I - CULTURA E CORAGEM: DE HIPÓCRATES E DOS HIPÓCRITAS
"Breve é a vida, longa é a arte." "Breve é a vida e longa é
a arte" — afirmou Hipócrates (460-377 a.C.), médico grego e considerado o pai da medicina. Devemos a este sábio alguns dos pilares de sustentação da medicina atual. Por exemplo, a distinção entre sintoma e doença. A partir desta distinção, Hipócrates propõe uma tríplice ação médica: o diagnóstico, o prognóstico e o tratamento. Em um de seus muitos textos, chamado "Prognóstico", o famoso médico descreve a face de um doente, dizendo que é ela a primeira coisa que um médico deve observar detidamente. Estabelece os traços de uma face extremamente doente, sua cor, suas formas, seus movimentos, e os compara com um rosto sadio. Podemos ver neste texto um precursor dos estudos semióticos. Alguns séculos depois foi Cláudio Galeno (129- 199 d.C.), médico grego mas clinicando em Roma, quem estabelece a Semiótica, a análise dos sintomas ou sintomatologia, como uma parte dos estudos médicos. Contudo, voltando a Hipócrates, que nos trouxe ainda a grande contribuição de afirmar a medicina como campo de conhecimento experimental e portanto já algo divergente das célebres polémicas filosóficas e especulativas, vamos dissecar mais a fundo sua frase: "breve é a vida", o homem, o ser biológico, que inevitavelmente é levado um dia pela morte, o mais implacável componente do percurso vital; "longa é a arte", aquela que, criada pelo mortal, tem a finalidade de vencer a morte, de sobreviver aos tempos e, com isto, imortalizar seu criador. E o consegue. A criação humana, assim entendo a palavra "arte" usada por Hipócrates, desafia e vence não apenas a morte, mas todas as dificuldades e os limites impostos pela breve vida, desafia e vence as doenças, o envelhecimento, o tempo, a natureza hostil. Seu mais eficaz e abrangente instrumento são os símbolos. Seu universo hoje não se chama "arte", terreno específico onde se deve manifestar a mais pura e irrestrita criatividade humana, mas deve ser mais atualizadamente denominado "cultura".
Este campo amplo recebe as contribuições e descobertas de
cada indivíduo, de cada grupo social, de cada época, e as perpetua, transmitindo as informações de geração a geração, de grupo para grupo, de época a época. Suas criações têm normas próprias e independentes (e é por esta razão que ela consegue contrariar até as normas mais rígidas da vida) constituindo-se em uma "segunda realidade". Dela fazem parte o vestir, os gestos, as artes, as danças, os rituais, a literatura, os mitos, o morar e suas formas individuais e sociais, os hábitos (ao comer, ao beber, ao cumprimentar, ao relacionar-se), as religiões, os sistemas políticos e ideológicos, os jogos e os brinquedos.
Assim é que a cultura se organiza como um complexo sistema
comunicativo, semiótico portanto, que coordena todas estas atividades. Reconhecer a existência da cultura como tal, significa reconhecer que todas estas atividades atendem a regras e normas comuns — vale dizer, obedecem a um código da cultura — e, assim, não existem as fronteiras que isolam umas das outras, não permitindo que se comuniquem entre si. A cultura é o macrossistema comunicativo que perpassa todas as manifestações e como tal deve ser compreendido para que se possam compreender assim as manifestações culturais individualizadas. "O organismo quer perdurar." (D. Pignatari) Se então a cultura é o domínio da segunda realidade, criada pelo homem, uma das condições de sua sobrevivência será sua permanente expansão. O homem cria, sua criação o estimula e lhe modifica as habilidades e as capacidades, transforma-lhe a vida enfim. Isto, por sua vez, o torna mais inteligente, hábil e competente para as novas criações. Desta maneira é a novidade que passa a ser o alimento desta outra realidade. Contudo, a novidade requer coragem e ousadia, pois o novo também traz o perigo e a ameaça. Para renovar e ampliar as fronteiras é preciso destruir muros e paredes já consolidados. Já o dizia Walter Benjamin em seu ensaio sobre "O caráter destrutivo", datado de 1931 (quinze anos após a inauguração do dadaísta Cabaret Voltaire): O caráter destrutivo conhece apenas uma palavra de ordem: abrir espaço; apenas uma atividade: desocupar. Sua necessidade de ar fresco e espaço livre é mais forte do que qualquer ódio. O caráter destrutivo é jovem e alegre. Pois destruir rejuvenesce, porque tira do caminho as marcas de nossa própria idade; (...). (Benjamin, 1972: IV.1,396- 7). Então de onde brotam as forças destrutivas e ao mesmo tempo criadoras da segunda realidade? O poeta Décio Pignatari de/senha e de/clara em seu poema fanologopaico "Organismo", de 1960, respondendo à questão:
o organismo quer perdurar
o organismo quer repet
o organismo quer ré
o organismo quer
o organism orgasm
o o o
Dez anos depois do poema de Décio Pignatari começa a se
delinear uma nova disciplina, a Semiótica da Cultura, principalmente na União Soviética, mas também na Europa Central, que hoje é unânime em afirmar que a cultura encontra na natureza sua maior fonte de inspiração. (Contudo é importante não nos esquecermos de que esta divisão cultura-natura é também uma convenção criada pela própria cultura!) O semioticista tcheco Ivan Bystrina sintetiza em quatro momentos as raízes da cultura: no sonho (e é sabido que também os animais superiores sonham — comprovadamente todas as aves e os mamíferos o fazem), no jogo e nas atividades lúdicas (também presentes entre os animais), nos desvios psicopatológicos como neuroses, paranoias, esquizofrenias (distúrbios muitas vezes causados por disfunções orgânicas) e, por fim, nas situações de êxtase e de euforia (provocadas ou não, com a ajuda de determinadas substâncias ou não, por meio de certos rituais e movimentos ou não).
