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N.

9 MAR 2018
todas nós
podemos!

ODS 4: EDUCAÇÃO INCLUSIVA,


EQUITATIVA E DE QUALIDADE

OS PRODUTOS DO CLIMA
TEMPERADO DO SUL RURAL

A CADEIA PRODUTIVA DE UMA


DAS CULTURAS MAIS ANTIGAS
DO BRASIL: A CANA-DE-AÇÚCAR
editorial
MARÇO É O MÊS EM QUE SE COMEMORA partir do cultivo da cana-de-açúcar. Do plantio
O DIA INTERNACIONAL DA MULHER. à distribuição, formas tradicionais e modernas
Nesta edição, procuramos contribuir com de produção geraram etanol, açúcar, melado,
novos olhares sobre o que é ser mulher numa cachaça e energia para o consumidor nacional
sociedade cheia de expectativas em relação a e estrangeiro.
padrões de gênero. E, para fugir dos padrões, Uma lição que vem do campo, como mos-
nossas personagens são uma criança negra e tra a matéria sobre aspectos da agricultura pra-
uma mulher trans, que nos ajudam a pensar no ticada na Região Sul, indica que o trabalho em
tanto que “ser mulher” é um contínuo fazer-se grupo e em harmonia com a natureza garante
ou tornar-se. lucro para muitas famílias que conseguem
Para possibilitar que reflexões como esta viver de sua produção.
sejam feitas e gerem transformações, é fun- No caso do trabalho voluntário, o lucro é
damental o acesso universalizado à educação de outra ordem. Segundo a Pesquisa Nacio-
de qualidade para toda a população. É o que nal por Amostra de Domicílios Contínua,
preconiza o Objetivo de Desenvolvimento praticar essa atividade, fazendo o bem para
Sustentável 4, tema da entrevista com Betina quem precisa de ajuda, é rotina na vida de 6,5
Fresneda, pesquisadora do IBGE responsável milhões de brasileiros. São eles, os voluntários,
pela articulação do ODS 4. que contam suas experiências de trabalho na
Ainda falando de transformações, podemos matéria que encerra essa edição. Boa reflexão.
conhecer mudanças na dinâmica territorial a Equipe da redação

expediente Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística


Avenida Franklin Roosevelt, 166 sala 900 A - Centro - Rio de Janeiro - RJ 20021-120

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Marcelo Benedicto Pedro Vidal
de Magalhães
Marília Loschi Críticas e sugestões:
Mateus Boing
revistaretratos@ibge.gov.br

mar 2018 retratos a revista do ibge 3


5
26
#ibge/publicações  

Pequenas Felicidades Trans e


b
i 8 rural sul:
g 18 donas
ideias,
de

diplomas,
casa,
empresas,
histórias,
si
Crescente participação
feminina coloca em
xeque as narrativas
sobre a mulher
agricultura
de família
Banana, amora e
erva-mate são alguns
dos frutos colhidos
nas terras da região
subtropical do país

6 educação 14 geografia da cana


de qualidade Do período colonial até
Metas do ODS 4 hoje, a cana-de-açúcar
buscam acesso ao faz parte da nossa
conhecimento para identidade nacional
toda a população
24 outras formas
de voluntariado
6,5 milhões de
brasileiros realizaram
trabalho voluntário
em 2016

4 retratos a revista do ibge mar 2018


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A Geografia da Cana-de-Açúcar O Censo entra em campo
Publicação da série Dinâmica Territorial Como indica seu subtítulo (O IBGE e a história
da Produção Agropecuária, apresenta dos recenseamentos agropecuários), o livro
o mundo geográfico da cana-de-açúcar traz artigos de diversos autores que remontam
através do sistema de lugares que essa à trajetória dos Censos Agropecuários desde o
socioeconomia cria: os lugares responsáveis Império até 2006. A publicação é dividida em
pelo fornecimento de insumos e máquinas três seções: a primeira aborda os primórdios
agrícolas, os lugares de cultivo, os lugares da atividade estatística no país, com destaque
por onde se transporta a cana colhida e para o Censo Agro 1920; a segunda traz textos
aqueles por onde se escoam os produtos de pesquisadores com avaliações sobre a
derivados, os lugares de processamento pesquisa; e uma última aborda seus métodos,
industrial e os lugares de comercialização. processos e técnicas.

mar 2018 retratos a revista do ibge 5


educação de qualidade
texto A educação tem poder para erradicar a pobreza, Revista Retratos  Quais são
  Irene Gomes os desafios para a construção
arte e design transformar vidas e promover avanços em todos
de indicadores de monitora-
  Licia Rubinstein os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. mento da Agenda 2030 para
Um ODS voltado especificamente para educação, educação?
com metas como garantir o desenvolvimento de Betina Fresneda  A Agenda
2030 para educação foi am-
qualidade na primeira infância, ensino primário biciosa, deslocando o foco de
e secundário completo para todas as crianças, indicadores tradicionais quan-
igualdade de acesso à educação técnica, titativos, como acesso à escola,
para indicadores qualitativos,
profissional e superior de qualidade para todos os que procuram medir os resulta-
homens e mulheres é o que impulsiona os demais dos educacionais em termos de
objetivos. Betina Fresneda, pesquisadora do IBGE desempenho nos diversos níveis
responsável pela articulação do ODS 4, fala sobre de ensino e grupos etários. O
Brasil avançou muito na produ-
os caminhos e desafios de monitorar a Agenda ção de dados sobre qualidade
2030 para educação. do ensino, a partir de avaliações

6 retratos a revista do ibge mar 2018


OBJETIVO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 4:
ASSEGURAR A EDUCAÇÃO INCLUSIVA E EQUITATIVA
E DE QUALIDADE, E PROMOVER OPORTUNIDADES DE
APRENDIZAGEM AO LONGO DA VIDA PARA TODAS E TODOS

em larga escala desenvolvidas dores globais do ODS 4, há metodologia internacionalmente


pelo Instituto Nacional de Es- um conjunto adicional de 32 definida e apenas um depende
tudos e Pesquisas Educacionais indicadores temáticos estabe- de dados do IBGE: a participa-
Anísio Teixeira (Inep/MEC). lecidos na Conferência Geral ção no ensino organizado um
Contudo, há lacunas de infor- da Unesco de 2015. Muitos ano antes da idade oficial de

