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D oía tentar abrir os olhos.

O cheiro da grama queimada pelo sol forte que pairava sobre sua cabeça, não lembrava
em nada sua última visão, quando seus olhos ainda conseguiam ser abertos.

Cada centimetro do seu corpo lamentava em cada tentativa de fazer qualquer gesto,
mesmo o mais simples de falar. Mas porque a dor? Euron não se lembrava de uma sequer
possibilidade de estar tão debilitado à ponto de não se mover. E pior, onde ele estava? Os odores
que invadiam seu corpo dolorido, em nada se pareciam com o covil quente e cheio de enxofre
de horas atrás.

– Bem vindo de volta filho. Sim, todos estão mortos – Khalmyr se pronuncia com uma
voz suave e imponente ao mesmo tempo.

– O dragão? Sim, ele continua mau como sempre foi e você nunca viu. As vezes usamos
o mal parar fazer o bem.

Khalmyr não costumava vir sempre a Arton, mas o paladino derrotado tinha um papel
importante nos acontecimentos que viriam. Então Khalmyr continuou:

– Mas ainda não é sua hora! Siga seu destino! – a ira justa do deus podia sentir-se entre
os dentes – Honre seus amigos que agora estão entre seus deuses!

E com um suspirar que acalmou a voz e o coração de Euron, completou:

– Não conseguirá sozinho – uma pausa que no tempo de um deus parecia uma
eternidade – Agora levante! E honre seu deus e sua vida com justiça!

O paladino consegue reunir forças com a ajuda da aura de poder que emanava de seu
deus, e ao abrir os olhos observa uma sombra de dor e angústia, poder e crueldade. O dragão
negro que salvara horas atrás estava ao lado de Khalmyr, quando flashes do seu passado recente
no covil inundaram sua memória.

Tudo não passou de uma ilusão.

Ao ser beijado pela súcubus, Euron caiu em um estado de torpor, e sonhos de vitória
tomaram conta do seu subconsciente. Mas agora a realidade fora mostrada pelo toque de
Khalmyr.

Seus companheiros mortos. Lutaram entre si, com o poder manipulador do demônio, e
um a um tombou pelo próprio poder do campanheiro de batalha. Sangue, dor, agonia e a morte
de todos passou bem na frente do paladino. Que agora já reunia forças, com poder do ódio e
vingança, para estender o braço até sua espada no chão e apoiar para se levantar.

Khalmyr montou o dragão com um salto quase imperceptível aos olhos mortais do
paladino. As asas negras balançaram contra o solo, vento com cheiro de enxofre entrava nas
narinas sensíveis de Euron, e a lembrança do covil dava forças para se erguer apoiado em sua
espada sagrada. Levantaram vôo. O Renascido se ajoelhou apoiado pela sua arma. E uma
silhueta a frente se aproximava.
* * *
O anão não sabia o que procurar.

Desde sua saída de Doherimm, a montanha de ferro, Hagius estava perdido. Camihava a
espera de um sinal, um propósito qual acreditava estar servindo.

Hagius nasceu diferente.

No início achavam que era uma anomalia, os cabelos prateados, seus traços calmos
ainda bebê. Mas a dívida para com a sua mãe do povo anão, não poderiam rejeitar a criança. Ela
era uma das maiores curandeiras do antepassado de Doherimm, quando ainda não era de tão
vasta magnitude sob as rochas. Então o filho dela, mesmo que diferente, fora aceito na
sociedade depois que a mãe morreu no parto.

Hagius cresceu normal e se desenvolveu como um anão qualquer. Apenas pelos


diferenciais dos cabelos e barbas prateados e das feições amigáveis, mesmo que sérias. O povo
anão o acolheu. Não tinham como se sentir mal perto dele, amizade e lealdade se provavam
cada vez maior quando ele iniciou seu treinamento na maioridade. Fazia bem estar à sua volta.
Até o mais ranzinza dos anões (que ele não me escute) se alegrava com sua chegada. Ele sempre
transmitiu paz.

Mas de algum tempo pra cá, algo mudou.

Pesadelos começaram a atormentar suas noites de sono. Orcs e guerra. Sangue e elfos.
Forja e fogo. Uma mistura de imagens indecifráveis que o deixavam inquieto mesmo quando
acordado. Foi então que recebeu o chamado.

Khalmyr o acalmou nos sonhos, quando veio lhe falar. Era chegada a hora. Seu caminho
mudara. Doherimm não mais precisava dele, mas Arton sim. Khalmyr o chamou. E Hagius
atendeu. Seus pesadelos acabaram, tudo era claro. A flecha de fogo estaria por vir, e ele faria
parte disso. .Não se sabia em que tempo ou momento. Mas estaria lá. Levando justiça, honra e
glória para o seu povo!

Então Hagius avista alguém em seu caminho.

* * *
Euron levanta a cabeça, ainda latejando com uma pontada de dor que percorre o centro
da mesma. Os olhos ofuscados pelo sol e a cada contração de cada músculo, era como uma
lança perfurando seu corpo.

Quando consegue olhar pra frente, a silhueta do que parece ser um porco um pouco
maior que o normal cresce a sua frente. E quando se aproxima consegue ver um anão de cabelos
e barbas prateadas, com feições amistosas, montado em cima do animal. Sua armadura
impecável mostra que não foi alvejado por batalhas, pelo menos não recentemente. Sua arma
emana uma aura mágica, mas o paladino pouco percebe. Seus sentidos ainda estão fracos, e ele
não consegue reparar nada além do habitual de um anão pronto para a batalha.

