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Considerações sobre o conceito de civilização

em Norbert Elias
SILVIA LIMA DE AQUINO*

Resumo
A proposta colocada por este artigo é a de estabelecer uma reflexão a respeito
do conceito de civilização presente nos trabalhos desenvolvidos por Norbert
Elias. Para tanto, nos basearemos na análise deste conceito presente nas obras
“O Processo Civilizador” volumes 1 e 2 e “Escritos & Ensaios 1 -Estado,
Processo, Opinião Pública”. A tentativa de esboçar observações relativas a
um conceito tão importante para obra de Elias, de certo modo, nos fornece
indicações que podem contribuir para compreensão da metodologia
privilegiada em sua análise sociológica. Tal método de análise é considerado,
de certo modo, “processual”, na medida em que se apoia na ideia de história
longa, cujo olhar é voltado para as transformações de longo prazo ocorridas
tanto na sociedade quanto nas estruturas das personalidades dos indivíduos.
Palavras-chave: Nobert Elias; Civilização; análise processual.

Abstract
The purpose of this paper is to establish a reflection on the concept of
civilization found in some works of Norbert Elias. Thus, we will base the
analysis of this concept in the works "“O Processo Civilizador” volumes 1
and 2 and “Escritos & Ensaios 1 -Estado, Processo, Opinião Pública”. The
attempt to draw comments on a concept so important to the work of Elias, can
provide us with information that can contribute to understanding of the
methodology privileged in his sociological analysis. This analysis method is
considered in some way, "procedural" because it is based on the idea of long
history, where reflection is focused on the long-term changes occurring both
society and the structures of the personalities of individuals.
Key words: Norbert Elias: Civilization, analysis procedure.

*
SILVIA LIMA DE AQUINO é doutoranda pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro –
CPDA/UFRRJ.

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Introdução trabalhara neste livro1,
pareceu-me muito claro que
Neste trabalho estava lançando os alicerces
procuraremos estabelecer de uma teoria sociológica
uma discussão a respeito não-dogmática,
do conceito de empiricamente baseada, de
civilização, um dos processos sociais em geral e
principais termos de desenvolvimento social
utilizado nas análises em particular” (ELIAS,
empreendidas por Norbert 1990, p. 216).
Elias. Para tanto, nos Ao buscar a definição
apoiaremos nas obras “O para a ideia de civilização,
Processo Civilizador” e Elias (1990) lança mão de
“Escritos & Ensaios 1 - uma digressão. Assim,
Estado, Processo, Opinião estabelece uma espécie de
Pública”. A primeira obra trajetória até chegar à
está dividida em dois Norbert Elias (1897-1990) gênese do conceito. Para
volumes, sendo que o tanto, toma como pano de
número 1 traz como tema central o fundo as diferenças do significado
debate sobre o que Elias chama de “uma atribuído ao conceito de civilização, ao
história dos costumes”, ao passo que o longo do processo histórico, entre
volume 2 apresenta as idéias do autor a França e Inglaterra, de um lado e
respeito da formação do Estado e Alemanha, de outro. Sua análise está
civilização (BRANDÃO, 2001). Já a preocupada em compreender como os
segunda obra torna-se interessante por fenômenos e processos sociais se
possuir um verbete denominado posicionam sob o eixo do
“civilização”, onde Elias aborda desenvolvimento histórico (HEINICH,
diretamente as delimitações deste 2001). Para o autor, poucos estudiosos
conceito. desenvolvem análises fundadas em uma
perspectiva processual, em que a
A tentativa de esboçar observações mudança é tomada como uma
relativas a um conceito tão importante característica fundamental da sociedade.
para obra de Elias, de certo modo, nos Neste sentido, ele menciona como
fornece pistas acerca do teor de sua exemplo a metodologia científica e a
análise sociológica, considerada por teoria sociológica desenvolvidas por
muitos como “processual”, na medida Talcott Parsons, autor considerado um
em que o mesmo preocupa-se com as importante teórico no campo da
transformações de longo prazo ocorridas Sociologia.
tanto na sociedade quanto nas estruturas Elias (1990) defende que Parsons, ao
das personalidades dos indivíduos. Isto buscar estudar os diferentes tipos de
pode ser evidenciado nas próprias sociedade e, por conseguinte, os
observações de Elias (1990, p. 210), diferentes tipos de relacionamentos
quando defende, por exemplo, que desenvolvidos no interior destas
sociedades – o que envolve, por
“é indispensável que o conceito de exemplo, a relação entre estrutura social
processo seja incluído em teorias
sociológicas ou de outra natureza
que tratem de seres humanos.” E 1
Elias se refere à obra “O processo civilizador:
quando explica que “quando uma história dos costumes (vol. 1).”

