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ORGANIZAÇÃO E TRADUÇÃO

Maria Auxiliadora Schmidt


Isabel Barca
Marcelo Fronza
Lucas Pydd Nechi

HUMANISMO
E DIDÁTICA
DA HISTÓRIA
JÖRN RÜSEN


1ª Edição - 2015

W. A. EDITORES
Curitiba
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Izabel Barca
Marcelo Fronza
Lucas Pydd Nechi

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Walter Werner Schmidt
João Luis da Silva Bertolini

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Direção editorial
Walter Werner Schmidt

Coordenação editorial
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Walter Werner Schmidt Rua General Carneiro, 460
João Luis da Silva Bertolini Telefone: 41 – 3360

Tradução Endereço eletronico


Maria Auxiliadora Moreira dos Santos Schmidt
Izabel Barca W.A. Editores
Marcelo Fronza Rua Rodrigues Alves, 189
Lucas Pydd Nechi Fone: (41) 3343-5139
www.waeditores.com.br
Sumário
Marcelo Fronza/Maria Auxiliadora Schmidt
Contribuições de Jörn Rüsen para a didática da
história na perspectiva do humanismo, 5
EstevãoMartins
Humanismo: a utopia necessária e sua historicidade, 13

Capítulo 1
Formando a consciência histórica – para uma didática
humanista da história, 19

Capítulo 2
Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e
diferença de culturas nos encontros de nosso tempo, 43

Capítulo 3
Humanismo clássico — um levantamento histórico, 57

Capítulo 4
Historicizando a humanidade – algumas considerações
teóricas na contextualização e compreensão sobre a ideia
de humanidade, 85

Capítulo 5
O enraizamento da ordem política nos valores dos
cidadãos, 99

Capítulo 6
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e
desafios contemporâneos, 123 3

Capítulo 7
Humanismo intercultural: ideia e realidade, 133

Capítulo 8
Humanismo na era da globalização: ideias sobre uma nova
orientação cultural, 153
Contribuições de Jörn
Rüsen para a didática da
história na perspectiva do

Contribuições de Jörn Rüsen para a didática da história na perspectiva do humanismo


humanismo
Marcelo Fronza1
Maria Auxiliadora Schmidt2

Um dos princípios básicos que fazem da Didática da História a função


pública do conhecimento histórico é o humanismo. Considerando que
as concepções ligadas ao realismo crítico estão, em geral, pautadas na
epistemologia do sujeito e a História fundamentada na narrativa produzida
pelos seres humanos, esta obra de Jörn Rüsen, Humanismo e Didática da
História, organizada e traduzida pelos professores historiadores Maria
Auxiliadora Moreira dos Santos Schmidt, Isabel Barca, Lucas Pydd Nechi
e Marcelo Fronza, tem como finalidade apresentar questões estruturais
para o ensino de história no mundo contemporâneo, para fazer face à
perspectiva instrumental da aprendizagem por competências e fornecer
fundamentos para uma aprendizagem voltada para a formação humana.
Levando em conta que no Brasil e no Ocidente as políticas públicas
voltadas à Educação estão impregnadas por perspectivas teóricas
mais instrumentais, como a pedagogia dos objetivos, a pedagogia
das competências e as expectativas de aprendizagem, onde as metas
educacionais são entendidas como moedas de troca que fazem seres 5
humanos, portanto, crianças, jovens estudantes e professores serem
desumanizados por práticas governamentais e sistemas de avaliação
antidemocráticas, em seus princípios, torna-se vital uma obra que
defenda um posicionamento político e intelectual coerente em prol da
humanização dos processos racionais de didatização do conhecimento

1 Marcelo Fronza é Professor doutor do Programa de Pós-graduação em História – UFMT.


2 Maria Auxiliadora Moreira dos Santos Schimdt é Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em
Educação – UFPR.
histórico.
Combatendo os processos de internalização do conhecimento
desumanizadores e instrumentalizadores, Jörn Rüsen propõe uma
Didática da História Humanista que permita aos sujeitos terem acesso aos
princípios de uma aprendizagem histórica emancipadora e que os levem
ao autoconhecimento a partir do reconhecimento do outro, no processo
Contribuições de Jörn Rüsen para a didática da história na perspectiva do humanismo

de formação da consciência histórica. A formação da consciência histórica


diz respeito, portanto às formas de saber compreendidos como “princípios
cognitivos que determinam a aplicação dos saberes aos problemas de
orientação”. Essas formas de saber se organizam em operações mentais
que os sujeitos articulam na orientação temporal da vida prática na
relação consigo mesmo e no processo comunicativo com os outros, por
meio do ato de narrar as experiências históricas da alegria e do sofrimento
humanos (RÜSEN, 2001, p. 101).
No Brasil, Rüsen é muito conhecido pela trilogia sobre Teoria da
História (Razão Histórica, 2001; Reconstrução do Passado, 2007; História
Viva, 2007, obras traduzidas para a língua portuguesa, publicadas pela
Editora da Universidade de Brasília e traduzidas por Estevão Chaves de
Rezende Martins, o primeiro e o terceiro volumes e Asta-Rose Alcaide, o
segundo.
Com estas obras, possibilitou-se o acesso à teoria da consciência
histórica desenvolvida por Jörn Rüsen, abrindo possibilidades para o
diálogo com pesquisas empíricas sobre aprendizagem histórica, que
desenvolvidas na Inglaterra, em Portugal e no Brasil. Estas pesquisas
difundiram-se pelo grupo de professores historiadores que investigam
o campo de pesquisa da Educação Histórica a partir da cognição
histórica situada (SCHMIDT, 2009), a qual estuda as ideias históricas
de crianças, jovens e professores em contexto de escolarização, por meio
da epistemologia da história. No Brasil, para desenvolver suas pesquisas,
os professores do Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica
6 da Universidade Federal do Paraná (LAPEDUH/UFPR) sentiram a
necessidade de traduzir para a língua portuguesa obras de Rüsen que são
fundamentais tanto para o campo do ensino de história, em geral e para o
campo específico da Educação Histórica.
Publicado em 2011, pela editora da Universidade Federal do Paraná,
Jörn Rüsen e o Ensino de História é um livro organizado por Maria
Auxiliadora Schmidt, Isabel Barca e Estevão C. de Rezende Martins, que
teve grande impacto nos debates e investigações em Educação Histórica,
pois permitiu o acesso dos professores de história brasileiros aos textos
do autor relativos à aprendizagem histórica, que originalmente e em
sua maioria, existiam em inglês ou alemão. Após esta tradução, estes
textos tornaram-se referências nas pesquisas brasileiras sobre o ensino
de história. Eles têm em comum a preocupação de trazer os diálogos
entre o pensamento rüseniano e o processo de formação da consciência
histórica por meio do aprendizado, valorizar as problemáticas e dilemas

Contribuições de Jörn Rüsen para a didática da história na perspectiva do humanismo


da experiência alemã no desenvolvimento da Didática da História, a
apresentação de alguns princípios que orientam o que é aprendizagem
histórica, o desenvolvimento das operações mentais da narrativa histórica
a partir da consciência moral, além da explicitação das três dimenções da
aprendizagem histórica — a experiência, a interpretação e a orientação
— e de como verificar os critérios do que seria um livro didático ideal,
ou mesmos as relações entre a narratividade e a intersubjetividade no
conhecimento histórico.
Outra obra de Rüsen fundamental para o Ensino de História foi
publicada em 2012, com apoio dos professores historiadores do LAPEDUH
na W.A. Editores - Aprendizagem Histórica: fundamentos e paradigmas.
Este livro apresenta os fundamentos e os paradigmas que estruturam
os critérios para a constituição de uma Didática da História humanista,
que tem como objetivo a aprendizagem histórica ao levar os estudantes e
professores historiadores a desenvolverem narrativas históricas complexas
que expressem sua consciência histórica. A atualidade e a importância da
Didática da História são enfatizadas por Rüsen, ao indicar a necessidade
de se colocar as discussões relativas ao ensino e à aprendizagem da
História no âmbito dos critérios racionais e objetivos da produção do
conhecimento histórico, ligadas à formação da consciência histórica
dos sujeitos. Isso, tendo como base a cultura histórica que é o locus da
articulação entre as dimensões cognitiva, política e estética, nas quais a
memória histórica se apresenta na escola e na sociedade que a institui.
Uma das contribuições que esta obra trouxe para as investigações em
Educação Histórica foi à explicitação da categoria da intersubjetividade 7
que, aliada à experiência e à subjetividade, é compreendida como critério
fundamental para a construção de uma aprendizagem comunicativa e
argumentativa, balizada epistemologicamente nas narrativas históricas
em diálogo. Outra contribuição fundamental foi a preocupação de Rüsen
em explanar sobre a operação mental da motivação histórica, que diz
respeito às condições racionais e estruturais para a ação que os sujeitos
realizam a partir da orientação temporal, constituída por experiências do
passado historicamente interpretadas.
É importante mencionar brevemente aqui o livro editado pela
Editora Vozes e publicado em 2014, Cultura faz sentido: orientações
entre o ontem e o amanhã. Nele, Jörn Rüsen propõe um debate, à luz
da teoria da consciência histórica, sobre como a História e sua função
pública, a Didática da História alicerçada na aprendizagem histórica,
podem desenvolver uma racionalidade que supere a tolerância por
Contribuições de Jörn Rüsen para a didática da história na perspectiva do humanismo

meio do princípio do reconhecimento do outro como critério para a


formação de identidades históricas pautadas na interculturalidade.
Segundo o autor, esta perspectiva busca combater as perspectivas
relativistas do multiculturalismo isolacionista e a hegemonia das
cosmovisões etnocêntricas a partir de uma reordenação da orientação
de sentido no tempo que entende a humanidade como uma contínua e
multiperspectivada reconstrução temporal policêntrica (RÜSEN, 2014, p.
297).
Seguindo esse caminho, os recentes textos de Jörn Rüsen, dos quais a
maioria deles está traduzida na presente obra, são vinculados ao projeto
de constituição de um novo humanismo. Esse projeto fundamenta-se no
conceito de humanismo que, para Jörn Rüsen, é pensado como ‘novo’
pois busca superar os valores de outros humanismos ocidentais. Rüsen
almeja não apenas valorizar as conquistas humanitárias dos períodos
que marcam a modernidade como também pretende suplantá-las para
construir um mundo igualitário (NECHI, 2014, p. 26).
O novo humanismo, conforme expresso no primeiro capítulo
da presente obra, está pautado nos princípios da interculturalidade e
da intersubjetividade que passam a ser expressos nas problemáticas
identitárias contemporâneas relativas à consciência histórica dos sujeitos
e à cultura histórica das comunidades. Ele diz respeito à unidade da
humanidade, bem como sua manifestação de várias formas de vida e
as mudanças culturais. Fornece uma dimensão temporal à humanidade
articulando uma visão abrangente da história universal, na qual as formas
8 de vida na sua individualidade são interpretativamente reconhecidas.
Politicamente, fundamenta a legitimidade da dominação e poder sob
os escrutínios dos direitos humanos e civis fundamentais. Entende
a subjetividade e a intersubjetividade humanas como processos de
autoconhecimento, em prol da dignidade inerente a todos os humanos
no tempo e no espaço. Portanto, o humanismo expressa sempre um forte
impacto didático.
A dimensão didática da História no âmbito do novo humanismo se
refere valorização da dignidade humana nos processos de didatização
do conhecimento histórico por meio de uma busca por sistematização
do conhecimento em aceleração da diversidade cultural no tempo e no
espaço, em uma ideia coerente da humanidade compreendida como
um todo temporal, isto porque cada tradição de categorização da
humanidade possibilita ser investigada como uma contribuição para a
comunicação intercultural entre os sujeitos. Segundo Rüsen (2015), “a

Contribuições de Jörn Rüsen para a didática da história na perspectiva do humanismo


ideia da humanidade, transculturalmente válida, pode assim ser realizada
na internalização, pelos reflexos mútuos desses diferentes conceitos, do
espelho da alteridade”. É na aprendizagem histórica que esse princípio se
aplica quando as experiências do passado passam a ser internalizadas a
partir da dimensão do sofrimento humano e que os conflitos e dores que
os jovens sofrem contemporaneamente têm suas contrapartes em ouras
épocas e ouras sociedades. Isso diz respeito à responsabilidade histórica
com os compromissos que podem levar o homem a se tornar humano, no
processo de luta pelo reconhecimento da dignidade do outro. Compromisso
que não se refere somente em manter as conquistas humanistas já
realizadas, mas democratizá-las para aqueles que, desde séculos, ainda
sofrem como vítimas de processos desumanizadores e etnocêntricos.
A necessidade de aprender experiência históricas de sofrimento que
apresentem o outro como o constituidor do “nós”, possibilita força para
lutar pelos direitos à igualdade e dignidade humanas. É fundamental que
se encontre, na relação intersubjetiva entre o eu e o outro na Didática da
História, o “rosto da humanidade”.
No texto Formando a consciência histórica – para uma didática
humanista da história, Jörn Rüsen aborda o significado do trabalho da
didática da história, a partir de quatro desafios que movem a cultura
histórica de nossa época: a) a insegurança crescente da identidade
histórica, (b) uma experiência irritante relacionada à diversidade cultural,
(c) um ataque contra as tradições ocidentais e d) uma nova ameaça sobre
a natureza. Para indicar novos caminhos para o conceito de humanismo,
Rüsen propõe reflexões no seu texto Em direção a uma nova ideia de 9
humanidade: unidade e diferença de culturas nos encontros de nosso tempo.
Essas reflexões abordam temáticas como o desafio da globalização para
a identidade cultural, o renascimento da origem dos tempos axiais e o
papel da ideia de humanidade. Na continuidade, o autor apresenta uma
reflexão histórica em torno do conceito de humanismo – Humanismo
clássico – um levantamento histórico -, iniciando com uma pergunta: O
que é “Humanismo Clássico?” Sua resposta passa pela fundamentação
das premissas antropológicas, pelos momentos da mudança histórica, das
sociedades arcaicas, das mudanças culturais nas eras axiais, dos passos em
direção à modernidade, da humanização da humanidade na história da
Europa moderna, indicando os passos em direção ao futuro.
As reflexões de Jörn Rüsen em torno dos conceitos de humanismo
e humanidade seguem nos vários textos desta obra, desde o instigante
capítulo Historicizando a humanidade – algumas considerações teóricas
Contribuições de Jörn Rüsen para a didática da história na perspectiva do humanismo

na contextualização e compreensão sobre a ideia de humanidade – e


ampliando-se para debates específicos que envolvem esta temática,
abordados no capítulo O enraizamento da ordem política nos valores
dos seus cidadãos. Algumas ideias sobre o humanismo político e a religião
como uma base necessária para uma democracia sustentável, bem como
no capítulo Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e
desafios contemporâneos. Finalmente, nos dois últimos capítulos, o autor
toma duas grandes questões da contemporaneidade, a interculturalidade
e a globalização e aceita o desafio de apresentá-las em consonância
com a temática do humanismo. Primeiro, abordando a relação entre
humanismo e interculturalidade no texto Humanismo intercultural: ideia
e realidade e, em seguida, com a relação humanismo e globalização, no
texto Humanismo na era da globalização: ideias sobre uma nova orientação
cultural.
Essa obra visa, enfim, estimular o interesse dos professores
historiadores de língua portuguesa em realizar investigações voltadas às
dimensões da dignidade humana no âmbito da Didática da História, bem
como articulá-las ao projeto do novo humanismo de Jörn Rüsen. Para isso,
há o sentimento da urgência com o compromisso de dar continuidade
à tradução de outros textos referentes ao humanismo rüseniano e suas
relações com a aprendizagem histórica. Isso porque mesmo que esse
projeto de lutas e investigações já tenha uma bela história no Brasil, a
razão história humanista ainda está em seu alvorecer.
10
Bibliografia
NECHI, Lucas Pydd. O novo humanismo como princípio da função didática da
história escolar: possibilidades a partir da consciência histórica de jovens estudantes
ingleses e brasileiros. 2014, 60p. (Relatório de qualificação para Doutorado em

Contribuições de Jörn Rüsen para a didática da história na perspectiva do humanismo


Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal
do Paraná, Curitiba, 2014.
RÜSEN, Jörn. A razão histórica: Teoria da história: os fundamentos da ciência
histórica. Brasília: UnB, 2001.
______. Reconstrução do passado: Teoria da História II: os princípios da pesquisa
histórica. Brasília: UnB, 2007.
______. História viva: Teoria da História III: formas e funções do conhecimento
histórico. Brasília: UnB, 2007.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; Martins, Estevão de Rezende
(Orgs.). Jörn Rüsen e o ensino de História. Curitiba: Ed. UFPR, 2010.
______. Aprendizagem histórica: Fundamentos e paradigmas. Curitiba: W. A.
Editores, 2012.
______. Cultura faz sentido: orientações entre o ontem e o amanhã. Petrópolis:
Vozes, 2014.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Cognição histórica situada: que aprendizagem
histórica é essa? In: SCHMIDT, M. A.; BARCA, I. (Orgs.). Aprender história:
perspectivas da educação histórica. Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2009, p. 21-51.

11
Humanismo: a utopia
necessária e sua
historicidade
Estevão C. de Rezende Martins
Professor titular de Teoria da História e História contemporânea
da Universidade de Brasília – Pesquisador 1B do CNPq.

... inquietum est cor nostrum donec requiescat in te...


S. Agostinho1

Humanismo: a utopia necessária e sua historicidade


O homem é a medida de todas as coisas.
Protágoras

Desde os anos 1970, o historiador alemão Jörn Rüsen tornou-se


gradualmente uma referência indispensável no campo da teoria do
conhecimento histórico, da História como ciência e da didática da
História no espaço sociocultural. Amplamente conhecido por sua trilogia
sobre Teoria da História, publicada no Brasil e difundida em outros países
de língua portuguesa e espanhola desde 20002, Rüsen publicou em 2013
nova versão, revista e consolidada, de sua Teoria da História, também
disponível em português desde setembro de 2015.3
Os oito textos reunidos na presente coletânea partem do pressuposto
de que a obtenção da consciência histórica, pelo sistema de aprendizagem
histórica, , instrui e instrumenta toda pessoa a lidar consigo, com o 13
mundo em que vive, com o tempo de que vem esse mundo e com o futuro
que o espera. Na contemporaneidade, a didática da História tem um
papel preponderante na apreensão, compreensão, análise e explicação da
1 Confessiones, I, 1.
2 Razão histórica. Os fundamentos da ciência histórica. (trad. Estevão de Rezende Martins). Brasília:
Ed. UnB, 2001; Reconstrução do Passado: Os princípios da pesquisa histórica. (Trad. Asta-Rose
Alcaide). Brasília: Ed. UnB, 2007; História Viva: Formas e funções do conhecimento histórico. (Trad.
Estevão de Rezende Martins). Brasília: Ed. UnB, 2007.
3 Teoria da História. Curitiba: Ed. UFPR, 2015.
sociedade e da cultura. Sobre esse papel da didática o primeiro texto é
programático e sistemático: didática articula pensamento, aprendizagem
e consciência histórica em meio à cultura histórica de uma dada
comunidade (independentemente de prevalecer ou não algum sistema
estatal de regulação de conteúdos e práticas educativas).
Todo ser humano buscar assenhorear-se reflexivamente de sua
experiência. Pelo pensamento racional, ele transforma em história ativa
o que, estruturalmente, foi uma história passiva. Jörn Rüsen enuncia seu
otimismo metafísico quanto ao pensamento e à cultura histórica com uma
concepção renovada do humanismo, cuja efetivação depende do grau de
autonomia crítica da consciência histórica dos indivíduos.
Não basta nascer como integrante da humanidade enquanto
coletivo de seres pensantes. A realidade do mundo dos homens não
necessariamente é uma realidade humana. Humanidade e desumanidade
concorrem entre si, contrastam, oscilam, entram em conflito, opõem
esperança e desespero, utopia e desencanto, alegria e dor, ação e paixão,
Humanismo: a utopia necessária e sua historicidade

avanço e recuo, conhecimento e ignorância, equanimidade e desequilíbrio,


justiça e descalabro, amor e ódio, igualdade e desigualdade, fraternidade
e inimizade, liberdade e prisão, bem e mal e assim indefinidamente. A
experiência do bom e do agradável tem de ser articulada com a experiência
equivalente do mau e do desagradável.4
O processo de aprendizagem de um sentido denso e consistente para
a realidade feita e sofrida pela humanidade necessita de um horizonte
humanista. O 'ser humano' é mais e melhor do que o 'ser atualmente tal
ou qual pessoa'.5
Desde a Antiguidade clássica, para a tradição histórica ocidental, o
eixo orientador da apreensão e da atribuição de sentido ao viver e agir
dos homens requer uma concepção otimista de um ser humano ideal, que
considera a si no espelho do outro.
O humanismo é uma concepção universal, de um ser humano cujas
14 constantes antropológicas podem ser encontradas em qualquer tempo, em
qualquer lugar, em qualquer cultura. Mundo, natureza, sociedade e cultura

4 Ver Jörn Rüsen. "Ideen einer neuen Philosophie der Geschichte", em Gerd Jüttemann (org.).
Entwicklungen der Menschheit. Humanwissenschaften in der Perspektive der Integration. Lengerich:
Pabst Publishers, 2014, pp. 41-48, esp. p. 43. Ver também Estevão de Rezende Martins. "Utopia:
uma história sem fim", em Marcos Antônio Lopes; Renato Moscatelli (orgs.). Histórias de países
imaginários. Variedades dos lugares utópicos. Londrina: Editora da Universidade Estadual de
Londrina, 2011, p. 11-19.
5 Ver Estevão de Rezende Martins. "Educar para a humanidade. História e Iluminismo", em Valério
Rohden (org.). Ideias de Universidade. Canoas: ULBRA, 2002, p. 63-92.
são pensados antropológica, antropocêntrica, antropotropicamente.
A historicidade instituidora de sentido para os processos temporais
submetidos à reflexão racional crítica haure sua lógica na individualidade
(por certo inserida em seu contexto social) do agente humano, em torno
do qual se pensa e enuncia a história, cujo decorrer destina-se a criar,
consolidar, manter e expandir a ideia do 'ser humano'.
A ideia de 'ser humano' não é unívoca, mas no mundo da modernidade
atual, está marcada pela dimensão transcendental da dignidade da pessoa
humana, da vocação a fazer o bem e a entender o respeito da alteridade
como essenciais. Na política, ontem e hoje, na academia, nas diversas
culturas, no mais distantes quadrantes do mundo, a enunciação de um 'ser
humano' para além e para acima das tensões e dos conflitos concretos da
história empírica, é um motor intelectual e prático que Rüsen considera
indispensável à 'boa forma de viver' entre seres humanos no século 21.
A ideia de humanismo funciona, para Rüsen, como um ideia
regulativa transcendental e universal: "Em minha argumentação, entendo

Humanismo: a utopia necessária e sua historicidade


por humanismo um recurso fundamental e uma referência para a natureza
cultural dos humanos na orientação da vida humana e um alinhamento
desta com o princípio da dignidade humana".
Formar a consciência histórica no quadro de referência do humanismo
como norma e expectativa torna-se um programa tanto da reflexão
histórica em geral como da didática da História - uma responsabilidade
compartilhada por todos, sem diferença de ser aluno, docente, pessoa
comum no quotidiano mais banal.
A ideia de humanismo não aparece pela primeira vez apenas agora.
Longas tradições lidam com ela e atribuem-lhe teores diversos, por vezes
complementares, por vezes divergentes. Os textos sobre o humanismo
clássico, sobre o humanismo político, sobre o humanismo muçulmano,
sobre o humanismo intercultural e sobre os desafios postos aos agentes
humanos pela promiscuidade da globalização, exemplificam com riqueza
de pormenores o alcance da proposta de Rüsen. 15
O legado histórico da memória e das identidades, não raro
contaminado pelos conflitos e as hegemonias, carece continuamente de
análise crítica e de autonomia reflexiva quanto ao choque entre a história
empírica, repleta de carências e de incoerências, e a expectativa de uma
história cheia de significado compartilhado e de respeito e consideração
mútuos.
"No humanismo clássico", escreve Rüsen, "a ‘humanidade’ é
considerada como o critério último de qualquer operação de criação de
sentido e, como tal, é concebida em duas aplicações universais, tanto em
um sentido empírico (que engloba toda a humanidade existente no espaço
e no tempo), quanto em um sentido normativo (atribuindo a cada sujeito
a dignidade de ser seu próprio fim)" – a formação de uma consciência
histórica antropológica e socialmente afinada com essa ideia é uma tarefa
da História e de sua didática. A modernidade dessa abordagem está na
disseminação crescente da exigência de uma atitude de reconhecimento da
alteridade e de corresponsabilidade pelos feitos (res gestae) e pelo que deles
se diz (narratio rerum gestarum). O desafio está em pensar a humanidade
para além de suas próprias limitações concretas, apostando na ilimitação
do horizonte de esperança para além da contingência empírica.
Sem dúvida a esfera pública representa uma realidade histórica
empírica de que não se pode abstrair sem correr o risco de cair em
pseudomundo. Assim, no espaço comunicativo da política do dia a dia
cabe igualmente praticar a reflexão historicizante que se assenhoreia do
passar do tempo para o inserir na consciência crítica da História.6
Humanismo: a utopia necessária e sua historicidade

A valorização da dignidade da pessoa humana, enquanto elemento


qualificador do humanismo, é a bússola que norteia a agregação da
humanidade. A política como vida social ganha assim, em tal concepção
humanista, um norte plausível – mesmo se a descrição do conteúdo dessa
concepção dependa de onde, de quando e de quem. Rüsen tem disso plena
consciência.
Nem o relativismo, que instaura zonas medíocres de conforto, eludindo
a tarefa crítica da reflexão histórica, nem o etnocentrismo corriqueiro
oferecem opções consistentes para o humanismo transcendental. "O
principal problema e ponto de partida é a questão de como conjugar
diversidade e diferença na vida humana, uma vez que tal está obviamente
a tornar-se mais forte devido à migração, aos efeitos da comunicação por
internet e às mudanças gerais na política e aos graves conflitos religiosos",
diz Rüsen no capítulo sobre humanismo intercultural.
16 Para o humanismo transcendental, o padrão de pensamento histórico,
com pensado pelo autor, está "numa argumentação antropológica
centrada no princípio da dignidade humana. As duas problemáticas -
antropologia e dignidade – foram claramente articuladas por Immanuel
Kant, ao afirmar que em cada orientação cultural da vida humana há três
questões básicas que têm de ser respondidas: O que posso eu saber? O que

6 Ver, por exemplo, Luiz Sérgio Duarte da Silva. "Ação comunicativa e teoria da História aproximação
de Habermas e Rüsen", em L. S. Duarte da Silva. Comunicação Intercultural. Interdisciplinaridade,
comparação e compreensão I. Curitiba: Editora CRV, 2014, p. 41-53.
devo eu fazer? O que posso esperar? E ele acrescentou – numa expressão
típica do pensamento moderno – que todas estas três questões podem ser
resumidas numa única e decisiva questão: O que é o ser humano?"
O humanismo transcendental proposto por Rüsen é uma resposta
possível e consistente a essa pergunta. Para o autor, é "necessário
desenvolver uma compreensão da humanidade na era da globalização
que, enquanto inclusiva de todas as civilizações, dê ênfase à sua
particularidade e diversidade. ... Todas a tradições culturais incluem
elementos humanísticos. ‘Humanístico’ significa simplesmente que, pelo
fato de se ser uma pessoa, se valorize em cada um a relação quer com os
outros quer conosco próprios".
Para que esse excelso propósito se efetive, importa haver sido
formada, constituída em cada um, a consciência histórica. Na perspectiva
iluminista de Wilhelm von Humboldt, o que vem ao caso não é instruir
ou cultivar – embora essas virtudes devam vir junto – mas formar o ser
humano em sua plenitude e, por acréscimo, o bom cidadão, crítico e atento:

Humanismo: a utopia necessária e sua historicidade


eis a substância do humanismo renovado. Rüsen, desde sua perspectiva
filosófica mais e mais elaborada nas pesquisas e escritos desde a década
de 2000, entende que a consciência histórica e a formação humanista nos
permitem lidar, com boa chance de êxito, com a insegurança crescente
da identidade histórica, com uma experiência provocativa relacionada
à diversidade cultural e com uma forte aversão às tradições ocidentais
– circunstâncias decorrentes do conflito de interpretações do mundo
causado pela diversidade (inter)cultural contemporânea.
Em suma, o humanismo "temporaliza a humanidade em um conceito
abrangente da história universal, dentro do qual toda forma de vida
é hermeneuticamente reconhecida em sua individualidade". Nele, "a
subjetividade humana é vista como um processo de autocultivo, de acordo
com a dignidade inerente a todos os seres humanos no espaço e no tempo".
O humanismo, como representação idealizada (utópica em sentido
positivo) do ser humano e de sua ação no tempo e no espaço, constitui, 17
pois, um horizonte que funciona sempre como referência didática.
O fio crítico da reflexão de Rüsen nos capítulos deste livro acompanha
o leitor, com grande proveito, ao longo da trajetória do pensamento
histórico em sua função didática, sustentada na concepção-mestra do
ser humano como eixo e objetivo. Um projeto instigante, desafiador,
promissor.
Formando a consciência
histórica – para uma
didática humanista da
história1

Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história


“Humanität ist der Charakter unseres Geschlechts;
er ist uns aber nur in Anlagen angeboren und
muβ uns eigentlich angebildet warden.”
Johann Gottfried Herder2

Desafios para a cultura histórica de hoje


O trabalho da didática da história não pode ser entendido ou
desenvolvido sem uma consciência de seu papel na cultura histórica de
seu tempo. Ele tem de perceber e de responder aos desafios da orientação
histórica, especialmente no que diz respeito ao aprendizado histórico e
sua realização em diferentes instituições, principalmente nas escolas.
Portanto, gostaria de começar meu artigo com algumas experiências
provocativas, que movem a cultura histórica de nossos países e que têm de
ser agarradas e trabalhadas não somente por didatas da história, mas, em
princípio, por todos os historiadores profissionais.
Eu gostaria de abordar quatro desses desafios, a maioria deles
19
1 RÜSEN, Jörn. “Forming Historical Consciousness – Towards a Humanistic History Didactics”. In:
NORDGREN, Kenneth; ELIASSON, Per; RÖNNQVIST, Carina (eds.). The Processes of History Teaching
– An international symposioum held at Malmö University, Sweden, March 5th-7th 2009.Karlstadt:
Karlstadt University Press, 2011, p. 13-33. Tradução por Marcelo Fronza. Existe uma versão quase
idêntica com título e resumo é em português, ver: RÜSEN, Jörn. “Forming Historical Consciousness
– Towards a Humanistic History Didactics” [“Formando a Consciência Histórica – Por uma Didática
Humanista da História”]. Antíteses, vol. 05, n. 10, p. 519-536, jul./dez. 2012. As obras citadas pelo
autor editadas em português foram referenciadas nesta língua.
2 “A humanidade é o caráter da nossa espécie; só é em nós inata como um potencial, e como tal deve
ser em nós cultivada.” Johann Gottfried Herder, Briefe zur Beförderung der Humanität. 2 vols. (Berlin,
Weimar: 1971), vol. 1, 140.
decorrente da densidade crescente do encontro intercultural e da
comunicação em todas as dimensões da vida humana, incluindo o
cotidiano das chamadas pessoas normais e, é claro, das crianças e
estudantes na escola: (a) a insegurança crescente da identidade histórica,
(b) uma experiência irritante relacionada à diversidade cultural, (c) um
ataque contra as tradições ocidentais e d) uma nova ameaça sobre a
natureza. Outro desafio muito importante para a cultura histórica será
omitido por razões de tempo, ou seja, a enorme importância das novas
Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história

mídias para a cultura histórica em todas as suas diferentes áreas.

a) A insegurança da identidade histórica


A identidade é uma resposta para a questão sobre quem é alguém
— uma pessoa ou uma comunidade. Essa resposta nunca foi simples,
mas sempre foi um dos grandes temas das práticas culturais. No entanto,
existem momentos em que as formas estabelecidas de identidade são
submetidas a uma forte dúvida e devem sofrer uma revisão crítica. Nós
vivemos em tal época. A identidade nacional — nos tempos modernos,
um dos conceitos mais bem sucedidos sobre o pertencimento e o ser
diferente, está perdendo sua forma e força tradicionais — principalmente,
na nossa parte do mundo, devido ao processo de unificação da Europa e
à crescente multiplicidade das origens étnicas estimuladas pela imigração
voltada para os Estados nacionais europeus. Pertencimentos trans-e-
sub-nacionais estão ganhando mais importância, e o caráter exclusivo da
nacionalidade está mudando para relações mais inclusivas. Dimensões
culturais e políticas da identidade se afastam, e esta é uma das razões pelas
quais a identidade está perdendo sua não ambiguidade.
No nível intelectual, mesmo a ideia de identidade como uma nítida
distinção entre o eu e a alteridade é posta radicalmente em dúvida em
favor da ideia opaca, vaga e esmaecida do hibridismo. Ainda mais, a nossa
20 identidade como seres humanos tornou-se um tema controverso. Nossas
dificuldades em relação às condições naturais da nossa vida têm levado a
uma nova e radical questão do que significa ser um ser humano. Ainda
somos criaturas moldadas por nossa cultura que alcançou o além da
natureza, ou vamos ter que voltar para a natureza como a decisiva ordem
da nossa vida?
Todas as narrativas que nos contam sobre quem somos devem ser
recontadas, ampliadas por uma dimensão global da espécie humana
na natureza, bem como intensificadas por uma nova consciência das
sobrecarregadas complexidades e ambiguidades da nossa relação conosco
e com a alteridade dos outros.
b) As pressões da diversidade cultural
A vida cotidiana da maioria, se não de todos os estudantes, está
profundamente condicionada pela experiência da diversidade cultural e
pelas tensões entre diferentes tradições e culturas. Essa experiência não é
nova, mas sua intensidade é. Deixou a dimensão da alteridade localizada,
até agora, fora do próprio mundo e se tornou um elemento no interior do

Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história


mesmo, incluindo, é claro, as salas de aula. A diferença não é mais uma
questão de distância, mas de proximidade. Isso levanta uma necessidade
urgente de encontrar o próprio lugar de si mesmo na diversidade das
visões de mundo e das formas de vida, para encontrar a estabilidade de
sua própria perspectiva de vida vis-à-vis com uma irritante multiplicidade
de possibilidades. As perguntas “quem sou eu, quem é o meu povo, e
quem são as pessoas com quem eu tenho que viver junto?” adquiriram
uma nova qualidade de urgência.

c) Os ataques contra as tradições ocidentais


Esta urgência recebe apoio de movimentos intelectuais, que colocam
radicalmente em dúvida as até então poderosas orientações culturais
da vida moderna ocidental. O pós-modernismo abalou cada ponto de
estabilidade dos conceitos básicos de história e de identidade. A experiência
histórica é substituída por uma geração de sentido imaginária, que tem
um elevado grau de arbitrariedade; e o relativismo cultural mina o poder
de persuasão dos meios conceituais de orientação cultural estabelecidos,
tais como a racionalidade metódica, a universalidade dos princípios
morais e as premissas básicas da sociedade civil secular. As pontes para a
orientação de vida intelectual entre as gerações tornaram-se quebradiças
e frágeis.
Esta decomposição das diretrizes intelectuais é reforçada por uma 21
aguda crítica da dominação ocidental sobre as civilizações não ocidentais.
O pós-colonialismo e a virada para o conhecimento autóctone nas ciências
humanas e sociais acusam os modos da modernidade cultural, advindos
em sua maioria do Ocidente, como sendo apenas meios ideológicos
de suprimir os outros. Esta atitude — seu mais influente precursor foi
Friedrich Nietzsche — foi internalizada na autoconsciência ocidental, no
âmbito da vanguarda intelectual.
d) A nova ameaça sobre a natureza
A crise ambiental também adquiriu uma nova urgência para reorientar
a autocompreensão humana. É essencialmente tão destrutiva a natureza
cultural da humanidade em sua diferença em relação à natureza, que uma
mudança geral na orientação cultural ligada ao “retorno à natureza” se faz
necessária? A natureza não tem desempenhado um papel importante no
Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história

ensino de história tradicional, pois segue uma linha geral das humanidades
ao ignorá-la nos assuntos humanos. Por outro lado, uma compreensão
predominantemente naturalista da humanidade, que tem experimentado
um enorme impacto na orientação cultural pelo recente sucesso da
genética e da pesquisa sobre o cérebro falha, ao não revelar a dimensão
histórica específica da relação entre o homem e a natureza. Em todo caso,
o fato de que compartilhamos uma natureza humana comum além de
todas as diferenças culturais ganhou nova importância, uma vez que a
destruição das condições naturais de sobrevivência humana interessa a
todos. Portanto, temos que estabelecer regras transculturalmente válidas,
com o objetivo de ancorá-las na profundidade de nossa identidade
humana. Por isso, uma questão deve ser levantada: qual a atuação da
natureza humana comum no desenvolvimento da identidade histórica,
enquanto ela está sendo formada na consciência plena da importância das
diferenças culturais?
Todos esses desafios devem encontrar uma resposta em todos os
campos da cultura histórica. A Didática da História deve trabalhar a sua
resposta específica, e é a intenção deste artigo desenhar um esboço para
isso ou, pelo menos, dar algumas sugestões para uma resposta convincente.

