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NOVO CINEMA QUEER VS. CINEMA CAMP AUSTRALIANO:
ARTICULAÇÕES CAMP, POLÍTICAS QUEER

Luiz Francisco Buarque de Lacerda Júnior1

Resumo: No início dos anos 1990, o potencial político do camp - subcultura


homossexual masculina baseada no deboche, na teatralidade e na ironia - foi resgatado
pelo movimento ativista e teoria queer, depois de mais de uma década de ostracismo.
No mesmo período, dois grupos de filmes - o New Queer Cinema e o cinema camp
australiano - utilizaram a estética camp de formas aparentemente divergentes. Neste
artigo, propomos a análise e comparação dos movimentos, buscando entender como os
diferentes usos do camp alinharam-se (ou não) às estratégias políticas proposta pelo
movimento/teoria queer.

Palavras-chave: camp, cinema, queer.

Trajetória do camp

O movimento ativista lésbico e gay tem seu mito fundador no dia 27 de junho de
1969, no bar Stonewall Inn, em Nova York. Bares e casas noturnas dedicados à
socialização de homossexuais existiam em grandes metrópoles já há algumas décadas,
mas estes locais nunca estiveram livres do assédio de autoridades e forças policiais, que
ocasionalmente praticavam batidas, extorquindo ou levando presos seus frequentadores,
geralmente por suposto atentado à moral e aos costumes. Neste dia, os frequentadores
do Stonewall Inn decidiram não aceitar a batida padrão, e partiram para o enfrentamento
dos policiais ante as primeiras prisões, encurralando-os dentro do bar com palavras de
ordem. Somente após algumas horas e mais reforços, os manifestantes foram contidos e
presos, mas a partir daí, e em todo o fim de semana subsequente, protestos foram
organizados nas ruas no entorno do bar exigindo a libertação dos presos. Nas semanas e
meses seguintes, relatos do acontecido ecoaram por várias cidades dos EUA e até fora
dele, dando o pontapé inicial em inúmeros grupos ativistas homossexuais, nos moldes

                                                                                                                         
1
Doutorando em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.
luiz.francisco.lacerda@gmail.com
 
 
dos movimentos sociais alternativos e de contracultura surgidos na mesma época
(JAGOSE, 1996, p. 30-31).
Dentre as inúmeras reivindicações dos ativistas, nos anos que se seguiram, um
conjunto delas centrava-se na forma com que os homossexuais haviam sido
representados pela grande mídia ao longo do século XX. Um bom exemplo do
tratamento dispensado a eles pode ser visto no livro The Celluloid Closet, de Vito Russo
(1987), dedicado ao cinema americano. Russo identifica, nos poucos filmes que se
propunham a abordar personagens e/ou temáticas homossexuais, uma representação que
oscila entre três estereótipos básicos: 1) o homem efeminado, fútil e de sexualidade
suprimida, sempre coadjuvante e utilizado como alívio cômico; 2) o homossexual
desequilibrado, atormentado por sua condição e terminando o filme, no mais das vezes,
louco ou suicidando-se; 3) o vilão, onde a homossexualidade é utilizada pelo filme para
adornar sua vilania, como signo de amoralidade e sadismo. Russo investiga os danos
desta representação enviesada, numa sociedade onde o cinema foi por um bom tempo
um dos mais poderosos meios de comunicação de massa, capaz de moldar as
concepções de todo o país e negar um referencial equilibrado a partir do qual gays e
lésbicas pudessem construir suas subjetividades. Uma das consequências desta e de
outras críticas à forma com que a grande mídia representava os homossexuais foi uma
crescente rejeição, por parte destes, ao que foi durante muito tempo um forma cultural
genuinamente gay: o camp.
O camp sempre foi identificado em duas formas, distintas e complementares:
como um tipo de comportamento – gestual, postura, expressões – e como uma
sensibilidade, ou forma de se relacionar com o mundo, em especial na recepção de arte
e cultura. No caso do comportamento camp, ele é caracterizado por atributos como
teatralidade, drama, frivolidade, humor e afetação. Bem descrito pelas gírias “dar pinta”
e “fechar”, fez parte da cultura homossexual masculina ao longo de todo o século XX,
sendo um elemento importante para a união do grupo frente a uma sociedade
francamente hostil, como afirma Richard Dyer: “dar uma boa pinta em grupo nos
proporciona um imenso sentido de identificação e pertencimento, pois foi durante muito
tempo o único estilo, linguagem e cultura distinta e inequivocamente gay.”2 (2002, p.
49, tradução nossa)
Possíveis raízes do comportamento são identificadas na postura dissimulada e
frívola da aristocracia feudal europeia, que tinha como valores cardinais o ócio e o
                                                                                                                         
