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Filosofia Política
Filosofia Política
2015
Copyright © UNIASSELVI 2015
Elaboração:
Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser
Prof. Gesiel Anacleto
100
L685f Leyser, Kevin Daniel dos Santos
Filosofia política / Kevin Daniel dos Santos Leyser, Gesiel
Anacleto. Indaial : UNIASSELVI, 2015.
340 p. : il.
ISBN 978-85-7830-881-0
1. Filosofia.
I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.
Apresentação
Caro(a) acadêmico(a)!
III
pouco sobre o regime democrático e sobre questões da lei, do conflito, do
direito e da justiça natural. Na discussão do Livro VII, veremos a proposta
da Politeia de Aristóteles e as soluções que ele propõe para os problemas das
facções. Vamos também abordar a visão do filósofo sobre a propriedade e o
comércio, assim como, discutir sobre o seu modelo para o melhor regime,
a sua ciência política, sua percepção de um estadista e o seu método para o
estudo da política.
IV
Na terceira Unidade faremos uma análise sobre o totalitarismo a
partir da obra de Hannah Arendt. Nosso estudo levará em conta os aspectos
principais dos regimes totalitários que se instalaram na Alemanha e na Rússia.
O estado moderno será assunto do segundo tópico tendo como embasamento
teórico a obra de Eric Weil. O conteúdo desenvolvido a partir de Weil nos
possibilita compreender a maneira como o indivíduo se relaciona com a
comunidade da qual faz parte e qual a importância da sua participação política
para o exercício pleno da cidadania. No terceiro e último tópico faremos um
estudo da justiça, liberdade e igualdade a partir da magna obra Uma Teoria da
Justiça de John Rawls. Esta obra consiste num clássico contemporâneo sobre a
justiça como equidade. É apresentada como uma alternativa ao utilitarismo,
pois a ideia principal visa à concepção dos princípios de justiça que tenham
como meta principal a liberdade e a igualdade de todos.
V
NOTA
Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para
você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há
novidades em nosso material.
O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova
diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também
contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.
Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.
VI
VII
VIII
Sumário
UNIDADE 1 – A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL............. 1
X
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 174
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 178
XI
TÓPICO 2 – A MORAL, O ESTADO, A SOCIEDADE E O INDIVÍDUO.................................... 289
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 289
2 ERIC WEIL.............................................................................................................................................. 290
3 A DISCUSSÃO NA CONSTRUÇÃO SOCIAL................................................................................ 291
4 O ESTADO MODERNO....................................................................................................................... 295
5 CIDADANIA.......................................................................................................................................... 301
6 A MORAL E A POLÍTICA................................................................................................................... 302
7 O VALOR SOCIAL................................................................................................................................ 306
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................ 307
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 308
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 309
XII
UNIDADE 1
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Esta unidade tem por objetivos:
PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em quatro tópicos e no final de cada um deles
você encontrará atividades que reforçarão o seu aprendizado.
1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1
1 INTRODUÇÃO
Neste tópico, em primeiro lugar, vamos introduzir as questões centrais
que fundamentam a filosofia política. Questões como: O que é a filosofia política?
O que é um regime político? O que é um estadista? Qual é o melhor regime?
Estas questões nortearão todo o desenvolvimento desta disciplina, lançando
problemas perenes que perpassam desde a filosofia política clássica à filosofia
política contemporânea. Por mais que os problemas permaneçam, as respostas
aos mesmos são variadas e divergem entre os autores, constituindo assim um
campo heterogêneo e rico, com propostas distintas para as questões centrais da
filosofia política.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
para esta disciplina. Aqui veremos questões como: a desobediência à lei justificada
por princípios, a apologia de Críton, e vamos aplicar as lições de Atenas ao nosso
mundo de hoje.
Por fim, você poderá ler o resumo deste tópico 1 e depois realizar a sua
autoatividade.
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TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON
Estas são todas questões reais, as levantamos agora para que possam pensar
sobre estas questões na medida em que fazem as suas leituras e trabalhos desta
disciplina. Uma razão pela qual sugerimos que continuemos a ler estes livros não
é porque a ciência política não faz nenhum progresso, ou que de alguma forma
está exclusivamente fixada em um passado antigo, mas porque estas obras nos
fornecem as perguntas mais básicas que continuam a orientar o nosso campo. Nós
continuamos a fazer as mesmas perguntas que foram feitas por Platão, Maquiavel,
Hobbes e outros. Nós podemos não aceitar as suas respostas, e é bem provável
que nós não o façamos, mas suas perguntas são, muitas vezes, formuladas com
uma clareza e discernimento inigualável. O fato é que ainda existem pessoas no
mundo, muitas pessoas, que se consideram aristotélicos, tomistas, lockeanos,
kantianos, até mesmo marxistas podem ser encontrados nas várias universidades
nacionais e internacionais. Estas doutrinas simplesmente não foram refutadas,
ou substituídas, ou historicamente superadas; elas permanecem, em muitos
aspectos, constitutivas de nossas perspectivas e atitudes mais básicas. Assim, a
filosofia política não é apenas algum tipo de estranho apêndice histórico ligado
ao tronco da ciência política; é constitutiva de seus problemas mais profundos.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
Então, uma coisa que você vai notar rapidamente é que não há respostas
permanentes em um estudo da filosofia política. Um ditado corriqueiro no mundo
acadêmico é que para "cada questão deve ter uma resposta correta, para cada
pergunta uma resposta". Isso em si é uma proposta eminentemente contestável.
Entre os grandes pensadores há uma profunda divergência sobre as respostas até
para as questões mais fundamentais em relação à justiça, aos direitos, à liberdade.
Em filosofia política, uma resposta nunca é suficiente para responder a uma
pergunta com uma declaração "porque Platão diz isso", ou "porque Nietzsche diz
isso". Não há autoridades finais a esse respeito na filosofia, porque até mesmo
os maiores pensadores discordam profundamente um com o outro sobre suas
respostas, e é precisamente este desacordo um com o outro que torna possível para
nós, os leitores de hoje, entrar em sua conversação. Somos chamados primeiro a
ler e ouvir, e depois a avaliar "quem está certo?" e "como sabemos isso?". A única
maneira de decidir não é submeter-se à autoridade, não importa de quem for a
autoridade, mas de confiar em nossos próprios poderes da razão e do juízo; em
outras palavras, a liberdade da mente humana para determinar para nós o que
parece certo ou melhor.
Mas o que são esses problemas a que estamos nos referindo? Quais são
esses problemas que constituem o objeto de estudo da política? Quais são as
perguntas que os cientistas políticos tentam responder? Essa lista pode ser longa,
mas não infinita. Entre as questões mais antigas e ainda mais fundamentais estão:
O que é a justiça? Quais são os objetivos de uma sociedade decente? Como deve ser
educado um cidadão? Por que eu deveria obedecer à lei, e quais são os limites, se
houver, à minha obrigação? O que constitui o fundamento da dignidade humana?
É a liberdade? É a virtude? É o amor, é a amizade? E, claro, a questão da mais alta
importância, como diria Strauss (1978, p. 241), “mesmo que os filósofos políticos
e cientistas políticos raramente a pronunciem, quid sit deus, o que é Deus, será que
ele existe? E o que isso implica para as nossas obrigações como seres humanos
e cidadãos?” Esses são alguns dos problemas mais básicos e fundamentais do
estudo da política. Ainda assim poderíamos perguntar: onde é que se entra neste
debate? Em quais perguntas e pensadores devemos focar?
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TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
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TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON
Tudo isso é outra maneira de dizer, ou pelo menos implicar, que a filosofia
política é uma disciplina eminentemente prática, um campo prático. Seu objetivo
não é simplesmente a contemplação, o seu objetivo não é meramente a reflexão,
mas é dar conselhos. Nenhum dos autores que vamos abordar neste Caderno de
Estudos foi um estudioso enclausurado e desapegado do mundo, embora este
seja um preconceito muito comum contra a filosofia política. Todavia, os grandes
pensadores estavam muito longe de serem apenas intelectuais desapegados.
Platão empreendeu três viagens longas e perigosas para Sicília, a fim de aconselhar
o rei Dionísio. Aristóteles era um tutor de Alexandre, o Grande. Maquiavel
passou grande parte de sua carreira no Serviço Exterior, como assessor de sua
Florença natal, e escreveu como um conselheiro dos Médici. Hobbes foi o tutor
de uma família real que acompanhou o rei para o exílio durante a Guerra Civil
Inglesa. Locke foi associado com o Círculo de Shaftesbury e também foi forçado ao
exílio depois de ser acusado de conspirar contra o rei inglês. Rousseau não tinha
conexões políticas oficiais, mas ele sempre assinou seu nome como Jean-Jacques
Rousseau, "cidadão de Genebra", e foi procurado para escrever constituições
para a Polônia e para a ilha de Córsega. Finalmente, Tocqueville foi membro da
Assembleia Nacional Francesa, cuja experiência da democracia americana afetou
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
Qualquer que seja a forma que o melhor regime assuma, será sempre a
favor de certo tipo de ser humano com certo conjunto de traços de caráter. O tipo
de homem comum, que é encontrado nas democracias; os que possuem gostos
seletos e dinheiro, nas aristocracias; o guerreiro ou até mesmo o sacerdote, nas
teocracias. Isto, finalmente, levanta a questão da relação entre o melhor regime
ou o bom regime, e o que podemos dizer que são os regimes realmente existentes,
regimes dos quais somos todos familiarizados. Qual a função que o melhor regime
tem na ciência política? Como é que pode conduzir nossas ações aqui e agora?
Este assunto recebeu um tipo de formulação clássica na distinção aristotélica, do
que ele chamou de o bom ser humano (o homem de bem) e o bom cidadão. Para
o bom cidadão – iremos discorrer detalhadamente sobre este assunto quando
falarmos da Política de Aristóteles – você poderia dizer que o patriotismo é o
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TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON
Mas o bom cidadão, Aristóteles prossegue, não é o mesmo que o bom ser
humano. Onde o bom cidadão é relativo ao regime, pode-se dizer específico ao
regime, o bom ser humano é bom em todos os lugares. O bom ser humano ama o
que é bom simplesmente, não porque é seu, mas porque é bom. Algo semelhante
a isso foi demonstrado no elogio de Abraham Lincoln a Henry Clay. Lincoln
(2009, p.133, tradução nossa) escreveu sobre Clay: “ele amava o seu país, em parte
porque era o seu próprio país, mas principalmente porque era um país livre". Seu
ponto é que Clay exibiu, pelo menos no dizer de Lincoln, algo do filósofo, o que
ele amava era uma ideia, a ideia de liberdade. Essa ideia não era a propriedade
de um país em particular, mas era constitutivo de qualquer boa sociedade. O bom
ser humano, ao que parece, seria um filósofo, ou pelo menos teria algo filosófico
sobre ele, e que só poderia sentir-se totalmente em casa no melhor regime.
Todavia, é óbvio que o melhor regime carece de realidade. Nós todos sabemos
que ele nunca existiu. Aparentemente o melhor regime encarna um paradoxo
supremo. É superior em algumas maneiras a todos os regimes reais, mas não
possui nenhuma existência concreta em qualquer lugar. Isso torna difícil (e este
é o ponto de Aristóteles) para o filósofo ser um bom cidadão de qualquer regime
real. A filosofia nunca vai se sentir totalmente ou verdadeiramente em casa em
qualquer sociedade particular. O filósofo nunca pode ser verdadeiramente fiel a
alguém ou alguma coisa, a não ser ao que é o melhor. Pense nisso, pois levanta
uma questão sobre temas sobre o amor, a lealdade e amizade.
Esta tensão entre o melhor regime e qualquer regime real é o espaço que
torna a filosofia política possível. Se pudéssemos habitar no melhor regime, a
filosofia política seria desnecessária ou redundante, simplesmente esvaneceria.
A filosofia política existe e só existe na "zona de indeterminação" entre o "é" e
o "dever ser", entre o real e o ideal. É por isso que a filosofia política é sempre e
necessariamente um empreendimento potencialmente perturbador. Aqueles que
embarcam na busca pelo conhecimento do melhor regime podem retornar não
sendo as mesmas pessoas que eram antes. Você pode voltar com muitas lealdades
e fidelidades diferentes do que as que você tinha no início. Mas há alguma
compensação por isso. Os gregos antigos tinham uma bela palavra para esta
missão, para este desejo de conhecimento do melhor regime. Chamavam de Eros,
ou amor. A busca de conhecimento do melhor regime deve, necessariamente, ser
acompanhada, sustentada e elevada pelo Eros. Você pode não ter percebido no
momento que iniciou a ler este Caderno de Estudos, desta disciplina específica,
mas o estudo da filosofia política pode ser o maior tributo que pagamos ao amor.
Pense nisso, e enquanto você está pensando sobre o assunto, pode começar a ler a
obra Apologia de Sócrates, de Platão, que vamos discutir logo a seguir.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
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TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON
pretende que este diálogo seja entendido? Perceba que Sócrates nunca se defende
com base na doutrina da liberdade de expressão ilimitada. Ele não faz essa
afirmação. Ele não faz a afirmação sobre a utilidade geral da liberdade ou da fala
ilimitada. Ao contrário, ele mantém como ele expressa, perto do final do discurso
de defesa, que somente a vida examinada vale a pena ser vivida. Somente aqueles
que se dedicam à luta contínua para esclarecer seus pensamentos, para remover
as fontes de contradição e incoerência, apenas essas pessoas se pode dizer que
vivem uma vida que vale a pena. "A vida não examinada não vale a pena ser
vivida" (PLATÃO, 2008a, p. 163, 38a), Sócrates confiante, desafiadoramente
afirma aos seus ouvintes, à sua audiência. Nada mais importa para ele.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
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TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON
como os Trinta Tiranos, ou a Tirania dos Trinta, que governaram Atenas por um
ano. No ano seguinte, 403 AEC, os tiranos, os Trinta, como eram chamados, foram
expulsos e um governo democrático foi restabelecido em Atenas.
Apenas três anos depois, três homens, chamados Ânito, Meleto e Lícon, os
quais fizeram parte do movimento de resistência democrática contra a oligarquia
espartana, fizeram acusações contra Sócrates. As acusações contra ele foram:
corromper a juventude e de descrença nos deuses que a cidade acredita. Os
nomes de Ânito e Meleto, como você pode ler na Apologia, aparecem no próprio
discurso. Assim, as acusações contra Sócrates não brotaram do nada. Talvez
devêssemos reformular a pergunta. Não, por que os atenienses levaram Sócrates
a julgamento? Mas, por que lhe permitiram exercer a sua prática de desafiar a lei
e a autoridade da lei durante o tempo que ele assim o fez? Adicione a isso o fato
de que quando Sócrates foi levado a julgamento, a democracia só recentemente
tinha sido restabelecida, mas que muitos amigos e ex-alunos de Sócrates tinham
eles próprios sido implicados no governo dos Trinta Tiranos.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
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TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON
velha querela entre a filosofia e a poesia. Esta discussão é uma parte importante
dos diálogos de Platão, é um tema central, não só do Simpósio, em que Aristófanes
e Sócrates são mostrados juntos na mesma mesa de jantar. Mas também é uma
característica fundamental da República, que abordaremos no próximo tópico,
onde Sócrates oferece uma proposta elaborada para a censura e controle da
poesia, se é para ser compatível com as exigências da justiça política. Na verdade,
você não pode entender a República, a menos que entenda o contexto poético
dela e o engajamento, de longa data, de Sócrates com a tradição poética, assim
como a disputa entre ele e o homem que ele chama de poeta cômico.
Então, o que está em jogo nesta querela entre Sócrates e a tradição poética
que ele alude? Em primeiro lugar, a maneira de Sócrates ensinar é muito diferente
daquela dos poetas. Os poetas são oraculares, basta lembrar-se da primeira
linha da Ilíada de Homero: "Canta, ó Deusa, a cólera de Aquiles" (HOMERO,
2013, p. 109). Os poetas são oraculares, eles clamam aos deuses e às deusas para
inspirá-los com música, para enchê-los com a inspiração para contar histórias
de pessoas com força, coragem e raiva sobre-humanas. Por outro lado, pode-
se dizer que o método de Sócrates não é oracular, não é por contar histórias,
mas é pela conversação, é um método argumentativo, usando o termo que ele
mesmo aplica, é dialético. Sócrates faz argumentos e ele quer que os outros se
engajem com ele, para descobrir qual argumento pode resistir melhor ao teste do
escrutínio racional e do debate. Não há argumentos na Ilíada nem na Odisseia
de Homero. Você ouve histórias fortes e convincentes, mas nenhum argumento.
Sócrates faz, em outras palavras, a essência desta nova educação política, um
contínuo questionamento e não a narração de histórias e a recitação de versos. Ele
questiona, portanto, os métodos de ensino dos poetas.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
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TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON
Vamos apenas dizer algo sobre As Nuvens, esta peça cômica, esta sátira
sobre Sócrates, porque ela é parte da acusação inicial da qual Sócrates afirma
ter sido levantada contra ele. Na peça, Aristófanes apresenta Sócrates como um
investigador, e isso também faz parte da primeira acusação, como podemos ver
na exposição do filósofo na Apologia: “declarando que há um certo Sócrates,
homem sábio, um pensador que se ocupa das coisas do alto e que sondou as
coisas abaixo da terra, e que faz do argumento mais fraco o mais forte” (2008a, p.
138). Esse é, portanto, o argumento, de acordo com Sócrates, que Aristófanes traz
contra ele. Em As Nuvens (1987), Sócrates é apresentado como o chefe, o líder,
o diretor do Phrontisterion, que pode ser traduzido como “Pensatório”, um lugar
onde os pais atenienses levam seus filhos para serem doutrinados nos mistérios
da sabedoria socrática. Na peça Sócrates é mostrado pairando, voando sobre o
palco em uma cesta, a fim de ser capaz de melhor observar as nuvens, as coisas
no ar. Mas, também, em muitos aspectos, simbolizando Sócrates, pelo menos no
relato de Aristófanes, em seu desprendimento das coisas aqui embaixo na terra,
as coisas que dizem respeito aos seus concidadãos. Sócrates, neste relato, seria
alguém que o povo alemão chamaria de Luftmensch. Ele é um homem no ar, que
caminha nas nuvens, ele está tão distante que não tem os pés no chão.
Sócrates é mostrado não só zombando dos deuses ao fazer isso, mas ele é
mostrado por Aristófanes ensinando todas as coisas que violam toda a decência,
todos os tabus humanos - o incesto, o espancamento de um dos pais, entre outras
coisas tidas como abomináveis. Sócrates é apresentado exibindo uma espécie
de ceticismo corrosivo, o que está no centro da acusação de Aristófanes contra
ele. Resumindo a história, a peça termina com o “Pensatório” de Sócrates sendo
queimado até o chão por um discípulo descontente. Então, quão precisa é essa
imagem de Sócrates, o homem que investiga as coisas do alto e as coisas abaixo
da terra? As Nuvens foi escrita em 423 AEC quando Sócrates estava por volta de
seus 40 anos. O Sócrates aristofânico é, essencialmente, o que chamamos de um
filósofo natural. Ele é o que chamaríamos hoje de um cientista natural. Mas isso
parece bastante distante do Sócrates que é trazido sob a acusação de corromper
os jovens e de impiedade na Apologia.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
fama de serem sábias, e suas conversas o levaram a fazer perguntas, não sobre
fenômenos científicos naturais, mas questões sobre as virtudes de um ser humano
e de um cidadão, o que chamaríamos hoje talvez de questões morais e políticas.
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TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
profundamente é esse chamado de não fazer nada além, como ele diz "pois tudo
o que eu faço em minhas andanças é vos instar, jovens e velhos entre vós, a não
zelardes por vossos corpos ou vossas riquezas mais que pela perfeição possível
de vossas almas" (2008a, p. 153). Essa preocupação com o estado de sua alma, ele
diz que o júri o levou a não só a empobrecer a si mesmo, mas o conduziram para
longe dos negócios públicos, das coisas que dizem respeito à cidade, à busca da
virtude privada.
Em vez disso, diz ele, se alguém “realmente luta por justiça tem que levar
uma vida privada, e não pública, caso queira sobreviver mesmo por um efêmero
período” (2008a, p. 155-156).
Pense nisso: se alguém quer realmente lutar por justiça e quiser preservar-
se, é necessário que ele tenha uma vida privada, não uma vida pública. Como
devemos entender a afirmação de Sócrates de que a busca pela justiça exige que
ele se desvie da vida pública à vida privada? O que é este novo tipo de cidadão,
preocupado com este tipo de virtude privada, esta preocupação com a virtude
da alma? Essa é a pergunta que vamos considerar a seguir ao finalizarmos a
discussão sobre a Apologia e irmos em direção ao Críton (PLATÃO, 2008b).
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TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON
questão. Como pode um cidadão, como pode este novo tipo de cidadania que ele
está propondo, como pode qualquer tipo de cidadania ser dedicada apenas às
questões privadas e não públicas?
Quando ele diz que seu modo de vida tem sido privado, ele quer dizer que
tem buscado uma política de abstinência da vida pública baseada em princípios.
Sócrates é um grande abstêmio, ele se absteve de participação nas ações coletivas
da cidade, ações que ele acreditava que só poderiam acarretar uma cumplicidade
em atos de injustiça pública. Seu próprio lema, se você quiser atribuir-lhe um
lema, parece ser uma variação do Juramento de Hipócrates, que os médicos são
famosos por fazer: "Primum non nocere” (“Em primeiro lugar, não fazer mal").
E para não fazer mal, ele exigiu de si mesmo uma espécie de abstenção da vida
pública, baseada em princípios. Mas o que ele quer dizer referindo-se à sua
abstenção da vida política? Ele oferece um par de exemplos disto. Um deles
concerne à sua recusa em participar da sentença para condenar e executar os
dez generais atenienses que falharam em recolher os cadáveres, os corpos, dos
homens perdidos em uma batalha específica, durante a Guerra do Peloponeso.
Este foi um sinal de grande vergonha e desgraça, foi um evento real. Havia uma
espécie de julgamento de culpa coletiva e todos eles foram executados lá, os
líderes, os generais desta batalha particular, e Sócrates diz que ele se recusou a se
envolver nesse tribunal e neste julgamento (PLATÃO, 2008a, p. 156, 32b).
A segunda história, que você já deve ter lido na Apologia, foi a sua
narração, lembrando ao júri como ele se recusou a participar na prisão de um
homem conhecido como Leon de Salamina, pois fora ordenado pelos Trinta
Tiranos; uma prisão que teria levado, e de fato levou, à execução de Leon (2008a,
p. 156-157, 32c-d). Sócrates relata como ele, em risco considerável a si próprio,
se recusou a participar da prisão deste homem. Em ambos os casos, o ponto de
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
Sócrates é que a sua própria integridade moral individual se destaca como uma
espécie de prova decisiva para a possibilidade de engajar-se ou desengajar-se da
vida política. Preste bem atenção na seguinte declaração do filósofo, “será que
acreditais que poderia eu ter sobrevivido tantos anos se houvesse participado
da vida pública comportando-me como um homem bom deve se comportar,
prestando meu auxílio à justiça e o considerando o meu mais elevado dever?”; e
ele continua: “longe disso, homens de Atenas, e tampouco poderia isso acontecer
com qualquer outro homem. Ao longo de minha vida, em qualquer atividade
pública em que possa ter me engajado, sou o mesmo homem que da vida privada”.
Na continuação ele certamente lembra-se da sua recusa a se curvar aos Trinta
Tiranos, no caso de Leon de Salamina, dizendo: “jamais compactuei com alguém
para uma ação injusta, fosse esse alguém qualquer outra pessoa ou um daqueles
que, segundo meus caluniadores, são meus discípulos” (PLATÃO, 2008a, p. 157,
32e-33a).
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TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON
Sócrates está dizendo ao júri, "vocês podem não gostar de mim, mas eu
sou bom para vocês” e, além disso, ele afirma – no que só pode ser descrito como
uma espécie de linguagem quase religiosa – que não tem escolha no assunto.
Isto não é algo que ele escolheu para fazer. Ele é como um dom de Deus, como
ele mesmo diz, e foi ordenado a fazer isso. “Homens de Atenas”, ele declara,
“contais com meu respeito e minha amizade, mas acatarei ao deus, de preferência
a vós, e por quanto durar minha existência e for eu capaz de prosseguir, jamais
renunciarei à filosofia e cessarei de vos exortar” (PLATÃO, 2008a, p. 153, 29d).
Ele parece cobrir a si mesmo e o seu modo de vida com uma espécie de imagem
religiosa, o Oráculo de Delfos, o dom de deus. Ele envolve sua concepção de
cidadania dentro dessa linguagem religiosa e isso deveria levar qualquer leitor
da Apologia e qualquer leitor de Platão a fazer uma pergunta importante sobre
o uso de Sócrates desta linguagem. Vamos vê-la novamente em diferentes formas
na República. Será que ele está sendo sincero em dizer isso ou, de alguma forma,
está sendo irônico em seu uso do tom religioso? Ele está, afinal de contas, em
julgamento por sua vida, com a acusação de impiedade. Será que, para refutar a
acusação de impiedade, ele usaria um tipo de linguagem religiosa que iria entrar
em ressonância com o júri e este refutaria a acusação, talvez até mesmo sugerindo
que ele é o único verdadeiramente religioso e piedoso e não aqueles como Ânito
e Meleto que estão trazendo acusações contra ele?
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
Seu giro para longe da investigação dos fenômenos puramente naturais para o
estudo do mundo da virtude moral e da justiça. Ele afirma repetidamente que
o caminho que ele tomou não é de sua própria escolha, mas o resultado de uma
ordem divina. Ele está sob algum tipo de decreto divino e é precisamente a sua
devoção a este mandamento divino, a esse tipo específico de vocação, que o levou
a negligenciar seus assuntos mundanos. Ele lembra, em vários momentos, à sua
audiência de sua extrema pobreza, a sua negligência de sua família e de suas
obrigações para com sua esposa e filhos, bem como o fato de sofrer a desgraça
e o abuso que é dirigido contra ele por várias figuras públicas. Tudo isso é o
resultado de sua devoção à ordem divina. Ele apresenta-se, em outras palavras,
como um ser humano de piedade e de devoção incomparável que arriscaria a sua
própria vida, em vez de abandonar a missão que lhe fora dada.
Será que acreditamos nele, a este respeito? Esta é uma questão importante,
acreditamos que ele está sendo sincero ou que ele está usando isso como se fosse
uma espécie de retórica com a qual procura refugiar-se? Qual é este tipo peculiar
de piedade que ele alega praticar? De muitas maneiras, ao responder ao veredito
do júri no pedido de que ele deixe de filosofar, Sócrates explica-se nos seguintes
termos. Deixe-me apenas citar brevemente outra passagem a partir do segundo
discurso que ele dá ao júri depois de sua condenação. "Convencer alguns de vós
sobre esse ponto é a tarefa mais difícil”, ele diz sobre o seu modo de vida, e
continua:
Em outras palavras, o que ele parece estar dizendo, nessa passagem, é que
ele percebe que está sobre a linha tênue de um dilema.
Por um lado, ele diz explicitamente que a sua referência a uma missão
divina será tomada pelo seu público como sendo apenas mais um exemplo de
ironia socrática e de insinceridade. Mas, ele afirma, se tentar convencer as pessoas
da bondade e da justiça de seu modo de vida fundamentando-se simplesmente
em argumentos racionais, para persuadi-los de que a vida examinada por si só
vale a pena ser vivida, ele admite que não seja acreditado. Então, o que podemos
dizer que um cidadão socrático deve fazer? Ele será acusado de ser irônico e não
será acreditado, ou ele vai ser simplesmente desacreditado se tentar defender-
se por justificativas racionais ou filosóficas. Isso levanta a questão com a qual
começamos esta parte do Caderno de Estudos. Sócrates deve ser tolerado, uma
boa sociedade deveria tolerar Sócrates? Esta é a questão levantada no diálogo
de Críton também (PLATÃO, 2008b). Até que ponto a liberdade de expressão, o
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TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON
discurso que beira a impiedade cívica, até que grau tal discurso deve ser tolerado?
