Você está na página 1de 6

A BELEZA COMO ARMA

Senti sintomas deveras inquietantes pelo


ato só de escrever.
Stephane Mallarmé

Em um ensaio concluído em 1922, sobre “As Afinidades Eletivas de Goethe”, Walter


Benjamin dá a entender que, como alguém em busca de brasas ainda ardentes entre cinzas, ele
buscava o teor de verdade viva da obra na sua ligação com o conteúdo material. O filósofo
acreditava que a verdade está impressa no mundo dos fenômenos e que precisa dessa impressão
para se realizar. Precisa de aparência para se revelar, e isso não significa que matéria e verdade
sejam a mesma coisa, pois, se fosse esse o caso, seria possível um conhecimento imediato.
Para Benjamin, o assunto das Afinidades Eletivas não é o casamento, mas a falta que
precisa ser expiada; pois Goethe não definiu as bases do casamento e sim as forças terríveis que
dele emanam no momento de sua dissolução. No romance, ao se dissolver a forma legal de
existência, os personagens ficam entregues a elementos míticos, naturais, desconhecidos,
ameaçadores, e incontroláveis. O desejo ilimitado pelo belo será o motor da desestabilização. A
falta cometida é a violação da natureza e dos ritos. Duas faltas, na verdade: ofensa à natureza
externa e infração de normas contratuais legais. A dupla fratura é provocada pelo incessante
interesse em criar e possuir a beleza que leva os personagens a passarem por cima das tradições, dos
costumes, e da ordem natural.
Nas primeiras páginas da história, Charlotte e Eduard, o casal cuja relação amorosa será
dolorosamente estilhaçada, aparece às voltas com a reforma da confortável propriedade rural onde
vivem. A intervenção na natureza, com o propósito de torná-la ainda mais bela, começa a interferir
também na relação conjugal quando Eduard propõe que convidem um amigo a juntar-se a eles no
campo e ajudar a ampliar o projeto de embelezamento da propriedade. Tentando resistir, a esposa
responde que isso vai contra os planos que haviam feito para viver a dois, relativamente retirados;
entretanto, acaba aceitando a proposta, relutantemente e com a condição de que também possa
acolher Ottilie, jovem órfã de uma grande amiga sua. Está formado o quartetto: Eduard, Charlotte,
Otto e Ottilie. Se os segundos sequer se conheciam, Goethe os une através da similitude dos nomes,
quase os mesmos, que também ressoam no de Charlotte.
Partindo dessa configuração, ver-se-á o dilaceramento do casal ocorrer simultaneamente às
desfigurações a que submetem a paisagem natural em suas terras. Vai se transformando em
evidência literal a crença de Goethe de que os homens não são livres, e sim escravos de poderes da
natureza. E quando se intervém na harmonia entre as diversas camadas desta, corre-se o risco de ver
aflorar as mais profundas, as que escapam a qualquer domínio, e de se ficar sujeito às forças
incontroláveis. O próprio termo “afinidade eletiva” corrobora essa idéia. No léxico das ciências
naturais, “afinidade” é uma grandeza que mede a espontaneidade de uma reação química.
“Afinidade Eletiva” é uma expressão, tomada emprestada do vocabulário químico, usada para
descrever um fenômeno que ocorre quando se mergulham dois elementos compostos – por
exemplo, os elementos AB e XZ – em um mesmo líquido. Forte atração entre os componentes que
se encontram separados, em elementos diversos, leva à dissolução dos elementos iniciais AB e XZ e
ao estabelecimento de novas relações, criando os elementos AX e BZ. A expressão é bastante
ambígua, pois dá a entender que houve uma “eleição”, que o componente de um determinado
elemento “escolheu” ficar com um outro, abandonando, por livre arbítrio, aquele ao qual antes se
2

