Você está na página 1de 15

Textos sobre Narcisismo,

Depressão e Masoquismo (*)

ANT6NIO COIMBRA DE MATOS (**)

Sobre o Narcisismo

O Homem é essencialmente um animal culas da auto-imagem; como é pouco, asse-


narcísico -que se admira e precisa de ser nhora-se de apetrechos que o possam fazer
admirado. A sua qualidade é o orgulho; o brilhar; a sua problemática é a do ter
seu defeito, a vaidade. O bom narcisismo -para suprir aquilo que não é. O orgu-
assenta num sentimento de dignidade pes- lhoso, seguro de si, deixa-se observar; o vai-
soal. A deficiência narcisica, o sentimento doso, inseguro mas desejoso de mostrar o
de vacuidade, de vazio e miséria interiores contrário, exibe-se. O orgulhoso tem brio, o
conduz à vaidade. O orgulhoso (I) tem brio, vaidoso procura brilhar.
porque assume a plenitude do seu ser; se- Esta distinção entre orgulho e vaidade
nhor do seu amor próprio e do seu valor procura tão somente salientar o que há de
social, é. O vaidoso (2) pinta-se com tinta diferente entre o narcisismo positivo, de-
brilhante para esconder as mazelas, as má- corrente de um bom investimento de si
mesmo, e o narcisismo negativo, condicio-
nado por um deficiente investimento de si
(*) Titulo da responsabilidade da Redacção. próprio e que acarreta frequentemente um
Os títulos originais dos artigos (((Sobre o Nar- mecanismo de supercompensação com a
cjsismo~, «Masoquismo e Depressão~,«Redução construção ilusória de uma auto-imagem
do Masoquismo» e ((A Revolta contra o Objecto
SAdico») foram mantidos.
grandiosa. Podemos também falar de nar-
(**) Psicanalista. Membro Didacta da Socie cisismo positivo ou autofilia (amor a si pró-
dade Portuguesa de Psicanálise. prio) e de um narcisismo negativo ou auto-
(I) O orgulho vem do frhcico: urguli -exce- fobia (aversão a si próprio).
lência, sentir-se de qualidade excelente, eIevado
conceito de si mesmo.
O processo de compensação narcísica
(') Vaidade tem origem no latim: vanitate - pela grandiosidade, pela exaltação ilusória
qualidade do que é vão, falso e ilusório, o fátuo da auto-imagem é como um prémio de con-
mascarando o vácuo. solação que o indivíduo se atribui a si
mesmo pelo facto de não se ter sentido e E se não obtém o amor de que tanto pre-
sentir suficientemente amado e admirado cisa, as saídas psicopatológicas possíveis
pelos seus objectos (reconhecido no seu são:
próprio valor); resulta, pois, da necessidade
de reparar pelos seus próprios meios o in- a) a depressão;
suficiente investimento que recebeu e recebe b) o investimento narcísico ilusório, a
dos outros - não amado nem admirado grandiosidade maníaca (ou os seus
pelo objecto, é ele próprio a amar e admi- derivados compensatórios: o exibicio-
rar a sua imagem reflectida pelo espelho: nismo das personalidades narcísicas
necessariamente má porque, à partida, não ou a representação de um papel das
apreciada pelo olhar do outro (não desen- personalidades histéricas);
cadeou o espanto e o desejo) e que, por isso c) a regressão-compensação oral: buli-
mesmo, ele procura artificialmente valori- mia, toxicomania, alcoolismo;
zar (retoques, exibicão) para retomar a fina- d) a regressão-compensação anal: pelo
lidade primeira, ser desejado. aumento das posses -bens, dinhei-
Em última análise, o narcísico enamora- ro, colecções, etc.;
-se de si mesmo em razão de não ser ou não e) o agir sexual, preenchendo com sexo
se sentir o objecto do enamoramento do o que não recebeu e não recebe em
outro. Quer dizer: o narcisismo está para o amor;
amor objecta1 como o auto-erotismo para f ) a revolta e a delinquência;
o alo-erotismo; é uma ~masturbaçãoamo- g ) a construção delirante.
rosa». O narcisismo é um substituto da rela-
ção amorosa; como a masturbação o é da O trágico é que o indivíduo que não foi
relação sexual. E o homem é um animal amado não aprendeu a amar. E não sabendo
narcísico porque toma aguda consciência da amar dificilmente poderá vir a ser amado.
necessidade de ser amado. A sua sede de amor é muito grande, mas o
Quando o indivíduo não se sente amado, seu ódio à relação amorosa ou a sua des-
deprime-se. E a melhor defesa ou reparação crença no amor levam-no a estragá-la ou a
dessa depressão é o amar-se a si mesmo, o nunca a conquistar - pela relação ambiva-
investir-se narcisicamente. Simplesmente, lente e depressivante ou pela relaqão per-
este processo tem limites - se o sujeito con- versa e deteriorante, às quais adere.
tinua a não ser amado, dá-se um esgota- Só um verdadeiro amor, uma paixão,
mento lidibinal, não há energia amorosa seja ela na vida ou na relação analítica,
para se amar a si próprio (pois o amor pode fazer uma renovação do sentir condu-
nasce e desenvolve-se apenas na relação zindo a um renascimento do ser. É no es-
amorosa). tado nascente do enamoramento, no movi-
Mas do amor também se constiutem re- mento amoroso, que se curam as feridas do
servas. E a maior reserva amorosa forma-se amor.
na infância, pelo amor que os pais dedicam
aos filhos. Se esta reserva não foi consti- X é um homem tímido e deprimido. Foi
tuída ou é pequena, o indivíduo tem neces- uma criança triste, nunca se sentiu bem
sidade constante de ser amado e deprime-se amado pela mãe. Uma intensa paixão pla-
em face da mais leve perda de amor ou da tónica na adolescência retira-o da situação
sua mais curta ausência. E só um forte depressiva. Mas a decepção que esta mu-
amor posterior o poderá curar dessa carên- lher lhe causa, mergulha-o de novo em fun-
cia. da e longa depressão. Em adulto jovem
liga-se com uma mulher que o ama, nias quilo que é («Se fosse mais bonita ... Se
sem grande entusiasmo; aceita-o, mas não o fosse mais forte.. . Se tivesse ouvido para a
deseja. A depressão mantém-se, embora de música.. . Se tivesse jeito para dançar.. .»
menor grau; mas a relação monótona e que etc.).
se vai tornando ambivalente, agrava-a. É, Mas, precisamente, o neurótico é aquele
então, uma nova relação amorosa, em que que vive no passado, prisioneiro do passa-
se sente apaixonadamente desejado, que o do, do que foi. E ninguém pode viver no
retira da depressão. passado! Todos temos de ir para a frente.