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e personalidade – trata tais problemas definição considere a sua trajetória, ao
como sistemas. Esta interpretação faz invés de propor-lhe uma regra definitiva,
com que o autor conceba os conceitos de fixada a priori (CEIA, 2010).
forma estática, reduzindo processos a
Em sua obra “O Processo civilizador”
estados. Além disso, o leva a abordar
volume 1, ao abordar os significados dos
situações sociais dinâmicas como se
termos kultur e civilização, Elias (1990)
estivessem em “estado de repouso”.
desenvolve uma reflexão, ainda que
Com esse exemplo, Elias (1990, p. 214)
breve, direcionada ao processo de
conclui que:
surgimento e validade dos conceitos
Os estudos empíricos de presentes na sociedade. De acordo com
transformações a longo prazo de este autor, a forma como definimos um
estruturas de personalidade, e em conceito está estreitamente ligada a um
especial de controle das emoções, conjunto específico de situações
dão origem a grandes dificuldades históricas. Deste modo, conceitos só
no estágio atual de pesquisas ganham sentido na base de experiências
sociológicas.
comuns. Estas experiências, por sua
Cabe ressaltar que quando nos referimos vez,
à “sociologia de Elias”, de modo algum (...) Crescem e mudam com o grupo
estamos fazendo alusão a um método do qual são expressão. Situação e
único que tivesse sido proposto pelo história do grupo refletem-se nelas.
autor, mas com essa alusão apenas E permanecem incolores, nunca se
buscamos salientar uma forma de análise tornam plenamente vivas para
que percebemos ser, em certa medida, aqueles que não compartilham tais
comum as suas principais de suas obras. experiências, que não falam a partir
da mesma tradição e da mesma
Como surgem os conceitos? situação (ELIAS, 1990, p. 26).2
Cada ciência investiga os seus Desta forma, conceitos não representam
fundamentos procurando conceitos para necessidades individuais, mas se
os objetos que estudam, uma vez que as configuram em necessidades de
diferentes representações a respeito dos expressão coletiva. E a história coletiva
conceitos contribuem para a construção também se cristaliza neles. Em muitos
de teorias. Estabelecer um conceito casos, não se sabe bem, de imediato,
significa explicá-lo tendo em vista a sua porque o significado e delimitação de
raiz etimológica e/ou contexto em que dado conceito estão associados à
ocorre, pois seu sentido está diretamente determinada palavra. Na maioria das
relacionado à época em que está situado. vezes os conceitos são apenas utilizados
Conseqüentemente, a representação que e tomados como algo natural, visto que
temos dele pode variar em função do são apreendidos desde a infância
processo histórico. Assim, “é a tradição (ELIAS, 1990). Por isso, comumente, o
que determinará qual dos conceitos processo social responsável por sua
apresentados numa dada época ficará a construção é esquecido:
representar o pensamento dessa época” Uma geração os transmite a outra
[para um determinado grupo] (CEIA, sem estar consciente do processo
2010, p. 1). Como conceitos estão como um todo, e os conceitos
diretamente ligados às representações e
interpretações dadas a algo em um 2
Assim como Ceia (2010), Elias (1990) também
determinado momento histórico, torna- destaca o papel do elemento “tradição” na
se fundamental que a busca pela sua consolidação dos conceitos.