Tem sido uma suposição de leitores de Platão ao longo dos anos que o julgamento
de Sócrates, que a execução de Sócrates apresenta o caso a favor da liberdade
ou da mais plena liberdade de pensamento contra os perigos de uma sociedade
de tentar perseguir ou suprimir a liberdade de expressão. Mas será esta leitura
correta? Em outras palavras, é este realmente o ensinamento de Platão?
Entre as coisas que Sócrates diz que se preocupa profundamente está a sua
vocação para não fazer nada além de persuadir os mais jovens e os mais velhos
a não se preocupar com seus corpos e seu dinheiro, mas sim com o fato de como
a sua alma vai estar na melhor condição possível. Como devemos entender isso
no que consta o caso sobre a tolerância e a liberdade de expressão? A Apologia
mostra Sócrates apresentando o caso mais intransigente a favor do filósofo como
um crítico radical ou questionador da sociedade. Sócrates exige que os atenienses
não mudem simplesmente este ou aquele aspecto de sua política, mas ele exige
nada menos que uma drástica, diria até mesmo revolucionária, mudança na vida
cívica, na cultura cívica ateniense. Ele diz a seus companheiros cidadãos que
suas vidas não valem a pena, só a vida examinada vale a pena ser vivida e que
eles não estão vivendo uma vida examinada, portanto, suas vidas não podem ter
qualquer valor. Mesmo quando confrontado com a opção de deixar de filosofar,
ele se recusa a fazê-lo, pelo fato de estar agindo sob um comando, uma ordem
divina e de não poder fazer ao contrário.
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TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON
próprias leis, estas exercem uma espécie de autoridade paternal sobre nós de
tal forma que a desobediência a qualquer lei constitui um ato de irreverência ou
desrespeito das coisas mais antigas que nos rodeiam. As leis não são apenas como
nossos pais, elas são como nossos ancestrais, os fundadores, a quem são devidos
o respeito e a devoção.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
com os princípios de sua própria razão ou que ele se importe muito pelas leis
da cidade, por que não deixar Críton ajudá-lo a escapar e ir para Creta, onde
ele poderia beber o bom vinho da ilha de Creta e desfrutar de sua velhice? E, de
fato, Platão escreveu outro diálogo, o seu maior diálogo, um livro chamado As
Leis, onde você vê um homem estrangeiro, simplesmente designado como “o
Ateniense”, vivendo em Creta e que mantém uma conversa com representantes
daquela sociedade. Poderia ser Sócrates, embora ele não seja identificado como
tal, pois é o tipo de discurso ou conversa que Sócrates teria se tivesse escapado.
Mas voltando à questão, são verdadeiras as razões de Sócrates que ele oferece a
Críton, por se recusar a fugir, as razões que ele coloca na boca das leis da cidade
de Atenas? Será que Sócrates acredita no discurso que ele constrói entre ele e as
leis ou é simplesmente uma ficção que ele cria para o bem de aliviar seu amigo da
culpa que ele evidentemente sente por ser incapaz de ajudá-lo?
FONTE: Pintura a óleo sobre tela, de Jacques-Louis David (1787). Disponível em:
<http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Jacques-Louis_David_-_The_
Death_of_Socrates_-_Google_Art_Project.jpg>. Acesso em: 16 jan. 2015.
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TÓPICO 1 | PLATÃO, A APOLOGIA DE SÓCRATES E CRÍTON
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
A única coisa que Platão não discute é que Sócrates deve ser simplesmente
tolerado. Tolerar o seu ensinamento pareceria banalizá-lo em algum sentido,
torná-lo inofensivo. Os atenienses, pelo menos, pagam o tributo de levar Sócrates
a sério, que é exatamente a razão dele estar em julgamento. Os atenienses se
recusam a tolerar Sócrates porque eles sabem que ele não é inofensivo, que ele
coloca um desafio, um desafio fundamental ao seu modo de vida e a tudo o que eles
pensam ser nobre e de valor. Sócrates não é inofensivo por causa de sua própria
capacidade declarada de atrair seguidores, poucos hoje em dia, um pouco mais
amanhã. Quem sabe? Tolerar Sócrates seria dizer a ele que nós nos importamos
pouco com o nosso modo de vida e que estamos dispostos a deixá-lo, desafiá-lo e
impugná-lo todos os dias. Isso é bom, isso é certo? O julgamento de Sócrates nos
pede para pensar sobre os limites da tolerância, quais pontos de vista, se é que
existem, que consideramos simplesmente intoleráveis? Uma sociedade saudável
é aquela que literalmente está aberta a todos os pontos de vista? A liberdade de
expressão é, certamente, uma coisa desejável, mas será que é o bem supremo?
Deveria triunfar sobre todos os outros bens ou a tolerância chega a um ponto em
que deixa de ser tolerância e torna-se de fato em uma espécie de niilismo suave
que pode estender a liberdade a tudo, precisamente porque não leva nada muito
a sério. E por niilismo queremos dizer a visão de que todas as preferências, até as
mais esquálidas ou sórdidas, devem ser consideradas tão legítimas quanto todas
as outras. Seria isto realmente tolerância ou uma forma de decadência moral que
simplesmente nos levaria a abandonar a busca pela verdade e pelos padrões de
juízo? Há um perigo, creio que fica evidente, no fato da tolerância infinita poder
levar a uma passividade intelectual e ao tipo de aceitação acrítica de todos os
pontos de vista. Dedique um tempo para pensar sobre isso. Agora vamos começar
a discutir sobre a leitura do que é considerado, por muitos intelectuais, o livro
mais importante já escrito, a República de Platão.
DICAS
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RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico você viu que:
• A filosofia política sempre foi guiada pela questão do melhor regime. Mas
nunca pode rejeitar a ideia do bom e real regime. Fica sempre entre o “dever”
e o “é”, entre o ideal e o real. E qualquer que seja a forma do melhor ou bom
regime, este sempre será a favor de certo tipo de ser humano.
• Uma das questões centrais da Apologia é sobre quem tem o direito de ensinar,
quem tem o direito de governar.
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• O famoso giro socrático, da investigação cosmológica à investigação sobre a
justiça, sobre as virtudes e o conhecimento de si.
• A defesa que o próprio Sócrates, no diálogo com Críton, levanta em favor das
leis da cidade e se nega a fugir da sua sentença.
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AUTOATIVIDADE
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36
UNIDADE 1
TÓPICO 2
1 INTRODUÇÃO
Neste tópico vamos nos concentrar na famosa obra de Platão, A República
(2001), mais especificamente, no Livro I ao V. Lembrando que a leitura desta
unidade do Caderno de Estudos deve ser acompanhada pela leitura da obra
referida que será analisada.
Finalmente, você poderá ver o resumo dos assuntos deste tópico e fazer a
sua autoatividade.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
a cidade ideal de Platão, o que ele chama de Kallipolis, a cidade bela, a cidade
justa, governada por filósofos-reis. A segunda metade do livro se transforma em
algo um pouco diferente, com direções certamente igualmente importantes, mas
levaria muito mais páginas do que àquelas que temos à disposição para escrever
neste Caderno de Estudos. A República é um livro muito desconcertante, você vai
descobrir ao lê-lo como ele nos deixa perplexo. Seu significado não será evidente
para você na primeira leitura. Pode não ser claro para você na décima leitura, a
menos que você o aborde com as perguntas adequadas e com a disposição mental
adequada.
A República também é uma utopia, uma palavra que Platão não usa,
não fora cunhada, até muitos, muitos séculos depois por Sir Thomas More.
Mas o livro de Platão é uma utopia, uma espécie de extremo. Ele apresenta
uma visão extrema da política, uma visão extrema da polis. O fio condutor do
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TÓPICO 2 | OS FILÓSOFOS E OS REIS: PLATÃO E A REPÚBLICA
A República nos pede para considerar seriamente como seria uma cidade
governada por filósofos. A este respeito, parece ser o final perfeito para a Apologia.
Tente recordar, a Apologia descreve os perigos que a cidade representa à filosofia,
ao filósofo e à vida filosófica. A República nos interpela: como seria uma cidade
se fosse governada por Sócrates ou alguém como ele? Essa cidade exigiria, assim
como Sócrates relata ao longo dos livros de abertura, a censura severa da poesia
e da teologia, a abolição da propriedade privada e da família, pelo menos entre
a classe guardiã da cidade, e o uso de mentiras e mitos selecionados, o que hoje,
provavelmente, seria chamado de ideologia ou propaganda, como instrumentos
de dominação política. Parece que, longe de utopia, a República representa uma
“distopia” radical, uma sátira, em certo sentido, do melhor sistema político. Na
verdade, grande parte da ciência política moderna é dirigida contra o legado de
Platão. O Estado moderno, como atualmente o compreendemos, é baseado na
separação da sociedade civil da autoridade governante, que possibilita todo o
domínio do que chamamos vida privada separada do Estado. Mas a República
de Platão não reconhece essa separação ou nenhuma independência para a esfera
privada. Por esta razão, Platão tem sido frequentemente retratado como uma
espécie de prenúncio do Estado totalitário moderno.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
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TÓPICO 2 | OS FILÓSOFOS E OS REIS: PLATÃO E A REPÚBLICA
Vamos falar um pouco mais sobre esse tempo e lugar que foi indicado na
frase: "Desci ontem ao Pireu." Platão nasceu em 427 AEC, ou seja, quatro anos
após o início da Guerra do Peloponeso. Ele era um jovem de 23 anos quando
a democracia em Atenas foi derrotada. Ele tinha apenas 28 anos quando a
democracia restaurada executou seu amigo e mestre, Sócrates, em 399 AEC.
Quase imediatamente após o julgamento de Sócrates, Platão deixou Atenas e
viajou extensivamente em todo o mundo grego. Após seu retorno, ele estabeleceu
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
Nós não sabemos exatamente o que pensava Platão, mas somos auxiliados,
pelo menos, por uma espécie de autobiografia intelectual que ele escreveu e que
ainda a temos, no que se convencionou chamar de a Carta Sétima. Platão escreveu
uma série de cartas e nós ainda as temos. Houve debates sobre a autenticidade
delas, embora agora já esteja bem estabelecido que elas sejam de sua autoria.
Na mais famosa dessas cartas, a longa Carta VII, ele nos oferece, mais uma vez,
uma espécie de autobiografia e nos fala um pouco sobre a razão pela qual ele
escreveu este livro. Não é incrível que nós ainda tenhamos as cartas do homem
que escreveu este livro? Deixe-me citar para vocês o que Platão diz sobre como
ele veio a escrever a República. Os trechos a seguir são das seções 324b-d, da
Carta VII de Platão (2011a, p. 61). "Quando eu era jovem", disse ele, e isto ele
escreveu quando já estava muito velho,
Aqui ele está se referindo à tirania dos Trinta que existiu após a derrota
ateniense.
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TÓPICO 2 | OS FILÓSOFOS E OS REIS: PLATÃO E A REPÚBLICA
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
Temos nas próprias palavras de Platão, aqui, a forma como ele via a política e
as suas razões para a sua filosofia política. No entanto, em muitos aspectos, se a
República foi o resultado de desespero abrangente e desilusão com os prospectos
de reforma, o próprio diálogo aponta de volta para um momento mais cedo na
vida de Platão e da vida da cidade de Atenas. Esta notável carta foi escrita quando
Platão era muito velho, aproximadamente 50 anos após o julgamento e execução
de Sócrates. Mas a ação da República ocorre muito antes da derrota de Atenas,
antes da ascensão dos Trinta e da execução de Sócrates. Refere-se ao período que
Platão descreve na carta que parecia "uma idade de ouro”, quando muitas coisas
pareciam possíveis. Isso nos conduz de volta ao início, à descida ao Pireu.
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TÓPICO 2 | OS FILÓSOFOS E OS REIS: PLATÃO E A REPÚBLICA
2.5 CÉFALO
Há, no primeiro conjunto de diálogos, uma hierarquia distinta de
personagens e caracteres que, como veremos mais adiante, expressa as
características distintivas da alma e da cidade. Céfalo passou a sua vida nas artes
da aquisição. Ou seja, ele é um homem de negócios. Ele está preocupado com
a satisfação das necessidades do seu corpo e ganhar dinheiro. Ele representa o
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
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TÓPICO 2 | OS FILÓSOFOS E OS REIS: PLATÃO E A REPÚBLICA
Por que Platão começa desta maneira? Bem, Céfalo é, como deve estar claro,
a própria personificação, a encarnação do convencional. Ele não é um homem
mau, de modo algum, mas ele é alguém completamente irrefletido. Ao atacar
Céfalo como ele faz, Sócrates ataca a personificação da opinião convencional, o
Nomos que sustenta a cidade. Note a forma como Sócrates manipula o diálogo, a
conversa.
Céfalo diz, na seção 331b, que o homem piedoso, o homem justo pratica a
justiça sacrificando aos deuses. Sócrates transforma essa afirmação, na declaração
de que a justiça significa pagar suas dívidas e devolver o que lhe é devido. Céfalo,
de uma forma descontraída e maleável concorda e, em seguida, diz Sócrates, o
que você pensa “se alguém recebesse armas de um amigo em perfeito juízo, e
este, tomado de loucura, as reclamasse" (PLATÃO, 2001, p. 9, 331c), poderíamos
dizer um quadro depressivo, seria justo entregar-lhe de volta? Como você explica
isso? Você faria isso se a justiça significa pagar suas dívidas e devolver a cada
o que é devido? Naquele momento, Céfalo se retira do diálogo e diz, um tanto
abruptamente, "eu, por mim, faço-vos entrega da discussão, pois tenho de ir tratar
do sacrifício” (331d). Sócrates, em outras palavras, rompeu o vínculo da tradição
e da autoridade tradicional que mantém juntas a cidade antiga e a família antiga.
Céfalo é banido do diálogo. A tradição é banida e nunca mais ouvimos uma
palavra sequer sobre isso nas próximas 400 ou mais páginas. Essa é a maneira
como Sócrates começa este diálogo, ou essa é a maneira que Platão faz com que
Sócrates comece. Vamos olhar um pouco mais a alguns destes detalhes a seguir, e
depois passar para os personagens de Adimanto e Gláucon. De qualquer forma,
não deixem de ler, continuem sua leitura da República de Platão e “divirtam-se”.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
3.1 POLEMARCO
Sócrates busca uma próxima discussão com o filho de Céfalo, Polemarco,
o homem que tinha abordado Sócrates no Pireu. Essa discussão começa na seção
331d (PLATÃO, 2001, p. 9). Polemarco é descrito como o herdeiro do argumento,
bem como o herdeiro da fortuna da família. Polemarco é o que os gregos
chamariam de "cavalheiro". Vamos apenas dizer que ele é uma pessoa disposta
a levantar-se para defender sua família e seus amigos. Portanto, “cavalheiro”
aqui não significa, necessariamente, alguém que segura a porta para os outros
passarem, ou assim por diante, mas alguém que se levanta por sua família e seus
amigos da maneira que ele faz.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
3.2 TRASÍMACO
Polemarco é despachado de uma forma ou de outra, e isso cria a
oportunidade para o mais longo e de muitas maneiras o mais memorável diálogo
no Livro I, e talvez até mesmo na República como um todo, o diálogo com
Trasímaco, que tem início na seção 336b (PLATÃO, 2001, p. 19). Este representa
um desafio muito mais difícil, em sua própria maneira, do que qualquer um dos
dois primeiros personagens. Isso porque Trasímaco poderia ser visto como o alter
ego de Sócrates ou o seu irmão gêmeo do mal. Para ilustrar melhor ainda, seria
para ele semelhante ao que o Dr. Moriarty é para o Sherlock Holmes.
Não importa o quanto nós não gostemos dele, de certa forma, tem de se
admitir que talvez haja um grão, se não mais do que um grão de verdade no que
ele parece estar dizendo. E o que ele parece estar dizendo é o seguinte: nós somos
seres que em primeiro lugar e principalmente somos dominados por um desejo de
poder. Isso é o que distingue o verdadeiro homem, o homem real, o “macho alfa”
do escravo. Poder e dominação são tudo o que realmente nos interessa. E quando
chegarmos mais adiante neste Caderno de Estudos, em Thomas Hobbes, lembre-
se de Trasímaco. Poder e dominação são tudo com o qual nos preocupamos.
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TÓPICO 2 | OS FILÓSOFOS E OS REIS: PLATÃO E A REPÚBLICA
precisou muito para Karl Marx inventar ou descobrir este insight, que as regras
da justiça são simplesmente as regras da classe dominante. Isso vem diretamente
de Trasímaco, no Livro I da República.
Bem, como responder a isso? Mais uma vez, Sócrates desafia Trasímaco
com uma variação do argumento que ele usou contra Polemarco. Isso quer dizer
"Será que nós cometemos erros?". Ou seja, não é autoevidente ou nem sempre é
intuitivamente óbvio quais são os nossos interesses. Se a justiça está realmente
para o interesse do mais forte, isso não requer algum tipo de conhecimento,
algum tipo de reflexão por parte de quem está no poder de saber o que é real e
verdadeiramente do seu interesse? As pessoas cometem erros e é muito possível
cometer um erro sobre os seus próprios interesses. E, claro, Trasímaco tem que
reconhecer isso, é claro que os governantes cometem erros, e ele tenta inventar
um argumento de que, se um governante comete um erro, ele não é realmente
um verdadeiro governante. O verdadeiro governante é a pessoa que tanto atua
em seu próprio interesse quanto sabe quais são esses interesses. Mas o ponto
que ele admite é tudo, em certo sentido, que Sócrates precisa (PLATÃO, 2001).
A justiça não é o poder por si só, a justiça requer conhecimento. A justiça exige
reflexão. E isso está, naturalmente, no cerne da famosa tese socrática, que toda a
virtude é uma forma de conhecimento, todas as virtudes exigem conhecimento
e reflexão em sua base. A maior parte do intercâmbio com Trasímaco se volta
ao problema de qual tipo de conhecimento a justiça engloba, e se a justiça é um
tipo de conhecimento. Pois, se a justiça é igual a interesse próprio e interesse
próprio exige conhecimento, que tipo de conhecimento é este? Trasímaco afirma
que a justiça consiste na arte de convencer as pessoas a obedecer às regras que são
realmente do interesse de outros, os interesses dos seus governantes. Justiça, em
outras palavras, para Trasímaco é uma espécie de “jogo de otário”. Obedecemos
às regras que realmente beneficiam aos outros, em grande parte porque tememos
as consequências da injustiça. Justiça é realmente algo somente respeitado pelos
fracos que têm medo das consequências da injustiça.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
2001, p. 44, 350d). Ele cora ao perceber que estava defendendo a alegação de
que a justiça não é uma virtude, mas que a justiça seria realmente uma forma
de fraqueza. Trasímaco aparenta estar envergonhado por sua defesa da vida
tirânica, da vida injusta.
3.3 GLÁUCON
Portanto, tudo do Livro I é realmente uma espécie de aquecimento para
o que se segue no resto da República. Nós descobrimos presumivelmente o que
é justiça. Até este momento, não temos razão para realmente desistir de nossas
ideias atuais existentes sobre o que é justiça. É neste ponto, no início do Livro II,
que as duas figuras mais importantes da República começam a fazer suas vozes
serem ouvidas. Essas são as vozes de Gláucon e Adimanto.
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TÓPICO 2 | OS FILÓSOFOS E OS REIS: PLATÃO E A REPÚBLICA
às consequências. Em vez disso, ele afirma que quer ouvir a justiça ser defendida
de uma maneira que ninguém jamais a defendeu antes. Os irmãos desejam ouvir
a justiça ser louvada somente por si mesma, e isso parece ser expressão da sua
própria liberdade de motivos e incentivos mercenários. Isso nos revela algo sobre
o seu idealismo e certo tipo de grandiosidade de sua alma. Certamente, os irmãos
não são incompetentes. Embora, mais tarde no diálogo a maior parte de suas
contribuições seja na forma de "sim, Sócrates; não, Sócrates", o que lhes confere
uma aparência de interlocutores passivos, os seus primeiros desafios a Sócrates
os revelam como filósofos potenciais. Ou seja, o tipo de pessoa que poderia um
dia governar a cidade.
Dos dois, Gláucon parece ser o superior. Ele é descrito como o mais
corajoso, que, nesse contexto, significa o mais viril, e mais tarde, Sócrates admite
que ele sempre foi cheio de admiração pela natureza dos dois irmãos. Na seção
368a (PLATÃO, 2001, p. 70), ele cita uma linha de poesia escrita sobre eles por sua
distinção em batalha. Eles estiveram em guerra, eles foram testados em batalha.
Eles também são, e nós vemos isso a partir de sua relação e da forma como falam
um com o outro, altamente competitivos. Há um pouco de duelo entre eles que
também é preciso estar atento. E cada um propõe a Sócrates um teste que ele vai
ter que passar a fim de provar o valor da justiça e da vida justa.
3.4 ADIMANTO
É neste momento, na seção 362d em diante (PLATÃO, 2001, p. 61), que
junta-se ao diálogo o irmão Adimanto, todavia com um conjunto de preocupações
um pouco diferentes. Ele ouviu a justiça ser louvada toda a sua vida, pelos seus
pais, poetas e outras autoridades, mas em sua maior parte, apenas ouviu estes
louvores por causa dos benefícios que a justiça confere tanto nesta vida quanto
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
E quem não se sentiu assim antes? Os dois irmãos desejam ouvir a justiça
elogiada em si e por si mesma, no caso de Gláucon, e viver livremente e de forma
independente, no caso de Adimanto. Isso mostra até certo ponto a sensação
de alienação de ambos em relação à própria sociedade. Ou, colocando o caso
deles anacronicamente, estes são dois filhos da alta burguesia que se sentem
degradados pela falsidade e hipocrisia do mundo que veem ao seu redor. De
qualquer maneira, que pessoa com sensibilidade para a grandeza não se sentiu
assim em um momento ou outro?
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TÓPICO 2 | OS FILÓSOFOS E OS REIS: PLATÃO E A REPÚBLICA
Essa parece ser uma forma de dar sentido à hipótese cidade-alma, todavia
não responde à pergunta sobre a maneira que as cidades e os indivíduos se
assemelham. Retornando ao exemplo do brasileiro, será que significa que algo
como a Presidência, o Congresso e o Tribunal podem ser discernidos no interior
da alma de cada cidadão brasileiro? Pensar isso, a meu ver, seria absurdo.
Entretanto, poderia significar que a democracia brasileira, ou a democracia de
qualquer natureza, ajuda a produzir um tipo particular de alma democrática.
Algo semelhante a isso pode ser visto no Antigo Regime na França, a antiga
sociedade aristocrática existente antes da revolução, que tendeu a produzir um
tipo muito diferente de alma, um tipo muito diferente de indivíduo. Cada regime
irá produzir um tipo distinto de indivíduo, e esse indivíduo virá a incorporar
os traços de caráter dominantes do regime particular. O restante da República
é dedicado a descrever o regime que irá produzir um tipo distintivo de caráter
humano e é exatamente por isso que o livro é uma utopia. Nunca houve um
regime na história que estivesse única e exclusivamente dedicado à finalidade de
produzir a mais rara e mais complexa espécie da humanidade, aquela chamada
de filósofo.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
Neste ponto, a partir da seção 372d (PLATÃO, 2001, p. 78), você pode
ouvir o seu irmão reprimindo-o, neste momento Gláucon retruca que parece que
Adimanto criou uma cidade apta somente para porcos, uma cidade de porcos.
Somos apenas de tal forma que apenas queremos nos alimentar por uma calha
comum? Não há nada mais para a política do que isso? E Gláucon diz: "Onde estão
os luxos? Onde estão os deleites", ele pergunta, "onde estão as coisas que compõem
uma cidade?" Aqui também, a cidade de Gláucon expressa seus próprios gostos
e sua própria alma. O belicoso Gláucon presidiria sobre o que Sócrates chama de
uma cidade “inchada de humores”, uma cidade febricitante, que institucionaliza
honras, competições e, acima de tudo, a guerra. Se Adimanto expressa a parte
apetitiva ou desiderativa da alma, Gláucon representa animosidade, o brio,
a qualidade que Platão chama de irascível, impetuosa, cujo termo em grego é
thumos ou thymos.
É aqui que Sócrates volta-se para a sua primeira e, talvez, até mesmo a sua
proposta mais controversa para o estabelecimento da cidade justa. Ele propõe, a
partir da seção 383a e continua por quase todo o Livro III, que a criação da cidade
justa só pode começar com o controle da música, da poesia e das artes. Vemos
aqui a imagem de Platão como um educador em ação. A primeira ordem do dia
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TÓPICO 2 | OS FILÓSOFOS E OS REIS: PLATÃO E A REPÚBLICA
Isso levanta uma questão que você deverá ponderar em seus momentos
de leitura, se a censura de Sócrates da poesia e das artes é uma indicação de seus
impulsos totalitários. Esta é a parte da República mais provável a chamar nossos
próprios instintos baseados no art. 5o da Constituição da República Federativa
do Brasil. "Quem é você, Sócrates," estamos inclinados a perguntar, "para nos
dizer o que podemos ler e ouvir?". Além disso, Sócrates não parece dizer que a
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
Kallipolis não terá poesia e música, o que ele aparenta estar dizendo é que estas
serão simplesmente poesias e músicas socráticas. Há outra questão que vocês,
acadêmicos, sem dúvida, vão querer discutir. Como é que seria essa tal música e
poesia purificada socraticamente? Como ela soaria, com o que se pareceria? Eu
não sei se tenho uma resposta precisa para isso, mas talvez a República como um
todo é, por si só, um pedaço dessa poesia socrática que irá substituir a homérica.
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TÓPICO 2 | OS FILÓSOFOS E OS REIS: PLATÃO E A REPÚBLICA
Essa história que Sócrates conta aqui não é uma sobre a razão controlando
as paixões, mas sim de um intenso conflito interno que Lêoncio sentia. Vemos
suas emoções conflitantes tanto para ver, quanto para não ver a sensação de que
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
ele deseja observar, todavia ele está em guerra consigo mesmo, sabendo que
ficará estupefato ao olhar aquela cena. É possível perceber algo constrangedor
no ato, pois ele sentiu vergonha. Um exemplo disto seria a emoção que todos nós
sentimos quando estamos dirigindo pela estrada e vemos um acidente de carro
ou passamos pelos carros acidentados e todo mundo reduz a velocidade, pois
todos querem ver. O que nós estamos esperando ver? Bem, queremos ver sangue,
queremos ver se há um corpo e quanto dano foi causado. É possível que todos
nós já estivemos nesta situação, onde sabemos que é uma vergonha ficar olhando
para isso, deveríamos apenas dirigir sem querer olhar. Poderíamos dizer tal como
Sócrates, "cuidarei da minha vida", no entanto, ao mesmo tempo nos sentimos
compelidos a olhar. Pense sobre isso.
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TÓPICO 2 | OS FILÓSOFOS E OS REIS: PLATÃO E A REPÚBLICA
61
UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
Em primeiro lugar, ele nos diz que às crianças deve ser ensinada a arte
da guerra. Este deve ser o início de sua formação, argumenta Sócrates, fazer as
crianças espectadores da guerra. As crianças serão levadas, ele parece sugerir,
às batalhas e aos locais onde a luta está acontecendo, para serem espectadores,
para que se tornem acostumadas e habituadas a ver a guerra e tudo o que nela
acontece. Além disso, não só é a expulsão da categoria dos guardiões a punição
pela covardia, mas Sócrates sugere que deveria haver recompensas eróticas para
aqueles que se destacam na bravura. Considere a seguinte proposta notável
na seção 468c (PLATÃO, 2001, p. 242), "e até acrescento à lei [da guerra], que,
enquanto estiverem [os guardiões] em campanha, não será lícito a ninguém
recusar-se a ser beijado por quem quiser,” continua Sócrates, “a fim de que, se
acaso estiver apaixonado por alguém, homem ou mulher, tenha mais ardor em
levar a palma [recompensa] no combate”. Isso quer dizer que, como recompensa
por sua bravura, coragem exibida, ao herói deve ser permitido beijar qualquer
um que ele gostar, enquanto eles estiveram em patrulha, macho ou fêmea. Um
leitor de Platão, que seja particularmente “puritano”, poderia comentar sobre
esta passagem e dizer, "essa é a única passagem em Platão que desejaria apagar",
pois, possivelmente a sua sensibilidade possa ser ofendida por essa noção. Por
outro lado, pensando mais objetivamente, podemos levantar a questão se isso
seria mesmo um poderoso incentivo para o recrutamento militar hoje. O que você
acha? Bem, pense nisso.