O misoneismo é tudo o que há de mais es-
Y foi uma rapariga insatisfeita e triste. tagnante no desenvolvimento individual e
Sempre sentiu que a mãe não a aceitava. da cultura. E a própria Psicanálise - o que
Envereda por um agir sexual que a distrai é grave - enferma desta neofobia («. .. que
mas não compensa. Acumula insucessos e foi sempre a culpa da gente melhor que
degrada o seu existir. A beira do abismo, jamais houve», diz João Ribeiro em Páginas
sente-se tentada pelo suicídio; perdeu a es- de Estética. Um dos grandes problemas é
perança. Apaixona-se e é bem amada - este: é que os detentores da cultura, os
tudo muda e encontra uma grande alegria mentoses dos povos, os pais e os mestres, a
de viver. «gente melhor» -que, de facto, não o é,
mas passa por o ser - são ferrenhos sau-
É preciso dizer-se que são ambos pacien- dosistas e tacanhos repetidoses, defendendo
tes em análise, e em quem foi possível des- a instituição e impedindo a renovação).
mantelar os maus objectos internos e criar Viver no passado é viver no purgatório, a
na transferência um espaço de comunicação expiar culpas; e na sombra, admirando os
livre e de circulacão, sem peias, do afecto; resplandescentes. Mas viver, propriamente
quer dizer, devolver à pessoa a espontanei- viver, é saltar para o «paraíso», dando-se a
dade de relacionar-se e o sentimento de po- si mesmo o direito ao acesso ao prazer e
der ser objecto do amor.
deixando-se banhar pelo sol que é de todos!
O último aspecto é essencial: ninguém se Podemos queimar-nos no inferno da decep-
cura enquanto não adquirir um sólido sen- ção e do desaire, mas também atingir o
timento de ser uma pessoa capaz de mere-
éden da paixão. E só vivida apaixonada-
cer e atrair o amor de outrém; vale dizer,
enquanto não reparar a sua ferida narcísica, mente a vida tem sentido.
desfizer o sentimento de inferioridade ou Só na paixão amorosa encontramos a ver-
menor valor. dade do outro e a nossa própria verdade.
A raiz dos sentimentos de inferioridade É a porta de entrada no mundo da autenti-
está no passado, na infância; nos insucessos cidade.
infantis e adolescenciais; e na prisão às re- O neurótico é o que não sabe apaixonar-
gras e aspirações da família de origem, no -se, deixou de se apaixonar (é isso a de-
juízo crítico dos pais e educadores, dos pressão), tem medo de se apaixonar, não
maiores, que sempre apontaram exemplos quer (por raiva contra o outro e o mundo,
de perfeição, estabelecendo comparações e que se vira contra si próprio) apaixonar-
deprimentes para o sujeito ou lamentando -se. Esta resistência à paixão (a que se con-
as suas imperfeições. Designadamente esta vencionou chamar, no processo analítico, a
última atitude é altamente danificante da transferência positiva) é o principal óbice
auto-imagem: o sujeito interioriza essa pena, ao desenrolar produtivo da cura analítica.
essa mágoa, lamentado-se eternamente da- Não vimos até hoje (e a nossa experiência
não é curta) nenhuma análise resolutiva em identidade e estilo relacional, a abertura a
que não tenha havido um forte movimento uma existência diferente, a um possível,
de transferência positiva, uma paixão, um que, pelas alterações verificadas na estru-
verdadeiro entusiasmo pela análise - que tura do aparelho psíquico, se torna razoá-
passa por um amor/identificação pelo e vel.
com o psicanalista. O psicanalista é um catalizador da mu-
Toda a análise que mereça esse nome dança que o analisando sempre esperou,
passa por um movimento de rotura com o mas que não tinha meios nem instrumentos,
passado e com o preserzte (com este último força nem coragem para concretizar, pôr
não é menos importante), um movimento em marcha. Mas a sua acção catalítica,
de renovação, um renascimento, um nasci- como na química, passa pela sua presença,
mento para uma nova vida, em moldes di- associação e actuacão sobre o analisando,
ferentes, com outros horizontes. E se não sendo recuperado no final do processo; é
for assim, não é análise, não é nada. Só se dizer, o analista não se consome nem fica
sai da neurose por uma rotura com a neu- ligado ao analisado. A transferência é uma
rose -a neurose actual, vigente, que é o ligação transitória que permite a transfor-
reflexo e a continuação da neurose infan- mação doente, a reacção que o transforma.
til; a neurose clínica, o sofrimento presente, A presença do analista, com a sua acção
que é o produto primário ou secundário, interpretativa, cataliza uma reacção de mu-
directo ou distorcido da neurose da infân- dança.
cia (à inibição da sexualidade infantil pode
seguir-se, por exemplo, a sexualidade per- Na análise tudo se pode dizer sem ver-
versa no adulto). Esta rotura processa-se gonha e tudo se pode sentir sem pudor,
por um movimento emocional, afectivo, por assim como tudo se pode pensar sem culpa,
uma paixão por outra coisa, por outro medo ou sensação de ridículo. E é esta liber-
objecto -que é a psicanálise e o psicana- dade - quando atingida, porque vencidas
lista. Este movimento revolucionário - que as resistências - que dá ao processo ana-
fez a revolução do próprio indivíduo e do lítico a dimensão da experiência extraordi-
seu estar no mundo - é o processo de trans- nária, que sai dos moldes do quotidiano,
ferência, a aventura para uma nova forma do ordinário. Neste sentido, o processo ana-
de existir. Só muda quem se apaixona, quem lítico ou a experiência analítica é idêntica
se entusiasma, quem ama outra coisa, outro à experiência amorosa e/ou à experiência
revolucionária: o psicanalista é o objecto
ser - para se tornar ele próprio «outra pes-
de amor e/ou o companheiro de percurso
soa*. É um amor de fim inibido, que se
transforma em identificação; o amor erótico
-predominantemente o objecto de amor
se o analisando é do sexo oposto, mais o
transmuta-se em amor de identificação, o companheiro de rota se é do mesmo sexo.
desejar ter o objecto em ser como o objecto Assim, numa análise heterossexual, o difícil,
-que aqui é como dizer livre de escolher em regra, é a suficiente aliança de trabalho
o que deseja. O amor de transferência não para combater a neurose e a perversão (as
se resolve no encontro ideal nem na morte, inibições e os curto-circuitos de passagem
na fusão dos corpos ou na separação, mas ao acto), a idealizaçáo e identificação do e
na mutação identificativa - que não quer com o analista, e, numa análise homossse-
dizer uma assimilação da personalidade do xual, o suficiente amoriamizade para su-
analista, mas a selecção e escolha de uma portar a dureza do trabalho analítico e o
outra alternativa de vida, uma mudança de sofrimento desse processo.
