Você está na página 1de 6

Elas na pauta: mulheres e canções ST.

3
Maria Ignez Cruz Mello
Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC
Palavras-chave: Música Indígena – Mulheres Indígenas – Alto Xingu

“Toda música é de e para apapaatai”: relações de gênero, música e autoria entre os índios
Wauja.

Entre os Wauja1, a pratica musical se dá exclusivamente em contexto ritual. Isto quer dizer
que não há música feita por eles voltada para o entretenimento, para espairecer ou para brincadeiras.
Os Wauja afirmam que “toda música é de apapaatai e para apapaatai”, o que significa que toda
música praticada por eles está inserida em rituais que envolvem a relação de prestação e
contraprestação entre os humanos e os seres apapaatai, “espíritos” causadores de doença e morte,
muito temidos e também reverenciados2. Por meio dos rituais, os Wauja procuram não apenas
tornar estes “espíritos” domesticados, mas também transformá-los de inimigos em aliados contra
outros possíveis “espíritos” predadores.
Um segundo dado importante de retermos inicialmente, é o fato de que homens e mulheres
não costumam discutir publicamente, de modo geral discussões entre quaisquer pessoas não são
bem vistas entre os Wauja. Isto faz com que desavenças, repreensões, e censuras sejam expressas
preferencialmente no momento dos rituais, quando então, de forma altamente elaborada e
esteticamente codificada, tais afetos serão explicitados na forma de cantos.
Após trabalho de campo de cerca de um ano entre este grupo, etnografei diferentes rituais,
alguns praticados apenas por homens, outros somente por mulheres, alguns em que a disputa entre
homens e mulheres era a tônica, e também rituais em que ambos os sexos pareciam acentuar a
complementaridade e ajuda mutua.
Dentre este rituais, comentarei a participação das mulheres, como criadoras de cantos em
três ocasiões diferentes: a festa do Pequi, o ritual de Iamurikuma, e o ritual do Kukuho.
>║<

Akãinaakai, a festa do pequi


O ritual do Pequi é uma festa sazonal que está ligada à colheita do fruto do pequi, período
que coincide com o início das chuvas na região a partir de outubro. Este ritual privilegia as
brincadeiras e a jocosidade, e suas performances cênicas são muito mais elaboradas que as
musicais. As partes mais musicais deste rito são a “abertura”, com duração de cinco dias- e o
encerramento, realizado durante quatro dias. Contrastando com estas partes mais solenemente
elaboradas, ocorreram ao longo de um mês, várias performances curtas, com duração de poucas
horas cada, repletas de provocações físicas e verbais entre homens e mulheres. Em todo o ritual,
entretanto, a questão principal é a causação de ciúme. Como podem ocorrer diferentes rituais
simultaneamente, observei em 2001 que as mulheres revidaram durante o ritual de Iamurikuma
provocações feitas pelos homens a elas quanto estes entoavam os cantos do kuri no ritual do Pequi.
Com seus cantos, os homens procuravam agredir as mulheres destratando os namorados que elas
tiveram em outras aldeias, ou ressaltando defeitos físicos e comportamentos reprováveis que viam
nelas. O mesmo se deu, desta vez com as mulheres reunidas no início da noite no centro da aldeia.
Nesta noite de respostas cantadas, as mulheres tratavam de endereçar xingamentos aos homens.
Sentadas em um semicírculo, com Kalupuku, a principal cantora de Iamurikuma, em pé no centro,
elas cantavam uma espécie de estribilho entre um revide e outro entoado por Kalupuku que
gesticulava muito em direção à casa de cada homem que pretendia ofender. A estrutura musical
destes cantos é bastante atípica em relação ao conjunto de canções de Iamurikuma, parecendo um
“repente” improvisado sobre uma estrutura padrão. Apesar dos homens não serem proibidos de
freqüentar o centro enquanto as mulheres cantam, não apareceu nenhum homem neste momento,
repetindo assim a mesma relação acusmática3 observada em outros rituais, ou seja, provocações são
feitas, mas nunca respondidas imediatamente, pois os interlocutores raramente se colocam frente a
frente.
>║<