4.3 A JUSTIÇA
Finalmente, passamos do ensino direcionado aos guardiões à justiça. O
que é a justiça? É o que temos questionado, perguntando a nós mesmos ao longo
da leitura desta obra, a República, sendo continuamente provocados por Sócrates.
A ideia platônica de justiça concerne harmonia, afirma ele, tanto a harmonia na
cidade quanto a harmonia na alma. Aprendemos que estas duas são realmente
homólogas de alguma forma. A justiça é definida como aquilo que une a cidade.
Ele expressa isso de outra maneira, dizendo que ela é composta na medida em
que todos estiverem executando as funções para as quais são mais aptos. Sócrates
diz: “Mesmo os outros cidadãos devem ser encaminhados para a atividade para
que nasceram, e só para ela, a fim de que cada um, cuidando do que lhe diz
respeito, não seja múltiplo, mas uno, e deste modo, certamente, a cidade inteira
crescerá na unidade, e não na multiplicidade” (PLATÃO, 2001, p. 167, 423d).
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TÓPICO 2 | OS FILÓSOFOS E OS REIS: PLATÃO E A REPÚBLICA
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
vez contará com a classe guardiã da qual emerge a classe especial de filósofos-
reis que governará. Todavia, lembrem-se da vossa leitura, estes governarão por
meio de mentiras seletivas, mitos e outros tipos de enganos. Então, como pode
de fato haver uma cidade justa, uma cidade onde todo mundo está realizando
sua própria tarefa segundo a divisão do trabalho, mas onde poucos desses
membros terão almas platonicamente justas, almas dominadas por uma espécie
de autocontrole ou autotutela? Isto, certamente, não seria o caso dos membros da
classe dos artesãos.
Essa objeção é feita por Adimanto no início do Livro IV. "Que dirás então
em tua defesa, ó Sócrates”, diz Adimanto, “se alguém afirmar que não tornarás
estes homens nada felizes” (PLATÃO, 2001, p. 161, 419a). Adimanto receia que
Sócrates esteja sendo injusto com os auxiliares e os guardiões, dando-lhes todas
as responsabilidades, mas nenhuma das recompensas, nenhum dos prazeres
que parecem ser a recompensa das responsabilidades. Como pode um cidadão
da Kallipolis viver uma vida justa ou feliz se ele ou ela está privado da maioria
dos bens ou prazeres que buscamos? Sócrates oferece uma resposta bastante
inconvincente. Ao fundar a cidade, diz ele, nós não estamos olhando para a
felicidade excepcional de um único indivíduo ou um grupo, mas sim para a
cidade como um todo. Adimanto parece aceitar essa resposta, afirmando que
tinha esquecido que estavam considerando a felicidade e a justiça do todo. Mas
a sua pergunta ainda é uma que perdura e que Platão incluiu no diálogo por um
propósito.
Como você pode ter uma cidade platonicamente justa se a maioria das
pessoas nela, certamente a maioria das pessoas da classe auxiliar, é privada dos
prazeres e dos bens que desejamos? É uma questão que perdura e podemos
perguntar se Sócrates responde de fato com sucesso a essa pergunta. Ele silencia
Adimanto em semelhante medida como silenciou Trasímaco anteriormente. No
entanto, isso nem sempre quer dizer que suas objeções foram de fato respondidas.
4.4 O FILÓSOFO-REI
Isso nos conduz à terceira e última onda de paradoxos da Kallipolis, que é a
famosa proposta para o filósofo-rei, que vocês devem ter lido nas seções 471c-543c
da República. O que é Platão sem o filósofo-rei? O que é a República sem o filósofo-
rei? A menos que os filósofos governem como reis ou aqueles agora chamados
reis genuinamente filosofarem, não haverá descanso dos males para as cidades,
argumenta Sócrates. Ele apresenta esta proposta, um tanto estranha, e diz que
espera ser recebida com risos. Isso levou alguns leitores a sugerir que a proposta
de filósofos-reis é irônica. Que se pretende como uma espécie de piada para, em
muitos aspectos, desacreditar a ideia da cidade justa ou, pelo menos, para indicar
sua extrema implausibilidade.
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TÓPICO 2 | OS FILÓSOFOS E OS REIS: PLATÃO E A REPÚBLICA
Retomo alguma esperança de que esta minha obra venha um dia cair
nas mãos de um soberano, que a examinará por si próprio (pois é curta
e penso que é clara), sem a ajuda de algum intérprete interessado ou
invejoso, e que pelo exercício da plena soberania, protegendo o ensino
público desta obra, converterá esta verdade especulativa à utilidade
prática.
Portanto, você tem Hobbes falando sobre seu próprio livro, pelo menos
com uma esperança de que ele vai cair nas mãos de um soberano e que um dia,
sem intérpretes invejosos ou interessados em si mesmos, poderá tornar-se uma
fonte prática de orientação para a arte de governar. Aqui temos Hobbes tomando
a sugestão de Platão muito a sério, e vemos isso novamente na história da filosofia
política em pensadores como Rousseau, Marx, Nietzsche e Maquiavel, todos os
quais procuraram conquistar os ouvidos dos líderes políticos e converter as suas
ideias em algum tipo de prática.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
pela experiência, pelo juízo e por uma espécie de racionalidade prática. Será
que Platão simplesmente ignorava este fato? Não podemos e não deveríamos
acreditar nisso. Então a questão é: que tipo de unidade ele estava esperando entre
a filosofia e a política?
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TÓPICO 2 | OS FILÓSOFOS E OS REIS: PLATÃO E A REPÚBLICA
Essa imagem da vida não é familiar? Fazer qualquer coisa que você gosta,
fazer o que se quiser e chamar isso de doce, livre e abençoado em todos os seus
aspectos, parece ser o oposto do entendimento platônico da justiça com cada um
fazendo uma função especial ou cumprindo com um ofício especial.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
Vamos recordar agora da carta que Platão escreveu perto do fim de sua
vida, na Carta VII (PLATÃO, 2011), quando ele compara a democracia a uma
idade de ouro, pelo menos em comparação com o que se passou depois. Platão
ali parece concordar com a famosa frase citada por Winston Churchill em um
discurso proferido na House of Commons em 1947, em que ele diz: “Ninguém está
fingindo que a democracia seja perfeita ou onisciente. De fato, tem sido dito que a
democracia é a pior forma de governo, exceto todas as demais formas que foram
experimentadas de tempos em tempos” (2013, p. 574, tradução nossa). Então, qual
é a função da Kallipolis, esta cidade perfeita, justa e bela? Qual o seu propósito?
O filósofo-rei pode ser um objeto de esperança ou desejo, mas Platão percebe
que essa possibilidade não é realmente algo de se esperar. A cidade filosófica é
introduzida como uma metáfora para nos ajudar a entender a educação da alma.
A reforma política pode não estar ao alcance do nosso poder, mas o exercício de
autocontrole sempre está. A primeira responsabilidade do indivíduo que deseja
se envolver em reforma política é reformar-se. Toda reforma deve começar em
sua própria casa. Vemos isso muito nitidamente quando olhamos hoje para tantos
políticos e outras figuras públicas que fazem discursos querendo dar sermões e,
muitas vezes, nos exortando sobre como devemos agir e qual é o modo de vida
que devemos viver. Todavia, é comum logo descobrirmos algo muito vergonhoso
sobre eles. Possivelmente vocês sabem de alguns casos assim. O veredito de
Platão parece ser: "você precisa reformar a si mesmo primeiro, para que possa
então pensar em reformar os outros." Este é um ponto que é muitas vezes perdido
sobre a República, o fato de que esta obra é antes de tudo uma obra sobre a
reforma da alma.
Isso não quer dizer, em absoluto, que ela ensina a retirada das
responsabilidades políticas. A filosofia, e certamente a filosofia socrática, requer
amigos, camaradas, conversações. Não é algo que pode simplesmente ser
buscado de forma isolada. Sócrates entende que aqueles que querem reformar a
outros devem reformar-se, todavia muitos que tentam imitá-lo têm sido menos
cuidadosos. É fácil confundir, como muitas pessoas têm feito, a República com
uma receita para a tirania. O século XX, até o início do século vigente, está coberto
com os cadáveres daqueles que se estabeleceram como supostos “filósofos-reis”,
como Stálin, Mao e Hitler, para citar apenas alguns dos mais óbvios. Mas esses
homens não foram e não são filósofos. Suas profissões à justiça foram vazias,
foram profissões ou pretensões que apenas expressaram a sua própria vaidade e
a sua própria ambição.
Para Platão, a filosofia era, em primeira instância, uma terapia para as nossas
paixões de forma a estabelecer limites para os nossos desejos. Este é precisamente
o oposto do tirano, o qual Platão descreve como uma pessoa de desejos ilimitados
e que não possui o tipo mais rudimentar de governança, ou seja, de autocontrole.
A diferença entre o filósofo e o tirano ilustra duas concepções muito diferentes de
filosofia. Para alguns, a filosofia representa uma forma de libertação da confusão,
das paixões desordenadas e dos preconceitos, da incoerência. Mais uma vez,
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TÓPICO 2 | OS FILÓSOFOS E OS REIS: PLATÃO E A REPÚBLICA
uma terapia da alma que traz paz e contentamento e uma espécie de justiça. Para
outros, a filosofia é a fonte do desejo de dominar. É a base da tirania na grande era
das ideologias através da qual ainda estamos passando.
DICAS
DICAS
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RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você viu que:
• Adimanto representa mais a parte apetitiva, ele quer além de ver a justiça
louvada por si mesma, viver livremente e de forma independente.
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• A menos que os filósofos-reis governem ou aqueles agora chamados reis
genuinamente filosofarem, não haverá descanso dos males para as cidades.
• O veredito de Platão é que você deve reformar a si mesmo primeiro, para que
possa então pensar em reformar os outros.
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AUTOATIVIDADE
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UNIDADE 1
TÓPICO 3
1 INTRODUÇÃO
Neste tópico vamos analisar a obra A Política (1985, 2009) de Aristóteles
(384 AEC–322 AEC), cuja leitura deverá acompanhar o estudo desta parte
específica da nossa disciplina. Logo após introduzir o filósofo vamos nos ater,
nos Livros I-III de A Política, ao seu conceito de que o “homem é naturalmente
o animal político”. Isso nos levará a uma polêmica tese aristotélica, aquela da
naturalidade da escravatura.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
você está fazendo. Ele foi enviado por seu pai, Nicômaco, à “faculdade”. Ele foi
enviado a Atenas para estudar na Academia, a primeira universidade, fundada
e estabelecida por Platão. Ao contrário da maioria de vocês, Aristóteles não
passou quatro anos na “universidade”, na Academia platônica. Ele permaneceu
ligado a ela pelos próximos 20 anos de sua vida, até a morte de Platão. Após a
morte de Platão, talvez por causa da escolha dos sucessores para a Academia,
Aristóteles deixou Atenas, em primeiro lugar para a Ásia Menor e, em seguida,
retornou para sua casa em Macedônia, onde ele havia sido convocado pelo rei
Filipe II para estabelecer uma escola para os seus filhos e para a classe dominante
da Macedônia. Foi ali que Aristóteles conheceu e ensinou o filho de Filipe II, o
príncipe Alexandre (REALE, 1994).
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TÓPICO 3 | O REGIME MISTO E A NOMOCRACIA: ARISTÓTELES E A POLÍTICA
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
Pense nisso, nada mais repugnante para o governo do que o que Aristóteles
escreveu em sua Política.
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TÓPICO 3 | O REGIME MISTO E A NOMOCRACIA: ARISTÓTELES E A POLÍTICA
[político] em grau mais elevado que as abelhas e todos os outros animais que
vivem reunidos.” Por que se compreende claramente? “A natureza, dizemos”, ele
continua, “nada faz em vão. O homem só, entre todos os animais, tem o dom da
palavra”; logos é o termo que ele utiliza. O homem tem logos – razão ou palavra.
Ele segue afirmando que “a voz é o sinal da dor e do prazer, e é por isso que ela foi
também concedida aos outros animais. Estes chegam a experimentar sensações
de dor e de prazer, e a se fazer compreender uns aos outros. A palavra, porém”,
ele escreve:
Mas a razão ou o logos implica mais do que essa capacidade. Envolve, ainda,
para Aristóteles, curiosamente, o poder do amor. Nós amamos as pessoas com quem
estamos mais intimamente relacionados e que são mais imediatamente presentes
e visíveis para nós. De muitas maneiras, Aristóteles acredita que a nossa natureza
social e política não é o resultado do cálculo, como veremos em Hobbes, Locke e
outros teóricos do contrato social. Mas as coisas como o amor, afeto, amizade e
simpatia são as bases da vida política e estão enraizadas em nosso logos. É a fala
que permite uma partilha nestas qualidades que nos tornam plenamente humanos.
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TÓPICO 3 | O REGIME MISTO E A NOMOCRACIA: ARISTÓTELES E A POLÍTICA
Perceba que nas páginas iniciais do livro, Aristóteles não diz nada sobre
qual o tipo de cidade ou de regime que é o melhor. Tudo o que ele nos diz é que
somos o animal político por natureza e que, para alcançar nossos objetivos, será
necessário viver em uma polis. Mas que tipo de polis? Como deve ser governada?
Por um, poucos, muitos, ou alguma combinação destas três categorias? Neste
ponto, sabemos somente as características mais gerais do que é uma polis. Ela
deve ser pequena o suficiente para ser governada por uma linguagem comum de
justiça. Não é suficiente apenas falar as mesmas palavras, mas os cidadãos devem
ter certas experiências e memórias comuns que moldam a cidade e as pessoas.
79
UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
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TÓPICO 3 | O REGIME MISTO E A NOMOCRACIA: ARISTÓTELES E A POLÍTICA
DICAS
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
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TÓPICO 3 | O REGIME MISTO E A NOMOCRACIA: ARISTÓTELES E A POLÍTICA
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
Estes livros são difíceis de várias maneiras; eles são complicados. Eles não
são a parte favorita do livro para muitos. Todavia deveriam ser, porque nos dizem
mais precisamente, do que em qualquer outro lugar, como Aristóteles entende a
natureza da política. Afinal, isto é no que estamos de fato interessados.
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TÓPICO 3 | O REGIME MISTO E A NOMOCRACIA: ARISTÓTELES E A POLÍTICA
obrar do afeto, a palavra usada por ele aqui em grego é philia. "Tudo isso é obra
da amizade, pois a amizade é a motivação do convívio" (ARISTÓTELES, 1985,
p. 94, 1281a). A amizade é, portanto, a maior de todas as coisas boas para as
cidades, pois quando as pessoas sentem afeto umas pelas outras elas ficam menos
propensas a cair em conflito. Mas de qual tipo de amizade ele está falando? É o
tipo de amizade que você sente por seu melhor amigo, por seus pais ou irmãos?
Que tipo de amizade são esses laços de afeto que mantêm a cidade unida e que a
tornam em um regime?
Amizades políticas, para Aristóteles (1985), não são o tipo de coisa que
nos obriga a renunciar a nossas próprias identidades individuais, como ocorre
nas relações de amor passional. Em vez disso, elas pressupõem relações políticas,
não entre amantes ou até mesmo melhores amigos, mas entre parceiros cívicos
que de fato podem ser rivais intensamente competitivos um com o outro por
posições nos cargos políticos e por honra. A amizade cívica, philia cívica,
portanto, tem um elemento forte, algo como a rivalidade entre irmãos, em que
cada cidadão se esforça para superar os outros em prol do bem cívico. Muitos
de vocês têm irmãos e sabem um pouco sobre o que é a rivalidade entre irmãos.
Irmãos podem ser melhores dos amigos, mas isso não exclui fortes elementos de
competição, de rivalidade, e até mesmo de conflitos para atrair a atenção dos pais.
Os concidadãos, para Aristóteles, são como irmãos, cada um competindo um com
o outro para a estima, o afeto, o reconhecimento da cidade que serve para eles
como uma espécie de pai substituto. Essa é a maneira como Aristóteles entende
um corpo cívico, um corpo de cidadãos. De modo que quando ele diz que os
cidadãos são mantidos unidos por laços de afeto comum, significa algo muito
específico. O vínculo cívico é mais do que um agregado de mero autointeresse
ou cálculo racional, como seria defendido por alguém como Thomas Hobbes ou
pela maioria dos economistas modernos de hoje, que acreditam que a sociedade
pode ser entendida simplesmente como uma série de transações racionais entre
os compradores e os vendedores de diferentes produtos e que pode ser modelada
de acordo com algum tipo de Teoria dos Jogos. Aristóteles nega explicitamente
isso. Ele parecia saber algo sobre a teoria econômica moderna muito antes de a
economia moderna ter sido desenvolvida. Mas, novamente, quando Aristóteles
fala dos tipos de afeto que mantêm um corpo de cidadãos unidos, ele não quer
dizer qualquer coisa semelhante aos laços de intimidade pessoal que caracterizam
amizades privadas. O que ele quer dizer, quando fala sobre afeto cívico, é mais
parecido com os laços de lealdade, camaradagem que unem os membros de uma
equipe ou um clube, não meramente laços de mútua conveniência. Eles exigem
a lealdade, a confiança, o que os cientistas sociais hoje, às vezes, chamam de
“capital social”. As sociedades bem-sucedidas necessitam de capital social. A
confiança, este capital social, é uma relação básica, o componente básico de uma
democracia saudável. Aristóteles sabia disso, ele não usou uma palavra excêntrica
das ciências sociais como o termo “capital social”; ao contrário, ele falou sobre a
amizade cívica e philia.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
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TÓPICO 3 | O REGIME MISTO E A NOMOCRACIA: ARISTÓTELES E A POLÍTICA
A partir dessas duas definições que aparecem no Livro III, capítulo 4 e Livro
IV, capítulo 1, aprendemos uma série de coisas importantes. Em primeiro lugar,
um regime diz respeito à maneira pela qual o poder é dividido ou distribuído em
uma comunidade. Isto é o que Aristóteles (1985, p. 123) quer dizer quando ele
usa a frase, "o ordenamento de uma cidade quanto às suas diversas funções de
governo". Em outras palavras, cada regime será baseado em algum tipo de juízo
de como o poder deve ser distribuído a um só, aos poucos ou aos muitos, para
usar as categorias aristotélicas de governo político, ou alguma mistura dessas
três classes que constituem cada cidade. Em cada regime um desses grupos,
Aristóteles (1985) afirma, será a classe dominante, será o corpo dominante, o
corpo governante. E é o corpo governante, por sua vez, que define a natureza do
regime. Mas Aristóteles nos diz algo mais do que isso. A sua tipologia de regime,
sua divisão de poder no governo de um só, dos poucos e dos muitos se baseia não
apenas em como os poderes são distribuídos de uma forma puramente factual,
ele também distingue entre regimes que são bem ordenados, bem governados,
e aqueles que são corruptos. O que ele quer dizer em termos desta distinção?
A distinção de Aristóteles parece ser não apenas empírica, parece ter inerente a
ela um componente normativo, pois faz uma distinção ou um julgamento entre
os regimes bem ordenados e os regimes desviantes, os regimes corruptos. Por
87
UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
um lado, ele nos diz, os regimes bem ordenados são a monarquia, a aristocracia
e o que ele chama de politeia (governo constitucional), governo de um só, de
poucos, e de muitos, respectivamente. A versão corrupta desses, ele chama de
tirania, oligarquia e democracia, também governo de um só, de poucos, e de
muitos, respectivamente. Mas nós queremos saber quais critérios que ele utiliza
para distinguir entre as seis faces desta classificação de regimes? Como é que ele
distingue os regimes bem ordenados dos regimes corruptos?
Aqui é onde a análise de Aristóteles fica muito ardilosa por causa de sua
relutância em condenar totalmente qualquer regime. Se você fosse ler mais do
que o requerido especificamente para este Caderno de Estudos, se você lesse
todo Livro VI, por exemplo, você iria ver Aristóteles não só dar conselhos aos
democratas, às democracias e a outros regimes sobre como preservar-se, mas
veria uma longa descrição de como os tiranos devem moderar, ou como os tiranos
devem aprender a preservar e defender o seu próprio regime. É como se, ao viver
antes da “encarnação do mal” no século XX com o surgimento dos totalitarismos
modernos, Aristóteles pensasse que nenhum regime seria tão ruim, nenhum
regime seria tão desprovido de bondade que a sua preservação não valesse a
pena pelo menos algum esforço. Pensem um pouco nisso. Pelo contrário, em
muitos aspectos, ele fornece argumentos fundamentados para os pontos fortes e
fracos dos vários tipos diferentes de regime.
Ele faz uma observação semelhante no Livro III, capítulo 10, ao descrever
o processo de deliberação democrática como um meio superior de chegar a
decisões. Ele compara esse processo a um banquete.
Ele diz que, além disso, uma multidão, os muitos, é mais incorruptível
do que os poucos. Menos corruptível, menos suscetível ao suborno, você não
pode subornar um monte de gente da mesma forma que você faria com um único
indivíduo. Está correta a análise de Aristóteles, a sua visão sobre a democracia?
De fato, muitos chefs fazem um jantar melhor do que um único chef? Você prefere
jantar em um restaurante chique com um chef mestre ou prefere jantar com um
grupo de amigos, cada um fornecendo alguma parte do jantar? É um argumento
interessante, é aberto ao debate de qualquer maneira. Mas, ao mesmo tempo,
será que Aristóteles está levantando uma defesa da democracia, proporcionando
razão e muitos argumentos lógicos para regimes democráticos?
Esta extensa passagem que citamos é importante por uma série de razões,
deixe-nos tentar explicar. Em primeiro lugar, Aristóteles nos fornece informações
cruciais sobre o seu próprio pensamento a respeito das relações entre o impulso e
a razão, o thumos e razão, os determinantes do comportamento humano. O termo
crucial dessa passagem é novamente aquele termo platônico, irascibilidade ou
impetuosidade, que é tanto a causa do desejo humano para governar e ao mesmo
tempo uma causa de nosso desejo de resistir à dominação dos outros. É a única
fonte da assertividade e agressividade humana, bem como a fonte de resistência à
agressão dos outros. É um conceito psicológico muito importante para se entender
a política. E em segundo lugar, a passagem nos diz algo sobre alguns fatores
adicionais. Fatores extrapolíticos, como o clima e a geografia como componentes
para o desenvolvimento da sociedade política. Aparentemente, as qualidades,
como thumos e razão, thumos e deliberação, não estão distribuídas de forma igual
e universal. Ele distingue entre as pessoas do norte, que chama de europeus, como
pessoas com thumos, guerreiras, mas com carência de pensamento deliberativo e
as pessoas da Pérsia e do Egito, contendo formas altamente desenvolvidas do
conhecimento intelectual (sem dúvida pensando no desenvolvimento de coisas
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TÓPICO 3 | O REGIME MISTO E A NOMOCRACIA: ARISTÓTELES E A POLÍTICA
como a ciência e a matemática no Egito), mas com falta dessa qualidade de thumos,
que é tão importante para o autogoverno e para o autodomínio. Poderíamos dizer
que, ao menos em parte, essas coisas são determinadas por qualidades naturais,
geográficas ou climáticas.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
A facção democrática, ele nos diz, só porque acredita que todos são iguais
em alguns aspectos, crê que devem ser iguais em todos os aspectos. Os oligarcas,
ele nos diz, só porque acreditam que as pessoas não são iguais em alguns
aspectos, creem que devem ser desiguais em todos os aspectos. Para Aristóteles,
o sentido e a finalidade da ciência política é mediar as causas das facções, auxiliar
na mediação das causas das facções que levam à revolução e à guerra civil. A
arte e a ciência política de Aristóteles são uma forma de mediação política, de
como trazer a paz a situações de conflito. É sempre surpreendente o fato de que
muitas pessoas pensam que Aristóteles ignorou ou não teve nenhuma teoria do
conflito político, quando, ao que parece, o conflito é inerente à própria estrutura
do seu entendimento de um regime. E, novamente, não apenas o conflito entre
regimes rivais, mas conflitos embutidos na natureza do que poderíamos chamar
de política interna, classes diferentes em conflito com concepções diferentes de
justiça. Como pode o cientista político trazer a paz, trazer moderação a estas
situações profundamente assoladas pelo conflito?
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TÓPICO 3 | O REGIME MISTO E A NOMOCRACIA: ARISTÓTELES E A POLÍTICA
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
Caderno de Estudo. No livro Ética a Nicômaco, Livro V, capítulo 7, ele diz que
"com toda a evidência percebe-se que espécie de coisas, entre as que são capazes de
ser de outro modo, é por natureza e que espécie não o é, mas por lei e convenção,
admitindo-se que ambas sejam igualmente mutáveis” (ARISTÓTELES, 1984, p.
131, 1134b). Em outras palavras, o bem natural é mutável ou variável, assim
como o direito e a lei natural e o direito e lei convencional são mutáveis. E com
isso ele quer dizer que o direito natural é revelado não em proposições gerais
ou máximas universais, como, por exemplo, Immanuel Kant argumentaria
mais tarde, mas nas decisões concretas de uma comunidade ou de seus líderes
sobre o que é certo ou errado. O direito natural é mutável porque circunstâncias
diferentes vão requisitar diferentes tipos de decisões. Isso significa que para
Aristóteles não existem padrões, normas universalmente válidas de justiça ou de
direito? Será que a justiça, tal como o bom cidadão, é relativa ao regime? Isto não
seria cair no campo ilimitado de maquiavelismo que declara o certo e o errado
serem inteiramente relativos à circunstância, dependentes do contexto, é isto o
que Aristóteles está dizendo? Não, em absoluto.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
DICAS
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TÓPICO 3 | O REGIME MISTO E A NOMOCRACIA: ARISTÓTELES E A POLÍTICA
“é claro, antes de mais nada, que se a imposição da unificação for além de certo
ponto, já não haverá uma cidade”. Continua Aristóteles: “pois a cidade é por
natureza uma pluralidade; se sua unificação avançar demasiadamente, a cidade
será reduzida a uma família, e a família a uma individualidade, pois poderíamos
dizer que a família é mais una que a cidade, e o indivíduo mais uno que a família”
(1985, p. 36, 1261b). Além disso, Sócrates exige a propriedade comum dos
bens, pelo menos entre a classe auxiliar. Aristóteles, em resposta a esta posição
socrática, afirma que “a propriedade comum a maior número de donos recebe
atenção menor; os homens cuidam mais de seus bens exclusivos, e menos dos
que eles possuem em comum” (1985, p. 37). Ou seja, onde toda a propriedade é
mantida em comum, é mais propensa a sofrer de negligência comum. Ele entende
claramente as virtudes da propriedade privada e do comércio. Vemos, portanto,
no Livro II, Aristóteles oferecendo sua crítica às reivindicações para o tipo de
unificação excessiva da centralização, da concentração da propriedade.
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
Na Ética a Nicômaco (1984), Aristóteles nos fornece uma lista vívida das
características psicológicas e até físicas que tal pessoa deve possuir. No Livro 4,
capítulo 3 (p. 107-110, 1123b-1125a), ele diz que o magnânimo apresenta uma
espécie de distanciamento elevado das coisas mais ou menos triviais que pesam
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TÓPICO 3 | O REGIME MISTO E A NOMOCRACIA: ARISTÓTELES E A POLÍTICA
para a maioria de nós e nos conduzem para baixo. Ele é lento (prudente) para
agir, a menos que algo de grande importância estiver em jogo. Ele retribui o
favor com interesse, de modo a não estar sob quaisquer obrigações para com os
outros. O magnânimo, continua dizendo Aristóteles, fala o que pensa sem medo,
porque dissimular seria só para covardes. Ele pode eventualmente ferir os outros,
mas isso não é feito por crueldade deliberada. Além disso, Aristóteles nos diz
que essa pessoa irá possuir coisas belas, todavia improfícuas, sugerindo a posse
não só de riqueza, mas de uma espécie de senso estético cultivado. Como se isso
não bastasse, Aristóteles nos diz que os megalopsychos caminham lentamente,
porque a pressa é indigna, a sua voz é profunda e a entonação uniforme. Mais
importante ainda, pode-se dizer, é o que distingue o magnânimo, como uma
classe, dos filósofos. Isto é, um certo tipo de conhecimento ou inteligência prática.