2
To have a good camp together gives you a tremendous sense of identification and belonging. It is just
about the only style, language and culture that is distinctively and unambiguously gay male.
desinteresse, em oposição à vida de trabalho árduo e dominada pelos instintos e paixões
da plebe. Passa também pela afetação e esteticismo dos dandies do século XVIII e
XIIX, para quem a aparência exterior era valor último, em detrimento de um conteúdo
íntegro e honrado defendido pela burguesia, que emergia, enquanto classe, fortemente
influenciada pelos valores protestantes (KING, 1994). Como bem resume Oscar Wilde,
o mais notório dos dandies tardios: "A pessoa deve ser uma obra de arte ou vestir uma
obra de arte" (2009, l. 15816).
É a partir dos mollies, frequentadores das molly houses - bordéis masculinos
existentes nas maiores capitais da Europa do século XIX - que encontramos relatos do
comportamento camp como reconhecido hoje. As molly houses foram os primeiros
locais modernos dedicados não somente ao sexo entre homens, mas à socialização da
subcultura homossexual masculina. De acordo com um relato moralista e algo divertido
da época:
[Os mollies] têm em tão pouca conta as práticas masculinas, que preferem divertir- se
imitando as frivolidades próprias do sexo feminino, danando-se a falar, andar, fazer
reverências, chorar, xingar e imitar todas as formas de efeminação [...] Parece- me que
grande parte destes répteis assume nomes falsos, pouco apropriados a seus afazeres na
vida comum: por exemplo Gatinha de Cambraia é um vendedor de carvão; Srta. Selina,
escriturário numa delegacia de polícia; Leonora Olhos Negros, um baterista; Bela
Harriet, um açougueiro; Lady Godina, um garçom; a Duquesa de Gloucester, um
serviçal; a Duquesa de Devonshire, um ferreiro; e Miss Doces Lábios, um vendedor de
doces.3 (HOLLOWAY, 1986, p. 12-13, tradução nossa).

Além do comportamento, temos também a sensibilidade camp, que exprime-se


através de uma postura particular de recepção de arte e cultura, que valoriza atributos
como excesso e extravagância (em detrimento de harmonia e equilíbrio), artifício e
teatralidade (em detrimento de naturalismo), superficialidade e aparência (em
detrimento de profundidade e conteúdo). Esta valorização se dá tanto pela própria
fruição estética que estes atributos proporcionam, quanto por um desprezo por
instâncias oficiais de legitimação do gosto na arte e na cultura, optando assim por uma
acolhida a características geralmente rejeitadas por aquelas, como o exagero, o artifício,
o excesso. Neste sentido, o kitsch – conjunto de bens culturais com ares de alta cultura,
mas produzidos para consumo rápido e raso das classes médias (GREENBERG, 1986) –
                                                                                                                         
3
[Mollies] are so far degenerated from all Masculine Department or Manly exercises that they rather
fancy themselves Women, imitating the little Vanities that Custom has reconcil'd to the Female sex,
affecting to speak walk, tattle, curtsy, cry, scold & mimick all the manner of Effeminacy [...] It seems the
greater part of these reptiles assume feigned names, though not very appropriate to their calling in life: for
instance, Kitty Cambric is a Coal Merchant; Miss Selina, a Runner at a Police office; Black-eyed
Leonora, a Drummer; Pretty Harriet, a Butcher; Lady Godina, a Waiter; the Dutchess of Gloucester, a
gentleman's servant; Duchess of Devonshire, a Blacksmith; and Miss Sweet Lips, a Country Grocer.
é um dos alvos principais da simpatia do camp, com a consciência de sua posição
marginal em relação ao bom gosto. É caracterizada ainda por um comportamento
irônico e lúdico frente a seus objetos de apreciação, podendo manter, por exemplo, um
ar blasé diante da última escultura de Rodin, mas tomando, ao mesmo tempo, um
flamingo cor de rosa de porcelana como a derradeira obra de arte. Como resumido por
Sontag, "[o] camp é um solvente da moralidade. Ele neutraliza a indignação moral,
incentivando o deboche."4 (1999, p. 64, tradução nossa)
Os novos movimentos movimentos ativistas lésbicos e gays, em sua postura
combativa e transformadora, logo entraram em conflito com as práticas cotidianas do
camp, que, apesar de terem tornado a vivência homossexual mais leve ao longo do
século XX, não propunham-se a mudanças no estado geral das coisas. O próprio
Richard Dyer sublinha algumas consequências negativas do comportamento camp:

A união que conseguimos através do camp é maravilhosa, mas é fato que nem todos os
gays identificam-se com o camp. Um bando de bichas dando pinta juntas pode ser uma
coisa muito excludente para alguém que não se vê como “bicha” ou se sente
desconfortável em dar pinta. [...] A diversão, o sarcasmo, tem seus inconvenientes
também. Tende a levar a uma falta de seriedade perante qualquer coisa, tudo tem que
ser lido via ironia, virar piada. O camp considera CHE (Campaingn for Homossexual
Equality) enfadonho demais, GLF (Gay Liberation Front) político demais, todas as
atividades dos movimentos ativistas pouco divertidas. Mas as organizações tem um
papel sério a cumprir. [...] Da mesma forma, a auto-ironia pode ter um efeito corrosivo
sobre nós. Podemos continuar zombando de nós mesmos até acreditamos que somos
meio patéticos mesmo, realmente inferiores.5 (DYER, 1999, p. 111, tradução nossa)

A própria grande mídia já havia cooptado o camp, construindo a partir dele o


estereótipo distorcido do gay efeminado, fútil e motivo de riso, como vimos
anteriormente. E, somando-se a isso, a efeminação característica do camp abria caminho
para a leitura, por parte dos ativistas, de uma conformidade aos papéis de gênero
impostos pela sociedade dominante, ou seja, de que, para exercerem seu desejo por
homens, certos gays sentiam-se obrigados a adequar-se ao papel feminino (JAGOSE,
1996). Assim, as práticas cotidianas do camp passaram a ser tratadas por parte da

                                                                                                                         
4
Camp is a solvent of morality. It neutralizes moral indignation, sponsors playfulness.
5
The togetherness you get from camping about is fine – but not everybody actually feels able to camp
about. A bunch of queens screaming together can be very exclusive for someone who isn’t a queen or
feels unable to camp. [...] The fun, the wit, has its drawbacks too. It tends to lead to an attitude that you
can’t take anything seriously, everything has to be turned into a witticism or a joke. Camp finds CHE
(Campaign for Homosexual Equality) too dull, GLF (the Gay Liberation Front) too political, all the
movement activities not fun enough. But actually they’ve got a serious job to do. [...] Again, the self-
mockery or self protection can have a corrosive effect on us. We can keep mocking ourselves to the point
where we really do think we’re a rather pathetic, inferior lot.
 