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sobrevivem enquanto esta alcançado no mundo
cristalização de experiências contemporâneo. 3. A cultura (2)
passadas e situações retiver um própria de um povo, de uma
valor existencial – isto é, enquanto coletividade, numa determinada
gerações sucessivas puderem época. [Pl.: - ções.].
identificar suas próprias
experiências no significado das As definições apresentadas acima nos
palavras (ELIAS, 1990, p. 26). dão pistas de como este significado
rotineiramente é tomado na língua
Assim, Elias (1990) observa que os
portuguesa. Nelas percebemos por um
conceitos não são “eternos”. À medida
lado, que o conceito de civilização,
que as funções e experiências na vida
comumente, está associado à noção de
cotidiana da sociedade se desvinculam
progresso. Portanto, sob esta
dos mesmos, estes vão desaparecendo.
perspectiva, civilização corresponderia a
Em alguns casos os conceitos podem
um processo evolutivo vivenciado pela
apenas “adormecer” e, em um
sociedade, em que os sujeitos deixariam
determinado momento, ressurgir com
um estágio considerado inferior, em
uma nova roupagem. Deste modo, tendo
direção a um estágio classificado como
em vista o contexto em que estão
superior. Desta forma, esta interpretação
colocados,os conceitos podem adquirir
dotada de uma carga visivelmente
um novo valor existencial. Eles podem
valorativa, supõe que as sociedades ao
também serem retomados porque algum
longo do processo histórico
acontecimento no presente da sociedade
caminhariam em uma direção avaliada
encontra expressão no significado
como melhor.
cristalizado no passado, exprimido nas
palavras (ELIAS, 1990). Por outro lado, segundo estas definições,
O conceito de Civilização o significado de civilização pode dizer
respeito tanto ao coletivo de indivíduos
De acordo com o dicionário da Língua de uma nação, quanto pode estar
Portuguesa Michaellis (2010) 3 o termo associado ao termo “cultura” e, no
civilização pode ser definido da seguinte sentido dado pelos dicionários, se referir
maneira: “sf (civilizar+ção) 1. Estado ao conjunto de valores e crenças de
de adiantamento e cultura social. 2. Ato determinado povo. Diante disso,
de civilizar. 3. (Sociol) Acumulação e retomamos as observações de Elias
aumento de habilidades manuais e de (1990), que assevera que alguns grupos
conhecimentos intelectuais e a aplicação tornam-se sim mais civilizados quando
deles. 4. (Antrop e Arqueol) Ver cultura, comparados com outros. No entanto,
acepção 10.” Já o Dicionário da Língua segundo o autor, isto não implica,
Portuguesa Aurélio (2009) define necessariamente, que os mesmos
civilização como: tornem-se melhores ou piores, ou então
1. O conjunto dos aspectos da vida que tenha valor positivo ou negativo
material e cultural de um grupo tornar-se mais civilizado.
social em qualquer estágio de seu
desenvolvimento. 2. Essas Percebemos que a acepção deste termo
características no mais alto grau de apresentada pelos citados dicionários se
sua evolução, esp. o progresso encaixa, de certo modo, nas observações
feitas por Elias (1990), a qual considera
3
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/i
que determinados conceitos são
ndex.php?lingua=portugues- utilizados há tanto tempo que na maioria
portugues&palavra=civiliza%E7%E3o das vezes são naturalizados, pouco

