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1953

Os restos na história: percepções sobre resíduos

TEMAS LIVRES FREE THEMES


Waste over history: perceptions about residues

Marta Pimenta Velloso 1

Abstract This article describes how Man, over Resumo O artigo busca, em diferentes períodos
history, felt about the residues produced by hu- da história, as percepções sobre os resíduos resul-
man activity. The text is divided into three parts: tantes da atividade humana. Está dividido em três
In the first part it tells the story of the black plague partes: 1) narra o episódio da peste negra do século
pandemic during the XIV century, showing how XIV, mostrando como ela foi associada aos resídu-
this disease was associated with the residues pro- os produzidos pelo corpo humano; 2) explicita como
duced by the human body. In the second part it as prenoções sobre resíduos, ainda hoje, remetem à
explains how the first notions of waste were, and sujeira, à doença e à morte; 3) descreve as medidas
still are, related to dirt, disease and death. Finally, de higiene, a partir do renascimento e a saúde pú-
in the third part, it describes the first measures of blica no início do século XX, que começa comba-
hygiene in the Renaissance and refers to the first tendo os agentes microbianos das doenças infeccio-
public health actions at the beginning of the XX sas e os seus vetores.
century, starting to combat the agents of infec- Palavras-chave Saúde pública, Saúde e doença,
tious diseases and their vectors. Ambiente, Resíduos, Lixo
Key words Public health, Health and disease,
Environment, Residues, Waste

1
Grupo de Direitos
Humanos e Saúde, Escola
Nacional de Saúde Pública,
Fundação Oswaldo Cruz.
. Av. Brasil 4036/905,
Manguinhos. 21040-361
Rio de Janeiro RJ.
marta.velloso@ensp.fiocruz.br
1954
Velloso, M. P.