Alguns esclarecimentos conceituais


22
Deixe-me começar com algumas definições esclarecedoras das
categorias de base que devem ser usadas ​​em uma argumentação didática
específica.3

3 Para uma argumentação mais detalhada ver Rüsen, Jörn: Historisches Lernen. Grundlagen und
Paradigmen. 2nd edition, Schwalbach/Taunus: Wochenschau, 2008 (RÜSEN, Jörn. Aprendizagem
histórica: fundamentos e paradigmas. Curitiba: W.A Editores, 2012).
A Didática da História
Primeiro de tudo: o que é Didática da História? É uma disciplina
acadêmica especial, cuja tarefa é realizar a competência para o ensino de
história. Seu pressuposto constitutivo é o fato de que os Estados modernos
têm internalizado a história como uma disciplina nos currículos escolares,
com o objetivo principal de permitir à geração mais jovem entrar na
cultura histórica estabelecida dessas nações. Para cumprir esta tarefa,
a Didática da História deve acumular conhecimentos sobre o que é a

Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história


aprendizagem histórica, e como ela pode ser organizada e influenciada
por procedimentos e instituições de ensinos específicos.

A consciência histórica
A categoria básica para a compreensão da aprendizagem histórica é
a consciência histórica. A sua definição mais ampla ressoa como se segue:
a atividade mental da interpretação do passado para compreender o
presente e esperar o futuro. Assim, combina o passado, presente e futuro
de acordo com a ideia sobre o que trata a mudança temporal. Sintetiza as
experiências do passado com os critérios de sentido que são eficazes na
vida prática contemporânea e nas perspectivas de orientação de ação em
direção ao futuro. Na Didática da História este orientação para o futuro
deve desempenhar um papel importante uma vez que os estudantes
devem aprender a dominar sua vida futura enquanto cidadãos adultos, de
acordo com as exigências da cultura histórica de seu país.4

4 ANGVICK, Magne; BORRIES, Bodo von. Youth and History: a comparative European survey on historical
and political attitudes among adolescents. V. A and B, Hamburg: Koerber Fundation, 1997. KÖLBL, 23
Carlos; STRAUB, Jürgen. “Historical consciousness in Youth. Theoretical and exemplary empirical
analyses”, in, Forum qualitative social research. Theories, methods, applications. Vol. 2, nº 3, set.
2001, disponível em: http://qualitative-research.net.fas. MACDONALD, Sharon (ed.). Approches to
European Historical Consciousness: Reflections and Provocations. Hamburg: Edition Körber Stiftung,
2000. RÜSEN, Jörn. Geschichtsbewuβtsein. Psychologische Grundlagen, Entwicklungskonzepte,
empirische Befunde. Beiträge zur Geschichtskultu, vol. 21. Köln: Böhlau, 2001. TEMPELHOFF, Johann
W. N. (ed.). Historical consciousness and the future of our past. Vanderbijlpark: Clio, 2003. SEIXAS,
Peter (ed.). Theorizing historical consciousness. Toronto/Buffalo/London: University of Toronto
Press, 2006. STRAUB, Jürgen (ed.). Narration, Identity and Historical Consciousness. Making Sense of
History, vol. 3, New York: Berghahn Books, 2005. RÜSEN, Jörn. “O desenvolvimento da competência
narrativa na aprendizagem histórica: uma hipótese ontogenética relativa à consciência moral”. In
SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; Martins, Estevão de Rezende (Orgs.). Jörn Rüsen e o
ensino de História. Curitiba: Ed. UFPR, 2010, p. 51-77.
A cultura histórica
Cultura histórica5 é a manifestação da consciência histórica na
sociedade em diversas formas e procedimentos. Inclui o trabalho
cognitivo dos estudos históricos, bem como as atitudes da vida cotidiana
voltadas para a compreensão do passado e a conceitualização histórica
de nossa própria identidade; e não podemos nos esquecer dos museus e
da educação histórica nas escolas, nem as apresentações do passado nas
diversas mídias ou na literatura. É sempre útil refletir sobre a complexidade
Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história

da cultura histórica. Então, deixe-me distinguir as diversas dimensões


fundamentais da cultura histórica: a estética, a política e a cognitiva. São
definidos por diferentes princípios de geração de sentido, que não podem
ser reduzidos entre si, mas são sistematicamente inter-relacionados. Sua
unidade é definida pelo princípio integrador fundamental do sentido
histórico.

A aprendizagem histórica
Aprendizagem histórica6 é um processo mental em que as
competências ganhas são necessárias para orientar a própria vida por
meio da consciência histórica presente na cultura histórica já existente na
própria sociedade. É composta de quatro diferentes habilidades que são
sistematicamente inter-relacionadas e interdependentes: a capacidade de
construir a experiência histórica, a capacidade de interpretar esta mesma
experiência, a capacidade de usar a experiência histórica interpretada
(conhecimento histórico) para orientar a própria vida, no quadro de
uma ideia empiricamente articulada ao decorrer do tempo nas vidas
humanas — esta orientação inclui um conceito de identidade histórica
—, e, finalmente, a capacidade de motivar as nossas próprias atividades de
acordo com a ideia de nosso lugar nas mudanças temporais.

24

5 Uma detalhada apresentação de meu conceito de ‘cultura histórica’ pode ser encontrada em:
RÜSEN, Jörn: Historische Orientierung. Über die Arbeit des Geschichtsbewußtseins, sich in der
Zeit zurechtzufinden. 2. Aufl. Schwalbach/Taunus: Wochenschau, 2008, pp. 233-284; RÜSEN, Jörn:
Berättande och förnunft. Historieteoretiska texter. Göteborg: Daidalos, 2004, pp. 149-194; uma
versão modificada foi desenvolvida por Klas-Göran Karlsson: KARLSSON, Klas-Göran; ZANDER, Ulf
(Eds.): Echoes of the Holocaust. Historical cultures in contemporary Europe. Lund: Nordic Academic
Press, 2003; KARLSSON, Klas-Göran; ZANDER, Ulf (Eds): Holocaust Heritage. Inquiries into European
Historical Culture. Malmö: Sekel, 2004.
6 Ver RÜSEN, Jörn: Aprendizagem histórica: esboço de uma teoria. RÜSEN, Jörn. Aprendizagem
histórica: fundamentos e paradigmas. Curitiba: W.A Editores, 2012, p. 69-112.
O humanismo
O humanismo não é um conceito bem definido nas humanidades.7
Tem uma multiplicidade de significados que variam numa escala que
tem como marco, para as humanidades, o começo da história da Europa
moderna, em especial na relação com a antiguidade clássica, de um lado,
e todo um discurso liberal e de grande abertura a respeito dos assuntos
humanos. Em minha argumentação, entendo por humanismo um recurso
fundamental e uma referência para a natureza cultural dos humanos

Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história


na orientação da vida humana, bem como um alinhamento desta com
o princípio da dignidade humana.8 Suas dimensões empíricas e suas
normativas são universais. Ele inclui a unidade da humanidade, bem
como sua manifestação de várias formas de vida e as mudanças culturais.
Ele temporaliza a humanidade num conceito abrangente da história
universal, dentro do qual toda forma de vida na sua individualidade
é hermeneuticamente reconhecida. Politicamente, fundamenta a
legitimidade da dominação e poder sob a égide dos direitos humanos
e civis fundamentais. Compreende a subjetividade humana como um
processo de auto cultivo, de acordo com a dignidade inerente de todos os
seres humanos no espaço e no tempo. Portanto, o humanismo tem sempre
um forte impacto didático.
O humanismo foi uma das principais correntes da vida intelectual
e cultural no Ocidente. No início da história moderna configurou um
discurso intelectual, que foi além das duras regras de argumentação
escolástica abrindo, assim, o espaço cultural para a liberdade e os elementos
do secularismo. Numa relação constitutiva com a antiguidade clássica
vitalizou seu caráter paradigmático a respeito da compreensão do mundo
humano (além ou mesmo no interior de uma ininterrupta validade do
cristianismo). No humanismo do final do século XVIII e início do século
XIX apresentou uma particularidade nova e especificamente moderna
no período formativo das humanidades a partir das novas formações
25
7 Ver: GIUSTINIANI, Vito R.: “Homo, Humanus, and the Message of ‘Humanism’”, in: Journal of the
History of Ideas 46, nº 2, 1985, p. 167-195; BURKE, Peter: “The Spread of Italian Humanism”, in:
GOODMAN, Anthony; MACKAY, Angus (Eds): The impact of humanism on Western Europe. London:
Longman, 1990, pp- 1-20, esp. p. 1sq; CANCIK, Hubert: “Humanismus”, in: CANCIK, Hubert;
GLADIGOW, Burkhard; KOHL, Karl-Heinz (Eds): Handbuch religionswissenschaftlicher Grundbegriffe.
Bd. III. Stuttgart: Kohlhammer, 1993, pp. 173-185.
8 Ver RÜSEN, Jörn: “Traditionsprobleme eines zukunftsfähigen Humanismus” in: CANCIK, Hubert;
VÖHLER, Martin (Eds): Humanismus und Antikerezeption im 18. Jahrhundert, Bd. 1: Genese und Profil
des europäischen Humanismus, Heidelberg: Winter 2009, pp. 201-216; “Intercultural Humanism:
How to Do the Humanities in the Age of Globalization”, in: Taiwan Journal of East Asian Studies, Vol.
6, No. 2 (Issue 12), Dec. 2009, pp. 1-24.
de ensino superior e no estabelecimento dos direitos humanos como as
regras fundamentais para a política e a vida social.9

Respondendo aos desafios: a ideia de um novo


humanismo
Devemos começar a partir desta combinação de um universalismo
empírico e normativo da humanidade, sua forma política dos direitos
fundamentais, sua historicização geral e individualização da cultura
Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história

humana, e a ideia de uma humanidade auto cultivada em todos os


processos educacionais. A tradição deste humanismo deve estar habilitada
para responder aos desafios da vida cultural, o qual já mencionei no
início do meu artigo. Eu não argumento em favor da simples reprodução
do humanismo ocidental do limiar da modernidade, mas sim para seu
desenvolvimento futuro vis-à-vis com às experiências históricas do século
XIX e XX e às exigências específicas por comunicação intercultural e por
princípios fundamentais da orientação cultural contemporânea.10

Superando as lacunas do humanismo tradicional


Para transformar o humanismo moderno clássico em um modo
futuro que seja promissor da orientação cultural contemporânea deve-se,
antes de tudo, indicar aqueles de seus elementos que ainda são válidos.
Em contraste com a crítica generalizada da modernidade enquanto
uma forma unilateral de compreender o mundo humano, sobretudo o
ocidental, eu vejo uma promessa para o futuro em suas particularidades
modernas, principalmente em seus elementos universalistas. Com sua
síntese de um universalismo empírico e normativo, seu historicismo
individualizante e sua ênfase na auto cultivo, o humanismo inaugurou
um quadro apropriado para discutir os temas referentes à formação da
identidade, à valorização da diversidade cultural, à defesa das conquistas
26 da sociedade civil moderna, e à abordagem do papel da natureza na cultura
humana. No entanto, este quadro deve ser reformulado, com a finalidade
de superar as lacunas do humanismo moderno: a incapacidade para

9 Ver: CANCIK, Hubert; VÖHLER, Martin (Eds): “Humanismus und Antikerezeption im 18. Jahrhundert”
(Fn. 6); essa forma francesa é descrita por TODOROV, Tzvetan: Imperfect garden. The legacy of
humanism. Princeton: Princeton University Press, 2002 (TODOROV, Tzvetan. O Jardim Imperfeito: o
Pensamento Humanista na França. São Paulo: EDUSP, 2005).
10 RÜSEN, Jörn; LAASS, Henner (Eds): Humanism in Intercultural Perspective. – Experiences and
Expectations. Bielefeld: Transcript, 2009. Ver neste livro: RÜSEN, Jörn; LAASS, Henner (Eds):
Humanismo na Perspectiva Intercultural – Experiências e Expectativas.
enfrentar a desumanidade; a ideia ilusória sobre o conceito paradigmático
da humanidade na antiguidade clássica; os elementos eurocêntricos na
ideia de história universal; e os limites em integrar a natureza no interior
da ideia de humanidade.
Um humanismo atualizado deve integrar a sombra da desumanidade
na ideia de humanidade com base no princípio da dignidade humana.11
Enquanto um princípio de dignidade antropológica, tem elementos
utópicos e deve ser entendido como uma reação à capacidade de cada

Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história


ser humano de cometer os crimes mais cruéis e terríveis contra a
humanidade. Esta fundamental ambivalência da humanidade é um
estímulo permanente para a mudança histórica — tanto no plano da
motivação da ação humana e quanto no da compreensão histórica e da
orientação cultural. Além disso, o humanismo pode abrir a perspectiva
da experiência histórica para a dimensão, até então fundamentalmente
ignorada, do sofrimento humano.
A antiguidade clássica está sempre apresentando paradigmas
históricos de uma visão humanista sobre a vida humana no Ocidente.
A imagem histórica das suas particularidades humanas na realidade
da vida humana é uma ilusão. Deve ser substituída por uma imagem
realista das origens culturais do Ocidente na antiguidade clássica.
Continuará a ser uma raiz da inspiração para o espírito de liberdade
política, da argumentação racional, e de algumas ideias básicas sobre a
natureza humana tal como a igualdade, o direito natural e a dignidade. As
características ilusórias da humanidade tem que ser criticadas, mas sua
essência não deve ser abandonada em favor de um realismo desiludido
e cético. Em vez disso, deve ser usada como um elemento normativo de
uma exuberância utópica. Também pode servir como um elemento de
crítica em relação a todas as tentativas de compreender o que os seres
humanos podem fazer para os outros seres humanos.
Embora o humanismo clássico moderno enfatize a diversidade cultural,
não é, no entanto, livre de elementos eurocêntricos. Uma vez que cada 27
apresentação histórica tem uma perspectiva, sua dependência em relação
aos pontos de vista e às visões de mundo é inevitável. O etnocentrismo
é apenas uma forma específica dessa dependência. Caracteriza-se por
uma avaliação desequilibrada da inter-relação entre o eu e a alteridade.
Devem ter lugar aqui as generalizações de particularidades específicas da

11 Experimentei uma primeira tentativa de análise em relação ao Holocausto: “Humanism in response


to the Holocaust – destruction or innovation?”, in: Postcolonial Studies, vol. 11, no. 2, June 2008, p.
191-200.
cultura ocidental voltadas para os universais antropológicos. Ambos os
elementos podem ser encontrados em um humanismo moderno e devem
ser eliminados. Por outro lado, encontramos também um remédio na
própria tradição, ou seja, as abordagens hermenêuticas do historicismo
humanista com o seu interesse na diferença e na variedade da cultura
humana. Eles não devem ser negligenciados, mas trazidos para o jogo da
comunicação intercultural.
No que se refere à integração da natureza em uma ideia humanista da
Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história

humanidade não se deve esquecer que o humanismo moderno clássico não


excluiu a natureza de sua antropologia histórica e educacional.12 Contudo,
infelizmente, a atitude geral moderna de dominar e de explorar a natureza
não foi identificada como um perigo para a autodestruição humana.
Vis-à-vis aos esmagadores problemas ambientais contemporâneos, as
condições naturais da vida humana devem ser integradas em toda ideia
plausível de humanidade. A conquista humanista dos direitos humanos
e civis, enquanto elementos de humanização na política e na sociedade
deve ser reconstituída ao aplicá-los na inter-relação da humanidade e da
natureza. O humanismo deve fornecer princípios de legitimidade para
dominar a natureza e usá-la em prol da sobrevivência humana.

Novos conceitos: múltiplas modernidades enquanto uma


segunda era axial
Todos estes limites podem ser superados. Mas isso não pode ser
alcançado seguindo o pensamento dominante anti-humanista da vida
intelectual no Ocidente durante o século XX. 13 Em vez disso, poderá ser
atingido através da capacitação e da melhoria do humanismo moderno
tradicional, integrando as experiências históricas do passado recente a
partir de suas ideias de humanidade.
Ser um ser humano e fornecer todos os conceitos de humanidade com
28 a ideia de dignidade individual poderia ser um ponto de partida plausível
para mobilizar uma orientação cultural no processo de globalização. Tudo
isso poderia realizar a unidade da humanidade enquanto um tornar-se
realidade em todas as dimensões da vida humana. Mas, ao mesmo tempo,
esta unidade não é exclusiva, visto que a diversidade de tradições e formas
12 Ver RÜSEN, Jörn: “Humanism and Nature – Some Reflections on a Complex Relationship”, in: The
Journal for Transdisciplinary Research in Southern Africa vol. 2, no. 2, December 2006, pp. 265-276.
13 Ver FERRY, Luc; RENAULT, Alain: Antihumanistisches Denken. Gegen die französischen
Meisterphilosophen [orig.: La pensée 68. Essai sur l’anti-humanisme contemporain, Paris: Gallimard,
1985], München: Hanser, 1987.
de vida são muito poderosas.
Como atender à necessidade de sintetizar a unidade e a diferença
das tendências universalizantes relativas à carregada ideia dos valores da
humanidade em todas as tradições? Penso que é necessário reformular a
ideia humanista da história universal, mas aqui também nos equipamos
com uma tradição útil: é paradigmaticamente representada pela filosofia
da história de Johann Gottfried Herder.14 A filosofia da história nos
limiares da modernidade foi uma tentativa de organizar o conhecimento

Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história


acelerado da diversidade cultural no espaço e no tempo, no interior de
uma ideia coerente da humanidade entendida como um todo temporal.
Esta abordagem filosófica da história universal deve ser entendida em
conjunto com todas as tentativas de pluralizar a história universal. É
claro que a ideia abrangente da unidade da humanidade está agindo,
aqui, na e pela diversidade de culturas e de civilizações na mudança
histórica permanente. O intento mais promissor desse tipo é a filosofia
da história de Karl Jaspers e sua ideia de eras axiais.15 Esta ideia pode ser
compreendida e reconceitualizada enquanto uma ferramenta metódica
do pensamento histórico contemporâneo.16 Além disso, a compreensão
do processo mundial de múltiplas modernidades17 e da globalização deve
ser alargada e entendida como uma segunda era axial.
Não posso entrar em detalhes em relação à ideia das eras axiais,
mas cito um de seus elementos decisivos: todos nós vivemos dentro da
segunda era axial. Ela tem como tarefa se referir às ideias da humanidade,
que foram concebidas no primeiro tempo axial em diferentes formas,
mas que, no entanto, excluíram-se umas das outras. Deve-se buscá-las
para transformar a lógica da exclusão em uma inter-relação de diferentes
ideias sobre a humanidade dentro da lógica da inclusão. No âmbito de
tal lógica, cada tradição de conceitualização da humanidade pode ser
entendida como uma contribuição para a comunicação intercultural. A
ideia da humanidade, transculturalmente válida, pode assim ser realizada
29
14 HERDER, Johann Gottfried: Werke, ed. Wolfgang Pross, vol. III in 2 vols: Ideen zur Philosophie der
Geschichte der Menschheit. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2002; HERDER, Johann
Gottfried. Reflexions on the Philosophy of the History of Mankind, transl. F.E. Manuel, London: 1986.
15 JASPERS, Karl: Vom Ursprung und Ziel der Geschichte. (primeiramente em Zürich 1949). München:
Piper 1963; JASPERS, Karl: The Origin and Goal of History. Westport, Conn.: Greenwood Press, 1976.
16 EISENSTADT, Shmuel Noah (Ed.): The Origins and diversity of axial age civilizations. Albany: State
University of New York Press, 1986; ARNASON, Johann P.; EISENSTADT, S.N.; WITTROCK, Björn (Eds.):
Axial Civilisations and World History. Leiden: Brill, 2005.
17 EISENSTADT, S.N.: “Multiple Modernities”, in: Daedalus, Winter 2000, vol. 129, no 1, pp. 1-30
(EISENSTADT, S.N. “Múltiplas Modernidades”. Sociologia, Problemas e Práticas, n.35, Oeiras, p. 139-
163, abr. 2001.).
na internalização, pelos reflexos mútuos desses diferentes conceitos, do
espelho da alteridade.
O que isso significa para a aprendizagem histórica e para a tarefa da
Didática da História? No plano dos princípios, a resposta a esta pergunta é
bastante simples: o que eu disse sobre conceitualizar a humanidade através
de uma síntese de unidade e diversidade, deve ser aplicado ou, melhor
ainda, tem que ser traduzido, é claro, na ideia de aprendizagem histórica.
A resposta não é nada simples no plano de uma organização detalhada
Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história

do aprendizado histórico e de uma estratégia para o ensino de história.


Elas devem cuidadosamente trabalhadas. Não posso esboçar uma teoria
completa da aprendizagem e do ensino de história neste presente quadro
de um novo humanismo. Mas posso indicar fundamentos para tal teoria e
dar algumas sugestões para a realização das suas questões práticas.

Pressuposições e implicações para a


aprendizagem histórica
Todo processo de aprendizagem histórica deve começar com
a situação das crianças e dos estudantes. Que experiências de suas
vidas cotidianas devem ser abordadas e apreendidas a fim de trazer as
competências do pensamento histórico das quais precisam para sua vida
futura?

Diversidade e unidade na sala de aula


A experiência mais estimulante, e que pode dar início a instrumentos
e elementos básicos para a ideia humanista da história, é a experiência da
diversidade cultural no mundo vivo dos estudantes, uma vez que já está
presente na variedade de suas bases culturais e — mais concretamente
30 para o ensino da história — em sala de aula. Os estudantes vivem suas
vidas em contextos sociais onde a diferença cultural desempenha um
papel enorme e, ainda não encontrou, de modo geral, sua forma de
aceitação apropriada. Eles devem entrar em acordo com esta forma nas
várias dimensões de suas vidas. Sua consciência histórica deve integrar
esta variedade numa perspectiva temporal coerente, dentro da qual suas
identidades históricas adquirem particularidades pessoais e sociais. Ao
mesmo tempo, a alteridade pode encontrar um espaço para a aceitação.
A Didática da História, que tematiza esta perspectiva de tempo como
o principal objetivo do ensino e da aprendizagem histórica, deve começar
com a percepção em relação ao fato de que cada estudante é uma história
internalizada. Numa visão humanista, esta história pré-estabelecida na
presença dos estudantes, deve ser concebida e tratada como uma história
individualizada da humanidade. Essa percepção se deve novamente
à tradição humanista: é a principal tese de um dos grandes pensadores
humanistas, Wilhelm von Humboldt, o qual declarou que cada ser
humano é uma manifestação da humanidade e deve viver sua vida pessoal

Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história


na consciência total desta representação.18
No entanto, tudo isso soa muito retórico e não significativo para a
vida real dos jovens. Mas, sem uma referência a um princípio básico da
individualidade e da inter-relação social, as tarefas educacionais do ensino
de história não poderiam ser suficientemente realizadas. A aprendizagem
histórica deve ser organizada como uma tentativa de intervir no processo
de individualização e socialização. Esta tentativa deve estar comprometida
com o propósito de ajudar os estudantes a encontrar sua identidade
pessoal dentro do contexto social pré-estabelecido. Esta descoberta deve
ter lugar de tal forma que ele ou ela possam encontrar o reconhecimento
de sua individualidade e, ao mesmo tempo, serem capazes de reconhecer
a alteridade. Formular esse objetivo da educação não é apenas uma tarefa
específica da história. Ao estruturar a identidade desejada por meio de uma
história, apresenta suas chances e dificuldades, torna-a especificamente
histórica.
Deixe-me repetir o fato: os estudantes já vivem no contexto social de
uma sociedade civil. Ela organiza a vida de seus membros de acordo com
algumas regras universais e valores básicos, os quais permitem e garantem
o individualismo como uma questão relativa ao ser diferente. A educação
histórica na escola deve apresentar esta forma de vida como resultado
de um processo histórico de longa duração. Este pode ser caracterizado
como um processo de humanização do homem.19 Este processo tem sua
31
18 HUMBOLDT, Wilhelm von: “Über den Geist der Menschheit”, in: Werke, ed. Andreas Flitner und
Klaus Giel, Bd. 1: Schriften zur Anthropologie und Geschichte. Darmstadt: Wissenschaftliche
Buchgesellschaft 1960, S. 506-518 (Gesammelte Schriften [Akademie-Ausgabe] II, pp. 324-334).
19 Ver MAZLICH, Bruce, The idea of Humanity in a Global Era. New York: Palgrave, 2009;
OESTERDICKHOFF, Georg W. “Die Humanisierung des Menschen. Anthropologische Grundlagen der
Kulturgeschichte der Menschheit.” In RÜSEN, Jörn (ed.), Perspektiven der Humanität. Menschsein
im Diskurs der Disziplinen. Der Mensch im Netz der Kulturen — Humanismus in der Epoche der
Globalisierung, vol. 8, Bielefeld: Transcript, 2010; RÜSEN, Jörn. “Klassischer Humanismus — Eine
historische Ortsbestimmung, in ibid. p. 273-316 (ver neste livro: RÜSEN, Jörn. “Humanismo Clássico –
um levantamento histórico”); LONGXI, Zhang (ed.): The Concept of Humanity in Age of Globalization.
Göttingen: Unipress, 2011 (no prelo).
finalidade e abre a sua perspectiva de futuro no interior da subjetividade
dos cidadãos e, aqui pensamos, é claro, dos estudantes. Uma vez que os
valores básicos desta forma de vida são universais e, potencialmente,
incluem todos os seres humanos na sua validade e seus compromissos,
essa história só pode ser a história da humanidade. (A propósito, eu
acho que essa história deve ser compreendida e narrada como a melhor
resposta ao ataque à tradição ocidental, conforme já mencionei no início
deste artigo.)
Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história

Diversidade e unidade na aprendizagem histórica


O que significa a história da humanidade? À primeira vista, isso soa
muito abstrato e incapaz de preencher qualquer currículo viável para os
ensino e aprendizado históricos. Mas essa impressão é enganosa. Não
defendo uma história completamente nova; ao invés disso, meu apelo é
apenas voltado para uma nova forma e uma nova dimensão da velha e
familiar história.20 Todos estes acontecimentos históricos que são relevantes
para a compreensão da forma de vida de uma sociedade civil moderna
devem ser considerados. No entanto, a apresentação dessa história nos
processos de aprendizagem deve encarar o “rosto da humanidade”. Os
marcos, que delimitam o caminho para o mundo da vida dos estudantes,
devem ser apresentados enquanto um impacto da compreensão sobre o
que significa ser humano a partir dos processos da vida, os quais estão
impregnados por esse entendimento. Essa significância histórica inclui,
é claro, os limites, as lacunas e as prevenções da humanidade imaginada
e seus perigos: — considerando, com isso, as percepções das práticas
desumanas que podem resultar no tratamento de pessoas que não foram
antes incluídas na ideia de humanidade.
Para dar um exemplo de um tema bastante convencional: a Revolução
Francesa. Aqui, a organização democrática da dominação política deveria
32 estar no centro de apresentação e da discussão dos acontecimentos
essenciais. As regras dos direitos humanos e civis e a ideia correspondente
de humanidade (com seus elementos de exclusão referentes às mulheres,
escravos, etc.) devem ser focalizadas. Mas a sombra da revolução
assim deveria ser tratada: o assassinato genocida de pessoas, tais como

20 A este respeito, eu me diferencio substancialmente em relação à proposta de um novo currículo de


história dedicado a uma história universal válida para todos, como tem sido feito por CAJANI, Luigi: “A
World History Curriculum for the Italian School”, in: World History Bulletin, Fall 2002, vol. XVIII, No.2,
pp.26-32. Cajani não leva em conta, sistematicamente, a necessidade da diferença cultural como
uma questão relativa à identidade histórica.
os camponeses da Vendéia, que eram vistos como os “inimigos da
humanidade”, deve ser abordado como um perigo geral em potencial para
todos os humanos.

Como aprender a História Universal


Tematizar a humanidade como a questão central do ensino e da
aprendizagem histórica coloca toda a discussão do passado e do seu
impacto no presente e no futuro na estrutura da história universal.

Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história


“Universal” não significa trazer tantos fatos quanto possível para o
estoque de conhecimento que os estudantes deveriam adquirir. Em vez
disso, é uma forma de interpretar e compreender os acontecimentos e
desenvolvimentos históricos primorosamente selecionados, com a qual os
alunos devem se familiarizar. A humanidade deve ser internalizada nos
processos de aprendizagem como uma dimensão da vida humana, que
está sempre presente em suas múltiplas manifestações e mudanças.
Este dimensionamento humanista deve começar, desde o início,
pela educação histórica, e continuar acompanhando-a em direção a sua
própria finalidade — a necessidade da criação de um novo humanismo
político e cultural contemporâneo. As primeiras formas de vida das
sociedades arcaicas, as formas de vida das chamadas civilizações avançadas
e, finalmente, as formas de vida das sociedades modernas devem ser
abordadas com uma abordagem especial voltada para a compreensão do
que significa ser um ser humano como pessoa em seu contexto social.
Quando é abordada a mudança estrutural das formas de vida humana
referentes ao status dos humanos em relação às dimensões da realidade
não humanas ou além-das-humanas, os estudantes descobrirão elementos
ainda eficazes dessas diferentes estruturas em sua própria experiência
de vida. Isso faz com que a inclusão da antropologia cultural se torne
necessária por enfatizar as formas básicas da vida humana para o ensino e
a aprendizagem da história. 33
As diferenças estruturais das formas de vida humana deveriam ser
postas na dimensão temporal do desenvolvimento. Essa perspectiva
histórica universal da humanidade aparece como um processo
fundamental de humanização, isto é, como um processo de alargamento e
aprofundamento do âmbito desses valores que definem a humanidade em
relação aos seres humanos.
Tal perspectiva histórica universal deve ser realizada de modo
plausível para os estudantes. Deve formar a estrutura temporal da sua
consciência histórica. A estrutura temporal dominante da consciência
histórica emergente dos estudantes deveria estar relacionada a uma
humanidade temporalizada, caracterizada pela luta permanente no
sistema de valores inscritos na natureza cultural do homem.
Cada tema histórico específico, bem como a forma como são
compreendidos os processos concretos de mudança temporal devem ser
regularmente pensados em relação a sua relevância para a perspectiva geral
da humanização da humanidade (e seus respectivos valores e normas).
Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história

Um dos meios mais eficazes para desenvolver essa ideia é a apresentação


e a reflexão sobre os cortes longitudinais (perfis) (Längsschnitte) como
as unidades de ensino de História. Aqui, a referência principal são as
estruturas de importância antropológica fundamental e sua mudança de
longa duração em direção à ideia da humanidade contemporânea. Seu
impacto sobre os direitos básicos para todos os seres humanos e sobre
o reconhecimento mútuo das diferentes tradições, crenças e formas de
vida (com a meta final de uma sociedade civil secular) deveria se tornar
evidente.
Um exemplo simples de tal seção longitudinal é uma história
universal da mudança e do desenvolvimento das mídias da comunicação
humana. Mesmo os jovens estudantes podem aprender que nesta
retrospectiva história existe um processo de globalização totalizante
do desenvolvimento, que parte da oralidade, passa pela escrita e chega
à nova mídia eletrônica moderna.21 As crianças podem aprender acerca
do enorme impacto dessas diferentes mídias para a organização da vida
humana em geral; podem aprender o que poderia ser entendido por
“progresso”; e podem aprender que os elementos básicos das formas de
vida mais antigas, e essencialmente diferentes, não foram dissolvidas,
mas permaneceram nas épocas posteriores. Apenas seu status mudou.
Processos estruturais similares podem ser incorporados nos currículos
como, por exemplo, a mudança estrutural das formas de legitimação da
34 dominação política (para fornecer-lhe uma palavra de ordem: da natureza
divina do Faraó para uma constituição democrática moderna).
Desenvolvimentos universais semelhantes podem ser identificados na
economia, no meio ambiente, na vida social e em todas as outras dimensões
da vida humana. Esses processos estruturais podem ser transferidos
para a educação histórica na escola, mas apenas sob a condição de que

21 D'HAENENS, Albert: Oralité, Scribalité, Electronalité. La scribalité occidental depuis le moyen age.
Louvain-la-Neuve, 1987.
os fenômenos complexos fossem didatizados devidamente pela reflexão
teórica, de modo que os paradigmas tipológicos ideais sejam trabalhados,
o que poderia ser ilustrado com fatos concretos.

A unidade do tempo histórico na diversidade das


experiências históricas
Qual a contribuição da variedade de experiências históricas para a unidade
de um processo histórico abrangente? Esta questão é primordialmente teórica

Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história


e um tema da filosofia da história. Mas, ao mesmo tempo, tem uma enorme
relevância prática para o ensino e a aprendizagem da história. Aqui nós temos
que lidar com a seguinte questão: o que — ou melhor, que agente — dota
a consciência histórica com uma estrutura mental coerente, aberta para as
experiências e capaz para a interpretação, a orientação e a motivação? Mais
uma vez a resposta a esta pergunta exige uma filosofia da história que conduz à
unidade temporal da história universal para a subjetividade dos estudantes. O
lugar desse conceito temporal é a sua identidade. Por identidade entendo uma
coerência estrutural de várias identificações centradas na auto-referência de
um indivíduo e sua comunidade social.22 A identidade integra as objetivações
múltiplas do ser humano com suas projeções para o mundo exterior, de modo
que a pessoa envolvida tenha conhecimento de si própria ou próprio como
sendo a mesma, a primeira e única, em todas as mudanças de tempo e espaço.
A aprendizagem histórica, numa compreensão humanista, é um
processo de individualização da humanidade na cena da experiência
histórica. Este processo deve ser apresentado de tal forma que ele conheça
e influencie a auto referência ou a autoconsciência dos aprendizes na
relação com os outros, de modo que eles passarão a ser capazes de historiar
sua qualidade enquanto seres humanos. Isto deve ser feito espelhando
sua auto-experiência, seus desejos, esperanças, expectativas e medos na
experiência histórica da variedade das formas de vida e das várias ideias
inerentes sobre a humanidade no transcurso do tempo. 35

A universalidade como critério fundamental do


pensamento histórico
A subjetividade dos aprendizes e a variedade e diversidade das
experiências históricas são sistematicamente inter-relacionadas pelos

22 Ver STRAUB, Jürgen (Ed.): Narration, Identity, and Historical Consciousness. (Making Sense of History,
vol. 3). New York: Berghahn Books, 2005.
critérios de sentido do pensamento histórico. Estes critérios de sentido
são universais na sua lógica (cobrindo todo o campo da experiência
da mudança temporal ao torná-la “histórica”). Os estudantes devem
aprender quais são os critérios fundamentais de sentido, como funcionam
de maneira geral e na própria orientação para a vida. Ao aprender isso —
podemos chamá-lo de um aprendizado teórico ou filosófico pela história
— os estudantes internalizam a competência de lidar com a dimensão
universal da história enquanto um domínio da experiência e como uma
Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história

esfera da interpretação e da compreensão.


