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ESTRUTURA DO ENUNCIADO
V. N. VOLOSHINOV (1930)
(tradução de Ana Vaz, para fins didáticos)
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1. Comunicação Social e Interação Verbal


No artigo precedente1, nós evidenciamos a natureza social da
linguagem. Nós também mostramos quais os fatores e forças que
determinam o aparecimento e, em seguida, o desenvolvimento da
linguagem, quais sejam, a organização social do trabalho e a luta de
classes. Nós, finalmente, constatamos que o discurso humano é um
fenômeno biface: todo enunciado exige, para que se realize, a presença
simultânea de um locutor e de um ouvinte. Toda expressão lingüística de
uma impressão proveniente do mundo exterior – seja ela imediata ou tenha
ela permanecido por longo tempo nas profundezas de nossa consciência até
adquirir uma forma ideológica mais sólida e mais constante -, toda
expressão lingüística é sempre orientada em direção ao outro, em direção
ao ouvinte, mesmo quando este outro se encontra fisicamente ausente. Nós
vimos que as expressões as mais simples e mais primitivas de nossos
desejos, até mesmo a mais fisiológica de nossas sensações, possuem uma
estrutura sociológica bem determinada.
Tudo isto nos cria a possibilidade de elaborar uma definição de
linguagem, a qual não se faz necessário retomar, passando-se, assim para
um exame mais aprofundado da estrutura do enunciado – quer este
pertença ao discurso cotidiano ou – nós o veremos em um segundo tempo -,
à literatura.
Nos é necessário, sobretudo, reter a idéia de que a linguagem não é
alguma coisa de imóvel, fornecida de uma vez por todas, e rigorosamente
determinada em suas “regras” e em suas “exceções” gramaticais. Ela é um
produto da vida social, a qual não é fixa e nem petrificada: a linguagem
encontra-se em um perpétuo devir e seu desenvolvimento segue a evolução
da vida social. A progressão da linguagem se concretiza na relação social de
comunicação que cada homem mantém com seus semelhantes – relação
que não existe apenas no nível de produção, mas também no nível do
discurso. É na comunicação verbal, como um dos elementos do vasto
conjunto formado pelas relações de comunicação social, que se elaboram os
diferentes tipos de enunciados, correspondendo, cada um deles, a um
diferente tipo de comunicação social.
É, portanto, impossível compreender como se constrói qualquer
enunciado que tenha uma aparência autônoma e acabada, se não se o
considera como um “momento”, uma simples gota no rio da comunicação
verbal, cujo movimento incessante é o mesmo que o da vida social e da
História.
Mas a comunicação verbal em si mesma não é senão uma das muitas
formas do vir-a-ser da comunidade social onde ocorre, no nível do discurso,
a interação (verbal) dos homens que vivem em sociedade. Esta a razão pela
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O presente estudo é o segundo de uma série de três (foi prometido um outro que lhe daria continuidade,
mas que jamais foi publicado). O título geral da trilogia é “Estilística do Discurso Artístico”; o primeiro
ensaio intitula-se “O que é a linguagem?” e o terceiro “O Discurso e sua Função Social”. A revista
Literaturnja Ucëba, criada e dirigida por Gorki, na qual foi publicada o presente ensaio (volume 3, 1930.
p 65-87) era uma revista destinada a escritores iniciantes. Nós omitimos um certo número de notas que
teciam explicações de palavras mais difíceis.
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qual seria vão procurar resolver o problema da estrutura dos enunciados


que fazem a comunicação, sem levar em conta as condições reais – isto é, a
situação – que suscitam tais enunciados.
Desta forma, somos levados a formular uma última proposição: a
verdadeira essência da linguagem é o evento social da interação verbal e
ela se encontra concretizada em um ou vários enunciados.
Quanto às mudanças nas formas de linguagem, como elas se
processam? De que dependem elas? Segundo que ordem elas ocorrem? Os
dados do artigo precedente nos permitem elaborar um esquema que
sintetiza e responde às questões ora postas:
1. Organização econômica da sociedade.
2. Relação de comunicação social.
3. Interação verbal
4. Enunciados
5. Formas gramaticais da linguagem.
Este esquema nos servirá como fio condutor no estudo desta unidade
concreta, que se destaca da palavra e que nós chamaremos de enunciado.
Nós não nos deteremos, obviamente, sobre questões relacionadas ao
estudo das formas e dos tipos de vida econômica da sociedade; essas
questões dizem respeito a outras disciplinas: às ciências sociais e,
sobretudo, à economia política.
Nós também não perderemos tempo examinando os diferentes tipos
de relações de comunicação social. Nos será suficiente indicar quais são as
mais significativas e as mais freqüentes dentre elas - com exceção de
apenas um tipo, ao qual nos nossos trabalhos ulteriores nós daremos uma
atenção especial: a comunicação artística.
Considerando a vida em sociedade, nós podemos facilmente
destacar, além da relação da comunicação artística, os tipos de
comunicação social seguintes:
 as relações de produção (nas fábricas, ateliers, “kolkhozes”, etc.);
 as relações de negócio (nas administrações, organismos públicos,
etc);
 as relações quotidianas (os encontros e as conversas na rua, nos
bares, em suas casas, etc.);
 as relações ideológicas stricto sensu na propaganda, na escola, na
ciência, na atividade filosófica sob todas as suas formas.
O que nós designamos pelo termo situação, em nosso artigo
precedente, não é outra coisa senão a efetiva realização, na vida concreta,
de uma determinada formação, de uma determinada variação da relação de
comunicação social.
Mas toda situação vivida supõe, necessariamente, na medida em que
ela produz um enunciado, a presença de um ou de vários atores/locutores.
Nós daremos o nome de auditório do enunciado, à presença necessária
daqueles que fazem parte de uma dada situação.
Assim, todo enunciado da vida quotidiana comporta – nós o veremos
mais adiante -, junto à sua parte expressa verbalmente, uma parte extra-
verbal, não exprimida mas sub-entendida, formada pela situação e pelo
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auditório. Se não se leva em conta este último elemento, o enunciado ele