ligava: é como se A “elegesse” X e, por isso, abandonasse B. Seja de fato eletiva ou a priori, a idéia
de fundo neste movimento é a de que entre o componente de um elemento e um componente do
outro haveria uma afinidade tão potente que ela levaria à destruição dos elementos existentes e à
emergência do novo. O termo é usado por Goethe como metáfora: na época da novela Die
Wahlverwandtschaften (1809) ele já havia sido abandonado pela ciência. De qualquer forma, “os
personagens do livro são escravos do charme mágico das afinidades”, escreveu Benjamin (p.87). E
enfeitiçados, deixam de lado o senso moral, buscam esquecer as conveniências sociais e vão se
enveredando por caminhos que só podem levá-los ao abismo interno. Símbolos diversos e traços
premonitórios antecipam para o leitor a derrisão e a ruína moral a que se condenaram por sua
conduta desmedida.
Eduard se apaixona pela beleza de Ottilie. Benjamin escreve: “não é exagerado dizer que
não se compreende nada das Afinidades Eletivas, se não se admite, desde o princípio, como artigo
de fé, que Ottilie é bela” (p.159). Cego a tudo que não seja sua paixão, o marido enlevado interpreta
os presságios, os sinais, as coincidências, sempre a seu favor. Muda seus antigos hábitos ao mesmo
tempo em que vai transformando a paisagem exterior com incessantes reformas; viola os ritos, troca
de lugar até mesmo os túmulos de seus ancestrais para embelezar o cemitério existente na
propriedade. A natureza exterior vai sendo subjugada, mas a falta de escrúpulos com a tradição, com
o sagrado, com as fontes, com a origem, deixa a natureza interna entregue a si mesma,
desgovernada, sujeita a forças passionais indomáveis frente às quais é impotente, ressalta Benjamin.
“Quando desaparece no homem a vida supranatural, mesmo que ele não cometa nenhum ato imoral,
sua vida se enche de culpabilidade. Porque ele é então cativo do simples fato de viver, que se
manifesta no homem como culpa” (p.96).
Nas Afinidades Eletivas, Eduard viola a instituição do casamento e esta violação exige um
sacrifício como expiação: é preciso que Ottilie se sacrifique. A morte de um inocente é a forma de
expiação mítica. E Benjamin trata este romance como um jogo onde potências míticas são
apresentadas como personagens reais.
Comentando a própria obra, Goethe considera que ela narra o triunfo da moral sobre a
atração espontânea, pois os apaixonados que dão livre curso aos próprios sentimentos não
sobrevivem; ao passo que Charlotte e Otto, também fortemente atraídos, mas presos às
conveniências, permanecem vivos. Parece ser este o mesmo ponto de vista adotado no filme sobre
as Afinidades Eletivas (1996), versão cinematográfica do clássico alemão adaptado na Itália pelos
irmãos Paolo e Vittorio Taviani, que inclusive deixa no ar a possibilidade de união futura entre o
casal sobrevivente. Distintamente, Benjamin vê a morte de Ottilie e Eduard como libertação da vida
na qual estavam condenados a permanecerem separados. Mortos, são enterrados lado a lado, unidos
para sempre. Segundo ele, o livro é uma valoração dos poderes míticos, e a força dos amantes em
seguir as próprias inclinações não permite que se fale em triunfo moral. Ao contrário, triunfam as
forças misteriosas que vencem a morte. Mas mesmo assim, na sua leitura, o filósofo vai se guiar,
não pelo mito, e sim pela filosofia. E nessa abordagem, a figura de Ottilie adquire relevo especial. É
ela a vítima expiatória das potestades tenebrosas em virtude da antiga exigência de que um inocente
seja sacrificado para que as faltas sejam purgadas. A jovem órfã é inocente, mas de uma pureza que,
para existir, tem que permanecer intocada. Em outras palavras, não permite escolhas. Essa
intocabilidade proíbe a entrega completa e determinada ao homem amado e a prende a seu destino
mítico, fechada em si mesma, impenetrável. Só a morte a protegerá da ruína interior. Ao longo do
romance, Ottilie quase não fala, é passiva e calada, e essa mudez revela que sua inocência é mera
aparência. O silêncio de suas emoções mudas provocadas por Eduard revela o mutismo de sua
consciência, em relação, por exemplo, a Charlotte que tão generosamente a acolhera. Benjamin
salienta que se a clareza de uma conduta não se exprime em palavras é porque ela é ilusória. “Na
verdade, os que assim se protegem acabam por não ver mais claro em si mesmo” (p.157).
A essência de Ottilie não é a inocência, mas a aparência, a beleza. Sua extrema formosura
silenciosa provoca um encanto mágico, que irrompe no livro causando uma comoção capaz de
estraçalhar toda a ordem das relações institucionalizadas. Goethe apresenta a potência mítica do
3