Arquivo pessoal
mação sobre temas estratégicos, deles necessitam de definições ingresso no ensino fundamental
que incluem desenvolvimento conceituais e metodológicas. (4.2.2). No Brasil, esse indicador
infantil, analfabetismo funcio- Com o objetivo de apoiar a representa o percentual da po-
nal e computacional de jovens e implementação dos indicadores pulação de cinco anos de idade
adultos. globais e temáticos, a divisão de que frequenta escola. De acordo Betina Fresneda
possui doutorado em
estatística da Unesco criou, em com os dados da Pnad Contínua Sociologia pela UERJ
Retratos  Como medir qualita- 2016, o Grupo de Cooperação de 2016, esse percentual esta- e é responsável pela
tivamente a educação? Técnica para os Indicadores va próximo à universalização, articulação do ODS 4
no IBGE.
Betina  Devido a sua complexi- do ODS 4. O IBGE represen- atingindo 94,4% das crianças de
dade, a maioria dos indicadores ta o Brasil neste grupo e vem 5 anos de idade na escola.
que compõem o ODS 4 não contribuindo para o desenvolvi-
possui metodologia internacio- mento de metodologias junta- Retratos  O Plano Nacional
nalmente definida. Isso significa mente com o Inep/MEC. Nesse de Educação está alinhado
que, no caso dos indicadores de sentido, há muito o que avançar ao ODS 4?
qualidade, ainda não há uma na definição dos indicadores Betina  O Plano Nacional de
métrica global que estabeleça globais e temáticos necessários Educação está alinhado em
qual é o desempenho mínimo para o monitoramento das termos gerais com o ODS 4 na
esperado para cada indica- metas do ODS 4. medida em que ambos prio-
dor. Por exemplo, a Aliança rizam o acesso, a qualidade e
Global para o Monitoramento Retratos  Que indicadores o os resultados educacionais de
do Aprendizado, criada pela IBGE já possui para acompa- forma inclusiva e equitativa.
Unesco para apoiar os esforços nhar as metas do ODS 4? Entretanto, os indicadores
de países na execução do ODS 4, Betina  O avanço na produ- adotados para monitorar
está discutindo qual seria o nível ção de dados pelo IBGE para o essas estratégias no PNE não
de desempenho adequado em cálculo dos indicadores do ODS coincidem necessariamente

i
leitura, escrita e matemática para 4 depende, em grande medida, com os indicadores globais do
que um adulto não seja conside- da definição compartilhada ODS 4. Pretende-se apresentar
rado analfabeto funcional. internacionalmente das meto- o mapeamento sistemático dos
dologias. Dos 11 indicadores indicadores globais e temáticos
Retratos  Qual o papel do globais, 9 dependem da produ- do ODS 4 em relação ao PNE
IBGE na construção desses ção de dados nacionais. Devido no III Encontro de Produto-
indicadores? à complexidade dos indicadores res de Informação Visando à
Betina  Além dos 11 indica- globais, somente três já possuem Agenda 2030.

mar 2018 retratos a revista do ibge 7


Rural Sul
agricultura
de família
texto  José Zasso, Larissa Grizoli e Mateus Boing
fotos  José Zasso, Larissa Grizoli, Pedro Vidal
e KEEP Studio
design  Pedro Vidal

8
b
retratos a revista do ibge mar 2018
G ente que veio de longe para
trabalhar a terra e dela tirar seu
sustento. Essa é a história de
diversas famílias que chegaram
à Região Sul do Brasil para se
dedicar à agricultura. Hoje,
deu numa região subtropical
do Brasil, de relevo acidentado
e repleta de rios e cachoeiras.
Exigiu adaptação e persistência;
gerou prosperidade e doçura. A
história da banana de Corupá –

Divulgação
muitas delas cuidam com as a mais doce do país e segunda
próprias mãos de diversas colocada nacional em termos
etapas da produção agrícola, de cultivo por município
como a colheita. O resultado (157.622 toneladas em 2016, de Agregando valor
O livro “Banana da
são produtos típicos da região acordo com a Produção Agrí-
Região de Corupá:
como a erva-mate, cujo cultivo cola Municipal, do IBGE) – é a levantamento histórico
é uma tradição que atravessa história dos Gesser, dos Lange, e cultural”, publicado
gerações, especialmente no Rio dos Glowacki, dos Minatti, dos pela Asbanco e pelo
Sebrae, é resumo de
Grande do Sul. Já a banana, Müller e outras famílias de imi- um dos levantamentos
fruta amplamente consumida grantes que chegaram ao vale exigidos para se
no país, também tem sua versão do rio Itapocu, norte de Santa obter registro de
Indicação Geográfica
sulista, que segundo os agri- Catarina, a partir da segunda (IG) na modalidade
cultores do vale do Itapocu, em metade do século XIX. Denominação de
Santa Catarina, é a mais doce Localizada nas encostas da Origem (DO). A IG é
uma certificação do
do país. E por falar em sabor, Serra do Mar, com microclima
Instituto Nacional da
são as amoras que garantiram quente e úmido, grande am- Propriedade Industrial
que antigas receitas de família plitude térmica e chuvas bem (INPI) a produtos que
fossem resgatadas para transfor- distribuídas ao longo do ano, a são característicos do
seu local de origem,
mar a fruta colhida em geleia, região de Corupá reúne condi- atribuindo reputação,
licor e outras iguarias em Ponta ções especiais que influenciam valor intrínseco,
Grossa, no Paraná. o crescimento e a composição identidade própria e
distinção em relação a
química da banana.
Leonardo Sousa Vieira

similares no mercado.
DOCE POR NATUREZA No Equador e na Costa Rica, O IBGE participa do
Ela tem origem nas florestas maiores exportadores mundiais, processo homologando
delimitações cartográ-
tropicais do sudeste da Ásia. são necessários de sete a oito
ficas e incluindo o
Eles vieram do clima tempera- meses para a colheita. No vale produto em mapas
do da Europa. O encontro se do Itapocu, de 13 a 14 meses. temáticos.