Introdução Os resíduos
como veículos de impurezas e enfermidades
O lixo é definido pelo dicionário Aurélio¹ como
aquilo que se varre da casa, do jardim, da rua e se Com a intenção de mostrar no decurso da histó-
joga fora; entulho. Tudo o que não presta e se joga ria dos restos, o significado da doença no corpo,
fora. Sujidade, sujeira, imundície. Coisa ou coisas tomamos a peste como referência na construção
inúteis, velhas, sem valor. Resíduos que resultam do conhecimento sobre os resíduos. A relação
de atividades domésticas, comerciais, industriais e entre corpo, doença e resto vai originar as repre-
hospitalares. Também classifica e defini o lixo, se- sentações sociais sobre enfermidade e resíduo,
gundo o risco que causa à população, como atômi- uma vez que foi se tornando difícil falar de uma
co, espacial, radioativo e especial – os resíduos re- sem tocar no outro.
sultantes de atividades industriais poluentes. Neste sentido, descrever os sintomas e as con-
No presente artigo, o lixo é descrito como o seqüências da peste, no medievo, é pensar na pro-
resíduo desprezado e temido pelo homem. Ele dução de resíduos ou na transfiguração do cor-
representa o resto da atividade humana ou a so- po humano em restos repugnantes. A represen-
bra indesejada de um processo de produção, que tação dos resíduos foi sendo construída pelo
tanto pode estar associada à eliminação de micro- imaginário social, segundo as tragédias causa-
organismos patogênicos veiculados pelos fluidos das pelas epidemias e pandemias de “pestes”.
e dejetos corporais como ao descarte de resíduos A elaboração da associação entre peste e pro-
atômicos, radioativos e industriais poluentes. dução de resíduos foi fundamentada nas obras
Na Idade Média, a maioria dos restos resul- de Ursino2 e de Dessennius3, descritas no século
tantes da atividade do homem estava diretamente XVI e encontradas na seção de obras raras da
relacionada aos resíduos produzidos pelo seu Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra em
corpo - fezes, urina, secreções em geral e o pró- Portugal.
prio corpo humano em decomposição. Também Na Idade Média, as palavras “praga”, “peste”
havia os restos provenientes da alimentação - ou “pestilência” significavam a aparição de uma
carcaças de animais, cascas de frutas e hortaliças. enfermidade epidêmica, que produzia um alto
Os restos começaram a causar medo no ho- índice de mortalidade. Nem sempre o termo se
mem, a partir do momento em que foram sendo referia à peste negra ou bubônica, já que outras
associados ao seu sofrimento físico e psíquico. epidemias como gripe, tifo, cólera e varíola, con-
Esse sofrimento ficou bem marcado na ocasião tagiosas e letais, também estavam presentes. No
do surto manifestado pelas epidemias e pande- entanto, os sintomas da peste bubônica foram
mias de algumas doenças na Idade Média, mais descritos em detalhes. Houve, assim, pestes ou
precisamente pela peste negra no continente eu- pragas famigeradas que chegaram a ser denomi-
ropeu durante o século XIV. nadas com o nome do lugar onde começaram
Neste sentido, vamos observando, no decor- ou onde foram mais graves. A peste do século
rer da história, que o homem no seu processo de XIV, chamada de “morte negra ou peste negra”
elaboração do conhecimento vai associando se- foi a mais célebre pela sua mortandade2.
gundo sua sensibilidade e sensações, os fatos vi- As “pestes” causavam temor e, no período
venciados. E que, através da percepção, ele vai medievo, muitas vezes foram interpretadas como
ordenando e dando forma a esses fatos, os quais, “castigo divino”, pelos pecados que o homem
por sua vez, vão sendo exteriorizados em diver- havia cometido. Além dessa crença, os homens
sas e diferentes formas de expressões. Entretan- também acreditavam que as enfermidades po-
to, cabe acrescentar que a cultura constitui fator deriam ser transmitidas pelo ar corrompido –
essencial no processo de construção do saber e, teoria dos miasmas – e já percebiam que o con-
portanto, na representação do imaginário social. tágio da doença se dava de pessoa a pessoa. Fato
Assim, o estudo busca, em diferentes períodos que começou a gerar medo na aproximação com
da história, as percepções do homem sobre os o outro, o que poderia propiciar o contato com
resíduos resultantes das suas atividades. as secreções eliminadas pelo doente durante o
processo da enfermidade, tais como o sangue e o
pus provenientes dos bubões, no caso da peste
bubônica. O terror causado pela doença está vi-
sível na seguinte descrição do estado do enfer-
mo2: [...] alguns cuspiam sangue, outros tinham
no corpo, manchas roxas escuras e destas ninguém
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escapava. Os doentes tinham apostemas ou estru- te corrompido, se um membro da família con-
mas nas ínguas ou debaixo das axilas, e destes al- traísse alguma doença, era tarefa muito difícil
guns escapavam, e temos de dizer que estes enfer- evitar o contágio2.
mos eram muito contagiosos e que quase todos os As cidades, no medievo, eram densamente
que cuidavam dos enfermos, morriam, assim como povoadas. Os resíduos - fezes, urina e águas féti-
os sacerdotes que recolhiam as confissões. O Papa das - eram lançados pelas janelas. As roupas eram
ordenou que, quando morresse um pestilento, to- lavadas raramente e, como conseqüência, elas fi-
das as pessoas presentes ou próximas, dissessem: cavam infestadas de pulgas, percevejos, piolhos e
que Deus te bendiga [...]2 . traças. Quem mais corria risco eram os recém-
As epidemias, como punição dos deuses, pa- nascidos, já que as mulheres, ao dar a luz, costu-
reciam constituir uma associação importante, já mavam forrar as camas com lençóis usados. En-
presente na antiguidade. O texto da “peste”, em tre um quarto e um terço das crianças morriam
Ovídio descrito por Diniz4, registra bem a associ- antes de completar um ano e muitas outras antes
ação entre “pestes” e castigo divino: o flagelo ter- dos dez anos. De cada dois nascimentos bem-
rível que atacou o povo teria sido provocado pela sucedidos, somente um chegava à idade adulta.
ira de Juno junto à terra. Além da doença como As casas eram ninhos de ratos que disputavam os
castigo divino, mas atribuída às condições cli- restos de comida com os animais de criação3.
máticas, encontramos os dizeres de Ovídio, su- O contágio era também atribuído ao “ar cor-
gerindo que a peste brotou com ímpeto, quando rompido” respirado pelos homens. Este “ar” al-
[...] O céu cobriu a terra com uma escuridão pro- terava o corpo, putrefazendo-o. Os banhos em
funda e encheu essas trevas com um calor sufocan- águas “fétidas” implicavam macular o corpo para
te. O cálido Austro soprou um vento mortal [...] se impor a toda uma série de moléstias. O inte-
era evidente que a peçonha se espalhava pelas fon- ressante é que, ainda assim, “o banho era preju-
tes e pelos lagos, e que milhares de serpentes, erran- dicial se tomado em excesso” – “banhar-se em
do pelos campos incultos, contaminaram os rios excesso” era fazê-lo mais de três vezes por ano –
com o seu veneno[...]4. ele dilatava os poros do corpo, aumentando a
O pensamento médico fundamentado na te- possibilidade de “contato com os miasmas”3.
oria das influências astrais ressaltava o ar como A doença também estava associada à abertu-
o meio de transmissão das doenças. Eram o ar ra para as sensações. O homem mais sensível,
envenenado, os miasmas e as névoas pesadas e sensual ou ávido pelas sensações do corpo, i.e,
pegajosas, provocando todos os tipos de agentes aquele que não se isolava pelo medo da enfermi-
naturais e imaginários, desde águas estagnadas dade, se tornava mais vulnerável ao contágio.
dos lagos e rios, até a conjunção negativa dos O contato com o “ar corrompido” deveria
planetas que disseminavam a doença e a morte ser evitado. Assim, as práticas para combater a
entre os homens. Assim, segundo a concepção doença se resumiam basicamente às medidas de
dos miasmas, o ambiente corrompido das habi- isolamento, que protegiam o corpo de influênci-
tações e os hábitos das pessoas eram também as nocivas à saúde, tais como beber e comer em
associados à propagação da peste. exagero e ter freqüentes relacionamentos com
O ambiente interno das moradias era o mes- mulheres5.
mo - tanto os lares mais humildes como os cas- As práticas contra a doença consistiam na
telos de pedra dos senhores feudais possuíam desinfecção do “ar” e das pessoas, ou seja, em
um único cômodo grande. Situação que agrava- acender fogueiras nas encruzilhadas da cidade,
va os problemas relativos à saúde de seus habi- passar perfumes e enxofre nos corpos, nos obje-
tantes. O principal agente insalubre era a coabi- tos, nas roupas e nas casas, a fim de purificar
tação com os animais de criação; outro proble- tudo aquilo que pudesse estar contaminado. Mais
ma dizia respeito à falta de ventilação. A maioria raramente, eram aplicados alguns tratamentos
das casas tinha um piso de terra batida, sendo fundamentados no conhecimento rudimentar da
aquecidas por uma lareira central. As camas ge- “cura pelo semelhante”. Para evitar marcas, en-
ralmente eram envolvidas por cortinados, que volvia-se o doente de varíola em um pano verme-
proporcionavam maior privacidade. Nessas ca- lho, mantendo-o deitado em uma cama com cor-
mas, largas e compridas, dormiam até oito pes- tinas também vermelhas. Acreditava-se que os
soas. As condições internas das habitações, como banhos em águas fétidas protegiam o corpo con-
a umidade, a fumaça, a ausência de privacidade e tra os miasmas. Os picadinhos de serpentes eram
a conseqüente promiscuidade, eram agentes efi- ingeridos na forma de poções, com o intuito de
cazes na transmissão de doenças. Neste ambien- proteger os enfermos do veneno da peste. Tam-
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Velloso, M. P.

