matéria de alta indagação, como a que entende com a autoria do
crime, é insuscetível de exame em processo de “habeas corpus”, de
rito sumaríssimo; apenas tem lugar na instância ordinária, com
observância da regra do contraditório. Trancamento de ação penal
por falta de justa causa unicamente se admite quando comprovada,
ao primeiro súbito de vista, a atipicidade do fato imputado ao réu,
ou a sua inocência (art. 648, nº I, do Cód. Proc. Penal).
—“Exame de provas em habeas corpus é cabível desde que simples, não
contraditória e que não deixa alternativa à convicção do julgador” (STF;
HC; rel. Min. Clóvis Ramalhete; DJU 18.9.81, p. 9.157).
— O crime de tráfico de entorpecentes é insuscetível de liberdade
provisória (art. 44 da Lei nº 11.343/06).
22

— Em caso de “habeas corpus” fundado na alegação de falta de justa


causa, forçoso é proceder ao exame da prova, único processo lógico
de apreensão da verdade. “O que a lei não permite e o que a doutrina
desaconselha é a reabertura de um contraditório de provas, no processo
sumaríssimo de habeas corpus” (Rev. Trim. Jurisp., vol. 40, p. 271).
— Como a Justiça Criminal não é foro competente para dirimir
conflitos que entendam com o vasto campo do Direito das
Obrigações, não entra em dúvida que a instauração da persecução
penal, nesses casos, constitui grave exemplo de subversão de
princípios capitais de nosso sistema jurídico.
— Toda a ameaça ao “status dignitatis” do indivíduo deve o Juiz, tão
logo lhe venha de molde a ocasião, atalhar com firmeza e vigor,
em ordem a não sancionar, com sua autoridade e prestígio,
situação a um tempo ilegal e injusta; não raro, iníqua.
—“O Estado só deve recorrer à pena quando a conservação da ordem
jurídica não se possa obter com outros meios de reação, isto é, com os
meios próprios do direito civil (ou de outro ramo do direito que não o
penal). A pena é um mal, não somente para o réu e sua família, senão
também, sob o ponto de vista econômico, para o próprio Estado”
(Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, 1980, vol. VIII,
p. 173).
III. Ilícito Penal

Voto nº 1701
Apelação Criminal nº 1.156.317/5
Arts. 171, § 2º, nº I; 171, § 2º, nº III, e 71 do Cód. Penal

— Pratica ilícito penal, e não civil, aquele que, maliciosamente, dá em


garantia coisa alheia como própria e, destarte, obtém indevido
proveito patrimonial (art. 171, § 2º, nº I, do Cód. Penal).
— No crime continuado (art. 71 do Cód. Penal), mais que o lapso
temporal (que não deve ser apreciado com rigor), importa a unidade
de desígnio do réu.
— Instituto de incentivo à recuperação do infrator, o Juiz deve
conceder, sempre que possível e com mão generosa, o benefício do
“sursis” ao réu não-perigoso.
24

Voto nº 1880
“Habeas Corpus” nº 348.950/4
Art. 171 do Cód. Penal;
arts. 647 e 648, nº I, do Cód. Proc. Penal

— Carece de “fumus boni juris”, ou justa causa, a persecução criminal


que não tem a sanção da lei ou não lhe satisfaz os requisitos.
— Tem lugar, no âmbito do “habeas corpus”, o exame de prova, como
antecedente lógico da operação do espírito que permite aferir a
existência de justa causa. (A ser defesa a análise da matéria de fato
em “habeas corpus”, tornar-se-ia impossível toda a verificação da
existência do requisito principalíssimo da instauração da instância
criminal: a justa causa).
— Na ação de “habeas corpus”, no entanto, o exame da prova deve ser
perfunctório e ligeiro, não aprofundado e de espaço.
— No geral sentir dos doutores, a falta de justa causa, para efeito de
trancamento de ação penal, somente pode ser reconhecida se
evidente e perceptível ao primeiro súbito de vista.
— O direito à liberdade, como afirmou um grande espírito, “é igual ao da
própria vida, senão superior a ele” (Bento de Faria, Código de Processo
Penal, 1960, vol. II, p. 372).
— Pelo comum, a lesão patrimonial deve ser apurada nas vias
ordinárias, no vasto campo do Direito das Obrigações, pois a Justiça
Criminal não constitui foro apropriado à composição de litígios.
Não faltam exemplos, contudo, de avenças de cunho tipicamente
civil que deitaram seus efeitos para a órbita penal.
25

Voto nº 1933
Apelação Criminal nº 1.168.353/3
Art. 171 do Cód. Penal;
art. 44 do Cód. Penal

— De muito sutil, graves autores não fazem distinção entre o ilícito


civil e o penal. Trata-se – como lhe chamou Giuriati – de zona
cinzenta entre o reino branco do direito civil e o reino sombrio da
delinquência: “la zona grigia fra il regno bianco del diritto civile e il
regno nero della criminalità” (apud Nélson Hungria, Comentários ao
Código Penal, 1980, vol. VII, p. 191). A melhor doutrina, contudo,
reputa configurada fraude penal quando o sujeito põe o intento num
fim ilícito.
— Comete estelionato (art. 171 do Cód. Penal) o agente que falsifica
documentos para obter vantagem ilícita, mediante financiamento de
contrato de compra e venda de veículos automotores, em prejuízo
da instituição-vítima.
— Não se procede à substituição da pena privativa de liberdade por
restritiva de direitos, se isto equivaleria a sancionar a impunidade de
sujeito que, tendo optado pela vereda do crime, dele fez profissão.
26

Voto nº 3333
Revisão Criminal nº 386.744/4
Art. 171 do Cód. Penal;
art. 621, nº I, do Cód. Proc. Penal

— Não comete crime de estelionato quem, ao vender a terceiro


cotas de empresa comercial, silencia e não lhe especifica débitos
preexistentes, responsabilizando-se apenas, genericamente, pelo
passivo. É que, tendo-se obrigado já por cláusula contratual
expressa, não lhe corria o dever jurídico de falar.
—“Em linha de princípio, não constitui o silêncio manifestação de vontade,
nem afirmativa, nem negativa, nem tácita” (Orosimbo Nonato,
Da Coação como Defeito do Ato Jurídico, 1957, p. 83).
— Advertiu o maior de nossos penalistas: “Somente integra um crime a
fraude que reveste cunho de especial malignidade” (Nélson Hungria,
Comentários ao Código Penal, 1980, vol. VII, p. 182).
—“O dolo civil não reveste os caracteres jurídicos do estelionato” (Viveiros de
Castro, Questões de Direito Penal, p. 118).
— A condenação do réu, sem prova plena e cabal, é gênero de injustiça
grande, que ao Juiz da revisão criminal toca reparar pontualmente.
27

Voto nº 3534
Apelação Criminal nº 1.286.769/0
Art. 171, § 2º, nº I, do Cód. Penal

— Incorre nas penas do art. 171, § 2º, nº, I, do Cód. Penal o sujeito que
dá, em garantia hipotecária de dívida, imóvel que já lhe não
pertence. O que procede nessa conformidade comete fraude penal,
e não civil, porque, desde o início, armava ao escopo de induzir
a vítima em erro para obter vantagem ilícita, apanágio do
estelionatário.

Voto nº 3815
Apelação Criminal nº 1.304.831/4
Art. 171, “caput”, do Cód. Penal;
art. 78, § 1º, do Cód. Penal

— De muito sutil, graves autores não fazem distinção entre o ilícito


civil e o penal. Trata-se – como lhe chamou Giuriati – de zona
cinzenta entre o reino branco do direito civil e o reino sombrio da
delinquência: “la zona grigia fra il regno bianco del diritto civile e il
regno nero della criminalità” (apud Nélson Hungria, Comentários ao
Código Penal, 1980, vol. VII, p. 191). A melhor doutrina, contudo,
reputa configurada fraude penal quando o sujeito põe o intento num
fim ilícito.
— O sujeito que adquire a terceiro estabelecimento comercial (padaria)
e dá-lhe em pagamento imóvel penhorado e notas promissórias, que
não resgata, demais de dilapidar o novo patrimônio, incorre nas
penas de estelionato (art. 171, “caput”, do Cód. Penal), por seu claro
propósito de, mediante fraude, obter vantagem ilícita em prejuízo
alheio.
— Não se procede à substituição da pena privativa de liberdade por
restritiva de direitos, se isto equivale a sancionar a impunidade de
sujeito que se abalizou na vida do crime, dela fazendo profissão.
28

Voto nº 4946
Recurso de Ofício nº 1.368.173/4
Art. 1º da Lei nº 1.521/51;
art. 38 do Cód. Proc. Penal

— Advertiu o maior de nossos penalistas: “Somente integra um crime a


fraude que reveste cunho de especial malignidade” (Nélson Hungria,
Comentários ao Código Penal, 1980, vol. VII, p. 182).
— A inadimplência de obrigação contratual que se não revista de
fraude é modalidade de ilícito da esfera do Direito Civil, e não da
jurisdição penal.
— Sob pena de constituir violência contra o “status dignitatis” do
indivíduo, a instauração de persecução penal unicamente se admite
em face de prova cabal da existência do crime e de indícios
veementes de sua autoria.

Voto nº 8317
Apelação Criminal nº 484.590-3/3-00
Arts. 44 e 171, “caput”, do Cód. Penal;
art. 156 do Cód. Proc. Penal

— Realiza a figura típica do art. 171, “caput”, do Cód. Penal, sujeitando-


-se portanto ao rigor da lei, o indivíduo que, após ilaquear a boa-fé
de terceiro mediante falsa alegação, obtém-lhe indevida vantagem
econômica.
— As palavras firmes e coerentes da vítima, aliadas a frágil e
infidedigna autodefesa do réu, bastam a justificar-lhe a condenação,
pois as manobras fraudulentas do estelionatário não ostentam, pelo
comum, a clareza da luz meridiana.
— De muito sutil, graves autores não fazem distinção entre o ilícito
civil e o penal. A doutrina mais bem aforada, no entanto, considera
penal a fraude quando o sujeito visa a um fim ilícito (art. 171 do Cód.
Penal).
29

Voto nº 8640
Recurso de Ofício nº 832.150-3/7-00
Art. 171, “caput”, do Cód. Penal

— Advertiu o maior de nossos penalistas: “Somente integra um crime a


fraude que reveste cunho de especial malignidade” (Nélson Hungria,
Comentários ao Código Penal, 1980, vol. VII, p. 182).
— A inadimplência de obrigação contratual que se não revista de
fraude é modalidade de ilícito da esfera do Direito Civil, e não da
jurisdição penal.
— Sob pena de constituir violência contra o “status dignitatis” do
indivíduo, a instauração de persecução penal unicamente se admite
em face de prova cabal da existência do crime e de indícios
veementes de sua autoria.
30

Voto nº 12.247
Apelação Criminal nº 993.08.017201-3
Arts. 168 e 44, §§ 2º e 3º, do Cód. Penal

— A palavra da vítima passa por excelente meio de prova e autoriza


decreto condenatório, se em conformidade com os outros elementos
de convicção reunidos no processado.
—“Se um fato ilícito, hostil a um interesse individual ou coletivo, pode ser
convenientemente reprimido com as sanções civis, não há motivo para a
reação penal” (Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, 1978,
vol. I, t. II, p. 35).
— É questão que entende com o Direito Penal (e não com o Direito
Civil), por encerrar assinalada malícia, o teor de proceder do sujeito
que, invertendo arbitrariamente o título de posse de coisa alheia,
usa-a em proveito próprio, com prejuízo de seu legítimo dono,
incorrendo assim nas penas do art. 168 do Cód. Penal (apropriação
indébita).
31

Voto nº 12.531
“Habeas Corpus” nº 990.09.131649-0
Arts. 168, § 1º, nº III, e 116, nº II, do Cód. Penal;
art. 93 do Cód. Proc. Penal

