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Mídias, culturas e práticas de (in)visibilidade

As perspectivas de visibilidade dão-se de formas diferentes na


atualidade do que é possível perceber nas relações sociais em outras
temporalidades e espacialidades, aspectos que são passíveis de serem
observados com a popularização de elementos técnicos e midiáticos que
permitem a produção de imagens, textos, vídeos, áudios e outras formas de
expressão híbridas dessas manifestações de comunicação. As
práticas informacionais e comunicacionais, os acessos à tecnologia e as
produções e disseminações de conteúdos imagéticos e discursivos produzem
outras formas de nos relacionarmos com a visibilidade e, desse modo, conosco.

As verdades já não se escondem dentro de cada um: elas


estão à flor da pele, são visíveis – ou, pelo menos, se
esforçam por atingir o cobiçado campo da visibilidade. Em
pleno declínio do modelo “sentimental” que marcou uma
época, o corpo e a sua superfície epidérmica assumem um
papel primordial, pois é na própria imagem corporal que
cada sujeito mostra a verdade sobre si – cada vez mais está
aí, à vista de todos, aquilo que se é (SIBILIA, 2006, p. 110).

A interpretação de Sibilia (2006) acerca das nossas relações com o


corpo, a alma e as noções de essência nos oferece condições de olhar como as
ligações entre público ou visível e privado – que hoje não é menos explícito –
manifestam outras formas de interpretação. Nesse sentido, seguimos a
indicação da autora em sua prática de interpretação das relações entre corpo,
alma e informação, porque, como ela, entendemos que “[...] é tão necessário
resgatar aquele olhar crítico que Michel Foucault ensinou a lançar sobre o
presente, banhando com uma luz de estranheza aquilo que costuma parecer
tão serenamente familiar e questionando a atualidade com perguntas argutas e
incisivas” (SIBILIA, 2006, p. 117).
O movimento de estranhamento das práticas de visibilidade coloca em
questão os sentidos que são possíveis de se atribuir. O discurso possibilita que
vislumbremos as movimentações de sentidos que podem ser atribuídas às
visibilidades. Ao ser tomado como elemento analítico, o discurso elenca uma
série de dizibilidades e visibilidades que nos permitem compreender o

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movimento de construção da realidade ou do que denominamos de realidade
(DELEUZE, 2005).
Ao entendermos essa possibilidade de construção de formas de dizer e
de ver, as compreensões da arqueologia e da genealogia discutidas por Foucault
tornam-se explícitas. Nas palavras de Deleuze (2005, p. 60): “[...] o que define é,
acima de tudo, a voz, mas também os olhos. Os olhos, a voz. Foucault nunca
deixou de ser um vidente, ao mesmo tempo que marcava a filosofia com um novo
estilo de enunciado, as duas coisas num passo diferente, num ritmo duplo”. A
constituição de práticas discursivas e não discursivas dá-se no enunciável e no
visível, para a leitura foucaultiana. Desse modo, saímos de uma compreensão da
ciência, dos fatos como regimes únicos de compreensão da realidade e da
verdade, porque buscamos ferir uma crença na ciência como forma absoluta de
explicação do mundo, porque se “[...] houve um tempo em que se obedecia aos
que falavam em nome de Deus e transmitiam suas ordens, é necessário que se
obedeça aos que falam em nome dos Fatos e transmitem seus imperativos. E é
essa fé que hoje parece estar em crise” (LARROSA, 2010, p. 158).
É nessa direção que a visibilidade e suas práticas de constituição de
formas e de sentidos exigem de nós uma perspectiva analítica. Ao
caminharmos por meio das explicitações e anotações de Larrosa (2010, p.
158), que denota a realidade como uma criação europeia de ciência, a
indagação desse autor nos auxilia a pensar nos regimes de verdade que são
constituídos no hoje: fica a necessidade de questionar: “de onde vem e a que
vem a realidade”? Essa questão nos abre precedente para dialogar acerca dos
sentidos estabelecidos pela ciência e, desse modo, reconhecer os limites da
prática científica.
Dessa maneira, neste texto não entendemos visibilidade como uma
prática de visualidade, mas de sentir, de relacionar-se com o mundo. Por esse
viés, é “[...] preciso extrair das palavras e da língua os enunciados
correspondentes a cada estrato e a seus limiares, mas também extrair das coisas
e da vista as possibilidades, as 'evidências' próprias a cada estrato” (DELEUZE,
2005, p. 62). Assim, o visível não é caracterizado apenas pela prática de
visualização, mas também pelos rastros, que nos indicam caminhos,
interpretações, sensações e perspectivas. A prática de visibilidade, ou mesmo de
publicização, é discutida por Thompson (2011, p. 165) como “[...] realizada
para que qualquer um possa ver” e oposta ao privado como “[...] invisível,
realizada secretamente atrás de portas fechadas”, oferecendo outras dimensões.
Ao tratar do segredo, do que é realizado escondido, Deleuze (2005, p.
64) explica que esse ato existe “[...] para ser traído, trair-se a si mesmo”. Essa