Tal aprendizagem é tanto mais necessária para que haja mais de um
critério de sentido eficaz no trabalho da consciência histórica. Eles são,
logicamente, diferentes e trabalham numa inter-relação muito complexa.
(Não posso tratar deles aqui, no entanto, posso resumi-los a sua respectiva
forma de universalidade histórica.)23
O critério de sentido do pensamento histórico tradicional constitui a
unidade da história por apresentar as tradições eficazes no contexto social
do indivíduo. A aprendizagem histórica tradicional significa tornar-
se competente em conhecer estas tradições e seu caráter obrigatório
e em aplicá-las nas situações de mudança de vida. A identidade é pré-
estabelecida como um esquema para a vida pessoal e social, a qual deve
ser internalizada. O modo dominante de aprendizagem é a imitação
(mimesis). A alteridade é definida pela exclusão.
O critério de sentido do pensamento histórico exemplar constitui
a unidade da história ao referir-se às regras de conduta humana supra
temporalmente válidas. Uma aprendizagem histórica exemplar significa
construir regras gerais a partir de acontecimentos (históricos) singulares
e aplicar essas regras a outros eventos. A identidade é um resultado de
ganho de competência para estas regras. A alteridade é definida como um
desvio dessas regras.
O critério de sentido do pensamento histórico genético constitui
36 a unidade da história a partir de uma ideia de mudança temporal na
direção da abertura de uma perspectiva sólida para atividades orientadas
para o futuro. A aprendizagem histórica significa ganho de competência
23 Uma explicação mais detalhada pode ser encontrada em: RÜSEN, Jörn: “Die vier Typen des
historischen Erzählens”, in: id.: Zeit und Sinn. Strategien historischen Denkens. Frankfurt am Main:
Fischer Taschenbuchverlag, 1990, pp. 153-230; RÜSEN, Jörn: History: Narration – Interpretation –
Orientation. New York: Berghahn Books, 2005, pp. 9-40; RÜSEN, Jörn: “Aprendizado histórico”, in:
SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; Martins, Estevão de Rezende (Orgs.). Jörn Rüsen e o
ensino de História. Curitiba: Ed. UFPR, 2010, p. 41-49; RÜSEN, Jörn: “Experiência, interpretação,
orientação: as três dimensões da aprendizagem histórica”, in ibid. 2010, p: 79-91; RÜSEN, Jörn:
“Narrativa histórica: fundamentos, tipos, razão”, in ibid. 2010, p: 93-108.
em organizar sua própria orientação cultural ao longo do fio condutor
desta direção temporal nas mudanças do mundo humano. A alteridade é
definida por seu lugar em uma variedade de diferentes manifestações na
mesma direção temporal devido a diferentes circunstâncias em que ela
ocorre.
O critério de sentido do pensamento histórico crítico constitui a
unidade da história de uma forma negativa, ou seja, pela tentativa de
dissolver as orientações históricas pré-estabelecidas, enfatizando as

Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história


experiências do passado divergentes e suas respectivas perspectivas
futuras.
Todos esses critérios estão entrelaçados uns aos outros. Além do
mais, é necessário isolar sua lógica específica de tal modo que o estudante
possa saber como eles funcionam em uma interpretação e compreensão
histórica.
O âmbito desta aprendizagem de reflexão teórica pode ser explicado
como um conceito básico do pensamento histórico. Esse conceito focaliza
a compreensão da diferença no tempo e no espaço do mundo humano.
A compreensão, agora, concede ao passado a dignidade de ser diferente
a partir do passado (como Ranke formulou: “cada época é imediata a
Deus”). Ao mesmo tempo, dá ao passado um lugar na imagem temporal
da humanidade. O humanismo, enquanto hermenêutica, dá a história um
rosto humano.

Aprender a ser humano


A experiência histórica
O aprendizado histórico começa com uma entrada da experiência
histórica na consciência histórica pré-condicionada dos estudantes. A
experiência histórica é a consciência de que as formas de vida do passado
são diferentes das de hoje. Esta diferença deve ser reconhecida, e, ao mesmo 37
tempo, ligada com a ideia de uma mudança temporal. É a mudança do
estranho em direção às formas de vida conhecidas. Os estudantes devem
perceber, ao mesmo tempo, que as pessoas no passado tinham conceitos
diferentes sobre o que significava ser um ser humano. Isto deve se tornar
evidente quando indicamos as formas impressionantemente diferentes
de tratar as pessoas, de acordo com os atributos que lhes são atribuídos
pelos outros. Se você acredita que compartilha uma qualidade comum da
humanidade com eles, você vai tratá-los de uma maneira diferente daquela
da qual se eles estivessem lhe negando esta qualidade. Existem inúmeros
exemplos dessa experiência de contribuir ou negar as qualidades humanas
a diferentes grupos de pessoas (como cidadãos livres ou escravos). Neste
contexto, a temática do gênero deve receber grande atenção. Aqui temos
um exemplo da ambivalência da humanidade na história, a partir do fato
de que, nos tempos pré-modernos, os intelectuais ocidentais discutiam
seriamente a questão de se saber se as mulheres eram humanas ou não.24
A experiência histórica da desumanidade é uma provocação muito
Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história

importante para os estudantes perceberem a historicidade da mais


profunda convicção sobre o valor inerente da condição humana. O que
eles pensam sobre o ser evidente acaba por ser resultado de um longo
desenvolvimento histórico sem nenhuma garantia fixa para o futuro. É
muito importante ensinar aos alunos que a atual-convicção-do-presente
de que cada membro da raça humana é “humano” não é auto evidente no
sentido específico de que ele ou ela tem um certo valor a ser reconhecido
pelos outros. A aprendizagem histórica deve sublinhar esta diferença de
apropriar-se do tempo, a fim de tornar-se consciente do fato de que a
ideia de humanidade só pode ser entendida numa perspectiva temporal.
Aprender esta historicidade da humanidade pode levar a uma motivação
para o desenvolvimento ou, pelo menos, para uma defesa das conquistas
do humanismo moderno na vida política e social. (Esta poderia ser a
nossa resposta aos ataques contra a tradição ocidental na cultura política
contemporânea.)

A interpretação histórica
A interpretação humanista da experiência histórica deve conduzir
para a ideia empiricamente fundada da história enquanto um processo
integral da humanização do homem. Neste contexto, deve ser abordada
a questão dos direitos humanos. Os estudantes devem saber que são o
38 resultado de um processo histórico. (A fim de entender a ideia moderna
de direitos humanos básicos deve se voltar para a antiguidade clássica, o
cristianismo, e a formação da dominação política em diferentes formas
de uso do poder institucionalizado.) É essencial para esse aprendizado a
compreensão de que a história inerente dos direitos humanos e civis não
chegou ao fim. O “fim” dessa história é a motivação das atividades práticas
voltadas para a defesa e para o desenvolvimento desses direitos sempre

24 Ver GÖSSMANN, Elisabeth (Ed.): Ob die Weiber Menschen seyn, oder nicht? München: Iudicium,
1988.
para mais além.
É muito importante que esta perspectiva histórica de alcance
altamente profundo receba elementos da diversidade multicultural. A
fim de trazer este fundamental pluralismo na história universal, deve ser
incorporada no currículo a discussão sobre o desenvolvimento das eras
axiais enquanto ideias universalistas sobre o homem [principalmente na
forma religiosa]25 e sobre o conceito de múltiplas modernidades.
O tratamento da religião como potência cultural na história pertence

Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história


a este contexto. Os estudantes devem aprender que, por um longo tempo
na história do mundo, a ideia do que significava ser um ser humano foi
desenvolvida em termos religiosos ou (em respeito ao confucionismo), ao
menos num relacionamento com a ideia de uma ordem metafísica ou divina
do mundo. Apenas contra esse pano de fundo, é possível compreender
a importância do secularismo na modernidade. Os estudantes devem
aprender que o surgimento de uma sociedade civil secular moderna é da
mais alta importância para a aceitação de forma pacífica das diferenças
religiosas. O caráter da cultura secular da sociedade civil é uma condição
para coordenar os pluralismos das visões de mundo e das crenças
religiosas. Isto pode ser facilmente demonstrado pelo papel das guerras
religiosas no subconsciente europeu. Assim, a história do surgimento da
sociedade civil moderna e da legitimidade secular da dominação e do
poder político longe de uma guerra civil religiosa sangrenta na Europa,
tem um lugar importante na consciência histórica dos jovens de hoje. Aqui
está o lugar histórico privilegiado para as várias convicções religiosas ou
seculares desses jovens, em relação ao que faz sentido para as suas vidas;
aqui eles encontram uma resposta histórica à questão de como eles podem
e devem se referir às diferentes convicções dos outros, com quem têm que
viver juntos. A história deixa claro que a ordem secular da sociedade civil
moderna não é uma mera possibilidade dentro de uma pluralidade de
diferentes ordens, mas uma condição necessária para uma vida pacífica
num pluralismo aberto para as orientações culturais. 39
Além disso, uma visão comparativa em relação a outras tradições
diferentes da ocidental, pode motivar os alunos a transgredir uma
unilateralidade potencial na história do humanismo político. (O
impulso altamente motivador para esta transgressão pode ser a crítica ao
individualismo ocidental realizada por intelectuais não ocidentais, que o

25 Ver ARMSTRONG, Karen. A grande transformação: o mundo na época de Buda, Sócrates, Confúcio e
Jeremias. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
entendem como uma falta de compromisso social. Essa crítica tornou-se
um argumento padrão na comunicação intercultural, e vale muito a pena
levá-la a sério.)

A orientação e a motivação históricas


Entendo que já foi enfrentada a etapa da interpretação para orientação
e motivação com a aplicação da compreensão histórica em relação à
variedade de ideias sobre a humanidade e sobre a mudança no tempo,
Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história

voltada para a experiência de mundo dos estudantes. A forma de vida


pré-estabelecida de uma sociedade civil, com um sistema de valor secular
básico da dignidade humana e da civilidade política (incluindo as atitudes
democráticas), só pode vir a se tornar alinhada com a mentalidade dos
estudantes se eles já a colocarem nas dinâmicas mentais de sua formação
identitária. Partindo de um contexto pré-estabelecido externo, temos
que transformá-lo em um fator interno da mentalidade, a partir da
aprendizagem histórica compreendida como as realizações culturais da
humanidade em uma relação pacífica institucionalizada entre diferentes
tradições e convicções da orientação para a vida. Por meio da história da
ideia de humanidade podemos alcançar uma plausibilidade concreta e, ao
mesmo tempo, uma dinâmica na vida humana enquanto força motriz da
história universal.
Perspectivas futuras: Para um novo conceito
intercultural da Didática da História
Minhas considerações buscaram ampliar o âmbito da Didática
da História como um discurso sobre a aprendizagem histórica. Existe
uma clara relação entre o aprendizado histórico com os problemas de
orientação cultural específicos, com especial ênfase sobre o importante
papel da forma de vida da sociedade civil moderna, com seu sistema
40 de valores seculares básicos. Em muitos aspectos, o conceito de uma
Didática da História humanista não é novo. Ele integra os resultados das
análises sobre a consciência histórica nos últimos 30 anos. Esse conceito
tenta reformular as particularidades desta análise em favor de um claro
princípio de uma formação do sentido histórico, ou seja, do humanismo.
Desde o seu início, o humanismo era um conceito relacionado à
educação. Acredito que sua forma moderna de educação, desde o fim
do século XVII e do início do século XIX, ainda tem um potencial ainda
não realizado voltado para o desenvolvimento futuro. Foquei minha
argumentação em um campo da educação, ou seja, a do ensino e da
aprendizagem da história. É tempo de construir uma abertura para as
dimensões interculturais a partir dos principais objetivos e estratégias
da Didática da História. Como podem tradições não ocidentais e visões
de mundo obterem seu lugar no ensino de história nas escolas para que
as crianças e os estudantes com origens culturais não-ocidentais sejam
reconhecidos na sua diferença e, ao mesmo tempo, conquistem um solo
histórico sólido sob seus pés (na sua consciência histórica), no qual eles

Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história


possam compartilhar com seus companheiros de sala de aula e com todos
os cidadãos do seu novo país?
A fim de resolver essa tarefa faz-se necessário referir-se a elementos
comuns de orientação cultural que atravessam as diferenças. Não vejo
qualquer alternativa voltada para uma uniformização, mas uma base
comum para ser um ser humano26 inclui a reivindicação fundamental de
ser reconhecido em sua individualidade pessoal e social. Um pensamento
histórico que historiciza esta humanidade e, desta forma, traz a variedade
de sua manifestação no espaço e no tempo e na dinâmica da mudança
temporal para esta comunhão da humanidade. Aqui reside a possibilidade
de uma Didática da História que possa dar uma resposta aos desafios
do nosso tempo, trazida pela crescente densidade da comunicação
intercultural no processo de globalização. Mas isso só é verdade enquanto
a Didática da História estiver comprometida em conceder uma chance
para a ideia humanista baseada na dignidade da pessoa humana.
Mas ainda existe uma lacuna nesta argumentação humanista. A
tradição humanista do Ocidente tem um flanco aberto e um ponto fraco,
ou seja, sua relação com a natureza. Até agora, o humanismo ainda
não desenvolveu um critério eficaz para regular a relação humana com
a natureza. A natureza inerente na cultura humana ainda não tem sido
suficientemente pensada no que diz respeito aos valores fundamentais
do humanismo. O que significa dignidade do homem em relação à
instrumentalização humana da natureza que tem como finalidade a 41
sobrevivência física?
Existem apenas duas possibilidades na conceitualização de uma ideia
que busque enfrentar os novos desafios da natureza na vida humana: uma
alternativa é a ideia de uma natureza que pode servir como uma fonte
para todos as regulamentações da relação humana com as necessidades

26 ANTWEILER, Christoph: Menschliche Universalien. Kultur, Kulturen und die Einheit der Menschheit.
Darmstadt: Wiss. Buchgesellschaft, 2007; ANTWEILER, Christoph: Mensch und Weltkultur. Für einen
realistischen Kosmopolitismus im Zeitalter der Globalisierung. Bielefeld: Transcript, 2010.
naturais, a fim de chegar em um acordo com elas. A outra alternativa,
é a ideia da humanidade que alarga o sistema de valor fundamental
combinado com a natureza cultural da humanidade em geral, de modo
que sustenta também o aspecto natural da vida humana.
A primeira alternativa seria dissolver a tradição do humanismo em
um novo naturalismo a partir de uma particularidade que é totalmente
obscura (exceto no que diz respeito um conjunto de retornos de
cosmologias românticas pré-modernas). A outra alternativa, significa
Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história

que temos que continuar com a tradição do humanismo. Neste caso, é


necessário aprofundar e ampliar nossa compreensão do que significa ser
um ser humano. Contra a sedução de naturalizar a cultura humana a
partir de uma forte referência às inovações da biologia e da pesquisa sobre
o cérebro, os elementos normativos da cultura humana, centrados em
torno do princípio da dignidade, devem ser aplicados no relacionamento
humano com seu ambiente natural. A Didática da História não é o lugar
para resolver este problema. Mas deve manter um lugar aberto no ensino
e na aprendizagem histórica, em que a natureza passa a ser um elemento
essencial para a compreensão da história.

42
Em direção a uma nova
ideia de humanidade:
unidade e diferença de
culturas nos encontros de
nosso tempo1

Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e


O desafio da globalização para a identidade

diferença de culturas nos encontros de nosso tempo


cultural
Identidade cultural é determinada por critérios básicos de
noções de sentido compartilhados por um grupo de pessoas. Elas se
sentem comprometidas e compreendem a si mesmas através deste
comprometimento. Elas pensam e sentem que suas vidas são condicionadas
e dedicadas por um conjunto de valores e experiências moldadas por
valores. Elas se compreendem como uma incorporação deste conjunto
de valores, baseados em critérios universais de interpretação do mundo
e de si mesmas. Com esta convicção eles delineiam sua idiossincrasia a
si mesmo e desenham uma linha clara de distinção em relação a outros.
Tal auto compreensão e distinção dos outros tem se sucedido em todos os
tempos em todo o mundo. Podemos chamá-la de SELFNESS (noção de
si). A noção de si é um elemento básico da vida humana. Ela é definida
por uma unidade indivisível de duas atividades mentais: o relacionamento 43
com si mesmo e a distinção em relação aos outros. Ambas possuem fortes
elementos normativos com um comprometimento geral e, ao mesmo
tempo, as duas se referem a experiências partilhadas comumente. As duas
juntas são preservadas e apresentadas no reino da memória cultural.2

1 Tradução do inglês KOZLAREK, RUSEN, WOLFF (eds).Anthropology axial ages modernities. In: Shaping
a Humane World. 2012. Traduzido por Lucas Pydd Nechi.
2 Nota do Autor: (Assmann, Jan: Collective Memory and Cultural Identity, in: New German Critique, No
65 (1995), pp. 125-133.).
Em um significado específico, identidade cultural se refere ao mais amplo
horizonte desta auto-referência, distinção e experiência comum. Falamos em
'civilizações do mundo' e pensamos em formas únicas de vida humana, o
que caracteriza o sentimento de pertencer juntos e ser diferente dos outros,
algo partilhado por um número grandioso de pessoas. O vasto horizonte
da identidade humana é definido pela espécie humana e sua diferença
dos animais. A primeira distinção neste horizonte se refere a 'culturas' ou
'civilizações' como a segunda maior unidade de pessoas em respeito à sua
identidade. Não irei me aprofundar na duradoura, ainda vívida e controversa
discussão sobre a conceitualização destas culturas ou civilizações do mundo.
Ao invés disto, desejo elencar algumas distinções usuais destas grandes
unidades de identidade e desenvolver alguns pontos básicos de seus inter-
relacionamentos em uma perspectiva histórica e sistemática.
A perspectiva histórica é relacionada ao processo de globalização.
Globalização é aqui compreendida como um desenvolvimento histórico
Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e
diferença de culturas nos encontros de nosso tempo

no qual alguns elementos básicos de prossecução da vida humana se


sobrepõem à maioria, senão todas, das diferenças entre as já estabelecidas
formas de vida humanas, características de um grande número de pessoas
e vastos espaços no mundo. É um processo que confronta diferentes
formas de vida com condições gerais de vida humana, forçando-as
a se adaptarem a elas. Sobre a globalização dos dias atuais todos nós
sabemos tais condições: racionalidade científica, economia de mercado,
comunicação globalização pelas novas mídias etc.
Esta adaptação é um problema fundamental de identidade cultural.
Por quê? Por que as pessoas não desconsideram as novas formas de vida
e continuam com o que sempre foram? O problema não é primeiramente
a habilidade das civilizações de integrar novos elementos em sua forma
específica de vida (apesar de que não devemos subestimar o choque que
tal confrontação com novas formas de vida tem significado por pessoas
substancialmente diferentes, então chamadas formas de vida 'tradicional').
44 O problema que gostaria de analisar é encontrado basicamente
no nível cultural fundamental da formação da identidade humana:
considerando que cada identidade é específica, peculiar e até mesmo
única, como podemos atingir elementos gerais e universais e conceitos
de orientação de vida? Os elementos universais inerentes ao processo de
globalização são um desafio radical para a identidade cultural apesar da
habilidade ou inabilidade de adaptação. Globalizar a identidade de alguém
em um sentido estrito significa dissolvê-la em suas características únicas
e individuais.
Isto soa incrível, pois estamos acostumados a olhar o processo
de globalização como um embate entre culturas. Existem culturas
representando o poder globalizado de mudança das formas tradicionais
de vida humana. Existem outras as quais são forçadas a mudarem. Nos
tempos modernos as primeiras citadas eram conhecidas como 'ocidente'
e as demais como 'sul' ou 'oriente'. Estes são termos geográficos, mas a
distinção deles inclui elementos qualitativos de dominação e subjugação,
agressão e defesa, superioridade e inferioridade. Em poucas palavras: esta
distinção inclui confronto e embate.
Na opinião pública de hoje em dia podemos encontrar muitos
exemplos destes confrontos. Deixe-me apresentar um recente caso
alemão: a cobertura do popular noticiário semanal 'Der Spiegel'."Der
Spiegel", issue 32, 8 de Agosto de 2005.
Nesta cobertura, a águia de cabeça branca representando os Estados
Unidos da América e o dragão simbolizando a república popular da China

Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e


diferença de culturas nos encontros de nosso tempo
estão disputando a superioridade do mundo de amanhã. A imagem da capa
usa símbolos tradicionais de identidade coletiva para ilustrar essa disputa.
As imagens iniciais do artigo mostram que os dois países compartilham
a característica de economia capitalista de mercado ilimitado e sociedade
de consumo, ambos itens globais.
Não estou olhando primeiramente para política, economia e
vida social no processo de globalização. Ao invés, desejo considerar as
orientações culturais, os conceitos específicos de sentido e significado, os
quais estão relacionados a ela e possuem fortes efeitos na formação da
identidade coletiva. No reino da identidade a universalidade dos princípios
não é um problema em si. Se as características culturais de um indivíduo
e a diferença dos outros - isso sempre significa uma peculiaridade da
identidade de um indivíduo - é formada por elementos universais, por
que esta universalidade deveria ser ameaçadora?
De fato, a maioria dos conceitos tradicionais de identidade cultural
são baseados em elementos universalistas. O critério de sentido básico 45
que desempenha um papel decisivo ao gerar e apresentar identidade, é
sempre universal. Isso pode ser facilmente demonstrado pelo fato de que
pessoas arcaicas prescrevem a qualidade de serem seres humanos apenas
para seu próprio grupo. Os outros não são humanos. A ideia vastamente
espalhada, de que o próprio povo de um sujeito representa a civilização
e os outros são o oposto, nomeadamente barbarismo, inclui um conceito
geral de normatividade cultural e avaliação. Pode-se afirmar: quanto mais
características universalizantes um povo prescreve sobre sua autoimagem,
mais forte a identidade cultural é estabelecida em uma clara discriminação
dos demais.
Se um diferente conceito universalista de vida humana desafia o
conceito de outrem, e não possui poder suficiente para mudá-lo ou até
mesmo negá-lo, um 'confronto de civilizações' no nível da orientação
cultural é inevitável.
Isso caracteriza exatamente o encontro de culturas no processo
de globalização. Pode ser descrito como uma batalha entre diferentes
universalismos, por exemplo, a disputa entre o poder globalizante da
razão científica contra os diferentes modos de interpretação da natureza
e do mundo humano, como os mitológicos. Por séculos, globalização
tem significado a dominação da visão de mundo ocidental sobre os não
ocidentais. Este domínio tem sido, muito frequentemente, uma forma
de supressão e negação de outras culturas, mas ele ainda tem tido um
potencial maior de validade: a validade de ser efetivo em convencer os
Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e
diferença de culturas nos encontros de nosso tempo

outros de sua superioridade mental. A guerra do ópio e o movimento de


quatro de maio demonstram conjuntamente duas formas de superioridade
no caso da civilização chinesa e seu relacionamento com o ocidente.
A situação nos dias atuais, desta disputa entre diferentes universalismos
culturais formadores de identidade no processo de globalização, é
caracterizada por uma mudança no (até agora) desequilibrado, desigual
e não equiparável relacionamento entre as diferentes culturas. Por fim,
no nível de discursos intelectuais sofisticados na identidade cultural,
o domínio do ocidente está se esvaindo e as culturas e civilizações não
ocidentais estão ansiosas para recuperarem uma nova consciência de suas
identidades culturais que, ao menos, compense as perdas de auto- estima
no período de dominação ocidental.
Este enfraquecimento do conceito ocidental de universalismo
cultural é baseado em uma critica dupla: uma interna e outra externa.
A crítica interna foi originada no próprio ocidente, ela é dirigida contra
46 sua aproximação universalizante tradicional às outras culturas. Na vida
intelectual do ocidente, a consequência devastadora do espalhamento de
formas de vida ocidentais para sociedades e países não ocidentais tem sido
percebido, e levado a um processo de denúncia dos elementos universais
da cultura ocidental. O pós-modernismo é o exemplo mais eloquente
desta denúncia. O universalismo é substituído pela autocrítica e, no fim,
o resultado é uma relativização universalística, em respeito à validade de
valores culturais em todas suas diferentes formas e desenvolvimentos.
Esta autocrítica é acompanhada por um criticismo radical de intelectuais
não ocidentais, relacionado a elementos culturais globalizantes sendo
originados no ocidente. Exemplos típicos deste criticismo são os discursos
pós- coloniais e subalternos nas humanidades.
Estas críticas duplas encerram o conflito de civilizações no processo
globalizatório? Eu acredito que o contrário é verdadeiro. Como o
relativismo no pensamento pós-moderno que é a única forma nobre de
legitimar este enfrentamento, pois ele não reivindica nenhum princípio ou
ideia válidos inter-culturalmente, o que pode limitar ou até mesmo opor
as tensões entre diferentes identidades coletivas. Em relação às críticas não
ocidentais da dominância ocidental, não devemos deixar despercebido o
fato de que isto é, em si, um meio de luta por poder e não intenciona
encerrá-la. Tensões entre identidades são geralmente causadas pelo poder
do etnocentrismo. Este criticismo não ocidental da tradição universalista
de aproximação ocidental a outras culturas não se situa fora deste poder
etnocêntrico, mas é um meio dele. Uma análise mais aproximada das

Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e


diferença de culturas nos encontros de nosso tempo
críticas anti ocidentais mostram que ela é guiada por um etnocentrismo
negativo. Isto significa que, ao criticar o ocidente as culturas orientais
não ocidentais ganham mais valor e uma superioridade em relação ao
ocidente. Em minha opinião, o jogo antigo de dominação é simplesmente
continuado. Apenas as atitudes das partes se modificam.
Isto pode ser demonstrado pela metáfora amplamente espalhada que
é típica da cultura crítica anti ocidental3. Todos concordam que há um
significado convincente neste slogan, nomeadamente que o tradicional
'império' ocidental que costumava dominar e subjugar as 'províncias'
não ocidentais deveriam ser levados ao fim. Mas, se o ocidente se tornar
uma província, as consequências lógicas desta metáfora simples é que o
'império' mudou-se para outra parte do mundo. Aonde mais poderia ter
ido senão para um dos partidos não ocidentais? Isto não é explicitado
articuladamente, mas é um significado implícito deste slogan. Assim, o
antigo jogo de poder continua, apenas o papel dos partidos conflitantes
foi redistribuído. 47
Como podemos notar, o conflito entre civilizações ainda continua e é
evidente que ele possui uma nova natureza ameaçadora e radical. Este é o

3 Chakrabarty, Dipesh: Europa provinzialisieren. Postkolonialität und die Kritik der Geschichte, in:
Conrad, Sebastian; Randeria, Shalini (Eds.): Jenseits des Eurozentrismus. Postkoloniale Perspektiven
in den Geschichts- und Kulturwissenschaften. Frankfurt am Main (Campus) 2000, p. 283-312
[Chakrabarti, Dipesh: Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference.
Princeton, N.J.: Princeton University Press 2000; Lal, Vinay: Provincialising the West: World history
from the perspective of Indian history, in: Stuchtey, Benedikt; Fuchs, Eckhardt (Eds.): Writing world
history 1800 – 2000. Oxford: University Press 2003, pp. 271-289.
caso dos movimentos fundamentalistas da atualidade. Aqui, um conceito
universalista específico de interpretação do mundo, majoritariamente em
uma forma religiosa, contradiz fortemente diferentes formas de vida com
seus elementos universalistas inerentes em novas formas de conflito. Mas
este não é o único espaço onde o conflito de civilizações acontece. Ele é
culturalmente enraizado no simples fato de que universalismos, os quais
constituem diferenças culturais no nível da identidade coletiva, excluem-
se uns aos outros. Se a diferença cultural é baseada em sistemas de valores
universalistas, as pessoas são comprometidas a um destes sistemas e negam
os demais. Isto parece ser evidente em relação às crenças religiosas, mas
podemos observar esta exclusão mútua até mesmo em respeito a sistemas
de valores mais seculares.
Um exemplo é a negação das ideias ocidentais de direitos universais
humanos e civis ao se referir a uma ética confucionista fundamentalmente
diferente, como foi o caso (e talvez ainda seja) da filosofia política oficial
Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e
diferença de culturas nos encontros de nosso tempo

de Singapura. É exatamente este poderoso elemento, dotado de validade


universal nas características peculiares de identidade cultural as quais
demandam interação intercultural com o poder da tensão e do conflito. Ele
potencialmente nega elementos constitutivos da identidade cultural dos
outros pela natureza distinta e peculiar da própria identidade. Portanto,
a identidade cultural tem que ser vista como um campo de batalha de
universalismos em enfrentamento. Esta luta pode se dar de forma mais
civil e, assim, nós a chamamos de comunicação intercultural, ou de uma
forma mais violenta, e então chamamos isso de "choque de civilizações"
ou até mesmo uma guerra de mentalidades.
Existe alguma chance de acabar com essa tensão, conflito, luta e até
mesmo a guerra no nível mental de formação da identidade cultural e
comunicar as diferenças culturais? Minha primeira resposta a esta pergunta
é não; não há chance de acabar com ela enquanto nós conceitualizarmos
cultura na forma tradicional de mobiliá-la com fortes universalismos
48 como elementos de distinção. Uma vez que esta distinção é o caso nos
processos culturais de geração de identidade onde os outros se referem a
nós como seus outros, temos de lidar com dois universalismos diferentes,
ambos reivindicando validade geral.
Mas, à segunda vista, devemos perguntar se nós podemos definir a
cultura como algo que vai além desta exclusão mútua? A fim de responder
a esta pergunta, devemos refletir criticamente os pressupostos, sob os quais
as atuais comunicações internacionais e interculturais nas humanidades,
bem como em outras formas de comunicação, são conceitualizadas.
Os conceitos mais difundidos e poderosos de culturas interrelacio­
nadas são aqueles de universos semânticos separados, cada um seguindo
o seu próprio código específico, sendo essencialmente diferente do código
de outras culturas. Código significando o sistema constitutivo de critérios
de sentido e modos de interpretar o mundo e compreender a si mesmo.
Os representantes mais proeminentes deste conceito de cultura e de
diferenças culturais são Oswald Spengler e Arnold Toynbee. Infelizmente,
o Spenglerianismo não é um conceito ultrapassado nas humanidades.
Podemos encontrá-lo nos níveis de uma teoria explícita da cultura e da
metodologia de comparação intercultural4, mas é ainda mais eficaz nos
trabalhos práticos de historiadores e humanistas fazendo comparação
intercultural e tematizando aspectos de comunicação intercultural.
Para se comparar culturas costuma-se tratá-las como unidades
completamente separadas. Mas qual é o parâmetro de comparação? De
uma forma irrefletida, muitos historiadores simplesmente usam um

Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e


diferença de culturas nos encontros de nosso tempo
paradigma estabelecido de interpretação como parâmetro, muitas vezes o
ocidental. Hoje podemos observar uma mudança para os não ocidentais5.
Não é possível simplesmente sair de qualquer contexto semântico e
código cultural para que se faça esta comparação. Aqueles que criticam
o domínio do pensamento histórico ocidental seguem a mesma lógica,
com a única diferença de que eles usam outro paradigma sem refletir,
sistematicamente, os pressupostos em que tematizam culturas como
unidades de comparação.
Estes pressupostos spenglerianos no trabalho dos humanistas não
são convincentes de forma alguma. A cultura não pode ser reduzida a um
conjunto fixo de critérios de sentido, sendo substancialmente diferente de
outros conjuntos que constituem outras culturas. As culturas são dinâmicas,
mutáveis, discursivas e abertas em seus modos de interpretar o mundo,
permitindo que as pessoas compreendam a si mesmas e suas diferenças
para com os outros. Culturas interferem, elas compartilham elementos
universalistas da vida humana e do pensamento humano. Assim, devemos 49
desistir de qualquer conceito de culturas que afirmam universos distintos
de significado, apenas coexistindo em um relacionamento externo.
É necessário investir uma boa dose de reflexão teórica, a fim de
4 E.g. Galtung, Johan: Six Cosmologies: an Impressionistic Presentation, in: idem: Peace by Peaceful
Means. London: Sage Publications 1996, pp. 211-222.
5 (An example is Huang, Chun-chieh: Salient Features of Chinese Historical Thinking, in: The Medieval
Historical Journal vol. 7, no. 2 (July-December 2004), pp. 243-254; cf. Rüsen, Jörn: A Comment on
Professor Huang's 'Salient Features of Chinese Historical Thinking', in: The Medieval History Journal,
vol. 8, no. 2, July-December 2005, p. 267-272.)
encontrar uma alternativa plausível. No contexto desta argumentação,
não posso entrar em detalhes de tal conceituação teórica. Só posso indicar
uma possível maneira de abordar esta nova tarefa nas humanidades:
Teorizar sobre a cultura significa olhar para os universais antropológicos e
conceituar as diferenças culturais. A minha proposta - metodologicamente
se refere a Max Weber - é a criação de tipos ideais de diferentes
possibilidades para realizar esses universais, sob diferentes condições,
pois eles mudam no espaço e no tempo. O resultado vai ser um conceito
complexo de cultura, numa mistura de características universais e uma
tipologia de possíveis diferenciações. Com esta mistura podemos abordar
a variedade e a mudança na vida cultural humana. Em tal perspectiva,
diferença cultural aparece como uma constelação peculiar e específica de
elementos que eram (potencialmente) partilhados por todas as culturas6.
Tal reflexão e conceitualização podem permitir aos acadêmicos
se comunicar sobre a diferença cultural das suas tradições e contextos,
Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e
diferença de culturas nos encontros de nosso tempo

sem cair na armadilha de pressupostos etnocêntricos ou spenglerianos.


A diferença cultural não vai desaparecer, mas torna-se um assunto do
discurso. As regras deste discurso transcendem a lógica etnocêntrica
de formação da identidade cultural. Tal discurso pode quebrar o poder
de lutar uns com os outros no uso de critérios universais de sentido e
significado (carregado com validade normativa). Pode quebrar esse poder
no processo de individualização da própria cultura, de fazê-la única, ao
distinguí-la e separá-la de outras de forma desequilibrada. Pode parar
a provocação ou, pelo menos, a irritação dos outros que perseguem as
mesmas estratégias na formação de suas identidades culturais ao custo de
seus outros.
Como pode esta nova forma de pensar sobre a diferença cultural
(com todas as suas implicações políticas) ser trazida para a terra nos
processos práticos de formação de identidade, bem como na sua
reflexão acadêmica? Existe alguma chance realista de tornar plausível
50 esta nova forma de tematizar diferença cultural por meio de um novo
conceito de critério de sentido universalista? É bastante fácil de postular
uma alternativa para o poder de separar as culturas pelo pensamento

6 Nota do Autor: Eu tenho esta estratégia de comparação intercultural em respeito ao pensamento


histórico concretizada no seguinte artigo: “Rüsen, Jörn: Some Theoretical Approaches to Intercultural
Comparison of Historiography, in: History and Theory, Theme Issue 35: Chinese Historiography
in Comparative Perspective (1996), pp. 5-22” [Em chinês: Kua wenhua bijiaoshixue de yixie lilum
zonxiang, in: Weigelin-Schwiedrzik, Susanne; Schneider, Axel (Eds): Zhonggua shixueshi yantaohui
cong bijiao guandian chufa lunwenji. Bangiao, Kreis Taipei (Taoxiang chubanshe) 1999, pp. 151-176)
etnocêntrico. Mas, e sobre o poder deste modo de pensar enraizados
em uma necessidade quase natural de auto-estima do ser humano, que
acumula elementos positivos na imagem de si mesmo e menos positivos
- se não elementos negativos - para a imagem dos outros? Tal postulado
é não irrealista ou utópico? Este parece ainda mais ser o caso se levarmos
em consideração sistemáticamente, que, nos processos de formação de
identidade não apenas os indivíduos, mas em geral as pessoas tendem
a projetar as sombras escuras em sua autoconsciência para a alteridade
dos outros. Eles amarram essa alteridade em sua auto-estima e a tornam
inconscientemente dependente dela.
Como devemos proceder para formar a identidade cultural de uma
forma não etnocêntrica? Vamos começar com elementos de carácter
abrangente, explanando a diferença entre consciência de si (noção de
si, selfness) e alteridade. Elas consistem em princípios universalistas
de geração de sentido, inerentes na particularidade e individualidade

Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e


diferença de culturas nos encontros de nosso tempo
da identidade cultural de cada um. Logicamente, princípios universais
integram os outros. No entanto, a maneira muito peculiar de trabalhar com
os universais em formação de identidade é um problema, pois nos separa
radicalmente dos outros e cria tensão. Como identidade, necessariamente,
é peculiar e individual, os elementos do universalismo até mesmo aguçam
essa divisão e oposição da noção de si e da alteridade. Mas este é o único
procedimento para sintetizar peculiaridade e universalismo na formação
da identidade? Minha resposta é: Isto definitivamente não é o caso.
Esta resposta parece ser surpreendente, já que eu ainda não
argumentei o quanto destes universais têm um carácter exclusivo em
relação aos universais dos outros? Eu não disse que na identidade
cultural os elementos universais na orientação cultural da vida humana
tornaram-se particularizados? Mas ser diferente significa necessariamente
exclusão? Quando reconhecida como constituído por universais, esta
particularidade pode ser entendida como apenas uma única manifestação
da sua inerente universalidade, além de outras. Agora, alteridade aparece 51
em um horizonte de igualdade. Assim, o modo de se relacionar à própria
identidade para com a dos outros muda drasticamente: agora, alteridade
é uma manifestação diferente dos próprios universais. Por isso, pode
ser reconhecida e valorizada. É este reconhecimento que é ao menos
intencionada nos universais de uma própria cultura, contanto que eles
sejam realmente universais.
Eu acho que ela pode ser usada para mudar a nossa visão das nossas
próprias tradições e na sua inter-relação com diferentes culturas. Não
devemos trocar os elementos universalistas de nossa própria cultura para
um novo relativismo, a fim de dar um lugar a alteridade. Pelo contrário,
devemos levar o nosso próprio universalismo mais a sério, uma vez
que, potencialmente, já possui um lugar para os outros. No entanto, eles
foram mantidos fora pela particularização de nossos próprios elementos
universais na identidade. Mas, sublinhando o seu carácter universalista
nós principalmente transgredimos todas particularidades e abrimos uma
entrada para essa opção do universalismo.
Os universais culturais que são realmente universais são apresentados
em sua característica individual, universal e não como particular e
tenso. Esta tensão é o resultado de uma incapacidade de reconhecer
a particularidade e os limites do seu próprio universalismo. Esta
incapacidade segue a lógica de formação de identidade em que tudo está
centrado em torno da própria peculiaridade e autoestima. Portanto, no
desenvolvimento histórico mundial de universais culturais podemos
Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e
diferença de culturas nos encontros de nosso tempo

observar uma forte tendência de exclusão. Todas essas formas de vida que
não são semelhantes ou as mesmas, como aquelas que usam abordagens
universalistas para entender o mundo, são excluídas, discriminadas ou
desprezados. Assim, pode-se dizer que, em uma perspectiva universalista,
a história cultural do desenvolvimento dos universais começou com
um universalismo tenso. Fundamentalismo hoje é um legado e uma
radicalização dessa tensão. Ele é carregado com elementos etnocêntricos
e poder. Mas, ao mesmo tempo, universalismo cultural vai além do
etnocentrismo, uma vez que os outros estão integrados nos universais da
própria interpretação de criação de sentido do mundo e da vida humana.