Masoquismo e Depressão

A necessidade dum objecto bom leva à imensa culpabilidade insconsciente (de tão
idealização do objecto -com negação das ameaçado e culpabilizado que foi) são
suas propriedades más - e ao recalcamento enormes e a sua ultrapassagem e expulsão
do ódio para com esse objecto: por medo exigem um labor interpretativo intenso e
de perder em maior extensão o amor do aturado e um contínuo mas lento cresci-
objecto (receio de abandono e/ou rejeição), mento do Eu, com uma progressiva conso-
por culpabilidade (sentimento, em regra in- lidação da confiança em si próprio e na sua
justificado, de ser ele próprio o culpado), força e capacidade de confrontação com o
por medo de uma retaliação agressiva da mundo e com os outros. Com efeito, uma
parte do objecto, pelo receio de ser consi- das mais graves consequências da relação
derado pelos outros como o mau (manter a com um objecto sádico, controlador, culpa-
imagem de bom) -medo, portanto, de ser bilizante e inferiorizante é a debilitação do
rejeitado não só pelo objecto em causa, Eu com destruição da sua capacidade de
como pelo mundo objecta1 em geral (ser oposição e luta, da coragem e da confiança
detestado por toda a gente, ser marginali- na sua própria força. Ninguém sai da de-
zado). missão masoquista sem cultivar e afirmar a
«Hás-de ficar só, toda a gente te abando- sua força. Todo o masoquista deve meditar
nará» - dizia o objecto sádico, depressi- na máxima latina «si vis pacem, para bel-
vante (neste caso, a mulher) a um dos nos- lum» (se queres a paz, prepara-te para a
sos analisandos. guerra).
No momento em que este doente faz a Por outro lado, a culpabilidade do maso-
inversão do seu masoquismo, ouvimos-lhe quista condu-lo a uma sensibilidade pato-
dizer: lógica em face do sofrimento alheio, sendo
«Chegou a altura de fazer uma opção: incapaz de adoptar uma atitude lúcida e
prefiro que ela me chame e considere um deixando-se arrastar pela argumentação
sacana, a continuar a ser uma vítima». egoísta ou pela posição patológica do
Foi o momento chave da viragem para a outro. Vejamos um exemplo:
saúde neste paciente. Não obstante, e como
é habitual, os movimentos regressivos com Uma analisanda, cedendo a pressões da
flexão masoquista e depressiva continuaram irmã, aceita em sua casa um sobrinho e
a dar-se. De facto, só um lento e persistente afilhado. Embora sentindo que isto repre-
trabalho de análise e perlaboração permite senta para ela uma sobrecarga de trabalho,
a manutenção do movimento progressivo de um aumento de preocupações e uma intru-
são na sua privacidade, procura ignorá-lo
deflaxão da agressividade e afirmação do
- negá-lo e recalcá-10 -, e comenta:
Eu, vencendo os medos e as culpas, o há- «A minha irmã só tem este filho, tem
bito masoquista e a rotina depressivante. uma relação frouxa com o marido, vive para
Mais uma vez e uma vez mais, aqui e ali, ele, não pode compreender que o miúdo
acolá e acoli, o vício masoquista -ditado (que tem 18 anos) ficaria muito bem num
pelo profundo medo e culpa - emerge e, lar universitário. Portanto, que é que eu
com ele, a situação de sobrecarga depressi- havia de fazer senão aceitar que ele fosse
vogénea. O medo da retaliação do mundo, lá para casa? Coitadinha, escreveu-me uma
s'ob as mais variadas formas, assim como ri carta tocante:
"(. ..) Sabes quanto me custa aceitar este - Para ficar, com a mana, a adorar o
teu sacrifício (...). Só o faço pelo muito bezerrinho.. . No fundo, você continua
amor que te tenho e pelo amor que sei que muito presa à sua infância: a irmã e o
tens por mim (...). Assim ele tem o que sobrinho, os representantes da família de
eu sempre lhe quis dar, um ambiente fami- origem, do passado, são, para si, mais im-
liar (. . .). Mas saberei retribuir-te tudo isto, portantes e mais amados que as pessoas da
e Deus te recompensará! (.. .) Era dema- sua família actual, da sua própria família.
siado doloroso para mim, insuportável E ainda acha que é o seu marido que não
mesmo, ver o meu querido filho sozinho tem razão; quando ele tem, em relação a
num Lar, exposto a todos os perigos, sa- este acontecimento, todas as razões para se
bendo que em tua casa podia ter o carinho sentir maltratado.
e o conforto de uma família e da tia de
quem ele gosta como da mãe, e do teu filho Esta vinculação ao passado, sem verda-
que ele adora como um verdadeiro irmão.. . deira mudança de objecto, é um dos traços
Que Deus te abencoe como mereces!" fundamentais da personalidade depressiva.
Como vê, era-me absolutamente impos- E a deformação ilusória (no sentido da
sível dizer-lhe que não.» idealização) da imagem dos objectos da
- Sim, que pensaria a mana de si? E os infância, sustentáculo desse apego, é o me-
outros, o mundo? Que era insensível, fria, canismo psicótico - de negação (denega-
má. Assim, continua boa, mas à custa do ção) da realidade objecta1 - preponderante
seu sacrifício, do dos seus filhos e do seu na estrutura depressiva. O outro mecanis-
marido. Mas é uma santa. mo de defesa importante, na depressão, é
«Que se lixe a santidade! De facto, o o recalcamento do ódio e da agressividade;
que sou, o que continuo a ser é uma parva, este, de nível neurótico ( I ) .
uma burra de quem toda a gente abusa, de Com o decorrer da análise, esta irmã «tão
quem todos se servem.» boa» virá a mostrar-se como uma pessoa
-Pois é, mas a mana é tão boa, o so- calculista, manipuladora, profundamente
brinho tão simpático.. . egoísta e narcísica, oportunista, sempre
«É verdade, continuo sempre a pensar «levando a água ao seu moinho*, mas com
assim: os outros é que são bons, merecem uma extrema arte para fazer supor e pa-
tudo. Com prejuízo da minha própria fa- recer que a conduz às azenhas dos outros.
