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« Pode-se considerar a comunicação artística um fenómeno « não-consciente », de « osmose »

(termos utilizados por Duchamp na sua conferência sobre o processo criativo). Caracterizemos
este « não-consciente » como próprio de « fenómenos de limiar » (edge-phenomena). Todo o
campo das pequenas percepções se apreende, numa primeira aproximação, como fenómeno de
limiar.
As ciências humanas, como a psicanálise, a psiquiatria, a antropologia, a sociologia, conhecem
bem este tipo de fenómenos: estados psíquicos « crepusculares », ou de « simbiose » ou de
indefinição de campo que ocorrem em situação de transferência analítica ou psicótica, ou de
hipnose; todo o género de relação de influência, desde a publicidade à relação política, e ao mais
ínfimo contacto entre dois seres (gerador de tensões de forças não-conscientes); o vasto domínio,
tão mal explorado ainda pela etnologia, da magia e da feitiçaria, com efeitos, evidentemente, na
etnomedicina e na etnopsiquiatria, no estudo dos rituais e da adivinhação, etc.
Acontece que estas disciplinas recorrem a noções que, sendo homónimas, estão longe de ter o
mesmo significado quando mudam de campo operatório: o « inconsciente » a que se refere a
psicanálise não é o mesmo que opera nos rituais de transe e cura estudados pela etnologia; e
pouco tem a ver com a noção de « subliminaridade » tão em uso no estudo da influência
mediática e política. Não há uma idêntica definição de « imagem » que se aplique à imagem do
sonho e do fantasma, à dos cultos, à da criação artística, ou à de uma estampa na sua função
cognitiva: uma « retórica da imagem » forçosamente plurímoda (dada a diversidade dos tipos de
imagem, visual, auditiva, icónica, abstracta, verbal, etc.), não dispensa uma certa univocidade de
sentido, sob pena de cair em toda a espécie de equívocos.
Muitas outras são as noções que atravessam erraticamente as ciências humanas, fazendo sentir a
exigência de um rigor que não existe ainda, e que aparece como uma condição indispensável à
interdisciplinaridade: « corpo », « força », « identificação », « osmose », « caos », etc.
Ora, os fenómenos que estas noções pretendem descrever e caracterizar, na medida em que se
relacionam com « limiares » de campos já definidos, não possuem o seu espaço próprio de
operatividade; e, como por acaso, eles dependem em geral do movimento das pequenas
percepções. Numa palavra, os « fenómenos de fronteira » referem-se, antes de mais, à fronteira
que separa e sobrepõe consciência e inconsciente.
Trata-se, para além das ciências humanas constituídas, de ir ao encontro da « experiência » que
constantemente nos invade, em nós se impregna e atinge o inconsciente. Eis um pequeno traço
paradoxal dessa « experiência »: ela assola-nos sem que demos por isso, experienciamo-la sem
dela ter consciência, apercebemo-nos das modificações que sofremos já depois de as termos
sofrido. É preciso uma sensibilidade muito especial e aguda para sentir o tipo de influência (de
força) que, numa conversa anódina, o nosso interlocutor está a exercer sobre nós. Normalmente,
passa despercebida.
Mais uma vez, é tudo uma questão de escala. Ver melhor, ouvir mais (até ao ouvido absoluto),
não transformaria afinal essa « experiência imperceptível » numa série de apreensões conscientes
? O pintor, o poeta, o feiticeiro, o líder político, não possuem apenas sentidos mais apurados dos
que os do homem comum? Será mesmo útil e legítimo definir um outro tipo de experiência,
quando bastaria ampliar as propriedades da experiência sensível trivial? De duas uma: ou se
reconhece a singularidade daquela experiência não-consciente – e há que reformular toda uma
série de conceitos tradicionais associados à noção de experiência, deixando esta de ser o
privilégio exclusivo de um sujeito consciente; ou se a reduz a uma variante quantitativa da
experiência comum da consciência – e é a própria ideia de « não-consciente » ou « inconsciente
» que deixa de ser aplicada à experiência. No fundo, é o velho debate fenomenologia-psicanálise,
ou filosofia da consciência-inconsciente, que reaparece aqui sob uma nova forma.
(...)