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questionados, adotados como verdade, fundamentais para a sua análise
como se fossem auto-explicativos. sociológica: a sociogênese e a
Assim, torna-se comum a utilização do psicogênese.5 O primeiro processo,
termo “civilização” sem se levar em grosso modo, refere-se às mudanças
consideração o seu caráter originalmente gerais e de longa duração sofridas pela
processual (ELIAS, 2006). Neste sociedade. Já o segundo representa as
sentido, para este autor o conceito de transformações de longa duração
civilização pode aludir: ocorridas nas estruturas de personalidade
(...) A uma grande variedade de dos indivíduos que, por sua vez, resulta
fatos: ao nível da tecnologia, ao tipo em uma vasta gama de modificações nos
de maneiras, ao desenvolvimento seus comportamentos6.
dos conceitos científicos, às idéias Desta feita, Brandão (2001, p. 11)
religiosas e aos costumes. Pode se
acrescenta que juntas a sociogênese e a
referir ao tipo de habitações ou à
psicogênese acomodam uma “conjunção
maneira de como homens e
mulheres vivem juntos, à forma de original de perspectivas micro e
punição determinada pelo poder macrossociológicas” que só podem ser
judiciário ou ao modo como são compreendidas de forma relacional e
preparados os alimentos. dinâmica. Para Elias (1990) não há como
Rigorosamente falando, não há nada separar estes dois processos, na medida
que possa ser feito de forma em que: “estruturas de personalidade e
civilizada ou incivilizada. Daí ser da sociedade evoluem em uma inter-
sempre difícil sumarizar em relação indissolúvel” (ELIAS, 1990, p.
algumas palavras o que se pode 221); (Brandão, 2001). Isto significa
descrever como civilização (ELIAS,
1990, p. 23) 5
Ao partir destes processos o autor analisa a
Ante a esta variedade de possibilidades ocorrência de vários elementos como o
de sentidos para a ideia civilização, cabe surgimento dos Estados-nação (Elias, 1993); a
emergência da Economia e da Sociologia (Elias,
a Sociologia o papel de problematizar o 2006), bem como a definição do conceito de
significado, a abrangência e os limites civilização (Elias, 1990; 1993). E, ao abordar o
do conceito, procurando desconstruir último elemento, Elias examina, paralelamente, o
afirmações tomadas como estáticas e curso das sociedades ocidentais, fundamentando-
imutáveis, de forma a estabelecer uma se em uma linha histórica ascendente no tempo,
de modo que as trajetórias percorridas pela
reflexão sobre fenômenos sociais como sociedade se refletem nos caminhos percorridos
este, ultrapassando as fronteiras do senso pelos indivíduos. Neste sentido, verifica-se que
comum. De acordo com Elias (1990), Elias confere relevância ao micro e a partir disso
um dos caminhos para isso repousa na atribuí sentido ao macro (MARTINE e COSTA,
busca da gênese do conceito, bem como 2005).
6
De acordo com Ribeiro (1989), Elias (1990)
dos processos sociais que conduziram a defende a idéia da existência de um sentido na
sua transformação ao longo do tempo.4 história. Deste modo, na concepção deste autor,
fenômenos aparentemente examinados na escala
Civilização versus kultur do tempo imediato em que ocorreram, muitas
Ao estabelecer a definição para vezes apresentam-se carentes de sentidos. No
civilização Elias (1990) desenvolve uma entanto, estes podem revelar seu nexo se forem
submetidos a uma análise de longo prazo. Neste
reflexão calcada em dois processos sentido, verifica-se que Elias (1990) assume o
exame de “processos de longa duração” como a
4
Assim, para Elias (1990: 72) é fundamental escala mais adequada para se estudar as
rastrear “(...) a transformação de conceitos transformações sofridas tanto pelas estruturas
através dos quais diferentes sociedades sociais quanto pelas estruturas individuais ao
procuram se expressar (...)”. longo da história.