mília, dos meus filhos, do meu marido.» Defende o amor, mas casa tarde com um
-Tem momentos de lucidez; em todo velho rico. Passa por pobre, porque se
o caso, não consegue criticar e opor-se à arranja sempre de modo a que a fortuna do
atitude pré-histórica da irmã a adorar o marido seja aplicada em bens não tran-
bezerro de ouro, o filho idealizado. Esque- saccionáveis, que rendem muito pouco mas
cendo-se que nem sequer está a beneficiar se valorizam bastante (a estrutura anal, de
o seu sobrinho; está simplesmente a cola- ambos, é evidente). Isto permite-lhe viver
borar na educação errada e na super-pro-
tecção da mãe, impedindo-o de se tornar
(I) Há dois mecanismos de defesa essenciais:
um homem adulto e independente.
o recalcamento de determinados afectos e a nega-
«Tem graca que foi isso mesmo que me ção (ou denegação) de partes da realidade. O pri-
disse o meu marido. Fiquei zangadíssima, meiro define a parte neurótica da personalidade;
disse-lhe que era um estupor, um egoísta. o segundo, a parte psicótica. Em todo o quadro
psicopatológico há sempre uma porção da perso-
Fui mais longe, pensei que não o suportava, nalidade em funcionamento neurótico e uma em
que tinha de me separar dele». funcionamento psicótico.
explorando os outros -verifica-se que não a oposição dele fosse sentida pelos próprios
põe o filho num quarto alugado ou numa familiares como uma demonstração de
pensão porque não quer gastar dinheiro, egoísmo e malvadez e não como uma es-
alegando que não tem rendimentos para o pontânea e natural reacção à intrusão do
poder fazer; mas, entretanto, capitaliza na sobrinho; a sua táctica foi tão eficiente que
construção de uma casa para o filho. O re- o casal esteve em vias de separação.
sultado é que a nossa analisanda, que passa
Um masoquista libertar-se de um sádico
por ser a mana rica só porque o marido
com quem tem uma longa relação, não é
ganha razoavelmente, sustenta-lhe o filho,
tarefa fácil. Foi o que aconteceu com a
mas não tem dinheiro para comprar casa
para os seus próprios filhos! nossa cliente, desde a tenra infância subtil-
O que é importante notar é que a nossa mente dominada por esta irmã. Levou
analisanda só muito tardiamente se dá conta muito tempo a poder abertamente expri-
deste imbróglio em que se deixou meter e mir:
de que é vítima. «A minha irmã é na realidade um grande
Tarde, também, apercebe-se de que a ir- estupor. Passei a vida inteira a sofrer a sua
mã, uns anos mais velha, está muito mais influência nefasta sem o reconhecer. Passei
conservada do que ela. Nessa altura, comen- a vida inteira a sentir-me devedora em face
tamos : dela, quando afinal fui a grande explorada.
- Pudera, é que você tem feito trabalho Sempre a considerei uma santa, verifico
de escrava e ela exploração de senhora. agora que ela é diabólica; consegue sempre
Tardiamente, esta mulher compreenderá o que quer. Tenho sido um joguete nas
a personalidade sádica e controladora da mãos dela.»
irmã escondida sob o manto da pobreza, Este exemplo clínico mostra-nos quão
sedução e boa vontade - sempre prestável, importante é a análise das relações domi-
mas para se vir a pagar com elevados juros: nantes de um indivíduo e da neurose dos
uma habilíssima explorável-exploradora seus objectos privilegiados, designadamente
(começar por dar para melhor e com mais dos objectos do passado, dos objectos for-
força de razão poder exigir) e masoquista- madores. A irmã desta doente é uma perso-
-sádica (sofredora eterna para eternizar o nalidade sádico-anal fortemente homos-
domínio sádico sobre os outros).
sexual. Mulher frígida, faz um casamento
A irmã da nossa doente é um belo exem- de conveniência, produzindo um filho que
plo do sadismo dos masoquistas, da com- é o representante simbólico do seu pénis
plementaridade dos dois componentes da
ausente. Nestas circunstâncias, impõe-no
perversão moral.
como menino de oiro que os outros devem
Hábil manipuladora -como todo o per- admirar, adorar, proteger e amar, como se
verso -, nos grupos, arranja-se para selec- obrigatoriamente tivesse de ser o objecto
cionar um bode expiatório, que era a pessoa preferencial de toda a gente; e admira-se e
a acusar - e marginalizar ou excluir - revolta-se se acontece o contrário, porque
para melhor realizar os seus desígnios. No não pode admitir que assim não seja. No
caso vertente, foi o marido da nossa ana- seu delírio inconsciente de criacão mágica,
lisanda: como sentiu o desacordo dele, o filho é o falo divinizado; quem não o
tratou de lançar a discórdia entre o casal, aceitar assim, é um hereje a abater. Está
ateando o fogo do conflito larvar entre neste caso o cunhado, que, por isso mesmo,
marido e mulher (e até entre os filhos do ela odeia profundamente; muito embora,
casal que pôde seduzir e o pai), para que por projecção, se considere o objecto do
desprezo e até do ódio dele. No fundo, tem É evidente que não só o masoquismo
um interdito desejo sexual e amoroso por como a homossexualidade da nossa anali-
este cunhado, que, ao não poder realizá-lo, sanda permitiram que toda esta relação pa-
se transmuta em ódio. Da irmã, que é uma tológica se estabelecesse e mantivesse. E
mulher orgástica, tem uma profunda inveja, não só; também o seu nítido, embora incons-
que transforma numa amizade amorosa e ciente, interesse infantil e erótico pelo so-
proteccionista - afastando-a do marido e brinho. Por aqui se percebe também a
impondo-lhe o filho, realiza fantasmatica- grande reacção de recusa do marido.
mente (com o pénis/filho) a sua homos- É bem certo que só analisando todo o
sexualidade latente, ao mesmo tempo que sistema relaciona1 de um doente podemos
se vinga da decepção sofrida pelo amor chegar à plena compreensão da sua pato-
não realizado com o cunhado. logia.
Redução do Masoquismo

«O que eu não suportava na minha mãe Contorci-me.. . A minha mãe torceu-me!