Como todo o pioneiro, Freud legou um campo imenso de experiência, de que só conceptualizou
e teorizou uma parte. No ensaio sobre « O Inconsciente » da Metapsicologia, ele chega
finalmente a uma caracterização que lhe parece satisfatória do conteúdo psíquico inconsciente: é
« uma representação de coisa só », separada da « representação de palavra correspondente ». As
consequências que Freud tira desta definição não nos interessam agora. Retenhamos apenas a
possibilidade que oferece uma vasta generalização: todas as representações, todas as imagens
disjuntadas dos seus correspondentes verbais, contêm qualquer carga inconsciente de sentido.
Não se trata unicamente de conteúdos psíquicos tais como as imagens do sonho ou do fantasma
recalcado, mas – afastando-nos agora de Freud – de toda a espécie de imagem, desde o bocado
do muro cinzento que, entrevisto ao virar da esquina, nada significa, ao conjunto de formas e
cores que constitui uma pintura.
Chamemos a este tipo de imagem, « imagem-nua », despojada da sua significação verbal.
Verificamos então que estamos mergulhados num mundo de imagens-nuas; que a imensa maioria
das percepções que preenchem os nossos dias, é composta de imagens-nuas; que são elas que
povoam os sonhos, como notava Freud ( imagens anódinas que passaram despercebidas no fluxo
das macropercepções), que elas se associavam a pensamentos fugidios e imperceptíveis a que
Leibniz chama » pensamentos voadores » (pensées volantes) e que vão ter importância decisiva
na associação livre da cura analítica; que elas formam o material imagético das técnicas
publicitárias, do cinema e de todas as artes; que, a cada instante, nas relações entre seres
humanos, são os milhares de imagens-nuas que constituem a percepção do rosto e do corpo do
outro que transportam significações mudas e informações muito mais ricas que as mensagens
verbais.
Quando analisadas, estas imagens revelam características insuspeitadas: arrastam consigo
conteúdos não-conscientes de sentido, de uma não consciência que convém distinguir do
inconsciente freudiano por um lado, e de todos os claros-obscuros « subliminares » (ou «
periféricos », ou « irreflectidos » ou « de horizonte ») psicológicos ou fenomenológicos por
outro. São produtores de pequenas percepções, o que implica toda uma semiótica particular, já
que não entram facilmente nas diferentes classificações conhecidas de signos ( em particular, na
de Peirce). Enfim, como Leibniz observara já, as pequenas percepções encontram-se associadas a
forças: a percepção das imagens-nuas provoca um apelo de sentido, como se se estimulasse o
espírito à procura da significação verbal ausente. A visão de um vestígio arqueológico, ou de
uma forma de que se desconhece a finalidade (exemplos de Kant) suscita um « apelo de ar » por
falta de sentido, para que este venha preencher a nudez ou o sentido da imagem-nua. O que
significa que a sua percepção imprime movimentos extremamente complexos nas
micropercepções que a acompanham. A descrição dessas forças e movimentos torna-se uma
tarefa necessária ao estudo da imagem-nua.
(...)
O que é então a percepção da obra de arte? Nem um misto de prazer e de cognição, nem um acto
que visa um fenómeno particular, visível, e cuja descrição deverá recorrer necessariamente a
conceitos clássicos da teoria do conhecimento; mas um tipo de « experiência » que se
caracteriza, precisamente, pela dissolução da percepção (tal como é tradicionalmente descrita). O
espectador vê, primeiro, como espectador (ou sujeito percepcionante) para, depois, entrar num
outro tipo de conexão ( que não é uma « comunicação ») com o que vê, e que o faz « participar »
de um certo modo na obra. O que requer todo um outro campo de descrição desse « participar »,
dessa « dissolução » do sujeito, etc. Não convém pois falar em « percepção estética », mas num
outro tipo de « fenómenos » ou de « acontecimentos ». É, de resto, pela ideia (deleuziana) de
acontecimento que a metafenomenologia abre o seu campo próprio.
(...) »

In: José Gil, A imagem-nua e as pequenas percepções, ESTÉTICA E METAFENOMENOLOGIA, Prefácio


Relógio D’água Editores, Lisboa, 1996

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