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texto  Marília Loschi
foto  Helena Tallmann
arte e design  Pedro Vidal

Leonardo Sousa Vieira


Isso aumenta não só os Daí a importância de se SANTA CATARINA2
níveis de amido e açúcares obter uma certificação como o Banana 29.575ha
naturais, mas também os teores registro de Indicação Geográ- 721.579 toneladas
Produtos: barra nutritiva,
de potássio, manganês e cálcio. fica (IG) [ver coluna na pág. 9] chips, doce, in natura,
“Análises mostraram que a nossa para as cerca de 600 famílias de passa entre outros
banana tem até cinco vezes mais bananicultores da região, cujo
potássio do que as do Equador modelo de agronegócio é típico
e Costa Rica. É uma fruta menos do meio rural catarinense: 70%
ácida e, quanto menor a acidez, são pequenos e médios pro-
maior a sensação de doçura”, dutores com oito hectares, em
explica Eliane Cristina Müller, média, de área plantada. Por
diretora-executiva da Associa- décadas à mercê de atravessado-
ção dos Bananicultores de res, eles se organizaram na dé-
Corupá (Asbanco), justificando cada de 1990 para comprar, em
o conceito criado para a banana conjunto, fertilizantes e outros
local: doce por natureza. insumos agrícolas. Para isso, foi
Os fatores que tornam a criada em 1994 a Asbanco.
banana de Corupá a mais doce O pai de Eliane, Conrado
do país — e talvez do mundo Müller, bananicultor há 40 anos,
(Eliane participa de feiras criou dois filhos e emprega até
internacionais e nunca provou sete funcionários na proprieda-
nenhuma outra tão doce) — de com 30 hectares de área
também criam dificuldade para plantada. Embora otimista com
os produtores locais. Além do a IG, ele acredita que vai levar
tempo maior de produção, o tempo para o consumidor valo- Fontes: 1 SEAB/DERAL; EMATER/PR 2015
2 IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de
clima mais frio provoca rom- rizar a banana de Corupá por Agropecuária, Produção Agrícola Municipal 2016

pimento dos vasos da casca da sua qualidade especial. Mas o


banana. Ela fica verde-escura que o preocupa de fato é a apli-
e, quando amadurece, amarelo cação do Código Florestal, que
chocolate, coloração diferente reduziria sua área plantada pela
do padrão estético mais aceito metade por haver dois córregos
pelo mercado. “O consumidor na propriedade, e a decisão
come pela casca”, diz Eliane. do governo federal de abrir

10 retratos a revista do ibge mar 2018


PARANÁ1
Amora 83ha
385 toneladas
Produtos: doce,
geléia, licor entre

José Zasso
outros

caminho para a importação de dos povos indígenas e que é um A cidade da


bananas do Equador. “Se vier a símbolo do sul do Brasil. erva-mate
acontecer, fechamos as portas”. A colheita da erva-mate pode Quem visita o Parque
do Ibama, em Ilópolis,
ser realizada durante pratica-
tem a oportunidade de
AGRICULTURA FAMILIAR mente todos os meses do ano. conhecer a história da
SUSTENTA PRODUÇÃO DE Só em Ilópolis são 35 ervateiras, erva-mate. Organizada
ERVA-MATE e mais de 70 se considerados os em seis períodos
históricos, que começa
Os Dapont são uma das mais de municípios vizinhos. Em outras com os índios guaranis,
700 famílias que vivem do culti- regiões do Rio Grande do Sul é passa pelas reduções
vo da erva-mate na pequena mais comum o uso de tarefei- jesuíticas dos Sete
Povos das Missões
Ilópolis, município de 4 mil ros, trabalhadores terceirizados do Século XVIII e
habitantes e maior produtor contratados para a colheita, mas chega até os dias
nacional de erva-mate, segundo em Ilópolis e em municípios atuais, a exposição
mostra equipamentos
dados de 2016 da Produção próximos predomina a colheita
e instrumentos
Agrícola Municipal (PAM) feita pela própria família. “A usados na produção
do IBGE. Quatro pessoas, o colheita familiar garante um da erva-mate. O
casal Lidovino e Edília, o filho cuidado maior com a qualidade Parque também conta
com um banco de
Fernando e Neldi (irmão de da erva-mate e isso proporciona mais de 700 mudas
Lidovino), cuidam da produ- melhores preços no mercado”, recolhidas em quatro
ção de uma área de cerca de 25 explica Roberto Feron, diretor- estados brasileiros,
mantido por meio
hectares de erva-mate, conven- -executivo do Instituto Brasilei- de um convênio com
RIO GRANDE DO SUL2 cional e orgânica, na área rural ro da Erva-Mate (Ibramate). universidades públicas
Erva mate 33.445ha do município. Além dos tradicionais chi- e comunitárias.
297.141 toneladas A exemplo dos Dapont, a marrão e tereré, as entidades do
Produtos: cerveja, chá,
chimarrão, cosméticos, base da cadeia produtiva da er- setor ervateiro dos municípios
geléias entre outros va-mate em Ilópolis, como em do Alto Vale do Taquari, no Rio
outros municípios do Alto Vale Grande do Sul, comercializam
do Taquari, é familiar e quase refrigerantes, cervejas, cosméti-
todo o trabalho é feito manual- cos, produtos de higiene pessoal,
mente antes de ser encaminhado ração para animais e energéticos
às indústrias da região. O terreno feitos com a erva-mate. “Hoje,
acidentado e o solo são ideais a erva-mate está presente em
para o cultivo da erva oriunda poucos estados do Brasil. Nossa