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traição é possível porque em cada momento histórico a função de dizer e de
visualizar realiza-se nas condições de seus enunciados. Conforme as
interpretações de Larrosa (2010) acerca da constituição dos sentidos, a
realidade torna-se passível de experimentação.
Aquilo que nós chamamos de “realidade”, essa espécie de
totalidade genérica que inclui o conjunto das “coisas”, foi
primeiramente concebido como o terreno do dizer e do agir,
como o problema de nossas palavras e de nossas ações,
como aquilo que nos concerne e que está no nosso meio, no
meio de nossos dizeres e de nossos fazeres, como “a
questão”. Nesse sentido, é como se disséssemos “a
realidade? Eis aí o assunto, eis aí o problema, eis aí a
questão” (LARROSA, 2010, p. 159).

Nesse sentido, destacamos, mediante as discussões acerca da


produção da realidade por meio das práticas de significação – discursivas e não
discursivas –, a noção de significado exposta por Hall (1997, p. 10), ao
entendermos que o processo de consideração dos “[...] fatos naturais são,
portanto, também fenômenos discursivos”. Alinhavando as problemáticas
discutidas por Foucault, Hall (1997) explicita que o discurso constitui e é
constituído nas práticas sociais e, desse modo, toda noção de realidade é
produzida e produz discursos. Nesse movimento interpretativo sugerido pelo
autor, os Estudos Culturais problematizam as formas de condução da cultura e
as relações entre os aspectos culturais na produção de sentidos.
Deleuze (2005, p. 76) sugere, ao denotar relações entre visibilidade e
dizibilidade, que é necessário “[...] preservar todos esses aspectos ao mesmo
tempo: heterogeneidade das duas formas; diferença de natureza ou
anisomorfia; pressuposição recíproca entre as duas, combates e capturas
mútuas; primado bem determinado de uma sobre a outra”. Nesse combate
entre os visíveis e os enunciáveis, interpretam-se e sugerem-se interpretações
da cultura, tensionando as relações de poder pelas forças que estão em disputa.
Ao manter o plural na denominação de forças, Deleuze (2005, p. 78) explica
que é “característica essencial estar em relação com outras forças, de forma
que toda força já é relação, isto é, poder: a força não tem objeto nem sujeito a
não ser a força”.
Valemo-nos dessas interpretações para entender que a cultura e a
visibilidade sugerem, em seus complementos e confrontos, formas de ser e agir
que interpelam as práticas humanas e, nas relações entre os sujeitos,
movimentam-se: relações de poder que se significam por meio do visível e do
dizível e que produzem e são produzidas na cultura. Nessas multiplicidades, a

