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O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola

do conhecimento para os ricos, escola do acolhimento social


para os pobres
José Carlos Libâneo
Universidade Federal de Goiás

Resumo

O texto aborda o agravamento da dualidade da escola pública brasileira


atual, caracterizada como uma escola do conhecimento para os ricos e
como uma escola do acolhimento social para os pobres. Esse dualismo,
perverso por reproduzir e manter desigualdades sociais, tem vínculos
evidentes com as reformas educativas iniciadas na Inglaterra nos anos
1980, no contexto das políticas neoliberais; mais especificamente,
ele está em consonância com os acordos internacionais em torno do
movimento Educação para Todos, cujo marco é a Conferência Mundial
sobre Educação para Todos, realizada em Jomtien, na Tailândia, em
1990, sob os auspícios do Banco Mundial, do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), do Fundo das Nações Unidas
para a Infância (UNICEF) e da Organização das Nações Unidas para a
Educação e Cultura (UNESCO). Com base em pesquisa bibliográfica,
este estudo argumenta que a associação entre as políticas educacionais
do Banco Mundial para os países em desenvolvimento e os traços da
escola dualista representa substantivas explicações para o incessante
declínio da escola pública brasileira nos últimos trinta anos. Ao final
do texto, retoma-se a discussão sobre a necessidade de uma pauta
comum dos educadores em torno dos objetivos e das funções da escola
pública.

Palavras-chave

Políticas para a escola pública – Declínio da escola pública – Conferência


Mundial sobre Educação para Todos, de Jomtien – Educação e pobreza
– Escola dualista.

Correspondência:
José Carlos Libâneo
libaneojc@uol.com.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 1, p. 13-28, 2012. 13


The perverse dualism of the Brazilian public school:
school of knowledge for the rich, school of social care for the
poor
José Carlos Libâneo
Federal University of Goiás

Abstract

This paper addresses the aggravation of the duality of current


Brazilian public schools, characterized as a school of knowledge
for the rich and a school of social care for the poor. Such dualism
– which is perverse because it reproduces and maintains social
inequalities – has obvious links not only with the educational
reforms initiated in England in the 1980s, in the context of the
neoliberal policies, but also and especially with the international
agreements on the Education for All movement, whose mark
was the World Conference on Education for All held in Jomtien,
Thailand in 1990, under the auspices of the World Bank, the
United Nations Development Program (UNDP), the United Nations
Children’s Fund (UNICEF) and the United Nations Educational and
Cultural Organization (UNESCO). Based on bibliographic research,
the text argues that the association between the educational policies
of the World Bank for developing countries and the features of the
dualistic school offers substantive explanations for the unremitting
decline in the Brazilian public school system over the past 30 years.
At the end, the text discusses again the objectives and functions of
public schools.

Keywords

Policies for public school —­ public school decline — World


Conference on Education for All in Jomtien — education and
poverty — dualistic school.

Contact:
José Carlos Libâneo
libaneojc@uol.com.br

14 Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 1, p. 13-28, 2012.


A luta pela escola pública obrigatória e O objetivo do texto é, assim, buscar liga-
gratuita para toda a população tem sido ban- ções entre as proposições originariamente ema-
deira constante entre os educadores brasileiros, nadas na Conferência Mundial sobre Educação
sobressaindo-se temas sobre funções sociais e para Todos, realizada em 1990, em Jomtien,
pedagógicas, como a universalização do acesso Tailândia, e as políticas públicas para a educa-
e da permanência, o ensino e a educação de ção básica praticadas nestes vinte anos pelos
qualidade, o atendimento às diferenças sociais governos brasileiros. A Conferência, que pro-
e culturais, e a formação para a cidadania crí- duziu um documento histórico denominado
tica. Entretanto, têm-se observado, nas últi- Declaração Mundial da Conferência de Jomtien,
mas décadas, contradições mal resolvidas entre foi a primeira dentre outras conferências reali-
quantidade e qualidade em relação ao direito à zadas nos anos seguintes em Salamanca1, Nova
escola, entre aspectos pedagógicos e aspectos Delhi, Dakar etc., convocadas, organizadas e
socioculturais, e entre uma visão de escola as- patrocinadas pelo Banco Mundial. No Brasil, o
sentada no conhecimento e outra, em suas mis- primeiro documento oficial resultante da refe-
sões sociais. Ressalta-se, também, a circulação rida Declaração e das demais conferências foi o
de significados muito difusos para a expressão Plano Decenal de Educação para Todos (1993-
qualidade de ensino, seja por razões ideológi- 2003), elaborado no Governo Itamar Franco. Em
cas, seja pelo próprio significado que o senso seguida, seu conteúdo esteve presente nas po-
comum atribui ao termo, dependendo do foco líticas e diretrizes para a educação do Governo
de análise pretendido: econômico, social, po- FHC (1995-1998; 1999-2002) e do Governo Lula
lítico, pedagógico etc. O próprio campo educa- (2003-2006; 2007-2010), tais como: universali-
cional, nos âmbitos institucional, intelectual e zação do acesso escolar, financiamento e repas-
associativo, está longe de obter um consenso se de recursos financeiros, descentralização da
mínimo sobre os objetivos e as funções da es- gestão, Parâmetros Curriculares Nacionais, en-
cola pública na sociedade atual. sino a distância, sistema nacional de avaliação,
As interrogações e os embates sobre políticas do livro didático, Lei de Diretrizes e
os objetivos da escola básica, suas formas de Bases (Lei no 9.394/96), entre outras. A hipótese
funcionamento e a natureza de suas práticas básica a ser desenvolvida aqui é de que estes
pedagógicas têm alentado a produção cientí- vinte anos de políticas educacionais no Brasil,
fica em diferentes posições e enfoques teóri- elaboradas a partir da Declaração de Jomtien,
cos em que, geralmente, predominam análises selaram o destino da escola pública brasileira e
de cunho político e sociológico. Neste texto, seu declínio. A pesquisadora equatoriana Rosa
propõe-se uma análise predominantemente Maria Torres (1996) avaliza essa afirmação
pedagógica dos percalços da escola pública, quando se refere ao pacote do Banco Mundial:
ainda que amparada em análises sociopolí-
ticas. A discussão visa destacar o impacto Sustentamos que o referido pacote e o
negativo, nos objetivos e nas formas de fun- modelo educativo subjacente à chamada
cionamento interno das escolas, das políticas “melhoria da qualidade da educação”,
educacionais de organismos internacionais, do modo como foi apresentado e vem se
as quais se transformaram em cartilhas no desenvolvendo, ao invés de contribuir para
Brasil para a elaboração de planos de educa- a mudança no sentido proposto – melhorar
ção do governo federal e de governos estadu- a qualidade e a eficiência da educação e,
ais e municipais, afetando tanto as políticas
de financiamento, quanto outras como as de 1 - A Declaração de Salamanca trata da questão da educação inclusiva de
pessoas com necessidades especiais; seu titulo completo é Declaração de
currículo, formação de professores, organiza- Salamanca sobre princípios, política e práticas na área das necessidades
ção da escola, práticas de avaliação etc. educativas especiais (1994).

