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PEDAÇOS DE

PENSAMENTOS
Marcio Abreu1
(CURITIBA/PR)
1 - Marcio Abreu é dramaturgo, diretor e ator.

Criou e integra a Companhia Brasileira de Teatro,

sediada em Curitiba (PR). Desenvolve projetos de

pesquisa e criação de dramaturgia própria,

releitura de clássicos e encenação de autores

contemporâneos inéditos no País.


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EU ESTIQUEI MINHA ALMA COMO UMA CORDA


MALABARISTA DE PALAVRAS EU ANDO SOBRE O VAZIO.

(VLADIMIR MAIAKOVSKI)
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O vazio a cada vez

Meus primeiros impulsos em relação ao teatro provavelmente estão ligados ao fascínio


pelo desconhecido, à curiosidade irresistível por aquilo que não está em primeiro plano,
pelo que não é evidente numa primeira camada de percepção, pela necessidade
incontrolável de trocar de roupa, trocar de pele, falar novas línguas, inventar um mundo e
viver nele. Uma espécie de negação inconsciente da realidade ou do que o senso comum
costuma chamar de realidade. O medo atávico da vida ordinária organizada em seus rituais e,
sobretudo, uma mistura contraditória de medo e desejo de tocar o outro.

Na minha memória de espectador precoce encontro meu olhar sempre atento ao que
aparentemente não deveria ser o foco das atenções. Lembro-me de olhar invariavelmente
para as coxias, para os refletores, tentando entender os ângulos e a mágica da luz, de olhar
para o público atrás de mim; lembro-me de observar a reação das pessoas, de olhar fixo
para o ator que escuta enquanto espera a deixa para dar sua réplica; lembro-me de ouvir
os barulhos acidentais vindos dos bastidores, tentando imaginar como seria o mundo por
trás de tudo, o avesso das imagens criadas diante de mim, o outro lado do bordado;
lembro-me da enorme dificuldade em ouvir e de como as palavras no teatro pareciam muitas
vezes desprovidas de impulso e sonoridade, como se, mesmo ouvindo, eu não conseguisse
escutar, como se, apesar de emitidas pelos atores, as palavras estivessem ausentes;
lembro-me de pensar nisso, de me achar surdo e do quanto isso me impressionou e
ainda me causa espanto.
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Muito cedo, a noção dos enigmas do teatro. Por que ouvimos alguns atores
e outros não? Por que ouvimos alguns textos e outros não? Por que estamos
sem estar? O que é a presença? O que é capaz de preencher um espaço? De
repente, um sentido novo emerge, ainda enigmático, e me faz perceber, ao
longo do tempo, a fundamental noção de vazio. A importância do vazio nasce,
para mim, da relação objetiva com uma espécie de sensibilidade que foi se
desenvolvendo a partir dessas e de outras questões e, hoje, em quase todos
os meus processos criativos eu começo no vazio para terminar nele.

A consciência de certa noção do vazio, ainda intuitiva,


atrelada às minhas primeiras impressões do teatro,
foi ganhando dimensão na minha vida e, mais tarde, na
minha experiência como artista. Ao escrever um texto, toda a
elaboração prévia que, eventualmente, eu possa ter feito dá
lugar ao momento presente do embate com as palavras.
Ao encenar uma peça, todo o trabalho anterior de concepção
de um espetáculo dá lugar ao encontro real com os atores e a
equipe numa sala de ensaio. Faço, com frequência, o exercício
do esquecimento. Tento evitar processos nos quais o caminho
seja uma linha reta da ideia inicial até a execução da mesma.
Não entendo a criação como a execução de uma ideia, mas
como um movimento rizomático, mais complexo, permeável
ao imprevisto, aberto às influências externas, alimentado e
redirecionado conforme seus múltiplos impulsos internos,
capaz de reverberar-se como experiência e não apenas de
realizar-se de maneira eficiente como projeto.