O Renascimento da Origem
dos Tempos Axiais
52 Para entender a mudança radical dos universais culturais da
exclusão à inclusão, temos que voltar para as origens de todas as formas
de identidade cultural que receberam as suas características específicas ao
se introduzirem os universais. Há um termo específico para caracterizar
estas origens: o tempo axial. Devemos o termo à filosofia da história de
Karl Jaspers. De acordo com Jaspers, as chamadas civilizações do mundo
adquiriram as suas características tradicionais em um tempo axial7.
Diferentes culturas têm diferentes tempos axiais mas, em uma perspectiva
histórica universal, estes tempos axiais juntos formam um limiar na
evolução cultural da humanidade.
Nas raízes destes primórdios, podemos encontrar um potencial para
a solução dos problemas do nosso tempo. A solução é o universalismo
profundamente enraizado na identidade cultural. Em uma forma
inalterada é, é claro, não a solução, mas o problema. A solução não
pode ser encontrada contra ela, mas no seu interior e de acordo com
ela, ou seja, dentro de seu desenvolvimento histórico. Tempos axiais não
são origens atemporais de um status metafísico em todas as mudanças
temporais. O que se originou neste passado tornou-se uma questão de
temporalidade, de historicidade. Ele, essencialmente, está aberto para
mudanças e desenvolvimento. De acordo com essa historicidade, não é
uma questão utópica pedir por uma nova abordagem e tratamento prático

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diferença de culturas nos encontros de nosso tempo
de universalismos culturais, tradicionalmente profundamente enraizados,
que ainda são poderosos elementos da identidade cultural de hoje.
Este universalismo tem de ser remodelado, reformado a partir
de excludente para includente. O que nós precisamos para o discurso
intercultural de hoje é um renascimento de tempos axiais, pelos quais o
universalismo original seja mantido e alterado ao mesmo tempo. Isso não
deve ser uma ruptura, mas uma transformação das tradições próprias.
É uma transformação que pode ser caracterizada como um novo tempo
axial, que acompanha o processo de globalização tópica e responde seus
desafios de identidade cultural.

O papel da ideia de humanidade


Um dos universais mais importantes na identidade cultural é a
ideia de humanidade. Com esta ideia, a dimensão social da identidade
é generalizada para que ela inclua todas as outras, desde que todas 53
partilhem as características básicas da humanidade. Em um longo
processo histórico, ser um ser humano tornou-se um elemento essencial
da autoconsciência e auto-estima. A humanidade alargou o escopo da
identidade empiricamente e aprofundou sua qualidade normativa. Ser um
ser humano agora é carregado com experiências históricas generalizadas

7 Jaspers, Karl: The Origin and Goal of History. Westport, Conn.: Greenwood Press 1976; Eisenstadt,
Shmuel N. (Ed.): Kulturen der Achsenzeit. Ihre Ursprünge und ihre Vielfalt. Part I, II, III. Frankfurt am
Main: Suhrkamp 1987, 1987, 1992
e com elementos normativos compartilhado por todos os outros seres
humanos.
Culturas podem ser chamadas humanistas, se elas atribuem uma
qualidade altamente normativa para ser um ser humano. Humanismo tem
desempenhado um papel importante na tradição ocidental, e todo mundo
que já olhou uma vez para o Lun Yü sabe, que 'humanidade'8 desempenha
um papel decisivo na tentativa de Confúcio para desenvolver um sistema
de regulações normativas para vida social e política. Na tradição judaica,
encontramos um provérbio que significa humanismo: Quem resgata um
ser humano, resgata a humanidade. Um provérbio semelhante pode ser
encontrado na tradição muçulmana. O Alcorão diz: "Se alguém mata um
homem, ele deve ser considerado como se tivesse matado a humanidade
em geral, e se alguém preserva a vida de um ser humano ele deve ser
considerado como se tivesse salvado a vida da humanidade”9. Na África,
encontramos um provérbio de significado semelhante: “Umuntu
Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e
diferença de culturas nos encontros de nosso tempo

ngumuntu ngabantu” (um ser humano é um ser humano pela alteridade


de outros seres humanos10).
Estes elementos universalistas, como a espécie humana (humankind)
e a humanidade (humanity) se manifestam de diferentes formas e
expressões, em diferentes culturas: Elas expressam a mesma ideia
de uma maneira diferente, significando assim a peculiaridade da
identidade cultural. Se alguém sublinha este elemento universal dentro
da particularidade cultural da própria pertença a pessoas que usam os
mesmos critérios básicos de sentido na compreensão do mundo e de si
mesmos, pode-se indicar a chance de olhar para a alteridade dos outros,
em uma forma não-etnocêntrica, mas sim equitativa e equilibrada. Uma
vez que os outros compartilham a mesma qualidade normativa de ser um
ser humano, possuem algo em comum com eles, que ao mesmo tempo é
importante para a própria autoestima.
Aqui reside uma importante oportunidade para o respeito e
54 reconhecimento na inter-relação entre si e os outros. Mas é apenas uma
possibilidade. Esta chance será perdida se a pessoa simplesmente sintetizar
a sua própria peculiaridade com o valor de ser um ser humano. Neste
caso, os outros não são tão humanos como ele mesmo. E, portanto, pode-
se tratá-los de uma forma diferente e, claro, mais negativamente do que as
8 Nota do tradutor: ‘humanness’ no original inglês, se referindo a ‘ren’ em chinês
9 Nota do Autor: Alcorão: Surata 5, Verso 33.
10 Nota do Autor: Shutte, A.: Philosophy for Africa. Cape Town: University of Cape Town Press 1993, p.
19.
pessoas a quem se pertence.
Esta dupla moralidade é um fenômeno cultural em todo o mundo e
em todos os momentos. Mas, se alguém se refere à própria peculiaridade
e ao elemento geral e universalista da humanidade como um critério de
sentido fundamental da própria cultura de uma maneira mais refletida,
então a diferença dos outros pode ser percebida como uma manifestação
diferente da mesma humanidade, que está inscrita nas características de
sua própria identidade.
Este é o ponto de minha argumentação. Quando eu caracterizo a atual
situação em um processo de globalização como um novo tempo axial, quero
dizer que nós temos que usar esta oportunidade das diferentes tradições
culturais de conceitualização da humanidade como uma oportunidade
de respeito e reconhecimento. Tradicionalmente, o poder normativo da
humanidade, muitas vezes serviu como um elemento de discriminar os
outros, atribuindo os padrões mais elevados da humanidade às pessoas

Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e


diferença de culturas nos encontros de nosso tempo
do próprio grupo e apenas uma inferior à alteridade dos outros. Em
casos extremos alteridade poderia mesmo ser definida como sendo não
humano. Um exemplo impressionante é a ideologia nazista que roubou
dos judeus a qualidade de seres humanos. Essa desvalorização dos outros,
ao negar sua humanidade, ainda é eficaz em controvertidos tópicos
sobre identidade. Um intelectual negro Sul Africano, por exemplo, fez
isso através da comparação dos homens brancos de seu país que falam
Afrikaans com babuínos e bonobos11. Uma charge brilhante feita por
Zapiro ironiza esta afirmação, apresentando as duas espécies - um homem
branco e um babuíno reclamando sobre o uso um do outro ao caracterizar
a sua identidade12.
Um uso etnocêntrico do conceito geral da humanidade na formação
da identidade pode ser chamado de um humanismo limitado ou - mais
criticamente -, um humanismo desumano ou invertido. Em relação a esta
limitação, a perspectiva histórica universal, dentro da qual esses conceitos
universalistas da humanidade obtiveram sua dimensão temporal, pode 55
ser chamada de um desenvolvimento não completo. Está sob nossa
responsabilidade hoje, tomar um passo decisivo: conceitualizar a ideia
de humanidade, de tal forma que o ser humano possa ser historicamente

11 Nota do Autor: Makgoba, Malegapuru: Wrath of dethroned white males, in: Mail & Guardian March
24 to 31 2005, p. 23.
12 Nota do Autor: Mail & Guardian April 8 to 14, 2005, p. 23. Dan Roodt é um ardente defensor da
Identidade Afrikaaner tradicional. Ele é criticado pela imprensa liberal na África do Sul, sendo
considerado racista.
percebido como manifesto em diferentes formas de vida humana. Esta
diferença não é uma variedade ilimitada. Os limites desta variedade e os
limites de reconhecimento e respeito estão exatamente lá, onde os outros
não compartilham esse elemento universalista e não percebem isso de uma
forma diferente, mas comparável, ou seja, através do desenvolvimento de
suas estratégias mentais específicas de respeito e reconhecimento.
À luz de tal perspectiva histórica, a comunicação intercultural adquire
a dinâmica de um novo tempo axial. Essas dinâmicas podem conceder
uma troca de possibilidades e potencialidades de se conceituar a qualidade
normativa geral de um ser humano. Isso se aplicaria a todos os membros
da espécie humana de formas diferentes, sob diferentes circunstâncias e
pressupostos históricos.
É minha a responsabilidade apresentar as possibilidades ocidentais de
tal comunicação e estou esperando as respostas não-ocidentais, propostas,
críticas, comentários, e talvez, até mesmo algum consentimento.
Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e
diferença de culturas nos encontros de nosso tempo

56
Humanismo clássico — um
levantamento histórico1
Why? Who? Where am I? For happiness.
A human being. On earth.
G.E. Lessing2

O que é o “Humanismo Clássico”


Em nenhum lugar existe uma cultura na qual alguma ideia do que
significa ser humano não desempenhou um papel importante na forma

Humanismo clássico — um levantamento histórico


como os humanos constituem sentido e regulam suas vidas cotidianas.
A ‘humanidade’ é um conceito que (entre outros) vêm a designar uma
das manifestações de tal ideia. O humanismo, por sua vez, fornece um
significado específico a esta ideia no que diz respeito à forma como os
indivíduos, bem como a vida social, se torna significativa. Estes termos não
são nada claros. Eles preferem cobrir um amplo espectro de significados,
nos quais a maneira pela qual os seres humanos vivem suas vidas passou a
assumir a finalidade prática de proporcionar alguma orientação cultural.3
Este espectro é demarcado por dois extremos: de um lado, a
humanidade compreende a noção de tudo o que os homens têm em
comum, como membros da espécie Homo sapiens. Esta base comum
está menos preocupada com o equipamento natural do gênero, do que
com as particularidades culturais humanas compartilhadas em seus
diversos estilos de vida. O que está implícito é que os seres humanos,
invariavelmente, desenvolvem as operações significativas para reordenar 57
suas vidas. A ‘Humanidade’ num sentido geral define a essência do ser

1 RÜSEN, Jörn. “Classical Humanism – a Historical Survey”. In: ANTOHI, Sorin; HUANG, Chun-Chieh;
RÜSEN, Jörn (ed.). Approaching Humankind – Towards an Intercultural Humanism. Essen-Germany/
Taiwan-China: National Taiwan University Press, 2013, p. 161-184. Tradução por Marcelo Fronza. As
obras citadas pelo autor editadas em português foram referenciadas também nesta língua.
2 “Por quê? Quem? Onde eu estou? Pela felicidade. Um ser humano. Sobre a terra.” LESSING, Gotthold
Ephraim: “Die Religion”, in: Werke, v. 1: Gedischte, Fabeln, Lustspiele, Darmstadt, 1996, p. 171.
3 Cf. e.g. GIUSTINIANI, Vito R.: "Homo, Humanus, and the Message of ‘Humanism’”', in: Journal of the
History of Ideas 46.2 (1985): p. 167 -195.
humano enquanto um ente culturalmente determinado. Por outro
lado, essa definição se limita a uma forma específica dessa essência
culturalmente definida, que, por sua vez, diz respeito a um elemento
central do seu arranjo de normas. O termo ‘humanidade’, assim, adquire
uma conotação decididamente normativa, para além da sua condição
empírica. Ele sustenta a existência humana em alguns fundamentos, isto
é, em referência à sua relação específica com a natureza e com o cosmos,
a qual regula a forma como os seres humanos estão lidando um com o
outro. A natureza cultural do ser humano, em sua forma mais extrema,
fornece significados para a escolha constante da ação e do sofrimento
humanos entre a desumanidade e a humanidade.
A forma mais pronunciada desta interpretação da humanidade é
chamada de ‘humanismo’. Minha preocupação é a seguinte: tornar visível
e compreensível esta variedade específica em relação ao seu contexto
histórico. Em fazendo isso, estarei fundindo os seres humanos com a forma
mais específica, ou seja, a do humanismo tal como tem se manifestado na
Humanismo clássico — um levantamento histórico

cultura ocidental.
Eu considero o ‘humanismo clássico’ do final do século XVIII e XIX
como a manifestação mais central desse fenômeno. Lidamos aqui com
uma tendência universal que apareceu em toda a Europa, a qual, contudo,
assumiu formas diferentes em seus diversos contextos regionais. Tzvetan
Todorov expôs a variedade francesa do modo mais impressionante.4 Estou,
portanto, focalizando a variedade alemã, que está inseparavelmente ligada
aos nomes de Herder e Humboldt.5
A pré-condição intelectual para construir essa constelação está na
antropologia do começo da história moderna. Aqui, pela primeira vez, a
interpretação do homem e do mundo já não era baseada numa autoridade
não humana de construção de significados (Deus ou a Natureza), mas

4 TODOROV, Tzvetan: Imperfect garden. The legacy of humanism, Princeton, 2002 (TODOROV, Tzvetan.
58 O Jardim Imperfeito: o Pensamento Humanista na França. São Paulo: EDUSP, 2005).
5 Esta definição historicamente específica do termo ‘humanismo’, não é a dominante na literatura
internacional sobre este objeto. Neste contexto, o termo é entendido no sentido de um lar filosófico
do discurso que é típico do humanismo moderno inicial, ou seja, o modo como naqueles dias dos
‘humanistas’ (pessoas educadas na antiguidade clássica) cultivavam a ‘humaniora’ (as disciplinas
intelectuais que investigavam e debatiam a antiguidade clássica) demarcando sua distância crítica
em relação à lógica discursiva da escolástica e aos laços com o dogmatismo eclesiástico. A partir
disso, pode ser concebida uma atitude intelectual mais geral perante a vida. Um exemplo disso
é a definição de Edward Said do humanismo enquanto uma atitude liberal, abrangente e crítica
das ciências humanas (“seja como abertura a todas as classes e origens, quanto um processo
interminável de discursos, descobertas, autocríticas, e da libertação”, Humanism and Democratic
Criticism, New York 2004, p. 28 e seg.). Nessa definição, o humanismo perde a sua especificidade
histórica e se torna uma fórmula estilizada do liberalismo intelectual — além ficar privado de todas
as manifestações concretas que existem por causa das circunstâncias históricas particulares.
era referida apenas à humanidade em si, enquanto um objetivo final. Isso
foi adequadamente expresso por Kant em sua famosa fórmula, segundo a
qual as três questões fundamentais da filosofia, as quais também formam
a diretriz geral para a orientação cultural dos seres humanos — o que
posso saber? O que devo fazer? O que posso esperar? —, convergem para
a pergunta: o que é o homem?6
Este recurso da humanidade em si mesma, como a única fonte para a
definição cultural do que é ser humano, só se torna humanista, no sentido
mais verdadeiro, se e quando os sujeitos passam a ser objetos do valor
específico como uma espécie enquanto princípio antropológico e se,
sendo assim humanos, adquirem o status de uma norma absoluta, quando
procuram regular toda prática humana.
O humanismo, na sua forma moderna, fusiona a dimensão empírica
da experiência humana com um elemento normativo. Immanuel Kant
formulou esta ideia em sua forma mais definitiva:

Humanismo clássico — um levantamento histórico


...O homem considerado como uma pessoa, ou seja, um sujeito com
uma razão moral e prática, é exaltado acima de qualquer coisa, pois
nessa qualidade (homo noumenon), ele não apenas é valorizado
devido à realização para outras pessoas ou seus próprios fins, mas
como um fim em si mesmo, isto é, é possuidor de uma dignidade (um
valor interno absoluto) pelo que merece ser respeitado por todos os
outros seres racionais, portanto, pode medir-se em relação a todos os
outros deste tipo e estar em pé de igualdade com os mesmos.7

No humanismo clássico, a ‘humanidade’ é considerada como o


critério último de qualquer operação de criação de sentido e, como tal, é
concebida em duas aplicações universais, tanto em um sentido empírico
(que engloba toda a humanidade existente no espaço e no tempo), quanto
em um sentido normativo (atribuindo a cada sujeito a dignidade de ser
seu próprio fim).
Este critério de significado também é posto em jogo enquanto um 59
critério de legitimação das regras políticas. O humanismo, entendido
como uma variedade política da fundação legal do Estado, é formado
por direitos humanos e civis. Esta universalidade é, ao mesmo tempo, um

6 KANT, Immanuel: Kritik der reinen Vernunft 1781, 2nd ed. 1787, A 805, (Werke in 10 vols, ed. Wilhelm
WEISCHEDEL, vol, 4, Darmstadt 1968, p. 677 (KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.); KANT: Logik A. 26, (Werke in 10 vols, ed. Wilhelm WEISCHEDEL,
vol. 5, Darmstadt 1968, p. 448) (KANT, Immanuel. Lógica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.
7 KANT: Metaphysik der Sitten A 93, (Werke in 10 vols, ed. Wilhelm Weisehedel, voI. 7, Darmstadt 1968,
p. 569). (KANT. A Metafísica dos Costumes. Bauru: EDIPRO, 2003).
historicismo universal; assim como por princípio, o homem e o mundo
são interpretados e compreendidos a partir de critérios históricos.
Para cada ser humano e para cada modo particular de conceber a
sua vida, esse tipo de humanismo assume uma forma específica: a da
individualidade.
A qualidade universal, bem como a individualizada, de cada ser
humano só é conceitualizada enquanto um potencial antropológico; sua
realização está condicionada à implementação de um processo individual,
o qual, ao mesmo tempo, tem uma dimensão social. Este processo pode
ser categorizado sob o nome de ‘educação’, (em alemão “Bildung”).
Todas estas particularidades são os elementos essenciais que
caracterizam o humanismo moderno como uma construção intelectual.
Mas, isso é mais do que apenas uma simples ideia. Já está institucionalizado
na forma de vida da sociedade civil burguesa. A convicção de que
toda crença religiosa, em suas diversas manifestações históricas e em
suas divergências com outras crenças, pode ser integrada numa ordem
Humanismo clássico — um levantamento histórico

social secular que obriga todas as religiões conviverem pacificamente


(“tolerância”), é um aspecto indispensável desta forma de vida.
As humanidades são concebidas pelo humanismo como um sistema
organizado de interpretações, que podem reivindicar certo grau de validade
universal. Os direitos humanos e civis, tal como estão consagrados nas
constituições modernas, podem ser considerados como a instituição mais
poderosa do humanismo moderno, e o que não é menos importante, por
causa da reivindicação de sua validade universal.
No que se segue, proponho uma interpretação do conceito de
humanismo dentro de uma perspectiva histórica, ou seja, gostaria de
posicioná-lo dentro do quadro temporal no qual deve ser avaliado o
processo de globalização contemporâneo.

60 As Premissas Antropológicas
Qualquer conceito do que significa ser humano8 é determinado
pela diferença fundamental existente entre as criaturas humanas e não
humanas. Na maioria das formas de vida humanas as qualidades não

8 For the following cf.: ANTWEILER, Christoph: Was ist den Menschen gemeinsam? Über Kultur und
Kulturen, Darmstadt, 2nd ed., 2009; ANTWEILER, Christoph: Mensch und Weltkultur. Für einen
realistischen Kosmopolitismus im Zeitalter der Globalisierung (= Der Mensch im Netz der Kulturen -
Humanismus in der Epoche der Globalisierung, vol. 10), Bielefeld 2011. (English translation: Inclusive
Humanism. Anthropological Basics for a Realistic Cosmopolitanism, Göttingen, 2012).
humanas são distribuídas entre duas dimensões: a natural e a divina. O
homem está localizado em algum lugar entre as duas — seu lugar está
onde as duas dimensões (a humana, entre a natural e a divina) estão
hierarquicamente ordenadas: o maior valor é atribuído ao mundo divino,
o menor à natureza, e o homem que ocupa o caminho do meio, é marcado
pela qualidade ‘intermediária’ de ser capaz de distinguir entre o bem e
o mal, e seja, mesmo, compelido a fazê-lo. À qualidade de diferenciar
entre o bem e o mal — algo que é único ao homem — soma-se à
necessidade resultante de ter que fazer escolhas práticas sob o mandato
de seus atributos divinos e naturais. As regras morais que determinam o
comportamento humano são definidas por uma clara distinção entre o
bem e o mal. A capacidade de fazer tal distinção pressupõe certa ideia do
que significa ser humano: os seres humanos são definidos como pessoas,
eles são indivíduos dotados de certa consistência física e psicológica, e,
como tal, são responsáveis por suas ações, pelo menos na medida em que
a esfera da sua vida quotidiana está em causa. Esta responsabilidade dota

Humanismo clássico — um levantamento histórico


cada ser humano (para usar uma expressão atual) com a qualidade da
dignidade que, por sua vez, exige que ele deva se relacionar com respeito
e reconhecimento nos contextos sociais. A noção da dignidade humana
também está conectada a outra faculdade humana que constitui um
universal antropológico, isto é, a de mudar a própria perspectiva cognitiva
e interpretativa, ao adotar a perspectiva de outra pessoa. A dignidade do
homem está antropologicamente enraizada na sua discriminação entre o
bem e o mal para além da capacidade de empatia.9
No que diz respeito à dimensão social da vida humana, a qual
é antropologicamente determinada por um sistema de distinções
binárias,10listo-as sumariamente da seguinte forma:
– A distinção entre encima e embaixo nas hierarquias sociais.
– A distinção entre o poder e a falta deste.
– A distinção entre os lugares centrais e os marginais na relevância
cultural. 61
– A distinção entre o senhor e o escravo ao definir a desigualdade
social.
– A distinção entre o homem e a mulher que faz do gênero uma

9 Isso corresponde a certas normas de comportamento moral cujo status é igualmente universal: a
equidade entre a competitividade e uma organização cooperativa do mundo do trabalho.
10 As seguintes reflexões ocupam as ideias propostas por Reinhart Kosellek: KOSELLECK, Reinhart:
“Historik und Hermeneutik”, in: KOSELLECK, Reinhart: Zeitschichten. Studien zur Historik, Frankfurt/
Main 2000, p. 97 -118.
categoria social fundamental.
– A distinção entre o velho e o jovem que vai além da diferença
meramente biológica, ao definir assim o status social e geracional
de processos educativos.
– A distinção entre o ter que morrer e a capacidade de matar.
– A distinção entre o amigo e o inimigo que, em conjunto com
o acima mencionado, regula o uso do poder e da força na vida
social, tanto em termos de suas relações internas quanto externas.
– A distinção entre o interior e o exterior, ou seja, entre um grupo
de pessoas com um sentimento de pertença com quem forma uma
comunidade — o que significa uma identidade coletiva com fortes
laços emocionais e cognitivos —, de um lado, e àquelas pessoas,
por outro, com quem se considera e se trata como os ‘outros’ ou os
‘estranhos’.
Essa última distinção desempenha um papel importante no
desenvolvimento histórico da humanidade, porque trata de uma camada
Humanismo clássico — um levantamento histórico

profunda da subjetividade humana e da formação da identidade, o que


é de importância fundamental para a ideia de humanismo. A relação
entre o eu social e a alteridade do outro é determinada por uma lógica
de diferenciação elementar e universal: a lógica da discriminação
etnocêntrica e, ao mesmo tempo, de hospitalidade para com o estrangeiro.
O esforço cultural necessário, a fim de desenvolver o sentimento de
hospitalidade em face à aversão quase natural ao que é diferente ou
estranho a nós, demonstra com ímpeto a força do etnocentrismo que age
na determinação da identidade cultural. No etnocentrismo, a imagem
de si mesmo é representada exclusivamente na forma e na cor de valores
positivos, que permitem que os seres humanos a desenvolvam no sentido
da coesão social, bem como na atitude afirmativa, tanto para si quanto
para todos os outros, de que pertencem à mesma forma de vida — algo que
é de importância vital. A alteridade ou a alteridade dos que existem fora
62 desta forma de vida é, pela mesma lógica, definida em termos de falta, ou,
pelo menos, pela redução de todos os valores positivos na forma de vida
externa. O exemplo mais marcante de tal mentalidade discriminatória é a
distinção entre civilização e barbárie.11

11 A lógica do etnocentrismo é tratada mais extensivamente em: RÜSEN, Jörn: “How to Overcome
Ethnocentrism: Approaches to a Culture of Recognition by History in the 21st Century”, in: Taiwan
Journal of East Asian Studies 1.1 (June 2004): p. 59-74; and in: History and Theory 43 (2004), Theme
Issue “Historians and Ethics”: p. 118 -129.
A Mudança Histórica
Seria tentador definir esses universais antropológicos, enquanto
características essenciais de todas as formas de vida, como contrários à
mudança histórica. Tal oposição impediria qualquer compreensão mais
profunda da mutabilidade da cultura humana; as quais não contrariam
os universais antropológicos, mas ocorrem no interior deles. Eles ainda
nos permitem determinar o direcionamento das mudanças nas formas
de vida humana que comumente são, em nome da ‘história’, inimigas. A
história é muito mais do que uma mudança arbitrária ou acidental. Ela é
estruturada no que diz respeito a sua qualidade enquanto um processo
de desenvolvimento. Este processo deriva sua força das contínuas
tentativas dos seres humanos para alcançar um equilíbrio aceitável entre
as distinções listadas acima — distinções que são também oposições, e,
como tal, constantemente geram tensões. A vida humana é impulsionada
para frente por meio da luta constante para superar as forças destrutivas, “a

Humanismo clássico — um levantamento histórico


sociabilidade antissocial” (Kant), inerentes a qualquer organização social,
que são causadas pelas tensões geradas entre as alternativas que foram
antes mencionadas. Em todos os conflitos e lutas sociais, o ideal de uma
forma de vida aceitável para todas as ações é a força motriz fundamental
do comportamento social humano.
Qual tendência evolutiva pode ser suposta como o resultado mais
provável de tal dinâmica interna? Ou, também, como é possível formulá-
la a partir da historicidade da vida humana? A única possibilidade de
encontrar uma resposta para essas perguntas, de modo logicamente
convincente, consiste em combinar a experiência do presente e com
as expectativas futuras, olhar para trás por meio da experiência das
mudanças temporais humanas e de como seu mundo tem sofrido e, em
seguida, explorar as condições da possibilidade do desejo de sua realização
no futuro.12 Dois aspectos essenciais do pensamento histórico devem ser
levados em conta. 63
Quando se procede desta forma, em primeiro lugar, a dimensão
global da interação humana no presente, faz com que o conceito coletivo e
abstrato da ‘humanidade’ apareça como um fato empírico, e, em segundo
lugar, o imperativo de estabelecer uma coexistência viável entre diversas
tradições e ideias sobre o ser humano. De acordo com isto, pode-se

12 A lógica subjacente ao pensamento histórico aqui descrito brevemente é o de uma reconstrução


voltada para uma orientação para o futuro. É uma alternativa à lógica duradoura e prevalecente, mas
não tão plausível, de uma teleologia que é baseada em sua própria origem.
esperar que o futuro desenvolvimento histórico compreenda os processos
essenciais da universalização, tanto como uma tendência ao enfatizar a
diferença, quanto como a interligação entre o eu próprio e o ele dos outros.
Podemos diferenciar três etapas essenciais no desenvolvimento
humano ou na evolução cultural:
1) As formas arcaicas de vida, onde a maioria, se não todas, as
qualidades do ser humano se baseiam em relações de parentesco,
na medida em que todos os outros com quem o sujeito não está
ligado por laços sanguíneos não são considerados como humanos.
2) As formas de vida com uma complexidade social mais elevada,
onde as fronteiras étnicas do ser humano são inevitavelmente
transgredidas (como foi o caso dos grandes impérios). É possível
— como também acontece aqui — designar um passo a frente com
esse tipo de universalidade pelo nome de “era axial” (“Achsenzeit”),
ao seguir as sugestões de Jaspers, Eisenstadt e outros.13 As
tendências universalizantes que resultaram das eras axiais foram
Humanismo clássico — um levantamento histórico

manifestadas em diversas culturas, independentemente umas das


outras, literalmente, quase ‘lado a lado’.
3) A forma de vida humana dentro do sistema das “múltiplas
modernidades”14; onde as formas mentais da diferença cultural
evoluíram são, ou melhor, devem ser reconciliadas como uma
nova forma integradora do universalismo.

As Sociedades Arcaicas
Em sociedades arcaicas, apenas os membros da própria comunidade
são qualificados como seres humanos. Todas as outras pessoas que vivem
fora da sua própria esfera de vida não são consideradas como humanas;
estas são vistas como não possuidoras das características essenciais que
definem a própria humanidade.15 Isso é evidenciado pelo simples fato
64
13 JASPERS, Karl: Vom Ursprung und Ziel der Geschichte, Munich, 1963 (primeiramente Zürich, 1949);
EISENSTADT, Shmuel N. (Ed.): Kulturen der Achsenzeit. Ihre Ursprünge und ihre vielfalt, vol. I, II, III,
Frankfurt/Main 1987, 1987, 1992; ARNASON, Johann P./EISENSTADT, S.N./WITTROCK, Björn (Eds.):
Axial Civilisations and World History, Leiden, 2005.
14 EISENSTADT, S.N.: "Multiple Modernities", in: Daedalus 129.1 (Winter 2000): 1- 30; ibid.: Die groβien
Revolutionen und die Kulturen der Moderne, Wiesbaden, 2006. (EISENSTADT, S.N.: “Múltiplas
Modernidades”. Sociologia, Problemas e Práticas, n.35, Oeiras, p. 139-163, abr. 2001.)
15 A fim de designar essa universalidade exclusiva, bem como particular, do ser humano nas sociedades
arcaicas Klaus Müller cunhou o termo apropriado “o absoluto de seu próprio mundo”. (MÜLLER,
Klaus E. (Ed.): Menschenbilder früher Gesellschaften. Ethnologische Studien zum Verhältnis von
Mensch und Natur, Frankfurt/Main 1983, p. 15).
de que muitos dos nomes que as pessoas que vivem em tais condições,
dão a testemunhar tal particularidade: chamam-se de ‘homem’. Têm este
significado nomes como “Bantu”, “Khoikhoi” e “Apache”, e muitos outros.
As regras culturais dessas formas de vida são baseadas no imperativo
fundamental de manter a tradição e perpetuá-la em todas as circunstâncias,
a fim de inculcá-la nas mentes e nos corações das pessoas. As relações
sociais são dominadas pelo princípio da reciprocidade. Existe um padrão
duplo: por um lado, os princípios prescrevem o tratamento mútuo entre
as próprias pessoas e, por outro lado, a exploração e a sujeição dos outros,
os estranhos. Nada prova isso de maneira mais surpreendente do que o
fato do canibalismo ser uma estratégia generalizada para adquirir a força
do poder vital e mental dos outros.
As Mudanças Culturais nas Eras Axiais
Seguindo Karl Jaspers, o termo “era axial” designa uma mudança
acentuada de formas de vida humanas. Ele coincide com o surgimento

Humanismo clássico — um levantamento histórico


das chamadas “altas culturas”. Ao contrário de Jaspers, não estou
usando esse conceito no sentido de uma indicação cronológica rígida
de uma inversão de rumos que é válida para todas as culturas, mas sim
na consideração adequada das diferenças culturais (especialmente com
relação à cronologia), mais propriamente num sentido do impulso
evolutivo da cultura. Tais impulsos não ocorreram em diferentes culturas,
todos ao mesmo tempo, mas seu efeito de provocar uma reestruturação da
organização cultural da vida humana tem sido semelhante (no sentido de
comparável) por toda parte. A “era axial” é um momento em que uma nova
compreensão do homem e seu mundo surgem e conseguem prevalecer
(com consequências a longo prazo como na forma das chamadas “culturas
do mundo” ou “civilização”).16
Podem ser categorizadas três áreas fundamentais onde este impulso se
manifesta: o “eu” (humano), o “mundo” (extra-humano) e o “Deus” supra-
humano (ou O Divino). Considera-se que esta humanidade transcendente 65
dual constitui-se historicamente como uma categoria cultural não natural.
O novo entendimento da “humani-dade” dos seres humanos é
incorporado por um “avanço transcendental” (Eisenstadt), que provoca
mudanças profundas nas categorias fundamentais que compõem o
mundo humano e a concepção que a humanidade tem de si. Esta mudança

16 Cf.: EISENSTADT, Shmuel N.: “Die Achsenzeit in der Weltgeschichte”, in: ibid.: Theorie und Moderne.
Soziologische Essays, Wiesbaden 2006, pp. 253 - 275, and in: JOAS, Hans/WIEGANDT, Klaus (Eds.): Die
kulturellen Werte Europas, 4th ed., Frankfurt/Main, 2006, pp. 40-68.
consiste principalmente no mundo divino que adquire uma nova (ou
seja,“transcendental”) qualidade, que foi removida da realidade do
mundo, quando os seres humanos agem fora de suas vidas. Para ser mais
preciso em termos filosóficos, deve-se, na verdade, dizer “transcendente”
ao invés de “transcendental”. O Divino assume uma forma de existência
que o diferencia da vida cotidiana que, assim, torna-se absolutamente
mundana. Aquelas áreas que, numa forma arcaica de vida, ainda estavam
estreitamente inter-relacionadas, agora podem tornar-se unidades
separadas, e isto ocorre através do seu novo caráter enquanto uma espécie,
por assim dizer, intermediária.
A nova qualidade do ser humano pode ser definida por um senso de
subjetividade. Isso significa que o valor que acrescenta o além, implícito
na ideia de transcendência, é agora pensado como inerente à própria
humanidade, marcando assim o ser humano como uma subjetividade
cujo significado é derivado somente a partir de si mesmo. Neste sentido,
a profecia judaica pode ser considerada como um exemplo paradigmático
Humanismo clássico — um levantamento histórico

de como o mundo está localizado no uno e no indivíduo, e por outro lado,


separados um do outro e relacionados de forma completamente nova.
O humano é agora pensado como contido dentro do “coração” de cada
pessoa. Estabelece, assim, uma relação pessoal, ou mesmo individual, vis-
à-vis com o mundo divino.17 Em uma perspectiva invertida (em que o ser
humano aparece à luz do divino) o homem pode, então — como é o caso
no judaísmo e cristianismo —, ser definido como sido criado à imagem
de Deus.
O confucionismo conceituou esta nova subjetividade como “ren”,
que em inglês é mais comum ser traduzido como “benevolence”
(“benevolência”). Em alemão, o termo “Menschlichkeit” parece ser
um equivalente.18 Os princípios éticos de validade universal podem
ser sintetizados sob o conceito do humanismo chinês,19 porque estão
66
17 A vocação de Isaías é um exemplo impressionante disso: Isaías. 6, 1-13. Bíblia Sagrada. Tradução
João Ferreira de Almeida. Disponível em: http://www.culturabrasil.org/biblia.htm. Acesso em: 05 dez.
2014.
18 Ver CHEN, Yunquzan: “The Spirit of Renwen (‘Humanism’) in the Traditional Culture of China", in: RÜSEN,
Jörn/LAASS, Henner (Eds.): Humanism in Intercultural Perspective. Experiences and Expectations,
Bielefeld, 2009, p. 56. Chen fala da “ideia de considerar as pessoas como o centro de tudo, prestando
atenção à sua dignidade e valor...” (p. 49). Ver também MITTAG, Achim: “Reconsidering Ren as a Basic
Concept of Chinese Humanism”, in: MEINERT, Carmen (Ed.): Traces of Humanism in China - Tradition
and Modernity, Bielefeld, 2010, pp. 49-62.
19 Cf. numerosas referências em CHAN, Wing-Tsit (Ed.): A Source Book in Chinese Philosophy, Princeton,
1963, pp. 3-48; MEINERT, Carmen (Ed.): Traces of Humanism in China – Tradition and Modernity,
Bielefeld, 2010.
integrados à ordem mundial tradicional e suas práticas rituais. Este tipo de
humanismo motivou a maneira como o mundo foi condenado a tornar-se
mais ligado do que nunca aos argumentos racionais.20
A partir de agora, os limites étnicos do ser humano tornam-se a
ser capazes de serem transgredidos na direção da nova universalidade
do gênero humano. O estado transcendental da fonte de todo o sentido
divino conduz a um novo conceito de humanidade. Isto não implica
que os antigos limites étnicos tenham desaparecido por completo (se é
que é possível de alguma forma), mas que a eles foram concedidos um
novo status em relação à área da identidade coletiva. Os outros agora
também se tornaram humanos. Este processo universalizante encontra
sua expressão na dimensão abrangente do mundo divino (Brahma, Javé,
Allah, Deus, etc.). Independente de todas as delimitações sociais, políticas
ou de gênero, o indivíduo ganhou um acesso imediato a, ou um encontro
imediato com, esta divindade universal e extramundana. Isso está bem
expresso nas palavras de Paulo: “Aqui não há judeu nem grego; não há

Humanismo clássico — um levantamento histórico


escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois
um em Cristo Jesus”21 Esta universalidade da humanidade é estendida
para todo ser humano único e poderia ser reivindicada por ele. E, assim,
tornou possível (o que é explícito no judaísmo e no islamismo) a ideia de
que matar um ser humano equivale a matar toda a humanidade.22
O poder do etnocentrismo, no sentido da velha e estreita definição
étnica do ser humano, foi estilhaçado; isso, no entanto, não faz com que
ele desapareça por completo, mas reapareça em uma nova roupagem a
partir de um conceito generalizado da humanidade: a identidade cultural
que não deriva dessa universalidade foi capaz de reivindicar e essencializar
o privilégio de representar um conceito “civilizado” da humanidade,
enquanto que a alteridade para os outros foi concebida nos termos de
uma forma única e reduzida da humanidade, ou seja, uma deficiência
em relação à “verdadeira humanidade”. E uma vez que os outros seguem
a mesma lógica na formulação de sua autoimagem, um “choque de 67
civilizações” é a consequência amarga da competição entre as ideias sobre
a humanidade.