bém havia uma curiosa crença de que os zelado- “profano” tornava-se algo não palpável, coisa do
res de latrinas estavam imunizados, o que levava destino e, assim, fugia ao domínio do homem.
muitas pessoas a visitarem esses estabelecimen- As vítimas da peste, consideradas como pecado-
tos públicos, supondo eficazes seus maus odo- ras, deviam ser condenadas ao sofrimento. As
res3. As diversas idéias e prenoções associadas à medidas contra a peste, que eram fundamenta-
doença se organizavam na mente humana e da- das em princípios morais, censuravam os praze-
vam forma às suas representações que, por sua res sexuais e gustativos do corpo, ainda perma-
vez, criavam novos conceitos, teorias e práticas. necendo, durante alguns séculos, associados ao
Os sinais da doença causavam pavor ao en- pecado, ao profano e ao indigno do divino. A
fermo e aos mais próximos a ele. Os bubões pur- concepção dos miasmas, como meio de contágio
gavam pus e sangue, sendo acompanhados por das enfermidades, estando relacionada aos fenô-
manchas escuras resultantes de hemorragias in- menos da natureza – as estações do ano, o clima
ternas. Os doentes sentiam dores muito fortes e quente ou frio, os ventos, as tempestades – per-
geralmente morriam em até cinco dias após a manecia passível a mudanças naturais.
manifestação dos primeiros sintomas. No caso Na antiguidade, Hipócrates (460 a.C. – 380
dos pulmões, o doente tinha febre alta e cons- d.C.), médico grego considerado “pai da medici-
tante, tosse forte, suores abundantes e escarro na”, já inaugurava a ciência baseada na observa-
sangrento, e morriam em três dias ou menos. ção clínica. Ele considerava como causa das do-
Em ambos os casos, tudo que saía do corpo - enças o desequilíbrio entre o que chamava de
hálito, suor, sangue dos bubões e pulmões, urina humores: o sangue, a fleuma (estado de espíri-
sanguinolenta e excrementos enegrecidos pelo to), a bílis amarela e a bílis negra. Para Hipócra-
sangue - cheirava extremamente mal. A depres- tes, todo corpo trazia em si os elementos para
são e o desespero acompanhavam os sintomas sua recuperação. Mas, o conhecimento do corpo
físicos, o que levou alguns escrivães da época a só seria possível a partir do conhecimento do
dizer que “a morte se estampava no rosto dos homem como um todo. Assim, o homem repre-
condenados”. As pessoas dormiam com saúde e sentava o microcosmo e o universo, o macro-
morriam antes de acordar. Foi grande o número cosmo. O microcosmo deveria se encontrar em
de médicos e de pessoas caridosas, entre elas frei- harmonia com o macrocosmo, ou seja, o corpo
ras, que morreram ao tentar ajudar os doentes3. humano deveria estar equilibrado com seu am-
O contágio fulminante ficou bem caracterizado, biente externo. No seu estudo “Ares, Águas e Lu-
já que uma pessoa enferma era capaz de “conta- gares”, ele expõe as influências do ambiente na
minar o mundo”. saúde do homem, ressaltando como fatores es-
O fantasma da peste rondava a vida das pes- senciais para uma vida saudável, a água isenta de
soas. Obter água limpa para beber e cozinhar era impurezas e o ar puro6 .
um problema, pois o conteúdo das fossas infil- Até o século XIX, duas formas polares de re-
trava-se no solo e contaminava os poços. Lixo, presentação da doença fundamentaram o saber
resíduos de curtume e matadouros poluíam os médico sobre as epidemias: a concepção ontoló-
rios. No interior das casas, a transformação do gica, presente no imaginário de praticamente to-
corpo do doente tornava-se visível com a proxi- das as culturas desde a Antiguidade, e a concep-
midade da morte. No ambiente externo, as águas ção dinâmica, formada no mundo grego, em con-
estavam impregnadas dos resíduos eliminados formidade com a Physis. Segundo Diniz4, as no-
pelos doentes e oriundos dos seus cadáveres em ções de contágio e miasmas estiveram associadas
decomposição. a essas duas concepções de doença. A primeira
Este cenário afirmava, mais uma vez, a “con- compreendia a enfermidade como uma entidade
cepção dos miasmas”, que se propagavam pelo concreta que vinha do exterior, tanto do ar como
ar, transfigurando o corpo humano em restos de outros indivíduos e objetos e que não fazia
repugnantes. No caos, entre a vida e a morte, o parte da natureza humana. Era uma espécie de
homem junto com a “peste” também sofria trans- mal que invadia o corpo, como espíritos, posses-
formações. A “peste”, quando não matava, “pu- sões demoníacas ou flechas lançadas por deuses.
rificava” o homem. O enfermo que conseguia al- Neste caso, o homem doente seria aquele ao qual
cançar a cura mudava sua visão sobre o mundo. havia se agregado um ser (a doença). A cura seria,
Ele deixava de temer a doença, pois se sentia ca- em oposição, um esforço para expulsar, por meio
paz de vencê-la. de tratamentos mágicos, esse ser estranho.
A doença, percebida como algo “divino” e es- Já na concepção dinâmica, baseada nas teo-
tando em um plano superior ao humano ou rias de Hipócrates, a doença surgia em conse-
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qüência do desequilíbrio ou da desarmonia en- çou a ser prejudicada pela visão monocausal das
tre o homem e a natureza. Logo, a doença per- doenças, i.e, o combate a determinada epidemia
tenceria ao corpo do homem e constituiria o meio tornou-se restrito à eliminação do agente etioló-
dele readquirir sua harmonia com a natureza, gico e de seus vetores. A análise epidêmica de uma
i.e, ela seria uma reação natural e generalizada doença não deve ficar limitada ao seu aspecto
do organismo, que surgia para recuperar o equi- objetivo, ou seja, ao entendimento do seu ciclo
líbrio do corpo. de transmissão: o agente etiológico, os vetores,
Entretanto, estas duas concepções convergi- os reservatórios e as condições ambientais, em
am para uma dimensão naturalística, ou seja, a que ela se desenvolve. Além disso, também preci-
natureza como harmonia e equilíbrio estático samos conhecer a subjetividade daqueles que se
(concepção ontológica) ou dinâmico (concep- contaminaram – os traços singulares físicos e
ção dinâmica) e a ação interventora da medicina psíquicos das pessoas infectadas; em que circuns-
era essencialmente passiva, contemplativa e con- tâncias elas se contaminaram; quais são suas
sistia em apenas potencializar as tendências na- condições de vida e suas raízes culturais e, ainda,
turais. Segundo compreendia a medicina hipo- como elas percebem a doença no seu corpo.
crática-galênica, a simples absorção do ar cor- Situação semelhante pode ser observada no
rupto degenerava os humores corporais que, ao caso dos resíduos que, até a década de 1950, fo-
serem expelidos pelos poros ou pela respiração, ram associados a doenças, permanecendo restri-
poderiam corromper o ar. A noção do contágio tos à área médica. O lixo e os seus riscos somente
envolvia não só aquilo que poderia decorrer do a partir da década de 1970 começaram a ser con-
contato, mas também da simples aproximação. siderados como questão ambiental. Foi quando
Não havia como distinguir, com clareza, contá- percebemos quanto o nosso planeta estava sen-
gio e miasmas. do degradado pelos resíduos gerados por subs-
Contudo, ainda no século XVI, Fracastoro tâncias de origem biológica, química e radioati-
(1478 – 1553), em suas observações sobre a na- va, que vinham deteriorando a saúde do homem
tureza e a disseminação das doenças infecciosas, e do seu ambiente. Estas substâncias foram pro-
supôs que as infecções passavam de uma pessoa duzidas pelo próprio homem e, algumas vezes,
a outra por meio de pequenos corpos capazes de apesar de descoberta a sua toxicidade e, em cer-
auto-reprodução. Ele definia o contágio como tos casos, a sua letalidade, as autoridades conti-
uma corrupção ou infecção, que ocorria de for- nuaram sendo negligentes quanto à destinação
ma análoga entre portadores e receptores, ocasi- final de tais substâncias. O homem cria situações
onada por partículas imperceptíveis4 . em que, apesar de conhecer os perigos, prefere
Nos dias de hoje, reconhecemos a peste como arriscar-se. Nesse aspecto, o que está sendo pri-
uma doença de cadeia epidemiológica complexa, orizado - a integridade das medidas de saúde
envolvendo roedores, carnívoros domésticos pública ou o “poder” econômico da sociedade de
(cães e gatos) e silvestres (pequenos marsupi- consumo globalizada?
ais), pulgas e o homem. É uma doença infecciosa
e contagiosa, possuindo como agente etiológico
a bactéria Yersinia pestis, que é transmitida ao O lixo como estigma social
homem pela picada da pulga infectada, encon-
trada principalmente nos ratos. As gotículas Conforme os acontecimentos ocorridos no sé-
transportadas pelo ar e as secreções bronquiais culo XIV, no que se refere à epidemia da peste
de pacientes com peste pneumônica constituem negra, pudemos observar as diferentes formas
os meios de transmissão mais freqüentes de pes- de representações dos fatos, relacionadas a pos-
soa a pessoa. Tecidos de animais infectados, fezes síveis causas da enfermidade e seu contágio. Con-
de pulgas e culturas de laboratórios também são tudo, ainda hoje, os resíduos são vistos como
fontes de contaminação para quem os manipula algo ameaçador e são geralmente enviados para
sem obedecer a normas de biossegurança. A sua locais bem distantes dos nossos espaços físicos
persistência em focos naturais, no Brasil e em de convívio e para longe, também, dos nossos
outros países do mundo, é uma importante ca- pensamentos.
racterística ecológica e epidemiológica da doen- Os resíduos reconhecidos como restos, lixo
ça, dificultando a sua erradicação e impondo a ou como tudo aquilo desprovido de uma utili-
manutenção da sua vigilância e controle, mesmo dade óbvia e, portanto, objetiva, foram adqui-
quando em baixas incidências7 . rindo uma imagem negativa, quase sempre as-
A partir do século XX, a epidemiologia come- sociada à sujeira, à doença, à morte e à miséria.
1958
Velloso, M. P.

