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Alfabetização: relações de ensino e aprendizagem

Bibliografia para prova do processo seletivo

As questões para a prova de seleção serão formuladas a partir da seguinte bibliografia.

LERNER, Delia Ler e Escrever na Escola: o real, o possível e o necessário Porto Alegre:
Artmed, 2002

FERREIRO, Emilia A escrita... antes das letras São Paulo: Cortez. Título esgotado, sem
previsão de reedição. Ver texto a seguir.

Obs.: Os livros deverão estar em mãos no dia da prova, para que possam ser consultados.
In: SINCLAIR, Hermine A produção de
notações na criança:linguagem, número,
Capítulo I
ritmos e melodias São Paulo: Cortez,
1990 (esgotado sem previsão de reedição)
A ESCRITA... ANTES DAS LETRAS
Emilia Ferreiro

A aquisição da representação escrita da linguagem tem sido


tradicionalmente considerada como uma aquisição escolar (isto é, como
uma aprendizagem que ocorre, do início ao fim, no contexto escolar). Ora,
sabemos que, entre os conhecimentos fundamentais, praticamente não há
domínios dos quais possamos identificar um início propriamente escolar.
Em todos esses domínios, aos quais a pesquisa psicogenética trouxe dados
sólidos, o começo do conhecimento pôde ser situado em torno de um limite
pré-escolar (é especialmente o caso das noções numéricas elementares, da
organização do espaço, das seriações temporais, da estruturação das
relações e dos objetos físicos).
A aquisição da língua materna é inegavelmente uma aquisição pré-
escolar. O mesmo aconteceria para o início da língua escrita? Há bastante
tempo, vários pesquisadores interessados nas origens da representação
gráfica na criança assinalaram tentativas precoces de produção de traçados
de aparência gráfica variada, mas diferentes do desenho, comentados pela
criança em termos tais como: "eu marquei", "são letras", "são números",
"está escrito" etc.
Essas condutas foram assinaladas, mas vistas simplesmente como
parte das atividades de "faz-de-conta", como um brinquedo, como imitação
lúdica das condutas adultas, e não como atividades características do
processo de aquisição da língua escrita.
Em seguida, vamos tentar mostrar que: Notas prévias
1) Pode-se falar de uma evolução da escrita na criança, evolução Antes de entrar no âmago da discussão, é necessário explicitar as
influenciada mas não totalmente determinada pela ação das razões que nos levam, de um lado, a fazer uma distinção que não é
instituições educativas; mais ainda, pode-se descrever uma psicogênese habitual e, de outro, a recusar uma distinção que parece evidente.
nesse domínio (isto é, pode-se não somente distinguir etapas sucessivas
mas também interligá-las em termos de mecanismos constitutivos que 1) A interpretação de uma produção escrita de uma criança pode
justificam a seqüência dos níveis sucessivos). ser feita de dois pontos de vista muito diferentes. Podemos observar
2) No âmbito de compreensão da escrita, a criança encontra e a qualidade do traçado, a orientação da seqüência de grafias (da es
deve resolver problemas de natureza lógica, como em qualquer outro querda para a direita ou ao contrário; de cima para baixo ou ao
domínio do conhecimento. contrário), a presença de formas convencionais (O que a criança produz
corresponde efetivamente às letras de nosso alfabeto? Em caso afirma
Para tanto, vamos utilizar resultados obtidos em trabalhos de tivo, são estas bem orientadas ou há inversões?) etc.
pesquisa que realizamos nos últimos dez anos em diversos países Tudo isso diz respeito ao que podemos chamar aspectos
(Argentina, Suíça, México), bem como resultados de colegas figurativos da escrita, os únicos para os quais tem se voltado, até o
trabalhando segundo o mesmo quadro conceituai em outros países momento, a atenção de psicólogos e psicopedagogos. Ora, a par desses
(Brasil, Itália, Israel, Estados Unidos). Nosso objetivo não é relatar aspectos figurativos, há o que podemos denominar de aspectos
aqui resultados desta ou daquela pesquisa (as referências ajudarão o construtivos da mesma produção. Estes aspectos construtivos são
leitor a encontrá-las nas publicações citadas), mas proporcionar uma colocados em primeiro plano quando nos perguntamos o que a criança
visão de conjunto do estado atual de nossos resultados e reflexões quis representar e como ela chegou a produzir uma tal representação -
teóricas sobre o assunto. Contudo, é útil ressaltar que realizamos (mais precisamente, como ela chegou a criar uma série de
pesquisas longitudinais (nas faixas de três a cinco e de quatro a seis representações). Os aspectos figurativos foram a tal ponto privilegiados,
anos) como também transversais (com crianças entre quatro e sete que não é absolutamente necessário retomá-los. Em compensação, os
anos), pesquisas com crianças vivendo em meios quase iletrados bem aspectos construtivos não se constituem ainda em observáveis para a
como com crianças crescendo em condições de interação contínua com maioria dos pesquisadores. Em seguida, falaremos somente dos aspectos
a língua escrita, pesquisas com crianças de 4-5 anos que freqüentam construtivos porque são eles que nos permitem propor uma
instituições escolares e com outras que não as freqüentam, pesquisas psicogênese nessa evolução. Faremos referência aos aspectos
longitudinais com crianças no início de sua escolaridade elementar, figurativos apenas para contraste, quando for necessário marcar bem a
com adultos analfabetos etc. distinção entre ambos.
O objetivo específico de cada pesquisa determinou a escolha 2) Tradicionalmente, estamos habituados a diferenciar as
metodológica. Porém, aproveitamos muito as vantagens dos métodos de atividades de leitura das atividades de escrita. Porém, vamos recusar
exploração próprios da pesquisa psicogenética. Jamais teríamos essa distinção. O que nos interessa é a relação entre um sujeito
podido avançar em nosso trabalho sem levar em consideração o cognoscente (a criança) e um objeto de conhecimento (a língua
poderoso instrumento de leitura da experiência que é a teoria escrita). Esse sujeito ignora que a tradição escolar quer guardar bem
psicogenética e os meios de exploração que ela elaborou. Nossa as diferenças entre os domínios chamados leitura e escrita. Ele tenta
ligação aos princípios fundamentais do quadro psicogenético é apropriar-se de um objeto complexo, de natureza social, cujo modo de
evidente e explícita. Entretanto, aqui como alhures, tentaremos invocar existência é social e que está no centro de um certo número de trocas
Piaget o mínimo possível, mas utilizando-o ao máximo. sociais. Para tanto, ele tenta buscar uma razão de ser nas marcas que
fazem parte da paisagem urbana, tenta encontrar-lhes o sentido, isto é, em letras ou em números sem fazer distinções entre esses dois
interpretá-las (em uma palavra, "lê-las"); de outro lado, ele tenta subconjuntos (quer dizer, todas as marcas reconhecidas como não-
produzir (e não somente reproduzir) as marcas pertencentes ao icônicas são chamadas de letras, inclusive os números, ou são
sistema: ele se entrega então a atos de produção da escrita chamadas de números incluídas aí as letras). O que não pertence à
propriamente dita. classe do desenho pode também receber denominações tomadas dentre
os nomes convencionais, mas empregadas de um modo menos
Por razões de organização desta apresentação, vamos nos referir convencional: por exemplo, quando a criança toma o nome de um
mais às atividades de produção da criança do que às suas atividades de subconjunto e o emprega como denominação geral ("são cincos", "os
interpretação da escrita, como atividades reveladoras dos níveis de zeros", "os a" etc.). Essas marcas podem não ter outra denominação a
conceitualização, e não como estudo da escrita per se. não ser a que corresponde ao resultado de uma ação específica: "está
marcado", "está escrito". De fato, pouco importa a denominação que é
efetivamente utilizada. O que é mesmo importante é o fato de buscar
A evolução das conceitualizações sobre a escrita estabelecer uma distinção entre o icônico e o não-icônico, entre
desenhar e escrever (ou, antes, entre os resultados dessas duas ações).
Três períodos fundamentais podem ser identificados, no interior Quando se desenha, fica-se no domínio do icônico; as formas dos
dos quais é possível indicar subníveis. grafismos são pertinentes porque reproduzem a forma dos objetos.
Quando se escreve, fica-se fora do icônico; as formas dos grafismos
não reproduzem o contorno dos objetos. Não é por acaso que o
1) O primeiro período caracteriza-se pela busca de parâmetros de
arbitrário das formas empregadas como também a organização linear
diferenciação entre as marcas gráficas figurativas e as marcas gráficas
contam entre as primeiras características presentes nas escritas das
não-figurativas, assim como pela formação de séries de letras como
crianças.
objetos substitutos, e pela busca das condições de interpretação desses
objetos substitutos. Para distinguir, é necessário separar. Ora, uma vez estabelecida
essa distinção, torna-se importante buscar as relações entre os dois
2) O segundo período é caracterizado pela construção de modos modos fundamentais de realização gráfica (icônico e não-icônico). No
de diferenciação entre os encadeamentos de letras, baseando-se início, letras e imagens, ou desenhos, podem partilhar o mesmo espaço
alternadamente em eixos de diferenciação qualitativos e quantitativos. gráfico e, contudo, não ter entre si nenhuma relação de natureza
3) O terceiro período é o que corresponde à fonetização da significante ou mesmo funcional. As letras são objetos do mundo
escrita, que começa por um período silábico e culmina no período entre outros; o fato de elas poderem receber nomes pouco as
alfabético. diferencia dos outros objetos. Entretanto, elas são objetos particulares,
pois que não têm existência própria senão como marcas nos mais diversos
objetos materiais. Essa presença difusa e múltipla da escrita no meio
Primeiro período social não facilita a compreensão da natureza do elo entre as marcas e
o objeto que as traz1. É verdade que certos objetos sociais definem-se
O primeiro período caracteriza-se pelo trabalho da criança em quase inteiramente como portadores de marcas (a maior parte dos
tentar encontrar características que permitam introduzir certas livros e dos jornais). Mas a função desses objetos permanece opaca se
diferenciações dentro do universo das marcas gráficas. Uma primeira
diferenciação é a que separa as marcas icônicas das demais. Nesse
1
momento, a escrita parece ser definida apenas pela negação: ela não é Por exemplo, uma escrita em uma camiseta não indica necessariamente
desenho. A criança não utiliza necessariamente os termos uma relação entre a escrita e o objeto portador, nem entre a escrita — como
parte do objeto — e as outras partes deste mesmo objeto.
convencionais para denominar essa escrita. Ela pode falar, geralmente,
não se tem ocasião de assistir a trocas sociais onde ela pode se (O experimentador mostrando as letras do cartão.)
manifestar (o que supõe crescer em um meio alfabetizado). Porém, a
informação obtida por meio das trocas sociais está longe de ser "O que é isto?" "Letras para a boneca."
imediatamente assimilável; ela exige, por sua vez, esforços de "Leia isto!" (Vítor faz uma série de bolinhas
ao lado do desenho da boneca.)
interpretação. Um desenvolvimento importante concerne precisamente à "O que é que você fez?" "Para a boneca."
função significativa dos objetos-letras. "O que é que você fez para a boneca?" "Letras."
Podemos seguir com detalhes a formação das séries de letras "Elas vão dizer o quê?" "Boneca."
como objetos substitutos graças aos estudos longitudinais feitos com
crianças pequenas de meio urbano marginalizado (favelas). Neles, a Um mês depois (5;2) mostramos a Vítor uma série de figuras,
evolução se faz mais lentamente devido ao seu acesso limitado às pedindo-lhe: "ponha qualquer coisa com as letras". Dessa vez,
informações socialmente transmitidas. Os dados obtidos foram procuramos saber se Vítor é capaz de antecipar antes de começar a
relatados em outras publicações com muitos exemplos ilustrativos (cf. escrever. Para a figura de uma galinha, ele decide escrever galinha, e
Ferreiro, 1982, 1984). A progressão de uma criança, descrita a seguir, nós lhe perguntamos com quantas letras ele vai escrever essa palavra.
ajudar-nos-á a mostrar em que consiste essa evolução. Ele responde "três". Perguntamos-lhe: "Três o quê?". Ele responde:
Vítor usa a partir de três anos e dez meses a denominação letras. "De galinha". Sua antecipação ainda não serve para controlar sua
Todos os textos, inclusive os compostos por ele, são "letras". A produção; ele escreve galinha com seis bolinhas. Depois ele faz cinco
pergunta "o que é que diz aqui?" (ou as perguntas equivalentes) é bolinhas para a figura de um peixe, e nós lhe perguntamos: "O que se
sempre seguida pela mesma resposta: "letras". A situação se mantém pode ler aí?". Ele responde: "Peixe". Perguntamos-lhe então se se
sem modificação até 4;22. Aos 4;5, os textos sem figuras continuam a ser poderia ler peixe onde está a figura. Vítor rejeita essa idéia fantasiosa:
"letras" que dizem "letras", mas quando há uma figura por perto há "Não. Aí está o peixe". ("No, ahi está el pescado.").
uma mudança. O diálogo seguinte é ilustrativo: Essa seqüência evolutiva apresenta características que não são
exclusivas de Vítor. Primeiramente, há o fato de que a pergunta "o que
(O experimentador mostra a figura de um violão)
"O que é isto?" "Um violão."
diz aqui?" referindo-se às letras não tem sentido. No começo, as letras
(O experimentador mostra o texto embaixo da figura) são objetos particulares do mundo externo que têm em comum com
"O que puseram aqui?" "Para o violão." todos os demais objetos o fato de ter um nome. Elas nada querem
"O que diz aqui?" "Violão." "dizer", não tendo ainda o caráter de objetos substitutos. É preciso
(Figura de uma cadeira) notar que, no mesmo nível, as respostas não melhoram se colocamos
"O que é isto?" "Uma cadeira." perguntas usando o verbo ler. Ainda aos 5;1, Vítor interpreta ler como
"E isto?" (texto embaixo] "Cadeira."
equivalente a escrever, como muitas outras crianças de favela (com
Quando Vítor tem 5;1 nós lhe apresentamos a figura de uma maior freqüência entre três e quatro anos que aos cinco anos). Assim,
quando pedimos a essas crianças que tentem ler um texto, elas
boneca e uma série de cartões com textos, pedindo-lhe que procure o
escrevem; quando lhes pedimos que mostrem onde podem ler, elas
cartão que "combina com a boneca". Vítor pega qualquer um sem
mostram os espaços em branco em volta das letras, mas não as
escolher:
próprias letras.
É evidente que a conceitualização da atividade que chamamos ler
é muito mais complexa do que a que chamamos escrever. A atividade
de escrever tem um resultado observável: uma superfície na qual
2
A partir de agora, a idade das crianças será indicada em anos e em meses da
seguinte maneira: 4;2, que significa quatro anos e dois meses.
se escreve é transformada por causa dessa atividade; as marcas que Segundo período
disso resultam são permanentes, exceto se uma outra ação as destrua.
Ao contrário, a atividade de ler não dá resultado: ela não introduz O estabelecimento de condições formais de "legibilidade" (logo,
nenhuma modificação ao objeto que acaba de ser lido. A voz pode de "interpretabilidade") de um texto marca o início do segundo dos
acompanhar essa atividade, mas esta pode também ocorrer em três períodos fundamentais da organização da escrita na criança. As
silêncio; quando a voz é audível, é preciso então aprender a distinguir propriedades específicas do texto tornam-se então observáveis.
a palavra que resulta da leitura dos outros atos de palavra (os Quando pedimos às crianças que classifiquem uma série de cartões em
comentários que podem ser feitos sobre o que acaba de ser lido e que "os que dão e os que não dão para ler", vemos por várias ocasiões
podem estar acompanhados de todos os outros indicadores visíveis da aparecerem esses dois critérios fundamentais (cf. Ferreiro e Teberosky,
atividade de leitura: os olhos fixando o texto, as mãos perto do texto 1979; Ferreiro et al., 1979; Ferreiro et al., 1982)3. Em uma sondagem
etc). de confirmação efetuada com crianças de fala francesa, em Genebra,
Antes de as letras tornarem-se objetos substitutos, assistimos a crianças de quatro e cinco anos expressaram-se assim:
esforços para estabelecer relação entre os textos e as figuras que lhes — Um cartão com quatro a, emendados em letra cursiva, não
são próximos: à denominação do objeto representado pela figura "dá pra ler" porque "é tudo vezinhos malfeitos"*, ou porque "tem
sucede o estabelecimento de uma relação de pertinência entre o texto bolas" (subentendido "tem somente bolas"). Outras crianças o recusam
e a figura, e é somente em seguida que se torna possível interpretar o porque vêem ali um desenho: "É tudo ondinhas"**. Isto é importante:
texto. Vítor emprega a expressão "letras para. . ."; outras crianças a distinção adquirida no nível precedente entre o icônico e o não-
empregam as expressões "letras de..." ou "é o nome de...". icônico não se perde; ao contrário, ela se integra às novas construções.
— Um cartão que apresenta quatro M (MMMM) é recusado
Em todas as situações, a idéia que guia a busca de interpretação
pela criança é que: no texto está o nome do objeto (do objeto real ou porque "é tudo a mesma coisa", "só tem destes assim", "não está
do objeto desenhado). Para marcar bem a distinção entre o que é escrito nada porque tem muito deste" ("c'est écrit rien du tout parce
desenhado e o que é escrito, as crianças recorrem a uma diferença qu'il y en a beaucoup") (subentendido, "muitos do mesmo").
bastante refinada no nível da linguagem. Elas utilizam o artigo — O critério de variação intrafigural é, às vezes, levado ainda
indefinido quando falam do objeto ou da figura, e enunciam o nome mais longe; nenhuma letra pode se repetir. Por exemplo, um cartão
sem artigo quando se trata de interpretar o escrito. Pudemos observar com o texto lolo é rejeitado por certas crianças porque "tem duas
(Ferreiro e Teberosky, 1979) que essa diferenciação no nível da letras da mesma coisa". Mesmo quando se trata de uma palavra de
linguagem é — nas crianças de fala hispânica — uma das indicações verdade, por exemplo, um cartão com a palavra non (não), esta
mais seguras da transformação das letras (organizadas em séries) em exigência de variação estrita pode aparecer: a palavra não dá para ler
objetos substitutos.
Na verdade, o que é interpretável não é uma letra isolada mas
3
uma série que deve preencher duas condições formais essenciais: ter Outros critérios de classificação são igualmente utilizados mas têm uma
uma quantidade mínima e não apresentar a mesma letra repetida importância secundária na psicogênese e, por isso, não faremos sua análise
aqui. Trata-se das distinções entre a escrita cursiva e as grafias separadas, en-
(variação intrafigural). Dizemos "letras", mas de fato deveríamos falar tre letras e pseudoletras, entre algarismos e letras.
de grafemas não-icônicos que funcionam, para a criança, como letras * Trata-se, naturalmente, do diminutivo do grafema vê. (N. da T.)
(pouco importa sua semelhança gráfica com os caracteres do alfabeto). ** Na tradução das falas infantis deste trecho, bem como de outros desta
De fato, também pode tratar-se de "verdadeiras" letras, como de obra, tenta-se colocar as falas e expressões espontâneas correspondentes
algarismos, de "quase-letras" ou de "pseudoletras", ou simplesmente às da criança em português, para que não se perca exatamente seu caráter de
de séries de bolas e de barras verticais. espontaneidade. (N. da T.)
porque "tem duas letras da mesma coisa e depois uma bolota", ou Quantidade mínima e variação intrafigural definem, no nível
então, de forma ainda mais explícita, nos termos de uma outra intrafigural, os dois eixos de diferenciação que serão elaborados e
criança: "é errado se é feito duas vezes a mesma coisa". reelaborados a seguir: o eixo de diferenciação quantitativo e o eixo de
— No que se refere à quantidade mínima de grafias, quando há diferenciação qualitativo. Porém, além disso, esse realce às
apenas uma letra, essas crianças são unânimes: "não dá pra ler nada". propriedades específicas do texto (produto de uma nova centração
Um cartão com um E e outro com um D são recusados "porque tem cognitiva) permite ultrapassar a dicotomia anterior referente à
só um", "não tem bastante, há só um, seria preciso muitos". Algumas interpretabilidade dos textos. Durante o primeiro período, os textos
crianças se contentam com duas letras, mas outras exigem ao menos são interpretáveis quando as condições contextuais o permitem
três; diante de um cartão com as duas letras EA, elas justificam sua (porque se reconhece o objeto no qual ele se encontra ou porque ele
recusa dizendo "porque tem duas"; "só tem duas palavras: a, e"; "não está próximo de uma figura); eles "não dizem nada" e voltam a ser
dá pra ler só com duas". Desde que haja três letras em um cartão, as simplesmente "letras" na ausência de um contexto que permita
crianças tornam-se de novo unânimes: com três é certeza que se possa construir uma significação. Em compensação, desde que as condições
ler (sob a condição, porém, de que as três sejam diferentes. . .)4. de legibilidade que acabamos de expor tenham sido elaboradas, os
Três observações parecem-nos importantes a propósito da textos se dividem de outra forma: alguns são imediatamente
quantidade mínima: que a criança nomeie bem as letras em questão, interpretáveis (como antes), outros potencialmente interpretáveis
mas recuse o cartão, como no exemplo precedente ("só tem duas (porque apresentam as condições formais requeridas) mesmo se não é
palavras: a, e"); que ela utilize as denominações convencionais ou possível atribuir-lhes imediatamente uma interpretação; outros ainda
não, sem que isso tenha conseqüência sobre a aplicação do critério de não são interpretáveis, mesmo se o contexto é fornecido (quando a
quantidade mínima (no mesmo exemplo, a criança usa a expressão quantidade de letras está abaixo do mínimo ou quando os critérios de
"duas palavras" querendo indicar "duas letras"); enfim, que a presença variação intrafigural não estão atendidos).
de três letras considerada como uma condição necessária de Dizemos intrafigurais, utilizando uma das denominações que
interpretabilidade do texto não quer dizer que a criança seja capaz de Piaget e Garcia (1983) empregaram para distinguir os grandes
interpretá-lo nem mesmo que procure encontrar uma interpretação. períodos de organização do pensamento científico e da psicogênese.
Gabriel (4;7) escreve três letras, olha-as e comenta: "Com tudo isto já Essa denominação nos parece de igual modo pertinente aqui, em
pode dizer alguma coisa" ("Con todo esto ya puede decir algo")5. relação às características específicas desse momento da evolução e em
4 relação aos modos de diferenciação interfigural (segundo a
Para mostrar melhor que não se trata do reconhecimento de palavras denominação dos mesmos autores) que fazem sua aparição logo em
pertencentes efetivamente à escrita da língua, basta dizer que o cartão com a
seguida.
palavra non (não) foi aceito como próprio para ler em 50% dos casos,
enquanto as mesmas crianças aceitaram a "não-palavra" VST em 91% dos Quantidade e variação intrafigurais são critérios absolutos e não
casos (numa amostra de 22 crianças de quatro e cinco anos). relativos. Eles não permitem comparar as escritas entre si mas
estabelecer quais delas podem ou poderão ser interpretáveis. Prova
5
Resultados preliminares obtidos em inglês por Y. Freeman e L. White-sell disso é que o mesmo texto pode receber interpretações diferentes se
(1985) confirmam nossos resultados referentes à quantidade mínima (a maior os contextos são diferentes; da mesma forma, dois textos diferentes
parte das crianças consideram três caracteres como o requisito mínimo) c a podem receber a mesma interpretação se os contextos são parecidos
exigência de variação interna. As crianças de fala inglesa se exprimem assim: (por exemplo, dois textos diferentes podem "dizer" o mesmo nome se
— Um cartão com uma só letra não dá para ler porque "it doesn't have any eles são atribuídos a figuras que recebem a mesma denominação;
more letters", "has to have lots of letters", "has to have more letters". inversamente, dois textos reconhecidos como iguais podem "dizer"
— Um cartão com quatro B (BBBB) é rejeitado porque "it has too many
dois nomes diferentes se colocados em relação com figuras que não
B's"; "they are all the same" etc.
recebem a mesma denominação).
Um grande avanço se opera quando as crianças elaboram um quantitativo ou qualitativo e buscando progressivamente uma coordenação
novo critério, que pode ser assim enunciado: para que se possa "ler" de ambos.
coisas diferentes, é preciso uma diferença objetiva nos próprios textos Para diferenciar uma palavra escrita de outra, a criança pode procurar
(independentemente do contexto e das intenções do produtor). O mudar as letras que a compõem. Contudo, como ela não se permite repetir
problema que então se coloca — do ponto de vista desse produtor de muitas vezes a mesma letra na mesma representação6, é-lhe necessário
textos que vem a ser a criança em desenvolvimento — é o de como dispor de um repertório de letras bastante amplo para poder escrever cinco
criar diferenças nos textos para representar palavras diferentes. ou seis nomes diferentes. Muitas crianças não dispõem de um repertório
Começa então uma laboriosa busca de modos de diferenciação entre suficientemente vasto de grafias diferentes. Em lugar de inventar novas, elas
as representações escritas, oscilando alternativamente sobre os eixos encontram uma solução notável, ao entender que, mudando a posição das
letras na ordem linear, obtêm-se totalidades diferentes. Quando a
(1) quantidade é mantida fixa, essa combinatória se manifesta em estado puro,
como na figura 1.
Na figura 2, vê-se o primeiro exercício de combinatória, sem nenhuma
(2)
interpretação consecutiva, efetuado por uma criança muito pequena (3;8)
que se exercita por si própria na busca de modos de
(4)