— Não entra em dúvida que, a despeito do princípio da presunção


de inocência, consagrado na Constituição da República (art. 5º,
nº LVII), subsiste a providência da prisão preventiva, quando
conspiram os requisitos legais do art. 312 do Código de Processo
Penal: garantia da ordem pública, conveniência da instrução
criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, desde que
comprovada a materialidade da infração penal e haja indícios
veementes de sua autoria.
— Não requer o despacho de prisão preventiva o mesmo rigor que
deve encerrar a decisão definitiva de condenação. É o escólio de
Damásio E. de Jesus ao art. 312 do Cód. Proc. Penal: “A prisão
preventiva exige prova bastante da existência do crime e indícios
suficientes de autoria. Não é necessária a mesma certeza que deve ter o
juiz para a condenação do réu” (cf. Código de Processo Penal Anotado,
22a. ed., p. 249).
— Matéria de alta indagação, como a que entende com a autoria do
crime, é insuscetível de exame em processo de “habeas corpus”, de
rito sumaríssimo; apenas tem lugar na instância ordinária, com
observância da regra do contraditório. Trancamento de ação penal
por falta de justa causa unicamente se admite quando comprovada,
ao primeiro súbito de vista, a atipicidade do fato imputado ao réu,
ou a sua inocência (art. 648, nº I, do Cód. Proc. Penal).
—“Exame de provas em habeas corpus é cabível desde que simples, não
contraditória e que não deixa alternativa à convicção do julgador” (STF;
HC; rel. Min. Clóvis Ramalhete; DJU 18.9.81, p. 9.157).
— O crime de tráfico de entorpecentes é insuscetível de liberdade
provisória (art. 44 da Lei nº 11.343/06).
32

— Em caso de “habeas corpus” fundado na alegação de falta de justa


causa, forçoso é proceder ao exame da prova, único processo lógico
de apreensão da verdade. “O que a lei não permite e o que a doutrina
desaconselha é a reabertura de um contraditório de provas, no processo
sumaríssimo de habeas corpus” (Rev. Trim. Jurisp., vol. 40, p. 271).
— Como a Justiça Criminal não é foro competente para dirimir
conflitos que entendam com o vasto campo do Direito das
Obrigações, não entra em dúvida que a instauração da persecução
penal, nesses casos, constitui grave exemplo de subversão de
princípios capitais de nosso sistema jurídico.
— Toda a ameaça ao “status dignitatis” do indivíduo deve o Juiz, tão
logo lhe venha de molde a ocasião, atalhar com firmeza e vigor,
em ordem a não sancionar, com sua autoridade e prestígio,
situação a um tempo ilegal e injusta; não raro, iníqua.
—“O Estado só deve recorrer à pena quando a conservação da ordem
jurídica não se possa obter com outros meios de reação, isto é, com os
meios próprios do direito civil (ou de outro ramo do direito que não o
penal). A pena é um mal, não somente para o réu e sua família, senão
também, sob o ponto de vista econômico, para o próprio Estado”
(Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, 1980, vol. VIII,
p. 173).
IV. Casos Especiais: Reprodução Integral do Voto
PODER JUDICIÁRIO

1
TRIBUNAL DE ALÇADA CRIMINAL

OITAVO GRUPO DE CÂMARAS

Revisão Criminal nº 386.744/4


Comarca: São Paulo
Peticionário: SK

Voto nº 3333
Relator

— Não comete crime de estelionato quem,


ao vender a terceiro cotas de empresa
comercial, silencia e não lhe especifica
débitos preexistentes, responsabilizando-
-se apenas, genericamente, pelo passivo.
É que, tendo-se obrigado já por cláusula
contratual expressa, não lhe corria o
dever jurídico de falar.
—“Em linha de princípio, não constitui o
silêncio manifestação de vontade, nem
afirmativa, nem negativa, nem tácita”
(Orosimbo Nonato, Da Coação como
Defeito do Ato Jurídico, 1957, p. 83).
36

— Advertiu o maior de nossos penalistas:


“Somente integra um crime a fraude que
reveste cunho de especial malignidade”
(Nélson Hungria, Comentários ao Código
Penal, 1980, vol. VII, p. 182).
—“O dolo civil não reveste os caracteres
jurídicos do estelionato” (Viveiros de Castro,
Questões de Direito Penal, p. 118).
— A condenação do réu, sem prova plena e
cabal, é gênero de injustiça grande, que
ao Juiz da revisão criminal toca reparar
pontualmente.

1. SK, por seus advogados e procuradores, requer a


este Egrégio Tribunal, com fundamento no art. 621,
nº I, do Código de Processo Penal, revisão do processo-
-crime a que respondeu perante o MM. Juízo de
Direito da 2a. Vara Criminal da Comarca da Capital
(proc. nº 517/96).

Alega, em extensa e erudita petição – elaborada


pelos eminentes advogados Dr. Alberto Zacharias
Toron e Dra. Flávia Valente Pierro –, que, submetido
a processo por infração do art. 171, “caput”, do Código
Penal, foi absolvido, mas, tendo apelado a douta
Promotoria de Justiça, condenou-o a colenda 14a.
Câmara deste Egrégio Tribunal à pena de 1 ano de
reclusão e 10 dias-multa, com “sursis” pelo prazo de 2
anos, com prestação de serviços à comunidade no
primeiro ano.
37

Acrescenta que impetrara ordem de “habeas corpus”


ao Colendo Superior Tribunal de Justiça, que porém
lha denegou, a despeito do parecer favorável do
Ministério Público Federal.

Argumenta que o ven. acórdão rescindendo


condenou-o por fato penalmente atípico, pois não
obrara com dolo.

Em todo o caso, se algum ilícito cometeu, este


pertencia para a esfera cível, no campo das
inadimplências contratuais.

Acentua, à derradeira, que a decisão condenatória


contrariou a prova dos autos.

Pleiteia, destarte, absolvição, como medida de justiça


(fls. 2/32).

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em


detido, ponderado e criterioso parecer do Dr. Antonio
Sergio Bentivegna, opina pelo indeferimento do pedido
(fls. 115/118).

É o relatório.
38

2. Foi o peticionário chamado a prestar severas contas


à Justiça Criminal porque, aos 10 dias de maio de 1995,
no Largo Ubirajara (Belém), nesta Capital, obrando
em concurso com CSHK, obtivera para si vantagem
ilícita em prejuízo de Luiz Carlos Cassiano da Silva Jr. e
Tatiana Bianchi Cassiano da Silva, induzindo-os em
erro, mediante fraude.

Rezam os autos que as vítimas, nessa data,


contrataram com os réus a compra da totalidade das
cotas da empresa comercial Visão Auto Posto Ltda.
Posteriormente, em 20.6.95, as partes formalizaram o
negócio, com alteração do contrato social, cuja 4a.
cláusula dispunha que os réus faziam a referida venda
boa, firme, “valiosa, livre e desembaraçada de quaisquer
ônus, responsabilidades e dívidas fiscais”.

Mas, pelo mês de julho de 1995, as vítimas, já na


administração do posto, receberam notificação enviada
pelos advogados procuradores da Companhia São Paulo
Distribuidora de Derivados de Petróleo, dando-lhes a
conhecer a existência de dívida no valor de R$
53.946,99, referente a ação revisional de aluguel,
proposta pelo proprietário daquele imóvel em 1990,
com decisão judicial final, além de outros débitos para
com a Fazenda Nacional.
39

Assim, conforme a denúncia, teria o peticionário


induzido em erro as vítimas, com omitir-lhes a
circunstância do débito preexistente à transação
comercial.

Dado incurso nas sanções do art. 171, “caput”, do


Código Penal, foi-lhe instaurada a persecução penal em
Juízo.

Após o devido processo legal, a r. sentença de fls.


358/363 houve por atípico o fato imputado aos réus e
absolveu-os com fundamento no art. 386, nº III, do
Código de Processo Penal.

Inconformado com o desfecho da lide, apelou a


Acusação, reclamando o acolhimento da pretensão
punitiva (fls. 369/372).

A colenda 14a. Câmara deste Egrégio Tribunal


proveu-lhe o recurso para condenar os réus à pena
mínima prevista para o tipo (fls. 409/419).

A ven. decisão colegiada passou em julgado (fl. 527).


40

O peticionário, contudo, protestando inocência,


comparece de novo a esta augusta Corte de Justiça a
reclamar a restauração do direito violado, mediante
absolvição.

3. O requerente alega que o decreto judicial contrariou


texto expresso de lei, uma vez que o condenou por fato
penalmente atípico; pleiteia, por isso, a revisão do
julgado para o efeito de ser absolvido, reparando-se
destarte o injusto gravame.

Conforme a letra do ven. acórdão impugnado,


cometeu o peticionário estelionato, pois obtivera ilícita
vantagem econômica, em prejuízo alheio. Consistira a
fraude em haver ocultado “o fato de que o estabelecimento
comercial transacionado tinha uma dívida de grande monta
com terceiros”.

“Data venia”, não estou por essa persuasão; tenho


que o ilícito praticado pelo réu foi antes civil que penal
e, pois, não cai sob o império da Justiça punitiva.

4. Foi o caso que, após formalizado, em 10.5.95, o


contrato de compra e venda das cotas da empresa
comercial Visão Auto Posto Ltda., os compradores Luiz
41

Carlos Cassiano da Silva Jr. e Tatiana Bianchi Cassiano


da Silva deram a conhecer aos vendedores (o
peticionário e sua mulher) que tinham entre mãos
intimação para pagamento de dívida de R$ 53.946,99,
referente à locação do prédio, apurada em ação
revisional de aluguéis.

Os novos proprietários do posto promoveram a


notificação extrajudicial do peticionário para que
saldasse a dívida; não o fez, porém.

À vista do que, requereram a instauração de


inquérito policial contra os réus, por infração do
art. 171 do Código Penal.

5. A fraude – elementar do estelionato – consistira


no silêncio do vendedor (o peticionário) acerca de fato
relevante: a existência de dívida de sua responsabilidade.

Antes do mais, cai a lanço verificar se o silêncio


pode originar vínculos e relações de direito.

Orosimbo Nonato, jurista exímio, ensinou que:


42

“Em si mesmo e por si mesmo, não pode o simples


silêncio caracterizar manifestação de vontade hábil à
constituição de um negócio” (Da Coação como Defeito do
Ato Jurídico, 1957, p. 83).

Acrescentou, apoiado na autoridade de Messineo:

“(…) che il silenzio possa valere, in generale, come


razione dichia di volontà, giustamente se nega (qui tacet
neque negat, non utique fatetur), falso essendo, per il
diritto, il detto volgare chi tace consente.
Il silenzio, per se, è contegno equivoco e neutro” (op.
cit., p. 82).

Arrematou a controvérsia com a seguinte cláusula:

“(…) em linha de princípio, não constitui o silêncio


manifestação de vontade, nem afirmativa, nem
negativa, nem tácita” (op. cit., p. 83).

6. As provas dos autos, sobre não permitirem a


conclusão de que o peticionário tenha calado a verdade
aos compradores ao vender-lhes as cotas da empresa
Visão Auto Posto Ltda., persuadem o contrário.
43

Com efeito, nas declarações que deu na fase do


inquérito policial e em seu interrogatório em Juízo
(fls. 99 e 100 v.), asseverou o peticionário que estavam
inteirados os compradores de que havia ação revisional
de aluguel em curso contra a Cia. São Paulo Distribuidora
de Derivados de Petróleo, locatária do imóvel da Rua Pe.
Adelino, 120, dado em sublocação à empresa Visão Auto
Posto Ltda.

De igual teor é o depoimento prestado pela


testemunha Marcos Antônio Franco, assessor da Cia.
São Paulo, empresa sublocadora do predito imóvel.
Esclareceu, na quadra do inquérito policial, que,
perguntada pelos compradores “se havia alguma
pendência pecuniária na Cia. São Paulo”, respondeu-lhes
que sim, “em decorrência de ação renovatória de locação”
(fl. 103).