cultura homossexual mais politizada como comportamento conformista das old queens,
em oposição a um novo comportamento de orgulho, imposição e enfrentamento da
opressão.
Em fins dos anos 1970, o movimento ativista, até então de natureza
liberacionista, caracterizado pela luta revolucionária por uma sociedade onde a vivência
da sexualidade e do gênero fosse livre de regras, rótulos e imposições, toma um desvio
em direção a posições mais pragmáticas e passa a organizar-se a partir do modelo
assimilacionista dos movimentos étnicos e de minorias. Não mais lutando por uma nova
sociedade, agrupam-se em torno de duas identidades - lésbica e gay - para as quais
reivindicam legitimidade e igualdade de direitos, buscando sua integração ao sistema
vigente (JAGOSE, 1996, p. 58-71). Para facilitar a sua assimilação pela sociedade
burguesa, estas identidades passam por um processo de higienização, afastando-se de
suas expressões mais radicais e aproximando-se de um padrão de lésbicas e gays
brancos, de classe média, monogâmicos, não promíscuos e sem desvios de gênero e,
assim, empurrando ainda mais o camp e suas expressões ambíguas de gênero para as
margens da cultura homossexual. Proliferou, assim, nos anos 1980, uma tendência de
lésbicas femininas e gays masculinos, estes últimos levando adiante a cultura macho da
década de 1970, à época mais relacionada à exploração sensual de estereótipos do que a
uma estratégia de assimilação.
Mas a política assimilacionista, além de criticada por alguns ativistas que viam
nas identidades excludentes uma repetição dos procedimentos da heteronormatividade,
sofreu um revés a partir da epidemia de AIDS, que trouxe consigo uma forte onda de
homofobia. A associação da doença aos gays tornou-se um entrave para a sua integração
à sociedade, pois marcava uma diferença fundamental entre eles e os heterossexuais,
minando os fundamentos da igualdade sobre os quais a estratégia assimilacionista
repousava. Muitos grupos assimilacionistas foram desfeitos, dando lugar a novas
abordagens de organizações como ACT UP e Queer Nation, nos EUA (MEYER, 2004).
Estes grupos focavam não mais em identidades sexuais - problemáticas ao tentar unir
sob um mesmo rótulo subjetividades e comportamentos tão dispares - mas em práticas
sexuais, e sua atuação foi imprescindível na reivindicação de políticas sérias de combate
à AIDS.
O novo movimento, com fortes influências de abordagens identitárias pós-
estruturalistas, reuniou-se sob o rótulo queer, termo antigo que, ainda no século XIX,
era utilizado pejorativamente para nomear homossexuais, podendo ser traduzido como
"estranho" ou "esquisito". Em seu novo uso, representava não uma nova identidade
sexual, mas a não conformação às identidades e binarismos culturalmente impostos
através de rótulos como homossexual, heterossexual, lésbica, gay, bi, trans: ser queer
era estar livre dos limites impostos por estas identidades (JAGOSE, 1996, p. 72-100).
Na virada da década de 1980 para 1990, o movimento ganhou o reforço do
arcabouço teórico queer, que ajudou a pensar gênero e sexualidade fora do modelo
identitário burguês. Judith Butler, na obra seminal da teoria queer Gender Trouble
(1989), debruçou-se sobre a construção dos gêneros masculino e feminino nos
indivíduos, atacando a ideia de um encadeamento natural entre o sexo biológico e o
gênero (e todos os signos culturalmente atribuídos a ele). Defendeu, ao contrário, a ideia
de uma construção performativa do gênero, amalgamado a partir de atos de repetição do
ideal cultural do masculino e do feminino, regulados por instâncias formadoras da
sociedade - pais, professores, médicos - que impõem regras e limites e aplicam medidas
corretivas em casos de desvios.
Na base da pesquisa de Butler estava a observação de desvios e transgressões de
gênero, em especial travestismo e drag - expressões camp por excelência - dos quais ela
ressalta não a conformidade a modelos impostos de gênero, como na crítica do
movimento liberacionista, mas que:

Imitando um gênero, a performance drag implicitamente revela a estrutura imitativa do


próprio gênero. [...] A noção de paródia de gênero defendida aqui não assume que há
um original o qual as paródias imitam. A paródia, na verdade, é da própria noção de que
existe um original.6 (BUTLER, 1990, l. 2327, tradução nossa)

Desvelando a construção cultural e o caráter performativo do gênero, a teoria


queer expôs também a construção das categorias de orientação sexual:

É surpreendente que, das várias dimensões sobre as quais a atividade sexual de uma
pessoa pode diferenciar-se da de outra (dimensões que incluem preferências por certos
atos, certas zonas e sensações, certos tipos físicos, certa frequência, certos investimentos
simbólicos, certas relações de idade ou poder, certo número de participantes etc. etc.
etc.), precisamente uma, o gênero do objeto de desejo, tenha emergido na virada do
século, e tenha se mantido como dimensão de classificação da atividade sexual, a partir
da categoria de ‘orientação sexual’7 (SEDGEWYCK, 1990, p. 8, tradução nossa).