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de maneira específica, os aprendizados mostrado a crescente inquietude dos professores
escolares na escola pública e entre os setores sobre como conseguir a motivação dos alunos
menos favorecidos - está, em boa medida, ou como conter atos de indisciplina. Com
reforçando as tendências predominantes bastante frequência, seja devido aos desacordos
no sistema escolar e na ideologia que o entre educadores, legisladores e pesquisadores
sustente, ou seja, as condições objetivas e em relação aos objetivos e às funções da escola,
subjetivas que contribuem para produzir seja pela atração exercida pelas orientações
ineficiência, má qualidade e desigualdade dos organismos internacionais, muitas das
no sistema escolar. (p. 127) medidas adotadas pelas políticas oficiais para a
educação e o ensino têm o aspecto de soluções
As análises apresentadas a seguir evasivas para os problemas educacionais. Tais
iniciam-se com a constatação da diversidade e soluções estariam baseadas na ideia de que,
dos antagonismos de posições sobre os objetivos para melhorar a educação, bastaria prover
e as funções da escola no Brasil na atualidade insumos que, atuando em conjunto, incidiriam
para, em seguida, desvendar, nas políticas positivamente na aprendizagem dos alunos (por
oficiais, um pensamento quase hegemônico exemplo, os ciclos de escolarização, a escola
sobre as funções da escola assentado nas de tempo integral, a progressão continuada,
políticas educativas do Banco Mundial. Na a gratificação financeira a professores, a
segunda parte, após uma caracterização das progressão continuada e, recentemente, a
propostas de escola, ressaltando seu dualismo, implantação do Exame Nacional de Ingresso
são apontadas possíveis saídas, visando a na Carreira Docente), deixando de considerar
um consenso mínimo da sociedade sobre os fatores intraescolares que mais diretamente
objetivos e as funções da escola pública. estariam afetando a qualidade da aprendizagem
escolar (LIBÂNEO, 2006).
Dos desacordos sobre os Em face desses problemas, circula no
objetivos e as funções da escola meio educacional uma variedade de propostas
aos atrativos da Declaração sobre as funções da escola, propostas estas
Mundial de Jomtien frequentemente antagônicas, indo desde as que
pedem o retorno da escola tradicional, até as
Tem sido constante, nos meios intelectual que preferem que ela cumpra missões sociais e
e institucional do campo da educação, a assistenciais. Ambas as posições explicitariam
constatação de um quadro sombrio da escola tendências polarizadas, indicando o dualismo
pública. No âmbito das análises externas, dados da escola brasileira em que, num extremo,
estatísticos e pesquisas apontam sua deterioração estaria a escola assentada no conhecimento,
e ineficácia em relação a seus objetivos e formas na aprendizagem e nas tecnologias, voltada
de funcionamento. São reiteradas as demandas aos filhos dos ricos, e, em outro, a escola do
pela ampliação dos recursos financeiros para acolhimento social, da integração social,
todos os níveis e modalidades de ensino. Há voltada aos pobres e dedicada, primordialmente,
um volume considerável de investigações a missões sociais de assistência e apoio às
sobre a situação dos salários e das condições crianças. António Nóvoa (2009) pontua com
de trabalho e formação dos professores. No clareza esses dois tipos de escola.
âmbito das análises internas, presume-se uma
crise do papel socializador da escola, já que ela Um dos grandes perigos dos tempos atuais
concorre com outras instâncias de socialização, é uma escola a “duas velocidades”: por um
como as mídias, o mercado cultural, o consumo lado, uma escola concebida essencialmente
e os grupos de referência. Outros estudos têm como um centro de acolhimento social,