mar 2018 retratos a revista do ibge 11


Acervo da família
intenção com a diversificação pai Geert, a mãe Katty, Anne- O intuito era vender para
de produtos é chegar em outras leen e os dois irmãos saíram da fabricantes de iogurte, mas bem
regiões do país”, avalia Feron. Bélgica rumo a Ponta Grossa, na época as empresas tiveram
O cultivo orgânico da er- no Paraná, para trabalhar com uma queda nas vendas e aca-
va-mate também tem ganhado agricultura. A família chegou baram desistindo de comprar
espaço. “Esse cultivo exige mais ao país com uma condição a fruta. “A gente olhou para as
do produtor, mas também ga- financeira estável, bem diferen- amoras e disse: o que a gente
rante um preço melhor”, explica te de milhares de imigrantes vai fazer?”, lembra Anneleen.
Maurício Carlesso, responsável europeus que desembarcaram A solução encontrada foi
por uma ervateira da região. “É no Brasil no século XIX e início recuperar uma antiga tradição
uma opção que tem se amplia- do século XX, fugindo da fome da família que garantia pro-
do, há um mercado se abrindo e da falta de oportunidades. dutos elaborados a partir da
para a produção orgânica e toda O município de Ponta Gros- fruta durante as épocas mais
a cadeia produtiva está atenta a sa está localizado nos Campos frias do ano. “Meu pai colhia as
isso”, sustenta Feron. Gerais do Paraná. A agricultura frutinhas no bosque e minha
A cada dois anos, Ilópolis da região é marcada não só pela avó fazia geleias, sucos, polpas
realiza no mês de novembro a diversidade de produtos, mas e bebidas para os mais velhos.
Turismate, a festa da erva-mate, também de etnias, com imi- Quem não gosta de um licorzi-
principal evento do município. grantes ucranianos, holandeses nho para esquentar no inver-
Sozinha, a cidade detém 22% de e alemães contribuindo para a no? Daí a gente foi pegando as
toda a produção de erva-mate formação e desenvolvimento do ideias. Se dá para fazer com a
do Rio Grande do Sul e 10,7% estado. A família de Anneleen uva, vamos tentar com a amora.
da produção nacional, segundo já conhecia um pouco dessa E deu certo”, conta Annele-
os dados de 2006 da PAM. história e optou pela região en, que hoje, além de cultivar
justamente pela presença das amoras, fabrica vinhos, licores,
NO PARANÁ, DIVERSIDADE colônias de imigrantes e do aguardentes, cerveja, caldas e
NO CAMPO VAI ALÉM DA clima favorável para a agricul- geleias com a fruta.
PRODUÇÃO tura. Logo na chegada ao Brasil, Algumas receitas são da
No ano de 1999, os pais de An- começou a cultivar soja, milho, avó da empresária, Yvonne
neleen Dewulf tomaram uma feijão e trigo. Seis anos depois, Declerck, e outras foram cria-
decisão que afetaria o futuro a família resolveu também das pelo pai. O vinho demora
de toda a família: vir para o plantar amoras, fruta ainda dois anos para ficar pronto,
Brasil. Apaixonado pelo país, o desconhecida na região. o licor e a aguardente, cinco.

12 retratos a revista do ibge mar 2018


Larissa Grizoli

Tudo é comercializado na
adega da família, que recebe
em média 100 visitantes por
KEEP Studio

semana na alta temporada.


Para atender à demanda
dos clientes, 50 hectares da
propriedade são dedicados às
amoreiras, do tipo Brazos. As
amoras são livres de agrotóxi-
cos, colhidas manualmente e
precisam de 940 horas de frio
para se desenvolver.
A próxima colheita deve
ocorrer entre outubro deste
ano e janeiro de 2019. Enquan-
to isso, a família já pensa em
expandir os negócios, com o
cultivo de lavanda. O objetivo
é aumentar a área plantada,
para que a flor deixe de ser só
um atrativo para os visitantes
da adega e passe a ser utilizada
para a extração de óleo, muito
utilizado em aromaterapia e na
indústria de cosméticos.
Com bastante trabalho pela
frente, e também muitas con-
quistas já alcançadas, Anneleen
reconhece que o Brasil é um
país bom. “As clientes falam:
Pedro Vidal

‘nossa, você é louca de vir


para cá’. Mas quem faz
o lugar é você”, conclui.

mar 2018 retratos a revista do ibge 13


geografia
da Cana
texto  João Neto e Marcelo Benedicto
O CULTIVO E PROCESSAMENTO
DE UMA DAS CULTURAS MAIS
ANTIGAS DO BRASIL

fotos  Daiane de Paula Ciriáco, Licia Rubistein


e Marcelo Luiz Delizio Araújo
design  Pedro Vidal

g
Marcelo Luiz Delizio Araújo

14 retratos a revista do ibge mar 2018


Marcelo Luiz Delizio Araújo

D
o plantio à chegada do produto
ao consumidor, brasileiro ou
estrangeiro, a cadeia produtiva
da cana-de-açúcar segue um
longo caminho. Presente em
solo brasileiro desde o período
colonial, a cana é cultivada de
norte a sul do país e envolve
o estabelecimento da colônia na
época, embora tenha ajudado a
promover o tráfico de africanos.
“Os colonizadores trou-
xeram a cana para o Brasil
também pensando em movi-
mentar o mercado de escravos.
A economia gerada por ela, de
de cana de açúcar no Brasil
totalizou cerca de 9.2 milhões
de hectares, correspondente ao
tamanho de Santa Catarina. A
produção foi de 687,8 mil tone-
ladas, 10,5% a menos que em
2016. O gerente de Agricultura
do IBGE, Carlos Alfredo Guedes,
Museu da cana
Antigo engenho central
em Pontal/Sertãozinho
(SP). A modernização
da produção canavieira
se iniciou com os
engenhos centrais no
século XIX.

desde pequenos produtores até certa forma, estruturou o Brasil atribui essa diminuição ao receio
grandes usinas, dando origem de hoje. No Nordeste temos dos produtores diante da queda
principalmente ao açúcar e um exemplo: várias usinas hoje na demanda por etanol. “Nos
o etanol – embora produtos vieram de antigos engenhos”, últimos anos, o governo tem
como açúcar mascavo e cachaça explica a geógrafa do IBGE, adotado uma política de con-
artesanal venham conquistando Daiane de Paula Ciriáco. trole do preço da gasolina e
mais espaço no mercado. Com o tempo, o Brasil manteve os preços congelados
Nativa do continente asiáti- ganhou concorrentes e a cana com o objetivo de controlar a
co, a cana-de-açúcar foi trazida entrou em decadência, deixan- inflação. Isso inviabilizou na
ao Brasil pelos portugueses do de ser a principal atividade maioria dos estados a utilização
por volta de 1530. As primei- econômica no século XVII. do etanol, que perdeu concor-
ras mudas foram plantadas Mesmo assim, o Brasil conti- rência frente à gasolina”.
em planícies próximas ao mar, nuou produzindo e exportando
principalmente no Nordeste, derivados da cana. As últimas PLANTIO, CULTIVO E COLHEITA:
cultivo que nos anos seguintes décadas foram marcadas por BOIAS-FRIAS À MECANIZAÇÃO
foi se interiorizando no país. investimentos em melhoramen- Diferente de cerais como arroz,
Os livros de história relatam tos genéticos e na produção de milho e café, a cana-de-açúcar
um passado glorioso da cana- novos gêneros como o etanol. é plantada por meio de toletes
-de-açúcar, determinante para Em 2017, a área colhida (pedaços de cana). No Brasil,