No final da Idade Média e na Modernidade, e coletores, enquanto descansavam do serviço,


as pessoas que cuidavam do destino final do lixo ela pode entender a posição de inferioridade que
eram marginais à sociedade. Assim como o resto o coletor sentia em relação ao motorista. O cole-
ou a sobra, esses seres humanos também eram tor viajava no estribo do veículo, ficando vulne-
escolhidos de acordo com a ocupação ou com o rável ao movimento do trânsito, expondo-se in-
papel social que desempenhavam. Neste período, clusive a quedas. O trabalhador, mesmo enfren-
os serviços de limpeza estiveram freqüentemente tando fortes chuvas, altas ou baixas temperatu-
subordinados ao carrasco da cidade e eram exe- ras, não viajava na boléia, pois, na lida direta
cutados pelos seus auxiliares. As tarefas ligadas com o lixo, ele se sentia inferior ao motorista.
aos restos, inclusive o destino de cadáveres, eram [...] a cabine é para o motorista, porque tem dife-
delegadas a prostitutas, prisioneiros de guerra, rença do motorista para o gari, tem a discrimina-
condenados, escravos, ajudantes de carrascos e ção e muitos deles se acham donos daquela cabine.
mendigos. Tal fato é importante para a compre- Quando está sol ou quando está chovendo, o gari
ensão de como o trabalho com resíduos foi sen- vai atrás do caminhão para evitar conflito com o
do socialmente desqualificado. Segundo Hösel8, motorista, mesmo que ele ofereça, a gente não vai,
na cidade de Berlim na Alemanha, começou-se a porque nós estamos sujos e ele, por estar limpinho,
empregar prostitutas na limpeza das ruas, usan- acha que não devíamos estar ali [...]11.
do-se como argumentação o fato de que elas “usa- O coletor fala sobre os riscos presentes no
vam mais as ruas do que os outros cidadãos” 8. processo da coleta do lixo, dos acidentes sofri-
Durante o período medieval, o lixo era basi- dos, das doenças e das condições inóspitas do
camente originado pela necessidade fisiológica, ambiente de trabalho. Contudo, o menosprezo
pela alimentação e pelo vestuário do homem. Já da população e da empresa, pelo seu serviço,
existiam os catadores de lixo, que eram chama- parece a principal causa da sua insatisfação: [...]
dos de trapeiros. Segundo Portilho9, desde aque- eles discriminam, eles olham para o gari como
la época até os dias atuais, as pessoas que traba- olham um porco. Eles não sabem que o gari é um
lham ou vivem do lixo - catadores, coletores e até homem ou uma mulher igual a eles. As pessoas têm
mesmo os engenheiros sanitaristas - são estig- nojo da gente, acham que a gente tem uma doença
matizados pela sociedade. São vistos, da mesma contagiosa. A gente entra no ônibus as pessoas se
maneira, os espaços destinados ao tratamento e afastam da gente [...]11 .
ao destino final dos resíduos - lixões, vazadou- Estes profissionais não gostam de ser cha-
ros, depósitos, aterros sanitários, usinas de reci- mados de “lixeiros”, preferem ser identificados
clagem e estações de tratamento de esgotos. como “garis”. Mas nem sequer conheciam a ori-
Ainda hoje, a exclusão dos catadores de lixo é gem desta denominação, que vem do início do
tão perversa, que chega à criminalidade. Por so- século XX, quando os serviços de limpeza urba-
breviverem daquilo que é descartado, estes seres na foram entregues à iniciativa privada e os ir-
humanos são desconhecidos como cidadãos e mãos Garys assumiram a Companhia Industri-
identificados como “descartáveis”. Rodríguez10 al do Rio de Janeiro, com o objetivo de desempe-
comenta o fato ocorrido no ano de 1992, na ci- nhar os serviços de coleta, transporte e destino
dade de Barranquilla, na Colômbia, quando onze final do lixo. Desde então, os trabalhadores da
“descartáveis” foram assassinados e seus corpos coleta do lixo passaram a ser chamados pelo
utilizados para experiências médicas em um cen- nome genérico dos seus patrões, “garis”11.
tro universitário. O crime deu origem à rede de A nomeação não é um ato registrado em car-
cooperativas de recicladores da América Latina, tório, mas um sinal de pertença social. A inser-
que foram criadas no intuito de valorizar a ocu- ção é uma criação contínua do sujeito, ou seja,
pação e de reconhecer os “descartáveis” como ela é dada por um nome e por uma dignidade,
profissionais “recicladores de resíduos”. conferidos por um trabalho que não se limita ao
No estudo realizado por Velloso 11 com os aspecto de uma mecânica já preestabelecida, mas,
coletores de lixo da Companhia Municipal de sim, de uma mecânica criada.
Limpeza Urbana no Rio de Janeiro (COMLURB), O fato de o coletor de lixo preferir ser reco-
também podemos perceber a presença de uma nhecido pelo nome dos seus patrões interage com
hierarquia perversa entre os profissionais. Du- a imagem negativa que a população formou so-
rante esse estudo, a pesquisadora acompanhou bre ele e denuncia o seu desprezo pela própria
o processo de trabalho daqueles profissionais, profissão, que não lhe confere a pertença social.
viajando na boléia do veículo coletor. Na oca- O uniforme, que é obrigado a vestir, o torna in-
sião, conversando nos bares com os motoristas visível aos seus “superiores”, mas também o faz
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Ciência & Saúde Coletiva, 13(6):1953-1964, 2008