mesmo não pode ser compreendido.
Ora, o enunciado, considerado como unidade de comunicação e
totalidade semântica, se constitui e se completa exatamente numa
interação verbal determinada e engendrada por uma certa relação de
comunicação social. Deste modo, cada um dos tipos de comunicação social
que nós citamos organiza, constrói e completa, de modo específico, a forma
gramatical e estilística do enunciado, assim como a estrutura de onde ela se
destaca. Nós daremos o nome de gênero a esta estrutura.
Examinemos, agora, o laço que une cada um desses tipos de
comunicação social - as relações da vida quotidiana, por exemplo -, ao tipo
de interação verbal correspondente.
Nós já tivemos a oportunidade de observar que a situação e o
auditório obrigam o discurso interior a exprimir-se de uma determinada
forma; essa expressão se integra imediatamente à situação concreta – não
exprimida, mas subentendida -, e ela própria se completa pelo gesto, pela
ação, ou pela resposta daqueles que fazem parte da enunciação.
“A questão bem formada, a exclamação, a ordem, o pedido, eis as
formas mais típicas de enunciados da vida quotidiana. Elas todas exigem – e,
sobretudo, a ordem e o pedido – um complemento extra-verbal e, também,
um ponto de início que é de natureza extra-verbal. Cada um desses
pequenos gêneros de enunciados, que ocorrem no quotidiano, pressupõe,
para ser realizado, que o discurso esteja em contato tanto com o meio extra-
verbal, como com o discurso do outro.
O modo como uma ordem é formulada, é determinado pelos
elementos que podem obstaculizar a sua realização, pelo grau de submissão
encontrado, etc. O gênero toma, portanto, sua forma “acabada” nos traços
particulares, contingentes e únicos que definem cada situação vivida.
Mas não se pode falar de gêneros constituídos, próprios do discurso
quotidiano, senão se se está em presença de formas de comunicação que
sejam relativamente estáveis na vida quotidiana, e fixados pelos modos de
vida e pelas circunstâncias.
É desta forma que se pode observar um tipo de gênero específico
constituído nos bate-papos de festas sociais: há uma conversação superficial
que não leva a nada, entre pessoas de um mesmo mundo, onde o único
critério diferencial dos que ali participam – o auditório – é a distinção entre
homens e mulheres. Ali, são elaboradas formas específicas de discurso: a
alusão, o sub-entendido, a repetição de pequenas narrativas conhecidas por
todos como frívolas, etc.
Um outro tipo de gênero também é formado na conversação entre
marido e mulher ou entre irmão e irmã. Supondo uma fila de espera, na qual
se encontram reunidos, por acaso, pessoas de categorias sociais diferentes,
em uma empresa qualquer, ou em qualquer outro lugar, ouvir-se-á, em cada
caso, declarações e réplicas que se distinguem radicalmente umas das
outras, em seu princípio, seu fim e na estrutura dos próprios enunciados que
as compõem. Os velórios, as danças, as diversões dos trabalhadores durante
o seu intervalo de almoço, conhecem tipos de gêneros que lhe são próprios.
Toda situação da vida quotidiana possui um auditório, cuja
organização é bem precisa, e dispõe de um repertório específico de
pequenos gêneros apropriados. Em cada caso, o gênero quotidiano se
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adapta à trilha que a comunicação social parece lhe ter traçado – e isto, pelo
tanto que ele apresenta de reflexo ideológico do tipo, de estrutura, de
objetivo e de constituição das relações de comunicação social.
O gênero quotidiano é um elemento do meio social, quer se trate de
uma festa, de diversões, etc. Ele coincide com o meio e ali é limitado e
determinado em todos os seus componentes internos.” 2
2. O Discurso Monológico e o Discurso Dialógico
Ao observar o processo segundo o qual se formam estes pequenos
gêneros cotidianos, remarca-se que a relação discursiva na qual eles
aparecem e tomam sua forma acabada se divide em dois momentos: a
enunciação, que é o ato do locutor; a compreensão do enunciado pelo
ouvinte, a qual já contém em si elementos de resposta. Com efeito, em
condições normais, nós sempre estamos ou de acordo ou em desacordo com
o que se diz; e nós trazemos, via de regra, uma resposta a todo enunciado
do nosso interlocutor – resposta que não é necessariamente verbal, podendo
consistir em um gesto, um movimento das mãos, um sorriso, um
franzimento de testa, etc. Pode-se, portanto, afirmar que toda comunicação,
toda interação verbal, se realiza sob a forma de uma troca de enunciados,
isto é, na dimensão de um diálogo.
O diálogo – troca de palavras – é a forma mais natural da linguagem.3
Mais que isso: os enunciados, ainda que emanados de um interlocutor único
(como, por exemplo, o discurso de um orador, a aula de um professor, o
monólogo de um ator, os pensamentos em voz alta de um homem sozinho)
são monológicos em razão da sua forma exterior, mas, dada a sua estrutura
semântica e estilística, eles são, na realidade, essencialmente dialógicos. É
importante que o escritor tenha consciência disso, quando ele faz uso do
monólogo para um de seus personagens.
Assim, todo enunciado (pronunciamento, conferência, etc.) é
concebido em função de um ouvinte, isto é, da sua compreensão e da sua
resposta – não sua resposta imediata, é claro, uma vez que não se deve
interromper um orador ou um conferencista com observações pessoais; mas
também em função do seu acordo ou seu desacordo, ou, em outras
palavras, da percepção avaliativa do ouvinte; enfim, em função do “auditório
do enunciado”. Um orador ou um conferencista experiente sabe
perfeitamente levar em conta esta dimensão dialógica do seu discurso; o
orador não considera seus ouvintes como uma massa indiferente, inerte,
imóvel, que o observa sem tomar partido; ao contrário, ele sabe que ele tem
diante de si um ouvinte vivo e polimorfo. O movimento de um ouvinte
qualquer, sua pose, a expressão de seu rosto, sua tosse, são, também
percebidos por um orador profissional como um conjunto de respostas
precisas e expressivas que acompanham de um ponto a outro, o seu
discurso.4 E se um orador é freqüentemente levado, de modo inesperado, a
realizar uma digressão, a contar um episódio divertido ou uma história
engraçada, nem sempre é para animar o seu público; algumas vezes é para
2
V. N. Volochinov, Marksizm i filosofja jazyka, op. Cit., p. 115-116. Tradução francesa sob o nome de
Bakhtine: Marxisme et Philosophie du langage, op. cit.
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Ver artigo de L. P. Jakubinskij (um pouco difícil, é verdade, para um escritor iniciante), na coletânea
Russkaaja rech’, I, 192, sob o título “O dialogicheskoj rechi” (Do discurso dialógico).
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A este respeito, é divertido observar o embaraço completo de conferencistas ou de atores experientes
que se apresentam pela primeira vez diante de um público totalmente invisível, impossível de ser sentido,
como é o caso das emissões de rádio.
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sublinhar – digamos, acentuar – uma idéia que ele pode julgar não ter sido
suficientemente remarcada por seus ouvintes.
Assim, um orador que se escuta falar é um mau orador; um professor
que não se ocupa senão de suas notas é, igualmente, um mau professor.
Eles desfazem o impacto de suas propostas, eles quebram o laço vivo, de
natureza dialógica, que os une a seu auditório e, desta forma, eles próprios
depreciam os seus préstimos.
3. O Caráter Dialógico do Discurso Interior
“Que seja. Estamos de acordo. Admitamos que é bem assim”, podem
nos replicar, “mas acontece que, nos exemplos citados, o ouvinte-
interlocutor estava, de fato presente; e se não existe nada de surpreendente
no fato de que as palavras do locutor levem em conta essa presença, o que
ocorre se o locutor está só e não existe ouvinte? É verdade que os
pensamentos mais íntimos – advindos do discurso interior ou até mesmo
pronunciados em voz alta -, é verdade que as proposições enunciadas no
íntimo da alma sejam, em sua própria estrutura, igualmente orientadas em
direção à sociedade? Em direção a um auditório? Deve-se acreditar que esse
discurso solitário, endereçado a si próprio, não é a mais pura forma do
monólogo, isto é, um discurso orientado exclusivamente para o locutor e
para mais ninguém, dependendo apenas de um “estado psicológico”?
Nós não hesitamos em afirmar categoricamente que os discursos
mais íntimos, eles também, são inteiramente dialógicos: eles são
atravessados pelas avaliações de um ouvinte virtual, de um auditório
potencial, mesmo se a representação de tal auditório não aparece de forma
clara no espírito do locutor.
Isto foi demonstrado, não apenas nas conclusões de nosso artigo
precedente, não apenas pelo elemento sociológico inerente à consciência
humana, a suas “emoções” e a sua expressão. Não. Esta determinação
social - esta determinação de classe, (dito de forma mais precisa e franca) -
de todo discurso monológico, que se manifesta exteriormente sob um
aspecto dialógico, nós podemos verificá-la sem recorrer a exemplos
literários, mas nos reportando a nossa própria experiência, ao nosso diário
íntimo, a nossas notas de uso privado, etc.
E, para que nos convençamos, é suficiente considerar que quando nós
nos pomos a refletir sobre um tema qualquer, quando nós o examinamos
atentamente, nosso discurso interior – que, se estamos sós, pode ser
pronunciado em alta voz -, toma imediatamente a forma de um debate com
perguntas e respostas, feito de afirmações seguidas de objeções; em suma,
nosso discurso se auto-analisa por meio de réplicas nitidamente separadas e
mais ou menos desenvolvidas; ele é pronunciado sob a forma de um diálogo.
Esta forma dialógica aparece claramente quando nós temos que
tomar uma decisão. Nós estamos cheios de hesitação e não sabemos que
partido tomar. Nós iniciamos uma discussão conosco mesmos, nós tentamos
nos convencer a nós mesmos da justeza de tal ou tal decisão. Nossa
consciência parece, desta forma, nos falar por meio de duas vozes
independentes uma da outra, e cujas propostas são contrárias.
E, a cada vez, independentemente de nossa vontade e de nossa
consciência, uma dessas vozes se confunde com a que exprime o ponto de
vista da classe à qual nós pertencemos, suas opiniões, suas avaliações. Ela
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se torna sempre a voz que seria a representante mais típica do ideal de sua
classe.
“Esta ação, se eu a pratico, será uma má ação” – mas, segundo qual
ponto de vista? Segundo meu ponto de vista pessoal? Mas, de onde me vem
este “ponto de vista pessoal”, senão da opinião daqueles que me educaram,
de meus colegas de escola, dos autores dos livros e dos jornais que eu li, dos
oradores que eu escutei em conferências e em salas de aula? Se eu renuncio
a esta visão de mundo própria do grupo social ao qual eu pertencia até
então, é unicamente porque a ideologia de um outro grupo social terá
investido na minha consciência, a terá invadido e obrigado ao
reconhecimento da legitimidade da realidade social que a produziu.
“Esta ação, se eu a pratico, será uma má ação” – esta “voz da minha
consciência” deveria, na realidade, fazer compreender o seguinte: “Esta
ação, se você a pratica, será uma má ação do ponto de vista de outras
pessoas, que são os mais eminentes representantes da classe social à qual
você pertence”.
Pode parecer que este ponto de vista não é percebido como
imperativo e definitivo: nós podemos, de fato, conceber que aí exista uma
discussão, até mesmo polêmica com este ouvinte-interlocutor invisível.
Tomemos como exemplo o caso-limite de uma individualidade em conflito
com a sociedade: tanto mais seja grande sua aversão, mais suas tentativas
de impor seu “eu” individual, sua “vontade própria” – segundo a expressão
de um dos heróis de Dostoïevsky – serão violentas, e mais evidente será a
forma dialógica de seu discurso interior, mais manifesto o ódio em um só e
mesmo fluxo verbal de duas ideologias, dois pontos de vista de classes que
se opõem.
Assim, a aversão violenta que qualquer “sabotador” sente em relação
à classe proletária, assim como a hostilidade surda por quem é “cidadão
mecanicamente” não exprimem de forma alguma a independência ou a
auto-afirmação livre de suas individualidades. Seus monólogos,
pronunciados a alta voz ou in petto, são necessariamente sustentados pela
simpatia de supostos ouvintes – o público invisível que forma os restos de
uma classe totalmente destruída. É exatamente segundo o ponto de vista
próprio deste resto que se constituem todos os enunciados de suas
individualidades: são suas opiniões presumidas, suas avaliações, que vão
determinar a entonação da voz, seja interior ou não; e vão determinar
também a escolha das palavras e sua distribuição na organização de um
enunciado concreto. As exclamações as mais banais pronunciadas
mentalmente – por exemplo, para marcar indignação: “Veja só você...”; ou
para exprimir raiva: “Não, saiba você que...” – são endereçadas a um
ouvinte virtual – aliado, testemunha simpatizante ou juiz reconhecido.
Existem, logicamente, casos mais complexos nos quais o discurso
interior se exprime por dois caminhos contraditórios, mas sem que um
dentre eles seja dominante; isto se dá quando a individualidade está dividida
e não sabe que escolha realizar.
Situações desse tipo, características de certas épocas, testemunham
a existência de um conflito entre duas classes sociais de igual força, e que
lutam para ser, cada uma delas, a figura dominante no interior da história
futura. Um tal conflito encontra-se, então, transferido para a arena da
consciência individual.
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Resta, ainda, um último caso, que é aquele de uma individualidade