mar 2018 retratos a revista do ibge 15


“A cana é do pequeno produtor da tossíntese. Assim, a cana encon- esse passado”, explica Daiane.
agricultura familiar até o grande, trou no Brasil condições ideais Após a colheita, a cana é
para seu desenvolvimento”. levada para as usinas, onde é
que produz etanol e açúcar. No entanto, a questão da processada para extração da
Há ainda a produção de energia mecanização da colheita é um sacarose, matéria-prima do
com a queima do bagaço.” desafio para o Brasil. O Censo etanol, açúcar, cachaça e outros
Agropecuário de 2006 revelou alimentos. Segundo o geógrafo
Daiane de Paula Ciriáco, geógrafa do IBGE que, dos municípios produtores do IBGE, Diogo Cabral, não
de cana, apenas 2,4% deles em- pode haver uma distância mui-
os canavicultores adotam dois pregavam colheita automatizada to grande entre a área plantada
sistemas de safras: o mais ou combinada em mais da me- e a de processamento, porque
comum dura 18 meses, outro, tade dos estabelecimentos. O após a colheita a cana precisa
vantajoso por facilitar o geren- emprego da colheita manual nos ser processada rapidamente
ciamento de grandes áreas, dura canaviais é um ponto que reabre para não se degradar, o que
12. Segundo a Pesquisa Agrícola a discussão sobre condições de explica o fato de a economia
Municipal do IBGE, em 2016, trabalhos dos boias-frias. de municípios depender quase
58% dos municípios brasileiros “Nas novas zonas de produ- que exclusivamente do cultivo
produziam cana-de-açúcar ção como o sul goiano, as usinas e do processamento da cana. O
com regularidade. São Paulo, nascem mecanizadas, mas nas bagaço também é usado para
Goiás e Minas Gerais são os regiões mais antigas como Nor- geração de energia para consu-
maiores produtores. deste e em alguns locais de São mo interno das usinas e para a
Conforme explica Carlos Paulo ainda não são totalmente. rede elétrica nacional.
Alfredo, o clima brasileiro, de Essas novas usinas contratam,
modo geral, é bastante propício assinam carteira, cedem aloja- EXPORTAÇÃO, AGRICULTURA
para se plantar cana. “A cana- mento e tendas próximas aos FAMILIAR E PRODUÇÃO
-de-açúcar pertence à família canaviais, quando é preciso. É ARTESANAL
das gramíneas, que necessitam um setor muito fiscalizado pelo Segundo a publicação do IBGE,
de muito sol para realizar a fo- Ministério do Trabalho, por “A Geografia da Cana-de-Açú-

Do plantio ao produto
Dependendo da
variedade e do Máquinas ou
local de plantação, trabalhadores
demora de 12 a manuais fazem a
18 meses para colheita da cana.
ser colhida.

Como se degrada
É plantada por
rapidamente, a cana
meio de toletes,
é transportada para
que são pedaços
fábricas próximas
de cana.
aos canaviais.

16 retratos a revista do ibge mar 2018


car”, em 2015 foram produzidos
30 bilhões de litros de etanol e
35,6 milhões de toneladas de
açúcar no país. Desse total, o
Brasil exportou 5% do etanol e
67,4% do açúcar produzido. “A
produção de cana movimenta
muitos lugares dentro do Brasil.
O etanol é basicamente para
consumo interno. Já o açúcar
conecta o Brasil com lugares
Marcelo Luiz Delizio Araújo

lá fora”, explica Adma Haman,


geógrafa do IBGE.
Outro segmento crescente
é a cachaça. Daiane atribui o
crescimento à sofisticação do
produto. “A cachaça era um
sub-produto na época da colo-
nização. Mas há uma tendên-
Usina moderna
cia recente de se produzirem dispersa pelo país e mais ligada
Indústria de processamento
cachaças mais refinadas. Hoje à agricultura familiar. O jeito de cana-de-açúcar, em
todas as classes sociais conso- de se produzir é herança do Chapadão do Céu (GO).
mem o produto”. período colonial. É o caso do
O pequeno produtor encon- açúcar mascavo, que é um
tra espaço, principalmente no produto menos industrializado.
mercado de produtos naturais O produtor que consegue se
e artesanais, explica Daiane. adequar às normas de produção
“A produção artesanal é mais e vigilância se dá bem”. Concentração
da área plantada
FONTE: IBGE
Baixa Alta PAM - Produção Agrícola Municipal 2015

O bagaço é utilizado
como adubo e
A cana é moída
ração, para gerar
para separar o
energia elétrica e
caldo do bagaço.
na alimentação de
caldeiras de usinas.

A cana não parou


no tempo
Tecnologias possibilitam
aproveitar resíduos,
O caldo é usado para produzir principalmente o
açúcar, etanol, cachaça, bagaço, para criar
rapadura e melado. novos produtos como
plástico verde, fibras
para tecido e celulose.

mar 2018 retratos a revista do ibge 17


donas
texto  Marília Loschi
design  Simone Mello
fotos  Licia Rubinstein

Maria Esther Santos,


três anos, vai à escola
e brinca do que quiser

e
18 retratos a revista do ibge mar 2018
ideias,
   de diplomas,
casa,
empresas,
histórias,
si
A
s perguntas atravessam séculos: “O que é a
mulher?”, “O que quer uma mulher?“...
Sob os olhares da filosofia, da teologia, da
biologia, da medicina, do direito, da literatura,
o corpo e a alma femininas têm sido medidas,
analisadas, exorcizadas, representadas e
narradas. Mas onde estamos, em 2018?
As novidades sobre o assunto são que a
crescente participação feminina na sociedade
começaram a se abrir – não sem esforço e luta,
e ainda não completa e democraticamente.
Os caminhos abertos ainda são mais estreitos
para mulheres negras, de classes mais baixas,
lésbicas, bissexuais e transexuais e que vivem
fora dos centros urbanos das regiões Sul e
Sudeste do Brasil.
“As mulheres não são um grupo
homogêneo”, diz a pesquisadora do IBGE
está colocando em xeque todas essas narrativas Barbara Cobo, que coordenou a publicação
construídas sobre a mulher e que foram “Estatísticas de gênero: indicadores sociais
criadas, ao longo de séculos, por homens – das mulheres no Brasil”, divulgada neste mês.
Nós podemos em sua maioria europeus, brancos e livres. Na publicação, os dados estatísticos dialogam
Nossa foto de capa E as novidades são mulheres falando por si com os diversos papéis sociais de homens
foi inspirada num mesmas e ocupando, ainda que em menor e mulheres em cinco esferas: estruturas
cartaz de 1943, dos número do que homens, posições de poder. econômicas e acesso a recursos; educação;
Estados Unidos, mas
que ganhou grande Mulheres que têm cada vez mais acesso ao saúde e serviços relacionados; vida pública e
projeção a partir dos ensino e ao mercado de trabalho, aos espaços tomada de decisões; e direitos humanos de
anos 1980, quando das artes, da política e do livre pensar, acesso mulheres e crianças. Segundo a pesquisadora,
se tornou um ícone
do feminismo.
à contracepção e ao direito de escolher a complexidade do tema das estatísticas de
A frase pode ser outro destino que não exclusivamente a vida gênero é justamente sua transversalidade:
traduzida como doméstica e os filhos. “Tem que olhar para todos esses temas, com
“Nós podemos fazer
Tudo isso são novidades, ainda, esse olhar das diferenças do papel da mulher
isso!” e remete ao
empoderamento considerando uma história de longa duração e do papel do homem, é isso que a gente tenta
feminino. em que esses espaços só muito recentemente montar. É um mosaico”, diz Bárbara.