belo chegando aos limites do que pode ser expresso em uma obra. Quando se evoca a aparência, no
caso a beleza encarnada em Ottilie, que é imposta como uma matéria no sentido mais forte do
termo, possante, misteriosa, em estado bruto, escreve Benjamin, “a narrativa penetra no domínio
das fórmulas encantatórias” (p.160). A bela aparência encanta e arrasta às sombras pavorosas, ao
insondável, ao abismo sem fim. Essa ambigüidade – o terror da beleza – comanda o texto das
Afinidades Eletivas. Fica claro que as leis da moral burguesa subtraem à paixão todos os direitos de
tentar pactuar com a vida confortável, a vida fácil, a vida assegurada. Portanto, “aos heróis do
romance só resta a beleza, essa falsa aparência de reconciliação”, adverte o filósofo, pois “sobre o
amor que vacila, a norma reina” (p.167).
A paixão é escrava da beleza – exige a mulher mais bela. Para o amor a beleza não é nunca
o elemento decisivo, o interesse não é pela mais bela, mas pela amada. O cego desejo de Eduard
pela beleza é o núcleo central do livro. Vale lembrar, Ottilie é o nome alemão da santa padroeira dos
que sofrem dos olhos. De sua personagem Goethe diz que ela é uma consolação para o olhar. Como
se sabe, desde a Idade Média, a beleza pode ser um remédio para a melancolia. Segundo a teoria
medieval dos humores, os olhos estão diretamente ligados ao fígado, produtor da bílis negra que
torna os homens tristes e melancólicos. Ottilie, com sua aparência quase pictórica, será a droga, o
phármakon destes ricos e desocupados proprietários rurais. Escrava da beleza, a paixão desencadeia
forças devastadoras se não encontra em si um valor espiritual mais alto. Esse tipo de amor passivo e
mortal é a confissão do homem de sua impotência de amar. O amor verdadeiro é vedado aos
apaixonados personagens das Afinidades Eletivas. O ser apaixonado é uma falsa aparência, uma
pseudo remissão ao amor infinito, afirma Benjamin. Só o amor verdadeiro poderia arrancar os pares
protagonistas do romance do mundo das aparências, julga o filósofo. O verdadeiro amor surge do
pressentimento de que se poderá levar uma vida feliz ao lado do outro, e do desejo e decisão de
viver esse pré-sentimento. Quando a atração pela mulher mais bela é maior que o desejo de unir-se
à amada, “o amor torna-se a mais inútil e a mais amarga das paixões” (p.184).
Como já foi dito, o próprio autor considerava que o romance escrito aos 61 anos tratava do
triunfo da moral sobre a paixão. Consideração da qual discorda Benjamin, que não percebe a morte
dos amantes como expiação do ataque feito à instituição do casamento, mas ao contrário, como a
liberação de seus laços. O filósofo encontra no livro justamente o que acontece quando a moral é
derrotada. Ele destaca dois níveis, na técnica criativa da obra: o superficial, que joga a realidade no
conteúdo material; e o profundo, ou latente, onde está o teor de verdade, sobre o qual, afirma com
ousadia, nem Goethe, nem os comentadores da época tomaram consciência.
O principal problema percebido pelo ensaio benjaminiano diz respeito à fundamentação do
casamento. Na tentativa de encontrar as verdadeiras bases da instituição, duas diferentes versões são
apresentadas. Primeiramente, é citada a formulação kantiana que está na Metafísica dos Costumes,
onde o matrimonium é definido como a união de duas pessoas de diferentes sexos para o uso
recíproco, e por toda a vida, dos órgãos sexuais um do outro (Metaphysik der Sitten, 6:277). Trata-
se de um contrato jurídico necessário à união sexual. Nas palavras de Kant, “se um homem e uma
mulher quiserem ter prazer com as partes sexuais um do outro eles devem necessariamente se casar”
(Metaphysik der Sitten, 6:278). Benjamin adverte que considerar a união apenas em sua forma legal
não é suficiente para fundamentá-la. Desta perspectiva, o escritor foi mais adiante que o filósofo de
Königsberg: “Goethe não soube discernir, em toda sua pureza, o caráter moral que assegura aos
laços conjugais sua durabilidade - mas jamais teve, no entanto, a idéia de fundá-los sobre o direito”
(p.83). De alguma maneira, o poeta percebeu sensivelmente que, no que havia de mais profundo e
mais misterioso, o princípio do casamento era de outra ordem. Entretanto, tal opaca percepção
sensível não conduz a nada de sólido, ao passo que a definição kantiana, produto de uma razão fiel a
si mesma, “pode penetrar nas estruturas reais a um nível infinitamente mais profundo do que
qualquer consideração sentimental” (p.79); mas permanece, entretanto atada e presa ao fundo sólido
onde se forma o conhecimento: ao caráter de objeto. A tese kantiana da determinação objetiva do
contrato matrimonial é transcendida pela consciência de sua falta de significado. Transitando entre
extremos, Benjamin apresenta então a imagem do matrimônio criada por Mozart, na Flauta Mágica,
4