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que, na perspectiva deste autor, é fundamental saber a que elementos
impossível analisar a sociedade comuns e invariáveis dos seres humanos,
desvinculada do indivíduo e vice e versa, assim como a que elementos diversos
bem como concebê-los de maneira variáveis este conceito se refere (ELIAS,
estanque: 2006). Com esta finalidade – tendo em
Pode-se dizer com absoluta certeza vista esta constatação, bem como os
que a relação entre o que é processos de psicogênese e sociogênese
denominado conceitualmente de – Elias (1990) realiza um resgate
“indivíduo” e de “sociedade” histórico7 do desenvolvimento do
permanecerá incompreensível conceito de civilização. Seu objetivo é o
enquanto esses conceitos forem de examinar os diferentes significados
usados como se representassem dois ao longo do tempo conferidos a este
corpos separados, e mesmo corpos termo, principalmente por três nações
habitualmente em repouso, que só européias: A França e Inglaterra de um
entram em contato um com o outro lado e Alemanha de outro8.
depois, por assim dizer (ELIAS,
1990, p221). Além disso, ainda integrando o esforço
de delimitação do sentido
De acordo com Elias
de civilização Elias (1990,
(1990) se examinarmos as
p. 15) coloca a necessidade
diversas definições para a
ideia de civilização que ele de considerar o conceito de
apresentou anteriormente – kultur utilizado pelos
alemães, bem como
incluímos aí aquelas
veiculadas pelos “(...) a maneira como ao longo
dicionários que expusemos da história, os alemães vêm
nas páginas anteriores – interpretando o
constataremos que este comportamento de franceses e
conceito expressa a ingleses, e como franceses e
ingleses veem o
consciência que o Ocidente
comportamento alemão”.
tem de si mesmo. Por isso,
seu significado é Apesar de constatar que o
responsável por sintetizar termo civilização, em geral,
tudo em que a sociedade ocidental nos caracteriza-se por representar a
últimos dois ou três séculos se julga consciência que o Ocidente tem de si, ao
superior às sociedades mais antigas ou verificar as transformações na definição
as sociedades contemporâneas do conceito sofridas ao longo do
consideradas “mais primitivas.” Ora, processo histórico, Elias (1990) observa
que este não poussui exatamente o
Com essa palavra, a sociedade mesmo significado para as diferentes
ocidental procura descrever o que
lhe constitui o caráter especial e
7
aquilo de que se orgulha: o nível de Ver nota anterior.
8
sua tecnologia, a natureza de suas Nas palavras de Elias (1990, p 15), “a fim de
maneiras, o desenvolvimento de sua facilitar a compreensão deste livro e, destarte,
cultura científica ou visão do mundo servir como introdução às próprias questões,
afigura-se-nos necessário examinar os
e muito mais (ELIAS, 1990, p. 23).
significados e entendimentos atribuídos ao
conceito de ‘civilização’ na Alemanha e na
Diante disso Elias (2006) afirma que se França.” Apesar de também falar do significado
o objetivo é o de se atribuir significado desde conceito para os ingleses, Elias (1990)
ao conceito de civilização torna-se volta a sua atenção para a França e Alemanha.

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nações ocidentais, em especial para a (MOURA, 2009). Assim, para esta
França e Inglaterra bem como para a classe o termo civilização expressava
Alemanha. De acordo com Elias (1990) diretamente um valor de segunda
a explicação para essa diferenciação está categoria, associado apenas a aparência
relacionada ao contexto político externa dos indivíduos (ELIAS, 1990).
vivenciado por estes países no século
XVIII. Esta diferenciação na valorização da
forma de conduta francesa, segundo
Deste modo, o autor explica que para
Moura (2009) era apenas a parte visível
franceses e ingleses civilização é um
de uma barreira social muito mais
conceito que abarcava a importância e o
profunda entre as duas classes alemãs,
orgulho que estes têm da contribuição
que encobria, dentre outros fatores, a
dada pela sua nação ao progresso do
revolta da classe média por sua completa
Ocidente e da humanidade, por isso seu
exclusão na participação dos negócios
sentido minimiza as diferenças
do Estado. Entretanto, esta situação ao
nacionais. Já para os alemães a ideia de
mesmo tempo em que colocava a classe
civilização não carregava o cunho
média alemã em uma posição de
universalista observado na França e
inferioridade em relação à aristocracia
Inglaterra. Apesar de significar algo útil,
cortesã, mais tarde se configuraria em
seu alcance era limitado a uma classe
um elemento fundamental para que – na
social específica: a aristocracia cortesã.
busca da recuperação de sua auto-estima
Esta classe social almejara aproximar
e suplantação da aristocracia – esta
seu comportamento daquele adotado
passasse a valorizar elementos
pelos franceses, sujeitos considerados
especificamente alemães. Neste sentido,
portadores de um modo de ser e agir
o conceito alemão que se aproximaria da
ideais. Por isso este comportamento era
definição de civilização atribuída pelos
tomado pela aristocracia cortesã alemã
franceses, ou seja, que significaria o
como sinônimo de superioridade e a sua
orgulho dos alemães em virtude de suas
adoção se configurava em uma forma
próprias realizações corresponderia ao
distinção (ELIAS, 1990); (MOURA,
vocábulo kultur. Este, difundido
2009). Entretanto, Elias (1990) observa
principalmente pela elite intelectual
que a tentativa de adoção do modo de
alemã – que não pertencia à aristocracia
conduta francês pela aristocracia cortesã
cortesã – expressava a valorização de
alemã resultava em uma imitação
fatos intelectuais, artísticos e religiosos
grotesca e sem criatividade da produção
alemães (ELIAS, 1990).
cultural existente na França.