Há outra razão que abona as alegações do


peticionário.

É fato de certeza experimental que transação dessa


natureza nenhum comprador realiza, primeiro que
proceda a rigorosa verificação da situação financeira da
empresa, mediante exame de certidões judiciais.
44

Portanto, conforme “id quod plerumque accidit”, não


poderiam os compradores ignorar a situação real da
empresa, cujas cotas adquiriram, notadamente no que
tocava às informações referentes à relação locativa.

É coisa muito de notar ainda que a 4a. cláusula do


contrato dispôs que, até à data de sua formalização,
responderiam os vendedores pelas dívidas incidentes no
estabelecimento comercial (fl. 89).

À derradeira, para liquidar parte do débito, deixou o


peticionário em poder dos compradores a última
promissória, no valor de R$ 27.500,00 (fls. 99 e 100 v.).

7. Mas, a dar-se o caso que o peticionário, ao omitir


aos compradores a existência de débitos da empresa
negociada, praticara fraude, essa foi de caráter civil, que
não penal.

É certo que, no comum sentir dos doutores, “não há


diferença substancial ou ontológica entre o ilícito penal e o
ilícito civil” (Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito
Penal, Parte Geral, 1991, p. 11).
45

No entanto, como advertiu o maior de nossos


penalistas, “somente integra um crime a fraude que
reveste cunho de especial malignidade” (Nélson Hungria,
Comentários ao Código Penal, 1980, vol. VII, p. 182).

Ora, no particular – como o reconheceu, com rara


perspicácia o parecer do Ministério Público Federal,
emitido nos autos de “habeas corpus” impetrado em favor
do peticionário (fl. 84) –, ficou bem comprovada
“a inexistência da fraude apta a caracterizar o estelionato”.

Vem aqui de molde a lição de Viveiros de Castro:

“O dolo civil não reveste os caracteres jurídicos do


estelionato.
Difícil é assinalar a diferença entre o dolo civil e o
dolo criminal. O dolo civil, que compreende todas as
mentiras, todas as simulações, todas as exagerações de
preço ou de valor, tem como principal objeto servir aos
interesses daquele que estipula. São esses expedientes
lícitos, que o negociante emprega para valorizar suas
mercadorias, a que já se referia o célebre jurisconsulto
romano: licet partibus sese invicem circumvenire.
É nesta classe que se devem colocar os atos
simplesmente mentirosos, a simulação nos contratos, a
exageração do preço ou das qualidades da coisa vendida.
Para o dolo civil a pena é a nulidade do contrato,
46

a restituição do que a fraude fez indubitavelmente


receber. O Código Penal não o pode compreender,
porque poria em perigo a validade das convenções e das
transações comerciais.
O dolo criminal, ao lado das mentiras e das
simulações, emprega também as manobras e os artifícios
fraudulentos; tem como principal objeto o prejuízo de
terceiro” (Questões de Direito Penal, p. 118).

O doutíssimo Nélson Hungria – a quem os


brasileiros jamais seremos suficientemente gratos por
sua extraordinária contribuição ao nosso Direito Penal
–, decidindo hipótese semelhante à dos autos,
formulou a seguinte indagação:

“Será acaso réu de estelionato o indivíduo que, com o


singelo emprego de sugestões verbais, induz outro, que
não seja reconhecidamente simplório, a comprar-lhe,
por exemplo, sua cota numa sociedade que se verifica,
em seguida, estar a pique de falência? Decidir no
sentido afirmativo seria, evidentemente, uma demasia”
(Comentários ao Código Penal, 1980, vol. VII,
p. 182).

Essa inteligência é a que tem prevalecido nos


Tribunais:
47

a) “Não pode ser reconhecido o estelionato se inexiste dolo


penal ou animus delinquendi. Questão de natureza
exclusivamente civil não pode derivar para o Juízo
penal” (Arquivo Judiciário, vol. 99, p. 322; rel.
Nélson Hungria);

b) “Os defeitos ocultos, constatados posteriormente pela


vítima na coisa adquirida, não bastam para afirmar a
existência do estelionato. Não se vislumbra esse delito
nas transações efetuadas sem o emprego de artifício,
ardil ou qualquer outro meio fraudulento” (Rev.
Tribs., vol. 230, p. 75).

8. Análise refletida e de espaço dos autos revela a


inexistência de prova de haver o peticionário cometido
alguma fraude na venda da totalidade das cotas da
empresa comercial Visão Auto Posto Ltda.

À arguição de que os vendedores, maliciosamente,


correram em silêncio a circunstância de que havia
débitos da empresa, relativos a aluguéis, contrapõem-se
depoimentos, segundo os quais de tudo estavam cientes
os compradores (cf. fls. 99/101).
48

Ao demais, superior a toda a refutação é este


argumento exposto no parecer do Ministério Público
Federal:

“In casu, os compradores não agiram com a cautela


exigível de quem celebra contratos comerciais. Cabia-
-lhes investigar se efetivamente a empresa não tinha
débitos, mediante a obtenção de certidões junto aos
distribuidores e na Receita Federal” (fl. 84).

Ainda: havia no contrato cláusula expressa de que


responderiam os vendedores por quaisquer débitos
contraídos até à data da venda das cotas da empresa
Visão Auto Posto Ltda.

À derradeira, como parte do pagamento da dívida,


os vendedores deixaram em poder dos compradores a
última nota promissória referente à transação, no valor
de R$ 27.500,00.

9. A sanção penal, de consequências muito graves para


todo o indivíduo, deve-se reservar àquelas hipóteses em
que demonstrada inequivocamente a criminalidade do
fato arguido.
49

Com inexcedível propriedade, sustentou-o Nélson


Hungria:

“Se o fato contra jus não é de molde a provocar um


intenso ou difuso alarme coletivo, contenta-se ele com o
aplicar a mera sanção civil (ressarcimento do dano,
execução forçada, restitutio in pristinum, nulidade do
ato). O Estado só deve recorrer à pena quando a
conservação da ordem jurídica não se possa obter com
outros meios de reação, isto é, com os meios próprios do
direito civil (ou de outro ramo do direito que não o
penal)” (op. cit., vol. VII, p. 173).

A r. sentença de Primeiro Grau, em síntese feliz,


desatou a questão, forte nas seguintes razões, que
obrigam ao assentimento:

“Cuida a espécie de mera avença civil (…). Nem se diga


que o acusado tenha agido com dolo no momento da
formação do contrato, por haver silenciado a respeito de
débitos preexistentes. Primeiro porque (…) nesse passo
a prova oral colhida é conflitante. Segundo, porque
não tinha ele o dever jurídico de falar, uma vez que
subscreveu cláusula contratual, obrigando-se por
pagamento de débitos futuros”.
50

A meu aviso, após rigorosa análise do processo (que


deita já a 6 volumes), persuadi-me da inexistência, no
caso, de dolo criminal, ainda que pudesse ter havido dolo
civil.

Ora:

“A ação revisional é remédio processual para reparar


erro judiciário, para que a jurisdição penal atue
segundo os postulados da Justiça, de sorte que equivale a
uma decisão contrária à evidência dos autos aquela
apoiada em provas insuficientes para a condenação”
(JTACrSP, vol. 70, p. 43).

Por ser de quem é, não me esquivo ao prazer de


reproduzir (e ainda encomendar à memória) um lugar
do ven. acórdão proferido por este Colendo 8º Grupo
de Câmaras: nisto de revisão criminal, importa advertir
que, “se a condenação foi calcada em elementos probantes
inidôneos ou insuficientes contrariou inquestionavelmente a
evidência dos autos porque então a evidência dos autos
haveria que determinar a absolvição” (RJTACrimSP, vol.
41, p. 444; rel. Eduardo Pereira).

Ao diante, ainda na mesma página:


51

“Se em face de revisão a análise do conjunto probatório


evidenciar a precariedade de prova, nada obsta
que o Julgador decrete a absolvição do condenado”
(RJDTACrimSP, vol. 1º, p. 228).

Precária e coxa a prova dos autos, não havia senão


julgar improcedente a pretensão punitiva. Pelo que,
restabeleço o edito absolutório de Primeira Instância,
cassado o ven. acórdão de fls. 409/419.

Estendo à corré CSHK os efeitos do julgado, nos


termos do art. 580 do Código de Processo Penal, aplicável
também em revisão criminal, conforme autorizado
magistério da Doutrina e da Jurisprudência (cf. Damásio
E. de Jesus, Código de Processo Penal Anotado, 17a. ed.,
p. 408).

10. Pelo exposto, defiro a revisão criminal para, com


fundamento no art. 621, nº I, do Código de Processo Penal,
absolver o peticionário e estender os efeitos do julgado
à corré, nos termos do art. 580 do mesmo estatuto.

São Paulo, 7 de fevereiro de 2002


Carlos Biasotti
Relator
PODER JUDICIÁRIO

2
TRIBUNAL DE ALÇADA CRIMINAL

DÉCIMA QUINTA CÂMARA

Recurso em Sentido Estrito nº 1.324.789/0


Comarca: São Paulo
Recorrente: Serial Sistemas Ltda. (querelante)
Recorrido: Ministério Público
Querelado: KSF

Voto nº 4079
Relator
— É superior a toda crítica a decisão que
rejeita de plano queixa-crime, sob o
argumento de que o fato nela descrito
não entende com a esfera criminal,
senão com o Direito Civil, no âmbito
das inadimplências contratuais. A sanção
penal, de consequências graves para o
indivíduo, deve-se reservar às hipóteses
em que demonstrada, inequivocamente,
a existência de crime (art. 43, nº I, do
Cód. Proc. Penal).
53

—“Se um fato ilícito, hostil a um


interesse individual ou coletivo, pode ser
convenientemente reprimido com as sanções
civis, não há motivo para a reação penal”
(Nélson Hungria, Comentários ao Código
Penal, 1978, vol. I, t. II, p. 35).

1. Da r. decisão que proferiu o MM. Juízo de Direito


da 9a. Vara Criminal da Comarca da Capital, rejeitando
a queixa-crime que intentara contra KSF, por infração
do art. 345 do Código Penal (exercício arbitrário das
próprias razões), interpôs Recurso em Sentido Estrito para
este Egrégio Tribunal, com o intuito de reformá-la,
Serial Sistemas Ltda.

Afirma, nas razões de recurso, elaboradas por


diligentes e cultos patronos, que a r. decisão de
Primeiro Grau, a despeito dos notáveis predicados de
seu prolator, oferecia o flanco a reparos. É que não
rendera homenagem plena ao Direito.

Acrescenta que, ao revés do que exarou a r. decisão,


os fatos descritos na queixa configuravam ilícito penal,
por isso, não havia senão apurá-los na esfera criminal.

Acentua mais que, no caso, não ocorrera decadência.


54

Pleiteia, destarte, à colenda Câmara tenha por bem


prover-lhe o recurso, a fim de que, recebida a queixa-
-crime, prossiga o feito nos termos da lei (fls. 55/59).

Apresentou contrarrazões o querelado, nas quais


repeliu a pretensão da recorrente e propugnou a
mantença da r. decisão atacada (fls. 62/63).

Também se manifestou a douta Promotoria de


Justiça: após reexaminar a questão dos autos, concluiu
que o douto Magistrado se houvera com acerto e,
portanto, não assistia razão ao recorrente (fls. 65/67).

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em firme


e incisivo parecer do Dr. José Eduardo Fernandes
Casarini, opina pelo improvimento do recurso (fls.
72/75).

É o relatório.

2. A requerente ajuizou ação penal de iniciativa privada


contra o querelado, sob color de que praticara o delito
definido e punido pelo art. 345 do Código Penal:
exercício arbitrário das próprias razões.
55

Foi o caso que – reza a petição inicial – a


recorrente celebrara com o querelado contrato de
prestação de serviços de monitoração e manutenção
preventiva e corretiva de centrais de segurança
instaladas em unidades da Empresa Brasileira de Correios
e Telégrafos (ECT/SP).