que perdeu seu ouvinte interior; assiste-se, então, à dissolução, no interior
da consciência, de todo ponto de vista sólido e estável. O sujeito não possui
mais referências e sua conduta social não é senão o efeito de impulsos e de
tendências absolutamente contingentes, irresponsáveis e arbitrárias.
Assiste-se, assim, a um fenômeno de cisão de natureza ideológica, da
individualidade com o seu meio social; este é o resultado habitual de uma
“des-classilização” do indivíduo. Em certas condições sociais
particularmente desfavoráveis, quando a individualidade é, desta forma
arrancada, do meio social que a nutriu, isto pode a médio ou longo prazos
conduzir a uma desagregação total da consciência, à loucura ou à idiotia.
E é aí que se pode observar os conflitos mais violentos entre discurso
interior e discurso exterior.
Quando a individualidade vacila fora da vida social, quando o sistema
de valores e os pontos de vista familiares são destruídos, nada mais resta na
consciência que possa representar a expressão de uma conduta social
produtiva e ideologicamente justificada por uma instância superior cuja
autoridade seja reconhecida. O mundo de novas palavras e de novas
significações, este mundo nascido “das chamas e da luz” revolucionárias,
não menos que o novo modo de ser social, tudo isto restou aquém da
consciência, fora do seu campo, e ela não pode assimilá-lo. Quanto às
palavras antigas, elas deixaram de corresponder à realidade, de
constituírem signos e símbolos: a personalidade é deixada à deriva de seus
estados de alma, de suas impressões que são, a esta altura, em sua maioria,
estranhas às expressões lingüísticas em uso na sociedade. Na medida em
que esses estados de alma e essas impressões não são mais definidas por
um modo de formação e de expressão de natureza ideológica – eles se
voltam para as camadas mais baixas da consciência vivida, as quais fazem
fronteira com o estado fisiológico do organismo – eles tendem a se
reagruparem em torno de um único centro.
A individualidade é, pois, perdida no mundo social; mas ela se
reencontra, então, no mundo de suas pulsões sensuais, de sua natureza em
estado bruto. Tudo se organiza, desta forma, não em torno da vida social e
dos seus centros de interesse ditos espirituais, mas em torno da via sexual e
dos centros de interesses eróticos. Os períodos de crise e de decadência,
que são acompanhados de mudanças profundas no interior das relações
econômicas e políticas, conhecem este triunfo do “homem animal” sobre o
“homem social”. Tanto mais se penetra profundamente na ideologia da
classe condenada, mais este motivo se reforça. O sexual torna-se um
sucedâneo – a contrafação, a falsificação – do social. O amor sob sua forma
mais elementar, fisiológica, é declarado valor supremo e seus
representantes literários, a consciência empodrecida da inteligência
burguesa da Europa Ocidental, se esforça por promover um “novo”
Evangelho: “No início era o sexo” (Przibyzewski).
A literatura russa já deu exemplos perfeitos deste tipo de homem
social, onde a individualidade torna-se a presa de uma pulsão sexual
exclusiva e devorante. Estes exemplos, nós os encontramos, sobretudo, em
Dostoévski (em um diferente contexto de classe, evidentemente); nós os
analisaremos futuramente, quando do estudo da estrutura do monólogo e do
diálogo na obra literária. Entretanto, nós consideramos ter sido oportuno nos
deter por tanto tempo na questão do fundamento dialógico de todo discurso
da vida quotidiana e das suas relações com um ouvinte interior virtual ou
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realmente presente, porque nós quisemos dar ao escritor iniciante um