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para os pobres, com uma forte retórica socialidade. O termo “socialidade” está
da cidadania e da participação. Por outro sendo adotado aqui para ressaltar que
lado, uma escola claramente centrada na a escola organizada em ciclos se situa
aprendizagem e nas tecnologias, destinada como um tempo/espaço destinado à
a formar os filhos dos ricos. (p. 64) convivência dos alunos, à experiência da
socialidade, distinguindo-se dos conceitos
Nas considerações a seguir, busca-se de socialização e de desenvolvimento da
demonstrar que a escola para o acolhimento sociabilidade tratados pela sociologia e
social tem sua origem na Declaração Mundial psicologia. (p. 641)
sobre Educação para Todos, de 1990, e em
outros documentos produzidos sob o patrocínio Assim, não se trata mais de manter
do Banco Mundial, nos quais é recorrente o aquela velha escola assentada no conhecimento,
diagnóstico de que a escola tradicional está isto é, no domínio dos conteúdos, mas de
restrita a espaços e tempos precisos, sendo conceber uma escola que valorizará formas de
incapaz de adaptar-se a novos contextos organização das relações humanas nas quais
e a diferentes momentos e de oferecer um prevaleçam a integração social, a convivência
conhecimento para toda a vida, operacional entre diferentes, o compartilhamento de
e prático. Além disso, o insucesso da escola culturas, o encontro e a solidariedade entre as
tradicional decorreria de seu modo de funcionar, pessoas. Em texto de 2004, José Carlos Libâneo
pois ela está organizada com base em conteúdos associava o sistema de ciclos a uma escola
livrescos, exames e provas, reprovações e identificada mais como “lugar de encontro e
relações autoritárias. Busca-se, então, outro compartilhamento entre as pessoas em que [...]
tipo de escola, abrindo espaços e tempos que sejam acolhidos seus ritmos, suas diferenças”
venham atender às necessidades básicas de (p. 19) do que como espaço propiciador de
aprendizagem (reduzidas, como veremos condições para o desenvolvimento cognitivo,
adiante, a necessidades mínimas), tomadas afetivo e moral dos alunos.
como eixo do desenvolvimento humano. Nessa A concepção de uma escola para a in-
perspectiva, a escola se caracterizará como lugar tegração social, segundo nos parece, tem sua
de ações socioeducativas mais amplas, visando origem na mencionada Declaração Mundial
ao atendimento das diferenças individuais e sobre Educação para Todos, de 1990. Lido sem
sociais e à integração social. Com apoio em intenção crítica e sem a necessária contextua-
premissas pedagógicas humanitárias, concebeu- lização, esse documento apresenta um conte-
se uma escola que primasse, antes de tudo, pela údo muito atraente, chegando a surpreender
consideração das diferenças psicológicas de o leitor por suas intenções humanistas e de-
ritmo de aprendizagem e das diferenças sociais mocratizantes. Considere-se, por exemplo, o
e culturais, pela flexibilização das práticas de artigo 1º – Satisfazer as necessidades básicas
avaliação escolar e pelo clima de convivência – de aprendizagem:
tudo em nome da intitulada educação inclusiva.
Marília Gouvea de Miranda (2005) assinala a Cada pessoa – criança, jovem ou adulto –
principal mudança na educação de massas em deve estar em condições de aproveitar as
decorrência das reformas educativas neoliberais oportunidades educativas voltadas para
iniciadas por volta de 1980. Segundo ela, satisfazer suas necessidades básicas de
aprendizagem. Essas necessidades com-
[...] a escola constituída sob o princípio preendem tanto os instrumentos essen-
do conhecimento estaria dando lugar a ciais para a aprendizagem (como a leitura
uma escola orientada pelo princípio da e a escrita, a expressão oral, o cálculo, a

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solução de problemas), quanto os conteú- a seguir recorrerá mais frequentemente a três
dos básicos da aprendizagem (como conhe- autores: Rosa Maria Torres, José Luis Corraggio
cimentos, habilidades, valores e atitudes), e Alberto Martínez Boom.
necessários para que os seres humanos Torres (2001) esclarece em seu texto que,
possam sobreviver, desenvolver plenamen- ao longo das avaliações e revisões da Declaração
te suas potencialidades, viver e trabalhar em conferências e reuniões subsequentes entre
com dignidade, participar plenamente do os organismos internacionais e os países
desenvolvimento, melhorar a qualidade envolvidos, a proposta original foi encolhida,
de vida, tomar decisões fundamentadas e e foi essa versão que acabou prevalecendo,
continuar aprendendo. (WCEFA, 1990) com variações em cada país, na formulação das
políticas educacionais. Tal encolhimento deu-se
Nos tópicos seguintes da Declaração, para adequar-se à visão economicista do Banco
são definidas estratégias bastante aceitáveis na Mundial, o patrocinador das conferências
direção de uma educação para todos: a) satisfazer mundiais. Desse modo, a visão ampliada de
as necessidades básicas de aprendizagem para educação converteu-se em uma visão encolhida,
todos; b) universalizar o acesso à educação ou seja: a) de educação para todos, para
básica2 como base para a aprendizagem e educação dos mais pobres; b) de necessidades
o desenvolvimento humano permanentes; básicas, para necessidades mínimas; c) da
b) concentrar a atenção na aprendizagem atenção à aprendizagem, para a melhoria e a
necessária à sobrevivência; c) ampliar os meios avaliação dos resultados do rendimento escolar;
e o raio de ação da educação básica; d) propiciar d) da melhoria das condições de aprendizagem,
um ambiente adequado à aprendizagem; e) para a melhoria das condições internas da
fortalecer alianças (autoridades públicas, instituição escolar (organização escolar) (p. 29).
professores, órgãos educacionais e demais órgãos Numa análise pedagógica dessas
de governo, organizações governamentais e não estratégias, verifica-se, tal como alerta
governamentais, setor privado, comunidades Torres (2001), que as necessidades básicas de
locais, grupos religiosos, famílias). aprendizagem transformaram-se num “pacote
Tão boas intenções parecem, à primeira restrito e elementar de destrezas úteis para a
vista, compatíveis com uma desejada visão sobrevivência e para as necessidades imediatas
democrática da escola para todos e até com e mais elementares das pessoas” (p. 40), bem
uma visão renovada das políticas educativas. próximas da ideia de que o papel da escola
No entanto, esses conceitos necessitam ser é prover conhecimentos ligados à realidade
examinados com base nas políticas globais imediata do aluno, utilizáveis na vida prática
definidas pelos organismos internacionais para (como acreditam, também, algumas concepções
os países pobres (BIRD, PNUD, BID, UNESCO, mais simplistas da ligação do ensino à vida
UNICEF), de modo a obter o significado cotidiana). Em síntese, a aprendizagem
contextualizado de tais termos. São muitos os transforma-se numa mera necessidade natural,
estudos relacionados a esse tema (entre outros, numa visão instrumental desprovida de seu
TORRES, 1996, 2001; DE TOMMASI; WARDE; caráter cognitivo, desvinculada do acesso a
HADDAD, 1996; MACHADO, 2000; GADOTTI, formas superiores de pensamento.
2000; ALTMANN, 2002; FRIGOTTO; CIAVATTA, Coraggio (1996) mostra que as políticas
2003; MARTINEZ BOOM, 2004; LAVAL, 2004; sociais do Banco Mundial visam ao investimento
ANTUNES, 2004; FALLEIROS, 2005; ALGEBAILE, no desenvolvimento das pessoas, “garantindo
2009; NÓVOA, 2009). No entanto, a análise que todos tenham acesso a um mínimo de
2 - O termo educação básica deve ser lido como educação fundamental, educação, saúde, alimentação, saneamento”
ensino fundamental, ou seja, o nível mais elementar de ensino. (p. 77), de modo a assegurar políticas de ajuste