e não consigo suportar no meu marido é Desfiz-me.. . A minha mãe desfez-me! Fiz-
este permanente desejo e intenção de me -me outra.. . A minha mãe fez-me outra!
torcer, de me obrigar a fazer o que eu não Aceitava quem eu, no fundo, rejeitava.
quero. Não é bem isso, é pior que isso, é O estupor da minha mãe conduziu-me a
obrigarem-me a aceitar e até gostar de quem aceitar aqueles que, no íntimo, sempre re-
eu não gosto. É uma verdadeira, uma terrí- jeitei.
vel violência moral, psíquica. Tem sido esta a minha contradição: ser,
Não é que me obrigue directamente. Nem fazer por ser, acabar por querer ser aquilo
isso se consegue com facilidade; ou não se que não sou.
consegue, mesmo, fazer. Ah, não! Quero ser eu, eu!
Não é possível mandarem nos nossos
Que montanha de raiva contra todos os
sentimentos. Esses são nossos; e, mesmo que
que me quiseram torcer cresce dentro de
reprimidos - ou contorcidos (por fora) -,
mim!. ..
ficam cá dentro. Jamais desaparecem ou se
alteram por uma pressão externa; foi uma Consciente ou inconscientemente, foi isso
das coisas que aprendi, descobri na psica- o que fizeram. Não posso deixar de sentir
nálise. São a coisa mais primitiva, mais uma imensa raiva; e dor, porque ao mesmo
essencial de nós próprios; mais genuína e tempo são pessoas de quem eu gosto.
verdadeira. (. ..) Mas porque me haviam de obrigar a
A minha mãe sempre fez aquele traba- gostar de quem eles gostavam? Não será
lho de sapa -diria mesmo de sabotagem- normal que eu possa não gostar de alguém
para me modificar, para me levar a fazer o que uma amiga goste, por exemplo? Acho
que ela queria, para me levar a gostar de que sim, que é normal; posso gostar da
quem ela queria que eu gostasse. minha amiga sem necessariamente ser igual
É isso que não lhe perdoo, que não lhe a ela, ter os mesmos gostos, as mesmas
posso perdoar. É essa a minha grande raiva inclinações pessoais -ela pode-me ter es-
contra ela. Porque isso me perturbou imen- colhido por uma razão diferente daquela
so. Porque isso me fez ser o que eu não pela qual escolheu outra pessoa.
era; o que eu, no fundo, não queria ser; Ora é isto que a minha mãe nunca con-
o que, ainda -e sempre (para meu bem, cebeu; e o que o meu marido não concebe.
descobri-o na análise) -, não quero ser. Gostar deles é ser igual a eles».
Quero ser eu própria; com as minhas quali-
dades e defeitos, mas eu própria. Ser aquilo Ora bem, dizemos nós, é este estilo rela-
que sou: boa ou má, mas eu! Gostar de cional narcisico -gostar, amar o igual a
quem eu quero; nunca, de quem eu não si mesmo e não tolerar a diferença de iden-
desejo! tidade do outro, do objecto, procurando
Contorci-me; desfiz-me, para me fazer fazê-lo à sua imagem e semelhança - que
outra. Outra, que não sou eu mesma. Ini- constitui um dos mais importantes elemen-
bida, porque era aquilo que não queria ser. tos patogénicos da personalidade dos pais/
Tímida, porque não fazia o que queria /educadores. Estes pais, ou estas mães, têm
fazer; odienta, porque amava quem não uma única perspectiva, vêem o mundo de
queria amar. um ângulo fixo, que é o seu, considerado o
melhor e o verdadeiro. São pessoas com um estou para ter mais trabalho em casa e
núcleo psicótico e uma visão delirante da perder parte das minhas comodidades e a
realidade: que não admitem a divergência minha privacidade. Ele acusa-me de eu não
de opiniões (só elas estão certas) e a relati- gostar do sobrinho. Isso não é verdade; mas
vidade das coisas (para elas, só há valores se fosse, estava no meu direito -tenho o
absolutos) -o bom é o que elas acham direito de gostar ou não gostar das pessoas.
bom; o mau, o que sentem como mau. São E para gostar dele (do João) não preciso,
pessoas que, principalmente, não suportam nem posso ser obrigada a gostar de quem
(emocionalmente) que os outros tenham ele gosta. Não faltava mais nada!
afectos diferentes dos seus; designadamente, Não tenho nada contra o meu sobrinho
que o objecto goste de alguém que o pró- (que nem é meu sobrinho, é sobrinho do
prio não gosta ou não goste de quem ele meu marido!). Mas é um intruso, alguém
gosta - nessa altura, o sujeito sente-se que perturba a intimidade do meu lar. Os
terrivelmente ameaçado na sua segurança pais, que o fizeram, que cuidem dele! Eu,
interna (porque pode perder -pela lucidez tenho os meus filhos e já me chega. Quando
que então se pode fazer no seu espírito - os fiz, assumi a responsabilidade de os edu-
um objecto securizante ou entrar em con- car; a minha cunhada que faça o mesmo.
tacto -por arrastamento - com um ob- Não tenho culpa que ela não trabalhe, que
jecto perseguidor, sentido como perigoso). seja uma menina bem que nunca quis fazer
No caso que começámos por citar, a mãe nada na vida. Se não têm dinheiro para o
da doente tinha uma relação anaclítica com pôr num colégio é porque não querem; que
a irmã mais velha e não tolerava que a vendam as quintas! E, mesmo que fosse
filha não gostasse da tia porque isso amea- verdade não terem possibilidades económi-
cas, o problema seria deles e não meu.
çava a sua relação de apoio na irmã. Com
Quem não pode, não faz; se não podiam
o marido, passa-se um fenómeno idêntico:
ter filhos, que não os fizessem. Agora isto
apoia-se num irmão de quem a doente não de arranjar filhos para os outros tomarem
gosta. Por outro lado, a doente tem uma conta é que não está certo. Mas esteja
amiga que o marido não tolera porque se certo ou não esteja, o que é certo é que eu
sente ameaçado pela desvalorização que ela não estou para o aturar. Quero o meu
possa fazer dele. sossego, o meu descanso, a minha tranqui-
Mas voltemos ao relato da analisanda e lidade, o meu bem-estar. Que o meu marido
vejamos mais alguns aspectos da sua sub- seja masoquista e dominado pelo mano, é
missão masoquista, agora em movimento de também o problema dele. Agora o que ele
deflexão (o que lhe acarreta grandes con- não pode fazer é obrigar-me a sê-10.
flitos externos, como iremos observar - Mas as coisas não são fáceis. O meu
mas que são o preço da saída para a expan- marido é teimoso como um burro, só ele
são pessoal, o preço da melhoria. a quantia tem razão; eu é que sou uma puta e uma
a pagar pelo assumir do seu direito à liber- egoísta e não penso noutra coisa que não
dade de ser ela própria e viver como de- seja no meu prazer e os meus interesses.