(3)

(5)

(6)

(1) Armando.
(2) Elefante. (Aqui, e nas seguintes, Armando pretere desenhar antes
de escrever.)
(3) Jirata (girafa).
(4) Venado (veado).
(5) Gato (gato).
(6) Perro (cachorro)*. 6
A regra que as crianças de fala hispânica tentam seguir é a de não pôr mais
de duas vezes a mesma letra em uma série interpretável (então, em um
nome escrito); se houver repetição, deve-se tentar não localizar a letra
* Para melhor compreensão do texto, foram mantidas as expressões em
espanhol. (N. da T.) repetida em posição contígua à sua similar. Assim, uma série tal como
EATEM é aceita, enquanto a série MTEEA é evitada.
representações e as variações quantitativas no objeto referido. O
raciocínio é então o seguinte: os nomes dos objetos maiores deveriam
ser escritos com mais letras que os dos objetos pequenos, o mesmo
(1)
para o mais espesso, o mais pesado, o mais numeroso, ou o mais
(2) velho. As crianças se exprimem assim:

Martin (5; 7) escreve quatro letras para gato e o dobro para gatos,
(3)
acrescentando que essa palavra vai "com muitas letras porque tem
(4)
muitos gatos".
(5)
(6) Jorge (5;3) escreve urso com três letras e ursinho com apenas
duas. Quando lhe perguntamos por que ele pôs duas letras, responde:
(7)
"Porque... ele é pequeno".
(8)
Antonio (4; 11) pensa que a palavra elefante deve ser escrita com
cinco letras porque "ele pesa quase mil quilos!".
(1) Yolanda. (5) Coche (carro).
(2) Muñeco (boneca). (6) Tren (trem). No passado, acreditamos ter visto, nessas tentativas de colocar
(3) Pelota (bola). (7) Avión (avião).
(4) Camión (caminhão). (8) Avión (avião) (segunda tentativa) em correspondência os aspectos quantitativos da representação (o
número de letras) e os aspectos quantificáveis do objeto referido, indi-
cações de uma dificuldade de diferenciar a escrita do desenho. Porém,
diferenciação, utilizando seu repertório de cinco letras e tentando estamos agora convencidos que este não é o caso. É uma busca formal
manter fixa a posição da primeira letra. que dirige as explorações das crianças e não uma dificuldade de se
A busca de critérios de diferenciação no eixo quantitativo leva a
desligar do desenho. Certos dados fundamentais apóiam essa
criança a procurar variar a quantidade de grafias para escrever palavras
interpretação. Primeiro, essas respostas estão longe de ser respostas
diferentes. Mas, como a criança não pode permitir-se ficar aquém da
primitivas: elas aparecem em crianças que já começaram a elaborar a
quantidade mínima exigida (para não se arriscar a produzir alguma
exigência de quantidade mínima e que, além disso, tentam manter sob
coisa não interpretável), as variações de quantidade devem situar-se
acima desse mínimo, mas não muito (para não se arriscar a escrever controle a quantidade máxima. Para elas, a diferenciação entre o que é
mais do que a palavra pretendida). Vemos então as crianças tentarem desenho e o que é escrita já é algo adquirido. Em segundo lugar, e isso
controlar, ao mesmo tempo, o mínimo e o máximo, e produzir é muito importante, é preciso salientar que a busca de uma
variações dentro de um intervalo bem delimitado (entre três e sete correspondência entre os aspectos da representação e os aspectos do
caracteres, por exemplo) (fig. 3). Quando as crianças tentam variar objeto referido leva em conta exclusivamente os aspectos quantificáveis
somente a quantidade, elas podem empregar a regra seguinte: escreve- do referido e os aspectos quantitativos da representação. Essas
se uma palavra com três letras diferentes, a palavra seguinte com as crianças nunca pensam em escrever com letras redondas os nomes dos
mesmas e uma a mais, e assim por diante. Naturalmente, esse objetos de forma circular, nem em escrever com letras mais quadradas
procedimento centrado nas variações quantitativas introduz ou pontudas o nome de objetos com essas formas. Enfim, admite-se
forçosamente variações qualitativas. que esse procedimento, embora presente em muitas crianças, possa ser
Um outro procedimento utilizado pelas crianças é o seguinte: explorado quando se pede à criança que escreva duas ou três palavras,
tentar fazer correspondência entre as variações quantitativas nas
porém dificilmente mais do que isso, porque tal coisa implicaria que claro, uma diferença qualitativa, mas ela não é procurada enquanto tal.
ela fosse capaz de classificar qualquer conjunto de objetos em relação Ao contrário, Mariana busca conservar uma semelhança qualitativa,
a um parâmetro de comparação estável e sistemático, o que está além simplesmente introduzindo diferenças quantitativas: "com as mesmas
das capacidades cognitivas dessas crianças. (letras), mas menos (das mesmas)". As diferenças quantitativas nas
Às vezes, as crianças variam as próprias letras tentando ajustar a representações exprimem as diferenças de tamanho entre galo, galinha
representação com aspectos do objeto referido, aspectos estes também e pintinho. As letras comuns preenchem uma outra função: servem
quantificáveis. Por exemplo, Valéria (quatro anos) escreve seu nome para expressar semelhanças entre os animais cujos três nomes estão
com seis letras, depois declara que vai escrever o nome de seu pai escritos (o "laço de família" unindo-os). Coordenação de semelhança
mas com "letras compridas porque o nome de papai é comprido". Ela com diferenças e tentativa de coordenação entre os modos de
escreve então as mesmas seis letras (em outra ordem) e todas mais diferenciação quantitativos e qualitativos estão presentes nesse
compridas que as anteriores. magnífico exemplo.
Chegamos então à conclusão que é em função de uma busca Uma das situações que permitem esclarecer essas tentativas de
puramente formal (encontrar a razão e, então, o meio de controle das coordenação de semelhanças e diferenças é a escrita de um nome e de
variações quantitativas entre as representações escritas) que a criança seu diminutivo (Ferreiro et al., 1979). Em espanhol, como em outras
pode ser levada a orientar sua procura para as propriedades do objeto línguas, essa situação é fonte potencial de conflito uma vez que a
referido. Esse momento da evolução não deve absolutamente ser construção do diminutivo se faz por adjunção de um sufixo (-ito, -ita),
considerado como um momento "concreto" em relação a outros de modo que a palavra fica mais comprida quando se quer designar
"abstratos" que se manifestariam em seguida. Não é a dificuldade de um objeto menor. O nome e seu diminutivo são duas palavras
se liberar do concreto que impele a criança a buscar nessa direção; ao diferentes, de um certo ponto de vista, mas comportam semelhanças:
contrário, é sua própria busca de princípios formais que a conduz para são diferentes no comprimento do significante e quanto aos objetos
o concreto. referidos, mas semelhantes do ponto de vista da significação (um
O exemplo seguinte é particularmente ilustrativo. Mostramos a cachorrinho continua a ser um cachorro). A experiência foi
Mariana (4;3) a palavra GALLO (galo) e perguntamos-lhe se é recentemente reproduzida em italiano8, e vamos relatar exemplos
preciso pôr o mesmo tanto, mais ou menos letras para escrever nessa língua — que coincidem inteiramente com os da língua
gallina (galinha). Mariana responde que é preciso menos letras espanhola — produzidos por crianças que ainda não procuram
porque "a galinha é menor", e ela escreve então GALL. Quando lhe nenhuma relação entre a representação escrita e o pattern sonoro da
pedimos que escreva pollito (pintinho), Mariana diz: "com as palavra.
mesmas, mas menos" ("con las mismas, pero menos"), e escreve Entre os sete tipos diferentes de resposta que pudemos identificar
GAL7. em crianças de quatro a seis anos, três nos interessam aqui:
Esse exemplo nos mostra a utilização de meios de diferenciação
quantitativos interfigurais, tendo um modelo externo (a palavra 1) Certas crianças escrevem exatamente a mesma coisa para uma
escrita GALLO) como ponto de partida. Para diferenciar um nome palavra e seu diminutivo, indicando, de formas diversas, que não é
escrito de outro é suficiente tirar uma letra. O resultado comporta, é pertinente introduzir uma diferença: "Cagnolino è la stessa scritta di
cane perché è sempre un cane", diz claramente Tiziano (6;2) -
7
Mariana não pensa em representar as diferenças sonoras entre as palavras
(Cachorrinho se escreve como cachorro porque é sempre um
escritas. Isto se torna ainda mais claro quando lhe mostramos (no mesmo dia) o cachorro).
escrito PA, dizendo-lhe: "Escrevi pa, como fazer para ficar papal (papai);
8
Mariana acrescenta duas letras bem diferentes; o resultado é PAZM. Com o Os pares de palavras utilizados foram casa/ casetta e cane/ cagnolino
escrito NE e o pedido: "Escrevi ne, como fazer para ficar nene?" (nenê); ela (trabalhos de pesquisa realizados por M. L. Monti e M. Bove sob a direção
produz resultados parecidos com os anteriores. de C. Pontecorvo, Universidade de Roma, 1983, mimeo).
2) Outras crianças, para escrever o diminutivo, fazem uma cópia representação10. É dentro de um certo conjunto de escritas produzidas
de sua escrita da palavra, mas com letras menores: "Scrivo casetta durante um curto período de tempo que se vê a criança afirmar que
con numeri piccoletti", diz Sara (4; 8) (Escrevo casinha com números tal representação "diz" tal palavra (com a exclusão de outras desse
bem pequenininhos). conjunto). Esses modos de diferenciação são, então, interfigurais mas
não-sistemáticos. Com o período seguinte, assistiremos à procura de
3) Outros ainda, para escrever o diminutivo, fazem uma cópia
uma sistematização. Ora, para melhor perceber a significação dessa
de sua escrita da palavra, mas omitindo uma ou duas letras: Giuditta
passagem, é necessário apresentar antes certos problemas de natureza
(6;0) escreve casa com cinco letras e casinha com apenas as três
lógica que a criança tenta resolver para compreender a natureza do
primeiras, e se justifica dizendo que escreve casa "maior que casinha
objeto que a escrita socialmente constituída vem a ser.
porque é mais comprido" ("Ho scritto casa più grande di casina
perché è più lungo").