O magnânimo pode não ter a inteligência especulativa de um Sócrates, mas ele
vai ter a qualidade da racionalidade prática, de julgamento prático necessário
para a administração dos negócios.
DICAS
Confira a obra Ética a Nicômaco, de Aristóteles (1984), no Livro VI, nas seções
1140a-1141b, para aprofundar sobre esta distinção do conhecimento.
99
UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
DICAS
Este ensaio foi traduzido para o português por Renato Aguiar na obra: BERLIN,
Isaiah. O Sentido de realidade: estudos das ideias e de sua história. Civilização Brasileira, 1999.
Entretanto a obra se encontra esgotada.
Também é possível ler o ensaio publicado em espanhol: BERLIN, Isaiah. El Juicio Político. Rev.
econ. inst., Bogotá, v. 3, n. 5, dez. 2001. Disponível em: <http://www.scielo.org.co/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0124-59962001000200005&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 25
jan. 2015.
Nele, ele pergunta: "O que é ter um bom juízo em política? O que é ser sábio
ou talentoso em política, ser um gênio político, ou ao menos ser politicamente
competente, saber como conseguir que se façam as coisas?” (BERLIN, 1999, p.
40, tradução nossa). Ou seja, ele pergunta qual é a qualidade intelectual que
estadistas bem-sucedidos possuem que distingue o seu conhecimento de todas
as outras formas de racionalidades e conhecimentos? Ele escreve como se segue:
A qualidade que eu estou tentando descrever é que a compreensão
especial da vida pública (ou neste contexto a vida privada) que
estadistas bem-sucedidos têm, se eles são perversos ou virtuosos.
Aquilo que Bismark teve (certamente um exemplo conspícuo, no
último século, de um político dotado com discernimento político
considerável), ou Talleyrand ou Franklin Roosevelt, ou, neste contexto,
homens como Cavour ou Disraeli, Gladstone ou Atatürk em comum
com os grandes escritores de romances psicológicos, e algo que está
100
TÓPICO 3 | O REGIME MISTO E A NOMOCRACIA: ARISTÓTELES E A POLÍTICA
sobre o mesmo. O que Aristóteles quis dizer com a política? Qual é o objetivo
ou a finalidade do estudo da política e o que é distintivo sobre a abordagem de
Aristóteles para o estudo de coisas políticas?
O que é que a ciência política estuda e qual é sua relação com as outras
disciplinas? O núcleo da ciência política, pelo menos de acordo com Aristóteles,
o que a distingue de todos os outros estudos é o conceito de regime, conceito de
politea. O regime, para ele, não é uma ramificação da atividade humana entre
outras, é o princípio fundamental ou princípio de ordem que faz com que todas
as outras sejam até mesmo possíveis. É por isso que Aristóteles não considera o
estudo da política como uma ciência social entre outras. É, antes, o que ele chama
de “ciência mestre” que determina a posição e a localização de todas as outras
dentro da comunidade política. O seu estudo do regime, ou seja, dos princípios
constitucionais subjacentes que governam cada ordem, é o que distingue
Aristóteles dos outros cientistas sociais. Quando você iniciou esta disciplina,
você pode ter pensado que estava apenas fazendo uma disciplina, entre tantas,
do curso de Filosofia. Você provavelmente não sabia que estava por estudar o que
Aristóteles chama de "a ciência mestre", a ciência das ciências.
102
TÓPICO 3 | O REGIME MISTO E A NOMOCRACIA: ARISTÓTELES E A POLÍTICA
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UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
104
TÓPICO 3 | O REGIME MISTO E A NOMOCRACIA: ARISTÓTELES E A POLÍTICA
Tendo em conta que a ciência política é uma ciência prática, uma ciência
do juízo, uma ciência que visa orientar a ação em circunstâncias e situações
específicas, é importante, Aristóteles finalmente sugere, que a linguagem da
ciência política expresse o “senso comum” ou a linguagem habitual dos atores
políticos. Não há praticamente qualquer jargão na Política de Aristóteles. A
filosofia ou ciência política de Aristóteles fica sempre dentro da órbita de fala
comum. Essa linguagem não tem a pretensão de ser cientificamente purgada
de ambiguidades, mas sim adota níveis de prova adequados para as pessoas
em debates, assembleias, nos tribunais e afins. A linguagem da ciência política
aristotélica é a linguagem do homem, o animal político. Você nunca vai ouvi-lo
falando em termos de variáveis dependentes ou independentes. Você nunca vai
ouvi-lo usando jargões técnicos, artificialmente importados à ciência da política
ou ao estudo da política.
105
UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
106
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você viu que:
• O homem é um animal político por natureza, pois possuímos o logos e somos capazes
de distinguir categorias morais importantes a partir das quais vivemos, discernindo-
as e constituindo assim a família e a polis, a cidade, que também é natural.
• Aristóteles apresenta tese a favor e contra a escravidão natural, e junto com ela
uma proposta de educação elitizada, de governo dos poucos.
• Cada regime político é uma resposta à pergunta sobre quem deve governar, e,
portanto, como o regime distribui poderes e cargos entre seu corpo de cidadãos.
É o corpo governante que define a natureza do regime.
• Cada estadista deve enfrentar situações novas e às vezes extremas que exigem
inventividade e ação criativa. E nas situações em que a própria sobrevivência da
comunidade pode estar em jogo, podemos chamar de situações emergenciais, os
estadistas conscienciosos devem ser capazes de responder de forma apropriada.
107
• O que é certo naturalmente, o que é certo por natureza, em tempos de paz, não
será o mesmo que é certo naturalmente, ou certo por natureza, em tempos de
guerra. O que é certo em situações normais não será o mesmo em situações de
emergência. O estadista no sentido aristotélico é aquele que procura voltar o
mais rápido e eficiente possível para a situação normal.
• Por filosofia ele parece sugerir não tanto a capacidade de pensamento abstrato
ou especulativo, mas sim uma espécie de educação liberal que ele considera
ser o domínio do que ele chama de megalopsychos, literalmente, a pessoa ou o
homem de grandeza na alma, costumeiramente traduzido por “magnânimo”.
• Primeiro, o cientista político, o estadista, diz ele, deve ter uma compreensão do
melhor regime em face de determinadas circunstâncias favoráveis. Em segundo
lugar, ele nos diz, o cientista político deve considerar o tipo de regime que será
o melhor em circunstâncias menos ideais. Em terceiro lugar, o cientista político
deve ter algum conhecimento de como tornar qualquer regime, não importa o
quão imperfeito seja, mais estável e coerente. Finalmente, o cientista político deve
saber algo sobre as técnicas de reforma e persuasão, a área da retórica política
pela qual regimes existentes podem ser levados para mais perto do melhor.
108
AUTOATIVIDADE
109
110
UNIDADE 1
TÓPICO 4
1 INTRODUÇÃO
Neste tópico nos concentraremos na análise da obra O Príncipe (2001b,
2009a), de Nicolau Maquiavel (1469-1527). Lembre-se de sempre acompanhar sua
leitura do Caderno de Estudos com a obra referida que será analisada.
111
UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
Primeiro vamos falar sobre quem era Maquiavel e como podemos ler O
Príncipe. Maquiavel era um florentino, e saber disso significa praticamente tudo
o que você precisa saber sobre ele. Estamos exagerando, mas fazemos isso para
enfatizar um ponto. Florença era uma república, a República Florentina, uma
cidade-estado. Maquiavel passou boa parte de sua vida adulta a serviço desta
república. Vivendo em Florença, no centro e no auge da Renascença, Maquiavel
quis fazer pela política o que seus contemporâneos, como Leonardo da Vinci e
Michelangelo, tinham feito pela arte e pela escultura. Em outras palavras, ele
esperava reviver de algum modo o espírito da antiguidade, mas modificá-lo sob
as luzes de sua própria experiência. Como ele diz na dedicatória de seu livro mais
famoso a Lorenzo de Médici, ele escreve que este livro O Príncipe foi "adquirido
de uma longa experiência dos empreendimentos modernos e do estudo contínuo
da história antiga” (2009a, p. 38). Em Maquiavel temos o que passamos a chamar
de "modernidade", em sua primeira e mais poderosa expressão.
Maquiavel não era um florentino comum. Ele cresceu sob o domínio dos
Médici. Ou seja, a primeira família de Florença, e viveu para vê-los depostos
por um frade dominicano, Jerônimo Savonarola. Savonarola tentou impor uma
espécie de teocracia em Florença, uma espécie de república cristã da virtude. Mas
os florentinos, sendo o que eram, rejeitaram essa ideia e o governo de Savonarola
foi de curta duração. Em seu lugar, uma república foi restabelecida onde
Maquiavel ocupou o cargo de secretário na segunda chancelaria, uma espécie de
posto diplomático que ocupou por 14 anos a partir de 1498 a 1512. Após a queda
da república e o retorno dos Médici a um governo principesco, Maquiavel foi
exilado da cidade e da política a uma pequena propriedade rural que ele possuía
na periferia da cidade. Você até pode visitá-la hoje. Foi ali, a partir do lugar de
exílio político, que ele escreveu suas principais obras - O Príncipe, e Comentários
sobre a primeira década de Tito Lívio (também conhecido como Discursos), e
A Arte da Guerra. Foi a partir do exílio, também, que ele escreveu volumosas
cartas aos amigos buscando conhecimento sobre política. Maquiavel era um tipo
de “viciado” em política, em coisas que aconteciam na Itália e em outros lugares.
Quando anoitece, volto para casa e vou para minha sala de leitura.
Já na porta começo a despir as roupas do dia, suadas e empoeiradas;
envergo o traje a rigor e, assim, decorosamente vestido, entro na
agradável convivência das grandes personagens do passado. Acolhido
generosamente, ingiro o único alimento que me convém, aquele para
o qual nasci. Não sinto timidez ao dialogar com eles, pergunto a razão
de seus atos; em sua humanidade, respondem-me. Por quatro horas,
não sinto tédio, esqueço-me das mágoas, não temo a penúria, a morte
não me apavora. Deixo-me absorver completamente por eles. E, como
disse Dante, não existe ciência sem a memória que retém o que escutou;
tenho anotado o que assimilei nessas conversações, juntei um cabedal,
e elaborei uma pequena obra, De Principatibus, onde investigo
112
TÓPICO 4 | NOVOS MÉTODOS E SISTEMAS: MAQUIAVEL E O PRÍNCIPE
Portanto, nesta carta, Maquiavel nos oferece uma noção da seriedade com
que ele se aproximou de seu tema de estudo, como ele estudou e como foi que
passou a escrever. Deixe-nos apenas dizer, já de início, que O Príncipe é um livro
“dissimulado”. O que mais podemos esperar do homem cujo nome se tornou
sinônimo de dissimulação, astúcia e ardileza? O Príncipe é uma obra que todos já
devem ter ouvido falar, e talvez tenham algum preconceito sobre ela. O nome de
Maquiavel está em toda parte e é aplicado a quase tudo, desde questões de gestão
de empresas até à moda masculina. Todo mundo sabe ou pensa que sabe do
que se trata a sua obra. Seu nome, de novo, é sinônimo de dissimulação, traição,
astúcia, engano. Basta olhar para o famoso retrato de Maquiavel, pintado por
Santi di Tito (1536-1603). Olhe bem para o seu rosto. Olhe para o seu sorriso, se
parece mais com um sorriso maroto. Ele parece estar dizendo: "Eu sei de algo que
você não sabe." A dificuldade com a leitura de Maquiavel hoje é que todos nós
pensamos que já sabemos o que ele sabe, e isso é falso.
113
UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
114
TÓPICO 4 | NOVOS MÉTODOS E SISTEMAS: MAQUIAVEL E O PRÍNCIPE
DICAS
115
UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
Considere agora a estrutura dos três primeiros capítulos. Por exemplo, ele
diz na sentença inicial do capítulo um: "Todos os Estados, todos os domínios que
tiveram e têm poder sobre os homens foram e são ou repúblicas ou principados”
(MAQUIAVEL, 2001b, p. 3). Tendo distinguido dois, apenas dois tipos de regimes,
repúblicas e principados, como os únicos que merecem ser mencionados, ele
passa a distinguir dois tipos de principados. Há os principados hereditários,
como aquele atualmente regido por Lorenzo, que adquirem a sua autoridade
através da tradição e das linhagens hereditárias. Em seguida, ele diz que há novos
príncipes e novos principados. Maquiavel, afirma que o seu livro irá lidar apenas
com os principados, deixando a discussão das repúblicas para outro lugar, o que
se presume que seria nos Comentários de Tito Lívio, que ele já estava escrevendo
naquele período. Mas, Maquiavel passa a dizer ao leitor que o assunto exclusivo
deste livro será o “novo príncipe”. Em outras palavras, não sobre o Lorenzo,
mas precisamente príncipes que já alcançaram ou irão alcançar a sua autoridade
através de sua própria astúcia, a sua própria força, ou a sua própria virtù, para
usar o famoso termo maquiavélico do qual falaremos mais adiante.
Em outras palavras, mire bem alto sua visão, sabendo que você, mesmo
assim, ou quem sabe, somente assim, ficará aquém do objetivo.
116
TÓPICO 4 | NOVOS MÉTODOS E SISTEMAS: MAQUIAVEL E O PRÍNCIPE
117
UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
Maquiavel não rejeita a ideia do bem, ao contrário, ele redefine-a. Ele está
continuamente falando, em praticamente todas as páginas do livro, a linguagem
da virtude. Sua palavra "virtù", uma palavra que mantém a palavra latina “vir”, que
significa "homem", talvez seja mais bem traduzida pela nossa palavra, "virilidade",
no sentido de brio, dignidade e coragem. O que distingue o uso de Maquiavel
desta linguagem de virtù, virilidade, é que ele busca localizá-la em certas situações
extremas, como as fundações políticas, as mudanças de regimes, as guerras, tanto
as nacionais como as estrangeiras. O que distingue Maquiavel de seus antecessores
é, portanto, a sua tentativa de apreender a situação extraordinária, a situação
extrema, mais uma vez, os extremos da fundação política, as conspirações, as
guerras, os golpes de Estado, como a situação normal e, em seguida, fazer com
que a moralidade se ajuste a esses extremos. Seus exemplos são normalmente
118
TÓPICO 4 | NOVOS MÉTODOS E SISTEMAS: MAQUIAVEL E O PRÍNCIPE
119
UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
mesmo que se possa esperar vir bons resultados. No entanto, Maquiavel rompe
com estas regras sobre não dar maus exemplos. A virtude não está associada
com as concepções clássicas de moderação, de justiça, de autocontrole sobre as
virtudes cristãs da fé, esperança e caridade. Virtude significa para ele uma espécie
de autoafirmação viril, de audácia, de implacabilidade, de dependência nas
próprias armas e de um uso calculado de crueldade para atingir os seus próprios
fins. O modelo de virtù maquiavélico é o estadista da Renascença, Cesare Borgia.
É até muito interessante que Orson Welles interpretou outro filme, intitulado O
Favorito dos Borgias (1949), que é sobre a história de Cesare Borgia.
120
TÓPICO 4 | NOVOS MÉTODOS E SISTEMAS: MAQUIAVEL E O PRÍNCIPE
deve ser uma ética de audácia, pois “é melhor ser impetuoso do que tímido”.
Neste mesmo trecho ele usa uma imagem polêmica, mas interessante, “a Sorte
[fortuna] é uma mulher e, se quiseres conquistá-la, precisas enfrentá-la e subjugá-
la. Verás que ela permitirá ser mais facilmente conquistada pelos audaciosos e
impetuosos do que pelos que agem friamente” (MAQUIAVEL, 2009a, p. 220-221).
Portanto, o príncipe deve saber como conquistar a sorte, a fortuna, tal como se
conquista uma mulher, utilizando a política de força, impetuosidade e audácia.
Esta é a linguagem de Maquiavel. A virtude está associada com a busca pela
glória mundana, com ambição, com o desejo de alcançar o sucesso, e é sobre isso
que vamos discorrer mais longamente nas próximas páginas deste Caderno de
Estudos. Vamos falar sobre um assunto que na literatura política e filosófica é
chamado de o problema das "mãos sujas". A questão de que se você quiser entrar
no jogo político, você deve estar preparado para sujar as mãos. O que Maquiavel
quer dizer com isso, como ele chega a este problema?
121
UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
da nossa época, parece-me que a razão é a mesma que explica porque hoje os
homens são menos robustos”, mais ousados, “– o que se relaciona, ao meu juízo,
com a diferença entre a nossa educação e a dos antigos, e a diferença, igualmente
grande, entre a nossa religião e a dos antigos” (1994, p. 199).
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TÓPICO 4 | NOVOS MÉTODOS E SISTEMAS: MAQUIAVEL E O PRÍNCIPE
escreve Lívio, determinou que Roma, que tinha sido originalmente estabelecida
através da força das armas, deveria ser restabelecida através da justiça, das leis
e das observâncias adequadas, em outras palavras, a religião. Para completar a
fundação da cidade foi necessário estabelecer seus deuses e assegurar o devido
respeito à lei. “Numa” era o portador dos códigos jurídicos romanos, respeitando
a religião, as observâncias adequadas e afins.
123
UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
124
TÓPICO 4 | NOVOS MÉTODOS E SISTEMAS: MAQUIAVEL E O PRÍNCIPE
o assassinato, então saia do caminho, então isso não é para você. Não tente impor,
não procure impor a sua própria inocência magnânima, às vezes chamada de
justiça, sobre as exigências da arte de governar, porque só te levará à ruína.
Portanto, se você não pode fazer coisas espinhosas, se você não pode fazer coisas
desagradáveis, Maquiavel diz que deves ficar de fora da política e não tentar
impor a sua moralidade de princípios elevados ao Estado.
125
UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
126
TÓPICO 4 | NOVOS MÉTODOS E SISTEMAS: MAQUIAVEL E O PRÍNCIPE
construir sua base de poder sobre o povo, em vez de sobre os nobres ou grandes.
Por causa da ambição pelo poder, os nobres sempre serão uma ameaça para o
príncipe e, numa interessante inversão da concepção platônica e aristotélica da
política, os nobres passam a ser vistos como os mais inconstantes e imprevisíveis
e o povo passa a ser visto como mais constante e confiável. Lembre-se da visão
platônica e aristotélica da política, especificamente sobre a democracia, o governo
do povo, o demos, que sempre foi criticado por ser inconstante e instável, sujeito
ao capricho e à paixão. Aqui, Maquiavel nos diz que o que ocorre é o inverso.
“O pior”, escreve ele, “que um príncipe pode esperar de um povo hostil é ser
abandonado por ele; mas dos grandes, quando inimigos, deve temer não só de
ser abandonado, como também que o ataquem” (MAQUIAVEL, 2001b, p. 44). Ou
seja, os grandi são mais perigosos e inconstantes.
127
UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
sobre Maquiavel, "ele ter sido pela liberdade". E ele comenta que O Príncipe é
uma espécie de sátira sobre o domínio principesco. Mas, se você não acredita em
Espinosa, se você pensa que a autoridade dele não é suficiente, considere alguém
que você deverá ler para esta disciplina, Jean-Jacques Rousseau, na obra O
Contrato Social, em uma nota acrescentada por ele na edição de 1782: "Maquiavel
era um homem honrado e um bom cidadão," Rousseau diz, "mas, ligado à casa
dos Médicis, via-se obrigado, diante da opressão de sua pátria, a dissimular seu
amor pela liberdade” (1996, p. 89, nota de rodapé). Então, O Príncipe teria sido
escrito de uma forma dissimulada, o verdadeiro ensinamento do livro seria o
amor à liberdade e, presumivelmente, à liberdade do povo, algo semelhante
ao que o próprio Rousseau falou. Talvez esses comentários vão longe demais.
Talvez eles sejam exageros e, possivelmente até certo ponto eles são. Todavia, é
revelador que ambos esses sérios leitores de Maquiavel o tomaram como sendo
um apóstolo da liberdade. Espinosa, considerando o livro de Maquiavel como
sendo um aviso para o povo sobre os perigos do domínio principesco. Rousseau,
acreditando que ele tinha deliberadamente dissimulado seu amor pela liberdade,
porque ele teve que apelar à natureza tirânica da família Médici. Em ambos os
casos, eles consideram-no como sub-repticiamente tomando o lado do povo
contra os nobres.
O que quer que façamos com esses exemplos, Maquiavel parece estar
desafiando aspectos importantes das concepções clássicas que descrevemos até
este momento. A república clássica, a antiga república de Platão e Aristóteles,
era governada pela nobreza, magnânimos possuidores de riqueza e de ócio, que
eram, portanto, capazes de construir um juízo político coerente e seriam eles que
dominariam. Enquanto no Estado de Maquiavel é o povo que será o poder social
e político dominante.
128
TÓPICO 4 | NOVOS MÉTODOS E SISTEMAS: MAQUIAVEL E O PRÍNCIPE
do passado eram aqueles como Moisés, que trouxe as tábuas da lei e preparou
o povo para o autogoverno. É coerente e adequado que Maquiavel conclua O
Príncipe, no capítulo vinte e seis, com um apelo patriótico aos seus compatriotas
para emanciparem-se e libertarem a Itália dos invasores estrangeiros.
129
UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
DICAS
130
TÓPICO 4 | NOVOS MÉTODOS E SISTEMAS: MAQUIAVEL E O PRÍNCIPE
foram estabelecidos por meios moralmente questionáveis. Será que nos tornamos
ou sempre fomos uma república de Maquiavel, o desejo de Maquiavel? Pense
nisso quando estiver fazendo a sua leitura e suas atividades acadêmicas.
131
UNIDADE 1 | A FILOSOFIA POLÍTICA: PLATÃO, ARISTÓTELES E MAQUIAVEL
LEITURA COMPLEMENTAR
Autoridade e liberdade
132
TÓPICO 4 | NOVOS MÉTODOS E SISTEMAS: MAQUIAVEL E O PRÍNCIPE
Em suma, como ter ordem social e política sem tirania? Como estabelecer
ordem, não “de cima”, mas “de baixo”? Em termos bem simples, é este o problema
que está no cerne do que hoje chamamos filosofia política liberal. O conceito que
os liberais muitas vezes usam para reforçar a necessidade de ordem com exigência
de que venha “de cima”, é o de autoridade. Como liberais, obedecemos ao Estado
não por estar fundamentado racionalmente e ser moralmente perfeito, não por
incorporar a palavra de Deus, não por tender a usar a força contra nós, caso não
o fizermos, mas porque nós autorizamos o Estado a nos dominar e a manter a
ordem. O Estado, porém, está autorizado somente sob condição de proteger nossa
liberdade, de forma que jamais voltemos a estar sujeitos aos regimes tirânicos da
Europa feudal [...] acertar o equilíbrio entre autoridade e liberdade não é questão
óbvia, nem incontroversa.
133
RESUMO DO TÓPICO 4
Neste tópico, você viu que:
• Ele tanto substitui quanto reconfigura, de acordo com seu próprio entendimento,
elementos do império cristão e da república romana, para criar uma nova forma de
organização política distintamente sua. O que podemos chamar hoje de o Estado
moderno. Maquiavel é o fundador, o descobridor, o inventor do Estado moderno.
134
• O que distingue Maquiavel de seus antecessores é a sua tentativa de apreender
a situação extraordinária, a situação extrema, os extremos da fundação política,
as conspirações, as guerras, os golpes de Estado, como a situação normal e, em
seguida, fazer com que a moralidade se ajuste a esses extremos.
• A religião, para ele, não deve ser avaliada pelo seu conteúdo de verdade, mas
por suas consequências para a sociedade. A religião teve que trazer um efeito
de abrandamento contra o caráter violento e bestial dos primeiros romanos.
Mas para nós, nos dias atuais, Maquiavel sugere, a religião tem de servir ao
objetivo oposto. Ela deve incutir algo como um espírito de luta nas pessoas que
perderam o seu instinto para resistir a invasões de sua liberdade.
• O príncipe tem de usar a religião para encorajar seus súditos a confiar em suas
próprias armas, em vez de promessas divinas.
135
• Há duas grandes disposições psicológicas políticas, o desejo popular de não
ser oprimido e a disposição do que ele chama os “grandes” para comandar e
oprimir. Maquiavel usa este termo psicológico, humores, para designar duas
classes de pessoas nas quais toda sociedade se baseia.
• Cada Estado é dividido em duas classes que expressam essas duas qualidades,
essas duas qualidades psicológicas, os grandi, os ricos e poderosos que desejam
dominar, e o popolo, as pessoas comuns que desejam apenas serem deixadas em
paz, que desejam não serem governadas nem governar.
• O príncipe deve procurar construir sua base de poder sobre o povo, em vez
de sobre os nobres ou grandes. Por causa da ambição pelo poder, os nobres
sempre serão uma ameaça para o príncipe e, numa interessante inversão da
concepção platônica e aristotélica da política, os nobres passam a ser vistos
como os mais inconstantes e imprevisíveis e o povo passa a ser visto como mais
constante e confiável.
136
AUTOATIVIDADE
137
138
UNIDADE 2
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Esta unidade tem por objetivos:
PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos e no final de cada um deles você
encontrará atividades que reforçarão o seu aprendizado.
139
140
UNIDADE 2
TÓPICO 1
1 INTRODUÇÃO
Neste tópico vamos nos concentrar na obra fundamental de Thomas
Hobbes, o Leviatã (2003). Lembrando que a leitura desta unidade do Caderno de
Estudos deve ser acompanhada pela leitura da obra referida que será analisada.
141
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
Por outro lado, você tem que considerar também o seguinte: Hobbes insiste
na igualdade fundamental dos seres humanos, que, segundo ele, são dotados de
certos direitos naturais e inalienáveis. Ele mantém que o Estado é um produto
de uma aliança ou um pacto, uma espécie de um contrato entre os indivíduos, e
que o soberano deve sua autoridade à vontade ou ao consentimento daqueles a
quem ele governa e, finalmente, que o soberano é apenas autorizado a proteger
os interesses dos governados pela manutenção da paz e da segurança civil. A
partir deste ponto de vista, parece que Hobbes ajuda a estabelecer a linguagem
de uma oposição liberal ao absolutismo. E esse paradoxo foi notado até mesmo
na época de Hobbes. Ele era um defensor da realeza e do poder do rei ou era um
oponente da realeza? Em muitos aspectos, com certeza, Hobbes foi um produto
142
TÓPICO 1 | THOMAS HOBBES E O LEVIATÃ: O ESTADO SOBERANO
do seu tempo, e o que mais poderia ser? Mas Hobbes viveu numa época em que
o sistema moderno dos Estados europeus, assim como nós os entendemos hoje,
estava apenas começando a emergir.
Quem foi Hobbes? Hobbes nasceu em 1588, ano em que as forças navais
inglesas impediram a invasão da famosa Armada Espanhola em território
britânico. Ele cresceu nos últimos anos da era elisabetana, era apenas um menino
quando as peças mais famosas de Shakespeare foram interpretadas pela primeira
vez. Hobbes, como muitos de vocês, era um estudante talentoso, e foi à faculdade.
Seu pai, que era um pastor local do sudoeste da Inglaterra, enviou-o para Oxford
quando ele tinha 14 anos de idade. Depois de formado, ele passou a trabalhar
para uma família aristocrática, a família Cavendish, e se tornou o professor
particular de seu filho. Seu primeiro livro foi uma tradução da História da Guerra
do Peloponeso, de Tucídides, o grande historiador grego que mencionamos na
Unidade 1 quando falamos de Platão, que ele completou em 1629.