seja e com quem deseja): E o culpado é o Senhor, diz ele, que me
pôs assim. Segundo ele, estou cada vez pior,
«O sobrinho do meu marido, o filho do a psicanálise só me tem feito mal. Estou
"maninho querido", foi lá para casa. Não maluca, devia ir a um psiquiatra, tomar
suporto esta intrusão em minha casa. O meu calmantes, tratar-me, etc. Está bem de ver:
marido não sabe dizer não ao mano, e acei- não estou como ele quer; e como ele me
tou isto passivamente. Mas eu é que não conheceu - amiga dos pobrezinhos e cho-
rando pelos humilhados.. ., sofrendo pelos O meu casamento está em franca rotura.
outros e ignorando o meu sofrimento, sacri- Sinto-me triste mas não posso fazer nada.
ficando-me pelos outros e esquecendo-me de Ele não entende.
mim.. . uma masoquista de todo o tamanho No fundo, talvez eu não queira ter en-
e feitio. Era assim que ele queria que eu tendido até aqui. O João gosta de mim, mas
continuasse a ser. Foi assim que a puta da nunca se desligou da família dele. A mãe
minha mãe quis que eu fosse -ninguém, e os irmãos continuam a ser para ele as
ao serviço de todos. Puta de gaja, que bem pessoas mais importantes na sua vida; não
me lixou a vida. a mulher e os filhos. Nós estamos em se-
Com o meu marido é diferente. Eu gosto gundo plano. Esta é a verdade, embora
dele; e ele nunca me torturou como a mi- nunca me tenha querido aperceber dela.
nha mãe. Mas há algo de semelhante. Ele Talvez eu própria fosse um pouco assim e
também é um pouco como a minha mãe por isso não dava conta. Agora sou dife-
-a vítima e o carrasco. Vítima da sua rente e o contraste ajuda-me a ver.
família de origem, de um pai sádico e De facto, isto não foi fácil e demorou
controlador, de um irmão incompetente, muito.
chulo e explorador -que o explora, como
Já lá vão oito anos (...) de análise e só
agora se vê com a história do filho, mas
agora comecei a modificar-me, a mudar.
que veste a capa do explorado, do sacrifi-
Sinto-me como uma serpente que muda de
cado: segundo o meu marido, não estudou
pele, que larga a pele velha. Mas em que
para ele poder tirar um curso. Ora a ver-
a nova é ainda muito fina, frágil, vulnerá-
dade é que o João abdicou dos seus bene-
vel. A vezes tenho medo de me picar, de
fícios de viver na aldeia com os pais, onde
me ferir, de não ser capaz, de não aguentar,
nada faltava, para estudar em Lisboa em
de sofrer (...) Tenho medo (. ..) A pele an-
condições de grande modéstia, quase misé-
tiga, velha, desagradável, aparece-me então
ria; e se hoje ganha bem e o irmão mal, é
como lugar de refúgio, um abrigo seguro.
porque trabalha muito e o irmão nada.
Também tenho medo de, por causa do
É isto que eu não posso compreender nem
medo, voltar atrás ... Ao abrigo, seguro,
aceitar. Se os meus cunhados têm dificul-
dade em alugar um quarto para o menino, escuro, sórdido, triste.. .,mas uma fortaleza
é porque não trabalham e não querem des-
contra os perigos da vida».
fazer-se de bens imóveis que possuem. Nós -Mas também uma fortaleza vazia,
vivemos do nosso trabalho, sai-nos do pêlo onde a tranquilidade é a presença da morte,
e com suor. E não deixaremos nada aos a existência da não-vida (sai-nos a inter-
nossos filhos, porque não podemos capita- pretação em plena consonância com o
lizar. E a vaca da minha cunhada irá deixar risco de regressão que sentimos) (I).
ao fi-fi, que nós sustentamos, uma boa Após a elaboração deste acidente inter-
herança. Isto é tremendamente injusto em pretativo, a analisanda retoma o fio ini-
relação aos nossos filhos, e o meu marido cial deste segundo trecho do seu discurso:
não compreende isto.
Mas eu não suporto a situação. E o meu
marido não sai da posição dele. Ainda por (I) Esta interpretação empática com o perigo

cima me acusa e tomou comigo uma atitude que o doente pressente mas não conscienciaiiza
de franco repúdio. Eu sou a má que não é, por alguns autores, confundida com uma inter-
gosta da família dele. Chegou ao ponto de venção psicoterapêutica. Na realidade, é a utili-
zação correcta da contra-identificação ao serviço
deixar de se interessar sexualmente por do Eu analisador -que é um dos melhores ins-
mim. Rejeita-me. trumentos do trabalho anaiítico.
«Eu mudei, ele [o marido] não. É muito sente, mas sim de procurar e encontrar a
difícil continuarmos a entender-nos. verdade da vivência relacional. Só a ver-
No entanto, em parte a culpa foi minha. dade transmite saúde.
Não fiz nada para que ele mudasse, porque Mas o confronto com a verdade é, muitas
eu própria não queria mudar. Troçava das vezes, tremendamente doloroso. Por isso, o
minhas amigas que estavam em análise e doente evita o contacto com a realidade
mandavam os maridos para a análise. vivida - tanto mais quanto mais amarga
Achava isto uma submissão, um endeusa- ela foi (e/ou tem sido) -, preferindo viver
mento da análise; quando verifico agora na ilusão idealizante (dele próprio e/ou
que era a minha resistência à análise, a dos seus objectos, da sua vida, das suas
minha recusa a que a análise me mudasse. relações, do passado ou do presente, das
No fundo, queria fazer a análise de uma suas origens ou do seu destino) e, não raro,
forma intelectual, para me conhecer, não o analista é levado a fazer um conluio com
para mudar. Fazia da análise um objecto de esta dura resistência.
cultura, de uma falsa cultura, mais um sa- O processo analítico é uma busca da
ber a acumular. Que tonta, que estúpida verdade. O seu percurso é doloroso mas
eu tenho sido; julgando-me inteligente - só erradica as causas de uma dor maior -o
que não tinha inteligência para saber viver, persistente sofrimento neurótico.