* * *
Hagius caminhava pelos Bosques de Farn, a noroeste de Petrynia, quando um feixe de
luz dourado iluminou uma clareira há aproximadamente um quilômetro a frente. Ele tomou as
rédeas do seu javali de montaria e se dirigiu até o lugar. Onde encontrou o paladino.

– Levante-se servo de Khalmyr – Hagius ajoelha dando seu ombro para o paladino se
apoiar e reunir forças.

Euron reconhece o mesmo símbolo sagrado na armadura do anão, mas ainda não
consegue identificar o coração de quem o está ajudando no momento.

– O que te aconteceu? Meus caminhos foram guiados até aqui, por Khalmyr, vim pra te
ajudar.

A confusão toma conta da cebeça do paladino, que tenta se afastar de Hagius, em vão, e
volta ao chão tombando pra trás.

– O que houve? Quem é você? – tenta esbravejar Euron enquanto se recupera da queda,
começando a se levantar sozinho.

– Eu sou quem vai te ajudar. Pare de teimosia e segure minha mão!

A confiança de Euron ainda abalada, quando novos flashes inetrrompem seu raciocínio,
aumentando sua confusão.

– Não! Saia de perto! Eu não sei... É outra ilusão. – E seu corpo mais uma vez sente a
maciez da grama recém tocada por Khalmyr.

Sua cabeça era uma mistura do que era real e o que não. Ele sentia em seu corpo dor,
mas sua mente levava a crer que era outro golpe da súcubus! A realidade já não parecia tão
palpável. Beto com as asas do demônio fincadas em seu peito, o clérigo de Valkaria com as
duas adagas do próprio companheiro atravessando seu crânio da madíbula até o topo da cabeça,
a recém elfa-do-mar chegada ao grupo com sua cabeça decepada pelo chicote torvejante daquele
ser infernal e seus amigos esquecidos mortos embaixo do punho flamejante de um elemental
enorme.

Tudo era dor, sofrimento, lembranças de um mal que não foi destruído. E o anão a sua
frente. Querendo ajudar. E se não fosse real. E se ele estivesse dentro de outra quase morte
manipulada pelo demônio.

Então a confusão dá espaço ao alerta, dele e do anão, quando no horizonte surge a figura
esguia e sombria, com andar suave, quase imperceptivel, e com um arco nas costas.

* * *
O rastro estava fraco.

Após dias de fuga, Azamayor com suas habilidades, conseguiu encontrar novamente o
rastro do minotauro. As patrulhas de Tapista estavam em seu encalço até três dias atrás, e ele
não queria denunciar seus amigos, numa possível localização para os guardas.
Se escondeu, apagou pistas, plantou rastros falsos, e no quarto dia, os legionários
minotauros não mais o seguiam. E ele encontrara, com quase toda a certeza que sua perícia
permitia, seu companheiro perdido Gregorius.

Seguiu através dos Bosques de Farn, a trilha que levava até a Montanha do Dente do
Dragão, e ao avistar as costas da montanha, encontra também a pouco mais de meio quilômetro
um anão empunhando um martelo de batalha que consumia fogo em seu ápice, e um humano
caído com uma espada desgastada por uma batalha recente.

Azamayor não puxou o arco. Caminhava lentamente até os desconhecidos. Sabia que
não poderiam acançá-lo mesmo se quisessem, com todo aquele peso. E seu arco os alcançaria
antes que levantassem as armas.

– Alto lá elfo! O que quer?! – o anão urra com voz firme e marreta em punho ao
perceber o elfo numa distância suficiente para escutá-lo.

– Calma amigos, só estou de passagem, pretendo ir até a montanha – Diz o elfo sereno,
seguindo em frente, sem pressa, e se posicionando para contorná-los.

O paladino ao avistar o elfo e já com parte do seu poder reestabelecido, se concentra nas
auras dos que estão à sua frente, e pede a benção de Khalmyr para reconhecer suas virtudes.
Não eram pessoas más. Então relaxando um pouco seu corpo que ainda faz um esforço
descomunal parar se manter de pé, permite a continuação do elfo:

– Eu só estou de passagem, vou encontrar meus amigos que entraram naquela


montanha.

Euron o encara. Como aquele elfo que ele nunca vira, conheceria seus amigos mortos?
Ele estava com o grupo há tempo suficiente pra saber que não tinha mais ninguém. Ou estava
errado? Sua cabeça ainda confusa, só que mais confiante por estar de posse outra vez de seus
poderes mais básicos, estava tentando formular perguntas que fizessem o elfo desconhecido
convencê-lo.

– Eu estava naquela montanha – diz o paladino já de pé e de posse de sua espada – E


tinha companheiros comigo. E não tinha mais ninguém além de nós!

– Ahh que bom – diz o elfo momentaneamente aliviado – Então esteve com meu
companheiro minotauro Gregorius! Onde ele está?

Uma dor no peito vem forte quando Euron se lembra das chamas envolvendo o corpo do
amigo minotauro. E agora já não mais acredita que seja uma nova ilusão. A lembrança dos
companheiros e a agonia da perda o fazem fraquejar. Mas sua fé o mantém de pé. Embainha sua
espada novamente e com um olhar de vingança que encontra o olhar esperançoso do elfo,
completa:

– Todos estão mortos.