18 José Carlos Libâneo. O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola do conhecimento ...
estrutural que vão liberar as forças do mercado orientação dos ideólogos do Banco Mundial,
e acabar com a cultura de direitos universais a a satisfação das necessidades básicas de
bens e serviços básicos garantidos pelo Estado. aprendizagem conduz ao desenvolvimento
Ou seja, as políticas sociais são elaboradas para humano, cujos índices são aferidos pelo
instrumentalizar a política econômica, “em Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
contradição com os objetivos declarados” (p. Na Declaração de Jomtien, o conceito de
79). Escreve o autor: aprendizagem refere-se à aquisição de
capacidades, atitudes e comportamentos
O modo economicista com que se usa necessários à vida, nos quais se “incluem
essa teoria (da análise econômica) para leitura, escrita, cálculo, técnicas, valores a
derivar recomendações, contribui para atitudes que necessitam os seres humanos
introjetar e institucionalizar os valores do para sobreviver” (p. 222). Além disso, o autor
mercado capitalista na esfera da cultura, afirma que “a educação básica deve centrar-
o que vai muito além de um simples se nas aquisições e nos resultados efetivos da
cálculo econômico para comparar custos aprendizagem” (p. 222), antecipando a ideia de
e benefícios das diversas alternativas avaliação em escala com base em competências
geradas do ponto de vista social ou mínimas estabelecidas pelo sistema de ensino
político. (p. 95) e num processo permanente de avaliação. As
necessidades básicas de aprendizagem seriam
As análises de Torres e de Coraggio a chave para concretizar a visão ampliada de
explicam a versão encolhida da Declaração de educação, instituindo um novo objetivo para
Jomtien adotada por boa parte dos países em a educação mundial, distinto das formulações
vias de desenvolvimento. Têm-se, assim, traços convencionais e inadequadas da pedagogia
básicos das políticas para a educação do Banco e da didática, em que o ensino se restringe
Mundial: a) reducionismo economicista, ou seja, a ações de apoio, reduzindo drasticamente
definição de políticas e estratégias baseadas o papel do professor na formação cognitiva
na análise econômica; b) o desenvolvimento dos alunos. O conceito de desenvolvimento
socioeconômico necessita da redução da pobreza humano converte-se, assim, numa categoria
no mundo, por meio da prestação de serviços essencial para as formulações das agências
básicos aos pobres (saúde, educação, segurança internacionais. Ainda segundo Martínez
etc.) como condição para torná-los mais aptos Boom (2004):
a participarem desse desenvolvimento; c)
a educação escolar reduz-se a objetivos de A idéia do Desenvolvimento Humano é
aprendizagem observáveis, mediante formulação mais exeqüível aos indivíduos e não ex-
de padrões de rendimento (expressos em clusivamente à sociedade e, neste senti-
competências) como critérios da avaliação do, já não se trata da ênfase no desen-
em escala; d) flexibilização no planejamento volvimento econômico em geral mas no
e na execução para os sistemas de ensino, desenvolvimento dos indivíduos em que
mas centralização das formas de aplicação cada um se reconhece como portador de
das avaliações (cujos resultados acabam por um desenvolvimento, como propriedade
transformarem-se em mecanismos de controle intrínseca do individuo. [...]. O foco das
do trabalho das escolas e dos professores). políticas sociais deve ser o ser humano
Também Martínez Boom (2004) como recurso mais importante, pois se
apresenta uma interpretação dos conceitos de trata de sujeito que deseja e consome,
necessidades básicas de aprendizagem e de portanto suscetível de ingressar no mer-
desenvolvimento humano. Segundo ele, na cado. (p. 220)

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Eis, então, que o conceito de aprendiza- independentemente de processos de aprendi-
gem como necessidade natural, como incorpora- zagem e formas de aprender; c) aprendizagem
ção de competências mínimas para sobrevivência de valores e atitudes requeridos pela nova
social, torna-se pré-requisito para o desenvolvi- cidadania (ênfase na sociabilidade pela vi-
mento humano e social. Afirma o autor: vência de ideais de solidariedade e participa-
ção no cotidiano escolar).
Este novo paradigma se sustenta em uma Destaca-se, nesse terceiro item, o papel
visão “realista”, ou melhor, economicista, socializador da escola mediante a promoção
da educação, apresentada como necessida- da equidade social, o respeito às diferenças e a
de “natural” que responde a leis definidas solidariedade com o próximo. Mas Ialê Falleiros
a partir da biologia e que deve, em con- (2005) mostra a verdadeira tarefa da escola na
seqüência, ser satisfeita, como a fome e o visão das agências financeiras internacionais:
abrigo. Em outras palavras, ao apresentar
a educação como necessidade, fica reduzi- ensinar as futuras gerações a exercer uma
da a uma simples pulsão natural, perdendo cidadania de ‘qualidade nova’, a partir da
seu caráter de acontecimento cultural em qual o espírito de competitividade seja de-
que intervém o pensamento, a linguagem, senvolvido em paralelo ao espírito de so-
a inteligência, os saberes. A educação deixa lidariedade. Assim, ocorre uma renúncia,
de ser, assim, um assunto da cultura para uma negação da expectativa de divisão de
ser um serviço desprovido de política e de classes e há um ajustamento para uma ati-
história, reduzindo seu papel à aquisição de tude ‘cidadã’ que diminua as diferenças e
competências de aprendizagem. (p. 227) a miséria, incutindo uma noção de solida-
riedade e amenização das lutas de classes
Tal análise mostra que foi precisamente e diferenças raciais, sociais, culturais, entre
a ideia do protagonismo da aprendizagem e a tantas outras. (p. 211)
desvalorização do ensino que tomaram conta
das concepções de escola de muitos educado- O novo paradigma supõe, também, um
res, não apenas os dirigentes de órgãos públi- novo papel do professor, ou seja, da mesma
cos, mas também vários segmentos da intelec- forma que, para os alunos, oferece-se um kit
tualidade do campo da educação. Dessa forma, de habilidades para sobrevivência, oferece-
a política do Banco Mundial para as escolas se ao professor um kit de sobrevivência
de países pobres assume duas características docente (treinamento em métodos e técnicas,
pedagógicas: atendimento a necessidades mí- uso de livro didático, formação pela EaD). A
nimas de aprendizagem e espaço de convivên- posição do Banco Mundial é pela formação
cia e acolhimento social. Com isso, produz-se, aligeirada de um professor tarefeiro, visando
nos sistemas de ensino, o que Nóvoa (2009) baixar os custos do pacote formação/
chamou de transbordamento de objetivos, em capacitação/salário.
que os objetivos assistenciais se sobrepõem O que as políticas educacionais pós-
aos objetivos de aprendizagem. Conclui-se, as- -Jomtien promovidas e mantidas pelo Banco
sim, que a escola passa a assumir as seguintes Mundial escondem, portanto, é o que diver-
características: a) conteúdos de aprendizagem sos pesquisadores chamaram de educação
entendidos como competências e habilidades para a reestruturação capitalista, ou educa-
mínimas para a sobrevivência e o trabalho ção para a sociabilidade capitalista. As aná-
(como um kit de habilidades para a vida); b) lises mais críticas dessas reformas educacio-
avaliação do rendimento escolar por meio de nais são unânimes em afirmar que o pacote
indicadores de caráter quantitativo, ou seja, de reformas imposto aos países pobres gerou