para viver melhor. Aprendia coisas, mas O desligamento dos maus objectos e a
não crescia por dentro, não evoluía. rotura com a experiência negativa é um
E nunca quis que o meu marido fizesse imperativo da boa técnica analítica. Só no
psicanálise só por medo que ele mudasse espírito livre de maus objectos e não cor-
e, com isso, o perdesse, que ele me viesse roído pelas relações deletéreas se podem
a abandonar. Pois eu estava certa que não implantar bons objectos e desenvolver rela-
mudaria -tal era a minha resistência.. .» ções objectais agradáveis. O que não tem
-Foi bem modelada, as mãos da mãe nada a ver com as técnicas abreactivas,
penetraram bem fundo. como o «grito primacialn, que põem em
«Sim. E o seu trabalho de desmodela- acgão mecanismos primitivos de expulsão
gem não foi fácil». sem passagem por um processo de modifi-
-Tão persistente quanto a sua resistên- cação maturativa do Eu, e cujo resultado
cia. é a sequente reintrojecção do que foi ejec-
«Mas a sua teimosia foi boa!. .. Não tado; são técnicas de simples desbridamento
como a da minha mãe. da agressividade, que conduzem apenas a
A minha análise consigo foi, é ainda, a um aumento da actividade destrutiva.
melhor coisa da minha vida». Mas ouçamos o que nos diz um escritor
-E a pior? (Pontes de Miranda, em Obras Literárias):
(A resposta é imediata). «Quanto vos odeio, ó homens que demo-
«A relação com a minha mãe». lis sem poder construir; e quanto vos amo,
ó vós que ides plantar e erradicais do nosso
Terminamos reafirmando o que já muitas espírito e dos nossos sentimentos quanto
vezes dissemos: nos prenda ao que deve morrer! ».
Não se trata, neste caso como em muitos Há relações que devem morrer, para que
outros, de denegrir a imagem dos pais e/ou haja saúde. É preciso ter a coragem de as
de outros objectos do passado ou do pre- cortar.
A Revolta contra o Objecto SAdico

A depressão é tanto mais grave e pro- tico há uma exacerbação do sadismo; e no


funda quanto mais precoce e intensa foi a estiolnmento depressivo, um agravamento
separação do Eu dos impulsos e desejos do masoquismo.
do Id; ou -na nossa concepção (que tra- É através da deflexão da agressividade
duz melhor a realidade do acontecimento interiorizada sobre o objecto externo perse-
evolutivo, da formação da personalidade) - guidor (I) que o indivíduo sai da depressão
quanto mais predomina a identidade xeno- e do masoquismo. Citemos as palavras de
mórfica sobre a identidade idiomórfica, um analisando em fase de saída da depressi-
vale dizer, quanto mais o Eu está impreg- vidade:
nado pela lei e desejo do outro (pelo Super- «É-me impossível tolerar a minha mãe.
-Eu) ou pelo desejo e conveniência do pró- Não quero voltar a vê-la, sentir a opressão,
prio (pelo Id), ou seja, quanto mais no abafamento e aniquilamento que a sua pre-
comportamento do sujeito impera o dever sença, a sua pessoa, a sua existência me
ou o direito. Quer isto significar que a gra- provocam. Não voltarei a casa dela, à casa
vidade e intensidade da depressão está em dos meus pais, à casa onde passei a infân-
relação directa com a precocidade e macicez cia enquanto ela lá estiver, enquanto ela for
da deformação masoquista do Eu. viva. Só me poderei sentir bem naquela
Assim, na depressão neurótica, ou, mais casa quando ela morrer, quando puder ser
correctamente, na depressividade neurótica livre de lá estar inteiramente à minha von-
(no fundo depressivo da personalidade em tade -sem a crítica, a reprovação, a humi-
que se enxerta a «crise» de depressão neu- lhação dela.
rótica) o Eu profundo e o seu desejo e pro- Tenho vivido num dilema ou numa alter-
jecto (que equivale ao Id do modelo estru- nância constante entre o desejo de reencon-
tural de Freud) está recalcado -esquecido, trar a sua presença cálida e carinhosa (que
na sombra -, mas vai influenciando o pen- às vezes tinha) e o desejo de me afastar da
sar, o sentir e o agir; na depressão psicótica, sua pessoa desagradável, fria e rancorosa.
na dcpressividade psicótica, está cindido, Sem querer compreender e aceitar que tinha
separado, mesmo precocemente abortado no de me decidir por uma coisa ou por outra:
seu desenvolvimento, pouco ou nada inter- ter o seu amor mas ficar esmagado pela sua
ferindo no quotidiano do indivíduo. O neu- opressão (como aconteceu com o meu irmão
rótico é um inibido que não se exprime; o a seguir a mim) ou separar-me definitiva-
psicótico, um tolhido que não se desenvol- mente e sofrer com a sua falta. Esta última
veu. Na crise neurótica, o Id irrompe sob atitude, a única saudável, tentei-a várias ve-
a capa do disfarce; na crise psicótica, aber- zes; mas não me aguentei com o sentimento
tamente, sem disfarces. Crise neurótica e de abandono, a tristeza, a nostalgia. Só com
crise psicótica correspondem à erupção do a análise eu consegui realizá-la; mas à ciista
inconsciente, da personalidade profunda. de um grande sofrimento, andei muitíssimo
A depressão (neurótica e psicótica) corres- deprimido. Depois veio esta revolta, este
ponde ao oposto: a um período de maior ódio, a total compreensão do mal que ela
esnzagamento da personalidade profunda, me fez, do terror que me incutiu.
do desejo e projecto próprios, a um reforço
da actividade do Super-Eu. Por isso tam-
bém no florescimento neurótico ou psicó- (I) Entenda-se: deflexão sobre o objecto.