                                                                                                                         
6
In imitating gender, drag implicitly reveals the imitative sctructure of gender itself [...] The notion of
gender parody defended here does not assume that there is an original which such parodic identities
imitate. Indeed, the parody is of the very notion of an original.
7
It is a rather amazing fact that, of the very many dimensions along which the genital activity of one
person can be differentiated from that of another (dimensions that include preference for certain acts,
certain zones or sensations, certain physical types, a certain frequency, certain symbolic investments,
certain relations of age or power, a certain species, a certain number of participants, and so on) precisely
Assim, a teoria queer, além de reforçar a crítica do movimento queer aos
modelos identitários culturalmente impostos, salientou o caráter transgressor do camp,
em especial de seu tratamento teatral dos papéis gênero. Aos grupos ativistas queer, que
já se utilizavam do deboche camp como estratégia de luta, juntou-se um grande número
de artistas, que pareciam resgatar o camp do limbo no qual os ativistas mais antigos o
haviam.
É o caso do conjunto coeso de filmes americanos e ingleses de diretores como
Derek Jarman (Edward II), Gregg Araki (The Living End), Gus Van Sant (Garotos de
Programa), Todd Haynes (Poison), Tom Kalin (Swoon), entre outros, lançados nos os
anos de 1991 e 1992 e que foram agrupados sob o rótulo de New Queer Cinema por B.
Ruby Rich, devido a um compartir de ideias e operações estéticas (RICH, 2004). É
também o caso do trio de filmes australianos Vem Dançar Comigo (Baz Luhrmann), O
Casamento de Muriel (P.J. Hogan) e Priscilla, Rainha do Deserto (Stephan Elliott), dos
anos de 1992 a 1994, que, a partir das semelhanças de suas abordagens estilísticas, em
especial o foco no camp, chamaremos de Cinema Camp Australiano.
A seguir, analisaremos como cada um dos grupos trabalha com a estética camp e
como suas operações relacionam-se com a estratégia política do movimento queer. Para
isto, nos debruçaremos sobre os filmes Poison e Swoon do primeiro grupo, e Vem
Dançar Comigo e O Casamento de Muriel do segundo.

Novo Cinema Queer

Se os filmes Poison e Swoon, dos diretores Todd Haynes e Tom Kalin,


respectivamente, utilizam-se de uma estética camp, não é no sentido tradicional do
conceito. Por um lado, nenhum deles traz personagens com comportamentos associados
ao camp, como efeminação, drama e teatralidade. Por outro, também não exibem em
sua dimensão plástica significantes camp, como cenografia kitsch, fugurinos
extravagantes ou cores berrantes. Sobre o uso do camp a partir do movimento queer,
Glyn Davis afirma que:

Desde os anos 1960, a consciência e presença do camp no mainstream cresceu bastante.


Contudo, isto levou a uma quebra da conexão do camp com a cultura gay (e, sem
dúvida, à sua despolitização). Assim, qualquer relato sobre a trajetória do camp a partir

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   
one, the gender of the object choice, emerged from the turn of the century, and has remained, as THE
dimension denoted by the now ubiquitous category of 'sexual orientation.
 
dos anos 1960 deve levar em conta as diferenças entre a prática do camp dentro da
cultura gay e na cultura em geral.8 (2004, p. 56)

Assim, defendemos que a utilização do camp por estes filmes se dá não através
de seus significantes tradicionais e politicamente desgastados por seu uso no
mainstream, mas através de atributos mais sutis, como a incongruência:

A ironia é a matéria prima do camp, fazendo referência a quaisquer contrastes


incongruentes entre coisas ou indivíduos e seu contexto. A incongruência mais comum
é a do masculino/feminino [...] [mas também percebemos entre] novo/velho,
sagrado/profano, alta/baixa cultura. Na base desta atração pelo incongruente está a ideia
da homossexualidade como desvio moral. Dois homens ou duas mulheres apaixonados
são geralmente vistos pela sociedade como incongruentes, foram da ordem “normal”,
“natural”, “saudável” das coisas.9 (BABUSCIO, 2004, p. 122, tradução nossa)

