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LIVRO: O ANIMAL QUE PAROU OS RELÓGIOS

EDITORA ANNABLUME,1ª EDIÇÃO, 1999.

PARTE I - COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA DA CULTURA

I - CULTURA E CORAGEM: DE HIPÓCRATES E DOS HIPÓCRITAS

"Breve é a vida, longa é a arte." "Breve é a vida e longa é


a arte" — afirmou Hipócrates (460-377 a.C.), médico grego e
considerado o pai da medicina. Devemos a este sábio alguns
dos pilares de sustentação da medicina atual. Por exemplo,
a distinção entre sintoma e doença. A partir desta
distinção, Hipócrates propõe uma tríplice ação médica: o
diagnóstico, o prognóstico e o tratamento. Em um de seus
muitos textos, chamado "Prognóstico", o famoso médico
descreve a face de um doente, dizendo que é ela a primeira
coisa que um médico deve observar detidamente. Estabelece
os traços de uma face extremamente doente, sua cor, suas
formas, seus movimentos, e os compara com um rosto sadio.
Podemos ver neste texto um precursor dos estudos
semióticos. Alguns séculos depois foi Cláudio Galeno (129-
199 d.C.), médico grego mas clinicando em Roma, quem
estabelece a Semiótica, a análise dos sintomas ou
sintomatologia, como uma parte dos estudos médicos.
Contudo, voltando a Hipócrates, que nos trouxe ainda a
grande contribuição de afirmar a medicina como campo de
conhecimento experimental e portanto já algo divergente das
célebres polémicas filosóficas e especulativas, vamos
dissecar mais a fundo sua frase: "breve é a vida", o homem,
o ser biológico, que inevitavelmente é levado um dia pela
morte, o mais implacável componente do percurso vital;
"longa é a arte", aquela que, criada pelo mortal, tem a
finalidade de vencer a morte, de sobreviver aos tempos e,
com isto, imortalizar seu criador. E o consegue. A criação
humana, assim entendo a palavra "arte" usada por
Hipócrates, desafia e vence não apenas a morte, mas todas
as dificuldades e os limites impostos pela breve vida,
desafia e vence as doenças, o envelhecimento, o tempo, a
natureza hostil. Seu mais eficaz e abrangente instrumento
são os símbolos. Seu universo hoje não se chama "arte",
terreno específico onde se deve manifestar a mais pura e
irrestrita criatividade humana, mas deve ser mais
atualizadamente denominado "cultura".

Este campo amplo recebe as contribuições e descobertas de


cada indivíduo, de cada grupo social, de cada época, e as
perpetua, transmitindo as informações de geração a geração,
de grupo para grupo, de época a época. Suas criações têm
normas próprias e independentes (e é por esta razão que ela
consegue contrariar até as normas mais rígidas da vida)
constituindo-se em uma "segunda realidade". Dela fazem
parte o vestir, os gestos, as artes, as danças, os rituais,
a literatura, os mitos, o morar e suas formas individuais e
sociais, os hábitos (ao comer, ao beber, ao cumprimentar,
ao relacionar-se), as religiões, os sistemas políticos e
ideológicos, os jogos e os brinquedos.

Assim é que a cultura se organiza como um complexo sistema


comunicativo, semiótico portanto, que coordena todas estas
atividades. Reconhecer a existência da cultura como tal,
significa reconhecer que todas estas atividades atendem a
regras e normas comuns — vale dizer, obedecem a um código
da cultura — e, assim, não existem as fronteiras que isolam
umas das outras, não permitindo que se comuniquem entre si.
A cultura é o macrossistema comunicativo que perpassa todas
as manifestações e como tal deve ser compreendido para que
se possam compreender assim as manifestações culturais
individualizadas. "O organismo quer perdurar." (D.
Pignatari) Se então a cultura é o domínio da segunda
realidade, criada pelo homem, uma das condições de sua
sobrevivência será sua permanente expansão. O homem cria,
sua criação o estimula e lhe modifica as habilidades e as
capacidades, transforma-lhe a vida enfim. Isto, por sua
vez, o torna mais inteligente, hábil e competente para as
novas criações. Desta maneira é a novidade que passa a ser
o alimento desta outra realidade. Contudo, a novidade
requer coragem e ousadia, pois o novo também traz o perigo
e a ameaça. Para renovar e ampliar as fronteiras é preciso
destruir muros e paredes já consolidados. Já o dizia Walter
Benjamin em seu ensaio sobre "O caráter destrutivo", datado
de 1931 (quinze anos após a inauguração do dadaísta Cabaret
Voltaire): O caráter destrutivo conhece apenas uma palavra
de ordem: abrir espaço; apenas uma atividade: desocupar.
Sua necessidade de ar fresco e espaço livre é mais forte do
que qualquer ódio. O caráter destrutivo é jovem e alegre.
Pois destruir rejuvenesce, porque tira do caminho as marcas
de nossa própria idade; (...). (Benjamin, 1972: IV.1,396-
7). Então de onde brotam as forças destrutivas e ao mesmo
tempo criadoras da segunda realidade? O poeta Décio
Pignatari de/senha e de/clara em seu poema fanologopaico
"Organismo", de 1960, respondendo à questão:

o organismo quer perdurar

o organismo quer repet

o organismo quer ré

o organismo quer

o organism
orgasm

o o o

Dez anos depois do poema de Décio Pignatari começa a se


delinear uma nova disciplina, a Semiótica da Cultura,
principalmente na União Soviética, mas também na Europa
Central, que hoje é unânime em afirmar que a cultura
encontra na natureza sua maior fonte de inspiração.
(Contudo é importante não nos esquecermos de que esta
divisão cultura-natura é também uma convenção criada pela
própria cultura!) O semioticista tcheco Ivan Bystrina
sintetiza em quatro momentos as raízes da cultura: no sonho
(e é sabido que também os animais superiores sonham —
comprovadamente todas as aves e os mamíferos o fazem), no
jogo e nas atividades lúdicas (também presentes entre os
animais), nos desvios psicopatológicos como neuroses,
paranoias, esquizofrenias (distúrbios muitas vezes causados
por disfunções orgânicas) e, por fim, nas situações de
êxtase e de euforia (provocadas ou não, com a ajuda de
determinadas substâncias ou não, por meio de certos rituais
e movimentos ou não).

Assim, a transição da primeira para a segunda realidade não


se dá no momento do primitivo gesto semiótico da exibição
do escroto azulado de alguns primatas, mas sim no decorrer
de centenas de milhares de anos, com a crescente
consciência de si mesmo e de sua própria finitude (1).

1.O longo caminho da evolução da comunicação gestual e performática


dos outros primatas até a comunicação verbal humana que, sem dúvida,
facilitou o desenvolvimento e a preservação das informações referentes
à segunda realidade, a realidade da cultura, não é, com certeza,
objeto que a semiótica possa tratar sem o valioso auxílio das
pesquisas etológicas. Uma importante síntese do surgimento e do
desenvolvimento da etologia humana nos oferece Philippe Ropartz, no
verbete "A etologia humana" do Dicionário de antropologia publicado
pela Verbo.
Das quatro raízes da cultura levantadas por Bystrina vou
aqui tomar apenas uma, aquela que hoje vem recebendo
redobrada atenção por parte dos neurologistas e da medicina
de modo geral: os desvios psicopatológicos. Justamente
porque eles transferem para o estado de vigília a ousadia e
a coragem que apenas temos no sonho — de negar, de rir na
cara, de desafiar, de desobedecer regras estabelecidas, de
crer e de descrer sempre a contrapelo. E como começamos com
os médicos, vamos continuar em sua companhia. Foi o médico
e psiquiatra austríaco Leo Navratil, especialista em
psicopatologia da expressão, quem exaustivamente estudou em
seu livro de 1974, über Schizophrenie (Sobre a
esquizofrenia) as principais características da percepção
esquizofrênica que ele denomina a) fisionomização
(capacidade de dar/ver formas humanas em quaisquer
objetos), b) formalização (capacidade de ver/fazer ritmos
ou regularidades) e c) simbolização (facilidade para colar
arbitrariamente um significado em um objeto qualquer)
(Navratil, 1974a:43-87).

Assim, mesmo que compelidos por uma psicopatologia e em


situação de extrema aflição por sua inadaptabilidade
social, o mundo das variantes psicopatológicas oferece um
poderoso exemplo de desprendimento das regras de
codificação e decodificação dos mais diversos aspectos da
vida biofísica e social. Hoje o estudo das psicopatologias
mais diversas (e não apenas da esquizofrenia), das afasias,
agnosias, amusias etc. vem tendo surpresas quase diárias.
Um caso do agora famoso neurologista anglo-americano Oliver
Sacks (1988a) de monstra como determinadas patologias
ampliam o alcance de nossa percepção e com isto servem de
modelo para novas atitudes, muitas vezes mais ousadas e
demolidoras. Sacks relata que, durante o discurso do
presidente pela televisão, ouve-se em sua clínica uma
explosão de gargalhadas vinda da ala dos afásicos. O
presidente, um ator, com bem treinados e ensaiados recursos
de expressão, não conseguiam ser levado a sério pelos
pacientes que perderam a capacidade de perceber e usar o
chamado "código central da comunicação humana", o verbal.
Mas todos os outros elementos da comunicação, as não-
palavras, estavam sendo perfeitamente compreendidos e,
desmascarados em seu teor de não autenticidade, não
veracidade, na falsa dramaticidade de seu discurso. Já uma
paciente com um tumor no lobo temporal direito — que a
impedia de receber toda a informação não-verbal, emocional,
fisionómica e tonal (exatamente aquela percebida pelos
afásicos) —, comentou com o médico que o presidente usava
palavras inadequadas e que ele teria alguma lesão no
cérebro ou estaria querendo esconder alguma coisa. Como
estes, milhares de casos estão a nos ensinar que não é o
procedimento tímido da subserviência aos padrões
instituídos o alimento para a ampliação do universo da
cultura. Aprender com a natureza em suas manifestações mais
ousadas, em seus limites e para além deles, tem sido a
grande sacada do homem. E, cada vez mais, com Hipócrates,
contra hipócritas.

Prof. Dr. NORVAL BAITELLO PUC/SP

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