O iamurikuma
O ritual de iamurikuma é um ritual intertribal realizado quase que anualmente, e apenas as
mulheres participam cantando e dançando, sendo que o chefe da aldeia muitas vezes toma parte
conduzindo os cantos. Acompanhei um ritual de iamurikuma em sua versão intratribal, do qual
participaram apenas os Wauja, de agosto a novembro de 2001. Neste período, presenciei muitos
finais de tarde em que um grupo de mulheres se reunia no centro da aldeia para cantar e dançar.
Algumas madrugadas também foram preenchidas pelos cantos femininos que se estendiam até o
amanhecer. Por vezes os homens saíram para pescarias coletivas em função da festa e, em outras
ocasiões, ocorreram agressões e provocações entre homens e mulheres, sempre de forma comedida
e dentro dos limites impostos pela ética local.
Durante todo este ritual, a temática dos cantos femininos girou em torno das relações
afetivas, do ciúme, inveja, namoro, sexo, além de muitos cantos fazerem referências diretas ao mito
de origem da festa. Também foi comum ver as mulheres usarem deste espaço ritual para
reclamarem de atitudes dos homens através de canções especialmente compostas por elas. Ao longo
de todo o período, foram executados cerca de duzentos cantos diferentes, organizados em quatro
sub-repertórios, dos quais, pode-se destacar dois como os principais sub-repertórios: o iamurikuma,
cantos que se referem ao mito de origem do ritual, e o kawokakuma, cuja referência das canções são
as flautas kawoká,
Com base nas análises de mitos e em análises musicológicas busquei compreender a ligação
entre a música vocal do ritual de iamurikuma e a música instrumental das flautas kawoká, pois as
mulheres afirmavam que “música de iamurikuma é música de flauta”4. No entanto, pelo fato delas
serem proibidas de ver as flautas, esta afirmação parecia um contra-senso. Caso aconteça de alguma
mulher ver as tais flautas kawoká -tanto em repouso quanto ao serem tocadas-, ela será estuprada
por todos os homens da aldeia, não importando se ela infringiu a regra propositalmente ou
involuntariamente5.
Parte do repertório musical deste ritual, aquele aqui classificado como iamurikuma, é como
que um roteiro para o ritual, baseado no script do aunaki, o “mito”. Cada canto narra um momento
do mito e pode se repetir em diferentes dias, o que evoca uma não linearidade do ritual. Se uma
parte do repertório musical é ligada ao mito, a outra, chamada de kawokakuma, não se atém a este,
mas às paixões, aos sentimentos de homens e mulheres, e fazem a ponte sonora entre o iamurikuma
e o kawoká.
Através da análise de uma parcela deste repertório, nota-se que ele está ancorado em
operações musicais complexas, que exigem um alto grau de conhecimento por parte das mulheres
cantoras, principalmente da cantora-compositora central. Estes cantos podem ou não ter letra, mas
em todos os casos estão relacionados aos sentimentos e emoções experimentados pelos Wauja ao
longo de suas vidas. Quando as mulheres dizem que seus cantos são “música de flauta”, elas não
estão se referindo a algo genérico, como se tudo que elas cantassem pudesse ser “música de flauta”.
Há uma série de cantos, mesmo no ritual de iamurikuma que não são considerados “música de
flauta”. Desta forma, as mulheres estão tratando de conjuntos específicos de cantos, todos
considerados kawokakuma, mas subdivididos de acordo com uma tipologia que mantém relação
com aquela das flautas. Estes diferentes tipos de cantos seguem prescrições em relação à topologia e
cronologia, o que significa que determinados cantos só poderão ser executados em determinados
espaços (centro da aldeia, dentro das casas, etc.) e em partes específicas do dia, como por exemplo,
os cantos considerados kisoagakipitsana, só serão cantados de madrugada, ou os chamados
iapojenejunelele não podem ser cantados depois que o sol se põe6. Em conversa com Kalupuku, ela
me contou como havia aprendido uma nova música através de um sonho, e que, ao relembrá-lo ao
acordar, reconhecia esta nova música como estando “dentro”, -naku, de sapalá, era portanto uma
nova música a ser incluída na suíte sapalá. Ao expressar esta idéia de inclusão, de pertencimento e
portanto, de identidade entre diferentes cantos, Kalupuku deixa claro que está consciente das
sutilezas que diferenciam e aproximam uma suíte de outra, o que torna sapalá diferente de
mututute, por exemplo. Tal relato é ainda mais significativo se observamos que nele está presente
um dos processos composicionais amplamente aceitos: as músicas vêm dos sonhos. Diz-se que
qualquer um pode sonhar uma nova música, no entanto, somente os mestres de música, os
apaiwekeho, têm capacidade de memorizá-las. Esta informação de Kalupuku complexifica um
pouco mais o ciclo em que os processos de significação das peças de kawoká e de kawokakuma
estão inseridos. Ao executarem as músicas das flautas no ritual de iamurikuma, elas estariam
agregando uma outra camada de significação que passaria a fazer parte destas músicas
instrumentais a ponto de emergir quando os homens voltassem a tocá-las. No entanto, o fato das
mulheres também comporem novas melodias, trazendo novos cantos para o repertório, faz com que
este círculo se abra tanto para homens como para mulheres no que tange à produção musical.
>║<