ser reconhecido como trabalhador, ou seja, ele meçou a exigir a desinfecção dos fardos, que apre-
passa a não ser um marginal à sociedade. No sentavam um “aspecto repugnante”. Esta medi-
entanto, ele não é visto como uma pessoa e, sim, da foi dificultando a importação de trapos e, con-
como um “lixeiro”’, que apenas cumpre sua fun- seqüentemente, a sua comercialização13.
ção social. Assim, o interesse econômico em manter a
A experiência do psicólogo social Fernando indústria de trapos, foi “vencido” pelas medidas
Braga da Costa comprova a invisibilidade que é de higiene exigidas pelo Serviço Sanitário. A partir
atribuída à profissão de coletor do lixo. Ele fin- de 1914, seguindo o relato de Miziara13, a Prefei-
giu-se de gari e varreu as ruas da Universidade de tura de São Paulo foi encarregada de criar um
São Paulo (USP), a fim de concluir sua disserta- estatuto para o lixo, no qual, além da higiene,
ção de mestrado sobre invisibilidade pública, ou estavam em questão a moral e a civilidade. Nesse
seja, a tese abordava a percepção humana, quan- sentido, “o estado sanitário do trapeiro” trans-
do totalmente prejudicada e condicionada à divi- formou-se em grande preocupação para a saúde
são social do trabalho, que faz com que se enxer- pública. O maior índice de doenças contagiosas
gue apenas a função e não a pessoa. Fernando, era transmitido pelos trapeiros, uma vez que “não
usando o próprio corpo, ao vestir o uniforme, lavavam as mãos para comer”. A higiene foi com-
tinha a intenção de sentir-se como um gari. Ele preendida como um “método estratégico de ex-
trabalhava meio expediente e não recebia, como cluir a população da ocupação de utilização do
os seus “colegas de vassoura”, o salário de quatro- lixo”. Por fim, o Serviço Sanitário propõe à cidade
centos reais. Nesta condição, garante que teve a que adote novas carroças e quatro fornos de inci-
maior lição da sua vida: “Descobri que um sim- neração com capacidade para incinerar cinqüen-
ples bom dia, que nunca recebi como gari, pode ta toneladas de lixo por dia, sendo distribuídos
significar um sopro de vida, um sinal da própria pelos bairros do Brás, Luz, Barra Funda e Liber-
existência”. O psicólogo sentiu, na [própria] pele, dade. Cabe ressaltar que, com a instalação dos
o que é ser tratado como um objeto e não como quatro fornos em São Paulo, poderiam ser quei-
um ser humano: professores que me abraçavam madas duzentas toneladas de lixo/dia, apesar de a
nos corredores da USP passavam por mim e não me cidade produzir, no período, cento e vinte tonela-
reconheciam, por causa do uniforme. Às vezes, es- das diárias. Seria necessária a produção de mais
barravam no meu ombro e, sem ao menos se descul- lixo para justificar a aquisição dos equipamentos.
parem, seguiam me ignorando, como se estivessem Cabe lembrar que, no século XX, na década
encostado em um poste, ou em um orelhão. Apesar de 1970, houve retorno à prática de reaproveitar
do sol forte, do trabalho pesado e das humilha- o “lixo”, que se manifestou na moda de se usar
ções diárias, Fernando constatou que os garis são roupas velhas e desbotadas - a calça Lee e o “ca-
acolhedores com quem os enxergam e encontram; saco de general”. O modismo, na época, repre-
no silêncio, a defesa contra quem os ignora12. sentou uma forma de se contestar o sistema re-
A valorização do lixo começa a surgir no pe- pressor da ditadura militar que, muitas vezes,
ríodo industrial e amplia-se por causa da guerra. marcou de forma irreparável milhares de jovens
O lixo deveria ser transformado em dinheiro. e adultos que atuaram politicamente contra as
Numa sociedade capitalista, geralmente só se atri- arbitrariedades do governo. Esta transformação
bui valor a coisas que podem gerar lucro. Este na moda, por sua vez, a partir dos anos 1960,
valor foi atribuído ao lixo, devido à possibilida- emergiu com o movimento hippie e de estudan-
de de sua transformação em matéria-prima. As- tes, que buscavam a afirmação dos seus desejos e
sim, em 1896, os trapeiros iniciam suas ativida- direitos proibidos.
des, intensificando-as a partir de 1918. Existiam A tensão entre o valor de mercado e o valor
dois tipos de trapeiros: o catador e o atacadista. humano permanece, induzindo as diferentes vi-
O primeiro fazia a separação dos materiais en- sões sobre o lixo, que variam de acordo com os
contrados no lixo e os enfardava para serem ven- interesses econômicos – ora o lixo é visto como
didos como matéria-prima. Ele era o “operário”, risco de vida, transmitindo doenças e causando
enquanto que o atacadista - o “atravessador” - mortes, ora é considerado como matéria-pri-
era o patrão. Havia uma tensão entre as indús- ma, produzindo e lançando novos produtos no
trias de trapos e o Serviço Sanitário, apesar delas mercado.
terem sido toleradas até o término da Primeira Atualmente, a visão do lixo como matéria-
Guerra Mundial. Em várias situações, os trapos prima já está incorporada no discurso do coletor
eram importados, sobretudo da Argentina e, de lixo. Fato percebido quando ele se refere à
mais tarde, da Europa. O Serviço Sanitário co- companhia de limpeza urbana, para a qual tra-
1960
Velloso, M. P.