As respostas 1 mostram uma centração exclusiva nas Problemas lógicos levantados pela compreensão do sistema
semelhanças entre as duas palavras, ignorando as diferenças. alfabético
Entretanto, elas são de grande interesse porque permitem apreciar que
essas crianças são capazes de se centrar no aspecto conceituai da O problema da relação entre a psicogênese das categorias
significação, e não no objeto referido. lógicas do pensamento e a aprendizagem da língua escrita levou a
duas posições opostas. Para alguns, não há espaço para se colocar um
As respostas 2 e 3 são tentativas muito bem sucedidas de
problema desse gênero porque a aprendizagem da língua escrita é
coordenação entre semelhanças conceituais e diferenças nos objetos
concebida como a aprendizagem de uma técnica para transcrever
referidos. Na solução 2, que consiste em tornar menores as mesmas
sons11. Para outros, ao contrário, as categorias lógicas do pensamento
letras, a criança consegue conciliar a igualdade conceituai
parecem ter um papel de pré-requisito, de modo que eles postulam o
(representada pelas mesmas letras) com as diferenças no objeto
nível de estruturação lógica próprio das operações concretas como
referido (representadas pelas diferenças de tamanho entre as letras),
necessário para iniciar essa aprendizagem.
enquanto na solução 3, que consiste em pôr menos letras, as
diferenças quantitativas entre os objetos referidos estão representadas Essa segunda posição, apresentada como piagetiana, é que deve
pelas diferenças na quantidade de letras, representando ao mesmo aqui nos ocupar. Suas premissas são (aproximadamente) as seguintes:
tempo a semelhança conceituai pela semelhança das letras. é evidente que, para compreender o sistema alfabético, a criança tem
de estar em condições de examinar a ordem das letras em uma série,
Dizemos que esses modos de diferenciação (qualitativos e
pois as mudanças de ordem das mesmas letras permitem efetuar
quantitativos) são interfigurais porque asseguram a diferença de
distinções pertinentes no nível da escrita (a série MALA e a série
representação entre palavras diferentes9. Não se pode jamais julgar o
LAMA devem ser discernidas como duas seqüências diferentes,
nível de conceitualização de uma criança em função de uma produção
apesar do fato de seus elementos serem os mesmos); é igualmente
isolada. É dentro de um conjunto de palavras escritas que se pode ver
como ela tenta introduzir uma diferenciação. Naturalmente, isso em
nada assegura que uma certa palavra receba sempre a mesma 10
Ao longo de todo esse período intervém, entretanto, um reconhecimento
progressivo de séries de palavras com interpretação estável. A escrita do
próprio nome é um elemento chave nessa história, mas não podemos, aqui,
tratar de sua significação em todos os detalhes (Ferreiro, 1986).
9
A. Teberosky (1984) colocou em evidência o uso desses modos de diferenciação
11
em crianças de um contexto bilíngüe (catalão-espanhol) quando o nome de um Trataremos da concepção de língua escrita subjacente a essa posição na
mesmo animal é escrito nas duas línguas. parte final deste capítulo.
claro que a criança tem de estar apta a efetuar classificações, mesmo bebê anda de bicicleta, para empregar a imagem de P. Gréco.) No
porque deve reconhecer como sendo a mesma letra uma série de campo que nos diz respeito, como uma criança lê antes de ler? (no
formas que recebem a mesma denominação, a despeito de diferenças sentido convencional do termo); como ela escreve antes que sua
gráficas por vezes muito acentuadas (não há, por assim dizer, produção seja reconhecida pelos outros como escrita?
semelhança entre um A, um a e as cursivas correspondentes)12. O segundo pressuposto implícito nessa forma de raciocínio —
O argumento resulta na conclusão que, se a criança deve também contrário ao essencial da investigação psicogenética — é o
classificar e seriar e se tais operações caracterizam o período das seguinte: é preciso esperar que a lógica seja constituída para que ela
operações ditas concretas, é melhor esperar que ela se coloque nesse possa ser aplicada a novos conteúdos. Mas então, como ela se
período para ter garantias de sucesso na aprendizagem da língua constitui? "A lógica não é estranha à vida: ela é simplesmente a
escrita. expressão das coordenações operatórias necessárias à ação" (Piaget e
Há, pelo menos, dois pressupostos implícitos nesse raciocínio, Inhelder, 1955, p. 304). A dicotomia é clara: ou as operações
ambos profundamente contrários ao ponto de vista psicogenético sobre cognitivas são a resposta do sujeito aos problemas colocados pelo
o desenvolvimento. O primeiro consiste em fazer coincidir o início de mundo, o qual ele tenta compreender (para poder agir agindo sobre ele),
um conhecimento — no caso, a língua escrita — com o início de sua ou as operações cognitivas são o produto de processos puramente
apresentação escolar. Não é necessário insistir no caráter errôneo dessa endógenos. Em outras palavras, ou os processos de estruturação do
idéia: toda a obra de Piaget é uma admirável demonstração do ponto real têm algo que ver com a gênese das estruturas lógicas, ou estas se
de vista oposto. Para chegar a compreender um modo de funcionamento desenvolvem apoiando-se sobre os objetos, mas sem apreender seus
psicológico, é preciso reconstituir a gênese, como Piaget repetiu tantas conteúdos.
vezes. Na laboriosa busca de tudo o que precede o funcionamento a Em um prefácio pouco conhecido, Piaget (1971), discutindo as
estudar, é sempre necessário colocar as perguntas iniciais: como a relações entre as operações cognitivas e o desenvolvimento da
criança classifica antes de estar em condições de classificar? (Como um linguagem, assim se exprime:
12
"Esse papel pode, de fato, ser interpretado de duas maneiras distintas.
D. Elkind (1976) sustentou, além disso, que uma dificuldade maior se situa Conforme a primeira, as operações lógico-inatemáticas se desenvolveriam
no nível do conceito de letra. Segundo esse autor, o conceito de letra é ainda de forma autônoma em domínios bem circunscritos: seriar, classificar,
mais complicado que o de número, mas tem em comum com este último que contar, etc, objetos, sem nada buscar além de obter seriações,
"as letras, tanto quanto os números, têm uma propriedade ordinal que é sua classificações, uma seqüência de números inteiros, correspondências, etc,
posição no alfabeto, assim como uma propriedade cardinal que é o nome que assim como suas leis constitutivas (transitividade, inclusões quantificadas,
cada letra partilha com as outras do mesmo nome (todos os B são B etc.)" (p. iterações, conservação de equivalências etc.). Essas operações, uma vez
333). Ora, esse argumento é falacioso porque não se pode colocar no mesmo constituídas (...) aplicar-se-iam em seguida a múltiplos conteúdos novos e a
plano a ordem arbitrária do alfabeto com a ordem inclusiva da série nu- problemas diferentes (...).
mérica: no 3 estão incluídos o 1 e o 2, mas no C as letras precedentes (A e B) Mas uma segunda interpretação é mais provável. Poderia ocorrer que, em
não estão incluídas. Por outro lado, quando esse autor busca a unidade da todos os domínios ao mesmo tempo, quando, diante de dificuldades mais
escrita (em um paralelismo com a unidade numérica), ele considera que essa ou menos equivalentes, um problema comum se colocasse (...) o sujeito
unidade é a letra. Dessa forma, a aprendizagem da escrita logo surge como reagiria por um mesmo jogo de regulações, ou seja, a equilibração por
uma adição de letras, sem que seja justificada a escolha dessa unidade. O compensação das perturbações, do que resultaria uma estrutura mais ou
autor conclui dessas pré-concepções que "o surgimento das operações menos geral (operação ou função operatória). (...) Essa segunda solução,
concretas" é um dos pré-requisitos para iniciar a aprendizagem da leitura (p. que é a de E. Ferreiro como também a nossa (e cremos tê-la verificado no
335). Voltaremos a essa questão controversa dos pré-requisitos. Em um texto domínio da causalidade), não significa naturalmente que as estruturas
mais recente, Elkind (1981) acrescenta outras precisões (ainda mais lógicas constituam um produto ou um derivado das estruturas lingüísticas,
pois que elas seriam, ao contrário, o resultado comum de todas as
discutíveis) sobre a aquisição da leitura e a intervenção das operações nesse
regulações em todos os domínios ao mesmo tempo (...)".
domínio, sem renunciar à sua posição original: as operações devem, primeiro,
ser constituídas para, depois, serem aplicadas às unidades-letras.
Torna-se então possível colocar em termos novos a relação entre aos seus elementos constitutivos, apesar de que, tomados fora dessa
o desenvolvimento lógico e a compreensão da escrita na criança. totalidade, esses mesmos elementos percam a propriedade de ser
Conseqüentemente, é evidente que se espera encontrar a lógica significantes. Por exemplo: as crianças podem reconhecer seu nome
precocemente em ação (não a lógica constituída mas uma lógica no escrito ou fazer tentativas de escrita de seu nome com graus diversos
curso de sua formação). Trata-se contudo de saber quais são de sucesso, sem que isso as impeça de acreditar que cada parte desse
exatamente os problemas de natureza lógica e como eles são colocados nome escrito "diz" também o nome completo. O observador pode
nesse terreno específico. Por outro lado, dado que as estruturas lógicas
comprovar esse fenômeno escondendo uma parte do nome e pergun-
constituem ao mesmo tempo as condições da leitura da experiência e
o resultado de tentativas de estruturação do objeto de conhecimento, tando se no que fica visível "diz ainda" o nome enunciado antes, ou se
trata-se de compreender como se apresenta essa relação no caso aquilo "diz" outra coisa13. Mesmo no nível da frase escrita — as
particular da língua escrita. partes sendo então grupos de letras separados por espaços em branco
—, as crianças podem aceitar que uma frase enunciada corresponde à
Até o presente, pudemos dar uma resposta inicial a essas
questões, mostrando em detalhe como, no caso da psicogênese da escrita, transcrição que dela se faz, sem estar, no entanto, em condições de
colocam-se os problemas lógicos seguintes: relação entre a totalidade aceitar que sua forma escrita comporta cada uma das palavras que a
e as partes; coordenação de semelhanças e diferenças; construção de compõem. Assim, quando fazemos as perguntas sobre a significação
uma ordem serial; construção de invariantes; correspondência termo a das partes (grupos de letras rodeadas pelos espaços em branco), elas
termo. Acabamos de apresentar alguns exemplos de coordenação de nos respondem enunciando a frase inteira14.
semelhanças com as diferenças. Vamos agora tratar especialmente da As propriedades atribuídas à totalidade são então diretamente
relação entre a totalidade e as partes e da correspondência termo a atribuídas às partes, uma vez constituída a totalidade.
termo, pois esses dois problemas lógicos estão no âmago da evolução Algumas tentativas de diferenciação podem, entretanto, aparecer
do segundo ao terceiro dos três grandes períodos do desenvolvimento já nesse nível. Por exemplo, na interpretação das partes de seu próprio
que expomos. nome, certas crianças tentam atribuir às diferentes partes visíveis uma
das partes (na verdade, uma palavra completa) de seu nome quando
este é substantivo composto; ou ainda uma das partes de seu sobrenome,
Relação entre a totalidade e as partes constitutivas no caso em que o sobrenome corresponde àquele do pai e àquele da
mãe (o que ocorre no México). A criança pode mesmo atribuir nomes
de outros membros da família ou de amigos às partes visíveis do seu
Tomemos como ponto de partida o momento em que as letras já
próprio nome. Eis alguns exemplos:
foram admitidas pela criança como objetos-substitutos. Desde que
uma série de letras receba uma certa interpretação (em função das Leonel (seis anos) não sabe ainda escrever seu nome, mas conhece
propriedades contextuais, das intenções subjetivas do produtor do suas duas primeiras letras e aceita como correta a escrita que dele
texto ou por transmissão social aceita), o problema é saber se, dada o adulto faz. Quando escondemos as partes dessa escrita, ele dá as
essa interpretação do conjunto, é também possível à criança dar uma interpretações seguintes:
(LEO / / /) "Isto aqui ainda quer dizer Leonel?" "Não."
interpretação às partes constitutivas. "O que isto quer dizer então?" "Fernando."
Ora, no início, os elementos gráficos (letras) não são nada mais "Quem é Fernando?" "É meu amigo."
que os "tijolos" necessários para a constituição de uma totalidade (/ / / NEL) "E assim, isto quer dizer Leonel?" "Não."
interpretável. Uma vez constituída essa totalidade, as propriedades
atribuídas a ela são simplesmente transferidas às partes. Por exemplo, 13
Ferreiro e Teberosky, 1979, cap. VI; Ferreiro et al., 1982, vol. 4.
o nome atribuído a uma série de letras pode também ser atribuído
14
Ferreiro e Teberosky, 1979, cap. IV; Ferreiro et al., 1982, vol. 4.
"Isto quer dizer o quê, então?" "Carlos." no plural. As propriedades das partes e as da totalidade não são as
"Quem é Carlos?" "É outro amigo." mesmas. Essa solução é satisfatória mas não é generalizável nem
(//ON//) "E assim?" "Gerardo."
"Quem é?" "Um outro amigo."
estável, porque ela entra em contradição com uma exigência
(LEONEL) "E assim?" "Leonel." construtiva muito importante e poderosa: a exigência de quantidade
mínima, segundo a qual uma escrita é sempre composta de partes (uma
Adriana (4;5) escreve seu nome com um traçado em ziguezague, em letra apenas não é suficiente para criar uma palavra escrita).
quatro pedaços Para que ela seja generalizável a um conjunto, este deveria ter, ao
menos, tantos elementos quanto a quantidade mínima de letras exigida
"O que diz aqui?" "Adriana."
"Onde que diz?" (Indica o conjunto dos
pela criança (há uma tendência muito generalizada de considerar três
quatro pedaços.) como a quantidade abaixo da qual não se pode chegar sem correr o
"Por que você pôs quatro pedacinhos?" ".. .Porque sim." risco de obter alguma coisa impossível de interpretar). Mais ainda,
"O que é que está escrito aqui?" "Adriana." quando a criança tenta escrever o nome de um objeto singular, ela é
(primeiro pedaço) forçada a escrever mais de uma letra e, então, ela não compreende
"E aqui?" (segundo pedaço) "Alberto." mais a relação entre cada letra e a seqüência de letras. Por isso, na
(nome de seu pai) maior parte dos casos, a relação que cada letra mantém com a
"E aqui?" (terceiro pedaço) "Ale."
(abreviatura habitual
totalidade interpretável permanece obscura para ela.
de Alejandro, nome de É importante destacar que, nesse mesmo nível de
seu irmão) desenvolvimento, pode-se observar dois modos de construção de
"E aqui?" (quarto pedaço) "Tia Picha." representações dos substantivos no plural. Quando as crianças
escrevem primeiro o nome de um conjunto de objetos (um nome no
Carmelo (6;2) escreve seu nome com quatro letras assim: AEea. Para
a totalidade, sua interpretação é "Carmelo", mas letra por letra, sua
plural), elas ajustam, às vezes, o número de letras ao número de
interpretação é: "Carmelo" (A), "Enrique" (E), "Castillo" (e), "Avellano" objetos do conjunto; mas quando essas mesmas crianças escrevem um
(a). nome no singular e depois no plural (passando, por exemplo, de gato
para gatos, diferença audível em espanhol), elas fazem aparentemente
Em todos esses casos, é importante salientar que a criança outra coisa, mas obedecem, em realidade, aos mesmos princípios. Por
trabalha no nível de palavras inteiras, não decompostas: ou as partes exemplo, se a criança acaba de escrever três letras para gato, ela
são solidárias da totalidade a ponto de poderem receber a mesma caracteriza às vezes o plural repetindo duas ou três vezes a mesma
interpretação, ou elas aparecem como outras totalidades às quais se seqüência inicial (conforme o número de gatos em questão). Por
pode atribuir a significação de um nome inteiro. exemplo, Javier (5;5) escreve a série AOi para gato e a série OiA para
Ora, certas situações privilegiadas, mais facilmente que outras, gatinho; depois, quando lhe pedimos para escrever gatinhos (gatitos)
permitem à criança estabelecer uma relação entre a totalidade e as com referência a uma figura de três gatos, ele escreve novamente estas
partes. Por exemplo, Abraham (4;7) escreve carro (coche) com cinco letras (OAi), olha o resultado e comenta: "um gatinho"; ele acrescenta
letras quando se trata de confeccionar uma placa em um mostruário as mesmas três letras ao lado e diz: "os gatinhos aqui"; acresce mais
com cinco carrinhos em uma loja em miniatura. Da mesma forma, uma vez a mesma série (o resultado é OAiOAiOAi) dizendo "mais um
Paola (4; 11) põe cinco letras (que ela chama de "números") para uma gato".
cestinha com cinco maçãs, dizendo: "cinco números para que sejam Assim, em uma tarefa em que as crianças escrevem primeiro um
cinco maçãs" ("cinco números para que sean cinco manzanas"). nome no plural, basta uma letra para representar cada objeto porque
Nesses casos todos, cada letra conta para um objeto (um elemento não se trata de uma letra isolada (que não seria "legível" por si
do conjunto) e o todo representa tanto o conjunto como a palavra mesma) mas de um elemento de um conjunto. Olhar a quantidade de
objetos torna-se um dos meios possíveis para decidir o número de
letras que se deve colocar. As crianças que assim procedem são Victor (5;2) estima que um mínimo de três letras é necessário para
crianças zelosas por encontrar um meio objetivo de controle das obter uma totalidade interpretável. Ele nos pede que escrevamos barco
variações na quantidade de caracteres. Porém, se essas mesmas (barco). Nós escrevemos uma letra perguntando se está certo. Victor
crianças escrevem primeiro um nome no singular, elas precisam de responde que não, porque "aí tem só ba" (nomàs dice ba).
mais de uma letra e, aplicando o mesmo princípio como antes, elas Acrescentamos uma outra letra e a resposta de Victor é idêntica: "aí
repetem o nome já escrito, tantas vezes quantos forem os objetos do tem só ba". Só quando há três letras que ele fica satisfeito, porque
conjunto. O modo de construção corresponde a "gato, gato, gato", mas então ali diz barco.
a interpretação do conjunto é a da forma no plural "gatos". Casos como esse parecem-nos de grande interesse. Victor parece
Temos exemplos de construções do plural conforme esse raciocinar assim: a uma totalidade incompleta no nível da escrita deve
procedimento de iteração da escrita do singular, em diversas línguas. corresponder uma outra totalidade incompleta no nível da emissão
A figura 4 apresenta exemplos em italiano, espanhol e hebreu15. oral. Não se trata ainda da hipótese silábica — que veremos adiante,
As primeiras tentativas de coordenação entre a totalidade e as segundo a qual cada letra pode corresponder a uma parcela silábica da
partes podem apresentar-se em outras situações, como a seguinte: palavra — dado que com uma letra "aí tem ba" e que, juntando uma
outra letra, o escrito continua a "dizer" a mesma coisa. É antes uma
forma de explicar que com as duas letras o barco fica incompleto. Isso
é muito importante porque, em lugar de nos dizer que uma parte do
barco não está escrita ainda (o que seria o caso se a escrita fosse
concebida sob o modo icônico: um barco sem velas, por exemplo),
Victor faz referência à forma lingüística: um barco sem co não é um
barco completo. Assim agindo, Victor leva em conta, sem disso ter
consciência, o fato de que a forma lingüística falada — isto é, a
palavra — é também composta de partes, tal como a escrita cuja
produção ele controla.
A decomposição silábica da palavra tem um papel da mais alta
importância na seqüência do desenvolvimento. Trata-se, contudo, de
saber qual o sentido das interações entre os conhecimentos gerais
sobre linguagem e a compreensão da escrita. Duas hipóteses são
possíveis: conforme a primeira, um desenvolvimento progressivo da
noção de decomposição silábica das palavras16 ocorreria de maneira
independente e poderia, depois, aplicar-se à compreensão da escrita.
Conforme a segunda, seriam os problemas cognitivos colocados
pela compreensão da escrita — e muito particularmente o da relação
entre a totalidade e as partes — que levariam a criança à descoberta
do recorte silábico como a melhor maneira de resolver tais problemas.