143
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
63 anos quando foi publicado. Passou o resto de sua longa vida trabalhando em
problemas científicos e políticos. Ele escreveu uma história das guerras civis da
Inglaterra, chamada de Behemoth ou Longo Parlamento (2001), que permanece um
clássico da análise das causas do conflito social. Como se isso não bastasse, perto
do fim de sua vida ele voltou para os seus estudos dos clássicos, traduzindo toda
a Ilíada e a Odisseia de Homero. Ele morreu em 1679 com a idade de 91 anos.
Dos vários retratos e descrições de Hobbes, podemos dizer que ele era um
homem de considerável charme.
Isso de fato significava ser muito alto, no século XVII. Aubrey continua:
“Ele tinha lido muito, se considerarmos sua longa vida, mas sua contemplação era
muito mais do que a sua leitura. Ele costumava dizer que se ele tivesse lido tanto
quanto os outros homens, ele saberia nada mais do que sabem os outros homens”
(AUBREY, 1898, p. 349, tradução nossa). Se ele tivesse lido tanto quanto, ele
saberia tão pouco. Essa descrição de sua postura nos proporciona um vislumbre
144
TÓPICO 1 | THOMAS HOBBES E O LEVIATÃ: O ESTADO SOBERANO
DICAS
145
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
ele pensava que era a sua novidade? O que era de fato inovador e revolucionário
acerca da ciência política de Hobbes? Hobbes claramente via a si mesmo, em
muitos aspectos, como o fundador de uma ciência política seguindo o modelo
dos primeiros fundadores da revolução científica. Fundadores como Galileu,
o qual Hobbes conhecera pessoalmente, assim como William Harvey e René
Descartes e um punhado de outros que eram parte do que nós chamamos de
revolucionários científicos modernos. Tal como esses revolucionários que tinham
“derrubado” o paradigma aristotélico na ciência natural, Hobbes levantou-se
para minar a autoridade de Aristóteles na ciência civil, na ciência/filosofia política
e moral. Hobbes estabeleceu-se como o grande antiaristotélico, a grande oposição
a Aristóteles.
Para Aristóteles, o ser humano tem uma finalidade ou um telos, que é viver uma
vida em comunidade com outros em prol da prosperidade humana. Mas, para
Hobbes, entramos em sociedade, não a fim de cumprir ou aperfeiçoar a nossa
natureza racional, mas sim para evitar o mal maior, ou seja, a morte ou o medo da
morte, nas mãos de outros. A política, para ele, é menos uma questão de decisões
prudenciais de melhor e pior, do que é uma decisão existencial de escolher a vida
ou a morte. Para Hobbes, tal como para Maquiavel, é a situação extrema da vida
e da morte, do caos e da guerra, como norma para a política e para a tomada de
decisão política, que serve como alternativa fundamental ou como um desafio a
Aristóteles.
147
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
Hobbes cria este Órgão Político chamado soberano. Agora, preste atenção na
linguagem utilizada na sentença que acabamos de citar da introdução: "Porque
pela arte", mais uma vez, "é criado aquele grande LEVIATÃ". Quando Hobbes
utiliza o termo "arte" aqui, é profundamente revelador de seu propósito. Para
Aristóteles, a arte pressupõe a natureza. Em outras palavras, a natureza precede a
arte. A natureza fornece os padrões, os materiais, os modelos, para todas as artes
posteriores. É por isso que a cidade é por natureza, o homem é por natureza. A
natureza, portanto, é aquela que fornece o padrão. Ela precede a arte e o artifício
humano ou o fazer humano. Todavia, para Hobbes, a arte não imita tanto a
natureza, bem mais do que isso, a arte pode criar um novo tipo de natureza, uma
natureza artificial, uma pessoa artificial. É neste sentido que o grande Leviatã
é criado através da arte. Através da arte devidamente compreendida, como a
criação, a engenhosidade e a destreza humana, poderemos começar não apenas a
imitar, mas poderemos transformar a natureza, torná-la em algo de nossa própria
escolha.
O termo "arte", nessa passagem, também não é para ser entendido como a
antítese da ciência, como quando falamos das artes e das ciências. Em vez disso, a
ciência é a mais elevada forma de arte. A ciência é o tipo de criação humana mais
elevada. A ciência, ou o que Hobbes simplesmente chama pelo nome de "razão",
é a expressão mais completa da destreza, da arte humana. "A razão", diz ele no
capítulo cinco, "não nasce conosco como os sentidos e a memória, nem é adquirida
apenas pela experiência", ele continua, "pelo contrário, é alcançada com esforço,
primeiro por meio de uma adequada imposição de nomes, e em segundo lugar
obtendo-se um método bom e ordenado” (HOBBES, 2003, p. 43). Pondere um
pouco isso. "Razão", ele usa como sinônimo de outros termos, como a ciência ou a
arte, ela não nasce simplesmente com a gente. Não é simplesmente uma herança
genética, nem é simplesmente o produto da experiência, o que Hobbes chama
pelo nome de "prudência". Mas, em vez disso, a razão é alcançada pelo esforço,
pelo trabalho e é desenvolvida, primeiro, pela imposição de nomes às coisas,
atribuir nomes corretos às coisas e, segundo, pela obtenção de um método de
estudo bom e ordenado. A razão, portanto, consiste na imposição de um método
para a conquista da natureza. “Ciência”, Hobbes nos diz, é “o conhecimento das
consequências, e a dependência de um fato em relação a outro”, ele continua,
“quando vemos como algo acontece, devido a que causas, e de que maneira,
quando causas semelhantes estiverem sob nosso poder saberemos como fazê-
las produzir os mesmos efeitos” (HOBBES, 2003, p. 44). A razão, a ciência e a
arte são as capacidades de transformar a natureza pela imposição de um método
que irá produzir efeitos semelhantes após consequências semelhantes. Há, em
outras palavras, uma visão radicalmente transformadora, através de toda a obra
de Hobbes, sobre a razão, o conhecimento, a ciência, a ciência política, a ciência
civil. A razão não é meramente uma simples observação, mas ao contrário, é o
criar, o produzir, ou como ele diz, fazer causas semelhantes produzir os efeitos
desejados.
148
TÓPICO 1 | THOMAS HOBBES E O LEVIATÃ: O ESTADO SOBERANO
Nós podemos ter uma ciência da política, Hobbes acredita. Podemos ter
uma ciência civil, porque a política é uma questão do criar humano, do fazer
humano, dos acontecimentos humanos. Nós podemos conhecer o mundo
político. Podemos criar uma ciência da política, porque somos nós que fazemos
isto. O objetivo de Hobbes aqui é libertar o conhecimento, libertar a ciência da
subserviência ou dependência da natureza ou do acaso, da fortuna. Libertar a
ciência transformando-a em uma ferramenta para refazer a natureza, fazendo
com que esta atenda as nossas necessidades. A arte, especialmente a arte política,
é uma questão de reordenar a natureza, até mesmo a natureza humana. Primeiro,
de acordo com Hobbes, resolvendo-a em suas unidades mais elementares, e
em seguida, reconstruindo-a para que ela produza os resultados desejados, tal
como um físico faria em um laboratório. Esta é a resposta de Hobbes à famosa
convocação de Maquiavel, no capítulo 25 de O Príncipe (2001b), para dominar a
fortuna, dominar o acaso ou a sorte. Mas podemos dizer que Hobbes vai além de
Maquiavel. Maquiavel disse, no capítulo referido acima, que o príncipe, se tiver
sorte, vai dominar a fortuna cerca de metade do tempo, apenas cerca de cinquenta
por cento do tempo. O resto da ação humana, o resto da arte de governar, será
realmente deixado ao acaso, à sorte, à contingência, às circunstâncias. No entanto,
Hobbes acredita que armado com o método adequado, com a arte apropriada
ou a doutrina científica, poderemos eventualmente tornar-nos os senhores e
os possessores da natureza. Usamos esse termo "senhores e possessores da
natureza", um termo não utilizado por Hobbes, mas por Descartes, da sexta
parte do Discurso sobre o Método (DESCARTES, 1996, p. 69), porque expressa
perfeitamente as aspirações de Hobbes, não só para criar uma ciência da política,
mas para criar uma espécie de comunidade política, uma commonwealth, imortal
fundamentada na ciência, na ciência civil apropriada, sendo, portanto, imune
à flutuação, decadência, guerra e conflito, o que todas as outras sociedades
anteriores experimentaram.
149
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
150
TÓPICO 1 | THOMAS HOBBES E O LEVIATÃ: O ESTADO SOBERANO
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TÓPICO 1 | THOMAS HOBBES E O LEVIATÃ: O ESTADO SOBERANO
expressão recente que uma nova ideia fez surgir" (TOCQUEVILLE, 2005, p. 119).
Essa ideia soou como nova para Tocqueville, mesmo no século XIX. Essa ideia do
indivíduo, queremos sugerir, é pelo menos em parte rastreável a Hobbes.
DICAS
153
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
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TÓPICO 1 | THOMAS HOBBES E O LEVIATÃ: O ESTADO SOBERANO
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UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
Isso não quer dizer que o estado de natureza para Hobbes é um estado
de combate permanente. Com certeza, é um estado de medo e desconfiança
permanentes. Hobbes pede aos seus leitores que, por acaso, não acreditaram nas
suas inferências sobre as paixões, novamente, lembre-se do seu ceticismo, que
confirmem com a sua própria experiência. Ele escreve assim:
156
TÓPICO 1 | THOMAS HOBBES E O LEVIATÃ: O ESTADO SOBERANO
157
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
ele, é uma das suas grandes paixões universais, assim é o seu oposto, o medo.
Ele vai descrever essa paixão especialmente a partir do capítulo seis (2003, p.
51). Talvez Hobbes exagere um pouco nisso, mas ele faz parecer que o estado de
natureza é uma espécie de condição existencial em que a morte pode vir a você em
quase qualquer momento. Mas há mais a respeito do medo do que simplesmente
o medo da morte, embora Hobbes enfatize e dramaticamente sobrevalorize isso.
O medo não é apenas o desejo de evitar a morte, mas de evitar a perda. Você
poderia dizer que isso é perceptível na grande corrida da vida, o desejo de evitar
perder e de ser visto como um perdedor. É o desejo de evitar a vergonha de
ser visto por outros como perdendo de alguma forma. Há uma qualidade social
claramente visível em ambas essas paixões, o orgulho e o medo. A primeira, o
desejo de obter proeminência e estima dos outros. A segunda, o desejo de evitar
a vergonha e a desonra.
159
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
Bem, isso nos leva a algumas críticas, ou pelo menos algumas perguntas
sobre a concepção das leis da natureza de Hobbes. O que devemos fazer com
essas leis? Em certo sentido, parece haver um conteúdo moral genuíno nas leis
da natureza de Hobbes que pode ser reduzido a uma única fórmula: Procure
a paz acima de todos os outros bens. Hobbes, mais do que ninguém, quer que
valorizemos as virtudes da civilidade. Isto é o que as dezenove leis da natureza
comandam. A civilidade implica as virtudes da paz, equidade, justiça e de respeito
pelas regras (2003, p. 137). A paz é para Hobbes um bem moral e as virtudes são
aquelas qualidades de comportamento que tendem à paz e os vícios são os que
levam à guerra. Basta considerar as desvantagens de guerra e os benefícios da
paz. Aqui está o que Hobbes escreve:
Numa tal condição não há lugar para o trabalho, pois o seu fruto é
incerto; consequentemente, não há o cultivo da terra, nem navegação,
nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não
há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover
as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da
face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há
sociedade; e o que é pior que tudo, um medo contínuo e perigo de
morte violenta. (HOBBES, 2003, p. 109)
160
TÓPICO 1 | THOMAS HOBBES E O LEVIATÃ: O ESTADO SOBERANO
Esta é, mais uma vez, o tipo de condição existencial em que Hobbes quer
nos colocar no estado de natureza. E todos os benefícios que ele enumera ali, que
são negados a nós em tal condição, nenhum conhecimento, nenhum cultivo da
terra, nem navegação ou construção, todas essas coisas são os frutos da paz.
Mas neste momento, um leitor atento, como você, sem dúvida estaria
sugerindo que fomos muito longe ao chamar Hobbes de um filósofo moral cujo
lema de uma forma poderia ser resumido na frase "dê uma chance à paz". É
isso mesmo o que Hobbes acreditava? Por que é a paz o bem maior? Por que
não a justiça? Por que não a honra? Por que não a piedade? Por que não a vida
examinada? O que faz a paz ser tão boa para Hobbes? Bem, de fato temos citado
diversas vezes Hobbes elencando possíveis razões para isso. Todavia, podemos
sugerir que não é tanto a paz por si só que Hobbes estima. A paz é um meio para
a vida. Cada criatura, diz ele, tem um desejo interno de preservar-se, perseverar
a sua própria existência, para continuar o seu próprio estado de equilíbrio, para
resistir à invasão ou a usurpação dos outros. Todos nós somos dotados, diz ele,
com uma espécie de direito natural à vida e o desejo de preservar a si mesmo não
é apenas um fato biológico, embora também o seja, é para ele um direito moral.
Cada ser tem o direito fundamental à sua própria vida. Nós não só temos o direito
à nossa vida, mas também o de fazer o que nós consideramos necessário para
protegê-la, “por todos os meios que pudermos, defendermo-nos a nós mesmos”
(HOBBES, 2003, p. 113).
A obra como um todo pode ser vista como um esforço para dissipar o que
ele acredita ser falsas crenças, falsas doutrinas, que disfarçam a verdade de nós,
a verdade sobre o valor da vida; por exemplo, crenças sobre a vida após a morte
e todas as crenças que prejudicam uma apreciação do valor da vida como ela é
(HOBBES, 2003, pp. 35, 152-153, 251, 276, 282, 290, 317, 394, 490, 498-499, 506, 528,
571). Isso fornece a base moral do que podemos chamar de “o humanitarismo de
Hobbes”, todavia esse humanitarismo parece levantar mais problemas. Será que
a tentativa de Hobbes para incutir em nós, os leitores de seu livro, um apreço pela
161
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
vida e um valor à vida, não cria em nós, simultaneamente, uma aversão ao risco,
um medo extremo do conflito, do desafio ou do transtorno? Você poderia dizer,
esse medo constante do qual Hobbes insiste sobre o medo da morte e valor da vida,
isso não seria outra palavra para covardia? Será que a ênfase de Hobbes sobre a
preservação da vida como valor moral supremo não torna o seu poderoso Leviatã
em uma espécie de comunidade de covardes? Onde Aristóteles fez da coragem
de homens em combate uma virtude central da sua ética, Hobbes incisivamente
omite a coragem de sua lista das virtudes morais. Em um ponto, ele até mesmo
sugere que a coragem é realmente apenas uma espécie de imprudência. E seu
exemplo de coragem vem de combates de duelos que ele diz que sempre serão
honrosos, mas sempre serão ilegais.
162
TÓPICO 1 | THOMAS HOBBES E O LEVIATÃ: O ESTADO SOBERANO
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UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
DICAS
Um excelente livro que explora a história dos vários teóricos políticos que
utilizaram este termo de “consentimento dos governados”, entre outros termos, é o seguinte:
SABINE, George Holland. História das teorias políticas. São Paulo: Fundo de Cultura, 1964.
164
TÓPICO 1 | THOMAS HOBBES E O LEVIATÃ: O ESTADO SOBERANO
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UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
DICAS
Pois o objetivo das leis (que são apenas regras autorizadas) não é
coibir o povo de todas as ações voluntárias, mas sim dirigi-lo e mantê-
lo num movimento tal que não se fira com os seus próprios desejos
impetuosos, com a sua precipitação, ou indiscrição, do mesmo modo
que as sebes não são colocadas para deter os viajantes, mas sim para
os manter no caminho. (2003, p. 293)
166
TÓPICO 1 | THOMAS HOBBES E O LEVIATÃ: O ESTADO SOBERANO
167
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
Hobbes), mas porque mostra com muita ênfase o quanto Hobbes preza pela
reforma da opinião, a reforma de ideias. Tal como Maquiavel e como Platão muito
antes dele, Hobbes considera a si mesmo como um educador de príncipes, um
educador e um transformador, um reformador de ideias. Há uma espécie de ironia
interna aqui, porque Hobbes, às vezes, escreve como se os seres humanos não
fossem nada mais do que máquinas complexas que obedecem mecanicamente às
leis da atração e repulsão. Mas ele também, obviamente, escreve que somos seres
com vontade e propósito que são guiados exclusivamente por opiniões, ideias
e doutrinas. É por isso que o primeiro negócio para o soberano agir é como um
reformador moral de ideias. Hobbes percebe que esta é uma tarefa difícil e árdua
que ele estabelece em sua obra.
Bem, podemos questionar isso. Ele diz que é uma obra curta e “penso que
é clara”. Na verdade, é complexa e longa. Talvez, na esperança de que com a sua
publicidade ganharia a atenção de um soberano.
Hobbes, portanto, acredita que este livro vai ser útil para um soberano
ou um soberano em potencial. Ele pode estar subestimando a dificuldade da
obra, mesmo assim ele retorna a esta questão novamente no final do Leviatã.
"As universidades", ele fala de novo um pouco sobre a audiência do livro, "são
as fontes da doutrina civil e moral” (HOBBES, 2003, p. 592), e têm a obrigação
de ensinar a doutrina correta de direitos e deveres. Isso significa para Hobbes,
antes de tudo, adotar o seu livro como autoridade no ensino sobre a doutrina da
moral e a da política nas universidades. Em outras palavras, deveria ser o livro
didático requisitado de ciência política e do ensino da política nas universidades,
substituindo o livro mais antigo, ou seja, A Política de Aristóteles. “Penso, portanto,
168
TÓPICO 1 | THOMAS HOBBES E O LEVIATÃ: O ESTADO SOBERANO
que pode ser publicado com vantagem e com mais vantagem ainda ensinado nas
universidades”, ele afirma categoricamente. Como as universidades são “as fontes
da doutrina civil e moral”, o público ideal para o livro, partindo da universidade,
seriam os pregadores e os fidalgos. Pois estes “costumam borrifar o povo (tanto
do púlpito como no convívio)”, com a “água” que beberam nas universidades, as
doutrinas presentes na obra, com a qual “devia certamente haver grande cuidado
em conservá-la pura” (HOBBES, 2003, p. 592). Esta é a forma como ele vê que as
doutrinas da obra deveriam ser ensinadas. Elas deveriam ser ensinadas a partir
das universidades, aos púlpitos, às conversas de convívio, borrifadas sobre o
povo. A esperança de Hobbes, tal como a de todos os grandes filósofos políticos,
era a de ser uma espécie de legislador para a humanidade. Esta é, outra vez, uma
obra com uma ambição épica.
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UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
cidadãos indigentes, que são incapazes de prover o próprio sustento, não devem
ser forçados a depender simplesmente da caridade privada de indivíduos, mas
devem ser mantidos pelos cofres públicos. Ele parece, desta forma, antecipar o
Estado de bem-estar social moderno, o welfare state, no qual a assistência pública
deve ser fornecida, e os pobres não devem depender simplesmente da boa
vontade privada dos outros.
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TÓPICO 1 | THOMAS HOBBES E O LEVIATÃ: O ESTADO SOBERANO
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UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
172
TÓPICO 1 | THOMAS HOBBES E O LEVIATÃ: O ESTADO SOBERANO
Honra para muitos de nós soa estranho, até mesmo exótico, como um
código de honra ou o código de escoteiros, ou algo parecido. Soa como algo
primitivo, como algum tipo de ética primitiva, portanto, nós realmente não
conseguimos compreender. É por isso que muitas vezes passa despercebido que
grande parte dos esforços de Hobbes foi para desacreditar esse tipo de virtude
guerreira, este tipo de virtude da honra que ainda é uma parte muito importante
de diversas culturas. Nossa cegueira atual, referente aos assuntos de honra, é
consequência direta do sucesso desse esforço hobbesiano.
Isso nos leva ao ponto final sobre a nossa civilização hobbesiana, que a
mesma esconde de nós uma verdade muito desconfortável. A paz, a segurança, a
proteção, que poderíamos chamar de nossas liberdades burguesas que nós tanto
estimamos, repousam sobre o fato desconfortável de que ainda existem pessoas
que estão dispostas a arriscar suas vidas por causa de objetivos mais elevados,
como a honra ou o dever. É irracional esse modo de agir deles? Pensamos que
Hobbes diria que sim. Afinal, isso não faz sentido do ponto de vista puramente
hobbesiano, pois ele nos encoraja a pensar como agentes racionais interessados
principalmente na segurança e em calcular as probabilidades.
173
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você viu que:
• Hobbes insiste na igualdade fundamental dos seres humanos, que, segundo ele,
são dotados de certos direitos naturais e inalienáveis. Ele mantém que o Estado é
um produto de uma aliança ou um pacto, uma espécie de um contrato entre os
indivíduos, e que o soberano deve sua autoridade à vontade ou ao consentimento
daqueles a quem ele governa e que o soberano é apenas autorizado a proteger os
interesses dos governados pela manutenção da paz e da segurança civil.
• Hobbes, tal como Maquiavel, foi um dos grandes arquitetos do Estado moderno.
Até certo grau a sua linguagem é mais caracteristicamente moderna do que a de
Maquiavel.
• Para Hobbes, a arte não imita tanto a natureza, bem mais do que isso, a arte
(a criação, a engenhosidade e a destreza humana) pode criar um novo tipo de
natureza, uma natureza artificial, uma pessoa artificial. É neste sentido que o
grande Leviatã é criado através da arte.
174
• A razão, a ciência e a arte são as capacidades de transformar a natureza pela
imposição de um método que irá produzir efeitos semelhantes após consequências
semelhantes. A arte, especialmente a arte política, é uma questão de reordenar a
natureza, até mesmo a natureza humana. Resolvendo-a em suas unidades mais
elementares, e em seguida, reconstruindo-a para que ela produza os resultados
desejados, tal como um físico faria em um laboratório.
• Hobbes nos mostra o que é exercer a qualidade de agência moral; isto é, agir por
nós mesmos ao invés de ter as coisas feitas para nós. Hobbes introduziu na nossa
linguagem moral o idioma da individualidade.
• Para Hobbes termos como “bom” e “mal” são expressões de nossos gostos e
desgostos individuais.
• Hobbes é um cético no sentido de que não pode haver, em sua opinião, fundamentos
transcendentes ou não humanos para as nossas crenças. Nós não podemos ter
certeza dos fundamentos últimos de nosso conhecimento, pois, para Hobbes, este
é uma construção humana e está sempre sujeito ao que os seres humanos podem
acordar ou estabelecer.
175
• A certeza que temos sobre qualquer coisa é sempre provisória, descoberta com base
na experiência e sujeita à revisão contínua à luz de novas experiências adquiridas.
• Pessoas no estado de natureza podem ter contato regular e contínuo uns com os
outros. O que ocorre é somente que as suas relações não são regulamentadas por
lei, nem por autoridade. A ênfase no indivíduo é apenas outra maneira de dizer,
ao contrário de Aristóteles, que ninguém tem autoridade natural sobre qualquer
outra pessoa.
• O medo não é apenas o desejo de evitar a morte, mas de evitar a perda, de evitar a
vergonha. É o medo, não a razão, que nos leva a abandonar o estado de natureza e
pedir a paz. O medo é a base, até mesmo do que Hobbes chama de leis da natureza,
ou normas de paz, que nos levam a sociedade civil.
• Hobbes argumenta que não só se deve buscar a paz, mas temos a obrigação de
depor as armas, abrir mão do nosso direito de fazer todas as coisas sob a condição
de que os outros à nossa volta estão dispostos a fazê-lo também.
• Todos nós somos dotados com uma espécie de direito natural à vida e o desejo de
preservar a si mesmo não é apenas um fato biológico, é um direito moral. Nós não
só temos o direito à nossa vida, mas também o de fazer o que nós consideramos
necessário para protegê-la.
176
• A obra como um todo pode ser vista como um esforço para dissipar o que ele
acredita ser falsas crenças, falsas doutrinas, que disfarçam a verdade de nós, a
verdade sobre o valor da vida; por exemplo, crenças sobre a vida após a morte e
todas as crenças que prejudicam uma apreciação do valor da vida como ela é.
• O soberano é descrito por Hobbes como uma pessoa artificial, fictícia, é a criação do
contrato ou da aliança, não existe por natureza, é o produto da arte ou da ciência. É
a criação do povo do “consentimento dos governados”. É o representante do povo.
• Não há, para Hobbes, um tribunal de apelação mais elevado do que a vontade ou
a palavra do soberano, nenhuma lei transcendente, nenhuma lei divina, nenhuma
fonte de autoridade externa ao comando do soberano.
• Todas as leis são por definição justas, mas isso não quer dizer que todas as leis são
por definição boas. Uma boa lei, é aquilo que é necessário para o bem do povo, e
além disso clara.
177
AUTOATIVIDADE
178
UNIDADE 2 TÓPICO 2
JOHN LOCKE E O SEGUNDO TRATADO: O GOVERNO
CONSTITUCIONAL
1 INTRODUÇÃO
Neste tópico vamos nos concentrar especificamente em uma obra de John
Locke, o Segundo Tratado sobre o Governo Civil (1994, 1998a). Lembrando que a
leitura desta unidade do Caderno de Estudos deve ser acompanhada pela leitura
da obra referida que será analisada.
direitos naturais, as pessoas têm o direito à revolução. Além disso, John Locke foi
um famoso defensor da tolerância religiosa. Seu nome sempre ficará vinculado às
nossas ideias atuais de democracia liberal ou constitucional. Ele, portanto, oferece
ao Estado constitucional moderno sua expressão definitiva.
DICAS
180
TÓPICO 2 | JOHN LOCKE E O SEGUNDO TRATADO: O GOVERNO CONSTITUCIONAL
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UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
DICAS
182
TÓPICO 2 | JOHN LOCKE E O SEGUNDO TRATADO: O GOVERNO CONSTITUCIONAL
natureza. Para ele, assim como para Hobbes, este estado não é uma condição de
governar e ser governado, como o é para Aristóteles. O estado de natureza não
é uma condição política, Locke o descreve como uma condição para a liberdade
perfeita. Enquanto Aristóteles disse que nós éramos, por natureza, membros de
uma família, da polis, de uma comunidade moral, unidos por laços de obrigação
cívica ou familiar, Locke entende que o estado de natureza é uma condição sem
autoridade ou obrigações civis.
Todavia, a questão não está totalmente clara se a lei natural é uma teoria do
dever moral, os deveres que temos de preservar os direitos e obrigações dos outros,
ou se é de uma teoria dos direitos naturais que demanda a máxima prioridade à
autopreservação individual e tudo o que é necessário para alcançar a preservação
do indivíduo. Se o estado de natureza é uma condição sem a autoridade civil,
então a lei da natureza não tem nenhuma pessoa ou Órgão para supervisionar
a sua aplicação. Portanto, esse estado de natureza que ele descreve no início do
livro é uma condição de paz e também de desconfiança mútua que rapidamente
se degenera em uma condição de guerra civil, onde cada indivíduo atua como
juiz, júri e executor da lei natural. O estado de natureza torna-se rapidamente
em uma condição essencialmente hobbesiana de cada um por si. Considere a
seguinte passagem na seção onze do Segundo Tratado: “A pessoa prejudicada",
escreve Locke – alguém que tenha sido maltratado na condição da natureza,
183
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
Locke parece estar falando duas linguagens muito diferentes, uma da lei
natural tradicional que mantém como prioridade os deveres para com os outros,
e outra da concepção hobbesiana moderna dos direitos naturais que mantém a
184
TÓPICO 2 | JOHN LOCKE E O SEGUNDO TRATADO: O GOVERNO CONSTITUCIONAL
moral que é mais rigoroso do que aquele que pode ser derivado da lei natural,
não é um problema real se a Bíblia ensina o que é contrário à lei natural. Na
prática, Locke evita esse problema porque a coerência com a lei natural era um dos
critérios que ele usou ao decidir a interpretação adequada de passagens bíblicas.