Esclarece a recorrente que, durante o período de


prestação de serviços, ocorreram furtos em agências da
ECT/SP, mas em nenhum momento ficou demonstrado
o nexo de causalidade entre a atividade que executara e
as referidas subtrações.

Ajuntou ainda que apresentara ao querelado – que


os não impugnou – laudos acerca dos motivos reais
do não-fornecimento do sistema implantado.

Narrou ainda que a ECT/SP determinara consigo


reter vários depósitos destinados à querelante,
que avultavam a R$ 29.989,01, sob pretexto de
ressarcimento de danos.

Tal procedimento da empresa (por intermédio do


querelado) assevera a recorrente que infringiu de rosto
cláusula contratual expressa (10a.), em seu item 4º, que
vedava a aplicação de “penalidades” nas hipóteses de caso
fortuito ou força maior.
56

Assim, em face daquela a que chamou “iniquidade


e falta de propósito de tal procedimento”, requereu a
instauração da persecução penal (fls. 2/6).

O órgão do Ministério Público, oficiando nos autos


(fls. 50/51), arguiu a extinção da punibilidade do
querelado pela decadência e a falta de justa causa para a
ação penal, porque atípico o fato.

O r. despacho delibatório de fl. 52 rejeitou de plano


a queixa-crime, sob o argumento de que o fato
imputado ao querelado não entendia com a esfera
criminal, senão com o Direito Civil, no âmbito
das inadimplências contratuais e eventual direito
indenizatório. Reputou incaracterizado o crime descrito
no art. 345 do Código Penal (exercício arbitrário das
próprias razões), uma vez que houve, em verdade,
violação de agências da Empresa Brasileira de Correios e
Telégrafos (ECT/SP), que pelo contrato a querelante se
obrigava a coibir.

Por fim, anotou a r. decisão recorrida: é à “querelante


que, na esfera cível”, cabe demonstrar a ocorrência de “caso
fortuito, ou força maior, para exculpar-se” (fl. 52).
57

A querelante, porém, não no levou em paciência;


por isso, manifestou recurso para esta augusta Corte de
Justiça.

3. A sanção penal, de consequências muito graves para


todo o indivíduo, deve-se reservar àquelas hipóteses em
que demonstrada inequivocamente a criminalidade do
fato arguido.

Com inexcedível propriedade, sustentou-o Nélson


Hungria:

“Se o fato contra jus não é de molde a provocar um


intenso ou difuso alarme coletivo, contenta-se ele com o
aplicar a mera sanção civil (ressarcimento do dano,
execução forçada, restitutio in pristinum, nulidade do
ato). O Estado só deve recorrer à pena quando a
conservação da ordem jurídica não se possa obter com
outros meios de reação, isto é, com os meios próprios do
direito civil (ou de outro ramo do direito que não o
penal)” (op. cit., vol. VII, p. 173).

Em suma: após rigorosa análise dos autos, persuadi-


-me da inexistência, no caso, de dolo criminal.
58

Mostra-se irrepreensível, portanto, a r. decisão que


proferiu o distinto e culto Magistrado Dr. Manoel
Maximiano Junqueira Filho.

4. Pelo exposto, nego provimento ao recurso.

São Paulo, 10 de setembro de 2002


Carlos Biasotti
Relator
PODER JUDICIÁRIO

3
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

QUINTA CÂMARA — SEÇÃO CRIMINAL

Apelação Criminal nº 993.08.017201-3


Comarca: Tupã
Apelante: VSR
Apelado: Ministério Público

Voto nº 12.247
Relator

— A palavra da vítima passa por excelente


meio de prova e autoriza decreto
condenatório, se em conformidade com
os outros elementos de convicção
reunidos no processado.
—“Se um fato ilícito, hostil a um
interesse individual ou coletivo, pode ser
convenientemente reprimido com as sanções
civis, não há motivo para a reação penal”
(Nélson Hungria, Comentários ao Código
Penal, 1978, vol. I, t. II, p. 35).
60

— É questão que entende com o Direito


Penal (e não com o Direito Civil), por
encerrar assinalada malícia, o teor de
proceder do sujeito que, invertendo
arbitrariamente o título de posse de
coisa alheia, usa-a em proveito próprio,
com prejuízo de seu legítimo dono,
incorrendo assim nas penas do art. 168
do Cód. Penal (apropriação indébita).

1. Condenado pela r. sentença de fls. 101/107 à pena


de 1 ano e 2 meses de reclusão e 11 dias-multa, por
infração do art. 168, “caput”, do Código Penal, apela para
este Egrégio Tribunal, com o intuito de reformá-la,
VSR.

Afirma que o conjunto probatório, frágil e


precário, não autorizava condená-lo; destarte, clama
por absolvição como obra de justiça (fls. 114/116).

Contrariado o recurso, opinou a douta


Procuradoria-Geral de Justiça por seu improvimento
(fls. 128/130).

É o relatório.
61

2. Ao revés do que alega a nobre Defesa, as


provas obtidas na instrução do processo demonstram
“quantum satis” que o réu, efetivamente, praticou o
crime de apropriação indébita descrito na denúncia.

De feito, suposto se empenhasse em subtrair-se à


sanção penal, vítima e testemunhas confirmaram ter
sido o réu o indivíduo que, na tarde do dia 19.11.2005,
na Rua Rui Barbosa, em Bastos (Comarca de Tupã),
apropriou-se de 4 filmes em DVD, de que tinha a
posse, avaliados em R$ 110,00, pertencentes a Alberto
Kiyoji Matsushita (fls. 2/3).

A defesa da causa, não obstante confiada a patrono


de distinto saber e competência, não logrou ilidir a
prova, densa e firme, que implacavelmente incriminava
o réu e impunha o acolhimento da denúncia em sua
integridade.

Vítima e testemunha (fls. 77/78), ouvidas durante


a fase de dilação probatória, imprimiram força e relevo
ao teor literal da denúncia e demonstraram, acima de
dúvida, que o réu perpetrou apropriação indébita, em
continuação.
62

Ora, desde que concordes com outros elementos


dos autos, as palavras da vítima passam por expressão
da verdade e, destarte, justificam decreto de
condenação.

Pelo muito que tem de apropositado ao caso,


merece transcrito, por sua ementa, ven. julgado deste
Egrégio Tribunal:

“A palavra da vítima, em crime de natureza


patrimonial, avulta em importância, máxime quando
em tudo ajustada às demais evidências dos autos”
(RJTACrimSP, vol. 25, p. 319; rel. Eduardo
Pereira).

Donde a inferência lógica imediata, que o douto


prolator da sentença condenatória exarou à fl. 104:

“(…) inegável, a autoria do acusado. Tornou-se revel


nos autos, deixando de apresentar sua versão perante
o Juízo acerca dos fatos. Simplesmente alegou, na
fase inquisitorial, que, após ter alugado os filmes,
emprestara a seu ex-enteado, prometendo ir até o
mesmo para reaver os filmes e devolvê-los, contudo,
sem fazê-lo”.
63

Vem a ponto reproduzir ainda, pela boa doutrina


que encerra, o seguinte passo da Procuradoria-Geral
de Justiça:

“Como se vê, a prova quer da autoria, quer da


materialidade do crime é insofismável, não havendo
que se falar em absolvição” (fl. 130).

3. Não entra em dúvida que, em certos casos, a


questão do litígio pertence para o cível, no campo das
obrigações, sem reflexo no Direito Penal.

Em tais hipóteses, têm para si a melhor Doutrina


e Jurisprudência que seja procurada a solução na esfera
cível.

Isto mesmo professava o eminente Nélson


Hungria:

“As sanções penais são o último recurso para conjurar a


antinomia entre a vontade individual e a vontade
normativa do Estado. Se um fato ilícito, hostil
a um interesse individual ou coletivo, pode ser
convenientemente reprimido com as sanções civis, não
há motivo para a reação penal” (Comentários ao
Código Penal, 1978, vol. I, t. II, p. 34).
64

O caso sujeito, entretanto, não entende com o


Direito Civil, senão com o Direito Penal, pois o réu
obrou com inegável malícia: tomou em locação
diversos filmes e, em vez de devolvê-los ao dono, deles
se apropriou.

Incorreu, por isso, na censura da lei, por haver


praticado o crime de apropriação indébita, em que o
agente “vem a mudar, arbitrariamente, o título da posse ou
detenção, passando a dispor da coisa ut dominus. Cessa de
possuir alieno nomine e faz entrar a coisa no seu patrimônio,
ou dispõe dela como se fora o dono, isto é, com o propósito de
não restituí-la, ou de não lhe dar o destino a que estava
obrigado, ou sabendo que não mais poderia fazê-lo” (Nélson
Hungria, op. cit., 1980, vol. VII, p. 135).

Ainda que reincidente (fl. 91), o réu não praticou


crime com violência a pessoa nem grave ameaça.

Destarte – como propôs o órgão do Ministério


Público (fl. 91) –, faz jus à substituição da pena
privativa de liberdade por duas restritivas de direito
(prestação de serviços à comunidade e 10 dias-multa),
pelo período da condenação, nos termos do art. 44,
§§ 2º e 3º, do Código Penal.
65

No caso de descumprimento injustificado da


restrição imposta, descontará sua pena sob o regime
semiaberto.

Afora esse pouco, mantenho no mais, por seus


próprios e jurídicos fundamentos, a r. sentença que
proferiu o insigne e culto Juiz Dr. Marcus Alexandre
Manhães Bastos.

4. Pelo exposto, dou provimento parcial ao recurso para


substituir a pena privativa de liberdade do réu
por duas restritivas de direito (prestação de serviços
à comunidade e 10 dias-multa), nos termos do art. 44,
§§ 2º e 3º, do Código Penal, mantida no mais a r.
sentença de Primeira Instância.

São Paulo, 15 de setembro de 2009


Des. Carlos Biasotti
Relator
PODER JUDICIÁRIO

4
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

QUINTA CÂMARA — SEÇÃO CRIMINAL

Recurso de Ofício nº 832.150-3/7-00


Comarca: São Paulo
Recorrente: MM. Juiz de Direito “Ex Officio”
Recorrido: JCF

Voto nº 8640
Relator

— Advertiu o maior de nossos penalistas:


“Somente integra um crime a fraude que
reveste cunho de especial malignidade”
(Nélson Hungria, Comentários ao Código
Penal, 1980, vol. VII, p. 182).
— A inadimplência de obrigação contratual
que se não revista de fraude é
modalidade de ilícito da esfera do
Direito Civil, e não da jurisdição penal.
67

— Sob pena de constituir violência contra


o “status dignitatis” do indivíduo,
a instauração de persecução penal
unicamente se admite em face de prova
cabal da existência do crime e de
indícios veementes de sua autoria.

1. Da r. decisão que proferiu, determinando o


arquivamento do inquérito policial instaurado contra
JCF, por infração do art. 171, “caput”, do Código Penal,
interpôs recurso “ex officio” o MM. Juízo de Direito
do Departamento de Inquéritos Policiais da Capital
(Dipo).

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em


firme e incisivo parecer do Dr. Ruben Teixeira Garcia,
opina pelo improvimento do recurso (fls. 44/45).

É o relatório.

2. Célio Reinaldo de Lima requereu instauração


de inquérito policial contra “Solemar Hotéis Camping
Clube”, na pessoa de seu representante legal (JCF), para
apuração de crime contra a economia popular.
68

Alega haver subscrito contrato de prestação de


serviço de hospedagem em rede de hotéis e clubes
conveniados, por sistema de descontos especiais,
mediante pagamento da taxa fixa de 22% sobre o
salário mínimo nas diárias dos hotéis, cobrados “por
acomodação”.