* * *
Criada em uma tribo bárbara em Galrásia, Dragona tinha alcançado a maioriade há
poucas semanas atrás.
Um ritual de caça de seus ancestrais parar se completar a passagem da adolescência pra
vida adulta estava em curso. Onde consistia sobreviver a catorze luas em alguma parte selvagem
pouco explorada da ilha, e retornar com algum troféu de caçada.

Mas no segundo dia ela foi interrompida.

Uma tripulação de piratas vindo do oeste do Mar Negro estavam cautelosamente


caçando possíveis atrações para vender a circos e arenas de Malpetrim e Valkaria. E a quase
adulta dragoa-caçadora foi uma das sorteadas.

Houve pouca luta. A nativa estava sozinha e cansada de uma noite sem dormir. E foi
capturada.

Foi comprada por um Yudeniano humano, que a usava para lutar contra gladiadores de
empresários rivais. O público ia ao delírio em cada luta, pois diferente da maioria, ela não fazia
apresentações. Suas lutas eram sempre fatais.

Em uma dessas lutas teve um parceiro, um troglodita. Lutaram contra uma dupla de
Ogros. O troglodita se colocou em situação perigosa, e sem pestanejar, pois sua vida também
dependia da sobrevivência de seu parceiro, o salvou. E o troglodita ficou com uma dívida de
morte com ela. Ele a ensinou o Valkar, idioma comum no reinado (maior parte ao menos), e
construiam juntos planos de fuga da arena. Mas Dragona ficava presa a grilhões grossos dentro
de sua cela.

Certo dia um jovem promissor que fora treinado pra derrotar Loriane, lutou contra
Dragona, e aconteceu o que seu empresário não contava. Em uma manobra do destino foi
superior ao jovem e poderoso guerreiro, e arrancou sua jugular com os dentes. Tinha assinado
sua sentença de morte.

Na noite que voltou pra sua cela, o troglodita também tinha lutado, mas estava diferente.

Soube que ela morreria, e numa tentativa desesperada utilizando toda sua força,
arrebentou os grilhões que a seguravam, e pagou sua dívida com liberdade. Os dois saíram
correndo da cela, mas o troglodita foi surpreendido, pois não tinha sua velocidade e nem
habilidade.

Dragona só lembra de ter olhado pra trás o suficiente pra ver o troglodita ser morto
pelas lanças e espadas afiadas dos guardas.

E começou a correr...

* * *
Foi como se uma carroça, com as mais pesadas armas de Zakharov, tivesse atropelado
Hagius.

Seu corpo foi jogado engalfinhado com outro corpo bem maior que o dele, por mais de
quinze metros de rolamentos e cambalhotas na grama do bosque onde estavam. O rosto atônito
de Euron e o reflexo de Azamayor não esperavam ver aquilo.
Uma humanóide, de quase dois metros de altura, pela lisa e brilhosa, com pequenas
indicações de escamas de réptil, e o rosto alongado do povo meio-dragão; atropelou o anão que
se encontrava junto deles, e se abalroaram por um bom pedaço da mata baixa.

A dragoa-caçadora consegue se libertar primeiro, e numa manobra precisa cai em cima


dos quatro membros, numa posição acuada mas pronta pra qualquer resposta que preciso fosse.

Seus olhos cansados da luz fraca das grandes cidades, e seus pés quase em carne viva de
tanto correr uma distância que sequer imaginava, estavam fixados nas pessoas à sua volta.
Pareciam todos iguais pra ela. Com suas armas trabalhadas, armaduras pomposas, e roupas
coloridas. Cada parte do corpo coberta, e a mesma cara de que via em sua fúria uma forma de
entreter outros da mesma raça podre que vivia fora da sua ilha natal. Mas ela tinha parado, e o
inimigo poderia estar ali. Ela estaria pronta, não se deixaria capturar novamente.

– Mas o que é isso?! – o anão se recompôs o mais rápido que pode, deixando sua
marreta em riste, pronta para desferir o mais poderoso golpe.

O elfo tira numa velocidade impressionate uma flecha de sua aljava e coloca no arco
que há segundos não estava em sua mão, enquanto o paladino tenta perceber o coração da fêmea
daquela raça ainda desconhecida por ele. Não há maldade.

– O que.. vocês querrrrem... de mim? – esboça a dragoa-caçadora em um Valkar


arranhado.

– Calma, não queremos seu mal! De onde você veio? – proferiu o elfo abaixando o arco
lentamente.

– Vim da arrrrrena... de Malpetrrrrim.

– Mas... Essa arena fica a muitos quilômetros daqui – observou Hagius já repousando o
pesado martelo no solo.

– Nunca mais eu serrrrr prrrrresa! Saiam!!

– Se quiséssemos fazer algum mal, já teríamos feito, estamos em maior número.


Acalme-se, e perceba que não vamos te machucar – diz Euron com sua segurança convicta.

Os ânimos se acalmam, e todos percebem que estão cansados e que aquele empasse
desgastou-os.

Euron se senta novamente, apoiado pela sua fiel lâmina, e sente algo no seu corpo.
Tateando os espaços da sua armadura encontra um pedaço de papel. Ao abrir percebe que se
trata do mapa que estava em posse do habilidoso Beto, morto no covil. Lembrava que foi dito
que se encontrava em uma língua antiga anã. E que tinha acabado de conhecer um, que esperava
a sua frente qualquer movimento seu. Mas como aquele mapa teria caído em suas mãos? Porque
só tinha em seu poder sua espada e o mapa? Acreditou por um instante fazer parte de algo
maior, quando o anão interrompeu seus pensamentos:

– Estamos todos cansados. Não conheço aqui. Mas sabem de algum lugar próximo que
possamos descansar? Estamos no meio do dia, permanecer aqui só nos desgastará ainda mais.
– A norte do bosque tem uma pequena vila. Lá encontraremos abrigo, comida e água –
disse o elfo com a experiência de quem viveu mais naquelas terras do que todos juntos.