15 16
Os exemplos em italiano provêm dos trabalhos de pesquisa da Universidade de Contribuímos para mostrar como o caráter psicológico da sílaba muda no
Roma, já citados; os em hebreu, dos trabalhos de pesquisa realizados em Telaviv por decorrer do desenvolvimento, graças a uma série de reconstruções sucessivas
Liliana Tolchinsky. (Bellefroid e Ferreiro, 1979).
Em outras palavras, de acordo com a primeira hipótese, é o A correspondência termo a termo
desenvolvimento no nível oral que conduziria a criança a uma
silabização progressiva, que encontraria, em dado momento, um ponto A idéia da correspondência termo a termo é solidária à hipótese
de aplicação na escrita; conforme a segunda hipótese, seriam duas as silábica, o que marca o ingresso no terceiro dos grandes períodos do
vias independentes de ação sobre a sílaba que depois se combinariam; desenvolvimento das conceitualizações a respeito da escrita. Porém,
mas a aparição da silabização seria uma resposta aos problemas ela não aparece exclusivamente durante esse período e, antes de
específicos acarretados pela compreensão da escrita, e não analisar suas manifestações mais marcantes, é útil recuar no tempo e
simplesmente a aplicação de uma habilidade obtida em outros ver de perto suas primeiras manifestações no domínio da compreensão
contextos. Não estamos ainda em condições de escolher nem uma das marcas escritas.
nem outra hipótese17. Para iniciar, eis a evolução de Sílvia (uma criança de favela,
Seja ela qual for, parece certo que essa relação entre completitude cujas vias de acesso à língua escrita são muito limitadas). Durante o
ano todo, ela escreve utilizando somente rodinhas (ver figura 5). Aos
e incompletitude abre o caminho para o surgimento de uma idéia
quatro anos (4;1), essas rodinhas são distribuídas ao acaso na página,
completamente nova: a idéia de que cada pedaço de um nome escrito
sem orientação privilegiada. Alguns meses mais tarde (aos 4;8), a
pode corresponder a uma parte do nome emitido. Nesta nova linearidade aparece e as rodinhas continuam presentes, formando uma
perspectiva, não apenas uma parte incompleta da palavra emitida e linha bem apertada, mas Sílvia não parece estar em condições de
que corresponde a uma parte incompleta da palavra escrita, mas, siste- controlar a quantidade de rodinhas que ela vai marcar. Entretanto, um
maticamente, cada parte da palavra emitida é considerada como mês mais tarde (4;9), quando lhe sugerimos escrever
correspondente a cada uma das partes da palavra escrita. Estão agora
reunidas as condições para o estabelecimento de um novo tipo de Sílvia
4;1
coordenação entre as partes e as totalidades, o qual acarreta uma nova
reorganização. A novidade consistirá, então, em considerar as
relações entre duas totalidades diferentes; de um lado, as partes da
palavra enunciada — suas sílabas — e a própria palavra emitida como
totalidade; de outro lado, as partes da palavra escrita — suas letras — 4;8
4;9
e a seqüência das letras da palavra escrita enquanto totalidade. Uma
correspondência termo a termo entre os dois conjuntos vai se
estabelecer, objeto do próximo item.
17
S. Vernon realiza, atualmente, pesquisas sobre esse assunto, sob nossa
direção. O problema é de grande importância pedagógica e refere-se ao
5;0
debate sobre os pré-requisitos e às atividades preparatórias da aquisição
escolar da língua escrita. Na realidade, muitos autores pregam atividades
orais de separação (não somente silábicas mas sobretudo fonéticas) como
preparatórias. Por outro lado, há dados convergentes permitindo apontar o
nível de cinco anos como a idade em que a maior parte das crianças estão em
condições de resolver tarefas de separação, de recorte silábico. Porém, todos
os resultados que aqui analisamos mostram a grande dificuldade da criança
em aplicar diretamente e imediatamente seus conhecimentos de linguagem
na compreensão da escrita. Esse problema toca de perto as questões teóricas
relativas aos processos de tomada de consciência em domínios relativos à
linguagem.
alguma coisa que se ajustasse a uma série de figuras, vemos Sílvia letras, o nome de cada um dos objetos da figura. Desse modo, o texto
levar em conta, cuidadosamente, os limites espaciais: ela começa uma LOS ANIMALES ESTAN EN EL RIO (os animais estão no rio),
série de rodinhas bem onde começa a figura (exatamente embaixo) e colocado abaixo de uma figura em que se vê um pássaro, um pato,
pára no ponto onde acaba a figura. Além disso, ela faz duas séries de três peixes e uma borboleta perto ou dentro da água — ou seja, tantos
rodinhas quando há dois objetos na figura. Aos 5;0 nós assistimos a segmentos no texto quantos são os animais na figura — ocasiona,
uma alteração notável em sua produção. Em lugar de traçar uma série freqüentemente, interpretações nas quais as crianças tentam considerar
de rodinhas para cada imagem, ela põe somente uma para cada objeto as propriedades quantitativas do texto (quantidade de grupos de letras)
ou personagem da figura. sem renunciar à idéia de que nada é escrito além dos nomes das
Sílvia não é a única a mostrar esse gênero de correspondência coisas.
(uma grafia para cada objeto). Em 33 crianças que acompanhamos Eis alguns exemplos (todos de crianças de seis anos)19.
longitudinalmente, destacamos: a) que essa correspondência estrita Colocamos entre parênteses o algarismo correspondente ao segmento
coincide com o momento da organização das letras como objetos- do texto interpretado (assim (1) corresponde a LOS, (2) corresponde a
substitutos; b) que esta correspondência estrita é precedida por um ANIMALES, e assim por diante):
período de ausência de controle da quantidade de grafias; c) que ela é
de duração muito curta; d) que ela é acompanhada de imediato pela — pato (1), borboleta (2), peixe (3), também peixe (4), este,
exigência da quantidade mínima18. peixe também (5), passarinho (6);
A correspondência um a um, no nível da produção de escritas,
— borboleta (1), peixe (2), pato (3), passarinho (4, 5, 6);
transforma-se logo após em uma correspondência de vários a um,
característica do aparecimento da exigência de quantidade mínima, — borboleta (1), peixe (2), um outro peixe (3), pássaro (4, 5),
com uma busca imediata visando regular, ao mesmo tempo, o mínimo pato (6);
e o máximo de grafias. O que vemos aparecer no nível da produção — passarinho (1), peixe (2), borboleta (3), pa (4), to (5), flores
tem um equivalente no nível da interpretação de textos, ainda que (6).
mais tardio. Na realidade, quando pedimos às crianças que
interpretem textos colocados perto de figuras, uma de suas idéias Dizemos exatamente que as crianças "tentam levar em conta"
persistentes consiste em antecipar no texto o nome do objeto porque, embora haja no texto tantos grupos de letras quantos são os
desenhado. Contudo, quando há vários objetos na figura e vários animais da figura, todos esses grupos de letras não são equivalentes:
grupos de letras no texto (o que para nós corresponde a uma frase dois grupos de letras em especial (EN EL) só apresentam duas letras,
escrita), as crianças tentam fazer corresponder, para cada grupo de o que para muitas crianças está aquém do mínimo requerido para
atribuir uma interpretação. E precisamente a propósito desses
18
segmentos curtos que vemos surgir ora tentativas de "ajuste" (juntar
Não nos foi possível observar todas essas condutas em todas as crianças esses "pedacinhos" em um único segmento e dar uma interpretação de
estudadas longitudinalmente. Fixando uma idade cronológica para o começo conjunto depois de ter eliminado os espaços em branco pelo próprio
de um estudo longitudinal, de forma alguma se tem assegurada a homogenei-
ato de reuni-los), ora tentativas de silabização (nesses "pedacinhos" não
dade nos níveis iniciais. Certas crianças mostraram esse tipo de
correspondência estrita no início do período durante o qual nós as
dá para ler uma palavra completa, mas somente uma parte de uma
acompanhamos; outras somente perto do fim de nosso estudo; outras ainda palavra).
— os casos mais instrutivos — em torno da metade do período de dois anos Como já expusemos, as partes de uma escrita — nos limites de
que constituía os limites de nosso estudo. Enfim, em certas crianças, nós não uma única palavra escrita — tornam-se progressivamente observáveis,
pudemos seguir tal progressão (as sessões individuais se desenrolavam em
19
intervalos de dois meses). Uma apresentação detalhada encontra-se em Uma apresentação em detalhe é encontrada em Ferreiro et al., 1982, vol. 3.
Ferreiro, 1982. Ver também Ferreiro, 1986.
o que é preciso levar em conta. Essas partes não correspondem,
absolutamente, às partes do objeto designado pela palavra20. (4)
Uma hipótese completamente nova faz então sua aparição: a de
que o nome pronunciado pode ser decomposto em partes, em (3)
"pedacinhos", uns após os outros, assim como o nome escrito é algo
composto de partes colocadas em certa ordem. Uma nova
correspondência termo a termo é desde então possível entre esses (2)
dois conjuntos ordenados. É o começo da fonetização da escrita.
Os "pedacinhos" que a criança encontra decompondo a palavra (1)
são, naturalmente, sílabas. Em línguas como o espanhol e o italiano,
onde o limite silábico é bem marcado, esse período silábico é fácil de
ser seguido em todos os seus detalhes e eles têm sua importância. De
fato, do ponto de vista da correspondência termo a termo de que aqui
tratamos, vê-se que, primeiramente, a criança se permite ou repetir
(1) Ma-ri-po-as (borboleta). (3) Ga-to (gato).
sílabas, ou reunir letras ou omiti-las, enquanto, um pouco mais tarde,
(2) Ca-ba-llo (cavalo). (4) Pez (peixe).
a correspondência se torna estrita (uma sílaba para cada letra, sem
repetir sílabas e sem omitir nem concentrar letras). Na figura 6, temos
conseqüência inevitável da hipótese silábica (uma única letra para uma
um exemplo dessa correspondência estrita, tal como ela se apresenta
palavra que tem apenas uma sílaba), deixando assim de lado — talvez
no apogeu do período silábico.
provisoriamente — a exigência da quantidade mínima. Vemos aqui a
Este exemplo nada tem de excepcional, a não ser no que con-
criança atuar no nível puramente quantitativo: uma letra para cada
cerne à escrita de palavras monossílabas. Na verdade, Jorge aceita a
sílaba. As letras podem ser quaisquer que sejam. No momento de
20
Procedemos ao controle seguinte. Pedimos às crianças que desenhassem e
escrever uma palavra, a escolha de uma letra em particular não é
depois escrevessem o nome do objeto desenhado. Por exemplo, no caso de uma determinada senão por aquelas que a precedem na mesma série (uma
criança que tivesse desenhado uma casa e escrito casa (maison) com quatro ou vez que não se deve repetir a mesma letra em uma posição contígua...).
cinco letras, nós comentamos que o desenho comportava elementos tais como Não importa que letra possa assumir o valor da sílaba ma e, em outra
uma porta, janelas etc, perguntamos, de maneira muito sugestiva, onde estavam vez, aquele de to, ou de qualquer outra sílaba. É somente seu valor
a porta, as janelas etc. na escrita de casa. As perguntas — com crianças de fala posicionai que determina a interpretação posterior. Enquanto elemento
francesa de Genebra — foram do tipo: "Ali onde você escreveu casa, daria isolado, uma letra pode ter um nome estável mas não valor estabilizado.
também para ler porta?", ou ainda "Você escreveu também porta?". A maior Porém, desde que inserida em um conjunto, ela adquire um valor
parte das crianças interrogadas (quatro e cinco anos) acharam nossas perguntas
absurdas e responderam um não enfático. Uma criança achou razoável admitir
inteiramente definido por sua posição na série.