Outro ponto de contestação tem a ver com a medida em que Locke pensou
que lei natural poderia, de fato, ser conhecida pela razão. Ambos, Leo Strauss
(2009) e Peter Laslett (1988), embora muito diferentes em suas interpretações
de Locke em geral, consideram a teoria da lei natural de Locke como cheia de
contradições. No Ensaio acerca do Entendimento Humano, Locke defende uma
teoria do conhecimento moral que nega a possibilidade de ideias inatas (1999,
p. 35-54, I) e afirma que a moral é capaz de demonstração da mesma forma que
186
TÓPICO 2 | JOHN LOCKE E O SEGUNDO TRATADO: O GOVERNO CONSTITUCIONAL
Para entender a posição de Locke em razão da lei natural, deve ser situada
dentro de um debate mais amplo na teoria da lei natural que antecede Locke, o
chamado debate "voluntarismo-intelectualismo" ou "voluntarista-racionalista".
Na sua forma mais simples, o voluntarista declara que certo e errado são
determinados pela vontade de Deus e que somos obrigados a obedecer à vontade
de Deus, simplesmente porque é a vontade de Deus. A menos que essas posições
sejam mantidas, o voluntarista argumenta, Deus torna-se supérfluo à moralidade
uma vez que tanto o conteúdo como a força vinculativa da moralidade podem
ser explicadas sem referência a Deus. O intelectualista responde que esse
entendimento torna a moralidade arbitrária e não consegue explicar por que
temos a obrigação de obedecer a Deus.
187
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
DICAS
seu mais recente trabalho sobre Locke, explora a afirmação oposta: a de que a
teologia de Locke, na verdade, fornece uma base mais sólida para sua premissa da
igualdade política do que as abordagens seculares contemporâneas que tendem a
simplesmente afirmar a igualdade.
189
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
190
TÓPICO 2 | JOHN LOCKE E O SEGUNDO TRATADO: O GOVERNO CONSTITUCIONAL
191
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
e então ele acrescenta: ”Deu-o para o uso dos diligentes e racionais (e o trabalho
haveria de ser o seu título de propriedade), e não para a fantasia e a cobiça dos
rixentos e litigiosos” (LOCKE, 1998a, p. 414, §34). Deus deu ao mundo para que
o pudéssemos melhorar, portanto, Ele deu-o ao trabalhador e ao racional. Locke
parece sugerir nesta frase que o Estado será comercial, que a república lockeana
ou o Estado de Locke será uma república comercial. Pense nisso.
192
TÓPICO 2 | JOHN LOCKE E O SEGUNDO TRATADO: O GOVERNO CONSTITUCIONAL
193
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
O que Locke está fazendo nos cinco primeiros capítulos do Segundo Tratado
é reescrever o relato da origem do ser humano que “originalmente” pertencia às
escrituras bíblicas. Ele conta a história dos seres humanos encontrando-se em
uma condição de natureza com ninguém ou nenhuma autoridade adjudicando
as suas disputas, governados apenas por uma lei natural. No entanto, conta
como eles são capazes de desfrutar do uso das propriedades criadas e adquiridas
através de seu labor e trabalho. Ele nos diz, nesses capítulos iniciais, que o
homem é um animal adquiridor de propriedade, o animal aquisitivo, mesmo
no estado de natureza, onde não há nada senão a lei natural para governar as
associações e relações humanas. Mas o problema com o estado de natureza para
Locke, assim como também o foi para Hobbes, é a sua instabilidade devido à
ausência de autoridade civil para arbitrar as disputas, principalmente aquelas
por propriedade. O deleite pacífico e a aquisição de propriedade, os frutos do
trabalho e labor, são continuamente ameaçados pela guerra e pelo conflito. Como
podemos estar seguros em nossa pessoa ou propriedade sem forças policiais
ou agências que imponham a lei e resolvam qualquer ruptura na paz? Como
podemos estar seguros onde todos são os juízes, júris e executores da lei natural?
A necessidade de um governo surge da necessidade real de resolver conflitos ou
disputas sobre direitos de propriedade. Isso soa como uma ideia muito familiar,
que governo existe para garantir a proteção dos diretos de propriedade. É uma
espécie de doutrina fundamental que chamaríamos hoje de libertarianismo.
194
TÓPICO 2 | JOHN LOCKE E O SEGUNDO TRATADO: O GOVERNO CONSTITUCIONAL
engloba a nossa vida, liberdade e bens. Estas são todas propriedades no sentido
original e mais revelador do termo, isto é, que melhor se adéqua a nós. Todavia,
Locke enfatiza continuamente a incerteza do estado de natureza, porque a vida lá
"embora livre, está repleta de medos e perigos contínuos; e não é sem razão” que
o indivíduo “solicita e deseja se unir em sociedades com outros” (LOCKE, 1994,
p. 156, §123).
195
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
196
TÓPICO 2 | JOHN LOCKE E O SEGUNDO TRATADO: O GOVERNO CONSTITUCIONAL
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UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
198
TÓPICO 2 | JOHN LOCKE E O SEGUNDO TRATADO: O GOVERNO CONSTITUCIONAL
Essa declaração, como já dito acima, é parte de seu debate com Douglas
sobre a questão da escravidão e que, em muitos aspectos, foi até o cerne do
significado de consentimento. Douglas também tentou derivar seus argumentos
a partir de uma ideia de consentimento. O que Douglas disse foi que ele não
se importava com a questão da escravidão per si, ele era indiferente quanto ao
fato de as pessoas de um determinado Estado ou um território quererem ou
não a escravidão. A questão para ele era que, o que quer que a maioria do povo
consentisse, estava certo. Ele até poderia preferir não haver escravidão, mas era
o que o consentimento do povo, o que a maioria quisesse que decidiria o assunto
(LINCOLN, 2009, p. 169-170). Lincoln, no entanto, havia dito que a doutrina do
consentimento não é simplesmente uma espécie de “cheque em branco”, que a
doutrina do consentimento ainda implicava um conjunto de limites morais ou
restrições sobre o que um povo pode consentir. O consentimento era incompatível
com a escravidão, exatamente porque ninguém pode governar um outro sem o
consentimento deste. Em muitos aspectos esse é um debate fundamental, não
só para a história dos Estados Unidos, mas da política como um todo. Pois,
nele é exumado um problema interno na doutrina do consentimento de Locke,
nomeadamente, o problema de qual forma de governo faria mais sentido para
a maioria das pessoas consentirem. Em outras palavras, se o governo por
consentimento significa o governo de qualquer coisa que a maioria desejar, seria
um tipo de tirania da maioria. Então, será que o governo por consentimento
implica certos limites e restrições sobre o que a maioria pode fazer? Que garantias
Locke fornece, você poderia perguntar, que o governo por consentimento será
por um consentimento instruído ou racional?
Você pode querer saber qual é a resposta de Locke para este problema,
e é um problema que ele está ciente e com o qual se debate no capítulo oito.
Sua resposta acaba por ser algo bem diferente do nosso ponto de vista sobre a
cidadania, o que é um cidadão e como é conferido o consentimento do cidadão ao
governo. Na seção cento e dezoito, ele escreve: "Uma criança não nasce súdito de
199
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
nenhum país ou governo" (LOCKE, 1994, p. 153, §118). Em outras palavras, ele
está dizendo que a cidadania não é conferida por nascimento; apenas ter nascido
em um lugar não faz de você um cidadão do mesmo, tal como a doutrina que
seguimos hoje. Locke continua dizendo:
Permanece sob a tutela e a autoridade de seu pai até que atinja a idade
do discernimento, e só a partir daí ele é um homem livre, com liberdade
para escolher o governo ao qual vai se submeter [...] O poder que o pai
exerce naturalmente sobre seus filhos é o mesmo, independente do
lugar de seu nascimento, e os vínculos das obrigações naturais não são
determinados pelos limites jurídicos dos reinados e das comunidades
civis (LOCKE, 1994, p. 153, §118).
200
TÓPICO 2 | JOHN LOCKE E O SEGUNDO TRATADO: O GOVERNO CONSTITUCIONAL
O que isso significa para o resto de nós, aqueles que não deram o
seu consentimento ativo? Locke está ciente de que nem todo mundo dá o
seu consentimento ativo. É por isso que ele introduz outra ideia de como o
consentimento pode ser dado. Ele fala sobre o que ele chama de um acordo tácito.
Há aqueles talvez que não tenham jurado fidelidade ou dado um juramento
civil, mas que, no entanto, pode-se dizer que deram o seu consentimento tácito
à forma de governo e suas leis. Mas como é que vamos dar um consentimento
tácito? O consentimento tácito é uma palavra estranha, porque o consentimento
implica algo ativo e aberto, e tácito implica algo fechado ou oculto. Como é dado
o consentimento tácito? Isso é um problema que você pode ver Locke tentando
resolver. Até certo ponto, ele diz, quem simplesmente se deleita na proteção da
lei, na segurança da propriedade e da pessoa sob a lei pode ser dito ter dado o
seu consentimento tácito. Isso ocorre, por assim dizer, ex silentio, pois mesmo
o seu silêncio confere consentimento. Mas como é que vamos realmente saber
se o silêncio confere consentimento tácito ou se silêncio não é simplesmente
“silêncio”? Um exemplo disso seria o que ocorre habitualmente em uma
cerimônia de casamento, quando o ministro diz “se alguém tiver algo contra
este matrimônio, fale agora ou cale-se para sempre”. É claro que todos, exceto
nos filmes, ficam em silêncio. Ninguém afirma o seu consentimento, o silêncio a
esta pergunta é seu consentimento tácito dado. Entretanto, podemos dizer que a
questão ainda permanece, como vamos saber de fato quando o silêncio é de fato
um consentimento. É uma questão que Locke se esforça para resolver, mas que
não consegue resolver plenamente. Talvez você consiga resolver, fica aí um desafio
para um trabalho acadêmico, caso você decida escrever sobre o consentimento à
cidadania e a diferença entre as suas formas expressas e tácitas. Além disso, há
uma outra questão que Locke faz alusão, mas também não responde plenamente,
se há alguma diferença em privilégios civis entre os cidadãos que deram o seu
consentimento expresso e aqueles que só consentiram tacitamente à forma de
governo? Será que ele sugere que uma classe de cidadãos tem mais direitos ou
responsabilidades que a outra? Você pode observar essa questão também e ver se
Locke sugere quaisquer diferenças sobre isso.
201
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
uma expressão maior e mais poderosa do que qualquer um dos seus antecessores.
Certamente mais que Hobbes, que tinha atribuído o poder absoluto ao governo,
ou Aristóteles, que, apesar de compartilhar algumas semelhanças com Locke,
tinha sérias dúvidas sobre Estado de Direito.
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TÓPICO 2 | JOHN LOCKE E O SEGUNDO TRATADO: O GOVERNO CONSTITUCIONAL
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TÓPICO 2 | JOHN LOCKE E O SEGUNDO TRATADO: O GOVERNO CONSTITUCIONAL
para o céu, ou o que ele chama de um apelo para o céu realmente refere-se a
um apelo às armas, à rebelião, e a necessidade de criar um novo pacto social.
Locke, você pode verificar, está tentando manter unidas a crença na santidade
da lei e a necessidade de prerrogativas que podem ter que contornar o governo
da lei. São estas duas doutrinas incompatíveis? Acreditamos que pelo menos
em alguns aspectos são. Pode o poder prerrogativo do executivo ser de alguma
forma constitucionalizado para que ele não ameace a liberdade de seus próprios
cidadãos? Locke nos alerta para este problema.
Uma das melhores fontes para pensarmos sobre muitas destas questões
constitucionais atuais em relação aos direitos de privacidade e outros tipos de
direitos de cidadania pode ser encontrada nos últimos cinco capítulos do Segundo
Tratado de Locke. É difícil imaginar uma fonte melhor.
207
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
Mas para muitos outros leitores da história americana, por exemplo, esta
relação tem sido vista como mais problemática. Em 1955, um livro escrito por um
famoso teórico político e historiador, chamado Louis B. Hartz, um livro intitulado
The Liberal Tradition in America (A tradição liberal na América), se queixou da
América e do que ele chamou de "Lockeanismo irracional" (HARTZ, 1991, p. 308,
tradução nossa). Este conceito, para ele, significava uma espécie de compromisso
fechado com princípios e ideais lockeanos excluindo todas as outras alternativas
e possibilidades políticas. Hartz estava muito interessado na questão, como
muitos teóricos políticos após ele também se interessaram, por que não houve
nenhum socialismo nos Estados Unidos, por que esta nação não evoluiu ou
se desenvolveu ao longo das linhas europeias com partidos socialdemocratas
e os partidos socialistas, como o Partido Trabalhista Inglês e outros tipos de
movimentos trabalhistas (HARTZ, 1991).
208
TÓPICO 2 | JOHN LOCKE E O SEGUNDO TRATADO: O GOVERNO CONSTITUCIONAL
DICAS
Vale a pena comparar esta definição da fonte da justiça com o que Thomas
Hobbes havia dito no Leviatã: “Nesta lei da natureza reside a fonte e a origem da Justiça.
Porque sem um pacto anterior não há transferência de direito, e todo homem tem direito
a todas as coisas; consequentemente nenhuma ação poder ser injusta. Mas, depois de
celebrado um pacto, rompê-lo é injusto. E a definição de injustiça não é outra senão o não
cumprimento de um pacto. E tudo o que não é injusto é justo” (HOBBES, 2003, p. 124, I, 15)
somos responsáveis por fazer a nós mesmos. Ele usa a metáfora do trabalho do
corpo e do labor de nossas mãos, mas nós somos, literalmente, os produtos de
nossa própria fabricação. Nós criamos a nós mesmos através de nossa atividade
e nossa atividade mais característica é o nosso trabalho. A doutrina fundamental
de Locke é que o mundo é o produto de nossa própria criatividade livre, não da
natureza, mas do self, o indivíduo é a fonte de todo o valor para Locke. É este self,
o eu, o ego que é a única fonte de direitos e a tarefa do governo é o de garantir as
condições de nossa propriedade, no sentido mais amplo do termo, ou seja, tudo
o que é apropriado a nós.
Agora, usando isso como uma espécie de taquigrafia, compare isso com
a ideia de Rawls. Rawls acrescenta à sua ideia de justiça algo que ele chama de
"princípio da diferença" (2000, p. 69-101, I, 2, §12-14). O que é o princípio da
diferença? Este princípio afirma que os nossos dotes naturais, os nossos talentos,
nossas habilidades, nossos backgrounds familiares, nossas histórias exclusivas, o
nosso lugar na hierarquia social, todas essas coisas são de um ponto de vista moral
algo completamente arbitrário. Nenhuma destas coisas são nossas em qualquer
sentido forte do termo. Elas não pertencem a nós, mas são o resultado de uma
espécie de loteria genética aleatória ou arbitrária, uma loteria social da qual eu
ou você por acaso somos os únicos beneficiários. O resultado disto, em outras
palavras, é que eu já não posso ser considerado como o único proprietário dos
meus ativos ou o destinatário original das vantagens ou desvantagens que podem
advir a partir deles. A fortuna maquiavélica, a sorte, neste sentido é totalmente
arbitrária e, portanto, Rawls conclui que eu não devo ser considerado como o
possuidor, mas apenas o destinatário dos talentos, das capacidades e habilidades
que por um acontecimento puramente arbitrário passei a possuir.
210
TÓPICO 2 | JOHN LOCKE E O SEGUNDO TRATADO: O GOVERNO CONSTITUCIONAL
211
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
Por outro lado, um retorno a Locke, até mesmo se tal retorno fosse possível
literalmente, de nenhum modo significaria uma panaceia para o que nos aflige.
Não sugerimos que Locke seria algum tipo de cura. Alguns historiadores, entre os
quais Louis Hartz foi um dos mais famosos, estabelecem uma crítica contundente
sobre os fundamentos lockeanos e os males que este traz para o desenvolvimento
de uma república moderna. O esforço de Locke para construir um governo
republicano moderno sobre os fundamentos sólidos, apesar de “pouco elevados”,
do autointeresse, da autopropriedade e o desejo pela preservação confortável,
não pode evitar de gerar suas próprias formas de insatisfação.
212
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você viu que:
• A lei natural pode ser descoberta pela razão e se aplica a todas as pessoas,
enquanto a lei divina só pode ser descoberta através da revelação especial
de Deus e se aplica somente para aqueles a quem é revelado e que Deus
indica especificamente que são contemplados. A lei divina e a lei natural são
consistentes e podem sobrepor-se no conteúdo, mas elas não são coextensivas.
• Leo Strauss, e muitos de seus seguidores, dizem que os direitos são primordiais,
vão ao extremo ao ponto de retratar a posição de Locke como essencialmente
semelhante à de Hobbes, apontam que Locke defendeu uma teoria hedonista
da motivação humana.
• John Dunn, entre outros, defendem a visão de que é a lei natural, não os direitos
naturais, que são os primordiais. Eles sustentam que, quando Locke enfatizou o
direito à vida, à liberdade e à propriedade ele estava enfatizando os deveres que
temos para com as outras pessoas: deveres para não matar, escravizar ou roubar.
213
• John Simmons defende a ideia de que os direitos e os deveres são igualmente
fundamentais para Locke, pois este acredita em uma “zona robusta de
indiferença” em que os direitos protegem a nossa capacidade de fazer escolhas.
Enquanto essas escolhas não possam violar a lei natural, elas também não são
um mero meio para cumprir a lei natural.
• Outro ponto de contestação tem a ver com a medida que Locke pensou que a
lei natural poderia, de fato, ser conhecida pela razão. Para entender a posição
de Locke, em razão da lei natural, deve ser situado dentro de um debate
mais amplo na teoria da lei natural que antecede Locke, o chamado debate
“voluntarismo-intelectualismo”.
214
• A lei natural determina o direito à propriedade privada e é para garantir esse
direito que os governos são finalmente estabelecidos. O mundo foi criado,
a fim de ser cultivado e melhorado. Aqueles que trabalham para melhorar
e desenvolver a natureza, com seus corpos e suas mãos, são os verdadeiros
benfeitores da humanidade.
• Para Locke o ponto essencial é que não há limites naturais para a aquisição de
propriedades. A introdução do dinheiro ou de um sistema monetário no estado
de natureza torna a acumulação de capital ilimitada, não apenas possível, mas
até mesmo uma espécie de dever moral.
• Por propriedade, Locke não significa meramente os objetos à nossa volta que
foram transformados por nós em bens; mas a propriedade está enraizada,
sobretudo e em primeiro lugar, em nossa pessoa e em nosso corpo. Começamos
a vida, a propriedade rudimentar que se resume a nós mesmos.
• Locke está falando sobre um novo ethos da classe média cujo título para governar
não repousa sobre a hereditariedade ou na tradição, mas para governar. O
título potencial para governar repousa sobre sua capacidade para o trabalho
duro, parcimônia e oportunidade.
• Locke afirma que quando qualquer número de homens decide constituir uma
comunidade ou um governo, isto os associa e eles formam um corpo político
em que a maioria tem o direito de agir e decidir pelo restante.
215
• A única forma de governo que parece ser absolutamente excluída no relato de Locke
é uma espécie de monarquia absoluta, pois não podemos ceder os nossos direitos
inteiramente a outro indivíduo. Mas ele parece estar relativamente aberto para o
que quer que as pessoas possam desejar consentir, pois o ato de consentimento por
si só não cria um governo, é meramente um ato para formar uma sociedade.
• Qualquer tipo de governo que a maioria decidir, deverá ser um que limita o
poder do soberano. A teoria do governo constitucional de Locke é uma teoria
de um governo contido, de restrições constitucionais, de um governo pela lei.
O governo limitado é o único tipo de governo que pode ser confiável para
proteger os direitos.
• Nossa incapacidade de fazer regras que possam ser aplicadas a todos os eventos
possíveis, faz com que seja necessário deixar algum poder discricionário nas
mãos do executivo para agir em prol da segurança pública.
216
• Rawls e Locke apresentam suas teorias da justiça como justificada em termos
de princípios liberais de igualdade, liberdade e a inviolabilidade do indivíduo
e dos direitos individuais. Consideram o propósito do governo o de assegurar
as condições de justiça como decorrentes do consentimento ou o consentimento
informado dos governados. Todavia, ambos parecem diferir profundamente
sobre a fonte dos direitos e, portanto, o papel que o governo tem para garantir
as condições de justiça.
217
AUTOATIVIDADE
218
UNIDADE 2 TÓPICO 3
1 INTRODUÇÃO
Neste tópico vamos nos concentrar em duas grandes obras de Jean-
Jacques Rousseau, o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens (1999b), muitas vezes chamado simplesmente de o Segundo Discurso, e O
Contrato Social (1996, 1999c). Lembrando que a leitura desta unidade do Caderno
de Estudos deve ser acompanhada pela leitura das obras referidas que serão
analisadas.
A seguir, vamos nos focar em sua obra O Contrato Social, analisando tanto
o papel deste contrato social e o conceito de “vontade geral” para Rousseau.
Finalizaremos nossa discussão destas duas obras referidas com uma consideração
ao legado dos escritos rousseaunianos.
220
TÓPICO 3 | JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE E O CONTRATO SOCIAL
DICAS
221
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
Isto é o que a história e o tempo nos tem feito, ficamos tão afetados que
a nossa própria natureza humana transformou-se e desfigurou-se. Por isso, ele
argumenta, se quisermos entender o que realmente é a natureza humana, será
necessário reconstruí-la através de uma espécie de experimento mental.
222
TÓPICO 3 | JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE E O CONTRATO SOCIAL
sobre esse assunto por verdades históricas”, continua ele, “mas somente por
raciocínios hipotéticos e condicionais, mais apropriados para esclarecer a natureza
das coisas do que para lhes mostrar a verdadeira origem” (ROUSSEAU, 1999b,
p. 161). Em outras palavras, o que ele está dizendo é que a história que ele tem a
intenção de desdobrar é um experimento muito parecido com aqueles realizados
por geólogos quando tentam inferir o desenvolvimento da vida vegetal ou animal
a partir da existência de certos restos fósseis ou restos de esqueletos.
DICAS
DICAS
224
TÓPICO 3 | JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE E O CONTRATO SOCIAL
O que ele quer dizer com a afirmação de que o homem é um “agente livre”?
Essa ideia é de fato semelhante a Hobbes e Locke, ambos disseram que a liberdade
de vontade, que algum tipo de liberdade é uma característica do homem natural
ou do homem pré-social. Mas Rousseau parece acrescentar a isto algo diferente. A
liberdade para Hobbes ou Locke significa simplesmente a liberdade de escolher
fazer isso ou aquilo, a liberdade de exercer a vontade e de não sofrer a interferência
dos outros ao nosso redor. Rousseau também acredita nisso, mas ele acrescenta
algo a mais. Um pouco mais adiante da passagem citada, ele conecta a liberdade
ao que ele chama de qualidade ou faculdade de aperfeiçoar-se, o fenômeno
da perfectibilidade (ROUSSEAU, 1999b, p. 173-174). O que ele quer dizer com a
liberdade conectar-se com essa faculdade de perfectibilidade? Perfectibilidade,
para Rousseau, sugere uma abertura virtualmente ilimitada à mudança. Não
somos meramente a espécie que tem a liberdade para “fazer” isso ou aquilo, mas
somos a espécie que com a liberdade podemos “nos tornar” isto ou aquilo. É a
nossa própria abertura a mudança que explica a nossa mutabilidade ao longo do
tempo. Como uma espécie somos exclusivamente indeterminados, significando
que a nossa natureza não está confinada com antecedência ao que pode tornar-
se. Pelo contrário, nossa natureza, para Rousseau, é singularmente adequada a
alterar-se e transformar-se na medida em que as circunstâncias mudam e nós nos
adaptamos e adotamos as situações novas e imprevistas. A perfectibilidade para
Rousseau não é tanto uma característica do indivíduo, quanto o é da espécie.
225
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
que não seria inadequado você atribuir a este livro outro título já sugerido, “A
Origem das Espécies”. Poderia muito bem ter sido também chamado, mais de um
século antes de Freud, de O Mal-estar na Civilização, que é, em vários aspectos, a
tentativa de Freud de reescrever o relato de Rousseau sobre a evolução da espécie
humana. Mas, Rousseau observa que a liberdade ou perfectibilidade não é nossa
única característica natural, embora seja responsável por quase tudo o que nos
tornamos, pois o que nos tornamos é devido a essa abertura à mudança.
226
TÓPICO 3 | JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE E O CONTRATO SOCIAL
DICAS
227
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
228
TÓPICO 3 | JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE E O CONTRATO SOCIAL
A visão de Locke, basta lembrar o que vimos nos tópicos anteriores desta
Unidade 2, é de que a emancipação da aquisição faz com que todos se tornem
melhores. Na famosa fórmula de Locke, uma diarista na Inglaterra se aloja, se
veste e se alimenta melhor do que um rei das Américas (LOCKE, 1994, p. 107,
§41). Rousseau acreditava que desde um ponto de vista estritamente econômico
há certamente muita verdade nisso. Mas ele também percebeu que o ponto
de vista econômico mal começou a arranhar a superfície das coisas. Rousseau
fica muito mais impressionado pela honrosa dignidade e independência do rei
nativo americano do que com todos os luxos e confortos que tornaram mais
dependentes os reis e até mesmo os trabalhadores comuns europeus. Rousseau
ficou profundamente impressionado, e você poderá ver isso claramente em
suas notas de rodapé, com o tipo de caráter inassimilável dos povos nativos, os
islandeses, os groenlandeses, os hotentotes, entre outros, e toda a sua recusa em
assimilar aspectos da religião e dos costumes europeus (ROUSSEAU, 1999b, p.
325). Em uma passagem da segunda parte do Segundo Discurso ele diz o seguinte:
Quando vejo multidões de selvagens inteiramente nus menosprezarem
as voluptuosidades europeias e afrontarem a fome, o fogo, o ferro e a
morte para conservarem apenas sua independência, percebo que não
é a escravos que compete raciocinar sobre a liberdade (ROUSSEAU,
1999b, p. 227).
229
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
230
TÓPICO 3 | JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE E O CONTRATO SOCIAL
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UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
Mas como isso aconteceu? Rousseau especula sobre isso e, mais uma vez,
isso faz parte de sua história hipotética ou conjectural (ROUSSEAU, 1999b, p. 210-
212). Ele especula que amour-propre começou a surgir e a desenvolver-se assim
que as pessoas começaram a se reunir em torno de uma cabana ou uma árvore e
olhar um para o outro. No instante em que nos tornamos conscientes do olhar do
outro, a partir desse olhar do outro, a paixão da vaidade nasceu. Preste atenção
na maneira como ele especula como isso surgiu. "Cada qual", diz ele,
começou a olhar os outros e a querer ser olhado por sua vez, e a estima
pública teve um preço. Aquele que cantava ou dançava melhor; o mais
belo, o mais forte, o mais hábil ou o mais eloquente passou a ser o
mais considerado, e foi esse o primeiro passo para a desigualdade e
para o vício ao mesmo tempo; dessas primeiras preferências nasceram,
de um lado a vaidade e o desprezo, do outro a vergonha e o desejo;
e a fermentação causada por esses novos germes produziu por fim
compostos funestos à felicidade e à inocência. (ROUSSEAU, 1999b, p.
210-211).
232
TÓPICO 3 | JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE E O CONTRATO SOCIAL
NOTA
233
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
Pense sobre a psicologia moral que Rousseau está invocando aqui em sua
fala sobre o dano e o prejuízo. Não é o aspecto físico dos danos que lhe incomoda,
é o tipo de desprezo que está implícito ou inerente ao ato de lesão. Por isso, ele
continua a dizer, "punindo cada qual o desprezo que lhe haviam demonstrado de
uma maneira proporcional à importância que atribuía a si mesmo, as vinganças
se tornaram terríveis e os homens, sanguinários e cruéis” (ROUSSEAU, 1999b,
p. 211). Ou seja, o amour-propre e a sociedade deram origem ao estado de guerra.
Será que isso soa familiar?
Como exemplo disso, basta considerar um fato que repercutiu muito nas
notícias internacionais. No dia 7 de janeiro de 2015, a sede do jornal satírico Charlie
Hebdo sofreu um atentado terrorista culminando em um massacre. A polêmica
fora causada, ao menos em seu apogeu, por caricaturas do profeta Maomé. Estas
causaram, antes e após o massacre, indignação e protestos muitas vezes violentos.