– Ótimo, vamos pra lá – ordena o paladino.

A dragoa-caçadora também cansada, sente que pode confiar neles. Ou que não tem
muita opção, além de estar perdida. Azamayor pretende ajudar o campanheiro ferido do seu
amigo, agora morto, e também não acredita em coincidências.

Os quatro reúnem as forças que têm, e partem juntos pra tal vila, que se encontra poucas
horas de viagem ao norte.

* * *
A vila de Farino estava em alvoroço. Há poucas horas atrás ainda era uma vila
reservada, com pessoas comuns, que trabalhavam e ganhavam seu dia a cada novo nascer do
sol. Mas uma caravana com passagem recente pelos arredores fez isso mudar.

O circo A Lona de Jade, estava se dirigindo para uma viagem pelo Rio dos Deuses após
uma temporada em Malpetrim, junto com A Grande Feira. Seu destino era Namalkah, onde iria
revesar seus cavalos, e continuar a longa jornada de volta a Tamu-ra. Já que o reino é
amplamente conhecido pela qualidade de seus belíssimos equinos. Mas no meio da viagem,
após passarem tranquilamente pelo Bosque de Farn em direção ao rio, a caravana foi alvejada
por uma tribo enlouquecida de Gnolls.

Chacina desenfreada, sangue, e todos os espólios roubados à ferro. Assim terminou a


investida Gnoll a já não mais tão festiva Lona de Jade. Só que durante o massacre, as jaulas dos
trigres foram abertas. E eles foram mais rápidos que os humanóides com cara de hiena, e
fugiram. Por isso a vila estava acordada aquela hora da noite.

A praça central era uma bagunça só. Quase todos, execto as crianças e as mães que
precisavam cuidar das mesmas, estavam ao redor. Qualquer homem que fosse capaz de
empunhar uma arma, e até mesmo quem não, se encontrava ali, em pé, diante daqueles dois
supostos aventureiros e desconhecidos.

Raigor e Kazin nunca tinham se visto. Não sabiam da história um do outro e nem
pretendiam saber a princípio. Mas precisavam da recompensa de vinte tibares de ouro para cada
um, oferecida pela captura dos tigres, vivos ou mortos. Suas provisões estavam acabando, e a
vila de Farino veio em uma boa hora afinal, essa quantia poderia segurá-los financeiramente por
mais alguns poucos meses.

* * *
Raigor tinha visto Khalifor cair.

Há dez anos atrás, quando ainda adolescente, acordou no meio da noite com uma
máquina de guerra goblinóide rasgando o chão. Saindo de baixo da terra com seus perfuradores
mecânicos e surpreendentes, destruindo tudo pelo caminho, pra logo em seguida abrir uma
comporta e liberar centenas de soldados furiosos e obestinados a dizimar sua cidade inteira, e
em consequencia seus pais e familiares.
Um dos capitães da resistência de Khalifor o pegou pelo braço, interrompendo a visão
terrível da morte dos pais, e o jogou pra cima de um cavalo, numa fuga desesperada com outros
humanos da cidade-fortaleza.

E eles cavalgaram. Com pouco mais de algumas dezenas de sobreviventes, cavalgaram


sem parar pra comer ou dormir, até que estivessem fora da ameaça de Thowr e seu exército
sedento por sangue e conquista. Mas pouco tempo depois se estabeleceram em uma vila que
parecia ser segura, longe dos perímetros de Khalifor.

Mas houve outro ataque. Nada organizado, apenas morte sem sentido e uma vila inteira
suprimida pela fúria descontrolada de orcs em anarquia. E dessa vez não houve sobreviventes, a
não ser Raigor. Debaixo dos escombros e desacordado, perdurou. O massacre acabou, e o agora
já treinado guerreiro acordou. Não acreditava no que via diante de seus olhos. Outra família
morta. Mais uma vez pelos malditos goblinóides, fossem eles de quaisquer exército ou não.
Raigor jurou despejar sua vingança sobre cada maldito ser dessa raça.

Ele levantou e caminhou pelos escombros, procurando seu mestre. Achou um cadáver.
E ao lado sua espada. Feita especialmente para ele e por ele, em sua exímia perfeição e
exuberante magnitude. Uma espada táurica que parecia muito mais que apenas uma obra-prima.
E que Raigor prometeu aprender a usar para retaliar cada tentativa goblinóide que encontrasse
em seu caminho

* * *
Kazin na verdade nunca soube suas origens. Foi criado por um Qareen feiticeiro mestre
das trevas que aspirava ser um necromante. Era obcecado por esse poder, e isso o cegou para o
mundo.

Um grupo de aventureiros invadiu seu covil e o matou. Kazin era apenas um lacaio,
aprendiz, e o mal e as trevas ainda não faziam parte do seu coração. Julius, um clérigo de
Wynna, percebeu uma alma perdida ali, e decidiu investir no jovem aprendiz, o fazendo seu.

Viajaram, e o garoto descobriu seus verdadeiros dons. A magia. Crescia e evoluía tão
rápido quanto qualquer veterano do grupo. E começou a ser testado pelo sacerdote em missões
solos. Em uma delas quando retornou ao abrigo do grupo, os encontrou mortos.