20 José Carlos Libâneo. O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola do conhecimento ...
um verdadeiro pensamento único no campo a) definindo padrões de aprendizagem a
das políticas educacionais, incluindo gover- serem alcançados nos vários ciclos, etapas
nos populares como o brasileiro, conforme se e/ou séries da educação básica e garantin-
verá a seguir. do oportunidades a todos de aquisição de
conteúdos c competências básicas:
Brasil, vinte anos de políticas - no domínio cognitivo: incluindo habili-
educativas do Banco Mundial: o dades de comunicação e expressão oral e
pensamento hegemônico oficial sobre as escrita, de cálculo e raciocínio lógico, esti-
funções da escola mulando a criatividade, a capacidade deci-
sória, habilidade na identificação e solução
Os problemas da escola pública brasileira de problemas e, em especial, de saber como
não são novos, mas há décadas desafiam órgãos aprender;
públicos, pesquisadores nas áreas das ciências - no domínio da sociabilidade: pelo desen-
humanas e sociais, movimentos sociais ligados volvimento de atitudes responsáveis, de
à educação e sindicatos. No entanto, nos autodeterminação, de senso de respeito ao
últimos anos, também no Brasil os discursos próximo e de domínio ético nas relações
sobre as funções da escola vêm manifestando interpessoais e grupais. (BRASIL, 1993)
um raciocínio reiterativo, a saber: o insucesso
da escola pública deve-se ao fato de ela ser Observe-se a consonância com os prin-
tradicional, estar baseada no conteúdo, ser cípios e estratégias inscritos na Declaração
autoritária e, com isso, constituir-se como uma de Jomtien. É notória a assunção do papel
escola que reprova, exclui os mal-sucedidos, da escola como atendimento de necessida-
discrimina os pobres, leva ao abandono da des mínimas de aprendizagem e de espaço de
escola e à resistência violenta dos alunos etc. Tal convivência e acolhimento social. A propos-
como aparece nos documentos dos organismos ta economicista e tecnicista do Plano Decenal
internacionais, é preciso um novo modelo de ganhou mais concretude durante o Governo
escola, novas práticas de funcionamento. FHC, quando foi implantada a maior parte das
Os anos 1990 demarcam a chegada medidas vinculadas à reforma educacional do
efetiva do neoliberalismo no Brasil, coincidindo período em questão, inclusive os Parâmetros
com os primeiros ensaios da reforma educativa Curriculares Nacionais.
brasileira surgidos já no Governo Itamar Além das novas orientações curri-
Franco, quando foi elaborado o Plano Decenal culares, outras medidas foram implantadas
de Educação para Todos (1993-2003), que é desde 1990, estando, de alguma forma, rela-
praticamente uma reprodução da Declaração de cionadas às orientações do Banco Mundial;
Jomtien. Eis o que registra o Plano Decenal em alguns exemplos são o Fundo de Manutenção
relação aos objetivos da educação básica: e Desenvolvimento do Ensino Fundamental
(Fundef), depois Fundo de Manutenção e
A – Objetivos gerais de desenvolvimento Desenvolvimento da Educação Básica e de
da Educação Básica: Valorização dos Profissionais da Educação
1 - Satisfazer as necessidades básicas de (Fundeb), a avaliação em escala do sistema de
aprendizagem das crianças, jovens e adul- ensino, os ciclos de escolarização, a política
tos, provendo-lhes as competências funda- do livro didático, a inclusão de pessoas com
mentais requeridas para plena participação deficiências em escolas regulares e a escola
na vida econômica, social, política e cultu- fundamental de nove anos (LIBÂNEO, 2006). É
ral do País, especialmente as necessidades verdade que parte dessas medidas ligadas à reor-
do mundo do trabalho: ganização das estruturas de funcionamento das