onde a mais pura expressão desse contrato se encontra no sentimento de fidelidade. Tamino e
Pamina, o casal da obra, deve passar pela prova do fogo e da água para ficarem unidos para sempre:
não se trata de paixão ou desejo de conquista, mas da decisão firme de permanecerem juntos.
A forma da união conjugal, apresentada por Goethe, decorre de um modo extraviado e
idealista de construir um lugar onde se aferrar, em um mundo que parece um redemoinho.
Entretanto, o casamento não pode encontrar sua justificativa nem só na paixão e nem apenas no
direito enquanto mera instituição, mas somente enquanto expressão da manutenção do amor,
sublinha Benjamin. No livro, a dissolução dos laços matrimoniais é ilegítima porque não é efetuada
por nenhum poder superior. Os personagens, quando abandonam a forma legal de existência
entregam-se às forças naturais, à moira, ao destino, e, portanto, à ruína. As ligações serão regidas
não por um acordo interior de ordem espiritual, mas pela harmonia entre as camadas mais profundas
de suas naturezas, pelas afinidades eletivas. Os heróis ficam submetidos aos poderes da natureza.
Natureza significa para Goethe tanto o domínio das aparências sensíveis quanto o mundo dos
arquétipos primevos. A obra trata do mítico, e toda significação mítica pede o segredo. Benjamin
considera que o poeta recusa às luzes do pensamento o poder de penetrar inteiramente no reino dos
fenômenos, mas não define as fronteiras do mito (p.109). E o mito que se instaura sobre a totalidade
é uma via que desemboca na visão de mundo que leva direto ao caos.
O filósofo percebe, nas Afinidades Eletivas, a imagem do combate de Goethe para escapar
do círculo onde a mitologia pretende aprisioná-lo, e uma promessa de purificação: o velho poeta,
que no período central de sua vida não temeu fazer um pacto com o mundo dos mitos, protesta
contra ele. No romance, que arrasta o leitor até o coração do tema como um irresistível turbilhão, é
narrada uma novela, que, distintamente, mantém o leitor à distância, “fora de seu círculo mágico”
(p.148). Trata-se da história de dois vizinhos que cresceram juntos e na adolescência separam-se.
Ao retornar, noiva de outro, a jovem descobre-se apaixonada pelo vizinho de infância. Não
conseguindo declarar seu amor, durante um passeio de barco ela atira-se no rio para escapar ao
casamento com alguém a quem não ama. Desconsiderando o perigo das águas revoltas, o jovem
vizinho imediatamente mergulha para salvá-la; após árdua luta contra a natureza consegue resgatar
o corpo da jovem, ainda com vida. Benjamin percebe aí a decisão clara e inequívoca que transforma
o jovem casal em senhores de sua própria história, e não em joguetes do destino, como ocorre com
os personagens do romance, cujas consciências não têm voz. A clareza de uma conduta, pensa o
filósofo, só é verdadeira quando se exprime, caso contrário é ilusória. Uma resolução moral só
ganha vida quando é expressa e rigorosamente transformada em objeto comunicável, quando toma
forma. A forma verdadeira tem seu laço mágico, “o feitiço da forma, num instante, faz um mundo”
(p.161). A expressão de uma decisão não depende de veicular máximas morais para ser moral: ela o
é na medida em que produz univocidade e inteligibilidade em si mesma. O momento reflexivo da
decisão, sua repercussão no interior de quem decide produz a experiência de uma clarificação
impossível de ser conseguida de outro modo. A expressão inequívoca de uma decisão acontece
sobre o fundo da impossibilidade de anular determinados elementos indizíveis. A palavra moral é
inexprimível, a palavra que articula a decisão move-se no âmbito indizível: apesar de sua clareza
não pode justificar completamente os seus motivos; é invariavelmente transcendente, subtrai-se à
fundamentação. A palavra da decisão implica uma inexpressividade sobre o que motiva a ação.
Na história dos vizinhos, eles obtêm uma verdadeira reconciliação porque ousam arriscar a
vida: eles se abandonam totalmente à vontade de reconciliação. A vizinha se joga na água por não
poder dizer o que sente, mas a decisão é inequívoca. Ao contrário, os personagens do romance
padecem sem combater, suas emoções ficam sem voz. O que falta à falsa reconciliação é o que a
verdadeira traz de aniquilamento.
Então, Benjamin se pergunta se a beleza é apenas aparência. E começa a responder
percebendo que tudo o que é essencialmente belo se liga à aparência. No caso da obra de arte, por
exemplo, a aparência se liga a seu contrário: ao sem-expressão. Essa tensão cria a beleza. O sem-
expressão e a aparência são opostos que, ligados numa relação, produzem a beleza. Benjamin
acredita que “toda obra de arte autêntica tem um irmão no terreno da filosofia” (p.63), pois coloca
5