esclarecimento rigorosamente materialista e marxista sobre os problemas
que são freqüentemente abordados sob um ângulo excessivamente
psicologista, talvez abertamente idealista, que falseia a abordagem. O
escritor deve compreender as causas e as condições sociais que suscitam na
vida real as características e as ações que são de seu interesse. O escritor
não deve jamais esquecer, no momento em que ele elabora seu
personagem, que a força expressiva da obra literária depende, em larga
medida, do que existe de verdade sobre a vida dentro dela.
A impiedosa dialética dos eventos sociais, o implacável
encadeamento de causa e efeito, devem ser, tanto na vida como no
romance, idênticos.
4. A Orientação Social do Enunciado
Voltemos, agora, ao nosso objetivo específico.
Nós sabemos que todo discurso é um discurso dialógico orientado em
direção a alguém que seja capaz de compreendê-lo e dar-lhe uma resposta,
real ou virtual. Esta orientação em direção ao “outro”, em direção ao
ouvinte, conduz necessariamente a se levar em conta a relação social e
hierárquica que existe entre os interlocutores. Nós já mostramos, em nosso
artigo precedente, as modificações que se produzem na forma do enunciado
de acordo com a situação do locutor e do ouvinte, e de acordo com o todo
do contexto social do enunciado. Nós propomos chamar de “orientação
social” do enunciado, esta dependência do enunciado face ao peso
hierárquico e social do auditório (isto é, tendo em vista a(s) classe(s)
social(is) a qual pertence(m) os interlocutores, sua situação financeira, sua
profissão, sua função; ou ainda, como era o caso da Rússia anterior à
reforma de 1861, em face do número de camponeses que eles possuíam,
seu capital, etc.).
Esta orientação social estará presente em todo enunciado verbal ou
gestual – a mímica, por exemplo -, qualquer que seja a forma que ele adote:
o monólogo – um homem falando para si mesmo – ou o diálogo – duas ou
mais pessoas participando de uma conversa. A orientação social é
precisamente uma das forças vivas e constitutivas que, ao mesmo tempo
em que organizam o contexto do enunciado – a situação -, determinam
também a sua forma estilística e sua estrutura estritamente gramatical. 5
E é justamente na orientação social que se encontra refletido o
auditório do enunciado, seja ele realmente presente ou simplesmente
pressuposto, fora do qual nenhum ato de comunicação verbal se desenvolve
nem pode se desenvolver.
O escritor que não cria unicamente os enunciados de seus
personagens, mas cria igualmente o seu aspecto exterior, tem interesse em
observar que aquilo a que se chama de “boas maneiras” – o modo de
comportar-se em sociedade – nada mais realiza do que “a expressão gestual
da orientação social do enunciado”.
Esta manifestação exterior e física da conduta social – o movimento
das mãos, a pose, o tom da voz -, que acompanham habitualmente o
discurso, é, antes de mais nada, determinado pela consideração do auditório
e pela sua avaliação. O que significam as “boas maneiras” de Tchitchkov –

5
Nós teremos a oportunidade de confirmar esta idéia um pouco adiante, ao analisarmos um extrato de
“Ames mortes” de Gogol.
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maneiras que, inclusive, tomam diferentes formas se ele se encontra com


Korobotchka, com Pliouchkine ou com o general Betrichtchev -, senão que
elas são a impressão gestual de uma constante consideração do auditório,
de uma avaliação sutil da situação social do seu interlocutor, que são a
própria essência do seu caráter e representam a condição necessária ao
sucesso de suas iniciativas?
A palavra, o gesto da mão, a expressão do rosto e a postura do corpo
são igualmente submissas à orientação e por ela estruturadas; as “más
maneiras” refletem o fato de que não se leva em conta o interlocutor,
refletem a ignorância acerca do laço social e hierárquico existente entre o
locutor e o ouvinte 6, e o hábito, quase sempre inconsciente, de não se
modificar a orientação social dos seus enunciados – sejam expressos em
palavra ou em gesto – enquanto as condições sociais e o auditório se
encontram modificados.
Esta a razão pela qual o escritor, quando decide dotar um de seus
personagens de “boas” ou “más” maneiras, deve sempre considerar que
estas maneiras não são explicáveis como mero resultado de “algumas
particularidades inatas” ou como expressão do seu “caráter”. Pode-se
afirmar que, a rigor, o personagem é devedor de sua educação, mas não se
pode esquecer que a educação corresponde ao esforço por habituar a
pessoa a sempre levar em conta seu auditório – dá-se a isto o nome de
“saber se comportar socialmente” -, a exprimir pelo gesto ou pela mímica,
mas de modo conforme e prudente, a orientação social dos seus enunciados.
5. O Lado Extra-Verbal (Subentendido) do Enunciado
Todo enunciado, além da sua orientação social, comporta um
sentido, um conteúdo. Se é privado deste conteúdo, o enunciado
transforma-se em um arranjo de sons que nada significam, e ele passa a não
mais caracterizar uma interação verbal. O “outro”, o ouvinte, nada pode
fazer: o enunciado permanece inacessível à compreensão e deixa de
constituir a condição e o meio de comunicação lingüística. O “poema” de
Kroutchënyck, citado no nosso artigo precedente, é exatamente o exemplo
desse tipo de “enunciado” purificado de todo sentido: “Go osneg kaïd Mr
batul’ba...”, etc. Enunciados deste gênero são, sem dúvida, interessantes
em razão de sua sonoridade, mas eles nada têm a ver com a linguagem
stricto sensu, e por tal razão, eles não fazem parte de nosso estudo.
Todo enunciado real, verdadeiro, possui um sentido. Mas, se
nós tomarmos um enunciado qualquer, dentre os mais freqüentes – dentre
as “frases já feitas”, por exemplo -, nós veremos que nem sempre é possível
compreender o seu sentido. A maior parte de nossos leitores terá,
certamente, ouvido, e mesmo pronunciado frases tais como: “Que história!”;
e, no entanto, ainda que nós “quebremos a cabeça”, o sentido de tal
enunciado permanecerá obscuro se nós não conhecermos o conjunto das
circunstâncias nas quais ele foi pronunciado. Pois é de acordo com as
circunstâncias, de acordo com o contexto, que este enunciado terá um
sentido, a cada vez, diferente.
Deixemos a nossos leitores a missão de buscar, eles próprios,
exemplos onde a mesma expressão verbal – a nossa “Que história!” – possa
ter sentidos radicalmente diferentes – significando em um momento
estupefação, em outro momento indignação, ou ainda alegria ou mesmo
tristeza. Isto significa dizer, em outras palavras, que tal expressão
6
É importante lembrar que, aqui, trata-se de personagens de obras literárias.
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representará nossa resposta, nossa réplica, a situações e a eventos


totalmente diversos. Quase todas as palavras de nossa língua têm inúmeras
significações em função do sentido do enunciado por inteiro; sentido que
depende, ao mesmo tempo, das circunstâncias imediatas que suscitaram o
enunciado, e das causas sociais mediatas que estão na origem do ato de
comunicação verbal considerado.
Todo enunciado parece, conseqüentemente, ser constituído de
duas partes: uma parte verbal e uma parte extraverbal.
Não esqueçamos que o que nós aqui examinamos são os
enunciados da vida quotidiana, fixados – ou em processo de fixação – em
gêneros determinados aos quais correspondem.
É apenas ali, nos enunciados mais simples, que nós encontraremos a
chave da estrutura lingüística dos enunciados literários.
O que é, então, a parte extraverbal do enunciado?
Nós a compreenderemos facilmente se considerarmos o
seguinte exemplo: “O homem de barbicha grisalha, que se encontrava
sentado em uma mesa, disse, depois de um momento de silêncio: “Pois
sim!” O adolescente que se mantinha de pé a sua frente, enrubesceu
violentamente, virou-se e deixou o local”.
O que pode significar este “Pois sim!” ? enunciado lacônico
mas, ao que parece, altamente expressivo. Nós podemos realizar, sob todos
os seus aspectos, uma análise gramatical; nós podemos procurar nos
dicionários todos os sentidos possíveis desta palavra e, ainda assim, nos
será impossível compreender esta conversação.
Entretanto, ela foi entabulada de forma plena de sentido; trata-
se de um verdadeiro e completo diálogo, ainda que breve: sua primeira
réplica (verbal) é constituída por “Pois sim!”; quanto à segunda parte
(extraverbal) do enunciado, ela constitui-se na reação orgânica (o rosto do
adolescente que se torna rubro) e no gesto (a sua retirada sem qualquer
palavra).
Então, por que nossa dificuldade?
Porque nós ignoramos tudo o que constitui a segunda parte
(extraverbal) do enunciado, enquanto que é esta que determina o sentido da
sua primeira parte (verbal). Nós ignoramos, antes de mais nada, onde e
quando se processa tal conversação; em seguida, nós desconhecemos o seu
objeto; e, finalmente, nós nada sabemos da posição de cada um dos
interlocutores em relação a este objeto nem das respectivas avaliações que
eles portam sobre tal objeto.
Suponhamos que estes três componentes da parte extraverbal
do enunciado deixem de nos ser desconhecidos; nós sabemos que o fato
ocorreu durante uma prova; o candidato não respondeu a nenhuma das
questões, ainda que simples, que o examinador lhe propôs; este último,
instalado em seu bureau, diz “Pois sim!”, com um ar de reprovação e uma
ponta de compaixão; o candidato compreende que o examinador o
reprovou, ele sente vergonha, e ele deixa a sala.
Agora, todos os aspectos dissimulados do enunciado – mas que
os locutores conhecem, ainda que se trate de subentendidos – nos são
revelados. Este pequeno “Pois sim!”, inicialmente vazio e desprovido de
significação, ganha sentido. Ele adquire uma significação perfeitamente
11