Carnificina é a palavra. Kazin nunca tinha presenciado aquilo. Seus atuais


companheiros mortos de uma forma assustadora. Inscriçoes nas paredes, em formas de runas
desconhecidas. Símbolos anteriormente nunca vistos por seus olhos agora adultos e preparados.
Mas nada o tinha preparado para aquilo. Seus braços tremiam, suas pernas fraquejaram e suas
lágrimas ardiam. Ódio. Ele não sabia muita coisa sobre pistas, rastrear e muito menos encontrar.
Tinha alguém no grupo que fizesse isso. Mas já não tinha grupo, nem ninguém, e muito menos
sabia do seu passado. De onde era, quem eram seus pais, o que ele era na verdade. Wynna só
tinha lhe dado poder e uma tatuagem no rosto para lembrá-lo de quem era. E era só o que tinha.
Até ali.

Agora Kazin vagava por Arton, reunindo o que conseguia, adquirindo conhecimento e
aumentando em poder. Para um dia, vingar seus companheiros e saber sua história. Mas nada é
tão fácil pra ele. Então, vinte tibares de ouro viriam bem a calhar, mesmo que tigres não fossem
sua diversão mais favorita.
* * *
Eles se entreolhavam. O povo daquela vila não fazia muito sentido entre comentários de
tigres e hienas andando sobre duas pernas. Entre cheiro de queimado a oeste e sangue ao leste.
Era muita informação desencontrada, e Raigor sabia de técnicas de combate, não rastreamento.
Contava que o estranho a seu lado com uma tatuagem no rosto e aspecto tranquilo, soubesse
mais que ele.

Kazin por sua vez ficou impressionado com o tamanho da espada de seu mais novo
companheiro. E pensou que seriam os tibares mais fáceis que conseguiria nos últimos dias.

Os dois se apresentaram, e ficaram esperando coordenar alguma informação pláusivel


que a multidão desordenada desembuchava. Quando Raigor avistou algo em cima de uma casa
há aproximadamente duzentos metros.

* * *
O novo grupo de companheiros estava cansado. E uma vila finalmente despontava no
horizonte. Era noite e a tranquilidade do que estava a frente era convidativa.

Entraram sem chamar muita atenção, procurando um lugar com o mínimo de


movimento possível. Afinal, se eles não tinham ainda se habituado com uma fêmea dragoa-
caçadora vinda de Galrasia, não podiam esperar que os habitantes dali também.

Entre casas, chegaram o mais próximo do que parecia ser o centro da vila. Mas ali tinha
alvoroço.

- Não podemos entrar juntos. A dragoa chamaria atenção demais – começa o paladino.

- Subirrrr no telhado... prrrra verrrr o que acontece.

Antes que pudesse ser impedida, a dragoa-caçadora salta com sua velocidade e
facilidade para o teto de uma casa de madeira, em boa conservação, mais próxima. E permanece
furtiva. Mas não por tempo sufciente pra avisá-los o que vê. O olhar sagaz de Raigor foi mais
rápido.

- Ali! Naquela casa! Um dos mostros!! – e o guerreiro acelera o passo, deixando sua
espada grotesca cair do seu ombro para o lado do corpo, e já a empunhando com as duas mãos,
se dirige à casa.

Kazin, acompanha o olhar e raciocínio do guerreiro, e profere palavras rápidas e em tom


baixo. Com gestos curtos e acionados às palavras, sua tatuagem emite um brilho suave, com
linhas e contornos que se dissipam e retornam enquanto seu corpo começa a sair do chão.

Quando as palavras terminam, e seu corpo fica totalmente suspenso no ar, o povo da
vila de Farino em espanto, se acotovela, esbarrando um no outro e recuando, receando por
aquilo que não conhecem. Mas Kazin não dá tempo de qualquer reação da população. Se lança
ao ar, numa velocidade acima do normal e com uma parábola perfeita durante o vôo, está
prestes a chegar no telhado do casebre, mesmo que o guerreiro tenha saído antes correndo.
A habitante de Galrasia percebe que foi avistada e com a mesma presteza retorna ao
chão junto à seus recentes companheiros.

- Ela não está sozinha!! – anuncia Kazin ao chegar no telhado agora já avariado pela
subida da dragoa.

O quarteto de desconhecidos empunham suas armas ao se assuatarem com o mago


pousando sobre a casa, ao mesmo tempo que a dragoa recua acuada atrás do último do grupo, o
elfo já com arco e flecha engatilhada e pronta para atirar.

No mesmo instante, calculando as curvas e distância a que estava, chega Raigor,


avistando o conjunto de estranhos.

- Quem são vocês, e o que querem aqui!? – espada anormal em punho, e analisando as
pessoas que estavam à sua frente. Já esperando não ter problemas, pois não poderia contê-los
sozinho se preciso fosse.

- Não queremos problemas! Só um lugar para passar a noite! – profere Euron com sua
espada longa em riste.

- Achei que sua campanheira fosse um Gnoll – o guerreiro acalma sua espada e virando
levemente seu corpo em direção ao telhado, chama o recém companheiro adquirido – desça
Kazin!

O Qareen levita e toca suave o chão. Que levanta uma pequena nuvem de terra com seu
pouso, aos olhos de quase todos os habitantes da vila, que já tinham tratado de seguir o
guerreiro e aguardavam o resultado à alguns metros de distância.