Contudo, diferentemente do alegado pelo


vendedor do produto, a vítima observou, nas cláusulas
contratuais, que referido preço seria cobrado “por
pessoa”, não “por acomodação”; insatisfeito, pleiteou
a rescisão do contrato e devolução dos cheques
respectivos (total de 8 cártulas). Nada obstante,
continuou recebendo cartas de cobrança de valores
relativos a “taxas de obras” em atraso (fl. 30/32).

A requerida prestou esclarecimentos nos autos de


inquérito e declarou que tais correspondências foram
emitidas “indevidamente, por um erro no sistema”.

Acrescenta que “o problema já foi sanado” e que o


requerente não sofreu prejuízo financeiro (fl. 27).

A douta Promotoria de Justiça, manifestando-se às


fls. 37/38, requereu o arquivamento do inquérito
policial, porque não se tratava de crime de estelionato,
mas hipótese de ilícito civil, sem prejuízo financeiro
à vítima.
69

O MM. Juízo, pelo r. despacho de fl. 39, firme na


argumentação do Ministério Público, determinou o
arquivamento dos autos de inquérito policial.

3. Afigura-se irrepreensível a r. decisão recorrida,


pois dirimiu a questão à justa luz e conforme o bom
Direito.

É verdade que, no comum sentir dos doutores,


“não há diferença substancial ou ontológica entre o ilícito
penal e o ilícito civil” (Heleno Cláudio Fragoso, Lições
de Direito Penal, Parte Geral, 1991, p. 11).

No entanto, como advertiu o maior de nossos


penalistas, “somente integra um crime a fraude que
reveste cunho de especial malignidade” (Nélson Hungria,
Comentários ao Código Penal, 1980, vol. VII, p. 182).

Ora, no particular, não ficou bem comprovada a


existência da fraude apta a caracterizar crime contra a
economia popular (Lei nº 1.521, de 26.12.51).

Vem aqui de molde a lição do preclaro Nélson


Hungria:
70

“As sanções penais são o último recurso para conjurar a


antinomia entre a vontade individual e a vontade
normativa do Estado. Se um fato ilícito, hostil
a um interesse individual ou coletivo, pode ser
convenientemente reprimido com as sanções civis, não
há motivo para a reação penal” (Comentários ao
Código Penal, 1978, vol. I, t. II, pp. 34/35).

Essa inteligência é a que tem prevalecido nos


Tribunais:

a) “O inadimplemento de obrigação contratual


assumida, por si só, é modalidade de ilícito que não
invade a área penal, ficando circunscrita ao âmbito
civil. Para que se possa falar no ilícito penal,
necessário se torna que o contrato tenha sido obtido
através de um meio fraudulento, por via de um
engodo aplicado, e com a revelada intenção desde o
início de não ser cumprido” (JTACrSP, vol. 51,
p. 405);

b) “Desde que se cuida de mero negócio civil, não


constituindo a Justiça Criminal, como é sabido, foro
apropriado para compensar expectativa de vantagens
objeto de contrato eventualmente frustrada, não se vê
assim ilícito penal algum” (JTACrSP, vol. 74,
p. 120).
71

4. A sanção penal, de consequências muito graves


para todo o indivíduo, deve-se reservar àquelas
hipóteses em que demonstrada inequivocamente a
criminalidade do fato arguido.

Com inexcedível propriedade, escreveu o nunca


assaz louvado Nélson Hungria:

“Se o fato contra jus não é de molde a provocar um


intenso ou difuso alarme coletivo, contenta-se ele com o
aplicar a mera sanção civil (ressarcimento do dano,
execução forçada, restitutio in pristinum, nulidade
do ato). O Estado só deve recorrer à pena quando a
conservação da ordem jurídica não se possa obter com
outros meios de reação, isto é, com os meios próprios do
direito civil (ou de outro ramo do direito que não o
penal)” (op. cit., vol. VII, p. 173).

Isto mesmo têm preconizado nossos Tribunais,


em acórdãos infinitos em número.

Não se trata de fraqueza da Justiça punitiva, senão


cautela com que devem obrar seus agentes, em ordem a
não deitar a perder aqueles que, por equívoco, insídia
ou malícia, foram submetidos a formal indiciamento,
ato procedimental cujos estigmas persistem “ad
aeternum” nos registros dos órgãos da Polícia e da
Justiça Criminal.
72

No âmbito dos Tribunais, passa o mesmo:

a) “Para o exercício regular da ação penal pública ou


privada, indispensável o requisito da justa causa,
expressa em suporte mínimo da prova da imputação.
O simples relato do fato, sem qualquer elemento
que indique sua provável ocorrência, inviabiliza o
recebimento da queixa-crime ou da denúncia” (Rev.
Tribs., vol. 674, p. 341; rel. Min. José Cândido);

b) “Para que a ação penal tenha condições de


viabilidade, é preciso que haja o fumus boni juris. É
imperativo o controle do Juiz sobre essa condição de
viabilidade do pedido acusatório, pois, se assim não
for, podem ser atingidos, indevidamente, o status
libertatis, e o status dignitatis do acusado” (Rev.
Tribs., vol. 451, p. 337; rel. Dalmo Nogueira).

Em suma: não tenho que opor à r. decisão que


proferiu o distinto e culto Juiz Dr. Julio Caio Farto
Salles.
73

5. Pelo exposto, nego provimento ao recurso “ex officio”.

São Paulo, 24 de maio de 2007


Des. Carlos Biasotti
Relator
PODER JUDICIÁRIO

5
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

QUINTA CÂMARA — SEÇÃO CRIMINAL

“Habeas Corpus” nº 990.09.131649-0


Comarca: Itapira
Impetrantes: Dr. Denilson Donizete Lourenço de Paula,
Dr. Atila Pimenta Coelho Machado,
Dr. Odel Mikael Jean Antun e
Dr. Roberto Podval
Paciente: LFB

Voto nº 12.531
Relator
— Em caso de “habeas corpus” fundado na
alegação de falta de justa causa, forçoso
é proceder ao exame da prova, único
processo lógico de apreensão da
verdade. “O que a lei não permite e o que
a doutrina desaconselha é a reabertura de
um contraditório de provas, no processo
sumaríssimo de habeas corpus” (Rev. Trim.
Jurisp., vol. 40, p. 271).
75

— Como a Justiça Criminal não é foro


competente para dirimir conflitos que
entendam com o vasto campo do
Direito das Obrigações, não entra em
dúvida que a instauração da persecução
penal, nesses casos, constitui grave
exemplo de subversão de princípios
capitais de nosso sistema jurídico.
— Toda a ameaça ao “status dignitatis” do
indivíduo deve o Juiz, tão logo lhe
venha de molde a ocasião, atalhar
com firmeza e vigor, em ordem a não
sancionar, com sua autoridade e
prestígio, situação a um tempo ilegal e
injusta; não raro, iníqua.
—“O Estado só deve recorrer à pena quando a
conservação da ordem jurídica não se possa
obter com outros meios de reação, isto é, com
os meios próprios do direito civil (ou de
outro ramo do direito que não o penal). A
pena é um mal, não somente para o réu e
sua família, senão também, sob o ponto de
vista econômico, para o próprio Estado”
(Nélson Hungria, Comentários ao Código
Penal, 1980, vol. VIII, p. 173).

Após o voto do Relator (o eminente Des. Damião


Cogan), que denegava a ordem de “habeas corpus”,
solicitei vista dos autos para melhor compreensão da
questão submetida ao Tribunal, deveras complexa, e
num como preito à Defesa, representada por advogado
que, por sua cultura jurídica e humanística e por
76

seus predicados de inteligência e caráter, serve de


paradigma e inspiração aos que exercem tão nobre
ofício. Estou a falar do distinto advogado Dr. Roberto
Podval.

Tendo esclarecido o espírito com a leitura da


petição de “habeas corpus” com a sustentação oral do
advogado do paciente, do assistente de Acusação, do
parecer emitido perante a Câmara pelo Dr. Gabriel
Eduardo Scotti, com o voto minucioso e lapidar do
insigne Relator e, ultimamente, com o refletido exame
dos alentados volumes que instruem a presente ação,
entro a proferir meu voto.

1. Os ilustres advogados Drs. Denilson Donizete


Lourenço de Paula, Atila Pimenta Coelho Machado,
Odel Mikael Jean Antun e Roberto Podval impetram
a este Egrégio Tribunal ordem de “Habeas Corpus”
em favor de LFB, sob a alegação de que padece
constrangimento ilegal da parte do MM. Juízo de
Direito da 2a. Vara da Comarca de Itapira.

Alegam, em bem elaborada petição (fls. 2/25), que


o paciente estava sendo processado por infração do art.
168, § 1º, nº III, do Código Penal (apropriação indébita
qualificada).
77

Acrescentam que, no entanto, faltava justa causa


para a ação penal.

Afirmam ainda que eram penalmente atípicos os


fatos narrados na denúncia.

Argumentam que, em verdade, os fatos imputados


ao paciente não pertenciam para a esfera criminal,
senão para a cível, no campo das obrigações. Aliás,
aduzem os combativos impetrantes, no Juízo Cível,
diversas ações já corriam a propósito desses fatos.

Rematam não era de bom exemplo submeter à


Instância Criminal litígio de cunho estritamente cível,
dado que a aplicação do Direito Penal, no âmbito das
relações comerciais, somente pode operar como
providência “ultima ratio”.

Requerem, destarte, a suspensão do processo


instaurado contra o paciente perante o MM. Juízo de
Direito da 2a. Vara da Comarca de Itapira.

Instruíram o pedido com numerosas cópias de


peças processuais.

O r. despacho de fl. 27 deferiu a medida liminar


“para sustar o andamento da ação penal”.
78

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em


firme e incisivo parecer do Dr. Levy Emanuel Magno,
opina pela concessão da ordem de “habeas corpus”
(fls. 34/38).

É o relatório.

2. Extrai-se dos autos que o paciente e os corréus


Olídio Mordhorst e Almir Bieging, no dia 27 de
março de 2007, no interior do estabelecimento
empresarial denominado “Teka” — Tecelagem Kuehenrich
S.A., localizada na Rodovia SP 147 — km 40 —
(Jardim Guarujá), em Itapira, obrando em concurso e
unidade de propósitos, apropriaram-se de insumos e
matérias-primas de propriedade da empresa “Center
Trading” — Indústria e Comércio S.A., avaliados em
R$ 29.285.307,00, de que tinham a posse em razão de
exercício de atividade empresarial.

O órgão do Ministério Público, por isso, deu


incursos os réus nas sanções do art. 168, § 1º, nº III,
do Código Penal (fl. 31).
79

Já instaurada a ação penal, requerem os dignos


impetrantes o sobrestamento do curso do processo-
-crime, até se decidam, no Juízo Cível, as ações
intentadas pelas duas empresas: Ação de Prestação de
Contas que a “Teka” propôs contra “Center Trading”,
e duas ações de indenização que esta ajuizou contra
aquela.

Em bem de sua argumentação aduzem os


impetrantes que a tecelagem “Teka”, à vista de graves
dificuldades financeiras por que passava, celebrou
contrato de financiamento com a empresa “Center
Trading” para a aquisição de matéria-prima com que
pudesse prover à industrialização de mercadorias.

Problemas de cunho contratual porém surgiram,


que comprometeram o bom êxito do negócio e
desafiaram as partes a transferir as questões para o
campo contencioso.

E, o que é mais, a empresa “Center Trading”, por


seu representante, ofereceu notícia-crime perante a 1a.
Delegacia de Polícia Fazendária da Capital contra a
tecelagem “Teka”, por haver-se apropriado de matéria-
-prima, insumos e produtos de sua propriedade, no
valor de R$ 34.000.000,00 (trinta e quatro milhões de
reais).
80

Os impetrantes vêm ao Tribunal com o escopo de


obter a suspensão do feito-crime, a fim de que sobre o
ponto primeiro se manifeste o Juízo Cível.

3. A análise da justa causa tem suscitado diferentes


opiniões no grêmio dos doutores em Direito.