virtualmente um problema para esta última. A verdade da beleza é o limite que escapa às nossas
aproximações conceituais, às artimanhas da nossa linguagem, permanecendo contudo refletida,
como impossibilidade de fechamento do discurso, nas tentativas de expressá-la. De acordo com o
filósofo, a aparência é o véu da beleza, cuja essência exige que ela só apareça velada. Assim a
beleza não é mera aparência, não é um véu, nem um fenômeno, “mas pura essência, uma essência
que, portanto, só permanece ela mesma com a condição de manter seu véu. Pode ser que a aparência
seja enganadora, mas a bela aparência é o véu estendido diante do que exige, mais que tudo,
permanecer velado. Pois o belo não é nem o véu nem o velado, mas o objeto velado” (p.181). O
desvelamento não traz a revelação mas sim o desaparecimento do objeto. Para re-velar a identidade
dessa essência que exige permanecer velada precisamos alcançar a intuição do belo como mistério.
Então, o que vai se revelar não é a idéia da beleza, mas o mistério dessa idéia.
Mistério é a palavra justa para definir uma realidade cuja essência última exige que ela
permaneça velada. “Porque o belo é a única realidade da qual se pode dizer que ela é, de maneira
essencial, ao mesmo tempo, o véu e o velado” (p.182). Também a aparência não é um reles véu
jogado sobre a coisa-em-si, mas o véu necessário para que a coisa-em-si exista para nós.
Sendo a beleza aparência do sem-expressão, só é possível entender essa aparência como
apresentação, uma vez que o sem-expressão, obviamente, não pode ser expresso. Só se manifesta
velado. Por isso, mesmo a falsa aparência pode ser o véu que a verdade necessita para aparecer. A
obra de arte é uma mentira que se apresenta como tal e a beleza é uma espécie de torso sensível da
verdade, cuja expressão é sempre fragmentada, seu absoluto nos é vedado.
A ligação entre beleza e verdade, é desdobrada por Benjamin no livro sobre A Origem do
Drama Barroco Alemão, escrito dois anos mais tarde. No prefácio dessa obra é retomada a teoria
platônica, que aparece no Symposion, de que a verdade é bela. A essência da verdade é afirmada
como a auto-apresentação do reino das idéias, como aparência onde o belo pode se refugiar. E a
beleza, para permanecer, tem que se admitir como fulguração, como elemento representativo da
verdade. “Seu brilho que seduz, desde que não queira ser mais que brilho, provoca a inteligência,
que a persegue, e só quando se refugia no altar da verdade revela sua inocência”, escreveu
enigmaticamente o filósofo, “a verdade não é desnudamento, que aniquila o segredo, mas revelação,
que lhe faz justiça” (Drama Barroco, p.53). No ensaio sobre As Afinidades Eletivas, Benjamin
percebe que o que mantém a obra viva é o sem-expressão, a misteriosa ligação entre a beleza e a
essência da verdade. O sem-expressão manifesta “a sublime violência da verdade” (p.162). É a
potência que possibilita, senão a separação, por certo a distinção entre a falsa aparência e a essência
da verdade. É o que destrói, em toda bela aparência, a falsa totalidade, o absoluto. É o que não pode
ser expresso e aparece como rachadura na expressão. Por essa potência de re-velação, Benjamin lhe
atribui poder de ordem moral. O sem-expressão aparece como cesura, quebra de ritmo, interrupção
que dá lugar a uma potência que ultrapassa toda linguagem. O poeta alemão Hölderlin considerava
a cesura como uma espécie de palavra pura, de interrupção contra-rítmica necessária para
possibilitar a apresentação do indizível. A quebra de ritmo na narrativa cria um movimento que,
questionando a pretensão totalitária do discurso, estabelece seu momento de verdade.
No livro de Goethe, a perseverança dos amantes em acreditar que se pertencem, mesmo se
percebendo condenados a viverem separados, mostra o que será a cesura da obra: a permanência da
esperança. Benjamin assinala a revelação dessa fenda na frase onde Goethe diz: “A esperança
passou por sobre as suas cabeças como uma estrela que cai do céu” (p.188). Contra tudo e todos,
desafiando qualquer lógica, os apaixonados mantêm-se esperançosos de realizarem sua paixão. Ao
revelar essa esperança paradoxal, o autor realiza o sentido do acontecimento. Como o fez Dante
Alighieri, na Divina Comédia, ao ouvir a arrebatada narrativa de Francesca di Rimini, condenada
por adultério junto com Paolo, seu amante. Francesca confessou extasiada que preferia padecer,
eternamente condenada, ao lado do amante a alcançar o Paraíso sem ele. A intensidade da
determinação desesperada levou o poeta florentino a perder os sentidos. Assumindo e incorporando
o desespero dos dois, o discípulo de Virgilio confessa que, ao escutar a história, “sentiu um morrer”
6