balha, como sendo rica em matéria-prima: [...] o logo de Florença, realizou as primeiras desco-
lixo é muito rico, a COMLURB é uma companhia bertas que deram origem à teoria da biogênese.
que nunca vai entrar na falência, entra se os ou- Em seguida, Leewenhoek, aperfeiçoando o mi-
tros quiserem. Porque o lixo nunca acaba e a ma- croscópio, descobriu as bactérias. Apenas por
téria-prima dela é o lixo. Ainda mais agora, com volta de 1880, com as experiências de Pasteur, a
essas usinas que eles criaram e que estão reciclando teoria da geração espontânea é posta de lado15.
direto [...]11. Estas descobertas contribuíram para uma
A sociedade de consumo aposta na vida breve outra visão de cidade, propiciando novas con-
dos seus produtos. Ela fabrica produtos que de- cepções de sujeira corporal e urbana. As cidades
vem ser rapidamente substituídos por outros, começam a ser planejadas, inspiradas na circula-
cada vez mais frágeis e perecíveis. Enquanto isso, ção do sangue e nos movimentos da respiração.
nossos resíduos saturam os depósitos e as usinas Elas deviam ser amplas para que o ar circulasse
de reciclagem. Já não há espaço físico para deposi- livremente, sendo divididas em ruas principais e
tar ou reciclar os restos resultantes da quantidade secundárias, da mesma forma que as veias e ar-
de produtos que produzimos e descartamos. térias do corpo humano, que transportam he-
mácias e outros elementos do sangue para os
órgãos. Os resíduos, como fezes e urina, deveri-
As medidas de higiene e a saúde pública am sair das casas através de um cano parcial,
que nas ruas se acoplariam a um cano comum
O século XVII foi o palco do Renascimento, um ou principal (rede de esgoto).
dos maiores movimentos culturais da história Contudo, na primeira década do século XIX,
da humanidade, que representou uma época de as ruas de algumas cidades ainda apresentavam
enriquecimento do pensamento, aliado a uma sujeiras provenientes de resíduos domésticos.
transformação profunda da atitude espiritual do Nesse período, a cidade de Lisboa é descrita por
homem. A ânsia da descoberta e a paixão pelo Braga16 como detentora de espaços naturalmen-
mundo clássico puseram à disposição do homem te contaminados pelos despejos da famosa água
culto as doutrinas dos filósofos gregos e orien- “vai”, do lixo doméstico e dos animais que passe-
tais. Todo o século consistiu em um período de avam pelas ruas, nomeadamente cães vadios,
transição, no qual o homem ocidental impulsio- vacas, cabras e outros animais utilizados no trans-
nou a ciência, fundamentada nos novos conhe- porte, tais como cavalos, burros e bois. A situa-
cimentos da física, da astronomia e das ciências ção era agravada pela passagem de rebanhos de
naturais. O Renascimento conteve em si o germe carneiros e varas de porcos com destino a outras
da destruição, mas também a promessa da re- regiões; pela construção de fábricas poluentes e
novação. A religiosidade e a política da Europa matadouros dentro das cidades e pela ausência
foram fortemente abaladas e o mundo transfi- de calçamentos nas ruas.
gurou-se. O homem redescobre em si o potenci- Para contornar a caótica falta de higiene na
al criador, mas, em vez de criar em harmonia cidade, em 1º de abril de 1818, foi lançado um
com a natureza, julga-se separado e distinto dela, edital onde constavam algumas medidas de higi-
sentimento que não só persistiu como foi ampli- ene a serem seguidas. Entre elas, foi proibido se
ado com o passar dos séculos. As viagens marí- despejar dejetos e lixos nas ruas de Lisboa, esta-
timas, iniciadas pelos portugueses, propiciaram belecendo multas para os infratores, as quais
aos europeus o impulso transformador da visão variavam de acordo com a gravidade e o horário
clássica em uma nova perspectiva de mundo. No do delito. O lixo deveria ser acondicionado em
domínio da medicina, o Renascimento represen- recipiente e colocado na rua, depois das 22 horas,
tou, de um lado, um retorno às raízes, ou seja, à para ser recolhido pelos carros de limpeza16.
ciência de Hipócrates e, de outro lado, o interesse Em 1835, segundo o relato da autora, iniciou-
pela observação e pela experiência14. se um plano que articulava a higiene com a saúde
As experiências científicas foram evoluindo e dos habitantes de Lisboa. Este plano evidenciava,
gerando novas descobertas. O século XVII foi entre outros aspectos, a necessidade de dividir a
marcado pelos avanços da medicina, i.e, pelos cidade em dez zonas, cada uma delas doadora de
conhecimentos acadêmicos, que descobriram a homens e carros de bois destinados à limpeza da
circulação do sangue, a química da respiração e, cidade e que, em contrapartida, se encarregariam
através do aperfeiçoamento do microscópio sim- do fornecimento gratuito de estrume de boi aos
ples, os agentes microbianos causadores de algu- trinta e três agricultores. Era responsabilidade
mas doenças. Assim, Redi, que era médico e bió- destes homens: a eliminação de cães vadios; fazer
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cumprir a proibição de ensinar as bestas novas e fora da modelagem habitual começa a surgir.