20 Cf. ROETZ, Heiner: Die chinesische Ethik der Achsenzeit. Eine Rekonstruktion unter dem Aspekt des
Durchbruchs zu postkonventionelIem Denken, Frankfurt/Main; ibid.: Confucian ethics of the axial
age, Albany, 1993.
21 Carta aos Gálatas 3, 28. Bíblia Sagrada. Tradução João Ferreira de Almeida. Disponível em: http://
www.culturabrasil.org/biblia.htm. Acesso em: 05 dez. 2014.
22 Assim está no Alcorão 5, 32 em referência a um ditado judaico.
Os Passos em direção à Modernidade
O novo conceito de homem que evoluiu durante a era axial lançou as
bases para o surgimento de dois novos fatores que se revelaram decisivos
para a última época no desenvolvimento da humanidade: a racionalidade
científica e a secular (ou seja, não definida e legitimada em termos
religiosos) de ordenação da vida social. As ciências naturais e, mais
tarde também, as ciências humanas e sociais foram fundamentais para
desmistificar o natural, assim como o mundo humano. Isto foi aplicado
em igual medida às regras fundamentais da vida social e à ascensão
concomitante da democracia como a regra de princípio organizador. Essa
nova cultura de uma sociedade civil secular e do conceito de humanidade
vai ao encontro de sua expressão mais adequada na formulação de Kant,
de que cada ser humano é um fim em si mesmo e nunca apenas um meio
para os fins de outras pessoas, isto porque ele é dotado de uma dignidade
Humanismo clássico — um levantamento histórico

inalienável. Esta dignidade se institucionalizou nos direitos humanos e


civis, os quais formaram a base sobre a qual foi sustentada a constituição
política das sociedades modernas recém-formadas.
Foi nesta sociedade civil secularizada que o humanismo moderno
emergiu como o fundamento de toda a orientação cultural. Em sua
manifestação específica (sumarizados acima), é o resultado de um
desenvolvimento, a longo prazo, na história da civilização ocidental
durante a época moderna. Nos parágrafos seguintes, gostaria de delinear
este desenvolvimento sob a forma de uma tipologia complexa de várias
das principais tendências da história.23

A Humanização da Humanidade na
68 História da Europa Moderna
O alvorecer da Era Moderna foi marcado pelo surgimento de vários
tratados novos em filosofia e em teologia a respeito da “a humanidade
como tal”, sua dignidade, seus riscos, bem como o seu potencial. O
Oratio de hominis dignitate (Discurso sobre a Dignidade do Homem) de
Giovanni Pico della Mirandola, de 1486-1487, tornou-se famoso neste

23 Esta descrição é baseada em observações pertinentes à Enciclopédia da Era Moderna: RÜSEN, Jörn/
JORDAN, Stefan: “Mensch, Menschheit”, in: JAEGER, Friedrich (Ed.): Enzyklopãdie der Neuzeit, vol. 8:
Manufaktur-Naturgeschichte, Stuttgart, 2008, pp. 327 - 340.
contexto.24 No início do século XVII, o termo “antropologia” foi criado. A
Era Moderna, no entanto, é também marcada pela ideia de que o conceito
de humanidade tornou-se um assunto de muita controvérsia, o que
resultou em diversas reflexões sobre a sua natureza cada vez mais plural
e divergente. No século XVII, a disciplina da teologia, que inicialmente
manteve o monopólio da definição de como é o homem, foi substituída
pela filosofia, com a qual, por sua vez, passou a competir com o discurso
antropológico da jurisprudência, da medicina e das novas ciências.
Mas, deixando o nível de reflexão teórica de lado, foi também no campo
da própria prática cultural que as mudanças no conceito de homem
ocorreram: as áreas religiosas, políticas e sociais da atividade humana;
desde o século XVII, na literatura e nas artes visuais, que se tornaram
cada vez mais autônomas; E, finalmente, na tecnologia, que, com base em
conhecimentos científicos, tornou-se cada vez mais dominante na vida
cotidiana e deu origem ao tipo humano chamado homo faber, ou seja, o
homem pensado apenas em termos do que é tecnicamente viável. Além

Humanismo clássico — um levantamento histórico


disso, o conceito de humanidade foi muito influenciado pelas mudanças
na vida material das pessoas que eram, devido aos avanços na tecnologia,
e, posteriormente, na produção industrial, marcados pelo êxito da luta
contra a fome, a doença, a mortalidade infantil etc., bem como pelo
crescimento da população resultante disso, além das consequências da
migração e da expansão colonial da Europa.
A compreensão moderna da humanidade repousa sobre o
embasamento tradicional da humanidade em alguma autoridade
transcendental, por meio de uma nova qualidade humana, ao transferir
a qualidade espiritual implícita nesta autoridade para a ideia do homem
em si.25 Este processo é de uma relevância histórica universal e só
pode ser comparado com as mudanças revolucionárias no conceito de
humanidade nas eras axiais: pode-se definir este processo moderno,
como a humanização da humanidade, no entanto, sem, ao mesmo
tempo, assumir que esta equivale — no sentido do progresso moral — ao 69
desaparecimento da desumanidade. A “humanização” refere-se, em vez
de uma mudança na compreensão que a humanidade tem de si mesma, ao
processo que pode ser concretizado e diferenciado como: 1) secularização,

24 PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni: Oratio de hominis dignitate. Rede über die Würde des Menschen,
Latin-German, ed. and transl. by Gert von der Gönna, Stuttgart, 1997. MIRANDOLA, Giovanni Pico
della. Discurso sobre a dignidade do homem. Lisboa: Edições 70, 2006.
25 VAN DÜLMEN, Richard (Ed.): Entdeckung des Ich. Die Geschichte der Individualisierung vom
Mittelalter bis zur Gegenwart, Cologne, 2001.
2) universalização, 3) naturalização, 4) idealização, 5) historicização, 6)
individualização.

a) A Secularização
Na Era Moderna, a autonomia de um homem agindo como sua própria
autoridade estava em conflito com os preceitos religiosos de orientação
cultural. A doutrina cristã tradicional da salvação, e sua interpretação
religiosa do mundo, foi incapaz de manter seu ritmo com o crescente
estoque de conhecimento fornecido pelas ciências e pelas humanidades.
No século XVII, a interpretação tradicional do mundo se diferenciou em
diversas áreas do conhecimento em que as explicações empíricas, sem
qualquer referência a uma autoridade transcendental, tornaram-se cada
vez mais relevantes para a percepção da própria humanidade. O exemplo
mais flagrante disso é a virada copernicana nas ciências, o que pode ser
considerado como uma revolução filosófico-científica dirigida contra a
antiga visão de mundo geocêntrica do que era “natural” e sancionado pela
Humanismo clássico — um levantamento histórico

Igreja cristã.
O retorno à antiguidade clássica era de importância decisiva para
este processo de secularização. Desde o Renascimento e os movimentos
humanistas a ele associados, o humanismo tem desempenhado um papel
vital na formação do conceito intelectual que as classes educadas têm de si
mesmas por toda a Europa.26
Sem cair completamente no esquecimento como uma fonte de
significado, a religião cristã, no entanto, apresentava alguma autoridade
interpretativa no que diz respeito ao fornecimento de alguma orientação
em relação ao aqui e agora. Moral e intelectualmente desacreditada por
várias guerras civis devido a motivos religiosos, as igrejas cristãs no
século XVII foram submetidas a uma crítica da religião, tendo como
consequência a subjetividade do homem moderno que, anteriormente,
70 tinha sido fundamentada na religião cristã, enquanto agora passa a ser
definida em termos exclusivamente seculares. Reivindicações a partir de
verdades religiosas, que tinham encontrado a sua expressão em várias
denominações (articulações “positivas” da fé), foram substituídas por
uma moral universalmente humana cujas bases foram formadas pela lei
da razão (por exemplo, no drama filosófico de G. E. Lessing “Nathan der

26 Cf. CANCIK, Hubert: “Die Rezeption der Antike - Kleine Geschichte des europaischen Humanismus”,
in: RÜSEN, Jörn/LAASS, Henner (Eds.): Interkultureller Humanismus. Menschlichkeit in der Vielfalt der
Kulturen, Schwalbach/Taunus, 2009, pp. 24- 52.
Weise” (“Nathan, o Sábio”), de 1779, com sua “Parábola do anel”).
Como essa orientação cultural secular da moralidade da vida humana
veio à existência, derivou-se daí sua autoridade na sociedade civil. Neste
contexto, a fé religiosa foi concebida como uma questão meramente
privada por causa da lei fundamental da tolerância. Devido à influência
do Iluminismo, a compreensão secular do homem como um ser que pode
dispor livremente do seu mundo, de acordo com os preceitos da razão,
tornou-se o alicerce cultural da sociedade civil moderna.

b) A Universalização
Com o aumento do conhecimento fornecido pelas ciências humanas
e naturais, a ideia da unidade da raça humana teve de ser revista. Na teoria
racial, foi possível abandonar, por um tempo, o conceito unitário por
completo, por exemplo, em La-Peyrêre, Voltaire, E. Long ou Ch. Meiners.27
No final, no entanto, o reconhecimento da unidade monogenética da
humanidade prevaleceu contra a ideia de sua poligenia.28 Este quadro

Humanismo clássico — um levantamento histórico


geral sobre o que os seres humanos têm em comum foi preenchido
com o crescente conhecimento da multiplicidade das formas culturais
da vida humana, como nos referiremos adiante. Os relatos de viagem
desempenharam, especialmente, um papel importante nesse processo,
porque com a descrição das formas de existência humana em áreas do
mundo até então desconhecidas, conseguiu-se questionar a afirmação
global da universalidade do homo europaeicus. Por um lado, o conceito
de humanidade teve de ser adaptado ao crescente conhecimento do
mundo que havia sido acumulado desde o início da era moderna e, por
outro, o conhecimento recém-adquirido teve de ser integrado na tarefa de
desenhar uma imagem atualizada e generalizante da humanidade.
A interpretação da diferença cultural continuou a ser regida pelo
pressuposto típico de que todos os homens foram naturalmente dotados
com a capacidade de escolher livremente, bem como racionalmente, a sua 71
identidade cultural. Essa hipótese se tornou parte da cultura política na
forma dos direitos humanos codificados que se voltaram para um debate

27 LA PEYRERE, I.: Prae-Adamitae, 1655 (Reprint: Kessinger Publishing, 2009); VOLTAIRE: Essai sur les
moeurs et l’esprit des nations et sur les principaus faits de l'histoire depuis Charlemagne jusqu'a
Louis XIII, 1756 (repr.: Paris, 1963, 2 voIs.); LONG, E.: History of Jamaica, 1774 (new print New York,
2009); MEINERS, Ch.: Grundriβ der Geschichte der Menschheit, Lemgo, 1785.
28 A antropologia de Johann Friedrich Blumenbach era típica em relação a isso, bem como altamente
influente em termos discursivos. (De generis humani varietate nativa liber, Göttingen, 1775). Sobre o
contexto histórico e cultural Cf. REILL, Peter Hanns: Vitalizing nature in the Enlightenment, Berkeley,
2005.
duradouro sobre os direitos naturais. A história desta cultura se estende
desde as modernas constituições democráticas, que ainda estavam
confinadas às nações individuais, a todo o caminho até a “Declaração
Geral dos Direitos Humanos” proposta pela Organização das Nações
Unidas em 1948, a qual incluiu toda a humanidade.
Este valor correspondeu a uma quebra em relação à assimetria
etnocêntrica da maneira em que a identidade cultural foi constituída, e
que a inclusão ou exclusão foram acusadas de defender diferentes valores
positivos ou negativos. Mesmo que as culturas ocidentais afirmassem
processar padrões civilizatórios mais elevados do que outras culturas, a
legitimação da exploração e repressão que vieram junto com ela eram
claramente limitadas — pelo menos no que se referia à reflexão teológica,
filosófica, jurídica e moral. Ao atribuir aos “outros” certas qualidades
humanas, incluindo-os também na raça humana, o seu tratamento
bárbaro era (em nome de uma civilização superior) colocado abertamente
à crítica à luz dos padrões humanos mínimos, e em nome de um tipo
Humanismo clássico — um levantamento histórico

de civilização mais elevado, que por sua vez significava que poderia ser
limitado por meios legais.
As regras políticas dos homens sobre os outros homens assim ficaram
restritas em termos teóricos, e sua legitimidade se pôs como uma premissa
para a liberdade fundamental de cada indivíduo submetido a tal regra.
Isso implicou numa reivindicação fundamental na participação no poder
político. A humanização moderna do homem teve seu apogeu político,
especialmente na Europa e nos EUA, na evolução dos direitos humanos e
civis, constitucionalmente consagrados e sancionados, os quais continuam
vigentes até o presente.
Como os direitos humanos, por definição, foram derivados e
pertencem a toda a raça humana, eles também poderiam ser reivindicados
pelas pessoas que, seja por conta da falta de liberdade real (por exemplo,
no caso de repressão) ou a falta real para alguns da definição básica do
72 elemento da humanidade (por exemplo, da razão, no caso de crianças
pequenas, ou deficientes mentais ou morais, no caso, de desvios sociais),
não foi alcançada uma definição padrão de um ser humano livre, razoável
e ético. Ao mesmo tempo, o processo moderno de regulamentação das
regras políticas e vida social por meios constitucionais, que começou na
Europa Ocidental e nos EUA, tornou-se, em algum grau, globalizado.
c) A Naturalização
Desde o início da Era Moderna, o homem descobriu a si mesmo
em termos do contraste acentuado e da mediação dialética entre o seu
estatuto como um ser natural e intelectual, tudo ao mesmo tempo: por um
lado, tornou-se, assim, uma coisa, isto é, um objeto corpóreo da análise
racional e, com base nisso, de dominação tecnológica e manipuladora.
Por outro lado, tornou-se o senhor da dominação e da manipulação. Esta
distinção deve-se ao fato de que o homem, ao estudar a si mesmo, nunca
pode descrever-se como tal, mas sempre apenas em termos relacionais:
por causa de suas qualidades naturais como um animal e por causa de
suas particularidades espirituais enquanto um ser relacionado com Deus.
O homem, assim, foi dividido em um objeto de observação científica, por
um lado, e em um ser espiritual, por outro.
René Descartes expressou esta dicotomia na relação do homem
consigo mesmo e com o mundo numa fórmula altamente relevante através
da diferenciação entre “res cognitas” — uma substância exclusivamente

Humanismo clássico — um levantamento histórico


intelectual ou um espírito não corpóreo — e “res externa” — um mero
pedaço de matéria. Como res extensia, o homem foi considerado em pé de
igualdade com os objetos materiais do mundo, especialmente os do não
pensamento, e, portanto, poderia ser objeto de investigação científica.29
A dimensão científica que a reflexão sobre a humanidade adquiriu
através disso pode ser vista como um aspecto especial do processo de
naturalização e de racionalização. A ciência passou a cuspir uma variedade
de disciplinas especializadas. Até o final do século XVIII, isso resultou numa
distinção relativamente rígida entre a observação puramente científica da
humanidade (por exemplo, na biologia e na anatomia) e a interpretação
das ciências humanas (especialmente em filosofia e em teologia). Pelo
final do século XVIII, ambas as abordagens foram unidas sob a forma
de uma filosofia de vida global. O espírito que pertencia exclusivamente
ao homem foi agora concebido como uma unidade ou força singular que
73
transforma e completa-se com o objetivo de moldar o mundo humano
(por exemplo, J. E. Blumenbach e J. G. Herder). O Humanismo clássico,
— como, por exemplo, o proposto por Herder ou pelos irmãos Humboldt,
mas especialmente por Goethe — foi a tentativa de se reconectar a cultura
humana, que havia sido criada pelo espírito não-material, à natureza
material, dando assim a esta última uma dimensão “humanitária” repleta
29 DESCARTES, R.: Meditationes de prima philosophia. Meditationen über die erste Philosophie. (Latin/
German, ed. v. Gerhart Schmidt), Stuttgart, 1985 (DESCARTES, R. Meditações sobre Filosofia Primeira.
Campinas: UNICAMP, 2004).
de significados normativos.
Desde a metade do século XIX, novas áreas da ciência vieram à
existência na interface com os conceitos naturais e culturais da humanidade,
a partir de novas abordagens metodológicas, especialmente de natureza
analítica, tais como a etnologia, a psicologia, a psiquiatria e a sociologia.
Devido ao foco específico dessas disciplinas, a compreensão das formas
de vida humana foi ampliada ao ponto de se tornar um estudo mais
interpretativo, embora os estudos especializados e metodologicamente
heterogêneos das ciências humanas tenham superado as antigas ciências
humanas com o paradigma hermenêutico da interpretação textual.

d) A Idealização
Concomitante e num intercâmbio complexo com a visão naturalizadora
da humanidade, a tendência histórica da idealização evoluiu, por meio
do conceito de natureza humana, que assumiu um caráter nitidamente
espiritual. Nesse processo, a tradição religiosa do homem enquanto feito à
Humanismo clássico — um levantamento histórico

imagem de Deus foi transformada, para se tornar uma forma de divindade


secular e mundana do homem; isso foi caracterizado por termos como
“espiritualidade”, “bom senso” (em oposição à razão) e “pessoa”. Quanto
mais cedo os pensadores neoplatônicos do século XV, como Nicolau de
Cusa e Marsílio Ficino viram o ser humano como um artista, um “alter
deus” era capaz de espalhar a luz divina na natureza e, assim também, na
natureza humana.
Os primeiros artistas do século XVI, como Leonardo da Vinci e
Albrecht Dürer, criaram suas obras de acordo com essa ideia. O homem
agora não só foi considerado como o objeto reificado de análise e
explicação racional (e, consequentemente, dominado pela tecnologia),
mas ao mesmo tempo figurou como tema no papel de “maitre et possesseur
de la nature” (Descartes).30 Mesmo o ser humano estando reificado como
74 um cadáver vivissecado e como uma fonte de percepção científica, acabou
tornando-se um objeto de fascínio estético, especialmente no que diz
respeito ao próprio ato da vivissecção, por exemplo, em Rembrandt em
“A anatomia do Dr. Tulp” (1632). Leonardo, que realizou a vivissecção
de cadáveres, representou a figura humana como um objeto espiritual da
mais alta ordem. A explicação mais abrangente desta espiritualização do

30 DESCARTES, René: Discours de Ia méthode, 1637 VI, S. 2 (Discours de Ia Méthode, 6e partie. Paris,
1966, p. 168; German translation: Abhandlung über die Methode, transl. Arthur Bu- chenau, Leipzig,
1919, p. 51). DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
homem como um ser natural foi concebida pelo idealismo alemão.
A pré-condição histórica mais importante para este conceito
antropológico ligado à personalidade moral era a ideia do homem que
foi feito à imagem de Deus, além da prática religiosa — sobretudo no
protestantismo — da relação pessoal e direta com Deus. “Estar diante
de Deus” tornou-se agora parte do conceito da própria humanidade.
Assim, por exemplo, Dürer deu traços semelhantes aos de Cristo no seu
autorretrato de 1500. Esta interiorização da relação com Deus, da parte do
sujeito individual, levou à ideia da subjetividade humana, que é marcada
pela liberdade de consciência e de ação autoresponsável. O homem
agora se torna consciente de sua capacidade de se afundar no status de
um animal ou de ascender às esferas de Deus por meio de suas próprias
ações. A autonomia cultural da humanidade resultante deste ato de
emancipação religiosa com relação à determinação de si e de seu mundo
foi sucintamente expressa por G. Pico della Mirandola (1486), quando,
por ocasião da criação do mundo, ele faz Deus dizer para humanidade:

Humanismo clássico — um levantamento histórico


“A natureza limitada dos outros está circunscrita pelas leis que eu lhes
passei. Não afetado por quaisquer restrições você deveria determinar sua
própria natureza de acordo com sua própria vontade, cujo poder eu lhe
emprestei”.31
O conceito de natureza espiritual do homem também se manifestou
na fundação sistemática de auto- interpretação humana. Isto é evidente
na virada hermenêutica das ciências humanas, no final do século XVIII
para o início do século XIX. Tomaram os impulsos a partir da filosofia da
vida e racionalmente evoluíram em um método específico para investigar
o mundo humano na variedade de suas manifestações históricas.32 As
culturas humanas, então, passaram a ser objeto de pesquisas interpretativas,
teoricamente fundamentadas em um “método de compreensão sistemática”
(Johann Gustav Droysen)33 e na autocompreensão da humanidade, os
quais estava inextrincavelmente vinculados à capacidade de perceber
e reconhecer a diversidade cultural de ambos em termos da cultura 75
humana, produzida por causa da “orientação educacional” (Blumenbach)
de todos os seres naturais — embora muito além dos limites da natureza.

31 Ver nota 24.


32 REILL, Peter H.: The German Enlightenment and the Rise of Historicism, Berkeley, 1975; REILL, Peter
H.: Vitalizing Nature in the Enlightenment, Berkeley, 2005.
33 DROYSEN, Johann Gustav: Historik. Historisch-kritische Ausgabe, ed. Peter Leyh, vol. 1, Stuttgart-Bad
Cannstatt, 1977, p. 22 and others (DROYSEN, Johann Gustav. Manual de teoria da história. Petrópolis:
Vozes, 2009).
Para Herder, que designou o homem como o primeiro “ser emancipado
da criação”,34 a realização cultural humana se tornou mensurável pelo
padrão de como ele percebeu o potencial de estar em choque com a sua
“humanidade”. Na base desta concepção humanista do homem enquanto
um fim em si mesmo, as ciências humanas evoluíram no final do século
XVIII, ao mesmo tempo, com uma dupla abordagem: a antropológica e a
histórica.
A estetização da percepção humana de si e do mundo constitui
um processo separado nesse desenvolvimento. Nos meios da arte, as
qualidades naturais e espirituais da existência humana se reconciliaram e
esta síntese humanista da natureza e do mundo humano está harmonizada,
de tal forma, que pode ser levada em linha de conta com a autodefinição
autônoma da humanidade.

e) A Historicidade
A temporização do conceito de humanidade é uma especificidade
Humanismo clássico — um levantamento histórico

da Era Moderna. Sua natureza foi concebida como o resultado de um


processo evolutivo e, consequentemente, sua cultura se tornou alterável
e passou a ser interpretada em termos temporais: o modo exemplar de
construção de significado histórico que tinha encontrado a sua expressão
tradicional na compreensão da história enquanto magistra vitae foi
substituído por um modo genético que enfatizou o futuro aberto, causado
pelas alterações das condições históricas a que foram submetidos e que
fizeram progressos nos aspectos essenciais da evolução histórica. Esta
revolução nos conceitos sobre a humanidade e sua relação com a natureza
ocorreu durante o “tempo selado” em torno de 1750 a 1850 e levou ao
abandono da ideia de imutabilidade da natureza humana. Em vez disso,
cada pessoa acompanhada do seu próprio interesse histórico específico, é
entendida como sendo o produto intelectual próprio ou de outras pessoas
76 em outras culturas e tempos.
Esta historicidade apareceu em diferentes contextos. Em conexão
com uma teoria da sociedade civil, o Iluminismo escocês do século XVIII
(por exemplo, David Hume, Adam Smith, Adam Ferguson, John Millar)
transformou a fundação e legitimação de formas particulares de vida,
previstas na lei natural, em formas genuinamente históricas. No âmbito
da “história teórica” a natureza social do homem foi visto como sendo

34 HERDER, Johann Gottfried: Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit (Werke, ed.
Wolfgang Pross, vol. III/1), Munich, 2002, p. 135 .
completamente determinada pelo histórico. O homem como um animal
sociale passa por vários estágios de uma evolução histórica universalizante
que, finalmente, culmina com a forma de vida da sociedade civil moderna.35
Como consequência do crescente conhecimento sobre a diversidade
de formas humanas de vida, dispersou-se a ideia de uma generalização
e de uma lei física aplicada à forma como todos os seres humanos
regulam suas vidas carnais. Em vez disso, o conceito de “humanidade”
como uma categoria fundamental para definir a natureza humana
adquiriu uma dimensão temporal. Teorizar sobre essa condição se tornou
primeiramente a tarefa da filosofia da história no Iluminismo (precoce).
Forneceu a temporalidade inerente das formas de vida humana enquanto
um senso geral de direção. O ser humano foi assim dilatado pela diferença
qualitativa entre o passado e o futuro. O processamento intelectual da
experiência passada foi considerado o princípio que capacitou o homem
a ultrapassar este “espaço experiencial” fechado e transformá-lo em um
“horizonte de expectativa” aberto onde — devido sua capacidade de

Humanismo clássico — um levantamento histórico


autodeterminação — foi capaz, tanto no pensar como no agir, de abrir e
perceber novas potencialidades humanas.36
O movimento do historicismo, nas ciências humanas do século XIX,
instrumentalizou o fazer da historicidade da humanidade como a base
estratégica da pesquisa histórica. Esta estratégia foi orientada pela visão
de que a história atingiu a “gnoti se auton” (“compreensão de si mesma”)
da humanidade (Johann Gustav Droysen).37 Embora inicialmente se
refira à humanidade em sua totalidade, o foco de interesse passou a ser
cada vez mais reduzido, a fim de, eventualmente, estender-se apenas ao
âmbito europeu e nacional. O etnocentrismo potencial implícito nisso foi
relativizado, se não suspenso, pelo princípio hermenêutico de que cada
época era em si mesma valiosa em termos de fornecer insights sobre a
natureza cultural da humanidade e, também, que qualquer interpretação
das formas de vida humana passadas tinha que ser sistematicamente
consciente da percepção cultural sobre si mesmas. Assim, a unidade 77

35 FERGUSON, Adam: Versuch über die Geschichte der bürgerlichen Gesellschaft, Frankfurt/Main,
1986; MILLAR, John: Vom Ursprung des Unterschieds in den Rangordnungen und Ständen der
Gesellschaft, Frankfurt/Main, 1985.
36 KOSELLECK, Reinhart: “’Erfahrungsraum' und 'Erwartungshorizont’ - zwei historische Kategorien”,
in: ibid., Vergangene Zukunft. Zur Semantik geschichtlicher Zeiten, Frankfurt/Main, 1979, pp. 349-
375. KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categoria
históricas. In: ibid. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto/PUC-Rio, 2006, p. 305-327.
37 DROYSEN: Historik. (nota de rodapé 34), p. 41.
da humanidade foi realizada ao se manifestar na variedade das suas
culturas.38 Ranke expressou essa ideia da seguinte forma: “O princípio de
que a diversidade das nações e dos indivíduos contribuem para a ideia da
humanidade como um todo é um progresso absoluto”.39

f) A Individualização
Já nos finais da Idade Média um processo de motivação religiosa
ligada à individualização definiu qual singularidade de cada indivíduo
(diante de Deus e de todos os outros seres humanos) tornou-se perceptível.
A Reforma, a reforma do catolicismo e o surgimento de formas místicas
de religiosidade em todas as denominações e em todos os caminhos
até o Pietismo ou o Iluminismo religioso, promoveram esse processo
que teria consequências de longo alcance para as práticas culturais. A
individualidade assim formada foi absorvida, por vezes, sem problemas
e, às vezes, no meio de um conjunto de lutas, a partir do conceito de
autonomia individual.
Humanismo clássico — um levantamento histórico

Nos séculos XVII e XVIII isso deu origem a novas ideias sobre a
maneira como o homem e a humanidade foram relacionados entre si. Por
um lado, essa relação foi interpretada de forma biológica-antropológica,
reconhecendo cada indivíduo como parte de uma mesma espécie humana.
Baseado nisso era, então, possível em termos teóricos, deduzir a coesão
social da humanidade a partir de um contrato social fictício celebrado
por indivíduos autônomos em prol da garantia da sua sobrevivência
comum. Essa ideia — inicialmente desenvolvida de forma exemplar por
Thomas Hobbes em seu “Leviathan” [“Leviatã”] (1651) — encontrou sua
expressão clássica em John Locke nos “Two Treatises on Government”
[“Dois Tratados sobre o Governo”] (1690) e, sobretudo, em Jean-Jacques
Rousseau “Du contrat social” [“Do contrato social”] (1762). Neste
contexto, o indivíduo foi percebido no papel de um patriarca, mas o fator
78 decisivo foi sua vontade pessoal e a sociabilidade como o fundamento
próprio da sociedade humana.40
O conceito da individualidade humana foi derivado da ideia de que,
através da introdução da mão de obra, surgiu a capacidade de adquirir
a propriedade da natureza. O conceito de humanidade, dominante na

38 JAEGER, Friedrich, RÜSEN, Jörn: Geschichte des Historismus. Eine Einführung, Munich, 1992.
39 RANKE, Leopold von: Über die Epochen der neueren Geschichte, ed. Th. Schieder and H. Berding
(Aus Werk und Nachlaβ, vol. 2), Munich, 1971, p. 80.
40 VAN DÜLMEN, Richard: Die Entdeckung des lndividuums 1500-1800, Frankfurt/Main, 1997.
forma de vida pós-corporativa da sociedade burguesa, tinha como base a
igualdade do homem em relação a todos os outros homens e à liberdade
para acumular propriedades. A associação entre o proprietário de imóveis
com outros donos de propriedades passou a formar sociedade burguesa.
Ao tornar-se parte dessa sociedade, a ele foi concedido o estatuto de um
cidadão que contava com a proteção de seus direitos humanos garantidos
pela Constituição e que, em companhia de todos os outros cidadãos,
passou a ser o próprio fundamento da soberania e da dominação política.41
Paralelamente a este individualismo social da sociedade burguesa
surgiram as teorias sobre a existência de um vínculo espiritual entre os
seres humanos, por exemplo, em G.W. Leibniz a partir da ideia de uma
harmonia pré-estabelecida, em G. F. Fichte, da derivação do indivíduo
com autoconsciência absoluta e, ainda, outro representante do idealismo
alemão, tal como em J. G. Herder e da noção de W. von Humboldt da
comunhão de todos os seres humanos através da sua participação
individual em determinadas ideias transcendentais.42 A experiência de

Humanismo clássico — um levantamento histórico


profunda crença religiosa era a expressão da relação pessoal do homem
com Deus no sentido de que seu individualismo enquanto um ser humano
estava garantido por uma autoridade além do aqui e agora. A natureza
culturalmente determinada da humanidade — definida em termos da
razão e da liberdade — já se manifestou numa plenitude ilimitada no espaço
e no tempo como, por exemplo, nas histórias universais dos historiadores
do Iluminismo alemão A. L. Schlozer, J.Ch. Gatterer43 ou na filosofia da
história de J. G. Herder.44 O desejo espiritual para a criação da cultura
concebida como atribuída à humanidade na sua totalidade se tornou