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escolas não se originou diretamente das reco- o acesso a uma trajetória escolar de maior
mendações do Banco Mundial. Diversos estudos prestígio escolar e social. (p. 35)
realizados entre nós sobre os ciclos de escolari-
zação, por exemplo, mostram que temas como Analisando uma proposta brasileira de
progressão continuada e promoção automática 1994 de implantação de ciclos de formação,
eram discutidos no Brasil desde os anos 1950 e em que se privilegia a função social da escola,
que, entre os anos 1960 e 1970, vários Estados a socialização e o desenvolvimento pleno do
brasileiros introduziram inovações associadas educando, Barretto e Mitulis (2001) escrevem:
ao regime de ciclos escolares até chegarem à
organização dos ciclos propriamente ditos no À dimensão cognitiva agregaram-se a so-
início dos anos 1990 (BARRETTO; MITRULIS, cial, a afetiva, a atitudinal [...]. A lógica
2001; DALBEN, 2000; ARROYO, 1999; FREITAS, dos conteúdos cedeu lugar a uma lógica
2003; MAINARDES, 2006, entre outros). No de formação do aluno a partir de experi-
entanto, há razões para ligar a introdução do ências educativas, em que se articulavam
sistema de ciclos às políticas educacionais de conhecimentos já adquiridos por vivências
atendimento à pobreza. Elba Siqueira de Sá pessoais, conhecimentos provenientes dos
Barretto e Eleny Mitrulis (2001) mencionam que diferentes campos do saber e temas de re-
as iniciativas de adoção dos ciclos escolares por levância social, em um processo de con-
volta dos anos 1980, inspiradas no sistema de textualização e integração que visava ao
avanços progressivos adotado nas escolas bási- desenvolvimento de individualidades ca-
cas dos Estados Unidos e da Inglaterra, tinham pazes de pensamento crítico e autonomia
propósitos explícitos de promoção social de to- intelectual. (p. 35)
dos os indivíduos.
Há razões, assim, para crer que a
Nesses países a progressão escolar nos gru- Declaração Mundial sobre Educação para Todos
pos de idade homogênea foi historicamente confirmou tendências anteriores ao enfatizar,
considerada, antes de tudo, como uma pro- como função social específica da escola, a so-
gressão social a que todos os indivíduos, cialização e a convivência social, colocando
indiscriminadamente, tinham direito me- em segundo plano a aprendizagem dos con-
diante a freqüência às aulas, independen- teúdos. As ações organizacionais e curricula-
temente das diferenças de aproveitamen- res nessa direção, desde 1990, foram absorvi-
to que apresentassem. Nessa concepção a das quase que integralmente nos oito anos do
função social da escola sobreleva a sua Governo Lula, incluindo-se ainda outras for-
função escolar propriamente dita. (p. 30) muladas nesse mesmo governo, como o Plano
de Desenvolvimento da Educação (PDE), a con-
As autoras observam que, por ocasião solidação da formação de professores a dis-
da reforma educativa na Inglaterra, nos anos tância, o Plano de Metas Compromisso Todos
1990, a alunos com dificuldades escolares, pela Educação, o aprimoramento das avalia-
geralmente de origem popular, eram ofere- ções em escala do ensino fundamental e supe-
cidas tarefas escolares menos desafiadoras, rior (Sistema de Avaliação da Educação Básica
subestimando-se sua capacidade de progredir – SAEB, Provinha Brasil, Exame Nacional de
intelectualmente. Desempenho de Estudantes – ENAD), e, re-
centemente, o Exame Nacional de Ingresso na
Desse modo, o aluno pode ser relegado, pelo Carreira Docente – ENICD.
próprio aparato institucional, a um ensino As pesquisas que analisam criticamente
mais pobre, que lhe cerceia posteriormente tais políticas adotam, em geral, uma perspectiva

22 José Carlos Libâneo. O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola do conhecimento ...
sociopolítica em que se denuncia seu caráter o homem em seu universalismo humano, em sua
economicista e pragmático, estando ausentes diferença cultural e em sua construção como
análises do ponto de vista pedagógico-didático, sujeito” (p. 143). Com isso, Charlot ressalta,
ou seja, análises sobre como essas políticas aumentam os índices de escolaridade, mas se
induzem objetivos para a escola e concepções agravam as desigualdades sociais de acesso ao
de ensino e aprendizagem, com repercussões saber, pois à escola pública é atribuída a função de
nas práticas de gestão pedagógica e curricular incluir populações excluídas ou marginalizadas
e nas formas de trabalho dos professores na pela lógica neoliberal, sem que os governos lhe
sala de aula. No entanto, as consequências no disponibilizem investimentos suficientes, bons
funcionamento interno das escolas são visíveis, professores e inovações pedagógicas. Eis as
como se verá a seguir. consequências dessa política:

A escola que sobrou para os os jovens são cada vez mais escolarizados
pobres em instituições diferentes, dependendo do
status econômico de seus pais. Constata-se,
Constata-se, assim, que, com apoio em assim, o estabelecimento de redes educacio-
premissas pedagógicas humanistas por trás das nais cada vez mais diferenciadas e hierarqui-
quais estão critérios econômicos, formulou-se zadas. Nessas redes, a escola pública deve
uma escola de respeito às diferenças sociais e acolher as populações mais frágeis. Com
culturais, às diferenças psicológicas de ritmo de isso, à escolarização de base [...] perseguida
aprendizagem, de flexibilização das práticas de por muito tempo, segue-se um fracasso em
avaliação escolar – tudo em nome da educação massa dos alunos, com iletrismo, abandonos
inclusiva. Não é que tais aspectos não devessem repetências, etc. (p. 144)
ser considerados; o problema está na distorção
dos objetivos da escola, ou seja, a função de Assim, a escola que sobrou para
socialização passa a ter apenas o sentido de os pobres, caracterizada por suas missões
convivência, de compartilhamento cultural, de assistencial e acolhedora (incluídas na expressão
práticas de valores sociais, em detrimento do educação inclusiva), transforma-se em uma
acesso à cultura e à ciência acumuladas pela caricatura de inclusão social. As políticas de
humanidade. Não por acaso, o termo igualdade universalização do acesso acabam em prejuízo
(direitos iguais para todos) é substituído por da qualidade do ensino, pois, enquanto se
equidade (direitos subordinados à diferença). apregoam índices de acesso à escola, agravam-
Bernard Charlot (2005) é incisivo ao se as desigualdades sociais do acesso ao saber,
rejeitar a educação pensada e organizada, inclusive dentro da escola, devido ao impacto
prioritariamente, em uma lógica econômica dos fatores intraescolares na aprendizagem.
e de preparação ao mercado de trabalho. Ocorre uma inversão das funções da escola:
Segundo ele, a visão de educação imposta o direito ao conhecimento e à aprendizagem
por organismos internacionais produz o é substituído pelas aprendizagens mínimas
ocultamento da dimensão cultural e humana para a sobrevivência. Isso pode explicar o
da educação, à medida que se dissolve a descaso com os salários e com a formação de
relação entre o direito das crianças e jovens professores: para uma escola que requer apenas
de serem diferentes culturalmente e, ao mesmo necessidades mínimas de aprendizagem, basta
tempo, semelhantes em termos de dignidade e um professor que apreenda um kit de técnicas
reconhecimento humano. Ele conclui: “Desse de sobrevivência docente (agora acompanhado
modo, a redução da educação ao estatuto de dos pacotes de livros didáticos dos chamados
mercadoria resultante do neoliberalismo ameaça sistemas de ensino).