O ritual de kukuho
Desde o final de maio de 2002, havia uma mulher muito doente na aldeia. Seu irmão, um
pajé importante, identificou o apapaatai kukuho como causador da doença. A aparência desta
mulher era bem destoante dentre as mulheres da aldeia: ela era muito mais magra do que o padrão
apreciado localmente, que corresponde às mulheres mais fortes, com coxas e braços grossos. Como
sua aparência era entristecedora, a família achou por bem produzir um ritual de kukuho a fim de
acelerar sua recuperação.
O kukuho é o apapaatai “dono” da mandioca e tem a forma de um verme, uma lagarta.
Como todo apapaatai, é perigoso, mas pode ser amansado com músicas, alimento e tabaco.
Durante os cinco dias do ritual, os Wauja alternaram cantos de três sub-repertórios: jatakuagakalu,
matowojo e kapojai, dentre os quais, o último foi o que mais chamou a atenção, tanto pela
quantidade (cerca de cinqüenta cantos diferentes) e diversidade de pessoas que participaram quanto
pela forma poética empregada. Kapojai é um gênero de canto que segue algumas estruturas rítmico-
melódicas padrão, de curta duração, tendo uma média de 25 segundos de duração cada, com textos
improvisados pelos cantores, geralmente uma reclamação ou denúncia, ou ainda seguem textos
fixos, que eles chamam de kapojai antigo. É cantado individualmente ou em pequenos grupos,
seguindo sempre uma coreografia que consiste em entrar de casa em casa, iniciando pela casa de
quem está patrocinando a festa, e, em passo rápido e ritmado, cantar sua canção em frente ao jirau
central de cada casa. Após cantar e dançar dentro de uma casa, a pessoa se dirige para a casa
seguinte, também em passo rápido e ritmado. Percorrem no mínimo duas vezes o circuito da aldeia
cantando sua canção. É importante ressaltar que as mulheres participam cantando kapojai apenas na
festa do kukuho, nas demais festas em que este gênero de canto acontece, é realizado apenas pelos
homens.
Estes cantos nos fornecem valiosas pistas da socialidade Wauja, configurando-se como uma
forma permitida de expressão das inquietações individuais. Tratam predominantemente das relações
de gênero, incluindo expressões das paixões nativas, bem como abordam a feitiçaria e a política,
através da exposição de fatos ligados à disputas faccionais. Fatos ocorridos tanto no âmbito da
política local, quanto da política xinguana, e mesmo em relação a fatos concernentes ao mundo do
“branco”, são ali expressos. Ao observar estes cantos, chama ainda a atenção o fato de serem as
mulheres as que mais se envolvem com questões faccionais da aldeia. Esta abertura para a
discursividade política é única na vida social Wauja, já que as questões de gênero têm outros
espaços rituais, como a festa do pequi e o ritual de iamurikuma. Desta forma, o destaque da
especificidade do kapojai no ritual de kukuho está na abertura para o político, para a manifestação
da posição individual em relação ao que ocorre no plano coletivo. Os cantos muitas vezes
respondem a questões que vem se arrastando no mundo social, falam de injustiças, fazem acusações
e na maioria das vezes funcionam como provocações e repreensões, além de serem dos poucos
espaços públicos em que as mulheres podem se expressar politicamente.
>║<