determinada passível de – se se deseja -, ser decifrada sob a forma de uma


frase determinada, clara e completa; assim por exemplo, “Você foi mal,
muito mal meu camarada! Eu sinto muito, mas eu não posso lhe dar a nota
necessária”. É exatamente assim que o candidato compreende o enunciado
“Pois sim!”, e ele está de acordo com o que ele significa.
Estes três aspectos subentendidos formam a parte extra-verbal
do enunciado - a saber, o espaço e o tempo do evento, o objeto ou o tema
do enunciado (aquilo de que se fala), e a posição dos interlocutores diante
do fato (a “avaliação”); nós convencionamos designar o conjunto assim
formado, pelo termo já familiar de situação.
Nós vemos agora, claramente, que é precisamente a diferença
das situações que determina a diferença de sentidos de uma única e mesma
expressão verbal. A expressão verbal – o enunciado – não se limita a refletir
passivamente a situação; ela constitui, de fato, sua resolução, ela completa
a avaliação, e ela representa, ao mesmo tempo, a condição necessária ao
seu posterior desenvolvimento ideológico.
Nós propusemos aos nossos leitores operar mudanças no
sentido da expressão “Que história!”, o que significaria localizar situações
nas quais tal expressão teria, a cada vez, um diferente sentido. Para maior
clareza, nós vamos mostrar, agora, as mudanças de sentido que podem
ocorrer com a expressão “Pois sim!”.
Modifiquemos, de início, a situação: no lugar de uma sala de
aula, consideremos o guichet de um banco. O caixa está atando, em um
pacote, diversas cédulas de dinheiro, provenientes de lucros obtidos por
uma pessoa, e, em voz quase inaudível, ele pronuncia “Pois sim!”. Nesta
nova situação, o sentido geral do enunciado não é mais a expressão de uma
reprovação, é mais a de uma admiração misturada a inveja: “Tem gente que
tem sorte! Não é todos os dias que se pode ganhar tal importância!”.
Tudo isto nos mostra que a situação tem um papel
predominante na formação de um enunciado. Sem o liame que a situação
cria entre os locutores, sem uma proximidade do evento que lhes é comum,
e sem a posição de cada um face a este evento, as palavras pronunciadas
por um seriam ininteligíveis para o outro, destituídas de sentidos,
desprezáveis. É unicamente porque existe alguma coisa de “subentendida”
que a comunicação e a interação verbal se tornam possíveis.
Nós voltaremos, posteriormente, ao papel desempenhado pela
dimensão do subentendido no enunciado literário. Por enquanto,
observemos que não existe enunciado – seja de natureza científica, filosófica
ou literária – que possa abrir mão de uma certa parcela de subentendido.
6. Situação e Forma do Enunciado: Entonação, Escolha e Disposição
das Palavras.
Nós estabelecemos que o sentido de todo enunciado quotidiano
depende da situação e esta determina, por sua vez, a orientação social em
direção ao ouvinte que participa da situação. Nós iremos proceder, agora, ao
exame da forma do enunciado. É evidente que o conteúdo e o sentido de um
enunciado não podem se realizar e se concretizar senão dentro de uma
forma, sem a qual eles não existiriam. Mesmo nos casos onde o enunciado
se apresentasse destituído de palavras, restaria, no mínimo, o som da voz (a
entonação) ou até mesmo um único gesto. Fora da expressão material, não
existe enunciado e não existe afeto.
12

Na medida em que nós nos ocupamos de enunciados verbais, nosso


problema será, primeiramente, definir os liames existentes entre a forma
verbal do enunciado, sua situação e seu auditório. Nós não abordaremos, no
momento, a questão da forma artística.
Os elementos fundamentais que organizam a forma do enunciado são
a entonação (o timbre expressivo da palavra), em seguida a escolha lexical
e, finalmente, sua disposição no interior do enunciado como um todo.
Estes três elementos, que servem à construção de todo enunciado
inteligível – que possui um conteúdo e é socialmente orientado -, serão aqui
examinados de forma sucinta e preliminar; nós os retomaremos adiante,
quando da análise, central em nosso estudo, da estrutura do enunciado
literário.
Existe um provérbio muito comum de que “é o tom que faz a música”.
Pois bem, é o tom – aqui tomado como entonação – que “faz a música” de
todo enunciado – isto é, seu sentido geral, sua significação global. Uma
única palavra, uma única expressão apresenta diferentes significações de
acordo com a entonação que lhe é dada. Uma palavra agressiva pode se
transformar em uma palavra gentil e vice-versa: (a) “Espere um pouco, meu
querido, e você vai ver com quantos paus se faz uma jangada”; a afirmativa
pode se transformar em uma interrogativa ou em uma exclamativa: (b)
“Sim?” e “Sim!”; e a concessão pode se tornar reclamação: (c) “Desculpe,
você está pisando no meu pé!” 7
A situação e seu respectivo auditório determinam a entonação
através da qual se realizam a escolha e a ordenação das palavras, fazendo
com que o enunciado ganhe sentido próprio. A entonação desempenha o
papel de um guia particularmente sutil e sensível no interior das relações
sociais que, em uma determinada situação, se estabelecem entre o locutor e
o ouvinte. Nós já mostramos, anteriormente, que o enunciado é a resolução
da situação e que ele completa a avaliação; quando nós assim o dissemos,
nós estávamos pensando, sobretudo, na entonação do enunciado. Sem
estender excessivamente nossa linha de pensamento, nós afirmamos que a
entonação é a expressão fônica da avaliação social. Nós teremos a chance,
no momento oportuno, de demonstrar a importância primordial desta
assertiva. Limitemo-nos, no momento, a citar um exemplo que ilustra bem
nossa idéia.
“É necessário notar que na Rússia, se nós nos encontramos ainda, em
certas coisas, atrasados em relação aos estrangeiros, nós os ultrapassamos
em muito na arte da formulação. É impossível enumerar as nuanças, as
sutilezas de nossa conversação. O francês e o alemão não compreenderiam
jamais todas essas diferenças e particularidades; se bem que no fundo de
seus corações eles se curvem diante de um milionário, eles lhe falam usando
o mesmo tom de voz que usam quando se dirigem a um pequeno
comerciante de uma lojinha de cigarros. Isto não se passa da mesma forma
entre nós. A um dono de 200 “âmes”8 nossos inescrupulosos recitam uma
ladainha diversa daquela reservada a um dono de 300 “âmes”; eles não
mantêm a mesma linguagem para um dono de 500 “âmes” e o acento varia
ainda para o portador de 800 “âmes”; avancemos para os milhões e eles