Até certo ponto, Rousseau poderia argumentar, os protestos eram sobre as charges
desrespeitosas do profeta. Entretanto, é mais provável que ele argumentasse que
a causa mais profunda era que os manifestantes sentiram-se desrespeitados pelo
o que lhes foi mostrado devido às suas próprias crenças, no caso suas crenças em
algo sagrado. Ou seja, o desrespeito foi direcionado às suas crenças, não às suas
pessoas estritamente falando. Todavia, estas crenças se tornam tão entrelaçadas à
valorização de si mesmo, que tal discriminação é nublada pela força da paixão do
amor-próprio. O amour-propre, como o próprio Rousseau reconhece, é uma paixão
muito volátil. Ela contém o desejo de ser respeitado, que está na raiz da justiça e
da virtude e, no entanto, ao mesmo tempo essa paixão é facilmente manipulável
por aqueles que querem convencer os outros de que os seus direitos básicos ou
pontos de vista não estão sendo respeitados. Podemos dizer, em certo sentido,
que Rousseau diria que aqueles que protestaram contra as charges tinham um
ponto relevante a seu favor.
Caso dissessem que seus pontos de vista não estavam sendo respeitados,
e você fosse um lockeano ou buscasse uma formulação liberal de uma resposta
ao problema, esta seria: "Bem, e daí?" A tarefa do governo, de acordo com
Locke, ou o ponto de vista liberal, é o de garantir a segurança das pessoas e das
propriedades, protegê-las do perigo e, naturalmente, fornecer-lhes a liberdade
de praticarem a religião que quiserem, por exemplo, de acordo com a liberdade
dos outros para fazê-lo também. Não é assunto pertinente ao governo garantir
que suas crenças sejam respeitadas. Crenças, ideologias, teorias, podem ser
criticadas, contestadas, satirizadas, ironizadas, desde que a sua pessoa, a sua
propriedade e a sua liberdade sejam preservadas. Este foi claramente o ponto de
vista, por exemplo, dos editores de jornais franceses, e anteriormente a este caso
específico do Charlie Hebdo, os jornais dinamarqueses em 2006 com um caso
similar. Os responsáveis e os representantes políticos destes países se recusaram
pedir desculpas, fundamentados no fato de que a função do governo não é aquela
de impor uma ordem de silêncio sobre o que pode e o que não pode ser dito
baseado no que algumas pessoas podem ou não achar ofensivo. Uma máxima,
comumente atribuída a Voltaire, mas que pertence a Evelyn Hall, conhecida
pelo pseudônimo “Tallentyre”, sintetiza perfeitamente este posicionamento: “Eu
234
TÓPICO 3 | JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE E O CONTRATO SOCIAL
discordo do que você diz, mas vou defender até a morte seu direito de o continuar
dizendo” (TALLENTYRE, 1906, p. 199). Esta é uma linha de pensamento liberal
respeitável, que vai de Locke a John Stuart Mill. É provável que muitos de nós
estejamos inclinados a concordar com esse ponto de vista. Todavia, há algo
poderoso e verdadeiro sobre o que Rousseau tem a dizer sobre isso, sobre este
tipo de problema.
235
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
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TÓPICO 3 | JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE E O CONTRATO SOCIAL
NOTA
237
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
está com outras pessoas e só pensa nas outras pessoas quando ele está sozinho.
Tal pessoa é um dúplice, hipócrita e falso. Condição magistralmente capturada
no romance de Fiódor Dostoievski, O Duplo (2013), esculpida no personagem
de Golyadkin, cujo nome deriva do termo “miserável”. Observe um trecho da
análise que Malcom Jones faz deste personagem dostoievskiniano e que toca no
âmago do homem burguês rousseauniano:
238
TÓPICO 3 | JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE E O CONTRATO SOCIAL
por mais próximo que possa ser, e seus projetos, limitados como as suas vistas,
mas se estendem ao fim do dia” (ROUSSEAU, 1999b, p. 176). Ou seja, ao render-
se a este sentimento da existência, sem um pensamento preso ao futuro, sem a
preocupação ou o medo, o indivíduo retorna psicologicamente ao estado natural.
Apenas algumas poucas pessoas (e Rousseau escreve que ele é uma delas, é
claro) são capazes de encontrar o seu caminho de volta à natureza. O tipo de ser
humano que pode encontrar o seu caminho de volta ao tipo de sentimento puro
da existência não será um filósofo, não será uma pessoa com capacidade reflexiva
de alto nível como Sócrates, mas o mais provável é que será um artista ou um
poeta. Sua afirmação de superioridade não é baseada em uma compreensão mais
elevada, mas em uma sensibilidade superior, menos voltada à sabedoria do que
à comiseração. Rousseau acreditava ser uma dessas pessoas. Talvez você também
seja uma destas pessoas. Mas isso requer que você, de alguma forma, se distancie
rigorosamente e psicologicamente de todas as possibilidades da sociedade para
voltar-se ao seu próprio interior, e foi essa viagem ao interior que Rousseau
empreendeu e relatou de modo tão surpreendente em suas Confissões (2008a) e
em seu último livro, Os Devaneios do caminhante solitário (2008b). Nestas obras você
encontra o Rousseau fundador da disposição romântica, o qual inspirou tantos
outros escritores e poetas que olharam para dentro de si e buscaram, de alguma
forma, um retorno à natureza, ao seu self natural em oposição à sociedade.
O Contrato Social começa com uma das frases mais famosas de toda a história
da filosofia política, "o homem nasceu livre, e não obstante, está acorrentado em
toda a parte” (1999c, p. 25). Uma dica para você quando for escrever um artigo
ou ensaio, sempre comece com uma asserção boa e forte assim. Rousseau sabia
disso, ele sabia como escrever. A frase parece estar em perfeita consonância com o
Segundo Discurso. No estado de natureza, nascemos livres, iguais e independentes.
Só na sociedade é que nos tornamos fracos, dependentes e escravizados. Mas, é
o que se segue após essa frase que é surpreendente. “Como é que se deu essa
239
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
A obra começa mesmo antes da famosa frase sobre o homem que nasceu
livre, ela é prefaciada por uma declaração que poderia ter vindo diretamente d’O
Príncipe de Maquiavel. "Considerando os homens tais como são e as leis tais como
podem ser”, Rousseau diz: "Procurarei sempre, nesta investigação, aliar o que o
direito permite ao que o interesse prescreve, a fim de que a justiça e a utilidade
não se encontrem divididas” (ROUSSEAU, 1996, p. 7). Você deve lembrar
do décimo quinto capítulo d’O Príncipe, quando Maquiavel diz para irmos ao
encalço da verdade efetiva das coisas, “em vez de ceder à mera fabulação” sobre
as mesmas, não ir em busca do que imaginamos ser, mas de como as pessoas
realmente são (MAQUIAVEL, 2009a, p. 146). Rousseau nos diz que não vai
começar fazendo pressupostos heroicos sobre a natureza humana, nenhum voo
metafísico extravagante, mas vai ficar no terreno mais baixo, porém mais firme
dos fatos reconhecidos. O que ele quer dizer com isso e quais são esses fatos da
240
TÓPICO 3 | JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE E O CONTRATO SOCIAL
natureza humana, os homens tal como eles são, que Rousseau afirma descrever
n’O Contrato Social? Chegamos agora à premissa básica do livro. A premissa básica
a partir da qual todo O Contrato Social se desenrola é a afirmação de que o homem
nasce livre. Todas as relações posteriores de hierarquia, obrigação e autoridade
são o resultado não da natureza, mas de acordos ou convenções. Toda a sociedade
e os laços morais que a constituem são convencionais por via de acordos. Não há
nada de natural em qualquer aspecto do contrato social. A partir dessa base do
homem como um agente livre, pois nascemos livres, Rousseau tenta elaborar um
sistema de justiça.
241
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
dizer que todos os padrões de justiça e de direito têm suas origens na vontade,
nessa propriedade humana singular, a vontade ou agência livre. A libertação da
vontade de todas as fontes ou normas transcendentes, sejam estas encontradas
na natureza, nos costumes, na revelação, ou em qualquer outra transcendência,
é o centro de gravidade da filosofia de Rousseau. É um mundo que começa a
enfatizar a primazia e a prioridade da vontade, um ponto de vista moral que
conforme indicaremos mais adiante, encontra a sua maior expressão na filosofia
de Immanuel Kant.
242
TÓPICO 3 | JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE E O CONTRATO SOCIAL
243
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
244
TÓPICO 3 | JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE E O CONTRATO SOCIAL
245
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
que alguém é mais livre na cidade republicana de Lucca, que tem libertas na
parede, do que em Constantinopla. Isso parece, há mais ou menos 100 anos antes
de Rousseau, sugerir uma alternativa poderosa para sua visão de liberdade.
Mas Rousseau vai dizer a você que ele não está, de modo algum, sendo
idealista. Ele está partindo do pressuposto dos homens como eles de fato são. A
não ser que todo mundo se engaje no processo de legislação, não haverá maneira
de você saber se as leis serão a expressão de sua vontade, em vez de simplesmente
a vontade privada ou a vontade corporativa de algum indivíduo ou intermediário.
Sem a participação direta, você se encontrará em uma condição de dependência
246
TÓPICO 3 | JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE E O CONTRATO SOCIAL
247
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
do Livro III, Rousseau parece estar em diálogo com um rival anônimo a quem ele,
às vezes, simplesmente se refere como o “autor famoso”. Esse autor, obviamente,
é Montesquieu, o autor d’O Espírito das Leis, obra publicada em 1748, 14 anos
antes da publicação d’O Contrato Social. Montesquieu era famoso por argumentar
que as diferentes formas de governo devem ser adaptadas a diferentes climas,
diferentes geografias e diferentes circunstâncias. De muitas maneiras, no Livro
III, Rousseau parece indicar ou introduzir uma ênfase quase anti-rousseauniana
sobre a prudência, a moderação e a flexibilidade, que parecem em desacordo
com as afirmações dogmáticas dos dois primeiros livros com sua ênfase na
inviolabilidade absoluta da soberania. Mas o que é central para Rousseau é que
a autoridade legislativa, em qualquer tipo de constituição e sob qualquer tipo de
governo, seja sempre realizada pelo povo em sua capacidade coletiva. É por isso
que no capítulo 15, do mesmo Livro, Rousseau rejeita totalmente a legitimidade
do governo representativo. Essa passagem poderia ser considerada como um
repúdio, não apenas de Locke e sua teoria do governo representativo, mas
também do argumento federalista a favor da representação que seria publicado
25 anos mais tarde, em 1787. Preste atenção na citação a seguir:
A soberania não pode ser representada pela mesma razão que não pode
ser alienada; consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade não
se representa: ou é a mesma, ou é outra – não existe meio-termo. Os
deputados do povo não são, nem podem ser os seus representantes;
são simples comissários, e nada podem concluir definitivamente. Toda
lei que o povo não tenha ratificado diretamente é nula, não é uma lei.
O povo inglês pensa ser livre, mas está redondamente enganado, pois
só o é durante a eleição dos membros do Parlamento; assim que estes
são eleitos, ele é escravo, não é nada. Nos breves momentos de sua
liberdade, pelo uso que dela faz bem merece perdê-la. (ROUSSEAU,
1996, p. 114, III, 15)
A soberania nunca pode ser representada, ela só pode ser expressa pela
vontade geral. A vontade geral não pode ser delegada a outra pessoa. Se você
fizer isso, se você delegar a autoridade para fazer as leis, você está dando o
primeiro passo no caminho à tirania, porque você está dando a alguém, a algum
corpo parcial ou associação, o poder de fazer a lei acima e a despeito de você. A
função de legislar só pode legitimamente ser realizada pelas próprias pessoas,
pelo próprio povo.
248
TÓPICO 3 | JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE E O CONTRATO SOCIAL
ser customizada ou adaptada para levar amor e obediência à vontade geral. Foi
esse capítulo, mais do que qualquer outra coisa, que levou os livros a serem
queimados e proibidos em Genebra e em outros lugares, por esta proposta e
pelo poderoso ataque ao cristianismo também ali presentes. Vamos deixar todos
estes assuntos e suas profícuas discussões de lado aqui, na esperança de que você
se debruce sobre eles durante a sua leitura. Agora vamos somente falar sobre
“os legados” de Rousseau. Usamos deliberadamente essa palavra no plural, “os
legados”, porque não há praticamente nenhuma parte da vida moderna, seja
política, cultural, intelectual e moral que de algum modo não contenha o carimbo
ou as impressões digitais de Jean-Jacques Rousseau.
249
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
250
TÓPICO 3 | JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE E O CONTRATO SOCIAL
Não foi um menor legado o fato de Rousseau, após sua morte, tornar-se
um herói, tanto para a revolução, quanto para a contrarrevolução, tanto para um
reavivamento do republicanismo ao estilo romano, quanto para o Romantismo.
Ralph Waldo Emerson, Henry Davis Thoreau, e o transcendentalismo americano
com a sua veneração da natureza e seus protestos contra o tipo de influência
da sociedade corruptora e de amortecimento, todas essas pessoas foram os
herdeiros diretos de Rousseau. O último trabalho de Rousseau, um livro
chamado Os Devaneios do Caminhante Solitário (2008b), preparou o palco para
clássicos americanos posteriores, como Walden Pond e gerações de escritores da
natureza que vieram depois dele e imitavam-no. Apenas pelo afastamento do
barulho e dos assuntos da sociedade se pode retornar ao que precede a sociedade,
ao sentimento da existência, à sensação da mera existência, ao sentimento de
existência, o Le sentiment de soi, como Rousseau o chama, o sentimento do self. Há
um tipo de união que ele celebra com a natureza, que coloca o caminhante solitário
ou acima da humanidade ou abaixo dela. Esse tipo de homem prenunciado por
Rousseau, o solitário, não é mais um filósofo em qualquer sentido que possamos
entender. Poderia ser melhor entendido como um artista ou um visionário.
Este pode reivindicar um lugar privilegiado na sociedade, porque é um tipo de
pessoa que considera a si mesmo como a consciência daquela sociedade. Sua
reivindicação por privilégio é baseada em uma sensibilidade moral elevada, em
vez de sua sabedoria ou sua racionalidade. É esse tipo de individualismo radical,
o desapego radical do solitário aos interesses da sociedade, que é talvez o legado
mais profundo e mais duradouro de Rousseau para nós hoje.
251
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
LEITURA COMPLEMENTAR
O fato de que todas as variações do modelo por nós consideradas (e que não
esgotam o número das que poderiam ser indicadas) sejam o reflexo de diferentes
posições ideológicas e tenham, como consequência, relevantes implicações
políticas, revelou-se com muita clareza e não necessita de ulteriores comentários.
Deve ser ainda esclarecido que, entre a estrutura de um modelo e sua função
ideológica, não subsiste aquele paralelismo perfeito que seríamos tentados a
imaginar: o mesmo modelo pode servir para apoiar teses políticas opostas, e a
mesma tese política pode ser apresentada com modelos diversos. Trata-se, de
resto, do bem conhecido problema da complexa relação, de modo algum simples
e simplificável, entre a construção de uma teoria e seu uso ideológico: relação que
desencoraja ou deveria desencorajar os que buscam correspondências unívocas
(dada tal teoria, tem-se determinada ideologia).
252
TÓPICO 3 | JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE E O CONTRATO SOCIAL
Todavia, para além das variações estruturais, até mesmo nos limites de
um único modelo, e para além das divergências ideológicas, todas as filosofias
políticas que se enquadram no âmbito do jusnaturalismo têm – com relação às
que as precedem e às que as sucedem – uma característica distintiva comum:
a tentativa de construir uma teoria racional do Estado. Nas primeiras páginas,
insistimos no ambicioso projeto da chamada escola do direito natural, a começar
por Hobbes, de elaborar uma ética, uma ciência do direito, uma política (ao que
se acrescentará, no final, uma economia), ou, em suma, uma filosofia prática
demonstrativa, isto é, apoiada em princípios evidentes e deduzida desses
princípios de modo logicamente rigoroso. Esse projeto culmina na teoria do
Estado, não só porque o Estado, e em geral o direito público, constitui a parte
final da teoria do direito e era até então a parte teoricamente menos desenvolvida,
mas também porque é aquela a que os próprios jusnaturalistas deram maior
destaque, e que deixou atrás de si maiores marcas, tanto que o jusnaturalismo foi
geralmente considerado como uma corrente de filosofia política.
253
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
254
TÓPICO 3 | JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE E O CONTRATO SOCIAL
que constrói o Estado como ente de razão por excelência, único no qual o homem
realiza plenamente sua própria natureza de ser racional. Se é verdade que, para
o homem enquanto criatura divina, extra ecclesiam nulla salus, é igualmente
verdade que, para o homem enquanto ser natural e racional, não há salvação
extra rempublicam.
Para Locke, as leis naturais são as próprias leis da razão. Mas, para
observar as leis da razão, são necessários seres racionais, ou melhor dizendo, são
necessárias condições tais que permitam a um ser racional viver racionalmente,
ou seja, seguir os ditames da razão. Essas condições não existem no estado de
natureza: existem somente na sociedade civil, a qual, portanto, configura-se
também em Locke como o único local em que os homens podem ter a esperança
de viver segundo as leis da razão. As leis civis, com efeito, não são – não deveriam
255
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
ser – nada mais do que as próprias leis naturais munidas daquele tanto de
poder coercitivo capaz de obrigar também os recalcitrantes a respeitá-las. Por
conseguinte, se os homens querem viver o mais possível racionalmente, devem
ingressar naquela única sociedade onde as leis naturais podem se transformar em
verdadeiras leis, ou seja, em normas de conduta que não são apenas formalmente
válidas, mas também eficazes de fato. Essa sociedade é o Estado. Para Kant, a saída
do estado de natureza e o ingresso no estado civil não são apenas consequência
de um cálculo utilitário, como é o caso certamente em Hobbes, Spinoza e Locke,
mas um dever moral; não são um imperativo hipotético, não são mera regra de
prudência (“se queres a paz, entra no estado civil”), mas um imperativo categórico,
um comendo da razão prática, um dever moral: “Do direito privado no estado
natural, decorre agora o postulado do direito público: tu deves, graças à relação
de coexistência que se estabelece inevitavelmente entre ti e outros homens, sair do
estado de natureza para entrar num estado jurídico” (Kant, Metaphysik der Sitten,
§42). Isso quer dizer que, pelo menos no tocante à vida de relação, às condições
de existência da liberdade externa, o Estado tem um valor intrínseco absoluto (daí
o caráter absoluto do poder soberano e, consequentemente, da obediência que
lhe é devida); não é um expediente, um remédio, cujo valor dependa do valor da
finalidade, mas um ente moral (moral, observe-se, não ético!). O indivíduo não é
livre (no que se refere à liberdade externa) se não ingressa no reino do direito; mas
o reino do direito perfeito é aquele no qual o direito privado-natural é submetido
ao direito público-positivo, ou, em suma, é a sociedade civil. Numa história
ideal da humanidade, como aquela que vai da liberdade selvagem do estado de
natureza à liberdade refreada da sociedade civil, a instituição do Estado é um
momento decisivo, a ponto de constituir uma ideia reguladora para o projeto
daquela futura sociedade jurídica universal para a qual tende o homem em sua
gradual aproximação a uma forma de existência cada vez mais conforme a razão.
256
TÓPICO 3 | JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE E O CONTRATO SOCIAL
257
UNIDADE 2 | FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA: HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
FONTE: BOBBIO, Norberto. O Estado segundo a razão. In: BOBBIO, Norberto; BOVERO,
Michelangelo. Sociedade e Estado na Filosofia Política moderna. 4. ed. São Paulo: Brasiliense,
1994. p. 85-95.
258
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico você viu que:
• Os escritos de Rousseau são variados e sua influência tem sido muita. Ele tanto
ajuda à fruição quanto a conclusão do movimento político e intelectual do
Iluminismo. Ele conduz este movimento à sua fase mais elevada de perfeição,
todavia, ao mesmo tempo, ele foi um crítico severo do mesmo.
• A guerra e as próprias paixões que a fazem surgir só pode existir uma vez que
estamos em sociedade. O estado de guerra é de fato meramente o estado de
sociedade. Isso não pode referir-se ao homem natural, porque nas condições
naturais não há relações sociais deste tipo.
• O homem, para ele, não é o animal racional, o ser pensante, o ser com logos,
mas somos a criatura sensível. A bondade natural do homem no estado de
natureza é corroborada por esta qualidade de piedade ou comiseração que nós
até mesmo compartilhamos com outras espécies.
259
• Rousseau aponta de volta para uma concepção clássica de governo da polis
antiga e da república antiga, uma concepção na qual a política tinha entre
seus objetivos e os de supervisionar a busca e a aquisição de propriedades,
mitigando os efeitos mais severos das desigualdades econômicas.
260
• O contrato social, como apresentado por ele no Segundo Discurso, é realmente
um tipo de fraude, é um tipo de embuste que os ricos e os poderosos usam para
controlar os pobres e os despossuídos. Legitima as desigualdades que foram
criadas após a nossa emergência da condição natural.
• Na sociedade nós somente vivemos através das opiniões dos outros, através
do olhar dos outros, através do que os outros pensam sobre nós. Nós estamos
constantemente fora de nós mesmos, ausentes para o nosso próprio sentimento
de existência, somos homens sem conteúdo, somos inautênticos.
• O tipo de ser humano que pode encontrar o seu caminho de volta ao tipo de
sentimento puro da existência não será um filósofo, não será uma pessoa com
capacidade reflexiva de alto nível como Sócrates, mas o mais provável é que
será um artista ou um poeta.
261
• A liberdade do cidadão sob a vontade geral não é a liberdade do estado de
natureza, não é a liberdade de fazer qualquer coisa que quiser, qualquer coisa
que a nossa vontade e o nosso poder nos permite fazer, mas é um novo tipo de
liberdade, que ele chama de liberdade moral, a liberdade para fazer o que a lei
ordena.
• Para Rousseau, as leis são legítimas desde que todo mundo tenha uma
participação direta na sua elaboração. Isso não significa que todos estarão de
acordo com o resultado, mas apenas que todos tiveram algum tipo de ação ou
de voz em sua elaboração.
• A não ser que todo mundo se engaje no processo de legislação, não haverá
maneira de você saber se as leis serão a expressão de sua vontade, em vez de
simplesmente a vontade privada ou a vontade corporativa de algum indivíduo
ou intermediário. Sem a participação direta, você se encontrará em uma
condição de dependência e escravidão da vontade dos outros.
262
• Embora o ataque de Rousseau ao governo representativo pareça colocá-lo
fortemente em desacordo com a nossa Constituição e de outras Repúblicas
democráticas vigentes, sua glorificação da república rural baseada na igualdade,
na simplicidade moral, no ceticismo sobre o comércio e o luxo, ressoou em
escritos de grandes pensadores políticos e estadistas.
263
AUTOATIVIDADE
264
UNIDADE 3
FILOSOFIA POLÍTICA
CONTEMPORÂNEA
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Esta unidade tem por objetivos:
PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No final de cada um deles você
encontrará atividades que reforçarão o seu aprendizado.
TÓPICO 1 – O TOTALITARISMO
265
266
UNIDADE 3
TÓPICO 1
O TOTALITARISMO
1 INTRODUÇÃO
Para estudarmos a filosofia política contemporânea foi necessário optar
por alguns autores específicos, portanto escolhemos autores cujas obras possuem
maior afinidade com aquilo que iremos tratar nesta unidade. Neste tópico iremos
discorrer sobre alguns elementos que fazem parte dos regimes totalitários. Para
efeito de estudo recorremos à obra de Hannah Arendt Origens do Totalitarismo,
que nos auxiliará na compreensão do assunto.
2 HANNAH ARENDT
Hannah Arendt nasceu em Linden, na Alemanha, em 1906. De origem
judaica, tornou-se uma das pessoas mais influentes do século XX. Desde a mais
tenra idade seus estudos se direcionaram para a filosofia. Foi aluna de Martin
Heidegger quando estudou na Universidade de Marburg, sua relação extrapolou
as linhas acadêmicas e foram amantes por um longo tempo. Com a ascensão do
nazismo na Alemanha, Hannah, se sentindo ameaçada, foi para Paris em 1933 e
267
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
posteriormente em 1940 foi para os Estados Unidos, devido às ameaças que sofria
na França. No ano de 1951 naturalizou-se americana, sendo que no mesmo ano
publicou seu livro As Origens do Totalitarismo. Desenvolveu um pensamento crítico
e independente, deixando um legado filosófico significativo para a compreensão
de muitas questões relacionadas à filosofia política contemporânea.
UNI
SUGESTÃO DE LEITURA:
268
TÓPICO 1 | O TOTALITARISMO
3 ESTADO TOTALITÁRIO
Para efeito de estudo, iremos analisar os elementos do Estado totalitário
separadamente, pois acreditamos que essa seja uma maneira mais simples e
objetiva para compreendermos o assunto. Estes elementos se inter-relacionam
de maneira a possibilitar o surgimento, o desenvolvimento e a manutenção dos
regimes totalitários.
269
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
270
TÓPICO 1 | O TOTALITARISMO
FIGURA 10 - TOTALITARISMO
271
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
3.3 A PROPAGANDA
A propaganda foi uma arma poderosa nas mãos dos estados totalitários,
pois por meio deste instrumento é possível manipular a mente das pessoas
através da exposição diária, constante e intensa sobre a ideologia do Estado. É o
meio pelo qual as mentiras são veiculadas e propagadas no sentido de garantir a
ascensão política do movimento e posterior permanência no poder. A propaganda
totalitária não se restringe a pequenos espaços de tempo na televisão, no rádio ou
272
TÓPICO 1 | O TOTALITARISMO
nos jornais impressos, vai muito além, pois todos os meios de comunicação, as
artes, literatura, filmes etc., são apropriados pelo governo totalitário no sentido
de promover sua ideologia e doutrinar as pessoas.
FIGURA 11 - STÁLIN
273
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
Hannah Arendt (2012, p. 474) afirma que “somente a ralé e a elite podem
ser atraídas pelo ímpeto do totalitarismo; as massas têm de ser conquistadas
por meio da propaganda”. A propaganda cria um mundo fictício no qual reside
a esperança das massas, que consiste em fugir de um mundo de problemas,
necessidades e privações, refugiando-se na esperança de que aquilo que está
sendo proposto será possível com sua adesão ao movimento.
274
TÓPICO 1 | O TOTALITARISMO
3.4 AS MASSAS
As massas são fundamentais para a sustentação do totalitarismo, por pelo
menos dois motivos. O primeiro motivo é a quantidade, pois o líder totalitário
precisa de súditos e evidentemente que aqueles que se opuserem ao sistema
totalitário serão enviados para os campos de trabalho forçado, para a prisão ou
mortos. Nesse processo há uma diminuição drástica de pessoas disponíveis para
a manutenção do Estado totalitário, que vão desde os burocratas, os agentes
militares e os que trabalham na manutenção do regime. O segundo motivo é que
as massas não possuem uma ideologia enraizada e por este motivo são fáceis de
manobrá-las ideologicamente, fazendo com que abracem a ideologia do Estado
totalitário sem muito questionamento ou até mesmo nenhum.
276
TÓPICO 1 | O TOTALITARISMO
O cidadão totalitário perde sua personalidade, não busca uma razão lógica
para as suas ações, ou por ignorância ou por medo de estar cometendo injustiça
e não ter que lidar com sua consciência. Sua maneira de pensar é doutrinada pela
propaganda totalitária, que de certa maneira o condiciona a agir de acordo com as
ordens do governo totalitário. O homem das massas é como uma marionete nas
mãos de quem controla a política totalitária. Seus movimentos não são resultado
de sua liberdade totalmente consciente, mas são pensados e determinados por
alguém que exerce o controle e o domínio sobre a vida pública e privada dos
indivíduos.