de matar porcos nas vias públicas; a varrição das Em Portugal, não havia os recursos financeiros
ruas, três vezes por semana e, por fim, a recolha de países como a Itália e a França, mas eles os-
diária dos detritos. O plano estabelecia, ainda, que tentavam o modelo desses países, no que se re-
os senhorios deveriam construir cloacas fora de feria às estações termais. Por isso, elas eram des-
suas casas, nas ruas, com canos gerais. Nas cozi- valorizadas e vistas como inferiores às suas si-
nhas de todos os andares das casas, deveriam ser milares européias.
instaladas pias com ralos, destinadas ao despejo Na segunda metade do século XIX, com a
de líquidos. Os senhorios deveriam, também, en- emergência da teoria microbiana das doenças,
canar as águas dos telhados e caiar a fachada dos que refutou a concepção dos miasmas, houve
prédios, de três em três anos, de preferência na uma radical mudança na visão da saúde pública
cor rosa desvanecido. e da atenção a ser dada aos resíduos eliminados
Neste período, já verificamos uma hierarqui- pelo corpo humano. Segundo Eigenheer8, as tra-
zação de objetos, que devem seguir uma norma dicionais concepções de tratamento do lixo pas-
de organização. Assim, o lixo permanece estoca- sam por visíveis transformações. Neste contex-
do, com a intenção de ser transformado. Os resí- to, a fogueira, anteriormente utilizada para puri-
duos, como os estrumes de bois, são encami- ficar o ar, torna-se a fonte inspiradora do incine-
nhados aos agricultores, para serem reutilizados rador (construído na Inglaterra, em 1875), que
como adubos. Os resíduos do corpo humano, começa a ser considerado como o método ideal
fezes e urina, devem seguir normas no seu desti- para eliminar os agentes microbianos, transmis-
no final. As ruas devem permanecer limpas, sem sores das doenças infecciosas. Os trapeiros, mes-
resíduos e animais, que são identificados como tres na arte da recolha e separação dos restos,
riscos à saúde e ao bem-estar da população. vão gerar o modelo das usinas de reciclagem em
Também surge a preocupação com a estética dos Bucarest (1895) e em Munchen (1898).
prédios, que foram pintados de rosa pálido, bus- Neste mesmo período, no Brasil, durante o
cando-se na uniformização da cor, a harmonia, governo Campos Salles (1898-1902), foi criado
a limpeza e a beleza da cidade. o Instituto de Manguinhos, com a função de fa-
Quanto à higiene pessoal ou individual, os bricar vacinas contra a peste bubônica. Para di-
banhos eram escassos e de difícil acesso. As pes- rigi-lo, a prefeitura da capital federal solicitou ao
soas trocavam de roupas raramente, quando es- Instituto Pasteur, de Paris, para indicar um espe-
sas já se encontravam muito sujas. Para alguns, cialista. Naturalmente esperava-se um francês,
a higiene pessoal se restringia à troca de roupas, mas o célebre Emile Roux, diretor do Instituto,
sem submeterem-se a qualquer ablução. Como indicou um “brilhante discípulo”, Oswaldo Gon-
a maioria dos lares não possuía casas de banho, çalves Cruz (1872-1917) que, mesmo sem alcan-
a higiene individual ficava a mercê dos hábitos e çar os trinta anos e desconhecido no Brasil, já
dos conceitos de limpeza de cada um, bem como conquistara uma sólida reputação científica. Ele
do número de criados que se incumbia de carre- dirigiu Manguinhos até 1902, quando Rodrigues
gar a água. Contudo, as idas às termas ou aos Alves, ao assumir a Presidência da República, foi
banhos de mar e rio começaram a tornar-se cada buscá-lo para sanear o Rio de Janeiro. Ao aceitar
vez mais freqüentes. A partir do século XVIII, o convite, Oswaldo cruz prometeu erradicar a
verificou-se um crescimento da população de febre amarela, num período de três anos. Mas,
Caldas da Rainha, associado à grande concor- primeiro, começou resolvendo o problema da
rência termal. Segundo os estudos realizados por peste. Para combatê-la, formou um esquadrão
Braga16, essas termas eram freqüentadas pelos de cinqüenta homens, todos previamente vaci-
nobres da cidade e ficavam muito aquém das nados, que percorriam os armazéns, becos, cor-
suas similares européias, no que dizia respeito ao tiços e hospedarias, espalhando raticida e remo-
local das nascentes e das fontes: [...] era um lugar vendo o lixo. Para completar, criou um novo car-
imundo, o cheiro era terrível e o pouco asseio que go – o de comprador de ratos. Este funcionário
ali havia tornava aquele lugar repugnante e vergo- percorria as ruas da cidade, do centro aos subúr-
nhoso para nós, na presença de vários estrangeiros bios, pagando a quantia de trezentos réis por cada
que faziam a triste comparação dos nossos banhos rato caçado pela população. Assim, num curto
termais com outros que tinham visitado na Euro- prazo, desapareceram as epidemias e os ratos.
pa civilizada. Os banhos tomavam-se em comum, Na verdade, a eliminação dos ratos e da peste
havendo só dois, um para cada sexo[...]16. insere-se num contexto de transformações que
No plano da arte, a criação de novas formas envolveram a capital do Brasil, no início do sécu-
1962
Velloso, M. P.