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 1, p. 13-28, 2012. 23


As reformas educativas jogaram todo o pensamento reacionário de que nos fala
peso das supostas inovações escolares para a Hirschman, que rotula de fútil, ameaçadora
redução da pobreza em medidas externas, como ou defasada toda e qualquer intenção pro-
a organização curricular, a gestão, a avaliação gressista de sobrepor às aspirações desme-
em escala, os sistemas de premiação de escolas didas do mercado as necessidades huma-
e professores etc., deixando de investir nas nas. Dificilmente, também, se desmontam
ações pedagógicas no interior da escola para os argumentos, aparentemente corretos, de
um enfrentamento pedagógico-didático dos neoliberais e neoconservadores, de que é
mecanismos de seletividade e exclusão. É mais democrático e justo atender a deman-
inevitável, aqui, constatar o fracasso dos cursos das e preferências individuais através do
de formação de professores para os anos iniciais mercado, do que necessidades sociais por
do ensino fundamental (LIBÂNEO, 2010b). meio de instituições coletivas, incluindo o
Eis que as vítimas dessas políticas, Estado como garantia de direitos. (p. 183)
aparentemente humanistas, são os alunos,
os pobres, as famílias marginalizadas, os Em estudos recentes, Libâneo (2006,
professores. O que lhes foi oferecido foi uma 2010a) vem discutindo duas orientações peda-
escola sem conteúdo e com um arremedo de gógicas no campo progressista da educação em
acolhimento social e socialização, inclusive na relação a objetivos e formas de organização das
escola de tempo integral. O que se anunciou práticas educativas escolares. Uma delas atri-
como novo padrão de qualidade transformou- bui prevalência à formação cultural e científica,
se num arremedo de qualidade, pois esconde em que se valoriza o domínio, pelos alunos, dos
mecanismos internos de exclusão ao longo do saberes sistematizados como base para o desen-
processo de escolarização, antecipadores da volvimento cognitivo e a formação da persona-
exclusão na vida social. lidade, por meio da atividade de aprendizagem
socialmente mediada. As teorias da formação
Uma aposta: uma escola que articule cultural e científica abrangem as pedagogias vol-
a formação cultural e científica com tadas para a formação do pensamento conceitual
as práticas socioculturais em que se e para o desenvolvimento mental, entre elas, a
manifestam diferenças, valores e formas pedagogia histórico-cultural formulada por Lev
de conhecimento local e cotidiano Vygotsky e seus seguidores. A outra orientação
valoriza experiências socioculturais vividas em
A luta política e profissional pelas situações educativas (cultivo da diversidade,
conquistas sociais – entre elas, o ensino práticas de compartilhamento sociocultural, ên-
público – é um dever ético dos educadores. fase no cotidiano etc.), obviamente com objeti-
Por isso, uma visão assertiva sobre a escola e vos formativos. Teorias ligadas a essa orientação
o ensino assentada nas necessidades humanas incluem, ao menos, algumas orientações teóri-
básicas e nos direitos humanos e sociais não cas do movimento mundial da educação nova,
pode contentar-se apenas com a crítica. São o movimento Educação para Todos (Declaração
necessárias teorias sólidas, acompanhadas de de Jomtien), a pedagogia de Paulo Freire, as te-
instrumentalidades a serem postas em prática. orias do cotidiano e das redes de conhecimento
Escreve Potyara Pereira (2000): e a teoria curricular crítica. As duas abordagens
buscam objetivos formativos em torno de uma
Sem a existência de referências teórico- mesma questão: o que se espera que a escola
-conceituais alternativas, coerentes e con- faça para formar cidadãos educados e críticos,
sistentes, dificilmente se consegue contra- aptos a participar da vida em sociedade, e como
-arrestar a “retórica da intransigência” do fazer isso. Os projetos pedagógicos de ambas,