Exame de assento e sobremão de temas


probatórios é certo que se não compadece com seu
ritual sumaríssimo nem com seus angustos limites,
salvo se dele depende a aferição do alegado
constrangimento.

Esta doutrina tem por fiador não menos que ao


saudoso Ministro Pedro Chaves, que a perpetuou em
voto memorável:

“Acho indispensável o exame das provas, quando se trata


de habeas corpus fundado na alegação de falta de
justa causa. Não conheço outro processo lógico de
apreendimento da verdade perante uma alegação, sem
o exame das provas. O que a lei não permite, e o
que a doutrina desaconselha, é a reabertura de um
contraditório de provas, no processo sumaríssimo de
habeas corpus. Mas, aquelas que vêm através de
81

certidões, aquelas que são incontestáveis perante o


Direito, têm de ser examinadas pelo juiz, porque,
senão, este não chegará a saber se há ou não justa
causa” (Rev. Trim. Jurisp., vol. 40, p. 271).

4. O problema da justa causa para a persecução


criminal constitui, na república das letras jurídicas,
“perdifficilis ac vexata quaestio”, em cujo desate autores
conspícuos despenderam tesouros de engenho e
erudição.

A noção que lhes granjeou a preferência foi a


que atribuiu à justa causa a ideia de ato que depare
justificativa ou fundamento na ordem jurídica (cf. José
Frederico Marques, Elementos de Direito Processual
Penal, 1965, vol. IV, p. 397).

Tal lição também se esforça na autoridade de


Pontes de Miranda, segundo quem, justa será “a causa
que, pelo direito, bastaria, se ocorresse, para a coação”
(História e Prática do “Habeas Corpus”, 4a. ed., p. 468).
Justa causa, enfim, será somente aquela estribada em
lei.
82

5. Não é o trancamento da ação penal que lhe


encetou a Justiça Pública o que o paciente pretende
por distintos advogados, senão a sustação de seu curso
enquanto se apurem os fatos na jurisdição civil.

Vem a talho notar – e isto mesmo advertiu o


preclaro subscritor do parecer da Procuradoria-Geral
de Justiça – que a empresa “Teka” ingressou com
Ação de Prestação de Contas; além de que, atentas
“as particularidades do negócio”, coisa difícil era concluir,
“de plano, se houve realmente a apropriação imputada”. Por
certo, a ação civil de prestação de contas norteará com mais
propriedade a ocorrência de apropriação ou não” (fl. 37).

Ora, dispõe o art. 93 do Código de Processo Penal


que, sendo a questão “de difícil solução”, poderá o Juiz
Criminal “suspender o curso do processo, após a inquirição
das testemunhas e realização das outras provas de natureza
urgente”.

De igual teor é a jurisprudência dos Tribunais:

“Havendo conveniência de se conhecer antes a decisão


a ser proferida no Juízo Cível, impõe-se a suspensão
do processo criminal” (Rev. Forense, vol. 133, p. 262;
rel. Alencar Araripe).
83

6. Destarte, como a Justiça Criminal não é o foro


competente para dirimir conflitos que entendam com o
vasto campo do Direito das Obrigações, não entra em
dúvida que a instauração da persecução penal contra o
paciente constituiu grave exemplo de subversão de
princípios capitais de nosso sistema jurídico.

Donde o rigoroso libelo daquele que, pela suma


reputação em pontos de Direito Penal, rivaliza com
o oráculo de Apolo no templo de Delfos: Nélson
Hungria.

Escreveu este egrégio autor que:

“O Estado só deve recorrer à pena quando a conservação


da ordem jurídica não se possa obter com outros meios
de reação, isto é, com os meios próprios do direito civil
(ou de outro ramo do direito que não o penal). A pena é
um mal, não somente para o réu e sua família, senão
também, sob o ponto de vista econômico, para o próprio
Estado” (Comentários ao Código Penal, 1980, vol. III,
p. 173).

Por esta craveira de sabedoria e prudência


decidiram sempre os augustos pretórios da Justiça
Criminal:
84

“Formular uma acusação, de que resulte processo penal,


sem que haja os pressupostos de direito, como também os
pressupostos de fato, para a ação penal é caso, sem
dúvida, de uso irregular de poder de denúncia, porque
o poder de denunciar não existe para atormentar as
pessoas, para criar dificuldades aos seus negócios, para
cercear sua liberdade de locomoção” (Rev. Tribs., vol.
581, p. 340).

Toda a ameaça ao “status dignitatis” do indivíduo


deve o Juiz, tão logo lhe venha de molde a ocasião,
atalhar com firmeza e vigor, por não sancionar, com
sua autoridade e prestígio, situação a um tempo ilegal e
injusta; não raro, iníqua.

Por estas razões e pelos argumentos expendidos


pelos estrênuos e cultos impetrantes, advogados de que
justamente se ufana e envaidece a veneranda Ordem a
que pertencem, defiro a impetração para sobrestar o
curso do feito-crime até se deslinde a controvérsia no
Juízo Cível, observada a causa de interrupção da
prescrição de que trata o art. 116, nº II, do Código Penal.
85

7. Pelo exposto, concedo a ordem de “habeas corpus” ao


paciente para, nos termos do art. 93 do Código
de Processo Penal, suspender o processo que lhe foi
instaurado perante o MM. Juízo de Direito da 2a.
Vara da Comarca de Itapira, observada a causa de
interrupção da prescrição de que trata o art. 116, nº II,
do Código Penal.

São Paulo, 19 de novembro de 2009


Des. Carlos Biasotti
Relator
V. Prática da “Pendura”

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

QUINTA CÂMARA — SEÇÃO CRIMINAL

“Habeas Corpus” nº 1.003.154-3/7-00


Comarca: São Caetano do Sul
Impetrante: Dr. Mário Rui Aidar Franco
Paciente: LMO

Voto nº 7799
Relator

— “As atribuições do Ministério Público,


bem compreendidas, são as mais belas
que existem” (De Molénes; apud J.B.
Cordeiro Guerra, A Arte de Acusar, 1a.
ed., p. 99).
87

— Segundo a comum opinião dos


doutores e a jurisprudência de nossos
Tribunais, não comete crime de
estelionato o acadêmico de Direito que,
por festejar a data comemorativa da
instituição dos cursos jurídicos no País
– 11 de agosto –, pratica a denominada
“pendura”, isto é: dirige-se a uma
casa de pasto e, após comer à tripa
forra e entrar galhardamente pelas
bebidas, chama a seu pé o dono do
estabelecimento e comunica-lhe, em
discurso de pompa e circunstância,
que aquele troço de estudantes quer
homenageá-lo como a amigo e benfeitor
da velha e gloriosa Academia de Direito
do Largo de São Francisco, além
de significar-lhe eterna gratidão pelo
“oferecimento” do memorável banquete.
— Em escólio ao art. 176 do Código Penal
escreveu Damásio E. deJesus:“Entendeu-
-se haver mero ilícito civil e não penal, uma
vez que o tipo exige que o sujeito não possua
recursos para o pagamento dos serviços”
(Código Penal Anotado, 17a. ed., p. 674).
— Dispõe o art. 659 do Cód. Proc. Penal
que, se o Tribunal verificar ter já
cessado a violência ou coação ilegal de
que se queixa o paciente, lhe julgará
prejudicado o pedido de “habeas corpus”.
—“Julga-se o habeas corpus prejudicado quando
o impetrante obtém, durante a ação, a
situação jurídica reclamada” (STJ; HC
nº 1.623/2; 6a. T.; rel. Min. Vicente
Cernicchiaro; j. 18.12.96).
88

1. O ilustre advogado Dr. Mário Rui Aidar Franco


impetra a este Egrégio Tribunal ordem de “Habeas
Corpus” em favor de LMO, sob a alegação de que
padece constrangimento ilegítimo da parte do MM.
Juízo de Direito da 2a. Vara Criminal da Comarca de
São Caetano do Sul.

Alega, em esmerada petição, que o paciente está a


sofrer coação ilegal por falta de justa causa para a
persecução penal que lhe foi instaurada perante aquele
douto Juízo, por infração do art. 176 do Código Penal
(tomar refeição em restaurante sem dispor de recurso
para efetuar o pagamento).

Foi o caso que – afirma o digno impetrante – o


paciente, acadêmico de Direito da Universidade do
Grande ABC (UniABC), e mais onze colegas, no dia 11
de agosto deste ano, dirigiram-se à “Churrascaria Vivano
Grill Ltda.”, situada na Av. Goiás, em São Caetano do
Sul, com o intuito de comemorar, com a tradicional
“pendura”, o aniversário da criação dos cursos jurídicos
no Brasil.
89

Assim, após consumir comida e enfrascar-se em


bebidas, o paciente levantou-se e “leu um discurso”, no
qual dava a conhecer ao gerente da casa de pasto que
não iriam pagar a conta, que ficaria “pendurada” em
obséquio ao onze de agosto, data caríssima aos
estudantes de Direito.

O gerente da churrascaria, no entanto, infenso à


arenga acadêmica, exigiu que os estudantes ocorressem
às despesas, do contrário solicitaria o concurso da
Polícia Militar.

Da turma, oito satisfizeram ao pagamento; o


paciente e mais três colegas, contudo, esses recalcitraram:
nada pagariam. Pelo que, policiais militares, chamados
a intervir na pendência, deram-lhes voz de prisão e
conduziram-nos à Delegacia de Polícia de São Caetano
do Sul, onde a autoridade de plantão os mandou autuar
em flagrante pelo crime de estelionato (art. 171, “caput”,
do Cód. Penal).

A instâncias da Defesa – que lhe pleiteou o


relaxamento da prisão por vício de formalidade (i.e.,
falta de comunicação da prisão ao MM. Juiz de Direito
do Plantão Judiciário), – foi solto o paciente mediante
concessão de liberdade provisória.
90

Requer agora o paciente, assistido de distinto


advogado, o trancamento do inquérito policial, sob
color de que o fato que lhe foi imputado carecia de
tipicidade penal; por isso, era força pôr termo à
“persecutio criminis in judicio” e mandá-lo em paz, em
ordem a que não se lhe comprometesse o futuro, com o
registro de crime em sua biografia social.

Em abono de sua pretensão, invocou a lição da


Doutrina (Paulo José da Costa Júnior, Código Penal
Anotado, p. 711) e a jurisprudência dos Tribunais
(TACrimSP; HC nº 382.840/2; 6a. Câm.; rel. Almeida
Sampaio; DOE 11.5.2001).

O pedido acompanha-se de numerosas cópias de


peças dos autos de inquérito policial (fls. 14/32).

O despacho de fls. 34/39 denegou a medida liminar


pleiteada.

A mui digna autoridade judiciária indicada como


coatora prestou as informações de estilo (fls. 62/63),
nas quais esclareceu que os autos aguardavam
manifestação da vítima quanto ao interesse em
representar criminalmente contra o paciente.
91

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em


arguto e objetivo parecer do Dr. Arnaldo Gonçalves,
opina pelo não-conhecimento do pedido, pela perda de
seu objeto (fls. 99/101).

É o relatório.

2. O alvo a que atira a impetração é obter desta


augusta Corte de Justiça ordem de “habeas corpus” para
o trancamento do inquérito policial instaurado contra
o paciente.

O objeto da impetração, no entanto, já decaiu de


momento e interesse.

De feito, é força considerar prejudicado o pedido de


“habeas corpus”, uma vez que – e bem o observou o
douto parecer da Procuradoria-Geral de Justiça (fl. 100)
—— os autos foram arquivados, nos termos do parecer
ministerial (fl. 105).
92

A razão foi que, tratando-se de ação pública


condicionada (art. 176, parág. único, do Cód. Penal), era
de preceito a representação da vítima, ônus de que
todavia se não desempenhou, embora intimada
regularmente (fl. 103).

A essa conta, perdeu seu objeto a impetração, pois


desapareceu a “causa petendi” (alegado constrangimento
ilegal).