Todavia, Alves (2009) assevera que a No entanto, cabe ressaltar que embora o
classe média letrada alemã não se conceito de kultur se aproximasse do
identificava com este tipo de vivência sentido dado à civilização tanto pelos
cortesã e a classificava como um setor franceses quanto pelos ingleses, ele
fútil e artificial. Desta forma, enquanto a estava associado apenas ao valor que a
aristocracia cortesã alemã aspirava pessoa tem em virtude de suas
assumir um comportamento realizações. Ao passo que civilização na
característico dos franceses, a classe acepção inglesa e francesa possuía um
média burguesa da Alemanha buscava sentido mais amplo, abarcando fatos
afastar-se desta forma de conduta, de políticos, econômicos, religiosos ou
modo a fortalecer aspectos considerados técnicos, morais ou sociais. Por isso,
constitutivos da sociedade alemã podia se referir tanto a realizações dos

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indivíduos quanto apenas a sua conduta, Abordando ainda a sociogênese do
seu comportamento (ELIAS, 1990). conceito de civilização, Elias (1990)
Logo, constata-se que, enquanto observa que diferentemente da
Alemanha, em que havia uma cisão entre
civilização na acepção francesa e inglesa
a aristocracia cortesã e a classe média,
transmite a idéia de processo, algo que
na França a burguesia foi incorporada
se move incessantemente “para frente”,
muito cedo aos meios cortesãos. Com
kultur faz alusão a produtos humanos,
isso, este estrato social logo adotou as
artigos materiais como obras de arte,
formas de conduta deste ambiente de
livros, etc. Além disso, com o conceito
poder. Deste modo, no século XVIII o
de civilização tanto franceses quanto
comportamento burguês e aristocrático
ingleses procuravam reduzir as
já não apresentavam grandes diferenças
diferenças nacionais, representando o
entre si. Assim, devido a essa
que há de comum a todos os seres
humanos – daí a relação deste conceito interpenetração de comportamentos, no
contexto francês o conceito de
com uma intenção expansionista de
grupos colonizadores que colocavam a civilização deixou de ser exclusivamente
atribuído na e pela aristocracia e passou
necessidade levar seu modo de ser e agir
a se estender ao resto do país. Dito isso,
a outras nações. Com o termo kultur os
Alves (2009, p. 5) defende que para
alemães procuravam enfatizar as
Elias (1990):
diferenças nacionais e as identidades
particulares de seus grupos (ELIAS, (...) A diferença sociogenética destes
1990). dois conceitos entre a Alemanha e a
França é simples: na Alemanha, a
Diante disso, segundo Elias (1990) sociedade de corte não conseguiu
percebe-se que o conceito de kultur generalizar à restante sociedade, daí
expressa diretamente à condição da que se tenha imposto como conceito
Alemanha no século XVIII, uma nação nacional uma palavra que exprime
que tardiamente para os padrões oposição à vida cortesã, ao passo
ocidentais, conseguiu garantir a que na França, este processo de
unificação política e de seus territórios, assimilação dos moldes cortesãos
que freqüentemente, especialmente no pela burguesia e restantes camadas
sociais, foi bem sucedido,
contexto da Primeira Guerra Mundial,
resultando a identificação nacional
ameaçavam se separar. Por isso, francesa no conceito que designa
expressa a consciência de si mesma de precisamente as relações na corte.
uma nação que teve de buscar e
constituir incessante e novamente suas Alves (2009, p. 5) observa ainda que,
fronteiras. Dito isso, Elias (1990) após constatar as diferenças entre o
conclui que apesar de, em certa medida, desenvolvimento de dois conceitos em
conter sentidos distintos, estes conceitos duas nações com percursos tão díspares,
expressam a auto-imagem que as para chegar à definição do sentido de
mencionadas nações têm de si. Esta civilização Elias (1990) “volta-se para a
auto-imagem, por sua vez, corresponde à evolução do modelo que vingou na
forma que estes julgam que a Europa ocidental sob a esfera cultural
humanidade deve assumir e seguir.9 francesa”. Assim, sempre trabalhando
com a idéia de processos de longa
9
duração, o autor faz uma digressão até
Desta forma, Elias (1990) verifica que a
palavra alemã que mais se aproximaria do
conceito ocidental de civilização seria kultiviert civilizado, refere-se à conduta ou ao
(cultivado). Esta palavra tal como a palavra comportamento de determinado individuo.