- Ela não é! – informa Azamayor – Uma dragoa-caçadora, vinda da ilha de Galrasia.


Está sob nossos cuidados no momento e assustada com a agitação da cidade grande.

- Estamos cansados e só queremos uma boa cama e... – o anão com barbas e cabelos
prateados é interrompido pelos gritos estridentes de uma mulher.

- Milha filha! Ela está no celeiro! Tem um tigre lá! Ela vai morrer! Ajudem! Por favor!

O Paladino abstraiu qualquer pessoa à sua frente e se dirigiu até a mulher desesperada.
Sua aura de confiança e desejo do que é certo, fez com que ninguém parasse em seu caminho.
Chegando até a mulher, a segura pelos ombros com suavidade e olha em seus olhos.

- Salvaremos sua filha. Fique tranquila – olhou para o guerreiro á sua frente, e para o
feiticeiro recém apresentado. Sabia que seus companheiros o apoiariam. Mas não desejava
derramar mais sangue inocente – Onde é o celeiro?

- Vamos até lá! – indicou o guerreiro, apontando sua espada nunca antes vista por
nenhum dos quatro.

Raigor tomou a frente, seguido pelo feiticeiro que prestava atenção em cada movimento
dos recém chegados. Acreditava em altruísmo sim, mas não tanto nas pessoas. E sua prontidão
sempre fora provada eficaz.

Cansado e ficando sem paciência, Hagius não negaria ajuda a quem quer que fosse, e o
paladino não descansava. Ele podia ter achado o que procurava, tinha que ficar junto.
O elfo e a dragoa estavam mais afastados, mas continuando em frente. O povo olhava a
fêmea mais curioso que assustado, e ela cautelosa ao andar novamente entre tantos humanos.
Mas imponente e segura de sua força.

Um rastro de sangue os guiou até o celeiro. Não se ouvia sons, nem de tigre nem de
criança. Um calafrio passou. A possibilidade do insucesso se manteve no pensamento de todos.
A porta estava entreaberta.

* * *
Kazin, o feiticeiro, não achava estranho o uso da magia, era comum para ele. Assim
quando iluminou magicamente a espada do guerreiro, Raigor a soltou no chão.

- Mas que diabos? – e o som da espada táurica do guerreiro contra o chão levanta a terra
alguns centimetros.

- Conjurei um feitiço pra iluminar os caminhos dentro do celeiro – avisa tardiamente o


jovem aprendiz de magia.

A porta dupla e enorme do celeiro está entreaberta. E o rastro de sangue que segue pra
dentro, especula uma situação desfavorável a filha da aldeã.

A dragoa-caçadora irrompe para o lado do celeiro sem avisar aos companheiros. E


encontra uma janela lateral aberta. Seu tamanho é suficiente pra Dragona entrar no local sem ser
vista. E sua forma silênciosa, ausente de roupas e itens que despertariam qualquer ruído, facilita
sua furtividade junto ao seu rápido deslocamento. Os outros se preparam para a porta da frente.

Raigor e sua espada iluminada tomam a dianteira, seguido pelo paladino e o anão.
Kazin e Azamayor ficam a espreita na porta, aguardando qualquer supresa, mas já do lado de
dentro.

O celeiro não tinha iluminação nenhuma. Fardos de feno já utilizados e escassos pelo
tempo, se alojam nas laterais dos cochos vazios. Duas plataformas laterais suspensas circundam
o celeiro de teto esburacado pelo clima. E ao iluminar a extensão do celeiro com sua grotesca
espada, Raigor e os outros avistam o lado oposto.

Uma escada vertical de madeira, quebrada e gasta, faltando alguns pedaços que dá
acesso ao andar superior com suas laterais. Algumas ferramentas de cultivo, roupas penduradas
e empoeiradas pelo desuso, e finalmente o primeiro e agora secundário objetivo do grupo: o
tigre e a criança da vila.

Apoiado sobre duas patas, o tigre lança suas patas dianteiras para a parte superior da
escada, como se fosse possível subi-las como um humano. Em vão. Mas as pancadas abalam
toda a estrutura do segundo andar, cada vez que desferi mais um golpe furioso em busca da
criança oculta que está em algum lugar ali em cima. Mas a luz repentina desperta seu interesse,
e ele vira para o grupo recém chegado.

Os aventureiros se posicionam em posturas ofensivas, com suas armas em punho e


cautela no olhar, afinal aquele tigre não teria culpa da imcompetência dos responsáveis, e a
busca por comida é um instinto natural do animal. Mas a dragoa-caçadora também tinha
instintos.
O tigre abstraí seu possível troféu e vira sua atenção à mais provável refeição. Pousa
suas patas no chão com um giro do seu corpo de mais de meia tonelada, e arremete em direção
ao grupo com uma velocidade assutadora. Mas não para Dragona.

O tigre investe com ferocidade, mas antes mesmo da metade do caminho a dragoa-
caçadora salta do andar superior direito do celeiro sob seu corpo enorme listrado. Suas garras
acertam o animal no dorso, que reduz drásticamente a velocidade, e tomba de lado, fazendo a
dragoa ser lançada para o lado oposto, e com uma manobra acrobática, cair agachada sobre os
quatro membros há poucos metros do tigre.

Euron escuta o choro suave e tremido da criança na parte superior que a escada leva, à
sua frente. Numa questão de segundos percebe o caminho vazio, pelo tigre caído e tentando se
reerguer, e a dragoa como sua cobertura. Dispara à frente com espada e escudo em guarda, e
passa pelo tigre que está focado na fêmea do seu lado, e chega a base da escada.