7
Os exemplos foram adaptados para a língua portuguesa, sendo seus originais em francês: (a) “Attends
um peu, mon petit, tu vas voir de quel bois je me chauffe!”; (b) “Oui!” et “Oui?”; (c) “Pardon, c’est mon
manteau”.
8
“âmes” pode ser traduzido por almas, no sentido de servos ou escravos.
13

encontrarão ainda novas nuanças. Suponhamos que exista uma empresa –


não aqui, mas em outro ponto extremo do mundo. Peguemos um chefe
desta empresa; olhemos-no reinar em meio aos seus subordinados: o medo
nos deixará mudos. Seu semblante transmite nobreza e orgulho. Sabe Deus
mais o quê! Ele poderia posar como um Prometeu! Que exterior majestoso,
que postura imponente! Dir-se-ia uma águia. Mas apenas saído de sua sala,
com papéis debaixo do braço, para ir ao gabinete do diretor, a águia se faz
perdiz. Em sociedade, se as pessoas presentes lhe são hierarquicamente
inferiores, Prometeu permanece Prometeu. Mas basta que ele se encontre
diante de um extrato ligeiramente superior, meu Prometeu sofre uma
metamorfose que o próprio Ovídio jamais criou: ele se torna uma mosca,
menos que uma mosca, um grão de areia! “Não pode ser Ivan Pétrovitch! -
diria você olhando para ele. Ivan Pétrovitch não ri nunca, ele tem um porte
imponente e a voz sempre alta, enquanto que esse franzino ri o tempo todo
e grasna como um pássaro”. Aproxime-se, e você reconhecerá Ivan
Pétrovitch. “Eh, eh!!” sonharia você...”
Neste extrato de “Ames mortes”, Gogol mostrou, com precisão, a
mudança brutal de entonação que se produz no momento em que a situação
e o auditório do enunciado se modificam. Na Rússia da subserviência, da
burocracia e do poder policial, enquanto tudo o que havia de honestidade,
de honra e de liberdade estava sufocado, a desigualdade social dos homens
se fazia sentir de modo particularmente agudo. Esta desigualdade
encontrava sua mais direta expressão na infinita variedade de nuanças de
entonação, indo da arrogância estúpida ao servilismo degradante. Não era
apenas a voz, mas todo o corpo do homem que se revestia desta entonação
– seus movimentos, seus gestos, sua mímica. Na realidade, “a águia se
tornava perdiz”.
A modificação do auditório – relações de trabalho e relações privadas,
não mais com subordinados, mas com superiores hierárquicos – provocou
uma mudança na orientação social do enunciado. E, como nós o vemos, isto
é imediatamente traduzido na entonação (a forma de falar) e na
gesticulação (o modo de se conduzir).9 Se, no extrato citado, Gogol houvesse
igualmente introduzido a expressão verbal dos enunciados de Ivan
Pétrovitch, nós teríamos podido constatar que a mudança de orientação
social, que é conseqüência da mudança de situação e de auditório, não
estaria simplesmente refletida na entonação, mas também, através desta,
na escolha das palavras e na sua disposição no interior das frases. Não
esqueçamos que a entonação representa, antes de tudo, uma avaliação da
situação e do auditório. Esta a razão pela qual cada entonação exige a
palavra que lhe corresponde, que lhe “convém”, e ela atribui a esta palavra
esse ou aquele lugar no interior da proposição, e à proposição este ou
aquele lugar no interior da frase, e à frase este ou aquele lugar dentro do
enunciado como um todo.
Em uma outra passagem de “Ames mortes”, o da cena na qual
Tchitchikov conhece Pliouchkine, nós encontramos representado, de forma
bastante precisa, o processo que conduz à escolha de uma palavra, da
palavra que seja a mais apta a descrever as relações sociais do locutor e do
ouvinte, e que retém com grande sutileza todos os detalhes que compõem o
perfil social do interlocutor – sua riqueza, seu status, sua posição social, etc.
Assim:

9
Lembremos que as “maneiras” são a expressão gestual da orientação social do enunciado. É exatamente
isto o que pode ser observado no exemplo citado.
14

“Durante alguns minutos, Tchitchikov permaneceu plantado diante de


Pliouchkine, silencioso; desconcertado pelo aspecto heteróclito do
alojamento do mestre, ele permanecia incapaz de entabular uma
conversação, não sabendo em que termos explicar o motivo da sua visita.
Ele ia dizer a Pliouchkine que a fama de sua virtude o havia incitado a pagar-
lhe, pessoalmente, um tributo sob a forma de homenagens, mas uma última
olhadela no bric-à-brac o convenceu que a palavra virtude seria
vantajosamente substituída por ordem e economia. Ele se recompôs
rapidamente e declarou que tendo ouvido falar do seu espírito de economia
e da sua habilidade em gerir seus bens, ele havia julgado ser bom vir em
pessoa assegurá-lo acerca do respeito que lhe tinha. Ele teria podido, sem
dúvida, invocar um melhor pretexto, mas ele não encontrou nenhum outro
naquele momento”.
Assiste-se aqui, na consciência de Tchitchikov, a um debate que diz
respeito à escolha da palavra mais apropriada. Foi-lhe necessário avaliar a
relação entre, de um lado, a desordem abominável, a sujeira que reinava na
casa de Pliouchkine, os trapos repugnantes com os quais ele estava vestido,
e, de outro lado, sua posição de proprietário de terras imensamente rico,
possuindo mais de mil “âmes”.
Na realidade, Tchitchikov terminou por se restabelecer frente à
situação. Compreendendo-a, avaliando-a corretamente, ele conseguiu
encontrar uma entonação justa e as palavras que lhe correspondem. Dispor
estas palavras no interior de uma frase acabada não passa, então, de um
jogo de criança. Dadas a situação e o ouvinte, não se faz nem um pouco
necessário proceder a uma elaboração estilística particular; é possível se
contentar com uma forma de expressão já feita, generalizante e
estereotipada: “tendo ouvido falar de seu espírito de economia e da sua
habilidade em gerir seus bens, ele havia julgado ser bom vir em pessoa
assegurá-lo acerca do respeito que lhe tinha”.
7. Estilística do Enunciado Quotidiano
Em uma outra passagem, Tchitchikov deve resolver um problema que
não é apenas da escolha de palavras, mas, sobretudo, o da sua disposição e
da construção global de seu enunciado. Seu interlocutor não é mais
Pliouchkine, mas o general Betrichtchev. A importância social de
Betrichtchev, sua patente de general, seu aspecto imponente, forçam
Tchitchikov a construir um enunciado extremamente elaborado. Sem falar
da entonação de suas frases, provavelmente muito respeitosas e um pouco
solenes, a escolha das palavras que Tchitchikov faz indica a sua vontade de
compor um discurso feito de termos livrescos, arcaicos, “nobres”.
Em uma tal situação, a determinação da escolha das palavras
procede, para Tchitchikov, de um princípio muito simples: a posição social
eminente de seu interlocutor exige o emprego de um vocabulário elevado,
de palavras escolhidas, de um estilo igualmente “elevado”, nobre. As
palavras que ele freqüentemente utilizava quando de suas conversas com
proprietários de terras de média importância e com funcionários subalternos
lhe parecem, neste momento, inadmissíveis. E não se trata unicamente das
palavras. A disposição destas deve ser particular, ele deve procurar no
discurso um encadeamento regular, ritmado, ou seja, dar-lhe um caráter
musical e poético. Não é suficiente expor de forma clara e simples seu
pensamento: é necessário orná-lo com comparações, floreá-lo com
expressões escolhidas, elaborar uma espécie de obra de arte, como se
fossem versos.
15