Por isso, o vazio a cada vez, o começo e o fim de


tudo, em que a presença é convocada a vibrar, em
que o movimento em direção ao outro reinaugura
novas possibilidades de vida, em que uma palavra
enunciada ganha consistência de corpo, em que
o corpo expande-se em poesia, em que o mínimo
gesto adquire concretude e imagens se formam e
sentidos se desdobram.
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Olhar de dentro

É recorrente a atribuição do “olhar de fora” ao encenador.


Frequentemente encontramos, mesmo entre profissionais,
a noção sobre essa pessoa que vê os ensaios e dá um retorno aos
atores ou, mais especificamente, o sujeito que tem uma visão do
todo e, protegido por ela, não tem o mesmo nível de exposição
individual como pode ter um ator.

Evidentemente esse pensamento tem bases históricas, já que


a figura do encenador é bastante recente na história do teatro.
Anteriormente encontramos referências, por exemplo, em
Aristóteles, que se refere à execução técnica do espetáculo, e
em Hegel, que se refere à execução exterior da obra dramática.
Ambas, noções que ajudam a corroborar a ideia do “olhar de
fora”. Foi em 1887 que André Antoine abriu o seu Teatro Livre e
assinou pela primeira vez uma obra como diretor (ou encenador).
Antes disso não havia um termo para designar essa função,
já que era associada simplesmente à reprodução de padrões.
Somente no século XX, com o teatro moderno, é que ela ganha
verdadeiramente status de invenção. Antonin Artaud dirá que a
encenação é “numa peça de teatro a parte verdadeiramente e
especificamente teatral do teatro”.
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Um encenador habita o cerne de uma criação, a parte mais


interior de uma experiência. Seu olhar é de dentro, mesmo que
consiga e deva olhar de fora em momentos cruciais. No que se
refere ao meu trabalho, estou quase sempre no olho do furacão,
urdindo de lá toda uma rede de relações estéticas, pessoais e
sensoriais que, pouco a pouco, vão se organizando segundo as
regras próprias de cada processo criativo.

Sempre que um colega ou um ator me pede para ser um “olhar


de fora”, não entendo muito bem o que quer de mim. Se olho
de fora, estou fora, completamente. Então não precisam de mim.
Procuro ser íntegro em tudo o que faço, procuro estar presente.
Só estou se for dentro. Se olho uma paisagem, estou dentro
dela, percorrendo seu relevo. Se olho uma fotografia,
meu olhar percorre internamente sua narrativa imagética.
Se olho um ator que ensaia uma cena, sou o ator e a cena.
Se tenho uma ideia sobre algo, sou tomado por ela. Se quero
estimular sensivelmente um ator, preciso estar lá, com ele.
Se quero me lançar no desconhecido, não posso enviar alguém
no meu lugar. Posso convidar pessoas e vamos todos juntos,
o que é bastante frequente. Se crio imagens, faço parte da
composição, ainda que sutilmente, discretamente ou de
maneira quase imperceptível, o que é sempre melhor.

Inscrição no espaço

“A imagem jamais é uma realidade simples”,


diz Jacques Rancière no seu livro O destino das
imagens. E complementa dizendo que a imagem
na arte não é uma exclusividade do visível,
que existe o visível que não produz imagem e
existem imagens que são totalmente produzidas
por palavras.
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No teatro certamente podemos produzir


imagens através das palavras, mas não apenas isto.
O agenciamento de tantos elementos que confluem
para a manifestação de algo, um recorte preciso
de tempo, um lugar determinado, dimensões
específicas, sonoridades escolhidas, cores, texturas,
vibrações, presenças determinantes, tudo isso
concorre para a criação de uma peça sob o ponto
de vista da encenação, mas não apenas isto.