Nos dois filmes analisados, encontramos a incongruência principalmente através


de uma mistura sacrílega de estilos e temas teoricamente de difícil conciliação. Poison,
por exemplo, propõe-se a contar três histórias: na primeira, um garoto que sofre
violência dos colegas da escola e do pai, em casa, resolve matá-lo, após deparar-se com
ele mais uma vez surrando a mãe. De acordo com o relato da mãe, após desferir dois
tiros fatais, e garoto pula a janela do quarto e levanta vôo, até sumir no céu. Na segunda
história, acompanhamos a trajetória de um cientista que, sem querer, engole o fluido
fruto de suas mais recentes experiências químicas sobre a libido humana, contraindo
uma doença degenerativa que é transmitida a outras pessoas através do beijo (numa
clara referência à AIDS). Por fim, a última, baseada no romance Nossa Senhora das
Flores, do escritor francês Jean Genet, conta a história de um condenado que, dentro da
prisão, reencontra um amigo de reformatório e apaixona-se por ele.
As histórias são contadas através de diferentes estilos (Fig. 1). A primeira
estrutura-se como um programa televisivo de investigação: várias pessoas envolvidas na
história do garoto - colegas de escola, vizinhos, polícia e a própria mãe - são
entrevistadas, fornecendo fragmentos parciais de informação, a partir dos quais a
montagem constrói o relato completo; além disso, alguns eventos são reencenados e a

                                                                                                                         
8
Since the 1960s, mainstream awareness of camp has grown and its presence has spread. However, this
has tended to separate camp from its connection with gay culture (and, arguably, depoliticised it). Indeed,
any account of camp's form and status since the 1960s needs to take into account the distinction between
the gay use of camp, and the general widespread cultural dissemination of campness.
9
  Irony   is   the   subject   matter   of   camp,   and   refers   to   any   highly   incongruous   contrast   between   an  
individual  or  thing  and  its  context  or  association  [...]  as  in  the  elision  of  masculine/feminine  “signs”.  [...]  
Another incongruous contrasts are that of youth/(old) age, sacred profane and high/low status. [...] At the
core of this perception is the idea of gayness as a moral deviation. Two men or two women in love is
generally regardes by society as incongruous - out of keeping with the “normal”, “natural”, “healthy”
order of things.  
câmera visita os locais do relato, tudo dentro de um estilo documental muito próprio a
estes programas.

FIGURA 1 - Diferentes estilos em Poison

A segunda adere ao universo imagético e estrutural dos filmes americanos noir e


de horror dos anos 1940 e 1950: fotografia em preto-e-branco de alto contraste e com
predominância do preto, cidade filmada como um labirinto ameaçador, tom amoral e
fatalista, free jazz soturno contribuindo para o clima de pesadelo. O tema da ameaça
biológica também faz referência a vários filmes do período.
Já para a última história, temos dois estilos distintos. O período que se passa no
reformatório é a que mais se liga ao camp tradicional: cenários e paleta de cores
assumidamente artificiais, fazendo referência ao imaginário kitsch (e remetendo também
às fotografias estilizadas de Pierre e Gilles, que tornaram notória a exploração deste
imaginário), atuações declamadas, tom onírico. Já a segunda metade desta última
história, passada na prisão, é a que apresenta o tom mais naturalista de todo o filme,
embora com uma fotografia ainda expressionista, explorando a arquitetura
claustrofóbica e escura da prisão e dos desejos reprimidos.
FIGURA 2 - Diferentes estilos em Swoon