que, ali onde havíamos escrito avião (avion) (porque ela própria não queria Ê exatamente o que se passa quando, a partir de um certo nível de
escrever), seria possível colocar as asas na última letra, o motor na primeira e o desenvolvimento, a criança conta os elementos de um conjunto: não
corpo do avião nas letras do meio. Uma outra criança fez a mesma coisa com importa qual objeto possa tornar-se o terceiro em um conjunto e o
sua própria escrita de pato (canard) (CMARE): C, a cabeça; M, as patas; A, o primeiro em outro; tudo depende de sua posição particular; não há
bico; R, o rabo; E, a água. As outras crianças se recusaram a encontrar um elo nada nas propriedades singulares de um certo objeto que permita
qualquer entre as partes da escrita e as partes do objeto, apesar do caráter decidir antecipadamente o nome que ele receberá no momento de sua
altamente sugestivo de nossas perguntas (exceto algumas respostas contagem.
condescendentes dadas por crianças do primeiro nível, para quem a distinção
Essa correspondência termo a termo entre elementos quaisquer
entre escrita e desenho não estava ainda bem estabelecida).
vai evoluir — por uma série de conflitos — em direção a uma
correspondência termo a termo entre elementos qualificados. Vamos a última letra da série. Perguntamos-lhe o que acontece com a letra do
ver como essa evolução se realiza durante o terceiro dos grandes meio (B), ao que Cláudia se põe a contar as letras: "uma, duas, três", mas
sem nada concluir. Sugerimos-lhe ler de novo o que ela acaba de
períodos do desenvolvimento em questão. escrever. Cláudia diz (sem mostrar com o dedo): "Mu-ne-ca... falta ainda".
Ela acresce quatro letras (o resultado i então IBOAEPM); ela lê as duas
primeiras sílabas (mu-ñe-) nas duas primeiras letras, e a última sílaba (-ca)
O terceiro período do desenvolvimento na última letra (M), mas nem por isso fica satisfeita.
Martha (seis anos) vai escrever pelota (bola). Faz cinco letras (RIROT) e
Acabamos de ver como nasce a idéia de fonetização da escrita e, procede em seguida a uma leitura silábica: "pe-lo-ta". Constata que há
letras a mais, mas em vez de apagá-las, ela busca uma justificativa ad hoc:
com ela, o destaque às semelhanças e diferenças sonoras entre os "É que ando ruim de gripe". ("Es que ando mala de la gripa").
significantes. Ora, observamos novamente, em outro nível, o trabalho Perguntamos-lhe se ela acha que está certo como ficou ou se é melhor
cognitivo realizando-se sobre o eixo quantitativo ou o qualitativo, retirar letras, e ela responde, com muita hesitação: "Só algumas... eu
com todos os esforços de coordenação que isso comporta. acho que sim, deveriam ser todas estas" ("es que nomás poquitas...
Dentro do período silábico podemos distinguir três momentos: pienso que sí deberían ser todas éstas").
primeiro, a hipótese silábica só serve para justificar uma produção
escrita que não foi guiada por ela. A criança produz uma escrita
guiando-se pelos critérios de diferenciação intrafigurais, próprios do As dificuldades que as crianças devem enfrentar antes de a
período precedente; mas, em seguida, quando ela faz a leitura do que hipótese silábica iniciar o controle de suas produções estão bem
acaba de produzir, essa leitura torna-se uma justificação. Ela busca ilustradas no caso de Federico, uma criança de fala italiana de seis
fazer corresponder uma sílaba da palavra a cada letra escrita. Muito anos que sabe escrever seu nome, e que utiliza o repertório das letras
freqüentemente, ela encontra mais letras do que sílabas na palavra e, fornecidas por essa escrita para produzir outras, mudando a ordem
então, em lugar de apagar as letras que sobram, ela faz rearranjos linear. Esse procedimento notável, observado em numerosas crianças,
complexos que a conduzem ou a repetir sílabas, ou a juntar letras conduz a uma combinatória, isto é, a uma estrutura nascente cuja
(sobretudo perto do final do texto escrito), ou a "pular" letras, tudo importância ulterior é bem conhecida. Federico produz a seqüência
com a intenção de chegar até o fim do texto escrito. São bastante seguinte (cf. fig. 7):
numerosas as crianças que, tendo tentado diversas soluções de 1) Diante do pedido de escrever sole (sol), Federico põe oito
compromisso sem sucesso, retornam à leitura característica do período letras (FTDOFEDO); lê silabicamente, nas duas primeiras, "so-le"
precedente: a criança lê a palavra inteira, sem recortá-la em pedaços, (uma sílaba em cada letra), e fica surpreso por encontrar tantas"letras
tendo como único cuidado o de pôr seu dedo sobre a primeira letra no a mais; conclui que as outras letras (sublinhadas na ilustração) "non
momento em que a emissão vocal começa e o de parar o dedo e a voz
servono a niente" (não servem pra nada) e tornam-se então "lettere da
simultaneamente na última letra. A criança age, então, como se o
cancellare" (letras para apagar).
texto não fosse seu, mas obra de outra pessoa qualquer e que não pode
2) Em seguida, para escrever mela (maçã), Federico fica
ser modificada. Eis dois exemplos particularmente característicos desse
começo de análise silábica: cuidadoso: não põe mais do que duas letras (DF) e controla
silabicamente: "me-la". Ele acha que é correto mas esquisito: "Io no so
Cláudia (cinco anos) vai escrever muñeca (boneca). Ela põe duas letras perché viene sempre due" (não sei por que é sempre duas).
(IB), olha o resultado e diz: "Faltam mais letras" ("Faltan más letras"). 3) Para as duas palavras seguintes — tavolo (mesa) e bambino
Perguntamos-lhe o que "diz" no que já está escrito, e ela responde "Mu- (criança) — não há nenhum problema. Ele põe imediatamente três
ñe" (as duas primeiras sílabas da palavra) ao que ela acrescenta uma letras e fica satisfeito com o resultado: "ta-vo-lo", fica bem três, o
terceira letra (o texto se torna IBO). Tudo parece indicar que Cláudia vai
parar aí, satisfeita, mas ela continua a afirmar que é preciso ainda outras
letras porque "aí diz mu-ñe", mostrando desta vez somente a primeira e
( 1)
4) Um novo problema aparece com as palavras monossílabas.
Federico escreve três vezes em seguida da direita para a esquerda.
( 2) ( 3) (4) Inicia-se com re (rei); ele põe três letras, mas quando procede à
interpretação do texto, acha que uma letra seria o suficiente: muito
( 7)
(6)
perplexo e embaraçado, ele comenta: "Leggo e mi ferino subito" (Eu
( 5)
leio e de repente paro). A palavra seguinte é gru (grua). Apesar do
resultado precedente, Federico põe de novo três letras e, em seguida,
( 8) lê "gru" apenas em uma letra. Ele faz o seguinte comentário: "Ho
sbagliato, mi viene sempre tre" (Eu errei, ponho sempre três), três
( 9) ( 10) letras, naturalmente. Com a palavra seguinte, the (chá), ele fica nova-
mente cuidadoso: põe somente duas letras porque, evidentemente, ele
( 12)
(11) não pode ir abaixo de duas, e se sente de novo pouco à vontade com
uma letra a mais.
(13) 5) A palavra seguinte traz um grande alívio para Federico: car-
( 14) ( 15) to-li-na (cartão) se escreve com a quantidade garantida de quatro
letras!
6) As seguintes são pares compostos de um substantivo dissílabo
e do diminutivo correspondente: Cane/ cagnolino (cão/ cãozinho) e
casa/ casetta (casa/ casinha). Federico antecipa três letras para cane;
(1) So-le (sol) (letras sublinhadas = letras para apagar). a verificação silábica posterior à escrita obriga-o a reconhecer que há
(2) Me-la (maçã). uma letra a mais. Para escrever cagnolino ele começa novamente com
(3) Ta-vo-lo (mesa). três letras (FEF), verifica lendo "ca-gno-li-" e acrescenta a quarta
(4) Bam-bi-no (criança).
(5) Re (rei) (letras sublinhadas = letras para apagar).
letra para ficar certo. Apesar do trabalho de verificação, ele não
(6) Gru (grua) (id.). consegue prever a quantidade certa para ca-sa: põe de novo quatro
(7) The (chá) (id.). letras mas, depois da verificação, indica as duas últimas como "letras
(8) Car-to-li-na (cartão). para apagar". Tornando-se prudente, ele escreve somente duas letras
(9) Ca-ne (cachorro). para ca-se-tta e, dessa vez, põe a terceira após o controle.
(10) Ca-gno-li-no (cachorrinho). 7) A palavra seguinte, gatto, é imediatamente escrita com duas
(11) Ca-sa (casa). letras mas, para representar o plural gatti (diante de uma figura de três
(12) Ca-se-tta (casinha).
(13) Ga-tto (gato). gatos), ele repete ainda duas vezes a seqüência original (FE). O
(14) Ga-tti (gatos). conjunto é interpretado como gatti ou como tre gatti (três gatos).
(15) Ma-ria-la-va-ipiatti (Maria lava os pratos). 8) Enfim, Federico representa uma frase inteira . com " uma
análise silábica não tão bem feita quanto a das palavras isoladas. Ele
mesmo que "bam-bi-no" (que ele escreve e lê da direita para a escreve a frase Maria lava i piatti (Maria lava os pratos) com cinco
esquerda)21. letras (FEDEF), e a lê como "ma-ria-la-va-ipiatti".
21
Essas mudanças de orientação da escrita e da leitura referem-se apenas aos Uma análise detalhada desse tipo se impõe para que as difi-
aspectos figurativos (tal como os definimos no início deste capítulo) e não culdades reais encontradas pelas crianças na construção dessa hipótese
aos aspectos construtivos. silábica possam ser captadas e avaliadas em sua justa medida.
Estamos na presença de uma pura correspondência termo a termo, uma sílaba estão inseridas em uma frase, uma letra basta para
onde a série ordenada de letras é colocada em relação à série representá-las; mas, quando estão isoladas, nunca se deixa uma letra
ordenada de sílabas da palavra, o que confere às letras o valor que completamente sozinha (porque o que está escrito assim não é uma
corresponde à sua posição na série. Uma letra pode corresponder a palavra).
qualquer sílaba: assim, por exemplo, no caso de Federico, o F torna- Em todos os casos que acabamos de analisar, o trabalho das
se so, Ia, bi, re, the, ca, ga e ma na seqüência de suas construções, crianças esteve centrado exclusivamente nas correspondências
sem que isso o perturbe. Contudo, as palavras de menos de três sílabas quantitativas: elas escreviam tantas letras quantas sílabas
trazem-lhe grandes problemas. pronunciadas, não importando que letra fosse escolhida (com a
A hipótese silábica tem uma importância enorme na evolução da condição de respeitar a restrição elaborada durante o período
escrita da criança. Pela primeira vez, a criança encontra um meio precedente: não repetir a mesma letra em posição contígua e, de
amplo que lhe permite compreender a relação entre a totalidade e as preferência, não repetir a mesma letra mais de duas vezes na mesma
partes que a compõem; pela primeira vez, ela encontra um recurso geral série).
de regular a quantidade de letras e, mesmo, de antecipá-la. Na verdade, Ora, outras crianças apresentam um modo de construção silábica
as crianças chegam não somente a justificar, após escreverem, a com limitações na escolha das letras. Examinemos o exemplo de
quantidade de letras que usaram e a controlar sua produção em curso Francisco (seis anos, figura 8):
(como Federico), mas também chegam a prever quantas letras serão
necessárias antes de começarem a escrever. Francisco escreve seu nome com quatro letras (FRIO); ele mostra as duas
primeiras letras junto e lê "Fran", depois lê as duas últimas sílabas para as
Por exemplo, Javier (5; 10) conta nos dedos a quantidade de sílabas, depois duas letras seguintes. Nas três palavras que seguem (mariposa, "borboleta";
coloca tantos pontinhos na folha quantas são as sílabas que encontrou e, paloma, "pomba"; pájaro, "pássaro"), ele escreve a vogal certa para
somente depois, escreve letras nos pontinhos. Procede assim para as pala-
vras vaca (vaca), mariposa (borboleta) e elefante (elefante) mas, quando (1)
chega nas palavras monossílabas pan (pão) e sol (sol), ele pára a contagem
e escreve duas letras, sem poder justificar-se.