Faz ao caso a lição de Julio Fabbrini Mirabete:

“Verificando, em especial pelas informações, que já cessou


a violência ou a coação, como por exemplo, a prolação da
sentença condenatória ou a soltura do réu em caso de
excesso de prazo na instrução criminal, o juiz ou o
Tribunal declaram que o pedido está prejudicado.
Deixou de existir legítimo interesse no remédio heroico e
o impetrante é, agora, carecedor da ação” (Código de
Processo Penal Interpretado, 7a. ed., p. 1.476).

Isto mesmo têm proclamado nossos Tribunais,


como o persuade o ven. aresto abaixo reproduzido por
sua ementa:
93

“Julga-se o habeas corpus prejudicado quando o


impetrante obtém, durante a ação, a situação jurídica
reclamada” (STJ; HC nº 1.623/2; 6a. T; rel. Min.
Vicente Cernicchiaro; j. 18.12.96).

Assim, nos termos do art. 659 do Código de Processo


Penal, tenho por prejudicada a impetração.

3. No entanto, leve-se à paciência externe ligeiras


observações a propósito deste feito.

É a primeira a agradável impressão que nos


infundem no ânimo as boas ações e iniciativas
louváveis.

Tenho uma delas entre mãos: a diligência


que tomou sobre si o digno e culto subscritor do
parecer da Procuradoria-Geral de Justiça (Dr. Luiz
Carlos Ormeleze), em ordem a obter, “sponte sua”,
documentos relacionados com o estágio da presente
causa-crime.
94

Atos desse jaez, próprios somente dos espíritos


esclarecidos e cônscios da muita importância de suas
funções, confirmam-me a veracidade do conceito de
De Molénes, citado pelo saudoso Ministro Cordeiro
Guerra, do Supremo Tribunal Federal: “As atribuições
do Ministério Público, bem compreendidas, são as mais belas
que existem” (A Arte de Acusar, 1a. ed., p. 99).

Este registro, com menção expressa do nome de


distinto Procurador de Justiça, faço-o como preito de
admiração e justa homenagem aos preclaros membros
dessa nobre Instituição, quando se comemora o Dia do
Ministério Público: 13 de fevereiro.

4. A dar-se o caso que não interrompesse o curso da


persecução penal o despacho de fl. 105, que mandou
arquivar o inquérito policial – por falta de condição
para o exercício do “jus persequendi in judicio”:
representação do ofendido –, a espécie dos autos não
incorria na censura do Direito.

Deveras, segundo a comum opinião dos doutores


e a jurisprudência de nossos Tribunais, não comete
crime de estelionato o acadêmico de Direito que, por
festejar a data comemorativa da instituição dos cursos
95

jurídicos no País – 11 de agosto –, pratica a


denominada “pendura”, isto é: dirige-se a uma
casa de pasto e, após comer à tripa forra e entrar
galhardamente pelas bebidas, chama a seu pé o dono
do estabelecimento e comunica-lhe, em discurso de
pompa e circunstância, que aquele troço de estudantes
o quer homenageá-lo como a amigo e benfeitor da
velha e gloriosa Academia de Direito, além de
significar-lhe eterna gratidão pelo oferecimento do
memorável banquete (a que soem, então, chamar
“supino ágape” ou “simpósio opíparo”); ato contínuo,
rompem em fuga, a sete pés, pela porta de saída, onde
já os espera a Polícia!

Ao paciente o inquérito policial imputou o crime


de estelionato (art. 171 do Cód. Penal), visto que se
recusara a pagar o preço da consumação de produtos
numa churrascaria, “mesmo tendo recursos disponíveis”
(fl. 15).

Em escólio ao art. 176 do Código Penal escreveu


Damásio E. de Jesus:

“Entendeu-se haver mero ilícito civil e não penal, uma


vez que o tipo exige que o sujeito não possua recursos
para o pagamento dos serviços” (Código Penal
Anotado, 17a. ed., p. 674).
96

Pelo mesmo teor, Guilherme de Souza Nucci, em


sua apreciada obra:

“Pendura: por força da tradição, acadêmicos de direito


costumam, como forma de comemorar a instalação dos
cursos jurídicos no Brasil (11 de agosto), dar penduras
em restaurantes, tomando refeições sem efetuar o
devido pagamento. Tem entendido a jurisprudência,
neste caso, não estar configurada a hipótese do art. 176,
pois, na sua grande maioria, são pessoas que têm
dinheiro para quitar a conta, embora não queiram
fazê-lo, alegando tradição. Tratar-se-ia, pois, de um
ilícito meramente civil” (Código Penal Comentado, 5a.
ed., p. 706).

Professa a mesma inteligência o renomado


penalista Paulo José da Costa Júnior:

“Condição indispensável à configuração do crime é não


dispor de recursos para solver a obrigação. Desse modo,
o estudante de direito que vier a dar o pendura, no
dia 11 de agosto, data da fundação dos cursos jurídicos
no Brasil, se dispuser de numerário suficiente,
surpreendido em flagrante e levado à polícia, não
estará praticando crime algum, nem em sua forma
tentada. O crime não se realizou, porque ausente um
97

pressuposto: a falta de recursos para efetuar o


pagamento. A ausência do ilícito penal não elimina o
civil, restando ao estudante a obrigação de pagar a
consumação” (Código Penal Anotado, p. 711).

Passa o mesmo na esfera pretoriana:

“Percebe-se com nitidez que os recorrentes foram


unicamente movidos pelo animus jocandi. Não houve
dolo, consistente na consciência e vontade de praticar a
ação sabendo que não dispunham de recursos para
efetuar o pagamento. Não houve fraude, no sentido de
ludibriar o comerciante, gerando nele a crença de uma
situação financeira diversa da real. Simplesmente
quiseram brincar, seguindo secular tradição dos
estudantes do Largo de São Francisco, e não causar
prejuízo a terceiro em proveito próprio. Brincadeira,
sem dúvida reprovável, verdadeiro calote, que causou
prejuízo ao comerciante. Dano porém, reparável,
através de competente ação civil, aliás já proposta
pela vítima” (TACrimSP; RHC nº 426.297-9/São
Paulo; rel. Gonzaga Franceschini; j. 14.4.86; v.u).

Assim, mesmo que não tivesse o MM. Juiz de


Direito determinado o arquivamento, por falta de
condição de procedibilidade, dos autos de inquérito
policial, decerto não triunfava, por atípica, a imputação
98

formulada contra o paciente, que estava a comemorar,


com expansão de jovialidade e segundo a tradição
ininterrupta das Arcadas, o dia mais risonho das
efemérides acadêmicas: o 11 de agosto.

5. Pelo exposto, considero prejudicado o pedido de


“habeas corpus”.

São Paulo, 13 de fevereiro de 2007


Des. Carlos Biasotti
Relator
VI. Damásio E. de Jesus: Honra e
Glória do Direito Penal

1. Personagem singular

Ele, que discorria “ex professo” do princípio da


proporcionalidade da pena(1) – que deve corresponder
sempre ao grau da culpa ou da falta cometida –,
esqueceu-lhe aferir por justa craveira a pena dos que
perdem os objetos de sua afeição: preferiu que outros o
fizessem. Foi debalde, porém, que a dor de certas
perdas não raro excede toda medida.
Não cabe realmente no coração humano (porque
infinita) a mágoa que acompanha o desaparecimento
de individualidades privilegiadas como o Professor
Damásio Evangelista de Jesus, arrebatado pela morte no
dia 13 de fevereiro deste ano.
Até mesmo os que aprenderam a resignar-se ao
império da lei que fixou o termo a todas as coisas –
“pois também as pedras morrem”, como asseverou um alto
espírito(2) – acabrunharam-se com a interrupção do
esplêndido curso da vida desse varão egrégio, no qual
se viam reunidas, no mais elevado grau de primor,
qualidades que apenas se encontram distribuídas entre
muitos.
100

Os que o conheceram e trataram – e esses se


contam por dezenas de milhares – podem atestar que
não há encarecimento retórico nem tropo de linguagem
no juízo de ter sido Damásio de Jesus, sem contradição,
uma das figuras mais úteis, estimadas e fascinantes de
nossa idade.
A razão do mui particular apreço e reverência que
lhe sagrava o comum das pessoas ilustradas (máxime as
atuantes nas províncias do Direito) procedia da notória
fama de sua dedicação, contínua e proficiente, ao
magistério das disciplinas jurídicas.
Ao mesmo tempo que se desempenhava, com
exemplar exação, de árduas e relevantes funções no
Ministério Público do Estado de São Paulo, dava lições
de Direito a classes universitárias. Com provada
competência e assiduidade cumpria à risca as praxes da
cátedra e proferia aulas com seguro critério e esmero;
granjeou bem cedo, por isso, entre alunos e professores,
grande prestígio e reputação. Ainda: nas preleções
patenteava, sem quebra, a excelência de sua didática:
expunha com clareza e vivacidade as matérias do
programa oficial, que, muito de estudo, para logo
aplicava a casos concretos, numa como antecipação da
101

liça incruenta, expressão com que se referia à futura


agenda dos advogados, promotores de justiça e juízes de
direito.
Pelo interesse que a novidade excitava, a classe
inteira ficava-lhe suspensa dos lábios!
Não se restringia, porém, seu magistério a
transmitir doutrina segundo a mais apurada matriz
da ciência jurídica; declarava as dúvidas e infundia
torrentes de conhecimentos aos que se aprestavam para
o exercício da profissão (o que lhe conferia já legítima
credencial de professor benemérito); inculcava, por fim,
no espírito dos alunos o termo de proceder que deviam
guardar, à luz da Ética.
À maneira dos rudimentos da boa educação (de
ordinário ministrados com o leite materno), recitava aos
moços, no limiar da vida acadêmica, o pregão duas
vezes milenar de Ulpiano, jurisconsulto romano de
muito nome: Os princípios fundamentais do Direito
são: Viver honestamente; não lesar a ninguém; dar a
cada um o que é seu(3).
Estes, em síntese, os traços mais conspícuos das
nunca assaz louvadas preleções que, na regência da
cadeira de Direito Penal, fazia o provecto mestre
Damásio E. de Jesus!
102

II. Artífice das letras jurídicas

No benéfico intuito de obviar às dificuldades e


percalços que soem influir no aproveitamento letivo, o
Prof. Damásio diligenciou por suprir suas aulas com
textos adequados às matérias do currículo. Por esta
forma, tirou a público o prestigioso repertório didático
em quatro volumes: Direito Penal. Sucessivamente,
atendendo à extraordinária aceitação da obra e aos
abundantes frutos que produzia, deliberou entre si
enviar ao prelo os que seriam os mais laureados
compêndios de doutrina e jurisprudência em pontos de
Direito Penal e Processo Penal: Código Penal Anotado e
Código de Processo Penal Anotado.
103

Assim pelo rigor do senso crítico e acurada exegese


dos textos legais como pela sistemática e judiciosa
disposição dos temas versados e feliz apresentação
gráfica, esses dois livros bastaram a exaltar aos cornos
da lua a glória literária de seu autor.
Em verdade, apenas expostos nas livrarias,
despertaram geral atenção e interesse da classe jurídica
do País, que de pronto os adquiriu e transformou no
principal vade-mécum dos que militam na área do
Direito Penal.
Nenhum bacharel especializado na “Ciência de
Carrara” furtou-se a dar-lhes guarida pronta e cortês.
Advogados criminalistas, promotores de justiça e
magistrados tinham-nos sempre à mão (na mesa de
trabalho ou na estante de obras seletas). Para dar força e
peso a seus arrazoados forenses, ou para acrescentar o
vigor da fundamentação de suas decisões, era aos
“Códigos Anotados” do Prof. Damásio que se habituaram
a recorrer.
E não havia que opor a esta sensata e natural prática.
À uma, porque sempre foi de louvar o dito daquele
discreto: “Duvido muito de quem se não abordoa a
autoridades (…)”(4); à outra, porque, no caso de
necessitarmos de boa lição, importa muito que a
tomemos a quem a deu mais clara e completa.
104

De mim, entre honrado e agradecido, direi que não


caem sob o algarismo as vezes em que me valeram esses
dois edificantes compêndios. Advogado, eram-me a
primeira fonte de consulta; juiz de 2º grau, constituíam
meu oráculo e subsídio na aplicação do bom direito
à espécie em causa. E isto por mui atendível razão: a
despeito da robusta bibliografia com que eminentes
penalistas opulentaram a república das letras(5), esses
dois livros passavam pelos mais fáceis de compulsar,
além de, sem salvas nem rodeios, encaminhar o leitor
para a solução do ponto controverso. Por fim –
circunstância notável –, eram suas edições, com
desusado esmero, revistas e atualizadas anualmente.
Eis por que (e cuido não incorrer em engano se
alego interpretar o sentimento comum dos que
frequentam a barra da Justiça Criminal), fomos
alcançados em altíssima dívida para com o Prof.
Damásio E. de Jesus, irresgatável como todas as
contraídas com um benfeitor, já que de gratidão.