O filme Swoon, por sua vez, apresenta uma única história: reconta a trajetória
real do casal Nathan Leopold e Richard Loeb, estudantes ricos da Chicago dos anos
1920 que, após vários delitos menores cometidos por prazer, matam um adolescente,
sobrinho de um deles, no intuito de cometer o crime perfeito. No filme, todo em preto-
e-branco, misturam-se três diferentes estilos: boa parte da história é contada através da
narrativa clássica, de onde, de tempos em tempos, irropem outras duas formas
narrativas: por um lado, temos construções que remetem a um cinema experimental,
como quando, dentro da sala de julgamento, os réus e amantes aparecem nus em cima
de uma cama, enquanto seus hábitos sexuais são esquadrinhados pelo advogado de
acusação. Ou num jogo de pôquer em que o casal está acompanhado por várias drag
queens de características contemporâneas. Ou ainda quando uma narração em off lê uma
descrição das características físicas dos réus - retirada dos autos do processo real -
associando-as a seus crimes e desvios morais, no melhor estilo da teoria lombrosiana;
enquanto isso, vemos um desfile de rostos contemporâneos, onde as características
descritas pela narração são sublinhadas por traços de uma animção. Por outro lado, a
narrativa clássica também dá lugar, em vários momentos, a planos de material filmado
na Chicago da época, sem o esforço de mascarar as diferenças entre o material original e
o de arquivo, que apresenta um ritmo diferente (16 quadros por segundo, contra os 24
do filme original), defeitos devido à ação do tempo e caráter claramente documental.
Vista em ambos os filmes, esta mescla de diferentes fontes, formatos e estilos
faz referência não só ao camp, pela sua incongruência e pelo forte teor paródico, mas
também ao próprio caráter construído das narrativas, através da apropriação assumida
de estruturas já disseminadas - programas investigativos de TV, film noir, narrativa
cinematográfica clássica, cinema experimental, material documental de arquivo - e do
choque entre estas estruturas, dentro dos filmes.10
Assim, estas operações, não por coincidência utilizadas em filmes que tratam de
relações afetivas e sexuais não normativas, expõem para o espectador a construção de
suas formas narrativas e, portanto, alinham-se ao objetivo fundamental dos movimentos
e teoria queer: denunciar o caráter de construção social e cultural da categorização dos
gêneros e das práticas sexuais, através dos rótulos impostos pela sociedade burguesa,
como hétero, homo e bi, gay e lésbica, homem, mulher e trans, entre outros.
Além disso, os filmes optam por ignorar os estereótipos positivos demandados
pelas políticas de representação dos movimentos ativistas - e que se resumiram às
lésbicas e gays brancos, de classe média e monogâmicos, para os movimentos
assimilacionistas dos anos 1980 - e resgatam personagens marginais em vários sentidos,
também alinhando-se aos fundamentos queer de celebração do não-normativo.

Cinema Camp Australiano

Diferentemente do Novo Cinema Queer, o filmes camp australianos da


mesma época - representados aqui por Vem Dançar Comigo e O Casamento de Muriel -
trazem já em sua superfície os elementos ligados à estética camp tradicional: cenografia
e figurino extravagantes, atuações histriônicas e toda uma gama de referências ao kitsch.
Vem Dançar Comigo centra-se num tema camp por excelência:
competições de dança de salão. Narra a história de um dançarimo, filho de ex-
dançarimos donos de uma escola de dança, que entra em conflito com a parceira de
dança, com a mãe e com os diretores da competição ao querer inovar nos passos.
Separa-se da parceira e começa a treinar escondido com uma empregada da escola de
dança - espécie de patinho feio desengonçado que logo se revelará um cisne da dança de
salão - filha de imigrantes espanhóis. A partir das influências da família da moça, eles

                                                                                                                         
10
Adicionalmente, alguns momentos dos filmes reforçam esta auto-consciência narrativa, como quando
Dr. MacArthur, da segunda história de Poison, vira para câmera e diz “And now it begins” na cena exata
em que, retrospectivamente, o filme começou. Ou em Swoon e suas inconsistências temporais assumidas,
com a apresentação de objetos como controles-remotos, gravadores de fita e baralhos eróticos de tom
setentista, claramente fora de seu contexto temporal.

 
começam a incorporar passos da dança flamenca ao seu repertório, distorcendo ainda
mais os passos tradicionais da dança de salão e entrando em confronto direto com todos.