No cotidiano, é através da criação poético-musical que os conflitos suscitados por


sentimentos como uki, ciúme-inveja, são contornados. A positividade ou negatividade de uki é uma
questão de grau: todas as estratégias (brincadeiras, mitos, ritos) concorrem assim para a busca de
um ponto intermediário neste continuum entre o excesso e a ausência de uki. No entanto, este ponto
“equilibrado” não prescinde do conflito: ao contrário, ele só pode ser alcançado sempre de forma
provisória, lidando com a tensão, sendo alimentado por ela. Vê-se que, através de toda a elaboração
estético-ritual, detectada desde o tratamento detalhista na construção motívica dos cantos, passando
pela transferência destes cantos de um gênero sexual a outro, e por re-elaborações de fatos do
cotidiano que são inseridos nos moldes dos cantos, todo este processo, enfim, só surge durante a
performance, que acaba por dar concretude ao mito e significado às questões existenciais. Quero
dizer que toda esta criação ritual trata da demarcação de limites, de estabelecer proporções, de
precisar doses, criar diferenças, construir fronteiras, criar o espaço humano de agência no mundo. E
este espaço se instaura no ritual, onde a música é o “dito” que se torna “feito”.
A produção estética na vida e nos rituais musicais dos Wauja está fundamentalmente
relacionada ao estabelecimento de uma política entre humanos e estes outros seres que habitam o
cosmos, os apapaatai. Nestes três rituais musicais, questões políticas e faccionais são explicitadas
através de canções, relações de gênero são amplamente cantadas por todos e, através da perfeita
execução musical, a doença pode ser revertida.
Sentimentos como ciúme e inveja são muito importantes para serem relegados a um
tratamento individualizado na esfera da vida cotidiana: espero ter mostrado que é despendida muita
energia coletiva no tratamento do uki, notadamente no ritual. As práticas rituais envolvidas na
manipulação destes sentimentos estão preenchidas por um alto grau de formalização, lembrando a
importância daquilo que Bourdieu chamou de codificação: “quanto mais perigosa for a situação,
mais a prática tenderá a ser codificada. O grau de codificação varia de acordo com o grau de risco”
(1990:98).

Bibliografia:
BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990, pp.77-107.
MENEZES BASTOS, Rafael José de. A Festa da Jaguatirica : uma partitura crítico-interpretativa.
Dissertação de Doutorado, USP. 1990.
MELLO, Maria Ignez C. Mello. Iamurikuma: Música e Mito e Ritual entre os Wauja do Alto Xingu.
Tese de doutorado em Antropologia Social. PPGAS/UFSC, 2005. Tese disponível em pdf no site
www.musa.ufsc.br.

PIEDADE, Acácio Tadeu de C. O Canto do Kawoká: música, cosmologia e filosofia entre os


Wauja do Alto Xingu. Tese de Doutorado, PPGAS/UFSC, 2004. Tese disponível em pdf no site
www.musa.ufsc.br.

SCHAEFFER, Pierre. Tratado dos Objetos Musicais. Brasília: Editora da Unb. 1983.

1
Grupo indígena de língua aruak que vive na região dos formadores do rio Xingu no estado do Mato Grosso. Este texto
está baseado em Mello 2005.
2
Os apapaatai têm a capacidade de ouvir os pensamentos e desejos dos humanos e podem detectar insatisfações e
desejos não realizados pelas pessoas. O estado de insatisfação torna possível que estes seres penetrem nos corpos dos
humanos na tentativa de roubar suas almas.
3
Acusmático no sentido de ouvir e não ver a fonte sonora. Termo utilizado por Pierre Schaeffer, compositor e teórico da
música concreta, para tratar da relação que estabelecemos com fontes sonoras como o rádio e gravações, que nos
impedem de ver os objetos sonoros originais. Foi adotado primeiramente para nomear os discípulos de Pitágoras que
ouviam suas lições escondidos atrás de um pano, sem vê-lo, observando o mais rigoroso silêncio. Pode-se usar como
adjetivo, e aí se diz de um ruído que se escuta sem ver as causas donde provém (Schaeffer, 1983: 83-84).
4
Para uma análise da música das flautas entre os Wauja ver Piedade 2004.
5
Contudo, não se tem registro de que tenha ocorrido tal fato nos últimos quarenta ou cinqüenta anos.
6
No caso de diferentes suítes que são executadas em um mesmo período do dia (isotópicas, cf. Menezes Bastos, 1990),
Piedade classificou-as como subgêneros: matutino, vespertino e noturno (op.cit.:135-137).

Você também pode gostar