lo XX - com a afirmação da teoria microbiana, indústrias e conseqüentemente o lançamento de


as medidas de higiene começaram a ser aplicadas novos produtos no mercado foram gerando di-
no combate aos vetores e aos agentes etiológicos versos e perigosos resíduos. Atualmente, já se
das doenças infecciosas17. compreende que as agressões ambientais que
O combate à febre amarela apresentou vári- ocorrem em determinado ponto do planeta po-
os problemas. A maior parte dos médicos e da dem ter repercussão à distância, atingindo mes-
população ainda acreditava que a doença era mo outros continentes, como por exemplo, os
transmitida pelo contato com as roupas e as se- casos de acidentes radioativos, as chuvas ácidas e
creções dos doentes. Oswaldo Cruz, entretanto, os derramamentos de petróleo nos mares.
era adepto da teoria de que o agente etiológico da
doença era transmitido pelo mosquito. Assim,
ele decidiu substituir o método tradicional das Considerações finais
desinfecções praticadas pela polícia sanitária, pe-
las brigadas de mata-mosquitos. Essas brigadas A visão dos resíduos, como veículos de enfermi-
percorriam ruas, invadindo casas para eliminar dade, permaneceu durante alguns séculos e, atu-
os focos de insetos, atuação que provocou vio- almente, ainda podemos perceber os resquícios
lenta reação popular18. dessa visão na gestão dos Resíduos dos Serviços
Em 1904, com o agravamento dos surtos de de Saúde (RSS). A classificação de cada resíduo
varíola, o sanitarista tentou impor a vacinação segundo sua origem – hospitalar, domiciliar, in-
em massa da população. Mas os jornais lança- dustrial e de logradouros públicos – dá início
ram intensa propaganda contra a medida. O aos diferentes processos de organização. As eta-
Congresso protestou e foi organizada uma liga pas referentes ao acondicionamento, ao trans-
contra a vacinação obrigatória. No dia 13 de no- porte e ao destino final devem ser específicas para
vembro, estourou a rebelião popular. O governo cada tipo de resíduo. O homem, na sua ânsia de
derrotou a rebelião, mas suspendeu a obrigato- produzir soluções, muitas vezes tende à generali-
riedade da vacina. zação, reduzindo as medidas de contenção a um
Este episódio da história nos remete ao auto- dos seus aspectos, como é o caso das normas
ritarismo das medidas de erradicação das doen- estabelecidas para o lixo hospitalar ou RSS, que
ças, impostas à população no início do século recomenda a esterilização de todos os resíduos,
XX. Tais medidas, por não terem sido acompa- sem exceção. Estes resíduos, com algumas exce-
nhadas do reconhecimento da população, foram ções, não necessitam passar por tratamentos es-
percebidas como atos de violência e de imposi- peciais, podendo ser tratados como lixo co-
ção. A ansiedade do jovem Oswaldo Cruz em mum19. A controvérsia existente sobre o tema, de
erradicar as doenças não o deixou perceber a que todos eles, sem exceção, devam passar pelo
necessidade de se trabalhar junto à população, processo de incineração ou de desinfecção, pode
na produção do conhecimento sobre as doenças estar vinculada aos temores do passado, quando
infecciosas e os seus meios de transmissão. os microorganismos transmissores de doenças
Os riscos associados aos resíduos foram con- tinham sua origem desconhecida e causavam,
siderados durante muitas décadas como questão normalmente, a morte do enfermo.
de higiene pública e, portanto, limitados à área Nos dias de hoje, apesar dos resquícios des-
médica. Ainda nos anos cinqüenta, encontramos tas recordações do passado, o lixo mais temido é
capítulos destinados ao lixo quase que exclusiva- aquele produzido pelo homem, que é capaz de
mente em tratados de higiene, sempre extrema- destruir, em escala planetária, a vida humana e a
mente reduzidos quando comparados a outros natureza. A contaminação ambiental pelas radi-
temas de saneamento, como água e esgoto8. ações nucleares, pelas substâncias químicas, pe-
Somente a partir da década de 1970, o lixo los agentes biológicos, bem como os atos mecâ-
começa a ser considerado uma questão ambien- nicos de violência entre os homens, têm destruí-
tal. A preservação do meio ambiente foi assu- do milhares de vidas.
mindo caráter global, com as conferências de A matéria intitulada “Aterro lixo pode tor-
Estocolmo, em 1972, a ECO 92, no Rio de Janeiro nar-se um cemitério” narra o indelével fim das
e a de Tibilisi, em 1997. A crescente participação vítimas do atentado terrorista ocorrido em 11/
da mídia também contribuiu significativamente 09/2001, na cidade de Nova Iorque, quando os
para esse processo, devido à rapidez com que as terroristas usaram o próprio corpo – os “ho-
informações são transmitidas, de um lugar a mens bomba” - como arma de destruição, sacri-
outro do mundo. O crescimento progressivo das ficando suas próprias vidas. No final, o país que
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sempre teve sua economia fundamentada no con- destino final de produtos que causam riscos à
sumo de produtos transformou um depósito de população e ao ambiente são claramente eviden-
lixo em cemitério, ou melhor, os restos resultan- ciados no caso da contaminação pelo césio 137,
tes do atentado terrorista foram levados ao anti- ocorrido na cidade de Goiânia, no Brasil. Um
go aterro sanitário, que havia sido desativado a aparelho de césio-137, que se encontrava fora do
pedido dos moradores locais. Assim, restos de seu uso em tratamentos médicos, foi descartado
corpos humanos, sobras de concreto, pedaços num galpão. Dois sucateiros encontraram o apa-
de aeronaves e diversos materiais de consumo relho e, não sabendo a sua função e risco, foram
foram transportados como lixo e descartados seduzidos pelo brilho de um pó branco. Passa-
no mesmo depósito20. ram-no pelo corpo como se fosse uma purpuri-
A bem da verdade, o homem, ao criar na, disseminando aquela coisa mortífera pela ci-
determinado produto, muitas vezes desconhece dade21. A negligência no descarte do lixo radioa-
seus possíveis efeitos tóxicos e letais. No entanto, tivo por parte das autoridades responsáveis e a
esse produto faz com que a classe hegemônica de ignorância da população sobre a sua periculosi-
vários países se sinta “poderosa”, quando, por dade conduziram à contaminação radioativa,
exemplo, possui o controle de uma arma destru- causando danos de repercussão mundial. O aci-
tiva e ameaçadora. Cabe lembrar o caso do físico dente, além da terrível tragédia humana, foi tam-
Bronowski, membro da equipe do Projeto Ma- bém um desastre para a economia de Goiânia –
nhattan, que produziu a bomba atômica, tragi- ninguém queria viajar para a cidade e os seus
camente utilizada na Segunda Guerra Mundial. produtos passaram a ser evitados. Este acidente
Bronowski, na década de 1970, confessou seu des- mostra que, além da irresponsabilidade no des-
conhecimento e descontentamento pelo fato dos carte de resíduos radioativos, também existe o
seus estudos de física atômica contribuírem para despreparo em lidar com as tecnologias dos pa-
a fabricação de uma arma de capacidade letal íses de economia central – compramos tecnolo-
ainda não superada, a ser usada contra o pró- gia do primeiro mundo, mas não seguimos as
prio homem. normas de contenção que deveriam ser aplica-
O descuido e a ignorância relacionados ao das a essa tecnologia.

Agradecimentos

A Jorge de Campos Valadares, meu orientador,


pela contribuição valiosa para elaboração do ca-
pítulo da tese, que originou o presente artigo. A
Carlos Molinaro, doutorando da Universidade
Pablo Olavide de Sevilha, que me ajudou na com-
preensão do latim, necessário à leitura das obras
do século XVI.
1964
Velloso, M. P.

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