mar 2018 retratos a revista do ibge 19


mulher:
delas. “Passei a ser reprimida
pela família e pelas outras crian-
ças. Na minha época era tudo

nascer e
mais separado, eu sofria bullying
e os meninos me chamavam de
mariquinhas porque eu tinha
um jeito mais delicado”.

tornar-se
Na divulgação de dados es-
tatísticos do IBGE, é importan-
te ter em mente a forma como
sexo e gênero são compreendi-
dos: a palavra “sexo” refere-se
às diferenças biológicas entre
homens e mulheres, que não
A famosa frase de Simone “Eu queria que ela gostasse costumam variar entre culturas
de Beauvoir, “Não se nasce das princesas, mas nem liga”, e ao longo do tempo; “gênero”,
mulher, torna-se mulher”, diz Thayná, a mãe da menina. por sua vez, refere-se às dife-
inspira uma reflexão acerca do Numa geração em que as impo- renças socialmente construídas
“Estatísticas de
gênero: indicadores
quanto a sociedade trata como sições de gênero são discutidas em atributos e oportunidades
sociais das mulheres destino aspectos socialmente com mais franqueza, Maria Es- associadas com o sexo femini-
no Brasil” construídos na vida de homens ther tem muito mais liberdade no ou masculino e as interações
A publicação e mulheres. Para começar, do que teve Alice Pereira, hoje e relações sociais entre homens
“Estatísticas de logo na infância: uma pequena com 44 anos. e mulheres. Assim, quando se
Gênero” foi construída
anedota contada pela profes- Alice é uma mulher transe- divulgam estatísticas de gênero,
a partir de uma
compilação de dados sora da Universidade Federal xual que nos conta sobre a difi- considera-se que em todas as
da Pesquisa Nacional do Ceará, Lola Aronovich (do culdade de interagir com outras sociedades existem diferenças
por Amostra de blog “Escreva, Lola, escreva”). crianças na infância porque não entre o que é esperado, per-
Domicílios Contínua
(Pnad-C), da Pesquisa
Numa escola pública no inte- se sentia adequada aos padrões mitido e valorizado em uma
Nacional por Amostra rior de São Paulo, em que os de gênero: tendo nascido e sido mulher e o que é esperado,
de Domicílios (Pnad), brinquedos não são segregados registrada como do sexo mas- permitido e valorizado em um
das Estimativas de
Projeção da População,
por gênero, um pai foi buscar o culino, não se identificava com homem.
das Estatísticas do filho e o encontrou brincando esse universo nas brincadeiras, Isto não significa ignorar
Registro Civil, da de boneca. Revoltado, sua rea- mas também não conseguia as diferenças biológicas, mas
Pesquisa Nacional
ção foi perguntar: “Virou gay, ficar no grupo das meninas. “Eu compreendê-las num contexto
de Saúde (PNS),
da Pesquisa de agora?”. A resposta do menino, até gostava dos brinquedos ‘de social mais amplo. A antropó-
Informações Básicas Lola nos conta: “o garoto, com meninos’ – avião, carrinho, essas loga Barbara Pires explica que
Estaduais (Estadic), toda a inocência que é pecu- coisas. Mas não gostava da com- natureza e cultura não são au-
no âmbito do IBGE;
e também de fontes
liar às crianças que ainda não panhia, dos tipos de brincadeira, toexcludentes, mas se desenvol-
externas oriundas aprenderam a ser preconceitu- da violência, da competitivida- vem em conjunto. Entretanto,
do Ministério da osas, respondeu, calmamente: de, da agressividade; não é que o que uma sociedade chama de
Saúde, Presidência da
República, Congresso
‘Não, virei pai’.” isso não exista para a mulher, “natural” é construído dentro
Nacional, do Tribunal Nossa garota de capa, a mas a gente percebe que é de cada cultura e acaba virando
Superior Eleitoral (TSE) pequena Maria Esther Santos, diferente”, diz Alice. E, no meio referência científica: “A própria
e Instituto Nacional de
aos três anos, gosta de brincar das meninas, Alice também não ideia de sexo tem esse efeito de
Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio com bonecas, bonecos, carri- conseguia ficar, por ser consi- naturalidade. A forma como
Teixiera (Inep/MEC). nhos e cozinha de brinquedo. derada um ‘menino’ no meio a gente percebe as diferenças

20 retratos a revista do ibge mar 2018


Quadrinhos
Alice Pereira é
musicista e cartunista
e conta sua história
na Internet nos
quadrinhos “Pequenas
fisiológicas é muito baseada na Felicidades Trans”
noção cultural que determina o (conheça no final
que é explicado cientificamente da revista)
como natural”, diz.
Ela cita o exemplo de sua
pesquisa em que estudou casos
de bebês intersexuais (nascidos
sem uma definição clara de
sexo masculino ou feminino).
Essas crianças precisam passar
por várias cirurgias e interven-
ções hormonais ao longo da
vida, desde muito pequenas,
para se adequarem a um sexo
ou outro. “A própria natureza
dá variações possíveis, não-bi-
nárias. Mas, por questões cul-
turais, a gente precisa adequar
homens e mulheres para ter
uma certidão de nascimento,
para ser socializado, para qual-
quer coisa a gente tem que ter
uma definição como mulher ou
homem”, explica Barbara.
Alice tenta não se preocupar
com rotulação, mas conseguiu a
mudança de nome e gênero na
certidão de nascimento através
da Defensoria Pública. “Já que
estamos numa sociedade que
tem divisão binária de gênero,
é mais adequado que eu esteja
com isso regularizado”. O que
não impede o questionamento:
“Eu acho absurdo você ter gê-
nero na certidão de nascimen-
to. Que nem cor. Para quê? Isso
discrimina desde o começo, só
serve para começar a separar as
pessoas e dizer que ela é isso e
vai ter que seguir um caminho”,
coloca Alice. “Quem tá nascen-
do agora podia não ter mais
isso, para poder crescer diferen-
te. Tudo começa nessas desig-
nações, o papel de cada um”.