41 MACPHERSON, C.B.: Die politische Theorie des Besitzindividualismus. Von Hobbes bis Locke,
Frankfurt/Main, 1973. (MACPHERSON, C.B. A teoria política do individualismo possessivo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979).
42 LEIBNIZ, G.W.: Monadologie (French/German, transl. by Heinrich Kôhler), Frankfurt/Main, 1996
(LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. “A monadologia”. Os pensadores - história das grandes idéias do
mundo ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1974.); Fichte, J.G.: Die Bestimmung des Menschen, 5th 79
ed., Hamburg 1979; Fichte, J.G.: Die Anweisung zum seligen Leben, oder auch die Religionslehre, 4th
ed., Hamburg 1994; HERDER, J.G.: Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der Menschheit,
Frankfurt/Main 1967 (HERDER, Johaan Gottfried. Também uma filosofia da história para a formação
da humanidade. Uma contribuição a muitas contribuições do século. Lisboa: Antígona, 1994.);
HUMBOLDT, Wilhelm von: “Über die Aufgabe des Geschichtsschreibers”, in: Werke, ed. Andreas
Flitner and Klaus Giel, vol. 1: Schriften zur Anthropologie und Geschichte, Darmstadt, 1960, pp. 585 -
606 (Gesammelte Schriften [Akademie-Ausgabe] IV, pp. 35 - 56) (HUMBOLDT. W. “Sobre a Tarefa do
Historiador”. In: Anima. Ano 1, número 2, 2001, p. 88.).
43 SCHLÖZER, August Ludwig: Vorstellung seiner Universalhistorie, Göttingen/Gotha 1772. Newprint
Hagen, 1990; GATTERER, J.Ch.: Abrifl der Universalhistorie in ihrem ganzen Umfange. Bey dieser
zwoten Ausgabe völlig umgearbeitet und bis auf unsere Zeiten fortgesetzt, Göttingen, 1773.
44 Cf. nota de rodapé 43.
perceptível na multiplicidade das formas de vida e, ao mesmo tempo,
tornou-se um preceito para cada ser humano se governar individualmente
e dar forma à sua vida. A realização específica de tal individualização
da humanidade foi denominada “formação geral” (“Bildung”), e
tornou-se o conceito orientador da socialização humana, bem como da
individualização ao informar programas educacionais e práticas artísticas.
Na Alemanha, por exemplo, esse processo foi implementado através da
reforma da educação e dos sistemas universitários no final do século XIX,
os quais foram influenciados, principalmente, por Wilhelm von Humboldt
e Friedrich Schleiermacher, e se manifestaram no gênero literário do
“Bildungsroman” que encontrou o seu exemplar mais expressivo na obra
“Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister”, de Goethe (“Wilhelm
Meisters Lehrjahre”) (1795-1796). Este conceito educacional, que ainda
é válido contemporaneamente, pode ser considerado, tanto estrutural
quanto geneticamente, a projeção da categoria de historicismo em direção
ao processo de individualização.
Humanismo clássico — um levantamento histórico

Passos em direção ao Futuro


A historicidade mais a pluralidade da ideia da humanidade —
especialmente a pluralidade que deu origem à categoria de individualidade
— tiveram repercussões consideráveis para o uso dessa ideia no processo
de construção da identidade pessoal.
Em primeiro lugar e acima de tudo, o poder de individualização
aumentou enormemente devido ao processo de globalização causado
pela economia mundial e o avanço da tecnologia. A noção ocidental
de humanidade se espalhou por todo o mundo devido à colonização e
ao imperialismo, ameaçando assim a validade dos outros conceitos do
80 que é constitutivo da humanidade e de outras interpretações do mundo
conectadas com eles. Havia duas maneiras de combater essa ameaça em
se tratando de um desafio. Podia-se adotar o modo ocidental de pensar
combinado a sua convicção do homem como um ser capaz de dominar
o mundo. O Movimento 04 de maio na China e as ideias propostas por
Hu Shi podem servir como um exemplo disso.45 Alternativamente era
possível rejeitar radicalmente a cultura ocidental na forma proposta por
Ghandi com sua noção de Hindu Swaraj.46 As tendências intelectuais
atualmente mais difundidas e influentes dos Estudos Subalternos e do
Pós-colonialismo pertencem a essa segunda alternativa. Da mesma forma
como a crítica da dominação intelectual ocidental assim formulada, torna-
se compreensível, a oposição direta a ela não é muito convincente, pois é
considerada como a contrapartida exata do etnocentrismo ocidental ao
qual se opõe.
O realismo cultural pós-moderno e o relativismo são mais algumas
das tentativas de evitar a armadilha do etnocentrismo. Eles certamente
aguçaram nossa visão sobre a diversidade da cultura da vida humana
e, ao mesmo tempo, ofuscaram o universalismo oscilante sustentado
na comunicação intercultural. O etnocentrismo se torna um elemento
incontornável na formação de uma identidade cultural tão longa quanto a
dos seres humanos — seja como indivíduos, seja como formações sociais

Humanismo clássico — um levantamento histórico


(“comunidades”) — ao conceber-se como diferente dos outros por tratá-
los de acordo com essa autopercepção. Nesse processo, os valores positivos
são exclusivamente atribuídos ao conceito do “eu”; enquanto a alteridade
dos outros é determinada por uma aberração negativa dessa norma.
Mas isso não quer dizer que a maneira pela qual as definições
universalizantes da humanidade, empregadas no processo de formação da
identidade, são determinadas por essa lógica binária. Pelo contrário, essa
lógica é flexível, é “aberta”. Ela ainda oferece a oportunidade de humanizar,
se não de superar, o “choque de civilizações”. Essa chance repousa na
alteração do conceito universalizante do que é ou deve ser o homem, a
partir de uma perspectiva exclusiva no interior de uma inclusiva.
Através da inclusão da alteridade do outro, a qual é deslocada da esfera
de tudo o que está fora do “eu” para a área da nossa humanidade comum;
de uma “humanidade” diversa (numa síntese de elementos empíricos
e normativos). Através dessa virada, essa mudança fundamental de 81
perspectiva, a alteridade se torna a manifestação específica das qualidades
humanas do homem que transcendem todas as diferenças. Desse modo,

45 HU SHI: Autobiographie mit Vierzig (transl, from Chinese by Marianne Liebermann and Alfred
Hoffrnann), Dortrnund, 1998. See a1so GRIEDER, Jerome B.: Hu Shih and the Chinese Renaissance,
Cambridge, Mass., 1999; EGLAUER, Martina: Wissenschaft aIs Chance. Das Wissenschaftsverstiindnis
des chinesischen Philosophen Hu Shi (1891-1962) unter dem Einfluβ von John Deweys (1859-1952)
Pragmatismus, Stuttgart, 2001.
46 GANDHI, Mahatma: “Hindu Swaraj”, in: MUKHERJEE, Rudrangshu (Ed.): The Penguin Gandhi Reader,
New York, 1993, pp. 3-66.
ela adquire a singularidade que tem em comum com a singularidade do
eu, e tudo isso dentro de um quadro conceitual no qual a diferença cultural
enquanto elemento determinante da própria identidade não desaparece,
mas desempenha um papel importante. Neste sentido, a diferença em
relação ao outro se torna uma maneira de fazer-se a si mesmo ao ser
refletido pelo outro; e os outros representam para o eu o desafio de serem
reconhecidos.47 Uma compreensão abrangente da humanidade é, portanto,
capaz de mitigar a amargura do etnocentrismo transformando-o em uma
oportunidade de humanizar ambos os lados.48
Esta mudança fundamental é mais do que um postulado teórico
distante da realidade. Há algumas conquistas históricas em que esta
mudança já é prenunciada: primeiro de tudo, no enriquecimento da ideia
da humanidade através da dimensão estética. Dentro dessa esfera —
mas só nela — a dureza da diferenciação política e social é atenuada por
meio da resolução imaginária. As “Briefe über die ästhetische Erziehung
des Menschen”, de Schiller, equivalem a uma formulação clássica desta
Humanismo clássico — um levantamento histórico

humanização do homem através da influência da arte.49 Outra manifestação


do universalismo inclusivo é constituída pelas humanidades e seu método
hermenêutico, onde um rico arsenal de entendimento da alteridade e da
diferença foi desenvolvido. Os princípios de conciliação da universalização
e com a individualização, ali aplicados, fornecem um conjunto de chances
realistas para o reconhecimento da diferença cultural. Um bom exemplo
disso é o conceito de “múltiplas modernidades” de Shmuel Eisenstadt.50
Enquanto isso, as humanidades também conseguiram apontar elementos
da alteridade ocultos em seu próprio ser.51 Insights como estes tendem a
alternar as restrições que causam ao eu o projetar de todos os elementos
que são considerados inconciliáveis em relação à formação de sua

47 Emmanuel Levinas radicalizou esse argumento no sentido de conceber o eu nos termos do outro.
(LEVINAS, Emmanuel: Humanismus des anderen Menschen, Hamburg, 1989 [LEVINAS, Emmanuel.
Humanisrno do Outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993]).
82 48 Cf. RÜSEN, Jörn: “How to Overcome Ethnocentrism: Approaches to a Culture of Recognition by
History in the 21st Century”, in: Taiwan Journal of East Asian Studies 1.1 (June 2004): 59- 74; also in:
History and Theory 43 (2004) Theme Issue "Historians and Ethics": 118-129.
49 SCHILLER, Friedrich: “Über die ästhetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen
(1795)”, in: Sämtliche Werke in 5Bänden,ed. Peter-André Alt, Albert Meier and Wolfgang Riedel, vol. 5,
Munich, 2004, pp. 570-669 (SCHILLER, Friedrich. A educação estética da humanidade: numa série de
cartas. São Paulo: Iluminuras, 1995.).
50 EISENSTADT, Shmuel N.: "Multiple Modernities", in: Daedalus 129.1 (Winter 2000): pp. 1-30
(EISENSTADT, S.N.: “Múltiplas Modernidades”. Sociologia, Problemas e Práticas, n.35, Oeiras, p. 139-
163, abr. 2001.).
51 WALDENFELS, Bernhard: Vielstimmigkeit der Rede. Studien zur Phänomenologie des Fremden 4,
Frankfurt/Main, 1999.
própria subjetividade, naqueles traços que constituem a alteridade do
outro. Percebemos que estes traços não são nada mais que a sombra da
extraterritorialidade de nós mesmos. Finalmente, a forma de vida secular
da sociedade civil tem de ser mencionada. Em termos culturais, e com
base na ideia da dignidade humana abre-se a oportunidade de viver
com a diferença. O princípio da tolerância foi um primeiro passo nesse
sentido. Mais do que isso, o passo importante que vai da tolerância para o
reconhecimento é buscado em vários contextos.52
No entanto, a ideia de uma humanidade fundada no princípio da
dignidade humana está ameaçada. Considerada a força avassaladora da
economia de mercado e da lógica instrumental da tecnologia, a noção
da autonomia moral e autodeterminação da humanidade parece ser
apenas uma ilusão. Movimentos políticos poderosos, como o fascismo
ou o comunismo foram inspirados pela ideia de superar o status quo do
homem em favor de um “novo homem” ou “além-do-homem”, os quais
eram considerados capazes de abandonar todas as imperfeições da vida

Humanismo clássico — um levantamento histórico


humana, tais como existiam em sua forma contemporânea implícita,
em troca de um admirável mundo novo.53 A atratividade dessa ideia foi
reforçada pelas enormes oportunidades que existiam de manipular não
só a cultura humana, mas também — devido aos avanços na biologia,
na inteligência artificial e na pesquisa sobre o cérebro — até mesmo a
própria natureza humana. Até agora, todas essas tentativas fracassaram
catastroficamente. O mesmo se aplica aos atuais movimentos intelectuais
do transumanismo, que ocupa todos os sonhos de felicidade e salvação por
meio da promessa de realizá-los através de uma alteração no equipamento
biológico do homem e do reforço da sua capacidade intelectual por meio
da inteligência artificial de computadores nele acopladas.
O que é o homem? Esta questão não perdeu nada de sua tropicalidade,
abertura e tentativas controversas em respondê-la. Ao serem vistos, os
últimos esforços intelectuais em dar uma resposta ao desafio lançado pela
globalização em direção a uma orientação cultural sustentável à luz do 83
desenvolvimento do impulso concomitante com a teoria universal das
eras axiais, existem uma série de indícios de que o humanismo moderno
é um sintoma de que nós estamos bem no meio de uma segunda era

52 No entanto, as formas de vida sociedade civil secular são pluralisticamente entendidas apenas como
algumas entre outras, por isso, a chance de fazer da alteridade um espaço habitável é perdida.
A sociedade civil é, em primeiro lugar, uma meta-chave que permite o pluralismo da orientação
cultural.
53 Cf. KÜENZLEN, Gottfried: Der neue Mensch, Frankfurt/Main, 1997.
axial. O que está em jogo aqui são as visões (no sentido de uma melhoria
qualitativa) de todas as realizações dos conceitos universalistas da
humanidade que foram desenvolvidas na primeira era axial. Tal revisão
exige uma “Renaissance”, uma recepção produtiva e um desenvolvimento
do conceito de humanidade que, do humanismo moderno e até hoje,
determina uma variedade de tradições culturais, as quais, numa
comunicação intercultural decididamente ainda estão competindo umas
com as outras em busca de uma compreensão não subsumida à cultura
unitária da modernidade.54
De qualquer forma, a ideia de que a humanidade pode ser desenvolvida
para além dela mesma, é um fator tão elementar quanto universal da vida
humana, o que trouxe em jogo um novo pensamento humano, uma vez
que até agora tinha sido totalmente sub exposto, se não mesmo antes
desconsiderado: o sofrimento humano. Em vista dos vários crimes contra
a humanidade que, como sempre, são experiências deprimentes dos
nossos tempos e que as ciências humanas e sociais ainda estão lutando
Humanismo clássico — um levantamento histórico

para compreender, o sofrimento humano deve ser muito mais focado,


predominantemente em termos da questão de onde as oportunidades, mas,
também, os limites de nossa humanização podem ser observados. Sem
levar sistematicamente em consideração as propriedades antropológicas
fundamentais e universais do homem, sua fragilidade fundamental e sua
inevitável falibilidade e vulnerabilidade, qualquer reflexão realista sobre a
humanidade se tornaria impossível.

84

54 Cf. RÜSEN, Jörn/LAASS, Henner (Eds.): Humanism in Intercultural Perspektive. Experiences and
Expectations, Bielefeld 2009; RÜSEN, Jörn/LAASS, Henner (Eds.): Interkultureller Humanismus.
Menschlichkeit in der Vielfalt der Kulturen, Schwalbach/Taunus, 2009.
Historicizando a
humanidade – algumas
considerações teóricas
na contextualização e
compreensão sobre a ideia
de humanidade1

Humanismo clássico — um levantamento histórico


Contextualização e compreensão não são questões novas nas
humanidades. Pelo contrário: elas pertencem aos pressupostos básicos das
formas específicas, recentes e modernas de lidar com o mundo humano
em discursos acadêmicos. Elas se originaram na mudança fundamental
na geração de sentido histórico exemplar para o modo genético2, na
virada do século XIX3. Elas tornaram-se essenciais para as disciplinas
acadêmicas das ciências humanas com a sua abordagem racional para o
mundo humano. Tais disciplinas foram estabelecidas na Europa durante
o século XIX e, desde então, se espalharam por todo o mundo. (Na minha
argumentação a seguir irei me referir principalmente à disciplina de
história como um paradigma para as humanidades.)
Esta mudança pode facilmente ser compreendida ao referirem-se

1 Publicado em Taiwan Journal of East Asian Studies. Vol.7, N.1 (Issue 13) June 2010, p.21-39. Traduzido 85
por Lucas Pydd Nechi.
2 Nota do Autor: A palavra “genética” pode ser mal compreendida. Seu significado aqui não tem
relação com os genes do corpo humano, mas se refere à palavra grega ‘genesis’, que significa
‘produção’, ‘geração’, ‘vir a ser’. Eu compreendo por ‘genética’ um modo temporal do mundo humano
enfatizando a mudança.
3 Nota do Autor: O texto clássico descrevendo esta mudança está em Reinhart Koselleck, Historia
magistra vitae. Über die Auflösung des Topos im Horizont neuzeitlich bewegter Geschichte, in idem:
Vergangene Zukunft. Zur Semantik geschichtlicher Zeiten (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1979),
pp. 38-66. English version in: Reinhart Koselleck, Futures Past: On the Semantics of Historical Time
(Cambridge, Mass.: MIT Press, 1985). Eu analisei estes dois tipos de quadros de tipologia geral de
produção de sentido histórico em Jörn Rüsen, History: Narration, Interpretation, Orientation (New
York: Berghahn Books, 2005), pp. 9-39.
à forma pré-concebida dominante de se fazer história em tempos pré-
modernos. Então, era a maneira exemplar de dar sentido ao passado que
moldou o pensamento histórico na maioria, se não todas, as culturas por
um longo tempo. Foi exatamente essa lógica do pensamento histórico
contra o qual o especificamente moderno, a lógica de geração de sentido
genético, se opôs.
O pensamento exemplar estava interessado em derivar regras gerais
de conduta humana, a partir de casos concretos de eventos históricos.
A experiência histórica fornecia um grande estoque de personagens e
eventos para o discernimento moral e político. Cicero expressa essa lógica
do pensamento histórico com o famoso slogan “historia magistra vitae”.
Estas regras foram encaradas como sendo trans-temporalmente
válidas, para além do contexto específico de tempo e espaço em que a
vida humana ocorre. No âmbito desta lógica da história, a compreensão
do passado como repleto de sentido para o presente significava que ambas
as dimensões temporais incorporavam-se como um dado natural de
Humanismo clássico — um levantamento histórico

regras válidas trans-temporalmente. A compreensão seguiu a lógica de


julgamento (Urteilskraft): regras gerais foram geradas a partir de casos
concretos do passado e aplicadas a casos semelhantes, porém diferentes,
no presente. Assim, a história habilitaria a pessoa historicamente educada
para lidar com os acontecimentos do presente de acordo com a rica
experiência do passado. Esta compreensão histórica é guiada pela lógica
da regra de competência.
A compreensão do que aconteceu no passado referia-se apenas a
um contexto único, a unidade da humanidade, ou melhor, a natureza
da humanidade. Compreensão significava encontrar as regras gerais de
conduta humana em cada evento histórico.
O pensamento histórico moderno começou com uma crítica
fundamental deste modo exemplar de dar sentido ao passado. Um slogan
famoso de Ranke no qual ele só queria demonstrar "como as coisas realmente
86 eram" (wie es eigenlich gewesen) foi explicitamente dirigido contra esta
lógica de geração de regras gerais a partir de eventos específicos.4 Em vez
disso, ele afirmou que temos de olhar para os acontecimentos do passado

4 Nota do autor: À história tem sido atribuída a tarefa de julgar o passado, para ensinar ao mundo
contemporâneo em benefício do futuro. Nosso esforço presente não reivindica uma tarefa tão
prestigiosa: Ele só tem como objetivo mostrar, como as coisas eram realmente [o que eram as
coisas realmente; como as coisas realmente aconteceram; como ele realmente foi]. In Leopold von
Ranke, Geschichten der romanischen und germanischen Völkervon 1494-1514, Sämtliche Werke,
Bd. 33 (Leipzig, 1855), p. VIII. Also in Leopold von Ranke, The Theory and Practice of History, ed. with
an Introduction by Georg G. Iggers and Konrad von Moltke (Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1973), p. 137.
através de um quadro de interpretação no qual a auto-compreensão
das pessoas do passado tenha sido sistematicamente integrada. Este é o
significado de outro slogan famoso de Ranke, "Cada época é imediata a
Deus."5 Isto significa que cada época tem o seu significado histórico em si.
Ele não é de forma alguma conquistado por sua assumida relação direta
com os padrões atuais de significância (o conceito mais relevante dessa
relação direta é o conceito de progresso); pelo contrário, o seu significado
é definido pela sua diferença em relação ao presente. Assim, o passado e
o presente obtem uma nova relação temporal caracterizada pela diferença
e não mais pela semelhança trans-temporal da vida humana em relação a
alguns supostos princípios básicos da vida prática, válidos apesar de todos
os contextos diferentes.
Esta mudança na formação das categorias temporais de pensamento
histórico pode ser caracterizada pelos termos de temporalização ou
historicização. De acordo com esta nova lógica da história, a compreensão
adquiriu um novo significado: ela concretiza esta temporalidade ou

Humanismo clássico — um levantamento histórico


historicidade da vida humana nos processos mentais de representação do
passado como repleto de significado para o presente (e de sua perspectiva
de futuro). A compreensão inclui a consciência dos diferentes padrões
de sentido e significado, dando assim ao evento ou ao texto em questão a
"dignidade da diferença"6.
A categoria básica deste tratamento hermenêutico do mundo humano
é a categoria de individualização. Fenômenos contextualizados do mundo
humano só podem ser compreendidos se a sua individualidade, de fato, a
sua singularidade em relação a outros fenômenos da mesma natureza, é
sistematicamente levada em consideração.
Se contextualização e compreensão são princípios já constitutivos
do trabalho profissional nas disciplinas estabelecidas das ciências
humanas, podemos perguntar: por que é necessário levantar esta questão
novamente? Há duas respostas para esta pergunta: uma simples e uma
provocante. A simples refere-se à tradição da meta-história dentro da 87
disciplina estabelecida, a reflexão puramente acadêmica sobre conceitos e
métodos. A provocadora coloca o discurso acadêmico em seu contexto de
orientação cultural na vida social e política.
A resposta simples refere-se ao fato de que as concepções e métodos das

5 Em inglês: Leopold von Ranke, The Theory and Practice of History (Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1973),
fn. 2, p. 53.
6 (n.r. Jonathan Sacks, The Dignity of Difference: How to Avoid the Clash of Civilizations (London:
Continuum, 2003).
ciências humanas nunca foram estabelecidos definitivamente. Eles foram
concebidos no início do pensamento moderno sobre o mundo humano,
e tornaram-se eficazes no desenvolvimento do pensamento histórico
como modos flexíveis e dinâmicos – correspondendo a temporalização e
historicização do assunto em questão, a própria história.
Contextualização e compreensão, ou historicidade e hermenêutica,
tendem a mudar no processo de discursos disciplinares. Esta mudança
pode até ser explicitamente trazida por uma reflexão dentro desses
discursos. (Esta entrada reflexiva nos conceitos e métodos básicos do
pensamento histórico especialmente acontecem em tempos chamados
de "crises de princípios fundamentais" (Grundlagenkrise.) - como o
Lamprecht-Streit na Alemanha. Mas, também podem ocorrer como uma
tendência em instituições bem estabelecidas de pesquisa, interpretação
e representação.) Exemplos bem conhecidos desta mudança ocorrida na
longa discussão sobre generalização e individualização, sobre explanações
e compreensões, e hoje em dia sobre a racionalidade e poética nas
Humanismo clássico — um levantamento histórico

humanidades (principalmente em estudos históricos). Portanto, é útil


continuar esta reflexão de tempos em tempos a fim de provar, para
confirmar, e (re) estabelecer a solidez conceitual e metodológica e a
estabilidade das ciências humanas (a respeito da sua correspondência
com experiências tópicas de mudança temporal e quanto às necessidades
de orientação histórica em face a essas experiências).
Há duas questões nesta mais ou menos permanente auto-reflexão em
estudos históricos que demandam atenção: A primeira é indicada pela
questão de como aplicar o conceito de contextualização para a cognição
em si provocada pelas humanidades e seu trabalho de pesquisa. Será que tal
aplicação não destrói qualquer reivindicação por validade intersubjetiva?
O outro problema é abordado com a pergunta: como pode a historicidade
pode ser entendida, ou qual modo de compreensão é adequado para
a historicidade do mundo humano? Por que isso é considerado um
88 problema tão fundamental da hermenêutica? A hermenêutica moderna
segue a regra de entender diferentes formas de vida, utilizando a sua auto-
compreensão, seu próprio potencial semântico. Mas, como entender as
mudanças históricas das formas de vida? Elas acontecem com pessoas além
e até mesmo contra o que eles desejavam que acontecesse. Só depois, ao
olhar para trás para a mudança, seu significado pode ser apreendido (não
ignorando o entendimento das pessoas que tiveram de viver ou passar por
ela, é claro). A fim de realizá-lo, uma referência à posterior, o potencial
semântico desenvolvido é inevitável. Esta referência vai de uma época a
outra, até que finalmente traz o horizonte semântico da forma de vida dos
próprios estudiosos para o jogo da compreensão. Como pode esta relação
básica "intertemporal" de entendimento, que faz a ponte entre o passado
e o presente, ser mediada com a diferença temporal constitutiva, que a
hermenêutica moderna tem sistematicamente levado em consideração?
Se alguém toma esses problemas que se deslocam a sério, ou seja,
se os relacionam com questões básicas de orientação cultural hoje, a
pergunta por que contextualização e compreensão devem ser tematizadas
novamente irá assumir um caráter mais provocante. A contextualização
e a compreensão devem ser refletidas em uma nova forma radical e
crítica em face ao desafio da globalização dentro e fora das humanidades.
Globalização dentro das humanidades refere-se ao desafio de seu esforço
hermenêutico e a alegação de que os seus resultados têm validade
universal (e isso significa: transcultural). Como tal afirmação é possível?
Se cada manifestação cultural no passado só pode ser entendida se for
contextualizada, - o que acontece com o trabalho interpretativo das

Humanismo clássico — um levantamento histórico


humanidades? É possível compreendê-lo para além do seu contexto
cultural específico? A variedade e diferença de contextos não contradizem
qualquer validade universal? Por outro lado, podemos pensar sobre
o trabalho cognitivo das humanidades provocado por suas pesquisas
metodicamente regrados sem tal pedido de validade inter-subjetiva?
Esta questão epistemológica e metodológica adquire sua forma nítida
e radical se for levada para fora da vida acadêmica e colocada no contexto
cultural das ciências humanas e for confrontada com os problemas de
comunicação intercultural de hoje. Aqui ela reflete e repete o desafio
da globalização fora das humanidades. Este desafio surge a partir de
uma experiência cultural muito específica: A dominação ocidental no
processo mundial de modernização. Este processo inclui a expansão das
humanidades modernas em todo o mundo e seu estabelecimento na vida
acadêmica em todas as civilizações não-ocidentais.7 Eles podem ignorar
as mudanças e diferenças em seus contextos culturais? A validade de suas 89
consequências cognitivas é independente de contexto, ou seja, realmente
global e universal, apesar dos poderes mentais de diferentes tradições
culturais dos países onde eles sustentam a sua vida acadêmica?
A ideia de objetividade, que subjaz a esta reivindicação de validade
universal, tem sido bastante poderosa na auto-consciência dos estudos

7 Nota do Autor: Essa expansão é descrita no caso da história por Georg G. Iggers e Q. Edward Wang,
A Global History of Modern Historiography (Harlow: Pearson Education, 2008).
históricos. No entanto, desde o início das humanidades modernas e
em diante ela foi epistemologicamente inválida. A dependência da
interpretação hermenêutica sobre o contexto cultural ou mediante o
então chamado "ponto de vista" dos profissionais no contexto cultural
de suas sociedades foi notado e refletido já no final do século 18. Ela
tornou-se um elemento importante na lógica da auto compreensão e
autorreflexão das novas disciplinas acadêmicas das ciências humanas.
Isso aconteceu exatamente ao mesmo tempo e na inter-relação sistemática
com o surgimento e o desenvolvimento da nova racionalidade metódica,
que definiu as humanidades como disciplinas acadêmicas. Em plena
consciência dessa racionalidade, eles se chamavam no mundo não falante
de inglês (Alemanha, França, Itália, etc.) de "ciências". Seu caráter erudito
ou acadêmico foi definido pelo profissionalismo dos estudiosos. E, este
profissionalismo foi manifestado na capacidade dos estudiosos de trazer o
progresso do conhecimento pela pesquisa.
Foi esse profissionalismo e a eficiência dos novos métodos de pesquisa
Humanismo clássico — um levantamento histórico

que fizeram a forma moderna de pensar nas humanidades irresistíveis e


viáveis para que pudessem ser transferidas para a vida acadêmica em todo
o mundo.
A situação atual das ciências humanas no processo de globalização
é, como já disse antes, caracterizada por um desafio radical desse
universalismo8. Cada vez mais, ela tem sido criticada como uma pura
ideologia de dominação cultural ocidental e como uma supressão de
diferentes formas de pensamento e cognição sobre o mundo humano e
sua história9. Isto é evidente na chamada virada pós-colonial nas ciências
humanas e sociais. Movimentos semelhantes são o discurso subalterno e
muitas manifestações do pós-modernismo.
A dureza e forma radical deste crítica se sustentam no fato simples,
mas muito poderoso de que todas as abordagens cognitivas para o mundo
humano também funcionam como elementos e fatores na prática da
90
8 Nota do Autor: A este desafio foi dada uma forma histórica por Peter Novick, em That Noble Dream:
The "Objectivity-Question" and the American Historical Profession (New York, Cambridge: Cambridge
University Press, 1988).
9 (Um bom exemplo é Finn Fuglestad, The Ambiguities of History: The Problem of Ethnocentrism
in Historical Writing (Oslo: Academic Press, 2005); ver Jörn Rüsen, "The Horror of Ethnocentrism:
Westernization, Cultural Difference, and Strife in Understanding non-Western pasts in Historical
Studies," in History and Theory, 47 (May, 2008), pp. 261-269. Vinay Lal foi tão longe a ponto de
declarar a abordagem ocidental para o pensamento histórico sobre a Índia como um "genocídio
cultural", já que a Índia nunca teve uma tradição de pensamento histórico como a Ocidental. Veja
Vinay Lal, "Provincializing the West: World History in the Perspective of Indian History," in Benedikt
Stuchtey and Eckhardt Fuchs (eds.), Writing World History 1800-2000 (Oxford: University Press,
2003), pp. 271-289, quotation p. 288 sq.)
orientação cultural. O trabalho das ciências humanas é parte do processo
cultural pelo qual a questão da identidade cultural é tratada; ela funciona
direta ou indiretamente proporcionando as pessoas uma identidade
habitável. Por identidade, eu entendo o fato cultural básico de que cada
pessoa e cada unidade social precisa de uma ideia de quem são e do que
os outros são, de quem eles se diferenciam em variadas esferas da vida
humana. Quer se goste ou não, quer ela se realize de forma deliberada ou
inconscientemente, as humanidades são sempre uma parte da política de
identidade.
A questão da identidade pertence ao contexto, que concerne
aos discursos sobre e dentro das reflexões sobre a contextualização e
compreensão. Ela motiva o trabalho das humanidades de enfatizar a
diferença, já que a identidade é basicamente uma questão de distinção, de
diferença, e de discriminação.
Há duas possibilidades de perceber e levar a cabo esta imersão das
ciências humanas nos processos culturais de formação da identidade e da

Humanismo clássico — um levantamento histórico


sua política relacionada. As humanidades podem ser utilizadas como um
meio para os fins de formação da identidade. Elas podem ajudar a provocar
uma auto-imagem positiva ao custo da imagem dos outros. Ao fazer
isso, eles seguem a lógica do etnocentrismo10. Ou, as ciências humanas
podem ser usadas como uma estratégia cognitiva da inter-subjetividade.
Essa estratégia faz a mediação entre o eu (self) e o outro e transfere
diferença em uma forma de vida comum onde não se desaparece, mas se
torna habitável de uma forma humana. Assim, no jogo da formação da
identidade cultural, as humanidades podem ser uma arma ou uma ponte.
Neste artigo eu gostaria de mostrar que a única maneira das
humanidades poderem realizar seu trabalho é através de uma plena
consciência de sua dependência de contexto. Ao mesmo tempo, elas
devem permanecer comprometidas com o princípio da intersubjetividade.
Na ausência deste princípio, eles não podem transpor a diferença cultural
pela compreensão. É claro, o entendimento também pode ser uma arma 91
muito poderosa em uma luta, ou embate, entre as diferentes formas de
vida e civilizações. Nesta função, o entendimento é usado dentro de uma

10 Nota do Autor: Só para dar um exemplo: "A filosofia indiana começou por volta de 2000 a.C. e durou
até os dias de hoje, enquanto os escritos sobre filosofia grega começam geralmente com Thales
do século VII a.C. e termina com os alexandrinos do terceiro século d.C. ... Enquanto o pensamento
indiano tem tido uma continuidade de cerca de 4.000 anos ... o pensamento grego teve uma
continuidade de apenas cerca de mil anos." Veja P.T. Raju, " The Concept of Man in Indian Thought
", em S. Radhakrishnan e P.T. Raju (eds.), The Concept of Man: A Study in Comparative Philosophy
(London: George Allen & Unwin, 1960), pp. 206-305, esp. p. 206.)
estratégia de conflitos e jogos de poder. Mas, gostaria de enfatizar a outra
forma de compreensão: ela não segue a lógica de uma estratégia de auto-
preservação ou mesmo auto-aprimoramento, com a consequência de
subjugação e dominação na relação com os outros, e isso não é inspirada
por as forças mentais de etnocentrismo. Em vez disso, a compreensão
pode seguir a lógica de comunicação com o objetivo de dar e receber o
reconhecimento. Aqui a peculiaridade se não singularidade da forma da
própria vida e da diferença dos outros é uma preocupação primordial11.
Esta alternativa não é uma questão de livre escolha ou de inclinação
moral arbitrária; ao contrário, é uma questão de argumentação racional.
Em tais casos, a compreensão não é possível sem que haja pelo menos alguns
elementos de reconhecimento de diferenças. Ela não pode ser provocada
sem uma mudança de perspectiva, de modo que a própria forma de vida
de alguém não é percebida como unilateral, mas em uma forma relacional
pela consciência da alteridade. Além disso, ninguém pode ignorar o
simples fato de que o grau e o nível de compreensão aumentam com o grau
Humanismo clássico — um levantamento histórico

e nível de empatia e reconhecimento. A fim de responder ao desafio da


crítica anti-ocidental e da demanda de reconhecer a diferença dos tópicos
de comunicação intercultural, o trabalho e os procedimentos das ciências
humanas tem que confirmar a diferença de uma forma mais alargada e
mais profunda. Ao mesmo tempo, uma forma prolongada e intensa de
tratar a ideia de conceitos e métodos transculturais tem de ser invocada
como um meio necessário para a cognição. Estes conceitos permitem que
as ciências humanas evitem o perigo de pensar de modo etnocêntrico e
para mediar as diferenças para que reivindicações de verdade universais
permaneçam sólidos princípios de comunicação intercultural.
Como é possível uma dimensão transcultural da cognição? Será
que ela não contradiz a visão hermenêutica sobre a dependência do
contexto da compreensão de significado e significância na orientação
cultural da vida prática humana? Cada passo em direção à cognição
92 hermenêutica transculturalmente válida não retrocede para as conquistas
da temporalização e historicização das humanidades modernas?
De fato, trazer a validade transcultural nas humanidades com
o custo da contextualização não é totalmente convincente. Somente
através de um fortalecimento metódico da contextualização é que a
ideia de validade intercultural poderá ser plausível à primeira vista.