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cultura é constituidora e constituída nas relações de força entre visibilidade e
dizibilidade e nos sugere posicionamentos, identificações e instabilidades que
são tensionadas também na publicização de uma imagem de si, nos discursos
que interpelam a constituição dos sujeitos e que nos endereçam formas de ser e
estar na cultura. Desse modo, o termo cultura não é estável, mas está no
processo de ações e condutas que indicam possibilidades de “incitar, induzir,
desviar, tornar fácil ou difícil, ampliar ou limitar, tornar mais ou menos
provável... Essas são as categorias do poder” (DELEUZE, 2005, p. 78).
Esse poder, então, realiza-se nas práticas culturais, vislumbrando-se e
discursando-se nas formas de ser e agir que nos são permitidas na
contemporaneidade. Conforme Sibilia (2006) relata sobre o corpo como
espaço de disputa entre os discursos e as visibilidades científicas, tecnológicas,
políticas e culturais, Deleuze (2005, p. 64) explica que o termo sujeito “é um
lugar ou uma posição” e está alinhavado a inúmeros processos e posições que
se variam de um mesmo enunciado.
A cultura, para Hall (1997, p. 18), também está em disputa porque é
“modelada, controlada e regulada”, ao mesmo tempo que “'regula' nossas
condutas, ações sociais e práticas e, assim, a maneira como agimos no âmbito
das instituições e na sociedade mais ampla”. Nesse movimento conflituoso, as
práticas discursivas e de visibilidade nos oferecem contornos das condutas
culturais e, desse modo, as culturas nos sugerem cartografias, registros, rastros
do que indicam as chamadas identidades culturais: uma possibilidade não de
definição, mas de compreensão das relações de poder que configuram
determinados pontos, práticas e gestos que são significados na cultura.
As mídias comunicacionais não se restringem aos aparatos
técnicos usados para transmitir informações de um
indivíduo a outro enquanto a relação entre eles permanece
i n a l t e r a d a ; a o c o n t r á r i o, u s a n d o a s m í d i a s
comunicacionais “novas” formas de agir e interagir são
criadas considerando-se suas propriedades distintivas
específicas (THOMPSON, 2008, p. 17, grifos nossos).

As mídias, nesse contexto, estão entremeadas entre as práticas


culturais, caracterizando-se como artefatos que se constituem na disputa entre
as relações de poder e apontam visibilidades e dizibilidades que são possíveis
em nosso contexto. O consumo de imagens, de corpos e de visualidades
também indica conflitos e confrontos discursivos que oportunizam outros
modos de pensar os rastros identitários que perfilam nos espaços midiáticos.
Ao entendermos a quebra entre os limites de público e privado que foi
oportunizada pela cultura na contemporaneidade, o íntimo e o público tornam-

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se expressões que perpassam diferentes âmbitos, são impregnadas em
diferentes suportes e podem, por meio da prática de interpretação cultural e das
análises entre relações de poder, fornecer-nos elementos para problematizar as
condições de pensar as estratégias que são possíveis para pensar a cultura que
permeia, perpassa e produz a cultura e a visibilidade. Nessa perspectiva,
[...] ao relatar questões relacionadas ao governo da cultura e
ao governo através da cultura – aproveitando a
oportunidade para rever algumas das dimensões-chave do
funcionamento da cultura e sua centralidade no mundo
moderno. Sem apresentarmos um resumo detalhado,
esperamos que este sumário tenha sido útil para identificar
e esclarecer alguns dos temas-chave que fazem parte do
projeto Cultura, Mídia e Identidades e esclareça qual a
natureza da cultura – tanto o que ela é quanto o que ela faz
(HALL, 1997, p. 22, grifos do autor).

Ao indicar as possibilidades das interpretações na cultura, Hall (1997)


apresenta outros modos de perceber a prática midiática. Com base em Deleuze
(2005), tomamos os conceitos de visibilidade e dizibilidade, que nos auxiliam a
pensar a publicização das formas de ser no contemporâneo alinhadas às
discussões de Sibilia (2006) e Thompson (2008, 2011). Mais uma vez,
retomamos as perspectivas construídas da realidade e da verdade
problematizadas por Larrosa (2010) no que se inscreve neste texto. Nossa
proposta é uma formulação de perspectivas e de indicações e não temos por
intuito fechar, finalizar ou mesmo explicar todas e quaisquer relações que
podem ser produzidas nessas condições.
Este texto abre a possibilidade de interconexão entre mídias, culturas e
visibilidades para indicar potencialidades pedagógicas da crise, da
instabilidade e da fragilidade que as certezas têm. Nosso intento fica no ensaio,
na analítica, que sugere questões e faltas que estão nos discursos que nos
propomos a apresentar. Desse modo, trazemos como personagem conceitual
para tal problemática a bicha, denotada no texto “A fabulosa geração de gays
que nasceu para ser o que NINGUÉM quer”, escrito por Fabrício Longo e
pertencente à coletânea de textos do colunista que é denominada “Dando
Pinta”. Esse movimento tem por objetivo investigar os discursos sobre a bicha,
problematizando a representação de masculinidades e feminilidades. Desse
modo, a instabilidade das disputas pelos sentidos na cultura faz-se condição
fecunda para tal analítica.

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