Subindo com pouca mobilidade e tomando os cuidados que uma escada velha e
esquecida exigem, o paladino chega na parte superior. À luz fraca que chega ali, vinda da
espada enfeitiçada abaixo dele, uma pequena sombra se encontra agachada e encolhida no canto
esquerdo daquele andar. Cercada por caixotes velhos, e fardos mínimos e utilizados de feno, a
criança chorava com medo estampado nas suas lágrimas não visíveis.

- Não tenha medo criança, estamos aqui para ajudá-la – diz o paladino de Khalmyr com
sua voz retumbante mas esforçada pra ser suave e amenizar o desespero da criança – Sua mãe
nos mandou pra ajudar. Venha comigo, tudo acabará bem.

A aura de confiança e poder que o paladino exalava não deixava nenhuma dúvida para a
criança. Aquela era sua única, e melhor opção. Estendeu a mão ao singular guerreiro dos deuses
que estava à sua frente, e de súbito se jogou em seus braços, deixando as lágrimas cair dos seus
olhos. Em seguida aponta para o canto onde estava, e um brilho prateado chama atenção de
Euron.

Ele caminha devagar na direção do inesperado, e chegando perto com pouca


iluminação, avista um tecido azul e um bordado que reconhece prontamente em suas costas, o
símbolo sagrado de Khalmyr. Pousa novamente a criança no solo, deixando-a perto de seus
olhos, e agacha pra verificar melhor.

Uma capa lazuli meio fosca, com o símbolo de seu deus gravado em alto relevo no
dorso, presa a um par de ombreiras prateadas e trabalhadas em formato de um meio circulo.
Junto a um elmo, também prateado de mesmo tom das ombreiras, que deixava boa parte do
rosto à mostra, e culminava em seu topo uma longa pena, que parecia de alguma ave rara
desconhecida pelas suas experiências.

Um presente de Khalmyr? Mas por que? Pensou o paladino admirado. Mas já não
duvidava nem um pouco dos designios do seu adorado deus. Acoplou com um click perfeito a
ombreira à sua armadura, e posicionou o elmo num encaixe perfeito em sua cabeça. Retomou a
criança em seus braços, e se dirigiu novamente para a escada, enquanto ouvia os sons da batalha
embaixo de si.

* * *
Quando Raigor percebeu Euron se dirigindo à escada, partiu logo em seguida, passando
pelos dois animais que travavam uma inicialmente sangrenta batalha no meio do celeiro. Correu
até a escada, e se assegurou que nada subiria, em guarda abaixo dela. O elfo como contenção, e
sem intenção de matar o tigre, attirou uma de suas flechas certeiras em uma de suas patas,
fazendo com que seu movimento fosse atrasado. Kazin ergueu suas mãos à frente, e com gestos
e palavras imcompreendidas pelos ouvintes próximos, lançou um feitiço. Uma crânio de uma
caveira negra saiu conjurada de suas mãos, mas sua pontaria foi abalada por alguma
adversidade, e o ataque passou há alguns metros do corpo do animal. O tigre se levatava com
ódio em seu olhar felino e ferido, enquanto a dragoa se preparava para um bote mais rápido e
mortal.

Mas o tigre não tinha que ser morto. Era um animal se defendendo apenas, e faminto.
Hagius cancelou o fogo de sua marreta anteriormente em chamas, e numa investida inesperada
percorrendo poucos metros em um tempo assustador, desferiu um golpe concussivo na cabeça
enorme do tigre, que caiu desacordado.

- Muito bem anão, ele não tinha que morrer – retrata o paladino agora descendo a
escada com uma criança menos abalada em seus braços. Quando Hagius diz.

- Alguém tem uma corda para atar seus menbros?

- Aqui, tome! – lança no ar o elfo retirando uma de seus equipamerntos com rapidez.

Em conjunto, amarram o animal inconsciente, e Raigor o coloca sobre os ombros,


quando pergunta finalmente ao paladino:

- De onde saiu isso? – fazendo gestos com seu rosto em direção ao elmo e as ombreiras
recém adquiridas por Euron..

- Um presente de Khalmyr. Estava na parte de cima do celeiro com a criança.

- Enttão mão há o que saber. Khalmyr sempre terá um propósito, mesmo que não
entendamos – se intromete o anão.

E todos saem juntos do celeiro.

* * *
A mãe sozinha e desamparada da pequena garota espera vocês ansiosamente na porta.
Seus olhar de gratidão e suas lágrimas de alívio, só aumentam quando a pequena Annie desce
do colo do paladino e corre para os braços da mãe.

- A quem devo agradecer?

- E sou Euron, paladino de Khalmyr e renascido por sua vontade...

E assim, seguiram as apresentações à humilde mãe de Annie, que ficou eternamente


grata ao grupo de aventureiros recém chegados à sua modesta vila. E logo retornou com sua
filha viva e feliz pra casa.

- Bom, ainda faltam dois – comenta Raigor enquanto o elfo parece indagar todo o
ambiente à sua volta.
- Dragoa, me entende? – Ela faz com a cabeça sinal de positivo – Com o odor desse
tigre, consegue encontrar os outros?

Ela se agacha diante do animal desacordado e fareja seu corpo por alguns segundos. Em
seguida se ergue de supetão.