“Com a cabeça respeitosamente inclinada... ele profere: Pleno de


respeito pela virtude dos bravos que salvaram a pátria nos campos de
batalha, foi-me um dever apresentar-me a Vossa Excelência”.
Esse preâmbulo pareceu satisfazer ao general. Após uma inclinação
de cabeça das mais indulgentes, ele diz:
“Encantado por conhecê-lo. Venha sentar-se. Onde o senhor serviu?
- Minha carreira começa nas finanças, respondeu Tchitchikov,
sentando-se em uma poltrona, não no seu interior, mas atravessado, com o
braço apoiado sobre o braço da poltrona. Ela se seguiu por inúmeros
lugares: em tribunais, alfândegas, até mesmo numa empresa de construção.
Minha vida, Excelência, pode ser comparada a um navio vagando sobre
ondas. Envolto, encouraçado de paciência, por assim dizer, a encarnação da
paciência. Quanto aos inimigos que atentaram contra minha vida, nem as
palavras, nem as cores, nem mesmo os pincéis poderiam dela dar uma idéia,
de modo que no declínio de meus dias, se ouso assim me exprimir, tudo o
que eu procuro é um recanto onde possa passar os dias que de vida me
restam”.
Quais são os traços mais característicos na construção de tais
enunciados? Nós deixamos de lado a substância do discurso de Tchitchikov,
que se destaca do conjunto da obra; nós não consideramos senão a forma,
sem esquecer nossa suposição que faz dele, não uma obra literária – cuja
estilística será estudada posteriormente - mas um enunciado real, emitido
por um personagem real, em circunstâncias reais.
O procedimento que consiste em analisar um enunciado literário
como se se tratasse de um enunciado quotidiano e atestado na história é,
evidentemente, perigoso de um ponto de vista científico, e ele não pode ser
utilizado senão excepcionalmente. Mas face à ausência de um registro
gravado, que nos teria fornecido um documento autêntico sobre a
conversação de personagens vivos, é necessário recorrer ao material
literário, levando em conta, naturalmente, sua natureza específica.
Consideremos, portanto, no momento, que a ficção que reflete a vida
é a vida ela própria, sem nos ocuparmos da questão de saber se existem
semelhanças entre a realidade artística de Ames mortes e a realidade
histórica da vida na Rússia nos anos 1820-1830. Admitamos que tenha
chegado a nossas mãos, um século depois, a conversação entre um
personagem extremamente digno, considerável e imponente, o general
Betrichtchev, e um outro personagem, menos importante, o conselheiro do
Colégio Tchitchikov.
Para ser fiel a este esquema, nós deveríamos, inicialmente,
verificar a relação de dependência existente entre o conjunto da situação
econômica e política na Rússia àquela época e o tipo de comunicação social
que nós submetemos à análise. Mas, nós não podemos proceder assim, pois
isto implicaria passar da economia e da política reais a um tipo de
comunicação social tal como ela é representada em uma obra literária. Nós
podemos, entretanto, sem risco de errar, supor que a relação de
dependência que existe entre a “infra-estrutura” econômica - a base
econômica da sociedade e o tipo de comunicação quotidiana reproduzida no
“poema” de Gogol, é medida segundo a importância que ela teria tido na
vida real; nós diremos a mesma coisa da relação de dependência existente
entre um tipo de comunicação quotidiana e o modo de interação verbal ali
inscrito.
16

Resta-nos, pois, demonstrar como uma situação e um auditório


dados encontram sua expressão na construção de um gênero quotidiano já
determinado e acabado: o diálogo entre dois personagens situados em
diferentes escalas da hierarquia social que são apresentados um ao outro.
A situação e o auditório determinam, nós já o dissemos acima,
a orientação social do enunciado e, obviamente, o sujeito da conversação. A
orientação social, por sua vez, determina a entonação da voz e a
gesticulação, que dependem, por seu turno, do sujeito da conversação, e
onde encontram sua expressão tanto a relação do locutor com a situação
dada e com o ouvinte, como a avaliação que o locutor faz destes dois
últimos termos.
Mas qual é o conteúdo, a substância temática dos enunciados
de Tchitchikov? O extrato citado comporta dois temas: primeiro tema, “a
exposição dos motivos de minha visita”; segundo tema, “a descrição de
minha vida”.
Esses dois temas são modulados segundo entonações de
respeito e humildade extremas. É verdade que nós apenas podemos supor
as entonações de Tchitchikov: elas não são dadas com o “discurso do autor”,
que intervém nas proposições de seus personagens. Entretanto, se nós
consideramos as indicações presentes no “discurso do autor” sobre o que
exprime de modo gestual a orientação social dos enunciados de Tchitchikov
(“a cabeça respeitosamente inclinada... sentando-se em uma poltrona, não
no seu interior, mas atravessado, com o braço apoiado sobre o braço da
poltrona”), nós podemos assegurar que a entonação de Tchitchikov
corresponde perfeitamente a esta “águia que se faz perdiz”.
A escolha das palavras é feita em harmonia com tal entonação.
Inicialmente, nós já o remarcamos, são palavras livrescas e “nobres” que
dominam. Notar-se-á, em seguida, a freqüência de palavras e expressões
com “valor descritivo” que substituem os termos usualmente utilizados para
designar esse ou aquele objeto. Finalmente, pode-se remarcar a ausência
quase total do pronome “eu”.
A primeira troca de réplicas entre Tchitchikov e o general
Betrichtchev desvela por si mesma as verdadeiras relações sociais que
existem entre os interlocutores e que determinam o estilo das suas
proposições. É verdade que Tchitchikov não tem muita possibilidade de
proceder, em sua réplica, a uma escolha extensa e original de palavras. Um
gênero de comunicação quotidiana deste tipo – gênero historicamente
constituído e acabado – não deixa, de fato, senão um pequeno espaço para
variações livres. Tchitchikov consegue introduzir nuanças nas fórmulas
tradicionais de apresentação - verdadeiros clichês -, e transformá-las não
apenas sob o plano semântico, mas também gramatical, de tal modo, que a
distância social entre os interlocutores é ainda mais sublinhada pela única
expressão verbal ali formulada.
A intenção estilística de Tchitchikov consiste, portanto, em,
sobretudo, construir seu enunciado de modo que a sua pessoa apareça o
menos possível e se torne apenas perceptível. O sentido literal de sua
primeira frase é, por exemplo: “Vossa Excelência! Eu acreditei ser meu
dever me apresentar, uma vez que eu sinto um profundo respeito... etc.”
O que se torna esta frase em Tchitchikov? Ele omite o pronome
pessoal, emprega o verbo no passado e encurta a frase substituindo o
apóstrofo por um complemento de objeto indireto: “Ce m’a été un devoir de
17

me presenter à votre Excelence...” (“foi-me um dever apresentar-me a


Vossa Excelência...”).
O resultado é uma curiosa marca semântica que sublinha a
insignificância de Tchitchikov e a importância considerável de seu
interlocutor; a frase adquire, assim, um sentido ligeiramente diferente, o
qual poderia ser expresso da seguinte maneira: “Acreditou-se ser seu dever
apresentar-se...”. Por que o uso da partícula “se”? simplesmente porque
Tchitchikov é ainda desconhecido do general e não tem porque se fazer
conhecido: “É necessário que sejam conhecidos o nome e o sobrenome de
um homem que não se distinguiu por grandes virtudes?”, pergunta o mesmo
Tchitchikov um pouco adiante. E por que Tchitchikov diz ainda “me foi um
dever” em lugar de dizer “eu acreditei ser meu dever”? Simplesmente
porque à fraca luz da consciência que se tem de um tal dever supõe que se
pense nele como algo já cumprido. E eis que o feliz evento se realiza, não
mais apenas em pensamento, mas na realidade: ele, um desconhecido,
encontra-se ali, diante de um personagem da mais alta importância, e ele
espera respeitosamente o resultado de sua ousada iniciativa.
Também a fórmula verbal estereotipada de apresentação, utilizada
por Tchitchikov, adquire um sentido novo; ela adquire novas cores
estilísticas e ela reflete, com em um espelho, as relações sociais
hierarquizadas que existem entre os interlocutores. E se nós conseguimos
perceber todas estas novas nuanças de seu pensamento, se nós pudemos
compreendê-las e pô-las em evidência, foi graças ao conhecimento da parte
extra-verbal do enunciado.
Vamos, então, ainda mais longe. Pode parecer que a empreitada
levada a cabo por Tchitchikov seja mesmo excessivamente audaciosa.
Parece, portanto, indispensável dar-lhe de imediato um fundamento e uma
justificação. Este é exatamente o objeto da frase seguinte, onde não se
encontra qualquer alusão gramatical à pessoa do locutor; seria, realmente
fora de lugar por em evidência sua própria existência pelo emprego
intempestivo do pronome pessoal, sobretudo numa frase prolixa como:
“Pleno de respeito pela virtude dos bravos que salvaram a pátria... me foi
um dever apresentar-me...” Dada a posição social ocupada por Tchitchikov
em relação ao seu interlocutor, seus enunciados devem ser igualmente
marcados pela discrição, brevidade e elevação de estilo, e não podem
deixar de suscitar a consciência de estar na presença do general
Betrichtchev em pessoa! Tchitchikov é um penetra, um aventureiro
enganador e inteligente: ele não sabe senão bem se equilibrar sobre a
corda da sensibilidade de seus interlocutores. A frase que ele preparara,
longa e relativamente desenvolta, encurta-se rapidamente: os pronomes
pessoais desaparecem, a designação precisa dos objetos é substituída por
expressões descritivas: “Cheio de respeito...”, por que? Pela coragem? Não,
é claro, pela “virtude”. A virtude de quem? Dos generais? Não, dos
“bravos”. Que bravos? Aqueles que defenderam a Rússia? Não, aqueles
“que salvaram a pátria”. Onde? Nas batalhas? Não, “nos campos de
batalha”,
Estas razões podem parecer, assim, suficientes para justificar a ação
audaciosa de Tchitchikov, tanto mais que elas são formuladas com graça e
convicção – do ponto de vista de Tchitchikov e do general, exclusivamente,
é claro. E porque a proposição que fecha este fragmento renasce sob um
novo dia, por meio da repetição a primeira frase de Tchitchikov “me foi um
dever...” alcança um novo grau com a introdução da palavra
18