421
Esta hostilidade para com a minha mãe Só o desinvestimento, a rotura desta liga-
ainda me assusta e me culpabiliza. Esta ção patológica -e patogénica - com a
noite acordei a pensar que não mais volta- mãe lhe permitirá a saída da depressivi-
ria a vê-la, que não mais a queria ver; que dade, que corresponde precisamente à fixa-
só voltaria à minha terra quando ela mor- ção a um objecto insatisfatório (agressivo,
resse. Fiquei angustiadíssimo, não consegui desamante e crítico) mas que o indivíduo
reconciliar o sono. Levantei-me, fui dar uma sente como necessário, dada a sua carência
volta de carro. Fui até ao Guincho; olhei o narcísica (insuficiente investimento pelo
mar, vi as estrelas. Senti-me só, imensa- amor materno - criança mal amada) e de-
mente só. Mas, de repente, senti um grande ficiência egóica (insuficiente desenvolvi-
alívio e uma enorme serenidade: estava só, mento da autonomia do Eu -por excessiva
mas estava livre; tinha expulsado definiti- dependência do objecto, da mãe); um ob-
vamente de dentro de mim a sombra agoi- jecto que desiludiu e desilude, que se mos-
renta da minha mãe. Voltei para casa, ador- trou e/ou mostra incapaz de satisfazer as
meci calmamente. Pela manhã cedo levan- necessidades do sujeito, mas que ele teima
tei-me, fui lavar o carro (coisa que rara- em considerar como amante, bom e apro-
mente faço, tenho preguiça - deve ser o priado, mantendo a ilusão da adequação
meu desânimo, a minha depressão) e parti objectal -por idealização do objecto -ou
para o trabalho com um sentimento de le- urdindo a crença na sua transformação (o
veza e frescura como há muito não sentia. objecto irá tornar-se bom e adequado,
Oxalá essa sombra negra não volte a insta- ideal), o que equivale à omnipotência trans-
lar-se dentro de mim! >> formadora do sujeito (3). É a pessoa insufi-
A necessidade de separação do «objecto cientemente amada que vive na ilusão de
externo perseguidor» (como diz Angel Gar- um paraíso perdido e/ou na ilusão de um
ma) e de expulsão do introjecto maligno paraíso a conquistar ou reconquistar -não
são evidentes neste relato. querendo perceber que esse paraíso com o
O dilema ou a alternância em que este objecto em causa nunca existiu nem é pos-
doente se tem sentido são: a sua estrutura sível vir a existir. O depressivo -para se
obsessiva (o dilema, a dúvida) e a sua osci- curar - tem de corrigir essa paramnésia e
lação entre a idealização do objecto com desistir desse sonho irrealizável (4).
um comportamento de tonalidade hipoma- Para conseguir essa ultrapassagem da fi-
níaca, mas com regressão a uma situação xação infantil -de uma forma que não
simbiótica (em que põe de lado a sua vida
e interesses pessoais para se preocupar e
tálgica; na depressão propriamente dita, o inves-
investir nos problemas da mãe e irmãos), e timento da representação objectal é inconsciente.
o abandono do objecto (mãe) com agrava- (') ((2o teu amor [ilusão do sujeito] que me
mento da sintomatologia depressiva, o que faz gostar tanto de ti.» Ou: «Um dia virás a gos-
o impede também de cuidar conveniente- tar de mim como eu desejo» - crença ilusória na
mente da sua pessoa e interesses por escas- transformação do objecto.
(') «Foi duro perceber que a minha infância
sez de energia psíquica [consumida no in- não foi um paraíso, mas um inferno. E foi difí-
vestimento nostálgico - consciente - e de- cil aceitar que jamais poderia construir com a
pressivo -inconsciente -da mãe (')]. minha família do passado -os meus pais e os
meus irmãos - e os amigos da infância e adoles-
cência uma vida risonha, agradável e plena. Foi
(') Na depressão há perda de energia libidinal duro, difícil, mas essencial. Saí de um sonho, que
por fuga na representação do objecto ausente: se era um pesadelo. Estou livre.» - São as palavras
o investimento da representação desse objecto é de um doente no ponto de viragem da sua aná-
consciente, trata-se da nostalgia ou depressão nos- lise.
seja uma fuga para a frente, lançando-se certa desvinculação, objectal ou narcísica,
numa conduta hipomaníaca (investindo a prévia, uma predisposição ao encontro de
superfície do mundo objectal) e/ou numa um novo objecto. Sem esta necessidade ou
conduta perversa (investindo o acto e não desejo de relação com alguém que é inves-
o objecto) -terá de passar por uma fase tido de poder e de interesse pelo sujeito, a
em que os objectos do passado, principal- quem se atribui a qualidade de uma figura
mente os mais significativos e a que está parenta1 boa, falta o impulso necessário
mais intensamente ligado (a mãe, no exem- para a análise. E é neste último sentido que
plo referido neste texto), serão não só desi- a aliança de trabalho se confunde ou, mais
dealizados como denegridos, que não só dei- precisamente, é duplicada de uma verda-
xará de amar como odiará. Só assim se des- deira transferência, a transferência de uma
vinculará desses objectos, reavendo a libido omnipotência e de um amor sem limites
neles investida. que o indivíduo julgou ter tido e perdeu ou
No fenómeno psíquico e no comporta- desejou ter e quase perdeu a esperança de
mento interessa não só indagar da causa vir a ter ('). Mas, a pouco e pouco, o indi-
como saber da finalidade. E, para sair da víduo corrigirá essa transferência idealizante
submissão masoquista e deprimente, é ne- e será na confiança na qualidade humana
cessária uma revolta que, aparentemente, e técnica do analista que se apoiará para se
está para além dos danos sofridos. No ajuste compreender e para se libertar dos maus
de contas com o objecto sádico, o indivíduo objectos internos e externos. A empatia do
precisa de se cobrar de pesados juros; só psicanalista (e não a contra-transferência)
assim saldará as contas e sairá recomposto. dar-lhe-á a certeza que este o quer ver como
Deste modo fará a necessária restauração pessoa livre e não utilizá-lo como objecto.
do self.
Por esta razão, a cura analítica só é reso-
lutiva quando o analisando estabelece com
o analista uma relap?o de conjiança e ami- BIBLIOGRAFIA
zade (o que Freud chamou o ~fransfert
amistoso» e que os analistas actuais desig- GARMA, A., (1981)-Zn «Diálogo com Angel
nam por «aliança de trabalho») que está Gama*, Revisfa de Psicoanalisis, XXXVIII, 2.
para além da transferência propriamente MATOS, A. COIMBRA DE, (1982) - «A defle-
dita, a qual é sempre uma resistência à com- xão da agressividade*, Jornal do Médico,
CVIII: 831-839.
preensão e à mudanqa, ao insight e à evolu-
ção -quer ela se apresente como transfe-
rência de afectos ou como transferência de (') «Não SOU capaz, nenhuma das pessoas de
defesas. Esta relação de abertura com o que disponho é capaz ou quer ajudar-me. Penso
psicanalista - a que também podemos cha- que o analista tem essa capacidade e essa dispo-
mar transferência positiva sublimada - nibilidade.» No fundo, inconscientemente (e a
autêntica transferência é um fenómeno incons-
pressupõe uma certa quantidade de libido ciente), o paciente tem a ilusão de que o analista
livre (não fixada narcisicamente ou num é um deus todo-poderoso e ilimitadamente bom
objecto externo ou interno), isto é, uma e amante.

Você também pode gostar