11 Nota do Autor: Conferir Jörn Rüsen, "How to Overcome Ethnocentrism: Approaches to a Culture of
Recognition by History in the 21st Century," in Taiwan Journal of East Asian Studies, 1, 1 (June, 2004),
pp. 59-74; also in History and Theory, 43 (2004), Theme Issue "Historians and Ethics", pp. 118-129)
Por fortalecimento, eu entendo as vantagens metódicas de uma
contextualização sistematicamente reflexiva. Meu argumento é bastante
simples. Ao refletir contextos, as mentes humanas podem romper suas
fronteiras. Qual é a dimensão semântica deste rompimento? Uma vez que
a capacidade de refletir sua orientação cultural (ou, como Richard Rorty,
uma vez colocou, "para falar sobre a linguagem") constitui a peculiaridade,
se não a singularidade do ser humano, esta dimensão é a humanidade.
Com este argumento, eu utilizo a ideia pré-moderna de
compreensão, referindo-se a mesma natureza cultural do homem. Mas,
é uma natureza cultural completamente historizada e individualizada.
A ideia dessa natureza cultural temporalizada da humanidade tem sido
sistematicamente levada em conta como conceitual, ou melhor, como a
pré-condição categórica para intersubjetividade no trabalho hermenêutico
das humanidades.
Esta é uma tarefa filosófica inserida nas humanidades e em nome de
seu status acadêmico. Em vez de desistirmos de uma mudança topológica

Humanismo clássico — um levantamento histórico


recente de visões de mundo modernas e sua lógica constitutiva de
universalismo, devemos continuar a desenvolver a nossa compreensão do
que significa ser um ser humano.
Eu gostaria de dar um exemplo de tal elaboração a partir do projeto,
"Humanismo na Era da Globalização - Um Diálogo Intercultural sobre
a Humanidade, Cultura e Valores12.” Neste projeto, perseguimos o
problema: Como é possível congregar diferentes tradições humanistas
em um conceito abrangente, sem ignorar as diferenças e sua importância
para a formação da identidade cultural?13 Cada humanismo refere-se a
uma ideia do que significa ser um ser humano, cada um possui uma ideia
de humanidade. Para desenvolver essa ideia, nós temos que pegar um
conceito de humanidade que já é reconhecido no contexto cultural dado
do próprio trabalho de cada um. Temos que refletir sobre tal conceito mais
ou menos criticamente e desenvolvê-lo e aprofundá-lo. Em meu próprio
trabalho de humanismo, eu comecei com essa ideia e conceito referindo- 93
se à declaração de Immanuel Kant que todo ser humano é sempre mais do
que apenas um meio para os fins dos outros, mas um fim em si próprio.
Kant chama essa qualidade de cada ser humano para ser um fim em si

12 Nota do Autor: Conferir http://www.kwi-humanismus.de


13 Nota do Autor: Os primeiros passos para afinar esta questão e preparar respostas foram
apresentadas em Jörn Rüsen and Henner Laass (eds.), Humanism in Intercultural Perspective —
Experiences and Expectations (Being Human: Caught in the Web of Cultures-Humanism in the Age of
Globalization, vol. 1) (Bielfeld: Transcript, 2009).
próprio de dignidade.
Seria um erro tomar esta afirmação como uma base fixa para a
comunicação intercultural, embora eu não vejo argumentos convincentes
para negá-la. No contexto de um discurso intercultural acadêmico, essa
ideia fundamental da dignidade humana tem de ser deslocada para um
movimento argumentativo. Ela tem que ser contextualizada e usada como
um princípio de compreensão. Com esse princípio, diferentes tradições e
formas de vida recebem a dignidade de ser compreendidos no horizonte
de sua própria visão do mundo como um resultado de sua história.
Podemos chamar isto de a dignidade da autonomia cultural.
Há um perigo em atribuir essa autonomia a todas as várias culturas
ou civilizações no tempo e no espaço. Gostaria de chamar esse perigo de
"Spenglerization”. Isso significa que cada cultura é encarada como sendo
basicamente independente de todos os outros e só segue seus potenciais
internos específicos de dar sentido ao mundo. Nessa perspectiva, a
comunicação intercultural interpretativa aparece apenas como uma inter-
Humanismo clássico — um levantamento histórico

relação externa e ignora elementos de várias culturas, bem como a dinâmica


da mudança histórica provocada pela troca de ideias e bens materiais.
Além disso, a questão epistemológica não poderia ser respondida: como
é possível entender as culturas que seguem padrões diferentes de visão de
mundo e não a semântica que determina a abordagem da compreensão?
A compreensão é impossível sem elementos interculturais ou mesmo
universais, que combinam ambos os lados, o lado da compreensão e do
lado quem está sendo compreendido. Mais do que isso, em cada ato de
compreensão, o contexto daqueles que a perseguem não será deixado para
trás, mas irá se fundir com ele. Aqui temos de ter cuidado com o perigo
à espreita de alienar os outros quando subjugá-los no âmbito de uma
maneira própria de pensar. Este é o perigo de fundamentalmente ignorar
a diferença que provoca a sutileza dos procedimentos hermenêuticos.
Assim, a alteridade dos outros, pela qual eles pensam como a essência de
94 sua identidade, pode ser perdida.
Este perigo pode ser evitado por uma abertura básica aos outros no
método hermenêutico, que é acionado por um orientador de interesse
pela diferença. Essa abertura exige uma ideia da humanidade que saliente
a diferença e a mudança sob o pressuposto de universais antropológicos,
como a ideia de dignidade. Tais universais existem, é claro.14 Eles

14 Nota do autor. Conferir: Christoph Antweiler, Menschliche Universalien. Kultur, Kulturen und die
Einheit der Menschheit (Darmstadt: Wiss. Buchgesellschaft, 2007)
pertencem essencialmente à estrutura interpretativa de conceituar
a diferença no pensamento hermenêutico. A fim de avançar a partir
de universais antropológicos para peculiaridades culturais, devem-se
construir tipos ideais. Eles revelam em que condições os universais obtém
suas manifestações peculiares. Aqui o processo de contextualização obtém
rigor metódico no trabalho cognitivo das ciências humanas.
Cada cultura tem uma ideia do que significa ser um ser humano. Esta
ideia se manifesta em uma grande variedade de ideias da humanidade.
Hoje, é a tarefa das ciências humanas para entender tais variações,
trazendo-as em perspectiva intercultural. Este processo, no entanto, é
contestado pelos problemas atuais de comunicação intercultural. O que
precisamos é de uma teoria da humanidade que fundamentalmente
historicize o significado de ser humano e, ao fazê-lo, torne a variedade
deste significado compreensível.
Eu comecei a desenvolver uma teoria, mas seria necessário outro artigo
para apresenta-la apropriadamente. Talvez eu possa tentar esboça-la em

Humanismo clássico — um levantamento histórico


poucas palavras. Gostaria de chamar esta teoria da humanidade de uma
nova filosofia da história, que se apropria e desenvolve a clássica dos finais
do século XVIII e início do século XIX15. Esta filosofia categoricamente
lança a história em geral como a humanidade temporalizada. Seguindo
esta ideia, os historiadores têm de assistir a essas experiências em que a
própria humanidade articula a si mesmo, onde pronuncia o que significa
ser humano. O marco de referência universal, assim, iria encontrar sua
afirmação empírica.
Articulando a humanidade – o que pode servir como fio condutor
de dar-se sentido ao passado. Como vincular todas as diferentes
manifestações culturais da humanidade juntas em uma história, que se
afirmaria para a humanidade como uma totalidade? A fim de trazer essa
conquista do pensamento histórico, tal fio condutor da história precisa
de uma ideia abrangente de mudança temporal. Esta tendência básica ou
direção do tempo deve expressar a totalidade da humanidade que está em 95
pauta. Portanto, ela pode ser conceitualizada apenas como uma tendência
ou processo de universalização. Essa universalização - transgredindo
todos os limites da convivência humana e, principalmente, atribuindo à
qualidade de ser humano para todos os membros da raça humana - tem
ocorrido em diferentes lugares do mundo e em diferentes épocas. Karl

15 Nota do Autor: Um exemplo típico é Kant em “Ideia para História Universal com Propósito
Cosmopolita” de1784. Conferir “Kant’s Political Writing”, H. Reiss (ed.) (Cambridge: Cambridge
University Press, 1991), pp. 41-53.
Jaspers nos introduziu tal conceito de história com a sua ideia de Tempo
Axial16.
Dentro desta perspectiva histórica universal, a humanidade aparece
como uma variedade de universalismos articulando a natureza cultural
dos seres humanos de diferentes formas. A diferença ou, para utilizar
um conceito tradicional, a individualidade tornou-se uma característica
essencial da humanidade. Durante muito tempo, e mesmo hoje em dia
(no poder da tradição), estes universalismos foram excluindo-se uns
aos outros. Essas exclusões são eficazes como limites da compreensão.
Mas, esses limites podem ser transgredidos apenas para o nível em que
os universais da humanidade já não se excluem mutuamente, isto é,
somente mudando a lógica da exclusão para uma lógica da inclusão. Esta
mudança vai abrir novas possibilidades de compreensão. Ao usá-las, as
humanidades podem responder com êxito os desafios da comunicação
intercultural na era da globalização.
Humanismo clássico — um levantamento histórico

96

16 Nota do autor: Karl Jaspers, Vom Ursprung und Ziel der Geschichte (inicialmente em Zürich, 1949;
rpt. München: Piper, 1963) . Em inglês: The Origin and Goal of History.
Bibliografia
ANTWEILER, Christopher. Menschliche Universalien. Kultur, Kulturen und die
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JASPERS, Karl. Vom Ursprung und Ziel der Geschichte (first Zürich, 1949; rpt.
München: Piper, 1963); English: The Origin and Goal of History .Westport,
Conn.: Greenwood Press, 1976.
KANT, Immanuel. "Idea for a Universal History with a Cosmopolitan Purpose"

Humanismo clássico — um levantamento histórico


(1784), in Kant's Political Writing, H. Reiss (ed.) Cambridge: Cambridge University
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Zur Semantik geschichtlicher Zeiten.. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1979, pp.
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SACKS, Jonathan. The Dignity of Difference: How to Avoid the Clash of
Civilizations. London: Continuum, 2003.
Humanismo clássico — um levantamento histórico

98
O enraizamento da ordem
política nos valores dos
cidadãos
Algumas ideias sobre o humanismo político
e a religião como uma base necessária para

O enraizamento da ordem política nos valores dos cidadãos.


uma democracia sustentável1
Este trabalho2 não aborda a dicotomia elite-massa nas democracias
modernas, também não contribui para uma comparação internacional
e intercultural das democracias. Em vez disso, em uma virada mais
fundamental para a cultura política da democracia, ele se refere à
conceituação da abordagem de valores e atitudes mentais e sua importância
para a democracia. (Ao tematizar este nível fundamental de constituir a
democracia pela cultura, os argumentos apresentados podem ser úteis
para qualquer reflexão e para parâmetros de comparação). Como tal, a
minha argumentação é elitista por seu caráter acadêmico e intelectual.
Com isto, tem como objeto uma comparação das democracias; combina,
por assim dizer, a investigação das elites com as elites investigadas. O
quadro de interpretação dos elementos culturais essenciais da democracia
é composto de dois elementos, nomeadamente, teoria política e filosofia
da história. Ambos são sintetizados por seu respeito especial e comum a
um elemento básico da cultura humana: o da identidade coletiva.
A democracia assenta em dois pilares: as instituições e a mentalidade 99
das pessoas. Se as instituições não são aceitas e reconhecidas pelo povo

1 Eu gostaria de agradecer a Ursula van Beck pelas inúmeras questões críticas e argumentos que
produziram melhorias substanciais em minhas próprias argumentações. Continuo responsável, é
claro, pelo que permaneceu ainda não convincente e problemático.
2 Traduzido do inglês Rooting political order in the values of the citizens. Some ideas on political
humanism and religion as a necessary base for a sustainable democracy, por Maria Auxiliadora
Schmidt (Texto cedido pelo autor).
é fácil alterá-las para formas menores ou não-democráticas.3 Portanto, a
mentalidade das pessoas que vivem nas instituições desempenha um papel
importante para a comparação entre diferentes países, na perspectiva da
sustentabilidade da sua ordem política democrática.
Neste capítulo, não discutirei as peculiaridades das diferentes
democracias e os problemas de comparar suas diferentes culturas políticas
e sua manifestação na mentalidade da elite. Em vez disso, eu gostaria de
focar o sistema de valores fundamentais pelos quais a democracia em
geral e em seus princípios é definida, e continuar a olhar para a questão da
diferença cultural que decorre de diferentes tradições da cultura política.
A fim de deixar claro sobre o que democracia é essencialmente, é útil
olhar para o seu contrário. O contrário é a teocracia, o autoritarismo e o
totalitarismo. Tendo como exemplo o Islã e o papel que ele desempenha
O enraizamento da ordem política nos valores dos cidadãos.

no desafio político da ordem democrática hoje, eu gostaria de explicar a


peculiaridade da democracia em contraste com a teocracia. A democracia
baseia suas decisões políticas na vontade do povo, na teocracia elas
são entendidas como a vontade de Deus. A democracia é uma questão
de discussão e negociação, a teocracia é uma questão de aplicar uma
ordem divina para assuntos terrestres e de exigir obediência. A teocracia
obtém sua legitimidade e a ordem, referindo-se às forças sobrenaturais,
transcendendo o campo da existência humana, ao passo que a democracia
se refere à responsabilidade dos homens para com sua forma de vida
política. Sua legitimidade decorre de meras capacidades humanas e
principalmente da razão como uma capacidade comunicativa para discutir
e regulamentar assuntos mutuamente interessantes à comunidade. Esta
referência 'terrestre' ou 'deste mundo' dá a democracia a característica
cultural do humanismo (pelo menos nos tempos modernos).4 A melhor
indicação para esse humanismo é o papel que o conceito de ' 'dignidade
humana' possui no quadro constitucional das democracias.
A constituição alemã, por exemplo, começa com o artigo 1: " A
100 dignidade humana é inviolavel. Respeitar e protegê-la será o dever de
toda autoridade do estado. 2. o povo alemão, portanto, reconhece os

3 Um exemplo paradigmático é o fim da República de Weimar e a tomada de poder pelos nazistas


na Alemanha.Muitos membro do parlamento federal, embora não pertencessem aos partidos que
negavam a democracia, como os comunistas e os nacional-socialistas, tinham perdido a confiança
na ordem democrática e votaram a favor do “Ermâchtigungsgesetz” (ato de habilitação) o que,na
verdade acabou com a validade da constituição democrática
4 Na democracia grega falta o princípio fundamental da igualdade e, portanto, sua base cultural
não pode ser chamada de humanística. Mas, o pensamento político grego é uma das condições
históricas para o que chamamos hoje de humanismo político.
direitos humanos como invioláveis e inalienáveis e como a base de todas
as comunidades, da paz e da justiça no mundo." Isto não é um caso
isolado, mas representativo da maioria das Constituições das democracias
modernas, começando com a declaração das Nações Unidas de 1948.
Aqui o preâmbulo diz que: "o reconhecimento da dignidade inerente e dos
direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana é o
fundamento da liberdade, da justiça e paz no mundo." Cerca de 145 das
193 Constituições dos Estados do mundo, em abril de 2004, se referem
explicitamente ao conceito de 'dignidade humana' ou 'dignidade pessoal'
como uma base cultural para legitimar a forma democrática de dominação
política (Baets, 2005).
Dignidade é uma qualificação normativa da humanidade. Como uma
norma fundamental, domina a vida humana na sua dimensão política e

O enraizamento da ordem política nos valores dos cidadãos.


social sob a forma de leis básicas. Podemos dizer que é o fôlego cultural
da vida política e social na sua forma moderna, secular e civil. Mas
a dignidade humana é mais do que uma regra e princípio ético. É um
fator constitutivo da identidade humana também.5 Como tal, ancora a
legitimidade da dominação política e da forma de vida social no núcleo e
profundidade da subjetividade humana.
A questão de como a democracia é sólida e bem estabelecida em
diferentes países do mundo não pode ser respondida sem referência a esta
dimensão da subjetividade humana, onde a humanidade é eficaz como
um princípio moral básico e um elemento de formação da identidade
pessoal e coletiva.
Identidade política como parte da cultura da democracia moderna
é geralmente definida por nacionalidade. Isto é - no meu entendimento
– o significado da terceira parte do slogan bem conhecido da Revolução
francesa, a "fraternidade". Ele indica a nova e especialmente democrática
forma de união, o quadro de pertença, de identidade política das pessoas
que se definem como cidadãos.6 Eu omitiria a pergunta se esta forma
nacional de identidade política nas democracias modernas aplicar-se para 101
onde quer que a democracia esteje instalada. Em qualquer caso, é típico
e representa um problema de identidade, que é inerente não só na sua
forma nacional.
Identidade sempre implica uma distinção entre o eu próprio e os

5 Apreciação de si e reconhecimento pelos outros – e ambos ao mesmo tempo – são uma condição
necessária para a identidade estável e dignidade.
6 Isto é claramente expresso por Chipkin (2007): 2. "... a nação é uma comunidade política cuja forma
é dada em relação ao exercício da democracia e da liberdade."
outros, quer se trate de autoreferência de uma pessoa ou de um grupo. Esta
distinção é uma fonte de tensões, uma vez que é normalmente baseada
na lógica do etnocentrismo (Rüsen, 2004 a, b, c). Essa lógica é composta
por três elementos, (a) uma avaliação desequilibrada: a auto-imagem é
caracterizada por um conjunto de valores positivos. Considerando que
a imagem dos outros é caracterizada por um conjunto menos positivo,
ou mesmo valores não negativos. O exemplo generalizado desta
avaliação desigual é a justaposição da civilização contra a barbárie. (b)
o etnocentrismo consiste em uma teleologia orientada a origem como a
forma dominante da narrativa mestra, que informa as pessoas quem está
lhes apresentando a história, como eles se tornaram o que são e o que eles
querem ser no futuro. (c) finalmente, etnocentrismo fornece às pessoas
uma posição central entre a variedade de povos e países ao redor deles,
O enraizamento da ordem política nos valores dos cidadãos.

enquanto que os outros são marginalizados no espaço e no tempo.


O caráter tenso desta lógica da identidade formada é aparente:
a avaliação desequilibrada provoca um "choque de civilizações" na
identidade política. Especialmente, as relações internacionais sofrem com
estas assimetrias que opõem um ao outro. Na identidade retratada nas
narrativas mestras muito deste confronto constitui-se como uma luta
de – centrismos uns contra os outros (eurocentrismo, sinocentrismo,
afrocentrismo etc ou país do Deus próprio contra outros países na sombra
da divina luz da civilização etc.).
Desde que o conceito de formação de identidade da cultura política
nas democracias modernas refere-se à idéia de uma "inviolável" dignidade
do ser humano, o humanismo político da democracia moderna é
confrontado por esta lógica de conflito do etnocentrismo. Um conceito
de cultura política paradigmaticamente diferente é representado como
uma comunidade política com base em e centrado em torno de valores
teocráticos. (Aqui, o Islã tornou extremamente importante hoje na política
de identidade, não só na Europa). Nem a diferença entre uma democracia
102 e outra não é livre de elementos etnocêntricos. Outras democracias são
tradicionalmente encaradas como sendo caracterizada por uma falta de
humanismo em comparação com a sua própria autoestima.7

7 Isto é sempre o caso se democracias com uma tradição histórica longa comparam-se com as
recém estabelecidas. Atitudes ocidentais para as democracias não-ocidentais não são livres desta
auto-estima etnocêntrica. Mas, mesmo no Ocidente pode ser observada uma inter-relação tão
desiquilibrada. Intelectuais alemães no pós-guerra, por exemplo, olharam com alguns sentimentos
de inferioridade (ou, pelo menos, das deficiências históricas) para as democracias mais estabelecidas
no oeste da Europa e EUA.
Essa dimensão histórica da identidade política democrática é um
lugar para a mesma luta. Toda a gente apela para a origem decisiva (com
provas mais ou menos histórica) de que o fundamento da democracia é a
liberdade. 8
Um aspecto especial desta luta é o fato de que a democracia
é um resultado da história ocidental. Isto levou a um problema de
identidade política nas democracias não ocidentais. Sua cultura política
historicamente refere-se não ao seu próprio passado (em uma perspectiva
de tempo histórico), mas a uma origem fora de suas próprias histórias.
Isto freqüentemente conduziu a um sentimento de alienação ou a uma
identidade fragmentada, enquanto a lógica do etnocentrismo é efetiva.
Para superar este fato, o humanismo político da democracia moderna
deve ser reconsiderado.

O enraizamento da ordem política nos valores dos cidadãos.


Ser um ser humano é a fonte para as regras básicas para a dominação
política nas democracias modernas, as regras que têm sido expressas na lei
constitucional por um conjunto de direitos humanos. Ao mesmo tempo,
a humanidade é um princípio constitutivo da identidade nas sociedades
modernas de construção: ser um ser humano é essencial para a autoestima
das pessoas em relação aos outros. Na cultura política moderna cada
uso de poder e dominação encontra seus limites na qualidade humana
dos dominados. A desumanidade é a base fundamental para legitimar
qualquer uso de poder e dominação e, ao mesmo tempo, a humanidade
tem um elevado, se não o maior valor, para cada pessoa, cada comunidade
em relação à sua identidade. A qualidade das democracias depende da
validade desta síntese de legitimidade e identidade ambos mesclados com
a idéia de humanidade.
O poder desta ideia da humanidade depende de tradições culturais.
No ocidente, onde as tradições culturais vêm desde a antiguidade, a
idéia de humanidade é profundamente influenciada pela idéia do direito
natural, pela crença cristã da unidade de Deus e a humanidade em Cristo
103
8 É incrível que na África do Sul não foi feita nenhuma tentativa publicamente eficaz para criar
uma nova identidade Sul-Africano, referindo-se ao evento histórico fundador de, conjuntamente,
promover a superação do apartheid e criar uma ordem política baseada na idéia de liberdade. Em
minha opinião, seria possível desenvolver uma nova narrativa mestra da África do Sul, referindo-se
a esta grande mudança histórica de um sistema de supressão em um sistema de liberdade política.
Uma das razões por que isso nunca foi tentado com êxito é o fato de que a identidade nacional já
teria sido criada no período pré-democrático da história sul-africana, como uma identidade única
de grupos da população como os Afrikaners ou os Zulus. É simplesmente impossível dar uma
identidade já estabelecida a favor de um novo e diferente. Só é possível dar essa identidade já
estabelecida no quadro de uma identidade política se a identidade original que está preservada
e mudou. Um paradigma para tal preservação e mudança é a relação entre identidade nacional e
Europeia no processo de unificação da Europa. Ver Rüsen, 2007
e pelas críticas contra as formas de poder político religioso, inauguradas
pelo Iluminismo(Cancik, 1983, 1993).
A questão debatida muitas vezes culmina com o problema, se este
fundamento cultural da democracia no princípio da humanidade é
uma peculiaridade ocidental para a organização de dominação política,
ou se esse princípio também pode ser encontrado em outras culturas e
tradições. É plausível que a alegação para tais valores na cultura política
das democracias modernas e para sua validade universal, seja compatível
com diferentes contextos históricos em que a democracia emergiu ou está
em construção.
A validade universal da qualidade normativa da humanidade tem
sido, por um longo tempo, um problema da teoria política, filosofia
moral e história intelectual. Mas um problema neste contexto parece ser
O enraizamento da ordem política nos valores dos cidadãos.

sem solução, ou seja, o problema da diferença cultural como um fato


fundamental da vida humana - principalmente nos processos culturais
de formação da identidade - pode estar relacionado com o princípio
universal da humanidade.
Desde que a diferença seja um fator constitutivo da identidade
humana, esta questão é da maior importância para a cultura política e seu
papel em apoiar, estabilizar, ou limitar, desafiar e desestabilizar a ordem
democrática da dominação política.
A diferença cultural é um desafio para as relações nacionais e
internacionais na vida política moderna. No contexto nacional, duas
grandes questões requerem uma resposta. Em primeiro lugar, como
podem diferentes identidades culturais dos cidadãos serem mediadas
por uma identificação legitimada com a ordem política existente e com a
cidadania comum? Em segundo lugar, desde que a cultura política precisa
de homogeneidade cultural, ao nível das convicções sobre a legitimidade
do poder e dominação, como tal homogeneidade é possível em sociedades
com uma população heterogênea?
104 No contexto das relações internacionais a diferença cultural tem sido
associada com o perigo de um 'choque de civilizações'. Em uma perspectiva
histórica este confronto é caracterizado por uma predominância ocidental
em conceituar as principais questões da vida económica, social e política.
As culturas não ocidentais entendem isso como um desafio e uma ameaça
para a autenticidade e dignidade das suas identidades culturalmente
diferentes. Esta tensão pode levar à radicalização se as diferentes visões de
mundo são estruturadas ao longo de conceitos universalistas peculiares.
Mais, se não todos, diferentes culturas humanas compartilham uma
tendência universalista ao expressar o seu valor mais alto: autoestima.
Diferença cultural é, portanto, um choque inevitável de universalismos.
Para evitar a luta de universalismos diferentes, não é suficiente se
referir a alguns conceitos abstratos ou ideias além da diferença cultural.
Em vez disso, é necessário procurar os antropológicos universais. Só
então, será encontrado um ponto de partida e uma plataforma criada para
fins de validade universal em comunicação intercultural. O relativismo
cultural presente no nível do discurso intelectual é meramente uma saída
do campo das relações gerais entre diferentes visões de mundo e conceitos
fundamentais da cultura política. Isso não significa paz no relacionamento
intercultural; pelo contrário, o relativismo tem apenas um significado
político: uma luta permanente entre diferentes interpretações culturais
dos assuntos humanos. Assim, ele confirma o choque de civilizações e

O enraizamento da ordem política nos valores dos cidadãos.


não o pacifica.
Este problema político significativo é reproduzido no nível acadêmico
de comunicação intercultural. A maioria das discussões sobre diferenças
culturais e comunicação intercultural é realizada sob a pressuposição mais
ou menos tácita de um conceito Spengleriano da cultura. As culturas são
vistas como unidades semânticas que têm apenas um inter-relacionamento
externo. O mainstream de comparação intercultural segue esta linha
epistemológica da diversidade das culturas independentes uma da
outra e seguindo suas profundas estruturas semânticas (ou 'códigos') de
compreender o mundo. Com estes pressupostos relativísticos, a academia
é uma parte do choque de civilizações - sem sabê-lo. Em vez de contribuir
para uma solução, é parte do problema.
Os problemas não resolvidos da diferença cultural são um desafio para
os valores básicos de uma cultura política democrática com sua pretensão
de validade universal. Como um elemento constitutivo da formação da
identidade humana, a diferença cultural tem que ser mediada com esta
abordagem universalista. A questão é: como?
Para responder à pergunta primeiro deve-se olhar para trás na 105
história e estudar as origens e a evolução de universalismos culturais em
todo o mundo. Aqui podem ser observadas duas principais tendências
na evolução histórica a longo prazo. Primeiro, a tendência de ir além dos
limites étnicos para os elementos básicos da humanidade e, em segundo
lugar, a realização de trans-étnicos conceitos universais da humanidade
de forma exclusiva, ou seja, ser incompatível com outras interpretações
universalistas e de entendimento da humanidade.
Em uma perspectiva histórica universal pode-se observar um
desenvolvimento geral das culturas para ideias universalistas de
humanidade, que vão além dos limites das comunidades concretas (Giesen,
1991a, 1991b). Originalmente, (nas sociedades arcaicas) os membros de
uma comunidade se chamavam 'humanos', portanto, compreender os
outros membros da raça humana como não pertencentes ao seu próprio
grupo, seria ser não humano. Eles poderiam ser tratados de acordo,
seguindo os padrões de uma dupla moral. O resultado de tal conceituação
da diferença cultural pelo uso dos critérios da humanidade é uma idéia
profundamente enraizada da desigualdade e da moralidade relacionada
da duplicidade. No longo prazo do desenvolvimento civilizacional esta
desigualdade tem sido modificada, se não superada, pela ideia de que, em
princípio, todos os seres humanos são iguais e que há somente uma moral
universalista. O resultado deste desenvolvimento histórico universal é
O enraizamento da ordem política nos valores dos cidadãos.

a visão de mundo moderna da igualdade humana. Uma reconstrução


do desenvolvimento histórico em direção a um conceito de igualação
da humanidade é plausível, mesmo se não segue a tradicional ideia de
modernização como um processo de ocidentalização. Esta universalização
conceitual da humanidade como um valor cultural básico tem um impacto
político específico e uma consequência sobre a legitimidade do uso de
poder e de dominação da institucionalização. É um fato, mesmo em um
conceito de 'modernidades múltiplas' (Eisenstadt, 2000) a partir do qual
diferentes culturas têm seus próprios caminhos de modernização.
Este processo de universalizar a humanidade como um valor cultural
básico tem ocorrido em lugares diferentes e em épocas diferentes, o que
levou a uma variedade de ideias ou humanidades e aos conceitos do
humanismo. A diferença é o resultado a partir dos diferentes contextos em
que eles surgiram. Enquanto ainda carregam os traços de seu surgimento
excluem-se uns aos outros. O melhor exemplo para esta exclusão mútua
é a reivindicação exclusiva de verdade universal da crença religiosa no
judaísmo, Cristianismo e Islã. Você só pode seguir uma das crenças
106 religiosas, que necessariamente exclui as outras. Uma vez que todas elas
reivindicam verdades universais, sua inter-relação é guiada pela profunda
convicção de que as outras não são verdadeiras, por parte de todas as
religiões do mundo. O resultado desta inter-relação exclusiva é evidente:
um choque de sistemas de crenças religiosos que, persistentemente, leva à
supressão, à discriminação e ao derramamento de sangue.
É uma das realizações da sociedade civil moderna ter superado esta
inter-relação exclusiva das religiões, afirmando o caráter laico da ordem
política. O secularismo ultrapassa os limites das crenças religiosas. O
conceito de humanidade, que é a base da cultura política da democracia
moderna é caracterizado por uma neutralidade no que se refere às
diferenças culturais básicas em conceituar as questões universalistas do
autoconhecimento humano. Esta neutralidade é uma conquista e um
problema ao mesmo tempo. É um ganho quando culturalmente estabelece
uma organização política da vida humana, em que diferentes crenças
podem ser vividas de forma pacífica. Tolerância é o princípio político
desta paz. Mas é esta paz, uma paz verdadeira ou um armistício? Aqui
está o problema. É exatamente aí, onde os diferentes elementos de crenças
humanas, autoconhecimento e pedidos de autenticidade, com seu enorme
poder de construir identidade e mover a mente humana, que a idéia da
humanidade sob a forma de cultura política tem seus limites. Quanto
mais forte o poder mental de reconhecer as diferenças, é onde a validade

O enraizamento da ordem política nos valores dos cidadãos.


da ideia de humanidade, como um dos mais importantes valores políticos
da democracia moderna aparece como mais fraca.
A resposta tradicional da cultura política moderna a esta pergunta é
o pluralismo. Mas o pluralismo significa a eliminação das reivindicações
de verdade de todos os conceitos que constituem as diferenças culturais,
afirmando conceitos universais de pensamento e crença. Alguém pode
pensar um pluralismo que escape a esta ausência de universalismos e
reivindicações de verdade? O pluralismo não procura uma ordem não-
pluralista abrangente em um nível mais alto para torná-lo habitável? Deve
ser uma ordem que permita as diversidades e diferenças de opiniões e
crenças. Tal ordem não pode ser entendida como apenas um elemento
ou momento dentro desta diversidade e diferença, já que ele as torna
possíveis. É uma meta-ordem não-pluralista do pluralismo.
Esta é a decisiva pergunta para o conceito de humanidade vis-à-vis
às suas diferentes manifestações culturais e sua densidade crescente na
comunicação intercultural. Não há espaço para uma vida separada de
universalismos diferentes. Eles têm que vir a termo, uns com os outros, no
processo de globalização. 107
O desafio nesta prospecção da humanidade na diferença cultural só
pode encontrar uma resposta: uma mudança do universalismo exclusivo
para universalismos inclusivos.
No nível lógico uma mudança é bastante fácil de conceituar. Um item
universalista como desumanização ou humano ou humanidade só pode
se tornar manifesto de forma peculiar, já que ele só pode ser realizado
sob condições específicas. Sob condições específicas diferentes,o mesmo
item universalista obtém uma manifestação diferente. Se as pessoas que
vivem dentro de uma dessas manifestações diferentes são capazes de ver
o mesmo item universal em outra manifestação, eles serão capazes de
reconhecer esta outra manifestação; e este reconhecimento pode tornar-
se mútuo.9
No contexto da presente argumentação, pode ser resolvido o problema
de uma origem alienante da democracia no mundo não-ocidental.
Quando esta origem pode ser aceita como uma manifestação específica
de uma qualidade geral da humanidade, potencialmente dada em todas
as culturas, porque ela não pode ser aceita e eficaz em outros conceitos
da humanidade? Claro, isto sob a condição de que estas diferentes
humanidades compartilham uma qualidade antropologicamente cultural
do ser humano e, enquanto esta qualidade é entendida como uma potência
dinâmica de mudança e desenvolvimento e não como uma essência
O enraizamento da ordem política nos valores dos cidadãos.

atribuída exclusivamente a uma tradição própria.


Além disso, deve-se argumentar que, somente no contexto de uma
teleologia etnocêntrica orientada à origem, a estrutura de uma origem
fora da própria história tem um efeito alienante. Se esta teleologia
orientada à origem é substituída pela reconstrução orientada ao futuro - e
esta é a lógica do pensamento histórico realmente moderno - é facilmente
possível assumir elementos de origem diferente em uma cultura própria.
O contexto da descoberta e o contexto da justificação logicamente
distinguem-se, e o desenvolvimento da própria cultura política é um
processo aberto de aprendizagem de diferentes fontes e de experiências
dentro e fora da própria tradição.10
Vida prática é diferente da lógica. Mas se alguém realmente quiser
uma ideia convincente de paz vis-à-vis o choque de civilizações, é preciso
procurar as chances e possibilidades de realizar um reconhecimento
mútuo das diferenças culturais em todas as dimensões e domínios da
vida humana. Há um campo onde esse reconhecimento já se estabeleceu
de forma convincente: o domínio da arte (entendida na perspectiva
108 da autonomia estética). Aqui a diferença é lucro. Não há nenhum
problema para apreciar as obras de arte de outra cultura. Pelo contrário, a
experiência da diferença amplia o próprio campo da humanidade e de sua
compreensão como um valor cultural. Mas esta realização de reconhecer
as diferenças culturais na arte só foi possível por uma divisão estrita entre

9 Friedrich Schleirermacher apresentou tal universalismo inclusivo em relação à vida religiosa nas
sociedades modernas. (Schleiermacher, 1913).
10 Um exemplo revelador para tal aprendizagem é o conceito de zero em matemática. Foi inventado
na Índia e todas as outras culturas utilizaram sem problemas com a auto estima.
a dimensão cultural de arte e a dimensão cultural de outras formas de
vida, tais como política, religião, vida social etc.
Aqui é um vasto campo de atividades culturais, no que respeita
a base da cultura democrática que está relacionado a um conceito de
humanidade. Debater democracia e procurar por suas condições culturais
não pode ser feito sem a pergunta de como é possível alterar formas
tradicionalmente pré-determinadas da ordem política e identidade
cultural na vida política presente, para que os conceitos universalistas de
humanidade integrem a diferença cultural, mesmo onde esta diferença é
baseada em universalismos diferentes. Deveríamos pedir universalismos
inclusivos na cultura política de hoje, para tornar a democracia segura
para o futuro, nas perspectivas nacional e internacional.
A cultura política da democracia pede fortes elementos para reconhecer

O enraizamento da ordem política nos valores dos cidadãos.


essas diferenças no autoconhecimento humano e na visão de mundo, que
são relevantes para o processo de formação da identidade. Um elemento
comum de união é necessário para ligar as diferentes crenças religiosas em
um credo comum nos valores básicos da democracia. Esta vulgarização e
união do domínio da cidadania e da democracia têm de se tornar eficaz
no domínio mental onde a fé religiosa, em suas diferentes manifestações
constitui a identidade. Cidadania comum na diferença religiosa - como
isto é possível ? A resposta mais fácil para esta questão coloca a cidadania
além da crença religiosa. Na verdade, pertence às condições históricas da
democracia moderna que política e religião foram estritamente separadas.
Esta separação entre religião e política impossibilita a teocracia. Esta é a
razão para o Islão a rejeitar as formas de vida democráticas desde que,
em sua origem, política e fé estão estreitamente inter-relacionadas, se não
idênticas. Democracia é culturalmente fundada sobre a forma de vida
secular de uma sociedade civil. No entanto, a vida humana nesta forma
secular precisa de apoio desses poderes mentais, que desempenham um
papel decisivo nos processos de formação de uma identidade comum
como cidadania. Baseada em difrentes e profundas convicções de como 109
viver nossa própria vida, a religião – mesmo além da política – põe em
perigo uma cidadania em comum.
Isso é verdade desde as religiões monoteístas, se não todas as
religiões do mundo como o hinduísmo, confucionismo ou budismo, os
quais afirmam que suas crenças diferentes têm uma verdade universal e
absoluta. Com estas afirmações de verdade eles se excluem mutuamente e
referem-se uns aos outros de uma forma tensa.
Existem inúmeros exemplos de como todas essas inter-relações
tensas, levaram a guerras religiosas, derramamento de sangue, morte e
sofrimento indescritível. A forma de vida secular da sociedade civil como
uma condição social e cultural necessária para a democracia terminou
definitivamente esta guerra e criou um reino de uma coexistência mútua
e pacífica, excluindo as crenças religiosas.
Tolerância é a palavra chave para o fim destas tensões religiosas.
Mas é a tolerância já paz? A resposta a esta pergunta é um não definitivo.
Tolerância significa suportar a diferença de outras crenças, embora possa
contradizer a própria crença. O passo para a paz seria o passo de tolerância
para o reconhecimento. Mas, como uma crença contraditória pode ser
reconhecida por um forte crente? Como cidadão, ele ou ela pode aceitar
concidadãos com crenças diferentes. Mas este reconhecimento eclipsa
de forma muito importante, se não decisiva, parte da sua identidade, ou
O enraizamento da ordem política nos valores dos cidadãos.