Assim, a transição da primeira para a segunda realidade não
se dá no momento do primitivo gesto semiótico da exibição do escroto azulado de alguns primatas, mas sim no decorrer de centenas de milhares de anos, com a crescente consciência de si mesmo e de sua própria finitude (1).
1.O longo caminho da evolução da comunicação gestual e performática
dos outros primatas até a comunicação verbal humana que, sem dúvida, facilitou o desenvolvimento e a preservação das informações referentes à segunda realidade, a realidade da cultura, não é, com certeza, objeto que a semiótica possa tratar sem o valioso auxílio das pesquisas etológicas. Uma importante síntese do surgimento e do desenvolvimento da etologia humana nos oferece Philippe Ropartz, no verbete "A etologia humana" do Dicionário de antropologia publicado pela Verbo. Das quatro raízes da cultura levantadas por Bystrina vou aqui tomar apenas uma, aquela que hoje vem recebendo redobrada atenção por parte dos neurologistas e da medicina de modo geral: os desvios psicopatológicos. Justamente porque eles transferem para o estado de vigília a ousadia e a coragem que apenas temos no sonho — de negar, de rir na cara, de desafiar, de desobedecer regras estabelecidas, de crer e de descrer sempre a contrapelo. E como começamos com os médicos, vamos continuar em sua companhia. Foi o médico e psiquiatra austríaco Leo Navratil, especialista em psicopatologia da expressão, quem exaustivamente estudou em seu livro de 1974, über Schizophrenie (Sobre a esquizofrenia) as principais características da percepção esquizofrênica que ele denomina a) fisionomização (capacidade de dar/ver formas humanas em quaisquer objetos), b) formalização (capacidade de ver/fazer ritmos ou regularidades) e c) simbolização (facilidade para colar arbitrariamente um significado em um objeto qualquer) (Navratil, 1974a:43-87).
Assim, mesmo que compelidos por uma psicopatologia e em
situação de extrema aflição por sua inadaptabilidade social, o mundo das variantes psicopatológicas oferece um poderoso exemplo de desprendimento das regras de codificação e decodificação dos mais diversos aspectos da vida biofísica e social. Hoje o estudo das psicopatologias mais diversas (e não apenas da esquizofrenia), das afasias, agnosias, amusias etc. vem tendo surpresas quase diárias. Um caso do agora famoso neurologista anglo-americano Oliver Sacks (1988a) de monstra como determinadas patologias ampliam o alcance de nossa percepção e com isto servem de modelo para novas atitudes, muitas vezes mais ousadas e demolidoras. Sacks relata que, durante o discurso do presidente pela televisão, ouve-se em sua clínica uma explosão de gargalhadas vinda da ala dos afásicos. O presidente, um ator, com bem treinados e ensaiados recursos de expressão, não conseguiam ser levado a sério pelos pacientes que perderam a capacidade de perceber e usar o chamado "código central da comunicação humana", o verbal. Mas todos os outros elementos da comunicação, as não- palavras, estavam sendo perfeitamente compreendidos e, desmascarados em seu teor de não autenticidade, não veracidade, na falsa dramaticidade de seu discurso. Já uma paciente com um tumor no lobo temporal direito — que a impedia de receber toda a informação não-verbal, emocional, fisionómica e tonal (exatamente aquela percebida pelos afásicos) —, comentou com o médico que o presidente usava palavras inadequadas e que ele teria alguma lesão no cérebro ou estaria querendo esconder alguma coisa. Como estes, milhares de casos estão a nos ensinar que não é o procedimento tímido da subserviência aos padrões instituídos o alimento para a ampliação do universo da cultura. Aprender com a natureza em suas manifestações mais ousadas, em seus limites e para além deles, tem sido a grande sacada do homem. E, cada vez mais, com Hipócrates, contra hipócritas.