145
chegar aos conceitos que julga anteceder na passagem do conceito de cortesia
este sentido: as palavras courtoisie para civilidade e de civilidade para
(cortesia) e civilité (civilidade). Landini civilização representam o desejo de
(2005) ressalta que, com este esforço, a distinção social materializado através de
questão que o autor se propõe é a de um processo de refinamento incessante
responder como e por que a sociedade do comportamento por parte dos
ocidental passou de um padrão para o cortesãos. Este refinamento, por sua vez,
outro, isto é, do padrão de civilidade foi imitado pela burguesia, cujo prestígio
para o de civilização. Neste sentido Pila apoiava-se inicialmente não no nível de
(2003, p. 3) explica que: capital possuído, mas na nobreza e
adoção das práticas consideradas
Cortesia, segundo Elias, refere-se às elegantes oriundas da classe cortesã
formas de comportamento das (ALVES, 2009); (ELIAS, 1990). Assim,
grandes cortes feudais. (...) Durante verifica-se que na sociedade francesa o
a Idade Média o conceito vai sentido de civilização:
perdendo sua limitação e passa
também a se referir aos (...) Constitui um contraconceito
comportamentos dos círculos geral a outro estágio da sociedade, a
burgueses. Com a lenta extinção da barbárie (...). Assim a civilização
nobreza guerreira e a formação de não é apenas um estado, mas um
uma nova aristocracia ao longo dos processo que deve prosseguir (...)
séculos XVI e XVII, “o conceito de [Ela] absorve muito do que fez a
civilidade elevou-se lentamente à corte acreditar ser – em comparação
categoria de comportamento social com os que vivem de maneira mais
aceitável”. A partir do século XVII simples, mais incivilizada ou mais
(...) o conceito de cortesia cai em bárbara – um tipo mais elevado de
desuso. Da mesma maneira, ao sociedade: a ideia de um padrão
longo do século XVIII, o conceito moral de costumes, isto é, tato social
de civilidade, com o lento (ELIAS, 1990, p. 62).
aburguesamento da sociedade de
corte, cai de moda, perdendo espaço Neste sentido, de acordo com Elias
para civilização. O conceito de (1993) a imitação e propagação
civilização afirma-se na França na progressivas dos comportamentos
segunda metade do século XVIII. cortesãos ocorriam em uma direção
Sua primeira evidência literária específica e esta direção era
aparece do verbo civilizar e deriva fundamentada na modificação da
para o conceito de civilização, onde conduta e sentimentos humanos, bem
é encontrada na obra de Mirabeau
como:
na década de 1760. No século XVI
são encontrados dois significados No afastamento e dissimulação das
para civilização: “Levar à civilidade, funções corporais de cada indivíduo,
tornar civis e brandos os costumes e à diminuição do contacto físico
as maneiras dos indivíduos”. E: “em quotidiano e espontâneo com os
jurisprudência: tornar civil uma outros, à crescente individualização
causa criminal”. (...) A partir do e isolacionismo sociais, ao aumento
século XVIII, o conceito civilização do pudor, da auto-repressão dos
passa a ter a função de “expressar a instintos, ao recuo dos espaços
auto-imagem da classe alta européia lícitos à violência física
em comparação com os outros (...)”. monopolizada pelo Estado ou
regulamentada em forma de jogo e
A partir dessa formulação observamos com base em critérios de pura
que as transformações experimentadas hierarquia social e de lógica de