Com a hipótese silábica, se muitos problemas encontram uma (2)


solução geral e coerente, outros surgem. Acabamos de ver, por meio
dos exemplos de Federico e de Javier, o conflito entre a exigência de (3)

uma quantidade mínima de letras e a hipótese silábica. Trata-se, é (4)


claro, de um conflito entre dois princípios de construção de natureza
interna, uma vez que essas crianças não reproduzem nenhum modelo (5)
externo. Todas as crianças que estão nesse nível de desenvolvimento (6)
têm dificuldades com a escrita das palavras monossílabas, e muitas têm
(7)
problemas parecidos com as dissílabas. Em geral, elas acham um meio
de sair dessas dificuldades com soluções de compromisso. Uma solução (8)
muito popular consiste em "cortar" a palavra e fabricar um dissílabo
(por exemplo, sol se torna so-ol; mar fica ma-ar, e assim por diante).
Uma outra solução consiste em transformar a palavra em seu
diminutivo, o que, no caso do espanhol, permite alongar a palavra (1) Francisco. (5) Ga-to (gato).
(2) Ma-rl-po-sa (borboleta). (6) Pa-to (pato).
(por exemplo, bar-co fica bar-qui-to). Quando as palavras de (3) Pa-lo-ma (pomba). (7) Pez (peixe).
(4) Pá-ja-ro (pássaro). (8) Pez (segunda tentativa).
cada uma das sílabas mas, no momento de ler, não são vogais o que ele lê e 1) Martin sabe escrever seu nome, mas nada faz senão
sim uma sílaba inteira para cada letra. Como ele tem necessidade de, no reproduzir a forma adquirida como tal, sem compreender seu modo de
mínimo, três letras, ele se vê atrapalhado com ga-to, que fica escrito com
as vogais corretas, mas Francisco acrescenta em seguida uma outra letra, construção. Quando escreve outras palavras, são as vogais utilizadas
cuja função não é a de marcar uma sílaba mas a de tornar a totalidade com valor silábico que fazem seu aparecimento. Ele escreve mariposa
"legível". Com o dissílabo seguinte (pa-to), ele fica provisoriamente com (borboleta) exatamente como Francisco: "aioa". Pegamento (cola) é
duas letras, mas volta a três para o monossílabo (pez, "peixe"), que escreve escrito com a omissão de uma vogai, e levantamos, então, a hipótese
em duas tentativas com três letras e sem utilizar a vogal certa.
de que Martin não quer repetir a grafia e uma vez para pe- e uma
outra vez para -men-. A palavra seguinte, pizarrón (quadro-de-giz), é
As crianças que empregam as vogais dessa forma devem enfren-
escrita totalmente correta, segundo este sistema: "iao", como também
tar outros conflitos. Que ocorre se a palavra a escrever apresenta a
lápiz (lápis): "ai".
mesma vogai em todas as sílabas? Consideremos o exemplo seguinte
2) A palavra monossílaba aparece e, com ela, os problemas já
(Martin, seis anos, figura 9).
conhecidos: para gis (giz) Martin põe primeiro um i, hesita
enormemente afirmando que ainda não acabou, e acrescenta
finalmente um outro i, na falta de outra solução.
3) A palavra seguinte, papaya (mamão), tem três sílabas, mas
(6) também três vezes a mesma vogai. Dado que Martin acaba de escrever
(1)
duas letras repetidas para gis, ele vai em frente com dois a que
(7)
(2) correspondem a pa-pa, mas lhe faz falta uma outra letra para a última
sílaba; consciente de que deveria utilizar de novo a mesma letra, ele
(8)
(3) pára antes de infringir o princípio da variedade intrafigural. Com os
(9) dois a, ele prefere fazer uma adaptação da circunstância à sua maneira
(4)
de ler, e faz corresponder as duas primeiras sílabas ao primeiro a
escrito: "papa-ya" para a a.
(5)
4) Diante desse resultado, pedimos a Martin para escrever papá
(papai). Aqui um outro tipo de conflito aparece. Poderia ele colocar
aa? Sim, porque, embora isto não lhe agrade plenamente, ele acaba de
(10) fazê-lo. Mas isto lhe traz um problema precisamente porque ele acaba
de usar essas duas vogais para outra palavra. As crianças, atingindo a
fonetização da escrita, conservam as grandes aquisições dos períodos
precedentes, e uma delas é a exigência de uma diferença objetiva para
(1) Ma-ri-po-sa (borboleta). representar palavras diferentes. O que Martin faz exatamente? Ele
(2) Pe-ga-mento (cola). escreve a e pára; repete para si mesmo, pelo menos seis vezes, a
(3) Pi-za-rrón (quadro-de-giz).
(4) Lá-piz (lápis).
sílaba pa e, de repente, encontra a solução: "aA". Obtém assim uma
(5) Gis (giz). série diferente da precedente, conservando ao mesmo tempo as duas
(6) Pa-pa-ya (mamão). vogais necessárias.
(7) Pa-pá (papai). 5) A palavra seguinte, calabaza (abóbora), com suas quatro
(8) Ca-la-baza (abóbora). sílabas e quatro vezes a, é ainda mais assustadora. É impossível ser
(9) Pez (peixe).
(10) Los-niños-están-co-miendo-una-tor-ta (as crianças estão comendo
escrita nos limites do sistema de Martin. Pressionado pelas
um sanduíche). circunstâncias, Martin reencontra em seu repertório uma consoante (c)
que pode ajudar a evitar ao menos o primeiro a. Ele escreve em
seguida a duas vezes e, não encontrando outra solução, descobre uma
nova adaptação de circunstância aos seus próprios princípios: faz
corresponder as duas últimas sílabas emitidas à última letra: "ca-la-
baza" para caa. (1)
6) Quanto à última palavra monossílaba {pez, "peixe"), Martin a
representa exatamente como as outras: com duas vezes a mesma vogal (2)
(ee).
7) Enfim, o que à primeira vista parece uma série de vogais (3)
(oiaoeuoa) é, de fato, sua representação da frase seguinte (colocamos
entre parênteses as sílabas que foram lidas sem verdadeiramente (4)
serem escritas): los-ni-(nõs es)-tán-co-mien(do)-una-tor-ta (as
crianças estão comendo um sanduíche).
(5)

Fizemos questão de documentar extensamente e em detalhe


esses processos de construção, a fim de convencer o leitor da
realidade dos conflitos propriamente cognitivos que surgem a respeito
das tentativas das crianças de se apropriar do sistema da escrita. (1) Pa-lo-ma (pomba).
Nas crianças de fala espanhola, as escritas silábicas onde se (2) Ga-to (gato).
encontra uma correspondência termo a termo entre elementos (3) Pez (peixe).
(4) La-pa-lo-ma-co-me-tri-go (a pomba come trigo).
qualificados (e não quaisquer deles) têm uma característica marcante. (5) Pe-ga-men-to (cola).
As vogais são mais bem utilizadas que as consoantes, no sentido de
que o aparecimento de vogais empregadas com valor sonoro próximo
do valor convencional é mais precoce, pertinente e freqüente do que o pelos outros sujeitos já alfabetizados. Nesse nível de
das consoantes. Entretanto, não se exclui a possibilidade de desenvolvimento, as crianças compreendem muito bem sua própria
encontrarmos exemplos de escritas silábicas baseadas em consoantes. maneira de escrever, mas têm grande dificuldade de compreender as
Um belo exemplo delas nos é fornecido por Esther (seis anos, figura escritas que as cercam. Cada vez que elas tentam aplicar a hipótese
10). silábica às escritas produzidas por adultos, encontram um excedente
Qual é então o futuro dessa hipótese silábica? Nós indicamos que de letras. A escrita socialmente constituída resiste aos esquemas
ela engendra seus próprios conflitos, porque a aplicação simultânea da assimilativos do sujeito, exatamente da mesma maneira que os objetos
correspondência silábica e da exigência de uma quantidade mínima físicos resistem, às vezes, à sua vontade. Certas escritas terão uma
conduz a resultados contraditórios e porque, no caso da importância decisiva na desequilibração do sistema silábico; por
correspondência termo a termo entre elementos qualificados, há con- exemplo, a escrita de seu próprio nome22.
tradição tanto com a exigência de variação intrafigural, como Certas crianças, que se centram mais sobre o eixo quantitativo do
também, em certos casos, com a exigência de diferenciação que sobre o eixo qualitativo, fazem tentativas de resolução sem mudar
interfigural. Todos esses conflitos são de natureza puramente de hipótese nem de centração. Vemo-las, então, tentar corresponder
endógena, isto é, conflitos entre diferentes princípios construídos pela duas letras a cada sílaba, o que às vezes funciona, às vezes, não.
própria criança. Todos os tipos de vicissitudes são, então, possíveis, inclusive recuos
Cabe agora salientar a importância de uma nova fonte de momentâneos, bloqueios ou reestruturações rápidas.
conflitos somados aos precedentes, a saber, os conflitos entre as hipó- 22
teses construídas por essas crianças e a escrita tal como praticada Cf. Ferreiro, 1986.
são expressas alfabeticamente, enquanto as duas sílabas intermediárias
são expressas silabicamente. No segundo, as três primeiras sílabas são
expressas silabicamente enquanto a última sílaba é expressa
alfabeticamente.
(8)
(1) 2) Caballo (cavalo) ocasiona, em Victoria, a série "cayo" e, em
(9) Salvador, a série "cvaio". No primeiro caso, as duas sílabas iniciais
(2)
da palavra são expressas silabicamente, e a última alfabeticamente.
(3) (10) Na construção de Salvador, a primeira sílaba é expressa
(11) silabicamente e as duas seguintes, alfabeticamente. É interessante
(4)
notar que a última sílaba não apresenta a ortografia convencional llo,
(12)
(5 ) mas essas crianças fornecem as duas maneiras alternativas ("yo" e "io")
de escrever essa sílaba.
(6) (13)
3) A última escrita representa, nos dois exemplos, Mexico.
(7) (14) Victoria a escreve silabicamente, apoiando-se nas vogais ("eio").
Salvador produz algo ininteligível, a menos que se conheça as
condições de produção. Na verdade, ele escreve primeiro, também
silabicamente, "Mio", mas parece lembrar-se de uma letra privilegiada
Victoria (seis anos) Salvador (seis anos) (x) que deve estar lá, e escreve — de novo silabicamente — "mxo". O
(1) Mariposa (borboleta). (8) Mariposa. resultado é uma dupla escrita silábica justaposta (Me-xi-co-me-xi-co)
(2) Tigre (tigre). (9) Caballo. mas, como nada foi apagado, ele tem muita dificuldade de interpretar o
(3) Caballo (cavalo). (10) Hormiga. resultado final.
(4) Hormiga (formiga). (11) Perro (cachorro).
(5) Pez (peixe). (12) Pez.
(6) Calabaza (abóbora). (13) Papaya (mamão).
Um ponto muito importante a destacar é o seguinte: as escritas
(7) Mexico (México). (14) Mexico. silábico-alfabéticas foram tradicionalmente consideradas como
escritas "desviadas", como "omissões de letras". É verdade que, em
Uma nova idéia pouco a pouco faz seu caminho: é preciso en- relação ao modelo adulto convencional, elas comportam omissões.
contrar um meio de analisar o significante que vá além da sílaba Mas, do ponto de vista da psicogênese, é exatamente o contrário: há
(exatamente para poder absorver o "excedente" de letras que é reen- adição de letras em relação às escritas silábicas precedentes. Inútil
contrado sempre). A dificuldade de abandonar o sistema precedente e ressaltar a importância que essa mudança de ponto de vista pode ter
de substituí-lo por outro é representada por esse período intermediário nos diagnósticos psicopedagógicos...
que denominamos silábico-alfabético e que é uma espécie de híbrido. A etapa final da evolução é o acesso aos princípios do sistema
Examinemos de perto os exemplos de Victoria e Salvador (ambas com alfabético. A criança conseguiu compreender como opera esse sistema,
seis anos, figura 11). Essas duas crianças escrevem em um sistema que isto é, quais são suas regras de produção. Essa etapa final, nesse caso
não é completamente silábico e que ainda não é francamente alfabético. como em outros, é, contudo, também a primeira de um outro período.
Praticamente todas as letras empregadas estão corretas, mas faltam De fato, muitos problemas ficam ainda por resolver, principalmente os
algumas delas. Tomemos três exemplos da lista de escritas problemas da ortografia, que surgirão em primeiro plano. Uma nova
produzidas: distinção se impõe a partir de então, entre os problemas da escrita
propriamente dita e os problemas de ortografia. Estes só
1) Mariposa (borboleta) é escrito por um como "Maiosa" e por
outro como "miosa". No primeiro caso, a primeira e a última sílaba
começam uma vez captados os princípios de base do sistema anteriores: tudo parece indicar que estamos diante de uma real
alfabético, o que em nada lhes retira sua importância23. psicogênese com sua própria lógica interna, significando que as
informações provenientes do meio são incorporadas em sistemas
interpretativos cuja sucessão não é aleatória, embora a duração de cada
Notas finais momento de organização e, conseqüentemente, das idades de
aparecimento, dependa de um conjunto de influências diversas (sociais,
A evolução das conceitualizações da criança a respeito do sistema familiares, educativas, individuais etc.)25.
alfabético da escrita exige ainda pesquisas aprofundadas sobre muitos As dificuldades que as crianças encontram e superam no decorrer
detalhes. De nossa parte, estudamos essa evolução primeiro em de seus esforços para se apropriar desse sistema socialmente constituído
crianças de fala espanhola, de três a seis anos de idade, pertencentes a ficam incompreensíveis se considerarmos a escrita alfabética
meios urbanos muito contrastados em relação à disponibilidade de exclusivamente como uma codificação de unidades sonoras em
informação sobre a língua escrita. Em seguida, pudemos constatar em unidades gráficas. Ao contrário, a natureza do processo se torna
crianças de seis a sete anos, que haviam começado sua escolaridade compreensível, os conflitos, legítimos e as construções, originais, se
primária em níveis de conceitualização anteriores à idéia de ali introduzirmos a problemática própria à construção de um sistema de
fonetização, uma evolução semelhante24, e isso apesar da exposição representação. A questão fundamental é, a partir de então, de ordem
sistemática à língua escrita e aos esforços dos professores para fazê-las epistemológica: Qual é a natureza da relação entre o real e sua
captar desde cedo os princípios de base do sistema alfabético (pesquisa representação? É nestes termos que vamos tentar colocar o problema.
referente ao espanhol, língua em que as dificuldades de ortografia são A construção de qualquer sistema de representação necessita, por
mínimas em comparação àquelas do francês ou do inglês). Enfim, outros parte dos sujeitos, de um processo de diferenciação entre os
colegas puderam recolher dados comparativos em outras línguas elementos, as propriedades e as relações que eles apreenderam no
(principalmente em catalão, italiano e português), e envolveram-se em objeto que se tornará objeto da representação, bem como de um
experiências pedagógicas baseadas na compreensão dessa evolução. processo de seleção, já que inevitavelmente somente alguns elementos e
A quantidade de dados concordantes de que dispomos dá apoio algumas propriedades e relações serão retidos na representação. Uma
suficiente à interpretação apresentada em nossas publicações representação X nunca é idêntica ao real R que ela representa (se fosse

