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(Voloshnov) Estrutura Do Enunciado (Tradução para Fins Didáticos) PDF
(Voloshnov) Estrutura Do Enunciado (Tradução para Fins Didáticos) PDF
ESTRUTURA DO ENUNCIADO
V. N. VOLOSHINOV (1930)
(tradução de Ana Vaz, para fins didáticos)
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adapta à trilha que a comunicação social parece lhe ter traçado – e isto, pelo
tanto que ele apresenta de reflexo ideológico do tipo, de estrutura, de
objetivo e de constituição das relações de comunicação social.
O gênero quotidiano é um elemento do meio social, quer se trate de
uma festa, de diversões, etc. Ele coincide com o meio e ali é limitado e
determinado em todos os seus componentes internos.” 2
2. O Discurso Monológico e o Discurso Dialógico
Ao observar o processo segundo o qual se formam estes pequenos
gêneros cotidianos, remarca-se que a relação discursiva na qual eles
aparecem e tomam sua forma acabada se divide em dois momentos: a
enunciação, que é o ato do locutor; a compreensão do enunciado pelo
ouvinte, a qual já contém em si elementos de resposta. Com efeito, em
condições normais, nós sempre estamos ou de acordo ou em desacordo com
o que se diz; e nós trazemos, via de regra, uma resposta a todo enunciado
do nosso interlocutor – resposta que não é necessariamente verbal, podendo
consistir em um gesto, um movimento das mãos, um sorriso, um
franzimento de testa, etc. Pode-se, portanto, afirmar que toda comunicação,
toda interação verbal, se realiza sob a forma de uma troca de enunciados,
isto é, na dimensão de um diálogo.
O diálogo – troca de palavras – é a forma mais natural da linguagem.3
Mais que isso: os enunciados, ainda que emanados de um interlocutor único
(como, por exemplo, o discurso de um orador, a aula de um professor, o
monólogo de um ator, os pensamentos em voz alta de um homem sozinho)
são monológicos em razão da sua forma exterior, mas, dada a sua estrutura
semântica e estilística, eles são, na realidade, essencialmente dialógicos. É
importante que o escritor tenha consciência disso, quando ele faz uso do
monólogo para um de seus personagens.
Assim, todo enunciado (pronunciamento, conferência, etc.) é
concebido em função de um ouvinte, isto é, da sua compreensão e da sua
resposta – não sua resposta imediata, é claro, uma vez que não se deve
interromper um orador ou um conferencista com observações pessoais; mas
também em função do seu acordo ou seu desacordo, ou, em outras
palavras, da percepção avaliativa do ouvinte; enfim, em função do “auditório
do enunciado”. Um orador ou um conferencista experiente sabe
perfeitamente levar em conta esta dimensão dialógica do seu discurso; o
orador não considera seus ouvintes como uma massa indiferente, inerte,
imóvel, que o observa sem tomar partido; ao contrário, ele sabe que ele tem
diante de si um ouvinte vivo e polimorfo. O movimento de um ouvinte
qualquer, sua pose, a expressão de seu rosto, sua tosse, são, também
percebidos por um orador profissional como um conjunto de respostas
precisas e expressivas que acompanham de um ponto a outro, o seu
discurso.4 E se um orador é freqüentemente levado, de modo inesperado, a
realizar uma digressão, a contar um episódio divertido ou uma história
engraçada, nem sempre é para animar o seu público; algumas vezes é para
2
V. N. Volochinov, Marksizm i filosofja jazyka, op. Cit., p. 115-116. Tradução francesa sob o nome de
Bakhtine: Marxisme et Philosophie du langage, op. cit.
3
Ver artigo de L. P. Jakubinskij (um pouco difícil, é verdade, para um escritor iniciante), na coletânea
Russkaaja rech’, I, 192, sob o título “O dialogicheskoj rechi” (Do discurso dialógico).
4
A este respeito, é divertido observar o embaraço completo de conferencistas ou de atores experientes
que se apresentam pela primeira vez diante de um público totalmente invisível, impossível de ser sentido,
como é o caso das emissões de rádio.
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sublinhar – digamos, acentuar – uma idéia que ele pode julgar não ter sido
suficientemente remarcada por seus ouvintes.
Assim, um orador que se escuta falar é um mau orador; um professor
que não se ocupa senão de suas notas é, igualmente, um mau professor.
Eles desfazem o impacto de suas propostas, eles quebram o laço vivo, de
natureza dialógica, que os une a seu auditório e, desta forma, eles próprios
depreciam os seus préstimos.
3. O Caráter Dialógico do Discurso Interior
“Que seja. Estamos de acordo. Admitamos que é bem assim”, podem
nos replicar, “mas acontece que, nos exemplos citados, o ouvinte-
interlocutor estava, de fato presente; e se não existe nada de surpreendente
no fato de que as palavras do locutor levem em conta essa presença, o que
ocorre se o locutor está só e não existe ouvinte? É verdade que os
pensamentos mais íntimos – advindos do discurso interior ou até mesmo
pronunciados em voz alta -, é verdade que as proposições enunciadas no
íntimo da alma sejam, em sua própria estrutura, igualmente orientadas em
direção à sociedade? Em direção a um auditório? Deve-se acreditar que esse
discurso solitário, endereçado a si próprio, não é a mais pura forma do
monólogo, isto é, um discurso orientado exclusivamente para o locutor e
para mais ninguém, dependendo apenas de um “estado psicológico”?
Nós não hesitamos em afirmar categoricamente que os discursos
mais íntimos, eles também, são inteiramente dialógicos: eles são
atravessados pelas avaliações de um ouvinte virtual, de um auditório
potencial, mesmo se a representação de tal auditório não aparece de forma
clara no espírito do locutor.