“pessoalmente”. Esta palavra “pessoalmente”, cuja aparição é


cuidadosamente preparada pela exposição de todos as razões que tem
Tchitchikov para se apresentar desse modo, sugere a possibilidade de uma
passagem, ou de uma transferência, do conjunto do enunciado para um
outro plano que seria aquele das relações mais pessoais e mais diretas. A
resposta do general, com efeito, apesar de seu caráter lacônico, breve e
estereotipado – dada a orientação social em direção a um interlocutor de
status menos elevado – indica, entretanto, por sua entonação amigável que
a manobra verbal de Tchitchikov surtiu efeito. O tema “exposição dos
motivos de minha visita” pode, assim, ceder lugar ao tema “história de
minha vida”. No enunciado que se segue, Tchitchikov pode, a partir desse
momento, dirigir-se diretamente ao general, fazendo do seu título um
complemento de objeto indireto, e introduzindo no seu discurso um certo
número de pronomes possessivos: minha carreira, minha vida, etc.
O desenvolvimento do segundo tema faz igualmente uso de um léxico
livresco e envelhecido (techenie onoï), de expressões descritivas
carregadas, de comparações – por exemplo, “Minha vida... pode ser
comparada a um navio vagando sobre ondas...” – e de metáforas – “no
declínio de meus dias”, para referir à velhice.
Mas se estas metáforas e estas comparações são excessivamente
vivas, elas correm o risco de marcar a singularidade individual do estilo de
Tchitchikov, de parecerem um pouco adocicadas, e, desta forma, chamar
excessivamente a atenção sobre a própria pessoa do locutor. Razão pela
qual Tchitchikov as atenua através de fórmulas restritivas, como se ele
buscasse desculpar-se junto a seu interlocutor: “Envolto, encouraçado de
paciência, por assim dizer, a encarnação da paciência... de modo que no
declínio de meus dias, se ouso assim me exprimir...”
Todos estes procedimentos não são, obviamente, para construir uma
frase. A entonação que exprime a orientação social contribui apenas na
determinação de critérios estilísticos segundo os quais palavras e
expressões são escolhidas, mas elas não se limitam a lhe atribuir um ou
outro sentido, ela indica igualmente o seu lugar no conjunto do enunciado e
os distribui.
Nesta perspectiva, um papel particularmente interessante é dado ao
título do general, isto é, às palavras “Vossa Excelência”. Em um primeiro
sentido, trata-se da forma de tratamento utilizada para dirigir-se a uma
pessoa portadora do título de general e ela deveria estar situada no início da
frase. Entretanto, seguindo um hábito fortemente presente na conversação
quotidiana, tem-se a tendência a colocá-la seja no fim da frase, seja no meio
dela, ou, o que é mais comum, depois da primeira proposição. Ora,
Tchitchikov coloca estas palavras sempre ao fim da frase; por conseguinte,
como elas recortam a massa verbal em seqüências distintas, estas palavras
desempenham um certo papel na composição do enunciado: elas
constituem como que acordes finais das seqüências de enunciados. Elas
vêm inicialmente terminar uma frase breve: “me foi um dever...”; em
seguida, uma frase mais longa: “respeitando...”; enfim, na passagem
narrativa, a distância entre tais palavras se torna cada vez maior.
O recurso a tal procedimento é, para nós, inteiramente explicável em
Tchitchikov. As palavras “Vossa Excelência” sublinham, antes de mais nada,
a significação social e hierárquica da parte extra-verbal do enunciado. Tanto
mais a situação se desenvolve, mais estas palavras se encontram
19

acentuadas e, progressivamente, a massas verbais destinadas à percepção


avaliativa do general ganham amplitude.
Essas massas verbais fluem com uma grande regularidade, uma
grande qualidade rítmica, excluindo qualquer monotonia. O discurso de
Tchitchikov se articula em várias partes desiguais que acabam, cada uma
delas, pelas palavras “Vossa Excelência”. Elas exigem, desta forma, por
meio do lugar que ocupam na composição do conjunto, esta espécie de
parada do fluxo oratório, a que se dá usualmente o nome de pausa.
Nós não temos ainda o direito de nos deter nos problemas da rítmica
do discurso prosaico; entretanto, nós examinaremos uma particularidade
estilística que caracteriza o modo próprio a Tchitchikov de “arrumar” as
palavras em seu discurso.
A acentuação do ritmo no movimento de cada frase – no tema
“exposição dos motivos de minha visita” – ou de cada grupo de frases que
participam de um mesmo desenvolvimento semântico – no tema “história da
minha vida” – encontra um tipo de acabamento e de repouso nas palavras
“Vossa Excelência”, que constituem o que nós chamaremos, daqui por
diante, de retomada verbal ou “refrão”.
A função deste refrão é sublinhar o fato de que o discurso é
constantemente orientado em direção ao interlocutor – um interlocutor que,
por sua função hierárquica, é um superior. Mas esta orientação leva em
conta a situação e, ao mesmo tempo, o tipo de interação verbal, o gênero
desta conversação; não se trata de um relatório, nem de uma prestação de
contas, nem de uma petição dirigida a um general, mas de uma situação
que consiste no seguinte: Sua Excelência, o general Betrichtchev, consentiu
em estabelecer uma conversação com um simples mortal, uma pessoa
insignificante, um qualquer chamado Tchitchikov. Uma situação diferente
teria suscitado um gênero diferente e a frase em seu conjunto teria sido
composta de outra maneira; as palavras “Vossa Excelência”, não seriam
presentes no fim da frase, marcando, desta forma o acabamento de seu
movimento rítmico, mas no seu início, como um preâmbulo e não mais como
um refrão. O gênero, assim determinado por uma situação diferente –
aquela, por exemplo, própria a uma prestação de contas ou a um relatório –
teria exigido uma entonação diversa, mais seca e mais oficial. Esta situação
teria igualmente motivado a presença de outros critérios na escolha e na
distribuição das palavras; em síntese, a coloração estilística de toda a frase
se encontraria modificada, pois o gênero da prestação de contas ou do
relatório, que é determinado por um outro tipo de relação de comunicação
social, não teria tornado possível uma distribuição rítmica de palavras
similares àquelas que nós encontramos nos enunciados de Tchitchikov.
Na situação presente, em revanche, esta rítmica, um pouco
sublinhada e artificial, é inteiramente cabível. Recebido privativamente pelo
general, Tchitchikov deve se esforçar em seduzi-lo pelo refinamento de suas
maneiras, por sua inteligência, por seu domínio da arte de falar – o que ele
consegue brilhantemente. *
Nós tentamos mostrar o mais claramente possível a originalidade
estilística do enunciado quotidiano de Tchitchikov, com sua entonação
elogiosa e insinuante, com seu vocabulário cuidadosamente escolhido a fim
de agradar seu interlocutor.
Esta originalidade estilística é inteiramente determinada por
momentos puramente sociais: a situação e o auditório do enunciado.
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Nós devemos permanecer aqui neste momento.

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* Nós omitimos aqui uma página do original, consagrado à análise do ritmo de duas frases no discurso de
Tchitchikov.

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