- Irrrrr rrrrrápido! Cheirrrrro frrrresco! – e dispara velozmente um pouco mais a


nordeste da vila, entrando um pouco na floresta bem abastada. Os outros tentam acompanhá-la
como podem e de pronto estão dentro da floresta.

* * *
O segundo tigre está cercado.

Humanóides com corpo peludo e cabeça de hiena, mais conhecido como Gnolls,
alvejam com lanças enferrujadas e fundas arrebentadas o tigre encurralado ao sopé de uma
árvore centenária. São nove deles na verdade. Suas risadas insuportavelmente histéricas cessam
ao perceber que já estão cercados pelo grupo distinto recém chegado.

A batalha dura poucos minutos, onde a maior preocupação era o tigre, na verdade. O
poder de combate do paladino e companhia superava em muito os Gnolls em desordem. Foi um
massacre. Sangue foi espalhado por toda a floresta e o segundo tigre, no calor da batalha, fugiu
despercebido das mãos dos aventureiros.

A matilha humanóide de hienas morta, o tigre desaparecido, podendo ou não ter voltado
para a vila, que estava próxima, e seus equipamentos um pouco avariados pela sequência
cansativa de lutas. Mas ainda faltava o terceiro animal. E tinha mais um animal ali com fome.

* * *
A dragoa-caçadora se aproxima do corpo morto de um dos Gnolls estirado na cama de
folhas secas que a floresta ali produzira. O cheiro de sangue fresco em abundância, tocando seus
instintos, atiçou sua fome, e ela precisava comer.

Numa velocidade instintiva, agachou perto e retalhou armadura velha com suas garras,
abrindo espaço pra um pedaço de carne suculenta de Gnoll encontrar seus dentes afiados.
Retirava suas entranhas pra se alimentar quando é interrompida por uma baque do seu lado
esquerdo do corpo, a jogando alguns metros de lado.

- O que pensa que está fazendo animal?! – decreta Euron após ter se lançado de
encontrão ao corpo da dragoa-caçadora com seu escudo trabalhado com o brasão de Khalmyr.

- Eu terrrr fome! Comerrrr!

- Não um oponente morto! Temos comida se quiser! – bravejou o paladino não


acreditando no que acontecia.

A fêmea faminta do povo dinossauro investe cega pelos seus instintos mais primórdios,
e salta violentamente sobre o corpulento paladino da justiça.
Travam uma pequena luta ao lado do corpo caído e com as tripas à mostra do
humanóide. Golpes são desferidos. Da dragoa por instinto, do paladino por contenção. Os
espectadores aliados estavam atônitos. Mas alguém precisava fazer alguma coisa para acabar
com aquilo.

O elfo acabou com aquele empasse. Com gestos e palavras confusas, e poucos segundos
depois, fez com que o chão abaixo dos dois ficasse escorregadio, levando os próprios novos
companheiros a cair.

- O que etão fazendo? Estamos nessa juntos, não um contra o outro! – manifesta o elfo
tentando dar uma solução.

- Serrr como todos! Humanos... iguais!!!

E num salto rodando sobre si mesma, a dragoa consegue se livrar da áera escorregadia
sob seus pés, caindo sobre as quatro patas em um lugar próximo da floresta. Girando em torno
de si mesma, lança um olhar de reprovação e arrependimento em seus agora, antigos recém
adquiridos companheiros, e volta a correr floresta a dentro. Sem destino ela sabe que não
confiará jamais em qualquer humano novamente. Como seu recente passado ensinou.

* * *
O cenário era de morte.

O grupo nunca tinha presenciado um banho de sangue tão cruel quanto parecia ter sido
o que eles viam diante dos olhos. A caravana tinha sido encontrada.

Cores e madeira quebrada se misturavam ao odor inconfundível de sangue fresco e a


destruição sem volta de um bando faminto. Os Gnolls tinham passado por ali recentemente.
Jaulas quebradas, grades retorcidas, rodas distantes das carruagens, roupas e acessórios que um
dia foram aplaudidas por milheres de habitantes de Arton, agora estavam penduradas nos galhos
das árvores, com um tom vermelho seco que contrastava com o brilho anterior das peças, e o
último de seus troféus com suas tripas felinas espalhadas numa moita que espirava novos odores
de morte.

- Chegamos tarde – vocifera o justiceiro de Khalmyr.

Tudo estava perdido. Cada membro da comitiva, cada animal que ainda sobrevivia ali,
já não estava mais respirando. O rastro de morte que as hienas deixaram foi a última façanha
dessa matilha.

- Bom, não temos o que fazer. Retornaremos até a estalagem, receberemos nossa
recompensa por um tigre capturado, e partiremos – proclama o guerreiro.

- E a vila vai fazer o que com um animal desse sem um lugar pra ficar – indaga o anão.

- Então soltaremos ele na mata distante daqui, e quando acordar estará livre.

E assim foi decidido.

O tigre foi solto há poucos quilometros da vila, levado por Ragius em seus ombros,
acompanhado do companheiro Kazin para eventuais surpresas, e o grupo retornou à vila.
O regente da vila os recebeu e a situação foi explicada. Sua recompensa dequarenta
moedas de ouro foi arrecadada, e mais uma noite de descanso merecido foi considerada.

A noite foi tranquila. Os aventureiros estavam cansados, e um descanso revigorante já


se fazia por necessário há dias. Tiveram o sono convalescido dos deuses. E acordaram logo
cedo, pra continuar sua jornada para o norte. Onde o Rio dos Deuses os aguardaria, com toda a
paciência de quem tem a milenar saberia do tempo.

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