mar 2018 retratos a revista do ibge 21


mitos CENSO

efatos
2010
CENSO DEMOGRÁFICO 2010
O último Censo atualizou dados
importantes para as estatísticas de gênero,
como: taxa e padrão de fecundidade,
mulheres responsáveis por domicílios,
informações sobre cor ou raça, escolaridade,
deficiência. Além da vasta gama de temas,
“MULHERES NÃO Quando se fala de minorias, se fala
um censo sempre é importante para
SÃO MINORIA. de um grupo social num contexto
aperfeiçoar pesquisas amostrais e gerar
SEGUNDO O político. O sentido é do espaço que
essas pessoas ocupam na sociedade.
PME estudos mais especializados.
PRÓPRIO IBGE, SÃO
MAIS DA METADE DA Mulheres ainda são minoria política: 2009
na Câmara dos Deputados, no MULHER NO MERCADO DE TRABALHO: PERGUNTAS E RESPOSTAS
POPULAÇÃO.” Com base na Pesquisa Mensal de Emprego (PME) 2009,
Senado Federal, nos ministérios, nos
o IBGE confirmou que mesmo em grupos com a mesma
cargos gerenciais. Isto mostra que
escolaridade e do mesmo grupamento de atividade a
as mulheres participam menos na
diferença entre os rendimentos persistia e era até maior. No
tomada de decisão do que homens.
Comércio, homens de 11 anos ou mais de estudo ganhavam
em média R$ 616,80 a mais do que as mulheres; homens com
nível superior ganhavam R$ 1.653,70 a mais do que elas.
“MULHERES GANHAM A proporção de mulheres com

mulheres
MENOS DO QUE OS curso superior é maior do que a dos
HOMENS PORQUE homens. Mesmo assim, quanto mais
ELAS TÊM MENOS qualificadas, maior a discrepância
QUALIFICAÇÃO.” salarial entre homem e mulher. Elas
ocupam menos cargos gerenciais, que
têm salários maiores, e isso também
influencia no rendimento final.

PROPORÇÃO DE PESSOAS DE 25 ANOS OU MAIS DE IDADE RELAÇÃO ENTRE AUMENTO DA ESCOLARIDADE E REDUÇÃO DA MORTALIDADE INFANTIL
COM NÍVEL DE ENSINO SUPERIO COMPLETO A Síntese de Indicadores Sociais mostrou que, em 2004,
PNAD 2015 a probabilidade de uma mulher com 8 anos ou mais
Homens de estudo, com dois filhos, vir a ter o terceiro era de
pouco mais de 50%; para uma mulher com até 3 anos de
11,9%
estudo, era de 90%. Também mostrou que apenas 3,9%
das mulheres ocupadas estavam em cargos de direção,
Mulheres enquanto para os homens a proporção era de 5,5%.
15,0%
SAÚDE DA MULHER
Em 2003, a Pnad investigou
pela primeira vez três exames
“MULHERES GANHAM Mulheres trabalham mais do que os
homens: embora eles trabalhem mais
SIS preventivos femininos: mamografia,
MENOS DO QUE OS
HOMENS PORQUE horas na ocupação principal, elas 2004 preventivo de câncer de colo de
útero (Papanicolau) e exame de
ELAS TRABALHAM têm dupla jornada, dedicando mais mamas por profissional de saúde.
MENOS. “ de vinte horas semanais a afazeres
domésticos e cuidados de pessoas.

MÉDIA DE HORAS SEMANAIS TRABALHADAS DAS PESSOAS


OCUPADAS COM 16 ANOS OU MAIS DE IDADE PNAD
(TRABALHO PRINCIPAL + AFAZERES DOMÉSTICOS)
PNAD 2015
2003
Média nacional
Homens 50,5
53,1

Mulheres 55,1

22 retratos a revista do ibge mar 2018


PNS
2013
DADOS SOBRE O PARTO E PRÉ-NATAL
A Pesquisa Nacional de Saúde 2013 trouxe
dados sobre pré-natal, parto e preventivos,
revelando as desigualdades por grupos de
cor ou raça e por regiões: o cuidado com a
saúde foi mais observado entre as mulheres
brancas e com nível superior completo. O
exame de mamografia, por exemplo, teve As mulheres arcam com a maior “MULHERES
menor proporção na região Norte (38,7%) e parte das tarefas domésticas e de GERAM MAIS
maior na Sudeste (67,9%). cuidados de pessoas, inclusive das CUSTOS PARA AS
crianças. Em lares onde as tarefas EMPRESAS PORQUE
SIS e cuidados não se concentram
tanto na mulher, elas não precisam
ENGRAVIDAM E
ACOMPANHANDO A DESIGUALDADE DE GÊNERO, DEZ ANOS DEPOIS
A Síntese de Indicadores Sociais 2014 mostrou que
2014 faltar ao trabalho ou deixar de
SE AUSENTAM DO
TRABALHO MUITO
a desigualdade de gênero no mercado de trabalho assumir mais responsabilidades
por conta de compromissos com MAIS DO QUE OS
começava a diminuir, mas ainda persistia. A relação de
desigualdade de rendimentos entre homens e mulheres cuidados de pessoas. HOMENS.”
era maior nos trabalhos informais, onde elas recebiam
65% do rendimento médio dos homens.
Escolhas profissionais sempre são “MULHERES