FIGURA 3 – O extravagante e o clássico em Vem Dançar Comigo

O excesso estilístico ao qual está tradicionalmente ligada a dança de salão é


enfatizado pelo filme: as roupas dos dançarinos contemplam colants, saias longas e
ternos de corte assimétrico adornados com plumas, lantejoulas, paetês e babados em
cores berrantes. As coreografias propõem uma exacerbação dos passos da dança de
salão, ressaltando o que há de teatro e espetáculo nelas, sob o som de ritmos latinos
também espetacularizados. Some-se a isso atuações propositalmente afetadas e uma
fotografia que prima pelo uso de lente grande angular, adicionando uma camada de
estranhamento ao universo apresentado, e temos um bolo de noiva camp, cada nível de
exagero reforçando todos os outros.
Já O Casamento de Muriel aborda o universo da classe média burguesa
da cidadezinha de Porpoise Spit, Austrália. Sem a exuberância do filme anterior, a
estética camp está presente neste em suas inúmeras referências à cultura de massa, ao
kitsch e ao trash. O filme acompanha a trajetória de Muriel Heslop, filha de um político
corrupto e uma dona de casa sedada e oprimida pelo marido. Enquanto seus irmãos,
todos em idade produtiva, passam os dias enfurnados em casa, vendo TV, fumando,
bebendo e comendo junk food (e sendo oprimidos pelo pai em função de sua inércia),
Muriel se isola no quarto, ouvindo discos do ABBA, acompanhando casamentos de
celebridades via revistas de fofoca e sonhando também em casar-se. Quando sai, é na
companhia de um grupo de amigas, claramente mais populares que ela, e que aceitam
sua companhia por pena, num outro universo estilístico, de roupas, bares e festas de
casamento de excesso kitsch, contrastando com seu cotidiano que alude mais ao
universo white trash americano, ambos fortes referências do camp (o segundo mais a
partir dos anos 1960, como nos demonstra toda a obra do diretor John Waters). O filme
adota fotografia e mise en scène de tons mais realistas, permitindo ao camp emergir de
forma natural a partir da cenografia e figurino citados, além de atuação propositalmente
exagerada de alguns personagens, em especial do grupo de amigas de Muriel.

FIGURA 4 – O camp e o casual em O Casamento de Muriel

Ambos os filmes giram em torno de um mesmo conflito: tradição versus


mudança. No primeiro, temos a tradição dos passos e movimentos já consolidados da
dança de salão contra a liberdade para criar e introduzir novos passos. Já no segundo, a
tradição apresenta-se nas aspirações e caminhos da vida burguesa contra uma vida livre
dos ditames do projeto burguês, que é vislumbrado por Muriel quando ela reencontra
uma amiga de colégio - Rhonda - num cruzeiro de férias. Após o cruzeiro, Rhonda
convida-a para morar com ela em Sidney, o que traz possibilidade completamente
diferentes para Muriel.
Em ambos os casos, os significantes do camp estão sempre associados à
tradição, ou seja, a algo que deve ser superado. No Vem Dançar Comigo, a
extravagância do universo da dança de salão é contrastada com a vida da família
imigrante espanhola, de cenografia e figurino discretos e atuação naturalista, tudo
filmado de maneira realista. Os próprios passos clássicos da dança flamenca entram em
choque com o caráter extravagante e espetacular da dança de salão nas competições
apresentadas. Já em Muriel, ao universo da família e amigas, se opõe a vida em Sidney,
mais uma vez de cenografia, figurinos e atuações mais naturalistas e discretas.
Vemos, assim, que o uso do camp nestes filmes não se filia às operações
propostas pelos movimentos queer de resgate de seu potencial político. Pelo contrário,
ele é utilizado como símbolo de uma tradição decadente e que impede a emergência do
novo, sempre de estilo mais descreto e “normal”.

Conclusão

Apesar de terem surgido num momento histórico que privilegiava o resgate do


camp e de seu potencial político - através dos movimentos e teoria queer - e de
utilizarem-se de formas e operações que remetem diretamente a esta sensibilidade, o
New Queer Cinema e o Cinema Camp Australiano apresentam abordagens bastante
diferentes no uso do camp.
O primeiro alinha-se mais aos fundamentos pós-estruturalistas da teoria queer,
organizando suas estruturas através do entrelaçamento de diferentes formas narrativas,
cooptadas de fontes variadas. A junção incongruente - ou camp - destas formas, somada
ao caráter paródico de sua reprodução e a momentos de auto-consciência narrativa,
servem para explicitar a natureza de produto culturalmente construído dos discursos dos
filmes, afastando-os da transparência da linguagem clássica do cinema. Esta operação
espelha a que a teoria queer promove com respeito às identidades sexuais e de gênero, e
seu caráter culturalmente construído.
Já o segundo utiliza-se dos significantes camp (kitsch, trash) em sua superfície -
cenografia, figurinos - cujo excesso é ressaltado pela fotografia (no caso do Vem
Dançar Comigo) e pelas atuações histriônicas. Estes significantes, porém, servem para
simbolizar uma tradição decadente e que deve ser superada, afastando-se da tentativa
queer de resgatar o potencial político do camp.
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