dentro de si, desfaleceu e caiu: “e caí como corpo morto cai” (“E caddi, come corpo morto cade”.
Divina Comédia, Inferno, V, 142).
Nas Afinidades Eletivas, a esperança surge da aparente reconciliação na outra vida e
justifica a aparência de reconciliação, que precisa ser desejada, afirma Benjamin. Então, a esperança
se livra da falsa aparência “e, no fim do livro, o problema da beleza não é mais que o eco de uma
trêmula interrogação por mortos que, se deverão despertar, que ressuscitem, é nossa esperança, não
num mundo de beleza, mas num mundo de beatitude” (p.190). Essa esperança representa o mistério
do sem-expressão. Mortos, os amantes não a têm mais, os vivos a têm por eles. E assim, o ensaio
benjaminiano termina afirmando que não é para nós, “é para os desesperados que nos foi dada a
esperança” (p.191).

Bibliografia
BENJAMIN, Walter. “Les affinités électives de Goethe”, in Walter Benjamin. Oeuvres Choisies.
Trad. Maurice de Gandillac. Paris: Julliard, 1959.
GOETHE, J. Wolfgang. As Afinidades Eletivas.
KANT, Immanuel. Metaphisics of Morals (Metaphysik der Sitten). Trad. Mary Gregor. Cambridge:
Cambridge University Press, 1966.

* * *

Você também pode gostar