Em 2010 escrevi e encenei a peça Vida, junto com a Companhia


Brasileira de Teatro. Dramaturgia e encenação são indissociáveis
na perspectiva desse trabalho, assim como em quase todos
que tenho criado nos últimos anos, mesmo em encenações de
textos preexistentes. Em Vida, a sala vazia onde os personagens
se encontram é tão fundamental quanto o texto que o Rodrigo
fala no prólogo, descrevendo obviedades astronômicas como se
fossem grandes novidades. A irrupção muda e molhada da Nadja
meia hora depois de começada a peça é tão importante quanto
as palavras emocionadas do Ranieri depois de mostrar todas as
suas tatuagens. O choro-riso histérico da Giovana é tão gerador
de sentidos quanto a grande parede que se desloca ampliando e
reduzindo o espaço. Os diálogos prosaicos são tão poeticamente
ativos quanto a poesia mais pura capturada do anônimo polonês
ou as palavras escritas por mim ou inspiradas nos atores e nos
ensaios. As músicas e os silêncios são “textos”. A luz, discreta
na maior parte do tempo e espetacular em algumas cenas
específicas, tem função dramatúrgica. A duração do espetáculo
provoca percepções, assim como a cena no escuro ou a fuga de
um ator desesperado que atravessa a parede.
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Num espetáculo de teatro, tudo se inscreve


no espaço, como se num livro fosse.
Um livro tridimensional, pulsante, vivo.
Imagens múltiplas, perceptíveis na cena e na
projeção do imaginário de cada pessoa que
faz parte do público. O lugar da encenação é o
“entre”, onde todas as imagens nascem e morrem
simultânea e constantemente, onde o que emana
da cena é recriado em e por cada pessoa do
público, onde tudo é necessariamente efêmero e
jamais poderá se repetir. E, quem sabe, essa pode
ser sua maior e melhor dimensão política hoje.

Sempre que sou chamado a pensar sobre


encenação e possibilidades acerca de sua prática
me dou conta de sua potência como ato criativo
e, ao mesmo tempo, do quanto seu lastro
histórico é recente. Sempre que me vejo diante do
enigma dessa arte e suas frequentes revoluções,
parece-me inevitável abordar seus pontos de
indissociabilidade com o campo da dramaturgia.
Foto: Marco Novak
Vida (2010).
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Formas de escrita

E são muitas as formas de escrita e daquilo que


eu chamo de “inscrição”. As que conhecemos
e as que esperam ser inventadas. Refletindo
sobre alguns dos meus trabalhos recentes,
tentarei destacar aspectos bastante diversos
de seus processos e estruturas.

Nômades é uma peça que estreei em outubro


de 2014, no Teatro Poeira, no Rio de Janeiro,
com as atrizes Andrea Beltrão, Mariana Lima e
Malu Galli. O texto foi escrito por mim e pelo
filósofo e dramaturgo Patrick Pessoa, com a
colaboração das atrizes e a participação de
Newton Moreno no período de pesquisas.
Grande parte dessa dramaturgia foi criada
simultaneamente à própria peça, durante
o período de ensaios. Texto e cena são
absolutamente complementares. Há cenas
sem palavras, mas que estão no corpo do texto.
Sua estrutura absorve a experiência da sala de
ensaio e filtra todas as referências pessoais,
teóricas, literárias e musicais estudadas.
Foto: Nana Moraes.

Foto: Nana Moraes.


Nômades (2014).

Nômades (2014).
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Enquanto estamos aqui é um trabalho solo de dança contemporânea, com a coreógrafa


Marcia Rubin, que dança e atua na peça. A estreia foi em 2013 no Espaço Sesc, no Rio de Janeiro.
A dramaturgia é fortemente influenciada pelo corpo e foi criada por mim em parceria com a
Marcia e o dramaturgo Pedro Kosovski. O dispositivo da peça é uma grande mesa ao redor da
qual o público se instala. A cena acontece principalmente sobre a mesa, mas também nos espaços
em torno. O texto contém uma sequência de descrições de imagens, interpolação de poesia, lista
de ações, falas diretas ao público, tudo isto num contexto narrativo múltiplo em articulação com o
corpo e o espaço. A dramaturgia são todos esses aspectos, assim como a encenação.

