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Dificuldades gerais da psicologia contemporânea

para compreender a natureza do amor¹

Autor: Dr. Martín Federico Echavarría

Tradução: Rafael de Abreu Ferreira – www.psicologiadinamica.com.br

A psicologia atual, tanto em sua vertente experimental, como em sua vertente clínica e
outras, surgem no fim do século XIX de uma matriz materialista, pelo qual se designou,
com razão, como uma «psicologia sem alma». Sem alma foi a psicologia experimental
de Wundt, foram as psicologias funcionalistas americanas, a reflexologia e o
conducionismo, e também a psicanálise. Desde uma perspectiva influenciada pelo
positivismo, e antes pela crítica kantiana da psicologia racional, estas formas de
psicologia consideram a alma em geral como um princípio de explicação da mente e da
conduta humana arcaica e mítica. O homem não seria outra coisa que matéria
organizada que não se distinguiria qualitativamente de outras formas de organização da
matéria. A matéria é princípio potencial, não real e determinante, receptora de perfeição,
mas imperfeita por natureza. Todas as variedades de materialismo são filosofias da
potência e não do ato, e, nessa medida, são incapazes de compreender a perfeição e o
bem. Por isso, para a psicologia materialista a perfeição é uma espécie de utopia quase
que diríamos de anomalia. O normal seria a inércia e a imperfeição.
Este materialismo, que se fundava a psicologia clássica do fim do século XIX e
princípio do XX, era em geral mecanicista, mas sobretudo era um biologismo
evolucionista. O ser humano, mera organização da matéria sem dimensão transcendente,
teria surgido da mutação casual da matéria. Ao ser esta mutação casual, e não dirigida
inteligentemente, seu resultado não seria um bem, porque o bem é algo apetecido,
querido. O homem não seria alguém querido, nem muito menos querido por si mesmo.
Para ser querido por si mesmo deveria ser algo dotado de intimidade, ou seja, alguém
dotado da capacidade de voltar sobre si mesmo por reflexão, e por tanto, alguém que
pode possuir o bem de modo estável. Se o homem não é um bem, nem capaz de possuir
o bem, se não foi querido inteligente e pessoalmente, tampouco é alguém que pode ser
querido por si mesmo, ou seja, não é suscetível de amor de amizade.
O «ponto de vista biológico», aliás, sustentado por todas estas correntes, concebe o ser
humano como um mero ser da natureza, imerso em seu meio ambiente, em intercâmbio
com este com a finalidade de adaptar-se. Os organismos biológicos implicam uma
pluralidade de componentes em equilíbrio. Quando esse equilíbrio se rompe, surgem as
necessidades que se traduzem na consciência como impulso para a superação do
desprazer e para a realização do prazer. Isto leva a relação com o meio a fim de se obter
o necessário para restaurar o equilíbrio interno e o equilíbrio com o meio. Nesta
perspectiva, todo ato mental e toda conduta exterior se explicariam em ultima instância
como movimento para a compensação de uma privação, de uma carência ou debilidade.
Ou seja, todo amor é amor de concupiscência. Não há lugar para a ação que brota da
perfeição, do bem difusível de si (porque tal bem não existiria), da doação
desinteressada. Todo amor seria egoísta, possessivo, voraz, mesquinho. Não pode haver
amizade.
Este materialismo biologista e evolucionista, elimina ou reduz as faculdades
superiores do homem a meros instrumentos ordenados a adaptação. A inteligência não
seria uma faculdade pela qual o ser humano se ordena a verdade como seu bem, senão o
homem de todas as ações adaptativas que supõem a resolução de problemas não
previstos por instinto. Deste modo, o verdadeiro dá lugar ao útil. O pragmatismo é um
pressuposto consciente ou inconsciente em quase todas estas correntes. Também o
construtivismo se apoia sobre estes pressupostos, como se vê tão claramente em seu
precursor, Jean Piaget. O conhecimento seria a construção de ações que são esquema de
transformação da realidade. Para esta concepção, conhecer é transformar a realidade,
manipulá-la. No fundo, não há verdadeira cognição. Se não há cognição, não há
contemplação do bem. Sem contemplação do bem, não há amizade em seu sentido
pleno, senão concupiscência, amizade deleitável e amizade útil. Mas não amizade bela,
não esse amor pelo qual se ama a pessoa como tal, como outro eu, como uma alma em
dois corpos.
Ainda mais deteriorada que a inteligência são as concepções de vontade, o apetite
racional despertado pela cognição da verdade. Sem vontade, não há amor de amizade,
só pode haver amor de concupiscência, não só no sentido do amor que é para alguém,
mas amor como ato do apetite concupiscível, amor do bem deleitável, e derivadamente
do que é meio para a obtenção do bem deleitável. Não é, portanto, estranha a atitude
geral de desconfiança da psicologia contemporânea para a amizade. É que, neste
contexto teórico, as relações humanas não podem ser outra coisa que mútua
instrumentalização: Os pais usariam seus filhos para prolongar seu narcisismo;
namorados se usariam mutuamente para obterem satisfação física ou controle moral
sobre os outros; o psicoterapeuta não poderia considerar-se amigo de seu paciente,
porque poderia ficar entrelaçado nos conflitos do paciente. Isto é assim porque em todo
amor nos estaríamos buscando a nos mesmos, e não iria dirigido ao outro conservando
sua própria personalidade e bem.
Não é estranho, por tudo isto, que, falando muito sobre o amor, o desejo, as relações
objetais ou interpessoais, as influências familiares e sociais sobre a personalidade, etc., a
psicologia contemporânea em geral tem negligenciado quase completamente o tema da
amizade, ou a relegou ao plano da quimera. Evidentemente, nenhum espaço se dá aqui
para a ordem sobrenatural e o amor de caridade.

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¹Echavarría, M.F. <<El amor y la amistad en la psicologia aristotélico-tomista y en el psicoanalisis>>, em
Echavarría, M.F. La Formación Del Carácter Por Las Virtdudes Volumem II. Prudencia, Fortaleza,
Justicia y Amistad: Propuestas terapêuticas y educativas, 183.

PARA CITAR ESTA TRADUÇÃO:

Martín Federico Echavarría, “Dificuldades gerais da psicologia contemporânea para compreender a natureza do
amor”, 2015, trad. br. por Rafael de Abreu Ferreira, Itaboraí, Rio de Janeiro, Brasil, junho 2015,
http://psicologiadinamica.com.br/wp-content/uploads/2015/03/1-Dificuldades-gerais-da-psicologia-
contempor%C3%A2nea-para-compreender-a-natureza-do-amor.pdf

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