III. Vocação para o magistério superior e para as artes

Sem embargo de suas atividades de professor


universitário, membro efetivo do Ministério Público
e escritor de pulso, Damásio achou ainda força e
condições para realizar ambicioso projeto, que o
consagraria como o precursor das escolas preparatórias
105

às carreiras jurídicas. Fundou e dirigiu, com inspiração


de educador exímio, o Complexo Jurídico Damásio de
Jesus, glorioso celeiro de saber especializado, onde
jovens encontravam estímulo e pecúlios intelectuais que
os habilitassem a ingressar no Ministério Público e na
Magistratura.
Mestre Damásio e o abalizado corpo docente de seu
instituto deitaram em solo fértil sementes de verdadeira
e sã doutrina, que logo medraram e, por fortuna,
produziram os frutos que se esperam da boa árvore
(na espécie, a nova geração de servidores públicos,
“magna pars” da cota de sinergia orientada para o
aprimoramento dos quadros da Justiça).
Incontáveis, com efeito, são hoje os que servem
lugares de Magistratura, dignificam as hostes do
Ministério Público e da Advocacia e podem exibir com
orgulho, à guisa de credenciais de mérito, as insígnias
do Complexo Jurídico Damásio de Jesus.
A auréola de celebridade começava, destarte, a cingir
a fronte do Mestre, pois transpusera a meta que muitas
organizações predestinadas não lograram sequer tocar!
Houve mais, porém! É fama que a Natureza, para
não desmentir a parêmia que a dá por mãe pródiga,
costuma dotar de modo especial certas individualidades,
com apurar-lhes o entendimento, a vontade, o senso
estético e as potências que afirmam a vida(6). Este
106

prodígio operou em relação a Damásio, cujo ânimo,


agraciado já com peregrina inteligência e caráter,
quis também dispor para altas concepções e misteres:
ungiu-o ministro juramentado da arte e da beleza, em
cujos altares oficiou com devota pontualidade.
O bucólico teor de vida, o estilo original e as
expansões de jovialidade que imprimia às horas feriadas,
em sua estância rural, forjaram-lhe afável e lisonjeiro
perfil. Comprazia-se em cultivar, com entranhado
desvelo, imenso orquidário, que encerrava para cima de
6 mil espécies, e extensa plantação de coqueiros (coisa
de 3 mil pés, que lhe rendiam a safra anual de 90 mil
cocos). Ainda: criava em sua deleitosa quinta – que,
num lampejo feliz de imaginação denominou Ilha da
Fantasia – formoso bando de 153 flamingos. Remeteu
o disco ainda mais longe: com infinita paciência
adestrou-os na arte coreográfica; sob sua regência e ao
som de melodia favorita, punham-se as aves a agitar a
cabeça e o pescoço, graciosa e sincronicamente, de um
para outro lado. Espetáculo era esse belíssimo de ver e
mui digno de divulgar, para gáudio e encantamento de
quantos ainda se extasiam perante o maravilhoso e
sabem ser gratos àqueles que, pelo engenho, ação
fecunda e idealismo, engrandecem a sociedade humana.
A revista Veja SP, edição de 5.10.2005, levou a
palma do bom gosto e oportunidade, ao comentar, com
texto da jornalista Marcella Centofanti, ilustrado com
107

fotografia expressiva, a arte cênica dos alvinitentes


flamingos do Prof. Damásio de Jesus (pp. 49-50):

IV. A herança do varão sábio e probo

Aquele que ensinou pela palavra e pelo exemplo, e


converteu em facho de luz os livros com que aplainou
a milhares de jovens o caminho das mais nobres
profissões, esse não foi apenas agente do bem; exerceu,
em rigor, a missão de apóstolo, termo por que se
conhecem e recomendam os propagadores de boa
doutrina.
Obrando conforme o seu nome – Evangelista –,
Damásio armara-se de ponto em branco para revelar
aos espíritos ávidos de saber e afeitos aos estudos
108

jurídicos as noções fundamentais da ciência que o faria


conhecido e louvado em todos os círculos acadêmicos:
o Direito Penal.
Mentor intrépido da instrução secundária e guia
seguro da mocidade estudiosa, acha-se-lhe por isso
inscrito o nome, à conta de sua manifesta e inconcussa
influência, entre os grandes vultos nacionais.
Isto de um obscuro discípulo pretender tributar
louvor a seu mestre, se este se chamou Damásio E. de
Jesus, não será pedra de escândalo nem pretexto para
censura, já que se amparou em razões forçosas e
atendíveis, das quais uma é a regra que manda
proporcionar o galardão ao merecimento, e o castigo
à iniquidade. (Ora, os serviços que o homenageado
prestou à gente do foro ultrapassam o mais generoso
estalão!).
É de ordem natural o outro motivo: procede das
fibras do coração humano, que nunca ficou indiferente
à face daqueles que, por haverem tomado sobre si
o patrocínio de causas sociais nobres e urgentes,
tornaram-se dignos de eterno reconhecimento.
Ao Prof. Damásio Evangelista de Jesus convém,
pois, o mote paradoxal que a opinião pública tem
reservado aos varões de sumo valor, saber e honra:
“Morreu ontem um desses homens que não morrem”!(7)
109

Prof. Damásio E. de Jesus (1935-2020)


(Luminária grande do Direito Penal)

Notas

(1) Direito Penal Anotado, 18a. ed., p. 3.


(2) Pe. Antônio Vieira, Sermões, 1959, t. I, p. 120.
(3) “Juris praecepta sunt haec: Honeste vivere; neminem
laedere; jus suum cuique tribuere” (Digesto, 1.1.10.1).
(4) José de Sá Nunes, Aprendei a Língua Portuguesa,
1938, vol. II, p. 221.
110

(5) No soberbo e dilatado cânon dos penalistas que, por


universal consenso, têm entre nós lugar assinalado
no panteão da glória literária, avultam os nomes de:
Nélson Hungria (“Pontifex Maximus” do Direito
Penal Brasileiro), Bento de Faria, A.J. da Costa e
Silva, Basileu Garcia, José Frederico Marques,
Aníbal Bruno, Heleno Cláudio Fragoso, Edgard
Magalhães Noronha, René Ariel Dotti, Alberto
Silva Franco, Mohamed Amaro, Guilherme Souza
Nucci, Luiz Flávio Gomes, Cezar Roberto
Bitencourt, Miguel Reale Jr., Edílson Mougenot
Bonfim, Fernando Capez, Roberto Delmanto e
muitos outros, também de primeira plana.
(6) Assevera um de seus biógrafos que Benjamim
Disraeli (1804-1881), estadista que consolidou
o Império Britânico, “idolatrava as árvores e as
flores” (André Maurois, A Vida de Disraeli, 7a. ed.,
p. 141; trad. Godofredo Rangel; Companhia
Editora Nacional; São Paulo); o genial Rui Barbosa
(1849-1923), nos raros e breves ócios que lhe
consentiam as graves ocupações, “sempre dedicou
especial carinho ao jardim e às flores” (cf. Ruy Barbosa,
“In Memoriam”, 1923).
(7) Dístico eloquente com que a imprensa da Capital
paulista lamentou a morte de seu prefeito Olavo
Setúbal (in O Estado de S. Paulo, 22.8.2008).
Trabalhos Jurídicos e Literários de
Carlos Biasotti

1. A Sustentação Oral nos Tribunais: Teoria e Prática;


2. Adauto Suannes: Brasão da Magistratura Paulista;
3. Advocacia: Grandezas e Misérias;
4. Antecedentes Criminais (Doutrina e Jurisprudência);
5. Apartes e Respostas Originais;
6. Apelação em Liberdade (Doutrina e Jurisprudência);
7. Apropriação Indébita (Doutrina e Jurisprudência);
8. Arma de Fogo (Doutrina e Jurisprudência);
9. Cartas do Juiz Eliézer Rosa (1a. Parte);
10. Citação do Réu (Doutrina e Jurisprudência);
11. Crime Continuado (Doutrina e Jurisprudência);
12. Crimes contra a Honra (Doutrina e Jurisprudência);
13. Crimes de Trânsito (Doutrina e Jurisprudência);
14. Da Confissão do Réu (Doutrina e Jurisprudência);
15. Da Presunção de Inocência (Doutrina e Jurisprudência);
16. Da Prisão (Doutrina e Jurisprudência);
17. Da Prova (Doutrina e Jurisprudência);
18. Da Vírgula;
19. Denúncia (Doutrina e Jurisprudência);
20. Direito Ambiental (Doutrina e Jurisprudência);
21. Direito de Autor (Doutrina e Jurisprudência);
22. Direito de Defesa (Doutrina e Jurisprudência);
23. Do Roubo (Doutrina e Jurisprudência);
24. Estelionato (Doutrina e Jurisprudência);
25. Furto (Doutrina e Jurisprudência);
26. “Habeas Corpus” (Doutrina e Jurisprudência);
27. Legítima Defesa (Doutrina e Jurisprudência);
28. Liberdade Provisória (Doutrina e Jurisprudência);
29. Mandado de Segurança (Doutrina e Jurisprudência);
30. O Cão na Literatura;
31. O Crime da Pedra (Defesa Criminal em Verso);
32. O Crime de Extorsão e a Tentativa (Doutrina e Jurisprudência);
33. O Erro. O Erro Judiciário. O Erro na Literatura (Lapsos e
Enganos);
34. O Silêncio do Réu. Interpretação (Doutrina e Jurisprudência);
35. Os 80 Anos do Príncipe dos Poetas Brasileiros;
36. Princípio da Insignificância (Doutrina e Jurisprudência);
37. “Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?”;
38. Tópicos de Gramática (Verbos abundantes no particípio;
pronúncias e construções viciosas; fraseologia latina, etc.);
39. Tóxicos (Doutrina e Jurisprudência);
40. Tribunal do Júri (Doutrina e Jurisprudência);
41. Absolvição do Réu (Doutrina e Jurisprudência);
42. Tributo aos Advogados Criminalistas (Coletânea de Escritos
Jurídicos); Millennium Editora Ltda.;
43. Advocacia Criminal (Teoria e Prática); Millennium Editora
Ltda.;
44. Cartas do Juiz Eliézer Rosa (2a. Parte);
45. Contravenções Penais (Doutrina e Jurisprudência);
46. Crimes contra os Costumes (Doutrina e Jurisprudência);
47. Revisão Criminal (Doutrina e Jurisprudência);
48. Nélson Hungria (Súmula da Vida e da Obra);
49. Ação Penal (Doutrina e Jurisprudência);
50. Crimes de Falsidade (Doutrina e Jurisprudência);
51. Álibi (Doutrina e Jurisprudência);
52. Da Sentença (Doutrina e Jurisprudência);
53. Fraseologia Latina;
54. Da Pena (Doutrina e Jurisprudência).
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Ilícito Civil e Ilícito Penal (Doutrina e Jurisprudência) Carlos Biasotti

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