Isto foi demonstrado, não apenas nas conclusões de nosso artigo
precedente, não apenas pelo elemento sociológico inerente à consciência
humana, a suas “emoções” e a sua expressão. Não. Esta determinação
social - esta determinação de classe, (dito de forma mais precisa e franca) -
de todo discurso monológico, que se manifesta exteriormente sob um
aspecto dialógico, nós podemos verificá-la sem recorrer a exemplos
literários, mas nos reportando a nossa própria experiência, ao nosso diário
íntimo, a nossas notas de uso privado, etc.
E, para que nos convençamos, é suficiente considerar que quando nós
nos pomos a refletir sobre um tema qualquer, quando nós o examinamos
atentamente, nosso discurso interior – que, se estamos sós, pode ser
pronunciado em alta voz -, toma imediatamente a forma de um debate com
perguntas e respostas, feito de afirmações seguidas de objeções; em suma,
nosso discurso se auto-analisa por meio de réplicas nitidamente separadas e
mais ou menos desenvolvidas; ele é pronunciado sob a forma de um diálogo.
Esta forma dialógica aparece claramente quando nós temos que
tomar uma decisão. Nós estamos cheios de hesitação e não sabemos que
partido tomar. Nós iniciamos uma discussão conosco mesmos, nós tentamos
nos convencer a nós mesmos da justeza de tal ou tal decisão. Nossa
consciência parece, desta forma, nos falar por meio de duas vozes
independentes uma da outra, e cujas propostas são contrárias.
E, a cada vez, independentemente de nossa vontade e de nossa
consciência, uma dessas vozes se confunde com a que exprime o ponto de
vista da classe à qual nós pertencemos, suas opiniões, suas avaliações. Ela
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se torna sempre a voz que seria a representante mais típica do ideal de sua
classe.
“Esta ação, se eu a pratico, será uma má ação” – mas, segundo qual
ponto de vista? Segundo meu ponto de vista pessoal? Mas, de onde me vem
este “ponto de vista pessoal”, senão da opinião daqueles que me educaram,
de meus colegas de escola, dos autores dos livros e dos jornais que eu li, dos
oradores que eu escutei em conferências e em salas de aula? Se eu renuncio
a esta visão de mundo própria do grupo social ao qual eu pertencia até
então, é unicamente porque a ideologia de um outro grupo social terá
investido na minha consciência, a terá invadido e obrigado ao
reconhecimento da legitimidade da realidade social que a produziu.
“Esta ação, se eu a pratico, será uma má ação” – esta “voz da minha
consciência” deveria, na realidade, fazer compreender o seguinte: “Esta
ação, se você a pratica, será uma má ação do ponto de vista de outras
pessoas, que são os mais eminentes representantes da classe social à qual
você pertence”.
Pode parecer que este ponto de vista não é percebido como
imperativo e definitivo: nós podemos, de fato, conceber que aí exista uma
discussão, até mesmo polêmica com este ouvinte-interlocutor invisível.
Tomemos como exemplo o caso-limite de uma individualidade em conflito
com a sociedade: tanto mais seja grande sua aversão, mais suas tentativas
de impor seu “eu” individual, sua “vontade própria” – segundo a expressão
de um dos heróis de Dostoïevsky – serão violentas, e mais evidente será a
forma dialógica de seu discurso interior, mais manifesto o ódio em um só e
mesmo fluxo verbal de duas ideologias, dois pontos de vista de classes que
se opõem.
Assim, a aversão violenta que qualquer “sabotador” sente em relação
à classe proletária, assim como a hostilidade surda por quem é “cidadão
mecanicamente” não exprimem de forma alguma a independência ou a
auto-afirmação livre de suas individualidades. Seus monólogos,
pronunciados a alta voz ou in petto, são necessariamente sustentados pela
simpatia de supostos ouvintes – o público invisível que forma os restos de
uma classe totalmente destruída. É exatamente segundo o ponto de vista
próprio deste resto que se constituem todos os enunciados de suas
individualidades: são suas opiniões presumidas, suas avaliações, que vão
determinar a entonação da voz, seja interior ou não; e vão determinar
também a escolha das palavras e sua distribuição na organização de um
enunciado concreto. As exclamações as mais banais pronunciadas
mentalmente – por exemplo, para marcar indignação: “Veja só você...”; ou
para exprimir raiva: “Não, saiba você que...” – são endereçadas a um
ouvinte virtual – aliado, testemunha simpatizante ou juiz reconhecido.
Existem, logicamente, casos mais complexos nos quais o discurso
interior se exprime por dois caminhos contraditórios, mas sem que um
dentre eles seja dominante; isto se dá quando a individualidade está dividida
e não sabe que escolha realizar.
Situações desse tipo, características de certas épocas, testemunham
a existência de um conflito entre duas classes sociais de igual força, e que
lutam para ser, cada uma delas, a figura dominante no interior da história
futura. Um tal conflito encontra-se, então, transferido para a arena da
consciência individual.
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Nós teremos a oportunidade de confirmar esta idéia um pouco adiante, ao analisarmos um extrato de
“Ames mortes” de Gogol.
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Os exemplos foram adaptados para a língua portuguesa, sendo seus originais em francês: (a) “Attends
um peu, mon petit, tu vas voir de quel bois je me chauffe!”; (b) “Oui!” et “Oui?”; (c) “Pardon, c’est mon
manteau”.
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“âmes” pode ser traduzido por almas, no sentido de servos ou escravos.
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Lembremos que as “maneiras” são a expressão gestual da orientação social do enunciado. É exatamente
isto o que pode ser observado no exemplo citado.
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* Nós omitimos aqui uma página do original, consagrado à análise do ritmo de duas frases no discurso de
Tchitchikov.