24 José Carlos Libâneo. O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola do conhecimento ...
no entanto, são distintos e disputam as prefe- tas à promoção do desenvolvimento humano,
rências de intelectuais no campo investigativo e em consonância com o conjunto das políticas
de dirigentes de sistemas educacionais no cam- sociais formuladas pelas agências interna-
po institucional, determinando diferentes esco- cionais para a redução da pobreza. Conforme
lhas em relação às funções da escola e às suas anunciado, o que se produziu foi uma análise
formas de funcionamento pedagógico-didático pedagógica das políticas do Banco Mundial, de
e organizacional. forma a identificar os objetivos e as funções
Será possível conciliar posições relativis- pretendidas para a escola em relação ao ensino
tas em que os valores e práticas são produtos e à aprendizagem. Constatou-se que o conceito
socioculturais e, portanto, decorrentes do modo de aprendizagem difundido nas reformas edu-
de pensar e agir de grupos sociais particulares, cativas neoliberais foi o de sua conotação ins-
com a exigência social de prover a cultura geral, trumental. Com efeito, os documentos revelam
acessível a todos, independentemente de con- uma visão ao mesmo tempo restrita e ampliada
textos particulares? A aposta que se faz aqui é de aprendizagem expressa nesta assertiva:
de que possíveis acordos em torno de propósitos
educativos e meios de ação pedagógica impli- cada pessoa – criança, jovem ou adulto – de-
cam admitir, como princípio, a universalidade verá aproveitar as oportunidades educativas
da cultura escolar. À escola caberia assegurar, a destinadas a satisfazer suas necessidades bá-
todos, em função da formação geral, os saberes sicas de aprendizagem (WCEFA, 1990).
públicos que apresentam um valor, independen-
temente de circunstâncias e interesses particu- Uma visão restrita, pois, ao longo do
lares; junto a isso, caberia a ela considerar a documento, a noção de aprendizagem vai-se
coexistência das diferenças e a interação entre firmando em torno da ideia de aprendizagens
indivíduos de identidades culturais distintas, in- mínimas, como aquisição de competências bá-
corporando, nas práticas de ensino, as práticas sicas para a sobrevivência social; visão amplia-
socioculturais. Desse ponto de partida, surgiria da, no sentido de não se restringir à aprendiza-
uma pauta comum de ação em torno da função gem escolar e cognitiva, abrindo-se para outros
nuclear da escola: assegurar a qualidade e a efi- espaços e tempos, inclusive para vivências de
cácia dos processos de ensino e aprendizagem acolhimento da diversidade e para uma apren-
na promoção dos melhores resultados de apren- dizagem ao longo da vida (no sentido de uma
dizagem dos alunos. Para isso, os legisladores, educação permanente). Por um lado, a noção
planejadores e gestores do sistema escolar, bem mais restrita confina a aprendizagem numa
como os pesquisadores do campo educacional, mera necessidade natural, desprovida de seu
precisariam prestar mais atenção, também, aos caráter cultural e cognitivo; por outro, a noção
aspectos pedagógico-didáticos da qualidade ampliada dissolve o papel do ensino, destituin-
de ensino, isto é, aos fatores intraescolares da do a possibilidade de desenvolvimento pleno
aprendizagem escolar em que estão implicados dos indivíduos, já que crianças e jovens acabam
os professores e pedagogos especialistas. obrigados a aceitar escolas enfraquecidas, um
ensino reduzido às noções mínimas, professo-
Considerações finais res mal preparados, mal pagos, humilhados e
desiludidos.
O texto teve o propósito de apanhar, nos Diferentemente dessa concepção de
estudos consultados, pistas de que as políticas escola e de aprendizagem, a teoria histórico-
educacionais brasileiras dos últimos vinte anos cultural, a partir das contribuições de Vygotsky
pautaram-se no princípio da satisfação de ne- e de seus seguidores, postula que o papel da
cessidades mínimas de aprendizagem com vis- escola é prover aos alunos a apropriação da

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cultura e da ciência acumuladas historicamente, se a escola recebe sujeitos muito diferentes
como condição para seu desenvolvimento entre si, ela precisa enfrentar a realidade da
cognitivo, afetivo e moral, e torná-los aptos diversidade como condição para ser integradora
à reorganização crítica de tal cultura. Nessa de todos. Dentro do mesmo espírito, ou seja, de
condição, a escola é uma das mais importantes acolhimento da diversidade cultural em uma
instâncias de democratização social e de escola para todos, escreve Charlot (2005):
promoção da inclusão social, desde que atenda
à sua tarefa básica: a atividade de aprendizagem A mundialização-solidariedade implica
dos alunos. Tal aprendizagem não é algo natural uma escola que faça funcionar, ao mesmo
que funciona independentemente do ensino e tempo, os dois princípios, o da diferença
da pedagogia. As mudanças no modo de ser e cultural e o da identidade dos sujeitos en-
de agir decorrentes de aprendizagem dependem quanto seres humanos, ou seja, os princí-
de mediação do outro pela linguagem, pios do direito à diferença e do direito à
formando dispositivos internos orientadores semelhança. [...] A diferença só é um direi-
da personalidade. Tal como expressa Vygotsky, to se for afirmada com base na similitude,
trata-se de uma reconstrução individual da na universalidade do ser humano. (p. 136)
cultura num processo de interação com outros
indivíduos: o que inicialmente são processos Em síntese, trata-se, por um lado, de uma
interpsíquicos converte-se em processos escola que visa à formação cultural e científica,
intrapsíquicos. Sendo assim, a intervenção isto é, ao domínio do saber sistematizado
pedagógica por meio do ensino é imprescindível mediante o qual se promove o desenvolvimento
para o desenvolvimento cognitivo, afetivo de capacidades intelectuais, como condição de
e moral. Pelo ensino, opera-se a mediação assegurar o direito à semelhança, à igualdade.
das relações do aluno com os objetos de Por outro, é preciso considerar que essa função
conhecimento, criando condições para a primordial da escola – a formação cultural e
formação de capacidades cognitivas por meio científica – destina-se a sujeitos diferentes, já
do processo mental do conhecimento presente que a diferença não é uma excepcionalidade
nos conteúdos escolares, em associação com da pessoa humana, mas condição concreta
formas de interação social nos processos do ser humano e das situações educativas.
de aprendizagem lastreados no contexto Compreende-se, pois, que não há justiça social
sociocultural (LIBÂNEO, 2009). sem conhecimento; não há cidadania se os
Essa posição tem correspondência alunos não aprenderem. Todas as crianças e
com o lema cunhado por Gimeno Sacristán jovens necessitam de uma base comum de
(2000): uma escolarização igual, para sujeitos conhecimentos, junto a ações que contenham
diferentes, por meio de um currículo comum. o insucesso e o fracasso escolar. É claro que a
A conquista da igualdade social na escola escola pode, por um imperativo social e ético,
consiste em proporcionar, a todas as crianças cumprir algumas missões sociais e assistenciais
e jovens, em condições iguais, o acesso aos (a escola convive com pobreza, fome, maus
conhecimentos da ciência, da cultura e da tratos, consumo de drogas, violência etc.), mas
arte, bem como o desenvolvimento de suas isso não pode ser visto como sua tarefa e sua
capacidades intelectuais e a formação da função primordiais, mesmo porque a sociedade
cidadania. No entanto, falar de igualdade é também precisa fazer sua parte nessas missões
considerar, ao mesmo tempo, a diferença, pois, sociais e assistenciais.

26 José Carlos Libâneo. O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola do conhecimento ...
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Recebido em: 20.12.2010

Aprovado em: 18.03.2011

José Carlos Libâneo é doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professor do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), na linha de pesquisa
Teorias da Educação e Processos Pedagógicos.

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