Esta Criança é uma peça dirigida por mim, com texto


do dramaturgo francês Joël Pommerat. É a primeira
colaboração entre a Companhia Brasileira de Teatro
e a atriz Renata Sorrah. Nós estreamos em outubro
de 2012 no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de
Janeiro. O texto é uma composição de dez cenas que
têm como ligação o tema – relações extremas entre
pais e filhos – e a radical concisão. As situações que
constituem cada uma das cenas são o motor dessa
dramaturgia, na medida em que se evidenciam em
primeiro plano, antes dos personagens, desviando
do drama e ampliando-se como objeto teatral. Nossa
experiência foi, resumidamente, a de verticalizar na
essencialidade dessas situações habitadas por vinte
e dois personagens abordados por apenas quatro
atores – Renata, Giovana Soar, Ranieri Gonzales e
Edson Rocha – e de mergulhá-los num ambiente
escultórico, quase como uma instalação, que rompe
as fronteiras entre palco e plateia. Além disso, a
sonoridade e a luz com função dramatúrgica.
Foto: Gilberto Evangelista.
Esta Criança (2012).
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Taubira é uma performance que criamos em 2013 durante


as pesquisas para a peça brasil, que ainda vamos estrear
em setembro de 2015, com a Companhia Brasileira. Fomos
convidados pelo Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte, para
criar uma cena curta na sua comemoração de 15 anos. Taubira
é um estudo sobre discursos contemporâneos e sobre a escuta.
Estão em cena Nadja Naira e Rodrigo Bolzan, dirigidos por mim.
A dramaturgia, colaborativa, é uma recolha de discursos da
ministra da Justiça da França, Christiane Taubira, reorganizada
entre pausas, erros e gravações em off na voz dos atores e
articulada com a manifestação da presença de ambos, diante
do público, em estado de escuta e reação afetiva ao que
ouvem. A ação se desenvolve na ampliação da experiência em
compartilhamento radical com o público e reconfiguração dos
lugares sociais preestabelecidos numa sala de teatro. A certa
altura, atores e público beijam-se, trocam afetos e humores e
ouvem o discurso agora diretamente enunciado pelos atores.
No ato está a encenação.
Foto: Guto Muniz
Taubira (2013).
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O ator

Não entendo o ator como centro no teatro. Não se trata de haver centros ou bordas.
A criação teatral é necessariamente a coordenação de vários campos de ação, de ofícios os
mais diversos, de saberes complementares, de várias artes e de muitas pessoas. Não se trata
de dar mais ou menos importância a isso ou aquilo. Tudo é importante. Tudo é fundamental.
Não podemos abrir mão de nada. No entanto, é evidente que o aspecto presencial do teatro
é sua força e é o que o distingue de outras experiências artísticas. Nessa perspectiva,
o ator manifesta o fenômeno, se oferece ao encontro, convoca o público, se faz presença.
E é ali que tudo acontece, onde todos estão. E aí vem a maravilha. O ator inventor de línguas,
mastigador de palavras, incendiário de espíritos, ampliador de corpos e de espaços, pintor de
silêncios, arrebatador de almas, provocador de escândalos, formigador de risos, estripador
de chatos, politizador de mortos, sonhador de mundos, ladrão no escuro, pilantra de marca
maior, a dor de todo mundo, o trabalhador das madrugadas, o faminto depois das peças,
o doador universal!

Tenho tido a chance de trabalhar em companhia e desenvolver ao longo do tempo parcerias


com atores inestimáveis em reiteradas criações. Trabalhar muitas vezes juntos, certamente,
ajuda a verticalizar as propostas, a entender funcionamentos, a aprimorar técnicas e a refinar
sensibilidades. No diálogo constante, encontramos códigos, inventamos outros, construímos
nosso léxico e os resultados incorporam os frutos da troca em longo prazo.
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Por outro lado, é importante encontrar novos parceiros, colocar-se


em novas relações. Dentro ou fora da companhia. Percebo que,
na minha história com a Companhia Brasileira, tem sido essencial
a abertura, a permeabilidade e os encontros. Essa dinâmica de
existência e funcionamento me estimula e me interessa.

Tenho pensado o teatro como forma de vida há muito tempo.


Escrever e encenar requer dedicação absoluta, alma aberta,
escuta apurada, leitura constante e voraz, vontade de mudar,
alguma utopia, percepção e sensibilidade social, politização, amor
pelo outro, necessidade de gente, pensamento estético, horas
sem dormir, espírito contraditório, estômago, humor, interesses
múltiplos, disposição pra inventar o que ainda não existe.

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