emdados
condicionadas às possibilidades ESCOLHEM
de cada cultura: ainda pensamos OCUPAÇÕES QUE
em profissões mais “femininas” ou PAGAM MENOS.”
“masculinas”. A associação entre
a mulher e a esfera doméstica
e do cuidado contribui para
reforçar esta crença. Trabalhos e
AUMENTA A PARTICIPAÇÃO MASCULINA NOS AFAZERES DOMÉSTICOS estudos considerados “femininos”
A Síntese de Indicadores Sociais 2015 mostrou que o continuam sendo pouco
percentual de homens realizando afazeres domésticos e valorizados no mercado.
cuidados passou de 46% em 2004 para 51% em 2014, mas SIS
as mulheres continuavam trabalhando o dobro de tempo
em afazeres e cuidados, acumulando 5 horas semanais a 2015 O feminicídio é um crime em “TEM UM NOME
mais na jornada total de trabalho em relação aos homens. que a condição da vítima é sua ESPECÍFICO PARA
vulnerabilidade por ser mulher. As FEMINICÍDIO, MAS
METODOLOGIA INÉDITA PARA OUTRAS FORMAS DE TRABALHO mortes de homens têm diversas AS MORTES DOS
A Pnad Contínua 2016 trouxe, pela primeira vez, causas e contextos sociais, mas HOMENS NÃO
dados sobre trabalho voluntário, em que a partici- não existe situação em que um
IMPORTAM?”
pação das mulheres era maior do que a dos homens. homem seja assassinado por
Elas continuavam dedicando o dobro aos afazeres questões de gênero.
domésticos e cuidado de pessoas: a média no
Brasil era de 16,7 horas por semana, sendo
11,1 horas em média para homens e
20,9 horas em média para mulheres. RENDIMENTO MÉDIO DO TRABALHO PRINCIPAL DAS PESSOAS COM 16 ANOS OU MAIS DE IDADE - 2016
PNAD C 2016

3 000 Homens
PNAD C 2 500
Mulheres
2016
2 000

1 500

1 000

500

0
Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

mar 2018 retratos a revista do ibge 23


“É uma coisa que
amo, e fazer isso
ajudando aos outros
é melhor ainda”
Miriam Rodrigues

outras formas
de voluntariado
e
24 retratos a revista do ibge mar 2018
texto  João Neto
design  Helga Szpiz
foto  Roberta Ferreira
O
goiano Eli Oliveira, 37 anos, de profissionais liberais que moram no domicílio) e feito sem Foto
divide a rotina de padeiro com a prestam serviços gratuitamente. receber remuneração em dinhei- Na casa simples
de sonoplasta na igreja Assem- É o caso da aposentada ro ou benefícios por pelo menos de cinco cômodos
onde Miriam mora, a
bleia de Deus, que frequenta em Miriam Rodrigues, 62 anos. uma hora por semana. Segundo máquina de costura
Aparecida de Goiânia (GO). Ele Moradora de São João de Meriti, a pesquisa, 57,6% dos volun- fica em um canto
está presente em todos os cultos, no Rio de Janeiro. Miriam é tários já tinham um emprego escuro do quarto.
Para trabalhar, foi
quatro vezes por semana. “Já aquela pessoa que está sempre remunerado e 59,4% possuíam preciso instalar uma
estou nessa função há seis anos. disposta a ajudar quem precisa. pelo menos o ensino médio lâmpada próxima ao
Eu chego mais cedo e checo os Ela já trabalhou doando roupas completo. A maioria (62,1%) equipamento.
cabos, os microfones, as caixas e alimentos a moradores de eram mulheres. Pará, Amazonas
de som. Na hora do culto, tem rua da região onde mora. Hoje, e Paraná foram os estados com
que ficar atento ao volume”, divorciada e morando sozinha, maior participação da popula-
conta. Segundo o módulo ela toma conta do neto durante ção: respectivamente 6,2%, 6,0%
“Outras formas de trabalho”, da o dia, mas sempre arranja tempo e 5,6%. No Brasil, o percentual
Pnad Contínua, Eli foi um dos para ajudar amigos e vizinhos, geral foi de 3,9%.
6,5 milhões de brasileiros que principalmente nos serviços de De acordo com a pesquisa-
realizaram trabalho voluntário costura. “É uma coisa que amo, e dora do IBGE Alessandra Brito,
no país em 2016. fazer isso ajudando aos outros é é a primeira vez que o IBGE pro-
Ele conta que o ato de ajudar melhor ainda”, diz. duz um levantamento detalhado
foi uma prática aprendida na Ela conta que o hábito de sobre outras formas de trabalho.
infância. “Nasci em um bairro ajudar foi herdado dos pais. “A pesquisa permite conhecer
pobre, então todo mundo se “Uma vez, quando eu era meni- trabalhos que não geram receita,
ajudava. Via os vizinhos se aju- na, meu pai abrigou uma família como o próprio trabalho volun-
dando na construção de casas que ficou sem casa por causa de tário. Nesse módulo, conforme
ou doando alimentos aos neces- um temporal. Nunca me esqueci normas da Organização Inter-
sitados. E, na igreja, esse desejo daquele dia”, lembra. nacional do Trabalho (OIT), in-
de ajudar só aumentou. Ajudar vestigamos quem é esse público,
é gratificante, você se sente mais O PERFIL DOS VOLUNTÁRIOS a idade, o contingente, as horas
feliz do que quem você ajudou”, Na Pnad Contínua, trabalho despendidas no voluntariado. O
diz Eli. voluntário é aquele não com- Brasil é um dos primeiros países
O tipo de atividade que Eli pulsório realizado a terceiros do mundo a realizar esse estudo”,
realiza, prestando serviços para (não parentes e pessoas que não explica.
uma instituição, é o exemplo
mais comum de trabalho volun-
tário, mas existem outros, menos Pessoas que realizaram trabalho voluntário, por local de realização - Brasil 2016
conhecidos. De acordo com a
Outros locais (incluindo pessoas que
pesquisa, 8,5% das pessoas que prestam serviços individualmente) 15%
realizaram trabalho voluntá-
Associação de moradores, associação
rio o faziam sem intermédio esportiva, ONG, grupo de apoio
12,4%
ou outra organização
de empresa, organização ou
instituição – como o vizinho Congregação religiosa, sindicato,

que acompanha um idoso a uma


condomínio, partido político,
escola, hospital, asilo
81,5%
consulta médica, do trabalhador Fonte: IBGE, Pnad Contínua 2016 - Outras Formas de Trabalho
que oferece carona para o colega,

mar 2018 retratos a revista do ibge 25


pequenas
felicidades
trans
texto e ilustração Alice Pereira
facebook Pequenas Felicidades Trans

texto  Paulo Caruso 


edição  Mônica Marli 
foto  Paulo Garcez

26 retratos a revista do ibge mar 2018

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