146
poder, não racionais, não científicos, superiores e, por conseguinte, mais
já que os argumentos de higiene e avançadas que as sociedades anteriores
saúde surgem posteriormente ou as sociedades contemporâneas
(ALVES, 2009, p. 7). consideradas “primitivas”. Assim, diante
Segundo Elias (1993, p. 194), apesar de da naturalização deste conceito, o autor
não ser planejado previamente, este defende que “a ‘civilização’ que
processo ocorre, sobretudo, por que: estamos acostumados a considerar como
uma posse que nos chega aparentemente
Planos e ações, impulsos emocionais pronta e acabada sem que perguntemos
e racionais de pessoas isoladas
como viemos a possuí-la é um processo
constantemente se entrelaçam de
modo amistoso ou hostil. Esse que nós mesmos estamos envolvidos
tecido básico, resultante de muitos (ELIAS, 1990, p. 73).”.
planos e ações isolados, pode dar Deste modo, através de uma análise
origem a mudanças e modelos que
direcionada as sociedades francesa e
nenhuma pessoa isolada planejou ou
criou. Dessa interdependência de
alemã, este autor demonstra como o
pessoas surge uma ordem sui sentido deste conceito que, a primeira
generis, uma ordem mais irresistível vista, se apresenta como “auto-
e mais forte do que a vontade e a explicável” é resultado de um processo
razão das pessoas isoladas que a contínuo e incessante de transformações
compõem. É essa ordem de de longa duração, tanto nas relações do
impulsos e anelos humanos indivíduo ocidental com seu corpo,
entrelaçados, essa ordem social, que sentimentos e pulsões quanto nas
determina o curso da mudança estruturas sociais.
histórica, e que subjaz ao processo
civilizador. Com efeito, Elias (2006) conclui que
embora reconheçamos que não somos
Perante este argumento podemos
civilizados por natureza é preciso
perceber que a ideia de civilização
considerar que possuímos por natureza
corresponde a um percurso de
uma disposição que torna possível, sob
aprendizagem involuntária, que teve
determinadas condições, uma
início nos primórdios do gênero humano
civilização. Estas condições estão
e que não tem fim, apenas uma direção
ligadas, dentre outros fatores, ao
definida (LANDINI, 2007). Para Elias
aprendizado em sociedade. E é este
(2006), de certo modo, isto significa que
aprendizado, calcado na compreensão,
não há como afirmar que indivíduos ou
adoção e partilha de formas de conduta,
sociedades sejam, enfim, “civilizados”,
que torna possível que convivamos no
restando apenas à possibilidade de
espaço social onde estamos inseridos.
comparação entre diferentes sociedades,
Ora, nenhum ser humano chega
com o intuito de vislumbrar o nível de
civilizado ao mundo. O processo
civilização de cada uma.
civilizador individual que ele,
Considerações finais obrigatoriamente, sofre é uma função do
processo civilizador social.
Elias (1990) assevera que civilização é
um conceito que denota a consciência Assim, “o processo universal de
que o Ocidente tem de si, por oposição civilização individual pertence tanto às
aos chamados “bárbaros” ou condições da individualização do ser
“incivilizados”. Neste sentido, seu humano singular como às condições da
significado sintetiza a crença que suas vida social em comum dos seres
nações têm de que suas sociedades são humanos (Elias, 2006, p. 21)”. Neste

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sentido, tendo em vista as reflexões de ______. Federico NEIBURG e Leopoldo
Norbert Elias, mais uma vez verificamos WAIZBORT (orgs.). Escritos & ensaios. Vol. 1:
Estado, processo, opinião pública. Rio de
a impossibilidade de pensar as Janeiro, Jorge Zahar, 2006.
transformações estruturais na sociedade,
HEINICH, N. A Sociologia de Norbert Elias.
que modificaram e deram corpo, por
Bauru: Editora da Universidade do Sagrado
exemplo, ao conceito de civilização que Coração, 2001.
temos hoje, desvinculadas das mudanças
LANDINI, Tatiana Savoia. A sociologia
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