23 25
J. Vaca efetua atualmente sob nossa orientação estudos visando esclarecer Os exemplos escolhidos neste capítulo para ilustrar problemas particulares
os problemas cognitivos ligados à compreensão da ortografia. Parece que dessa evolução poderiam dar ao leitor a impressão de que, no seu conjunto, a
vemos reaparecerem, em outro nível de organização, problemas já resolvidos evolução é mais lenta em espanhol do que nos países europeus de fala
em níveis anteriores. Por exemplo, para muitas crianças é difícil admitir que francesa. Ora, nada podemos afirmar com referência às idades médias da
as palavras homófonas de sentido diferente sejam escritas da mesma maneira, população em seu conjunto. Por um lado, estudamos mais atentamente a
o que vai contra o princípio de diferenciação objetiva interfigural que elas evolução de crianças de meio dito "desfavorecido" porque nossa pesquisa não
construíram e guardaram durante um bom período de seu desenvolvimento. pretende ser um puro exercício acadêmico: a situação da alfabetização na
Novas possibilidades de "raciocinar sobre a ortografia" poderiam assim se maior parte dos países da América Latina é ainda muito dramática; são as
abrir, nada tendo que ver com as razões históricas dessas ortografias, nem crianças que não conseguem se alfabetizar nas condições atuais de sua
com um conjunto qualquer de regras normativas. escolaridade que merecem, a nosso ver, ser os sujeitos privilegiados de nossa
pesquisa. Crianças precocemente alfabetizadas existem na América Latina
24
Trata-se de uma pesquisa com uma amostra de 959 crianças escolhidas ao como alhures; estudamos em detalhe a evolução de algumas dentre elas (cf.
acaso em condições predeterminadas: crianças que pertencem a distritos Ferreiro, 1986). De outro lado, ocorre que as crianças mais velhas,
escolares onde as porcentagens de fracasso entre a 1.' e a 2.' série primária freqüentemente, dão explicações mais claras que permitem evidenciar melhor
são muito elevadas (situação extremamente freqüente na América Latina, nas o que encontramos igualmente nas menores. Para evitar longas explicações
escolas de periferia urbana, onde se concentra a população sem recursos complementares, escolhemos com freqüência, neste capítulo, exemplos de
econômicos), cf. Ferreiro et al., 1982. crianças de cinco a seis anos.
o caso, tratar-se-ia não de uma representação mas de uma outra No caso particular da língua escrita, a natureza complexa do signo
instância de R, de uma "dublagem"). De fato, uma representação lingüístico e de sua relação com o objeto referido torna difícil a escolha
conveniente X de uma certa realidade R reúne duas condições justificada de parâmetros privilegiados na representação. A pergunta "O
aparentemente contraditórias: certas propriedades e relações próprias que a escrita representa?" é uma pergunta legítima. Pode-se, na verdade,
de R são representadas, enquanto outras propriedades e relações perguntar se ela representa as diferenças entre os significados, as
próprias de R não são representadas em X26. diferenças entre os significados em relação a certas propriedades dos
A construção de sistemas secundários (X1, X2. . .) a partir de um objetos referidos, as diferenças entre os significantes ou, ainda, as
X original é um problema inteiramente diferente da construção da diferenças entre os significantes em relação com os significados. O que
primeira representação X de R. Para a construção desses sistemas, um justifica a escolha de um aspecto em vez de outro?
processo de codificação é suficiente. O código morse e os códigos São exatamente perguntas desse tipo que orientam a busca das
secretos de uso militar são exemplos de construção de um sistema de crianças. Pode-se pensar que um sistema de representação constituído
representação já constituído. seja adquirido pelos novos usuários como se se tratasse de uma
A diferença essencial que queremos realçar é a seguinte: no caso codificação. Essa é a convicção subjacente à maior parte das proposições
da construção de um sistema de codificação, os elementos, propriedades pedagógicas relativas ao ensino da leitura: prepara-se a criança a
e relações são predeterminados, enquanto o código secundário propõe reconhecer as unidades-letras por meio de exercícios de reconhecimento
nada mais do que uma outra representação dos elementos, propriedades de unidades-fonéticas, e procede-se à fixação da relação das unidades
e relações já constituídas. Por exemplo, na transcrição das letras do entre si (evitando ao máximo as ditas "exceções" do princípio de
alfabeto em código morse, todas as configurações gráficas biunivocidade entre letras e sons). As questões epistemológicas são,
caracterizando as letras tornam-se seqüências de linhas e pontos, mas, dessa forma, eliminadas; e, no entanto, as maiores dificuldades das
a cada letra do primeiro sistema, corresponde uma configuração crianças são exatamente de natureza epistemológica como evidenciam os
diferente de linhas e de pontos em correspondência biunívoca. Não é o estudos relatados neste capítulo.
caso de criar uma nova letra nem de retirar as distinções próprias do Se a aprendizagem da língua escrita é concebida como a aquisição
sistema original. Ao contrário, no caso da criação de um sistema de de um sistema de codificação, essa aprendizagem pode ser considerada
representação, é necessário primeiramente decidir, por uma escolha como puramente técnica; se concebida como a compreensão de um
justificada, quais elementos e quais relações serão mantidas. sistema de representação, ela se torna conceituai. Ela consiste em
construir um novo objeto de conhecimento e, para que isso ocorra, em
A construção de um sistema de representação original passa,
reconstruir as operações que permitiram engendrar o objeto socialmente
geralmente, por um longo processo histórico antes que esse sistema se
constituído (o que não quer dizer, bem entendido, re-construir a
torne propriedade coletiva. É o caso da invenção da escrita que não
foi um simples processo de codificação. seqüência histórica das invenções). Já sabemos que, para compreender
outros instrumentos sociais igualmente convencionais (por exemplo,
uma régua métrica), não é suficiente que a criança seja informada
sobre seu "modo de usar" (cf. Piaget, Inhelder e Szeminska, 1948,
26
O elo entre X e R pode ser de natureza ou puramente convencional. Por
primeira e segunda partes). A escrita, em certo sentido, também é um
exemplo, se os elementos de R são formas e distâncias, X pode guardar essas instrumento social de natureza convencional, mas ela é, além disso, um
propriedades e representar as formas por outras formas e as distâncias por sistema de representação da língua (e não apenas de unidades
distância. É o caso dos mapas geográficos modernos. Se um mapa fonéticas). Como qualquer outro sistema de representação, todo sistema
geográfico é essencialmente um sistema de representação analógico, ele de escrita é obrigado a fazer uma escolha entre os elementos, as
compreende igualmente elementos convencionais: as fronteiras políticas são propriedades e as relações de R que vão aparecer em X. As escritas
indicadas por uma série de pontos, uma linha contínua ou qualquer outro alfabéticas optam por colocar em relevo a representação das diferenças
meio; as cidades, por círculos ou quadrados etc. entre os significantes e, além disso, no estado atual de sua elaboração,
toda uma série de outras particularidades (separação entre palavras, respeito da língua29. Não é nossa intenção aqui desenvolver em detalhe
sinais de pontuação, uso de maiúsculas, "ortografias" particulares27 as implicações pedagógicas dos fatos que acabamos de apresentar30.
etc.) que estão à disposição do leitor para ajudá-lo a reconstruir R a Entretanto, se considerarmos a oposição codificação/representação que
partir de X. expusemos, podemos verificar que ela é carregada de conseqüências em
Contudo, os elementos, propriedades e relações do real que não relação à maneira de conceber a intervenção pedagógica. Eis algumas
foram mantidos na representação não devem ser esquecidos por causa delas:.
disso, mas devem, ao contrário, ser reintroduzidos no momento de a) Se a leitura for concebida como uma codificação, um meio de
interpretar a representação. E por essa razão que todo ato de leitura transcrever unidades sonoras em unidades gráficas, colocam-se
(logo, de interpretação) é um ato de reconstrução (e não uma simples necessariamente em primeiro plano a discriminação perceptiva (visual e
decodificação). Escrever é construir uma representação segundo uma auditiva) e a habilidade motora. Os programas de sensibilização à
série de regras socialmente codificadas; ler é reconstruir uma realidade língua escrita se concentram, então, em exercícios de discriminação
lingüística a partir da interpretação dos elementos fornecidos pela perceptiva e de traçado, sem jamais questionarem a natureza das
representação. unidades utilizadas. As "dificuldades de aprendizagem" nesse domínio
Nosso conhecimento sobre a psicogênese dos sistemas de são avaliadas conforme as mesmas pressuposições: se não houvesse
representação é ainda lacunar, e os trabalhos reunidos neste volume dificuldades em se fazer discriminações entre formas visuais próximas
constituem apenas um começo28. No caso particular da psicogênese da nem entre formas auditivas próximas, e se não houvesse dificuldades
reflexão sobre a língua, parece necessário analisar, de um lado, o que em se desenhar formas gráficas próximas, não deveria haver
se vincula ao conhecimento do locutor como tal, fazendo abstração de dificuldades em se aprender a língua escrita. Não haveria nessa
seu conhecimento da escrita e, de outro lado, o que se vincula ao aprendizagem nada mais que a transcrição de unidades sonoras em
conhecimento da representação gráfica da língua. Parece difícil unidades gráficas.
conceber as duas evoluções de outra maneira que não b) Ao contrário, se essa mesma aprendizagem for concebida como
interdependentes. Por exemplo, parece que há efeitos de retorno
a compreensão do modo de construção de um sistema de representação,
produzidos pela alfabetização sobre a noção de palavra e mesmo sobre a
os problemas aparecem sob um ângulo bem diferente. Compreender a
de recorte de palavras (cf. Ehri, 1985; Read, 1984). Mais ainda: não se
natureza desse sistema de representação quer dizer notadamente:
exclui o fato de os problemas postos pela compreensão do sistema da
compreender por que certos elementos essenciais à comunicação oral
escrita contribuírem para a construção de noções centrais na reflexão a
(a entonação, por exemplo) não são retidos na representação, mesmo
27 que devam ser reintroduzidos na interpretação dessa representação;
Blanche-Benveniste e Chervel (1974) analisaram em detalhe, na ortografia compreender que a escrita adota uma definição da unidade "palavra da
francesa, o funcionamento ideográfico dentro do funcionamento fonográ-
língua" que não corresponde necessariamente às intuições lingüísticas
fico. Sobre a derivação, eles fazem as observações seguintes: "Existe, então,
junto aos radicais que se manifestam oralmente, 'radicais para a vista'" (p. do sujeito pré-alfabetizado; compreender que todas as palavras são
161). "A ideografia tem por efeito diferenciar as palavras umas das outras,
acumulando em uma mesma palavra as marcas que a ligam às do seu grupo
29
de parentesco ou que realçam seu papel no sintagma, de modo que cada Nesse sentido, acreditamos ser possível apresentar — como hipótese de
palavra tem sua 'cara própria'" (p. 162). pesquisa — a idéia de que a resolução de um problema próprio da escrita (o
da relação entre as letras e a palavra da língua) exerça um papel decisivo na
28
Do ponto de vista epistemológico, essa psicogênese deveria ser posta em construção do significante como tal.
relação com o estudo sociogenético dos mesmos sistemas de representação.
30
A par da história das noções e sistemas explicativos (tal como foi ela É claro que os fatos foram interpretados porque assumimos as conse-
considerada pela epistemologia genética), há, de fato, uma história das qüências de uma posição teórica que recusa a leitura direta e ingênua da
representações como tais que mereceria um estudo atento. experiência.
tratadas como equivalentes no nível da representação, mesmo que
pertençam a classes bem diferentes; compreender que a concentração
privilegiada nas diferenças sonoras do significante — necessária para
construir uma representação alfabética — deve ser compensada por
uma centração no significado no momento da interpretação.

Não se trata de buscar um "novo método" que substitua os


antigos. Trata-se de recolocar, em primeiro plano, o sujeito ativo,
inteligente e criador, aquele que constrói para compreender, aquele
que Piaget nos permitiu ver em ação em outros domínios do
conhecimento.

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