FIGURA 12 - AS MASSAS
277
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
4 O ANTISSEMITISMO E OS APÁTRIDAS
Não há como falar de totalitarismo sem fazermos referência ao
antissemitismo e aos apátridas. Diante das crises e problemas é comum as pessoas
procurarem um culpado, como se isto fosse a solução. No caso da Europa, os
nacionalistas viam nos estrangeiros, nos grupos étnicos, uma ameaça constante à
estabilidade econômica e política de seus países.
278
TÓPICO 1 | O TOTALITARISMO
E
IMPORTANT
Devemos lembrar que não foram somente judeus que morreram nos campos de
extermínio da Alemanha, pois para lá foram levados ciganos, alemães que eram contrários ao
nazismo e considerados inimigos do regime, deficientes físicos, homossexuais, testemunhas
de Jeová ou qualquer pessoa que apresentasse um comportamento antissocial.
279
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
abolidos. Toda propaganda nazista alemã tinha como alvo a eliminação completa
dos judeus, por considerar que este grupo era responsável pelos problemas na
Alemanha. O resultado desta investida nazista foi um genocídio onde morreram
mais de seis milhões de judeus nos campos de extermínio.
280
TÓPICO 1 | O TOTALITARISMO
O texto a seguir nos dá uma noção mais exata sobre a questão dos apátridas.
281
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
5 “TUDO É POSSÍVEL”
Diante do genocídio causado pelo totalitarismo, essa expressão ganha um
novo sentido para Arendt. Os regimes totalitários foram capazes de mostrar ao
mundo que o ser humano é capaz de cometer as maiores atrocidades contra seu
semelhante, os líderes totalitários e seus seguidores provaram que não há limite
para a maldade humana. Diante desta realidade, a expressão “tudo é possível”
nos faz repensar o que podemos fazer para que o que aconteceu não se repita.
282
TÓPICO 1 | O TOTALITARISMO
UNI
SUGESTÃO DE FILME
283
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
LEITURA COMPLEMENTAR
ORIGENS DO TOTALITARISMO
284
TÓPICO 1 | O TOTALITARISMO
FONTE: Arendt, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p.
638-639.
285
RESUMO DO TÓPICO 1
• A polícia secreta que está diretamente ligada ao líder totalitário e dele recebe
ordens, se tornando o executivo do regime, pois cumpre o papel de eliminar
qualquer ameaça à continuidade do regime totalitário.
• E, por fim, qual o sentido da expressão “tudo é possível” para Arendt e para
nós.
286
AUTOATIVIDADE
287
Agora, assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) As afirmativas I, II e III estão corretas.
b) ( ) As afirmativas II e IV estão corretas.
c) ( ) As afirmativas I e IV estão corretas.
288
UNIDADE 3
TÓPICO 2
1 INTRODUÇÃO
A ação humana na história precisa ser considerada em sua natureza e
estrutura para que possamos compreender o funcionamento da sociedade
moderna. O Estado moderno é resultado de uma construção e desenvolvimento
gradativo dos princípios morais e éticos que hoje norteiam as relações humanas
na vida em comunidade. À medida que o tempo vai passando, as relações
sociais vão ficando cada vez mais complexas. Nesse sentido, elementos novos
são acrescentados aos já existentes com a finalidade de tornar a convivência em
sociedade menos violenta.
Dito isto, convido você a dar mais um passo em direção aos novos
conhecimentos sobre o Estado moderno, lembrando que este material não esgota
o assunto, sendo apenas o ponto de partida para estudos e pesquisas mais
aprofundadas. Mãos à obra!
289
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
2 ERIC WEIL
O filósofo Eric Weil nasceu na cidade alemã de Parchim, em 1904, de
família judaica. Estudou Medicina e Filosofia nas universidades alemãs e em
1933 mudou-se para a França, tornando-se cidadão francês. Durante a Segunda
Guerra Mundial ele lutou ao lado dos franceses na resistência às tropas alemãs.
Foi capturado e ficou preso até 1945. No período em que esteve preso se dedicou
a ler e a estudar, foi um período de amadurecimento de suas ideias, sendo que em
1950 publicou sua tese de doutorado. Suas principais obras trazem importantes
reflexões sobre as questões pertinentes ao Estado moderno, a moral e a cidadania,
entre outros temas.
290
TÓPICO 2 | A MORAL, O ESTADO, A SOCIEDADE E O INDIVÍDUO
E
IMPORTANT
O sentido de discussão nas obras de Weil não é aquele que é comumente usado
no dia a dia, que tem o sentido de brigar. Discussão em Weil tem o sentido de examinar
detalhadamente um determinado assunto, levantando questionamentos por parte dos
interlocutores.
UNI
O que Weil percebeu é que todos têm algo a dizer, mesmo que este algo
seja simples ou até mesmo sem sentido, mas o homem se constitui a partir do que
ele expressa. Um exemplo moderno disso são as redes sociais, que têm sido um
meio importante, possibilitando que as pessoas se expressem, mesmo que, para
alguns, determinadas expressões sejam de certa forma ridículas. Este espaço,
entretanto, permite que as pessoas critiquem e expressem suas opiniões sobre
os mais diversos assuntos, abrindo espaço para que haja discussão, elemento
fundamental na construção da cidadania.
291
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
292
TÓPICO 2 | A MORAL, O ESTADO, A SOCIEDADE E O INDIVÍDUO
293
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
E
IMPORTANT
É muito importante que o cidadão aprenda a ouvir com cautela, pois sempre
que a língua for mais rápida que o pensamento, muitas coisas são ditas sem medir as
consequências. Mesmo nas discussões mais acirradas é necessário preservar o respeito e
o bom senso. No campo político, principalmente, é comum observarmos uma retórica que
tem como objetivo desconstruir o outro, em muitos casos se utilizando de argumentos falsos
com um tom de verdade, enganando os incautos.
na lei e aplicar aquilo que a lei determina. É claro que mesmo a aplicação da lei é
passiva de discussão, pois a lei pode ser interpretada de diferentes maneiras. Por
este motivo que a vida numa comunidade é dialética, pois a cada discussão se
abre a possibilidade para novas discussões e análises.
O que podemos concluir sobre a discussão é que ela é uma prática comum
entre as pessoas, pois quanto mais as pessoas estiverem abertas à discussão, à
análise racional das questões comuns, haverá uma maior chance de que a
sociedade melhore, aperfeiçoe e mude seus conceitos e preconceitos.
4 O ESTADO MODERNO
Na vida em comunidade cada indivíduo, cada instituição, cada
organização possui seu espaço, com o objetivo de que o coletivo caminhe em
direção à estabilidade e à felicidade geral. Essa união racional e organizada da
comunidade é denominada de Estado. De acordo com Mota (2015, s.n.),
295
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
296
TÓPICO 2 | A MORAL, O ESTADO, A SOCIEDADE E O INDIVÍDUO
297
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
UNI
298
TÓPICO 2 | A MORAL, O ESTADO, A SOCIEDADE E O INDIVÍDUO
A Lei Maria da Penha tem por objetivo coibir a agressão física contra as
mulheres, tornando crime esse tipo de atitude por parte dos homens. Por muito
tempo, no Brasil, as mulheres sofreram com o abuso da força bruta dos homens,
pois quando não conseguiam se impor pela argumentação, recorriam a atitudes
agressivas de espancamento. Com esta lei o Estado passou a interferir diretamente
nessas situações de violência e permitir à mulher mais liberdade e igualdade em
relação aos homens. Isso tem sido um passo muito importante nos direitos das
mulheres.
Se a lei muitas vezes não faz justiça, qual é sua importância? A importância
fundamental da lei está no fato dela existir e o cidadão poder se referir a ela, pois
se a mesma é injusta ou não, a questão é que ela existe. Pior do que uma lei injusta
é a inexistência de alguma lei, pois não havendo lei os indivíduos podem fazer o
que quiser, pois não há uma regra na qual se pode recorrer e fazer valer o menor
direito que seja. Havendo lei há um parâmetro sobre o qual o cidadão poderá
pautar suas decisões. A questão de justiça será tratada no próximo tópico.
Para finalizar este tópico, vamos falar um pouco mais sobre a tarefa do
Estado moderno. De acordo com Weil (1990, p. 186),
299
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
300
TÓPICO 2 | A MORAL, O ESTADO, A SOCIEDADE E O INDIVÍDUO
5 CIDADANIA
Para Camargo (2014, p. 15), “problematizar a ideia de cidadania significa
perguntar sobre o modelo de sociedade e comunidade política que se quer
construir”. O indivíduo que faz parte de um Estado está condicionado a cumprir
obrigações para com o Estado de maneira a fazer com que este garanta os direitos
do cidadão. Entre os direitos fundamentais de um cidadão se encontra aquele de
o Estado garantir que as leis sejam cumpridas. A existência do Estado se deve
à participação do indivíduo, pois a individualidade no Estado está atrelada à
universalidade, pois a menos que o indivíduo se isole completamente, ela fará
parte da sociedade, mesmo que essa participação seja mínima, como, por exemplo,
ser apenas mais um número nas estatísticas.
301
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
6 A MORAL E A POLÍTICA
Antes de qualquer coisa, precisamos responder a duas perguntas: O que
é moral? e, O que é política?
Moral diz respeito ao mor, moris, que traduz o grego tá ethika. O termo
Moral designa, tanto em latim como em grego, aquilo que se refere aos
costumes, ao caráter, às atitudes humanas em geral e, em particular, às
regras de conduta. Moral pode ser definida também como um conjunto
de regras que são seguidas no interior dos grupos humanos.
302
TÓPICO 2 | A MORAL, O ESTADO, A SOCIEDADE E O INDIVÍDUO
O dever de ser feliz, para Weil (apud CAMARGO, 2014, p. 93), “todo dever
do homem moral é fundado no dever para consigo mesmo, que é o dever de ser
feliz”. A felicidade é a busca de todo homem e para isso ele empreende seus
esforços. O dever de ser feliz não é um dever do outro em relação ao indivíduo,
mas é dever do indivíduo para consigo mesmo. É através da sua ação moral no
mundo que ser feliz se torna possível. A felicidade é o ponto fundamental para a
vida do cidadão, pois felicidade não consiste naquilo que o homem possui, mas
acima de qualquer coisa, a felicidade está relacionada ao que o homem é para
consigo mesmo e para a comunidade.
303
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
A ação política precisa ter sentido, ou seja, é necessário que para toda e
qualquer ação política haja o elemento de racionalidade. As ações precisam ser
pensadas. Nesse sentido, o lugar da moral na política consiste no fato de que
por meio dela se questione o sentido de uma determinada ação política. Sendo a
moral um conjunto de regras, logo, deve ser tomada como fundamento da ação
política, pois “o cidadão só é socializado e politizado pela moral” (CAMARGO,
2014, p. 80). A socialização é a assimilação dos hábitos, costumes, leis, tradições
etc., de uma determinada sociedade. No decorrer da vida o indivíduo passa por
este processo de socialização e a moral tem um papel fundamental neste processo,
pois é por meio dela que o indivíduo deverá descobrir se suas ações são aceitáveis
ou reprováveis em uma determinada sociedade. Nesse sentido, um indivíduo
é considerado moral quando cumpre com os deveres morais estabelecidos pela
comunidade. O indivíduo imoral é aquele que não cumpre com seus deveres
morais e por isso sofre sanções e punições em decorrência de seu comportamento.
O indivíduo amoral é aquele que é incapaz de julgar se determinada ação é
moralmente aceitável ou não, neste grupo se encaixam as pessoas com alguma
deficiência mental.
304
TÓPICO 2 | A MORAL, O ESTADO, A SOCIEDADE E O INDIVÍDUO
O homem precisa ter consciência de que pode ser moral, ou seja, é capaz
de viver em uma comunidade que tem estabelecida uma moral que o antecede,
mas que ao identificar-se com a comunidade precisa abraçar a moral estabelecida.
“O que busca o indivíduo moral (descobrir a moral que o torne verdadeiramente
moral) é a satisfação, o apaziguamento da sua inquietude sobre o sentido da
vida, a reconciliação interior que suprima o conflito e divisão - em uma palavra,
a felicidade”. (WEIL apud VALE, 2013, p. 163).
A moral, afirma, pois, que todo homem tem em si tudo o que constitui
a humanidade do homem. Na verdade, é assim que ela define o
homem. O que ela deduz daí resume-se na afirmação de que não
devo nunca considerar um ser humano como objeto, como coisa
manipulável e utilizável; devo respeitar nele a humanidade, tratá-lo
como ser razoável.
Essa colocação de Weil deixa muito claro qual deve ser o tratamento em
relação ao outro, pois qualquer indivíduo é constituído de humanidade, embora
as ações de alguns de certa maneira os desqualifiquem desta que deve ser a
característica fundamental daquele que faz parte da comunidade.
Para concluir este assunto, Weil (apud VALE, 2013, p. 166) diz que “a vida
moral não constitui o todo da vida humana, mas sem ela não existe a vida humana
propriamente dita”. Observe que a moral está intrinsecamente relacionada com
a nossa existência. Por que não existe a vida humana propriamente dita sem a
moral? A principal característica da vida humana são as relações sociais que o
indivíduo estabelece. Para que as relações sociais perdurem é necessário que sejam
305
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
reguladas por algum tipo de moral, pois do contrário, em sua grande maioria
as relações sociais não se sustentam. Nesse sentido, as regras são fundamentos
necessários à vida em comunidade.
7 O VALOR SOCIAL
Cada indivíduo possui obrigações para com a comunidade da qual faz
parte. A cidadania consiste em estar consciente destas obrigações e assumi-las.
Para compreendermos um pouco mais sobre isso, precisamos entender que o ser
humano, ao longo da história, vem se organizando em sociedade no sentido de
sobreviver aos desafios naturais. Nesse sentido, a sociedade travou uma luta pela
sobrevivência que Weil (1990, p. 77) coloca da seguinte maneira:
Observe que nesta luta pela sobrevivência cada indivíduo tem um papel
social. Éric Weil trabalha com a ideia de que o indivíduo possui um valor social,
e este valor está associado ao que o indivíduo representa para a sociedade. Na
sociedade moderna o indivíduo luta no sentido de garantir sua utilidade para a
sociedade agregando maior valor social à sua pessoa. Segundo Weil (1990, p. 102),
306
TÓPICO 2 | A MORAL, O ESTADO, A SOCIEDADE E O INDIVÍDUO
relação ao valor financeiro pago a ele por sua contribuição social, veremos que há
uma injustiça muito grande. O valor social nem sempre está no mesmo nível que
o valor monetário.
LEITURA COMPLEMENTAR
FONTE: WEIL, Éric. Filosofia Política. São Paulo: Loyola, 1990. p. 92.
307
RESUMO DO TÓPICO 2
• Cidadão é aquele que participa da vida pública, sua participação deve ser
garantida pelo Estado. Cidadania é a preocupação com o bem-estar coletivo.
• Moral diz respeito aos deveres que o cidadão tem para com a comunidade no
sentido de garantir uma vida sem violência.
308
AUTOATIVIDADE
3 Eric Weil dá importância muito grande ao fato de que a discussão deve fazer
parte da construção social tanto do indivíduo quanto da comunidade. Sobre a
necessidade da discussão na construção social, analise as sentenças a seguir:
4 Sabemos que cada indivíduo possui um valor social, dependendo do que ele
pode contribuir para com a comunidade. Nesse sentido, analise as sentenças
a seguir e assinale V para as verdadeiras e F para as falsas:
309
310
UNIDADE 3
TÓPICO 3
1 INTRODUÇÃO
A obra de John Rawls, Uma Teoria Política, é um marco importante na
história da filosofia política contemporânea. Sua ideia de contrato social apresenta-
se como uma alternativa ao utilitarismo, pois Rawls faz uma defesa da justiça
com equidade resultante da escolha de princípios justos. Os indivíduos têm a
obrigação de fazer justiça social, não com vistas ao bem para um número maior
de pessoas, mas a justiça social acontece a partir do momento em que, em última
instância, os menos favorecidos sejam contemplados pelas vantagens decorrentes
das decisões políticas.
2 JOHN RAWLS
O filósofo John Rawls nasceu em 1921, na cidade de Baltimore, nos
Estados Unidos. Devido ao conhecimento e envolvimento de sua família com
alguns movimentos sociais, Rawls foi influenciado em suas concepções sobre
temas como justiça, liberdade e igualdade. Foi bem-sucedido em sua carreira,
trabalhando em Princenton, Oxford e Harvard. Em sua obra retoma a teoria do
311
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
A grande questão a ser respondida por Rawls, que não é uma questão
nova, mas que vem desde o surgimento da filosofia política, é a seguinte: O que
é uma sociedade justa? Na sua obra Uma Teoria da Justiça, Rawls propõe alguns
procedimentos e orientações que são considerados fundamentais para que um
Estado elimine, ou pelo menos minimize, os problemas das desigualdades sociais,
que são tão recorrentes no mundo. Nesse sentido, o princípio fundamental para
que estas mudanças ocorram diz respeito a uma concepção clara do que é justiça
e como é possível estabelecer princípios de justiça que possibilitem uma vida
melhor e mais digna aos menos favorecidos.
Sua teoria é uma proposta diferente daquilo que vinha sendo proposto
pelo utilitarismo. Sua ideia de contrato social visa, em última instância, que os
indivíduos ajam de forma racional no sentido de promover a justiça social, não
com vistas apenas ao bem-estar de um maior número de pessoas, mas com vistas
naqueles que se encontram numa situação desfavorecida em relação aos demais.
Isso nos leva ao próximo passo, de que a teoria da justiça de Rawls se constitui
numa alternativa ao utilitarismo clássico.
Além de sua obra magna, Uma Teoria da Justiça, Rawls escreveu Liberalismo
Político e O Direito dos Povos, que representam as três fases de seu pensamento em
torno do tema da justiça social. Essas obras despertaram novamente os debates
acerca daquelas questões consideradas fundamentais com relação à vida humana.
312
TÓPICO 3 | JUSTIÇA, LIBERDADE E IGUALDADE
Para ilustrarmos o que foi dito até aqui, leia atentamente a tirinha abaixo:
313
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
Você percebeu que a escolha em não matar a abelhinha não era com vistas
no direito de ela viver, mas a escolha baseou-se na ideia de que com a abelha
viva as pessoas se beneficiariam com isso. Neste caso se aplica a ideia de que o
indivíduo não é um fim em si mesmo, mas consiste num meio para os meus fins.
Nesta concepção do outro como um fim em si mesmo, os princípios da liberdade
e igualdade estão ameaçados, pois o outro será livre enquanto sua liberdade me
trouxer benefícios. O utilitarismo, em certo sentido, incentiva o egoísmo, é a lei
do mais forte.
A escolha a partir de uma visão utilitarista está restrita a uma visão muito
individualizada. Segundo Rawls (2008, p. 33), “O utilitarismo não leva a sério a
distinção entre as pessoas”. Esse é um ponto importante, pois tratar as pessoas
com igualdade não significa que todos os indivíduos são iguais. As pessoas são
distintas em suas personalidades, preferências, desejos etc. Criar uma sociedade
harmoniosa não é criar uma sociedade de iguais, uma sociedade harmoniosa
consiste numa sociedade composta de indivíduos com suas diferenças, mas que
sabem conviver com elas respeitando os limites, cumprindo com seus deveres
e tendo seus direitos respeitados. Os princípios de justiça no utilitarismo
são baseados nas escolhas de indivíduos que já conhecem sua posição social
e, portanto, irão elaborar leis que lhes proporcionem uma maior vantagem
em relação aos demais. Um indivíduo não poderá escolher por todos quais
são os melhores caminhos para a sociedade, a menos que seja destituído das
contingências sociais que influenciam suas escolhas. Esta é a proposta da teoria
da justiça como equidade, que veremos adiante.
314
TÓPICO 3 | JUSTIÇA, LIBERDADE E IGUALDADE
você pague por aquilo que consumiu, mesmo que ninguém foi ao quarto para
conferir se você consumiu alguma coisa ou não. A ideia de justiça como equidade
tratará exatamente desta questão, pois não sabendo em que situação você estaria,
se de hóspede do hotel ou dono do hotel, qual seria sua escolha? Que princípio
de justiça você adotaria para uma atitude como esta? Este assunto será tratado
adiante.
UNI
SUGESTÃO DE LEITURA:
Nesta obra, publicada pela primeira vez em 1971, Rawls explica suas ideias
e conceitos sobre justiça. É uma obra vasta, que se propõe a responder
como é possível construir uma sociedade justa, igualitária e livre. Ao
apresentar sua teoria da justiça, Rawls expõe de maneira bastante
detalhada como se deve dar a escolha dos princípios de justiça e o papel
de todos os envolvidos. É um verdadeiro clássico, vale a pena ler!
315
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
Para que a escolha daquilo que deve consistir nos princípios norteadores
da associação entre os indivíduos, o ponto fundamental é que todos se encontrem
numa posição de igualdade de condições. A igualdade é o valor fundamental na
convivência política, enquanto que a liberdade é o valor supremo da vida humana.
Ao escolher os princípios de justiça, os indivíduos devem necessariamente ter os
valores da liberdade e da igualdade acima de qualquer outro valor.
Circunstâncias
Decisões C1 C2 C3
d1 -7 8 12
d2 -8 7 14
d3 5 6 8
A regra maximin exige que tomemos a terceira decisão, pois, nesse caso,
o pior que pode acontecer é ganhar quinhentos dólares, o que é melhor que a
pior para os outros atos. Se adotarmos um desses outros, poderemos perder
oitocentos ou setecentos dólares. Assim, a escolha de d3 maximiza f (d, c) para
317
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
318
TÓPICO 3 | JUSTIÇA, LIBERDADE E IGUALDADE
319
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
UNI
SUGESTÃO DE FILME:
Você não poderá deixar de assistir a este filme. O filme trata do dilema e as
dificuldades encontradas por uma jovem negra em uma sociedade onde
os negros eram vistos como mercadoria. Nele são discutidas questões
importantes sobre a liberdade, igualdade, moral e justiça. Baseado em
história real, reflete a coragem e a determinação de uma jovem e um
jovem em mudar as leis no sentido de que estas sejam justas e que
todos sejam tratados com igualdade pelos tribunais. O filme é rico em
diálogos muito inteligentes e construtivos. Vale a pena assistir!
320
TÓPICO 3 | JUSTIÇA, LIBERDADE E IGUALDADE
que um mordomo. Por quê? O negociador poderá alegar que este médico poderá
desempenhar melhor seu trabalho entre as pessoas pobres de uma região isolada
se tiver uma boa condição financeira, então, em última instância, os menos
favorecidos financeiramente seriam beneficiados com esta diferença. O mordomo,
por sua vez, desenvolve suas atividades em função de pessoas mais privilegiadas
economicamente, o que, por sua vez, não traz benefícios aos menos favorecidos.
Esta concepção do princípio de diferença pode mudar se considerarmos o fato de
que os médicos ganham mais porque fazem atendimentos a pessoas em melhores
condições econômicas e um mordomo cuida de uma pessoa inválida e que só
poderá sair de casa com sua ajuda. É claro que isso nos levaria para outros níveis
de discussão e consideraríamos outras questões. Todavia, no segundo caso (o
médico que se dedica a cuidar dos mais ricos) o princípio de diferença seria
injustificável. Por quê?
321
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
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TÓPICO 3 | JUSTIÇA, LIBERDADE E IGUALDADE
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UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
324
TÓPICO 3 | JUSTIÇA, LIBERDADE E IGUALDADE
5.1 TOLERÂNCIA
A vida em sociedade é caracterizada pelas diferenças. Uma sociedade
democrática deve preservar com muita ênfase a tolerância, seja religiosa, política,
filosófica, cultural etc. A convivência com o outro exige que os indivíduos tenham
a capacidade de suportar os outros com suas diferenças. No entanto, a tolerância
está vinculada à liberdade. Não podemos fugir da difícil questão sobre até que
ponto eu devo tolerar as práticas do outro, se estas colocam em risco a minha
liberdade? De que maneira o Estado deverá intervir em tais situações?
ordem pública que o Estado deve manter”. Esta expectativa razoável se refere
aos critérios estabelecidos no sentido de garantir a liberdade de todos. A
sociedade democrática não impede que as pessoas tenham seus credos, mas a
mesma sociedade democrática pode impor limites se as crenças de um indivíduo
colocarem em risco a vida do outro. O Estado deve intervir, por exemplo, se uma
determinada prática religiosa exigir a morte de pessoas em sacrifício para alcançar
determinados poderes espirituais. O Estado regula determinadas práticas no
sentido de garantir a ordem pública e a liberdade igual, e não tomará partido
por qualquer doutrina ou religião, mas assegurará que os cidadãos tenham pleno
direito de exercer suas faculdades, podendo aderir a qualquer religião, filosofia
ou partido político, desde que seja assegurada a ordem pública e a segurança dos
demais indivíduos que fazem parte da sociedade.
Diante disso, vamos nos deparar com outra questão de difícil resposta: a
tolerância para com os intolerantes. De que maneira lidar com os movimentos ou
religiões cujos princípios visam suprimir a liberdade do outro?
6 DEVER E OBRIGAÇÃO
De acordo com Rawls (2008, p. 416), “Do ponto de vista da teoria da justiça,
o dever natural mais importante é apoiar e promover instituições justas”. Esta
afirmação nos remete ao princípio de equidade individual. Ao se associar a uma
instituição justa, o indivíduo tem a obrigação de cooperar com esta instituição,
assim como os demais indivíduos que dela fazem parte. Em contrapartida,
tendo cumprido com suas obrigações, o indivíduo tem naturalmente o direito de
desfrutar das vantagens provenientes da sua cooperação.
327
UNIDADE 3 | FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
Os dois últimos deveres são negativos, pois o que é exigido do indivíduo é a não
ação, exige que não façamos nada que prejudique o próximo. No entanto, o dever
natural básico é a justiça.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Caro acadêmico(a), percorremos mais este caminho juntos na busca
pelo conhecimento. Sabemos que a filosofia política é um campo muito vasto,
procuramos tratar dos temas que consideramos importantes em nossa sociedade.
Ressaltamos que demos os primeiros passos na direção da ampliação de nossos
horizontes filosóficos, muito embora não tenhamos conseguido tratar de
todas as questões filosóficas relacionadas à política. Reconhecemos as nossas
limitações, mas nos esforçamos para possibilitar a você um conteúdo pertinente
para compreender as difíceis e complexas questões relacionadas à vida em
sociedade. Sabemos que as demandas sociais exigem que, cada vez mais, as
pessoas envolvidas na educação sejam capazes de propor soluções inteligentes
e oportunas para os problemas do dia a dia. Nesse sentido, acreditamos que seu
preparo irá contribuir significativamente no processo de politização da nossa
sociedade.
328
TÓPICO 3 | JUSTIÇA, LIBERDADE E IGUALDADE
LEITURA COMPLEMENTAR
Parece razoável supor que as partes na situação original são iguais. Isto
é, todos têm os mesmos direitos no processo da escolha dos princípios; todos
podem fazer propostas, apresentar razões para sua aceitação, e assim por diante.
É óbvio que a finalidade dessas condições é representar a igualdade entre os
seres humanos como pessoas morais, como criaturas que têm uma concepção
do próprio bem e estão capacitadas a ter um senso de justiça. Considera-se que o
fundamento da igualdade é a similaridade nesses dois aspectos. Os sistemas de
fins não são classificados segundo seu valor, e presume-se que cada pessoa tem
a capacidade necessária para entender quaisquer princípios adotados e agir em
conformidade com eles. Junto com o véu de ignorância, essas condições definem
os princípios da justiça como aqueles que pessoas racionais interessadas em
promover seus interesses aceitariam em condições de igualdade, quando não há
ninguém que esteja em vantagem ou desvantagem em razão de contingências
naturais ou sociais.
FONTE: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 21-26.
330
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, vimos que:
• Teoria de justiça defendida por John Rawls é apresentada como uma alternativa
ao utilitarismo.
• Para que a escolha dos princípios de justiça seja desinteressada, Rawls defende
uma situação hipotética, em que os indivíduos responsáveis por esta escolha se
encontrem numa “posição original” sob o “véu da ignorância”.
331
AUTOATIVIDADE
332
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