seja a identidade religiosa. E uma cultura democrática sem esse poder em


identidade é fraca.
Seria uma enorme vantagem para a cultura política da democracia,
se esse poder tornar-se um dos seus elementos eficazes. O Iluminismo
ocidental tentou este empoderamento, sublinhando a moralidade embutida
na crença religiosa. Ele estava convencido de que a diferença religiosa
podia ser dissolvida em uma moralidade abrangente e universalista.
Na literatura germânica, há um grande documento com esta
abordagem admirável do Iluminismo para superar a inter-relação tensional
de diferentes religiões fazendo-o transcender em moralidade. É a famosa
parábola do anel contada no drama de Lessing Nathan o sábio (1799).
Quando perguntado sobre as três religiões da linhagem de Abrahão, o
sábio judeu Nathan contou a seguinte história: um pai tinha três filhos que
amava muito. Ele possuía um anel de muito preciosa sorte e ele teve que
resolver o problema, qual dos seus filhos deveria herdá-lo? Pouco antes
de sua morte, ele chamou seus filhos e disse: vocês sabem do meu anel.
Pedi a um joalheiro para copiá-lo duas vezes e ele fez um trabalho tão
110 bom que ninguém pode dizer qual é o original. Ele deu a cada filho um
anel e morreu. Os filhos discutiram sobre a autenticidade de seus anéis e
finalmente foram ao tribunal. O sábio juiz disse que a autenticidade seria
apenas revelada pela conduta de vida de seu proprietário, pelo grau de sua
moralidade.
Aceitar o caso, precisamente, tal como está;
Se cada um de vocês na verdade recebeu seu anel
Direto da mão do seu pai, deixe que cada acredite
O anel dele próprio ser o verdadeiro e genuíno.
Talvez seu pai pretendesse encerrar a tirania do anel especial. Em
meio à sua posteridade. Isso não se esqueçe ele amava a todos e
amou todos iguais, desde que ele estava relutante em ferir dois que ele
poderia favorecer um sozinho. Bem, então, deixou a cada um agora
rival seu amor imparcial, seu amor tão livre de todos os preconceitos;
Rivalizem uns com os outros na contenda generosa
para provar as virtudes dos anéis que usa;
E para este fim, deixa suave humildade,
paciência saudável, verdadeira benevolência, e resignação à vontade
de Deus, vir em seu auxílio...
Assim falou o sábio juiz. 11

Lessing pensou que a peculiaridade histórica da crença religiosa


fosse menos importante do que a sua moralidade inerente. Mas sua
peculiaridade permaneceu e manteve seu poder sobre as mentes dos
crentes. Nós (deveríamos) sabemos que é impossível dissolver a religião
a uma moral universalista. Enquanto esta peculiaridade, esta fé religiosa
específica permanece na sua forma tradicional e, ao mesmo tempo, afirma
sua validade universalista contra crenças diferentes, continua a ser um
perigo para a sociedade civil. Continua a ser um perigo porque sua lógica
é exclusiva em relação às outras religiões, criando assim a hostilidade
mental na vida social e política.
Esta é a razão para o caráter laico da sociedade civil no ocidente.
Exige tolerância e a tolerância transgride o domínio da crença e requer um
ponto de vista neutro contra o compromisso religioso. Às vezes, quando
refletindo sobre a diferença, as pessoas falam em vez de tolerância, de
respeito. Isto não parece ser uma atitude religiosa generalizada, mas é só
uma atitude intelectual. Bibliografia
Há uma argumentação histórica que se coloca ontra a minha tese.
É um argumento a favor do cristianismo como apoio cultural para a
sociedade civil. O cristianismo é um dos pressupostos históricos para a 111
sociedade secular e sua cultura. Sem a idéia cristã de seres humanos como
imagens de Deus e sem a crença cristã de que o próprio Deus tornou-
se um ser humano em Jesus não haveria qualquer desenvolvimento
dos direitos humanos e civis. E desde que uma sociedade secular é
demasiado fraca para capacitar o seu próprio sistema de valores básicos,
ela necessita do apoio da fé cristã. Sem esta religião específica, a moderna

11 Lessing, Gotthold Ephraim: Nathan the Wise, V. 516 sqq. (primeira publicação 1799; Traduzido para
o inglês por William Taylor 1893 obtido em http://www.fullbooks.com/Nathan-the-Wise1.html).
sociedade civil e ainda mais o estado democrático moderno perderiam
uma condição necessária para si mesmo, que não pode ser substituída
apenas por elementos seculares. Esta é uma versão ampliada do famoso
argumento-Böckenförd: O estado vive em condições que ele não pode
definir-se (Böckenförde, 1991). Minha tese é - é errado que a religião
de maneira tradicional, incluindo o cristianismo permanece um desafio
e um problema para uma sociedade civil? Acho que no nível lógico
meu argumento é sólido ainda. Enquanto há reivindicações de validade
universal e, enquanto excluem as outras religiões de sua verdade universal,
pelo menos, um potencial de uma intolerância profundamente enraizada
permanece. Exclusividade é o caso. Deixe-me acrescentar um argumento
para a argumentação-Böckenförde, que é muito popular na Alemanha,
principalmente na jurisprudência. Na Alemanha, há um conflito agudo
sobre a questão de se professoras muçulmanas devem usar um lenço de
cabeça nas escolas estatais. A primeira decisão do Tribunal Constitucional
aconteceu contra um veredicto sobre a proibição de lenços de cabeça em
escolas públicas, argumentando que não havia leis em que se pudesse
referir para chegar a uma solução jurídica. Agora a maioria dos governos
dos Estados responsáveis pelas escolas públicas na Alemanha aprovou leis
que proíbem usar os cachecóis, mas, ao mesmo tempo, permite símbolos
cristãos. Eu acho que eles se referem ao argumento de que símbolos
cristãos representam uma condição cultural necessária para a cultura
política da democracia moderna, enquanto símbolos muçulmanos a
coloca em dúvida.
Meu argumento pode ser defendido não apenas em nível lógico. Não
devemos esquecer que o estabelecimento de valores culturais básicos
Bibliografia

da moderna sociedade civil só foi possível por uma virada crítica do


Iluminismo contra o cristianismo estabelecido, tal como ele se apresentou
sob a forma das igrejas nos séculos 17 e 18. Sem uma virada crítica contra
a fé religiosa em suas formas tradicionalmente estabelecidas, o secular
112 sistema de valores culturais nunca surgiriam. Isso não deve ser esquecido
na perspectiva histórica, onde a importância da religião para a sociedade
civil moderna está em questão. Devemos manter em mente que no debate
público sobre a dominação do estado civil baseado nos direitos humanos
fundamentais e a questão da religião foi a mais debatida. O primeiro
processo de estabelecer uma constituição escrita moderna baseada nos
direitos fundamentais, pela primeira vez na história mundial da religião
causou uma agitação mental na cultura secular das sociedades modernas.
Hoje sabemos que a esperança dos intelectuais e das pessoas educadas
na idade do Iluminismo falhou. O problema da diferença religiosa não
encontrou sua solução em um desencanto contínuo a favor de valores
seculares. A tese do desencanto – um dos seus mais proeminentes
representantes é de Max Weber12- não é apenas empiricamente mas
também filosoficamente problemático. Por que? Simplesmente porque
a religião é uma fonte de significados e sentidos que não pode ser
substituída por qualquer outra fonte de geração de sentido, nem mesmo
pela moralidade - pelo menos em sua forma secular, dentro do qual ele
transgride todas as fronteiras entre as crenças religiosas. Esta é uma das
razões por que o marxismo ideologicamente nunca trabalhou. Religião é
algo sui generis, mudar as mentes das pessoas, enquanto seres humanos
são seres humanos (Marquard, 1981). Se desaparecesse, as pessoas
perderiam uma fonte mental muito importante para o significado e o
sentido de suas vidas. Essa é uma tese forte, mas acho que tenho um monte
de experiência histórica e provas antropológicas do meu lado, apoiando
a necessidade antropológica fundamental da religião para a geração de
sentido humano em chegar a um acordo com a vida e a morte. A religião
manteve seu poder ao lado de moralidade. Seria completamente enganoso
entender sua necessidade antropológica como uma fonte de geração de
sentido humano somente em relação ao seu papel na e para a moralidade.
Até hoje, todos aqueles que se sentem comprometidos com a tradição
do Iluminismo entendem religião nesta relação à moralidade. Isso leva,
facilmente, a uma perspectiva estreita, dentro da qual a religião aparece
como um elemento importante da cultura política. Em vez disso, devemos
perceber seu papel mais amplo como geradora de sentido em geral, não
muito comprometida com as regras da vida prática, mas para superar o
Bibliografia
sofrimento e trazer redenções do mal no mundo.
Ninguém pode negar que a cultura política da democracia é
essencialmente formada por valores e orientações culturais seculares.
Isto é verdadeiro para a democracia grega clássica, bem como para as
democracias ocidentais modernas. Em respeito a este secularismo a 113
religião é um problema. Isso é neutro, ou ainda pode funcionar como seu
apoio? Por um longo tempo a religião tem sido principalmente tratada
como um problema para a secularização. O foco foi colocado sobre a
alternativa ou religiosidade ou secularismo. No ocidente, entretanto, esta
alternativa tornou-se obsoleta, desde que por um complicado processo

12 Formulações expressivas podem ser encontradas em Weber, 1988.Em uma perspectiva comparativa,
esta tese é apresentada em Weber, 1963.
histórico muitas organizações religiosas estabelecidas apresentaram seus
sistemas de crença em como legitimar a forma de vida secular da sociedade
civil, especialmente os princípios da tolerância e os valores básicos da
sociedade civil, nomeadamente os direitos humanos e civis. Vis-à-vis o
fato de que em outras partes as palavras dos sistemas de crença luta contra
a forma de vida secular da sociedade civil, bem como nas organizações
religiosas, de uma cultura política democrática, a questão decisiva não é
mais a alternativa entre o secularismo e religião, mas uma inter-relação
muito mais complexa.
O caráter laico da sociedade civil está além da dúvida. É um prosaico
em cada cultura política democrática. Mas a pergunta permanece: que
tipo de religião desempenha o papel e em que o contexto cultural da
sociedade civil? A guerra amarga e cruel do fundamentalismo religioso
contra a moderna sociedade civil levou a atenção do público da cultura
política ao poder mental da crença religiosa. Mas a alternativa de outro
relacionamento não encontrou ainda interesse suficiente. É o potencial
por que a religião pode contribuir para a validade da cultura política
democrática. Novamente temos que abordar experiências históricas
como evidências empíricas de uma possível contribuição (e observar
cuidadosamente nossos passos).
No decorrer da história, a religião mudou seu caráter, e é esta mudança
como um processo contínuo que gostaria de abordar na minha busca para
o papel da religião em uma futura cultura de reconhecimento. De que
maneira temos de reconhecer o papel da religião na cultura humana? Estou
a pedir uma versão em que a religião torna-se compatível com a sociedade
civil moderna e sua cultura. Uma proposta para sua compatibilidade é o
Bibliografia

politeísmo. Há um argumento filosófico bem a favor de politeísmo contra


as restrições de uma fé monoteísta, com suas conseqüências exclusivas.
Acho que essa idéia do politeísmo é uma construção artificial de
intelectuais, uma “ Kopfgeburt” (uma proposta irrealista), como se diz em
114 alemão. É uma invenção intelectual e mesmo aqueles que aderirem a ele
não acreditam em todos esses deuses diferentes. Não é nada convincente.
Outra noção, mas com um poder mental mais forte para isso, tem sido
recentemente proposto por Jan Assmann e outros. Eles criticam as
religiões monoteístas por seu universalismo exclusivo e sua rigidez moral
que trouxe muito mal para a humanidade. Em vez disso, eles propõem
um revival do Spinozismo e panteísmo. Estes se apresentaram como
um conceito muito poderoso no século XVIII para o povo educado, a
elite cultural dominante, como Goethe e outros (Assmann. 2003). Na
discussão em curso sobre esta ideia, as deficiências problemáticas têm
sido descobertas e sublinhou-se a consequência final da denuncia do
monoteísmo (Essen, 2002). Nós daríamos um específica e moderna
subjetividade e individualidade, que moldaram a nossa identidade (pelo
menos no ocidente). Eles ainda constituem a condição histórica necessária
da sociedade civil moderna. Então o que ele deixou como um poderoso
elemento religioso na moderna sociedade civil? É apenas seu inimigo, o
fundamentalismo? Então, a religião continuaria a ser uma ameaça para
a cultura da sociedade civil e continuaria a minar a democracia. Se o
fundamentalismo era a única maneira de continuar a crença religiosa
em sua forma exclusiva, então, de fato, a religião continuará a ser uma
fonte de irritação, desafio e ameaça para as sociedades modernas. O
poder das instituições democráticas teria de ser usado para manter os
movimentos fundamentalistas sob controle, empurrá-los para trás, tanto
quanto possível. Meu último exemplo para uma tentativa de resolver o
problema é a proposta de Hans Küng (Küng/Kuschel, 1993; Küng 1995).
Ele sugeriu para criar um ethos mundo fora das grandes religiões do
mundo, o que naturalmente inclui o poder das crenças religiosas mais
profundas. Todas as religiões do mundo compartilham alguns valores
morais e elementos básicos e eles são a essência de todas as religiões. Na
verdade, esta é a posição clássica do Iluminismo. Grandes religiões do
mundo podem concordar em uma regra moral básica como o imperativo
categórico kantiano ou a regra de ouro confucionista como uma verdade
substancial. Mas agora sabemos que a força da crença religiosa depende
de sua particularidade concreta. E não deve ser negligenciado que há uma
diferença fundamental entre religião e moralidade.
Bibliografia
Por que não abordar esta peculiaridade? Podemos pensar uma fé
religiosa que afirma a validade universal e é diferente de outras crenças
religiosas como um poderoso elemento de uma cultura de reconhecimento,
incluindo diferenças religiosas? Minha resposta é: Sim, nós podemos
e devemos. Para tornar esta resposta plausível, antes de mais nada, 115
gostaria de salientar o argumento lógico. Deixe-me repensar a questão do
universalismo. A minha argumentação sobre universalismo caracterizou-o
como um universalismo exclusivo nas suas realizações empíricas.
Mas, logicamente, há uma alternativa, a do universalismo inclusivo.
Logicamente, é óbvio o que universalismo inclusivo significaria. Acho
que, dentre as melhores argumenttações favoraveis a este universalismo
inclusivo em relação à religião está um pequeno livro de Friedrich
Schleiermacher (1958): Über die religião um die Gebildeten unter ihren
Verächtern (a partir de 1799). É um panfleto sobre religião, dirigido a
pessoas educadas, que seguem o fluxo principal do sentimento anti-
religioso na era do Iluminismo. O argumento de Schleiermacher funciona
da seguinte maneira: os crentes de uma religião com reivindicações de
verdade universalista acreditam em algo universalista que eles chamam de
Deus. Eles acreditam em um Deus universal sob condições específicas no
espaço e no tempo. Fazendo assim, eles percebem que sua relação com o
Deus universal se dá de uma maneira individualista. Esta individualização
constitui a diferença, mas esta diferença é, na verdade, uma confirmação
do universal mesmo. Portanto, a relação entre as diferentes manifestações
de uma crença universalista só pode ser de reconhecimento mútuo. Isto,
no entanto, significa que logicamente relacionadas a crença humana
ilimitada no Deus universal, sob circunstâncias limitadas, termina
em individualização deste Deus universal. Acreditar no mesmo Deus
universal sob diferentes condições, significa perceber Deus como sendo
diferente em sua unidade e universalidade. Experimentar essas crenças
diferentes só pode afirmar a so próprio, se o crente está ciente do caráter
individualista da sua crença. A diferença confirma a universalidade de
Deus. Se tal uma argumentação é aceita pelos crentes, então o poder da
crença religiosa se tornará um suporte para uma cultura de respeito mútuo
na inter-relação das diferenças culturais, ao nível profundo das convicções
religiosas fundamentais.
É possível tornar plausível este universalismo individualizado da fé,
referindo-se às raízes cristãs do individualismo ocidental. Com efeito, sem
a idéia cristã de um inter-relacionamento imediato entre cada ser humano
e Deus, o individualismo ocidental teria sido impossível historicamente.
Bibliografia

Mas, este argumento tem de ser ampliado: primeiro, tem que se reconhecer
o poder da secularização no processo histórico de trazer a ideia moderna
do individualismo humano, e, em segundo lugar, tem que se incluir as
religiosidades não-cristãs que podem suportar a ideia de individualização
116 da universalidade do divino. Isto é fácil em relação ao islamismo e o
judaísmo e não é impossível em relação às outras religiões do mundo.
O Hinduísmo, por exemplo, tem trazido uma idéia especificamente
religiosa de respeito e reconhecimento em sua impressionante trajetória
na modernidade, indo além da ideia ocidental secular de tolerância, como
podemos ver em Vivekananda.13
Como nós podemos perceber esses argumentos lógicos (theo-)

13 Vivekananda 2007.
na vida real? O primeiro passo para a realidade, seria a consciência da
historicidade de cada religião e a pluralidade de sua manifestação. Por
exemplo, o cristianismo não é uma única crença, como sabemos, mas
uma vasta variedade de igrejas, denominações e confissões. O mesmo é
verdadeiro para o Islã e todas as outras religiões. No entanto, este pluralismo
não é ilimitado. Portanto, podemos ainda distinguir as religiões. Mas a
partir da experiência histórica de nossa própria religião podemos deduzir
um pluralismo religioso em geral e alargá-lo. A historicização irá dotá-
lo com a força de um horizonte aberto e dinâmico. Historicizar significa
olhar para os universalismos tradicionalmente exclusivos das religiões
do mundo e como eles mudam e desenvolvem. Crenças religiosas
tradicionalmente são conceitualizadas como imutáveis e fixas de uma vez
por todas. Mas tal conceito nunca enfrentou o desenvolvimento cultural
que chamamos historicismo. Historicização é um inevitável processo
cultural nas sociedades civis modernas. É a grande chance de superar
universalismos exclusivos das crenças religiosas, enriquecendo-os com
uma temporalidade dinâmica, que pode reformular sua relação com
outras religiões. Acho que assistimos um tempo em que a transformação
de universalismos exclusivos para os universalismos inclusivas está
ocorrendo.
Como esta transformação da crença religiosa pode ser relacionada
com a forma de vida secular de uma sociedade civil? Há um tipo de
passagem que uma religião inclusiva pode tomar para finalmente entrar
da sociedade civil e enriquecê-la com o seu poder de reconhecimento
religioso? Sociedade civil de fato tem tal uma passagem ou pelo menos uma
porta chamada religião civil. Religião civil é um conjunto de convicções
Bibliografia
fundamentais compartilhadas pela maioria dos membros da sociedade
civil. Este conjunto de valores implanta a forma de vida da sociedade civil
nas mentes dos cidadãos como o mais fundamental dos valores e normas,
por exemplo, a ideia da dignidade do homem e do direito à vida. Religião
civil não é uma ideologia política, apoiada e doutrinada pelo Estado, mas, 117
pelo contrário, é uma mentalidade cultural meta-política, que subordina
o estado e outras formas de dominação ao senso comum dos dominados.
(Pelo senso comum eu entendo a orientação social mais fundamental ou
a forma da intersubjetividade na prática ao vivo, que constitui a sociedade
pela cultura).
Religião civil é, na verdade, o humanismo político e sua crença na
dignidade humana, que descrevi no início deste artigo. Não defendo que
as religiões estabelecidas, como o cristianismo, têm que desbastar até
atingirem o nível bastante baixo deste senso comum secular. É justamente
o contrário: as religiões estabelecidas têm que apoiar o senso comum
secular, reforçando-o com o poder de uma crença religiosa genuína.
Não devemos descurar que o poder mental da crença religiosa é muito
mais forte do que o poder da religião civil. Por outro lado não devemos
subestimar o poder quase religioso na religião civil do humanismo político.
Caso contrário, nós nunca vamos entender as pessoas que dedicam suas
vidas para assuntos de direitos humanos ou movimentos similares da
sociedade civil.
Mas, quanto à própria vida religiosa? Eu gostaria de terminar
minha linha de argumentação, dando três exemplos que demonstram
a possibilidade de um universalismo inclusivo em perseguir a própria
crença religiosa. Eles mostram que há um poder na religião em si para
estabelecer este universalismo inclusivo que acabaria definitivamente
com a luta pela verdade em diferentes crenças religiosas.
O primeiro exemplo é um monge católico, vivendo nos arredores de
Essen, que ensina meditação Zen budista (Kopp, 1994). Eu o conheci há
alguns anos e tive uma longa entrevista com ele. Ele me disse que ele tinha
passado anos em mosteiros budistas no Japão e praticava meditação Zen.
No final, a dignidade de um Mestre Zen nomeado o influenciou. Quando
eu pedi sua opinião sobre a diferença entre o budismo e o cristianismo
e como ele podia viver com os dois, eu esperava ouvir da boca dele,
que na sua essência, todas as religiões eram a mesma coisa, e que faria
com que essa identidade plausível, referindo-se ao misticismo. Mas ele
disse uma coisa muito diferente: "Por minha inspiração Zen budista eu
me tornei um cristão melhor". Ele manteve a diferença em uma inter-
Bibliografia

relação positiva. Ele viveu o que eu tinha intelectualmente conceituado:


em sua vida, o encontro de diferentes religiões, neste caso o budismo e o
cristianismo, levou a uma forma de capacitar e enriquecer mutuamente.
Este enriquecimento era de fato um mútuo. Ele me disse que depois que
118 ele viveu no mosteiro budista no Japão por um tempo o abade pediu-lhe
para realizar uma missa católica no mosteiro budista, o que ele fez.
Encontrei meu segundo exemplo por acaso, quando visitei Mainz há
alguns anos, uma cidade alemã antiga sobre o Rio Reno. Mainz é famosa
pela sua catedral medieval e. como era domingo, fui visitá-la. Estava
sendo realizada uma missa católica e um padre estava pregando, quando
entrei calmamente do edifício. O tema de seu sermão era a relação entre
os cristãos e os muçulmanos. Você pode imaginar quão atencioso de
repente tornei-me. Ele usou a metáfora de uma orquestra com melodias
e instrumentos muito diferentes. Apenas sua diversidade, ele disse, cria
músicas maravilhosas. Ele não era um intelectual, mas um padre numa
catedral dando um sermão ao seu povo14 e ele fez um ponto.
Eu encontrei o meu terceiro exemplo na internet quando eu li um
discurso feito por Jonathan Sacks, o Rabino-Chefe da Congregação
Hebraico Unida da Commonwealth. Neste discurso, por ocasião do dia do
memorial do Holocausto em 2005, ele disse: "os rabinos há dois mil anos,
disseram algo que acho incrivelmente bonito. Eles disseram que se você
precisa de moedas, muitas moedas na casa da mesma moeda, todos saem
exatamente a mesma – Deus faz cada ser humano na mesma imagem, sua
imagem – e cada um deles é diferente. E isso nos diz que em alguém que
não é a minha imagem, que não está como eu – que tem uma cor diferente
da pele ou língua ou fé – alguém que não é a minha imagem ainda se

O enraizamento da ordem política nos valores dos cidadãos.


encontra a imagem de Deus e temos que lutar por ele ou por ela e pelo seu
direito a ser.”15
Qual é a consequência desta nova forma de inter-relacionar as crenças
religiosas no seu próprio domínio? Nós deveriamos reescrever a parábola
do anel de Lessing da seguinte forma: originalmente, havia um anel, a sua
luz era tão forte que todos os que olheram para ele ficaram cego. Portanto,
o pai foi para um joalheiro e pediu-lhe para cortar esta pedra preciosa
em três partes, para que o condensado branco de luz capaz de cegar as
pessoas caisse em três cores básicas que, quando olhadas, causassem
prazer aos olhos. Quando ele chegou perto da morte ele ligou para seus
filhos e disse, escute aqui, eu darei um anel a cada um de vocês. Os três
anéis são feitos de um e mesmo meu. Escutem bem minhas palavras: se
vocês se envolverem em um bom relacionamento as cores da pedra se
misturarão de forma maravilhosa. Mas se vocês irem além e discutirem
sobre as cores e o valor de suas pedras preciosas sua luz desaparecerá, e os
anéis perderão seu valor.
É a forma de proceder. Se esses cidadãos que querem apoiar o poder
da cultura política da democracia, pelo poder de sua crença religiosa 119
avançam desta forma, então poderíamos esperar um substancial avanço
no sentido de uma democracia sustentável culturalmente.

14 Quando eu discuti este incidente com teólogos, foi levantada a questão: quem é o maestro? A única
resposta teologicamente diz respeito à cultura política da democracia moderna esta resposta é de
grande importância, desde que ela não se refere a uma instituição mundana ou terrena reivindicando
a regra da diferença religiosa para o poder.
15 http://www.chiefrabbi.org/sp-index.html. Para mais detalhes ver : Sacks, 2003.
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121
Humanismo e cultura
muçulmana: patrimônio
histórico e desafios

Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos


contemporâneos1
A noção consagrada pelo tempo de Humanismo hoje evoca
sentimentos mistos. Ela apela para valores e convicções cujos objetivos são
individualistas e universais, e que ao mesmo tempo, têm sido fortemente
colorido pela história europeia e norte-americana. A realização humanista
de definir a dignidade humana como um valor universal, que transcende
as fronteiras étnicas e religiosas, tem sido instrumental para mais de
dois séculos na formação internacional, bem como as leis e declarações
nacionais. Mas, durante todo o curso das lutas políticas, ideológicas
e econômicas em todo o mundo, o princípio da dignidade da pessoa
humana tem sido tantas vezes contestado, manipulado e diluído, a ponto
de deixar o humanismo em si altamente desacreditado e quase desprovido
de conteúdo em disputas atuais. E, ainda, a tarefa de encontrar algum
terreno ético comum para o futuro da humanidade continua a ser tão
urgente como sempre, e o humanismo ainda carrega alguma promessa
nesse sentido.
Esta tarefa tem se tornado um desafio ainda maior, pelo processo
de globalização, que continua a afetar as perspectivas sócio-culturais de
todas as partes envolvidas. Muitas pessoas têm de reorganizar as suas
123
vidas de acordo com as relações de poder e de mudança, a qual eles têm
começado a partilhar com muitos outros no mundo. Esta densidade
crescente de incorporação em uma sociedade humana globalizada
também envolve uma reformulação dos padrões de pertencimento e de
diferença. As questões de identidade individuais e coletivas que derivam

1 Traduzido do ingles: Rooting political order in the values of the citizens. Some ideas on political
humanism and religion as a necessary base for a sustainable democracy.In: Stefan Reichmuth.
Jorn Rusen, Aladdin Sarhan Humanism and Muslin Culture: Historical heritage and contemporary
challenges. 2012. Traduzido por Lucas Pydd Nechi
dessa situação tornaram-se, nos últimos anos, uma ferramenta útil de
mobilização política e manipulação por parte de uma vasta gama de atores,
quer pertencentes a círculos dominantes ou a movimentos de oposição.
Apesar de uma imprudência política crescente, que pode ser observada
em conflitos comuns em todo o mundo durante a última década, a
consciência da necessidade de ir além das limitações da política de
identidade comunitária e religiosa e para organizar o apoio global para os
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos

direitos políticos, também pode ser observada, especialmente no Oriente


Médio, se levarmos em conta a recente onda de protestos e manifestações
de massa, e as circunstâncias sob as quais se desenvolveram.
É neste contexto que a promessa de humanismo, que foi quase
esquecida por algum tempo, merece receber uma atenção mais
detalhada. É verdade que um dos críticos mais fervorosos da política do
Oriente Médio, o falecido Edward Said, já teve em seus últimos escritos
ressaltado seu compromisso duradouro para um humanismo secular,
a que ele permaneceu ligado apesar de sua herança europeia ambígua,
e que abrangeu para ele, tanto um compromisso literário transcultural,
como uma luta política "contra as práticas desumanas e as injustiças que
desfiguram a história humana desumanas"2. Mas esta explicação tardia
de posição humanista, que parecia voar na face de grande parte da teoria
pós-colonial que tinha sido estabelecida e desenvolvida a partir de seus
escritos anteriores, foi recebida com surpresa por um bom número de
seus seguidores e também encontrou apenas uma resposta limitada entre
o público egípcio de Said3. Mas, mesmo que seu humanismo crítico possa,
apenas, ser fracamente relacionado com o surgimento dos protestos e
resistência popular contra os regimes autocráticos árabes, que foram
lentamente desenvolvidos ao longo dos últimos anos e que agora vêm de
repente para a ribalta com sucesso notável, ele no entanto, parece ter sido

124 2 Nota do Autor: Said, Edward: “Orientalism 25 Years Later : Worldly Humanism v. the Empire-builders”,
in: Counterpunch, 4 August 2003 (http://www.counterpunch.org/said08052003.html [8 April 2011]),
citado também Schmitz, Markus: Kulturkritik ohne Zentrum. Edward W. Said und die Kontrapunkte
kritischer Dekolonisation, Bielefeld 2008, p. 274; veja além em Said, Edward: Humanism and
Democratic Criticism, New York 2004, a posthumous publication of four lectures delivered between
2000 and 2003

3 Nota do Autor: Veja, entretanto Siddiqi, Yumna: “Edward Said, Humanism, and Secular Criticism”,
in: Ghazoul, Feryal Jabouri (Ed.): Edward Said and Critical Decolonization, Cairo 2007, pp. 65–88.
Para mais discussões da posição humanista de Edward Said ver Abraham, Matthew (Ed.): Edward
Said and After : Toward a New Humanism, special issue of Cultural Critique, 2007, p. 67; e, mais
recentemente, Radhakrishnan, R: “Edward Said and the Possibilities of Humanism”, in Iskandar, A./
Rustom, H.: (Eds.): Edward Said. A Legacy of Emancipation and Representation, Berkeley 2010, pp.
431– 447.
profundamente envolvido na unidade globalizante da cultura árabe ao
longo das duas últimas décadas4.
Parece, portanto, útil colocar a herança humanista de volta em
consideração e explorar as possibilidades de um humanismo intercultural
sob as condições de um mundo globalizado. Isso impede qualquer forma
elitista do humanismo, que tende a atribuir altas virtudes da humanidade à
imagem normativa da vida e da cultura própria de um indivíduo ou etnia,

Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos


e colocar aqueles que não compartilham essas virtudes para a sombra.
Ele só é concebível como um conceito universal da humanidade, em sua
relação com o mundo, o que implica um conjunto de valores reconhecidos
mutuamente, no qual o velho conceito de dignidade humana ainda é o
mais importante. A definição dada por Immanuel Kant ainda se mantém
aqui, ou seja, que cada ser humano é sempre mais do que um meio para
os fins dos outros, e de fato um fim em si mesmo5. Isto envolve respeito e
reconhecimento de todo ser humano, de levar uma vida de acordo com
a sua própria determinação. Ao mesmo tempo, as formas de vida prática
e reflexão sobre a condição humana são diferentes e mudam no espaço e
no tempo, criando, assim, a variedade sócio- cultural do mundo humano.
Esta variedade pode ser vista como crucial para o processo de formação
da identidade social e individual6. Qualquer humanismo deve levar esses
dois lados da vida humana em conta. Refere-se à natureza humana e sua
qualidade cultural por necessidade universalista, e como ela permanece
firmemente ligada à variedade de culturas humanas e identidades, o
humanismo enfrenta constantemente o desafio de desenvolver regras e
normas convincentes para a comunicação intercultural.
O conceito de humanismo, no entanto, levanta um problema
grave: historicamente, ele surgiu na Europa e na América do Norte, e
desempenhou um papel importante na formação da identidade cultural
ocidental. Como foi durante um longo período de tempo tão intimamente
ligado ao sentimento dos europeus de firme superioridade sobre o resto do
mundo, e foi, por vezes, também utilizado para justificar a sua hegemonia, 125
tal sorte de humanismo em grande parte manteve-se pouco convidativo
aos não ocidentais. E quando os intelectuais ocidentais se referem à sua

4 Nota do Autor: Ver, sobre isso: e. g. Schmitz, Markus: Kulturkritik ohne Zentrum, ch. 5, “Eine andere
Leserschaft – Das Andere als Leserschaft”, Bielefeld 2008, pp. 305– 359.
5 Nota do Autor: Kant, Immanuel: Grundlegung zur Metaphysik der Sitten BA 65 (Fundamental
Principles of the Metaphysic of Morals), 1st edition (Johann Friedrich Hartknoch) Riga 1785, p. 65
6 Nota do Autor: Straub,Jürgen: “Personal and Collective Identity. AConceptual Analysis”, in: Friese,
Heidrun (Ed.): Identities, Difference, and Boundaries, New York/Oxford 2002, pp. 56– 76.
herança humanista universal, a fim de lidar com as tensões e lutas entre as
normas e os padrões de vida em diferentes partes do mundo em conflito,
eles enfrentam as suspeitas e reações críticas de seus colegas.
Para um humanismo intercultural emergente, que deva ser capaz de
superar essa herança difícil e, para lidar com o desafio da globalização,
pelo menos sete elementos que possam fornecer uma base sólida para a
compreensão e comunicação intercultural podem ser identificados. Todos
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos

estes pontos são uma questão de discussão intensa e contínua, que pode
apenas ser sugerida no contexto desta breve introdução. Eles também
podem servir como um quadro para a compreensão e interpretação das
múltiplas e em parte divergentes contribuições no que se segue. A inter-
relação sistemática desses pontos que é sugerida aqui, pode servir como
uma tentativa de estruturar um discurso sobre o humanismo, que em
grande parte prossegue como um trabalho inacabado7.

Conceito Universal de Humanidade


O conceito universal de humanidade tem uma dimensão empírica
e uma dimensão normativa: empiricamente aborda todas as formas de
vida humana, em qualquer momento e em cada espaço; normativamente
atribui um valor essencial para todo ser humano. Isto envolve um
movimento consciente, ainda que nem sempre bem sucedido, além das
normas profundamente enraizadas de etnocentrismo, que dão primazia
aos próprios grupos étnicos ou culturais8. Humanismo é baseado em uma
extensão destes valores e demandas de cada membro da raça humana.
Esta extensão, um passo que foi atestado repetidas vezes em diferentes
fases e contextos da história humana, tem uma base empírica clara na
natureza humana e, ao mesmo tempo, evolui a partir de elementos
normativos básicos da sociedade humana, como a empatia pelos outros, a
reciprocidade nas relações sociais e a responsabilidade por suas próprias
126 atividades. O humanismo é, portanto, uma interpretação específica e uma
formação destes elementos comuns da cultura humana, que podem ser
identificados através de uma grande variedade de manifestações regionais

7 Nota do Autor: Conferir Rüsen, Jörn/Laass, Henner (Eds):Humanism in Intercultural Perspective.


Experiences and Expectations, Bielefeld 2009.
8 Nota do Autor: Para a noção de Etnocentricidade/Etnocentrismo e seu uso corrente em estudos inter-
culturais, ver Gudykunst, W./Mody, B.: Handbook of International and Intercultural Communication,
2nd edition, Thousand Oaks/London/New Delhi 2002, pp. 3– 9, 82 f., 130– 140, 211, 214, 218. Para
um tratamento mais geral de suas dimensões políticas e filosóficas ver Brocker M./Neu, H. H. (Eds.):
Ethnozentrismus. Möglichkeiten und Grenzen des interkulturellen Dialogs, Darmstadt 1997
e históricas.

Centralidade do ser humano:


O Antropocentrismo
Uma visão de mundo antropocêntrica assume que o Homem

Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos


tem uma posição focal no cosmos. Traços desta posição já podem ser
encontrados nas tradições científicas anteriores de muitas culturas
históricas, onde ‘Homem’ (às vezes o ‘Primeiro Homem’) é descrito e até
mesmo descrito como um espelho microcósmico do macrocosmo. O
cosmos inteiro, por sua vez, foi muitas vezes considerado divino. Estes
conceitos cosmológicos, que também foram elaborados pela filosofia grega
(principalmente Estóicos e Neo-platônicos), já faziam parte da herança
filosófica da antiguidade, que foi retomada na Idade Média e desenvolvido
pelo humanismo ocidental e pela ciência europeia no início do período
Renascentista, desde o século XV. Esta tradição antropocêntrica evoluiu
juntamente com a doutrina cristã da criação do homem à imagem
de Deus e em sua redenção por Cristo, o Redentor divino que tomou
sobre si mesmo a natureza humana. O antropocentrismo cosmológico,
no entanto, mais tarde forneceu a base para um humanismo secular
buscando emancipação da dominação eclesiástica em favor de uma
orientação ‘deste mundo’. O humanismo secular baseou-se no conceito de
um potencial inerente de valores humanitários e na crença na auto cultivo,
ou auto formação (em alemão: "Bildung") do homem, o qual levaria para
um caráter e uma personalidade humana. Pode-se notar, entretanto, que
mesmo este humanismo muitas vezes não deixava de ter suas conotações
religiosas, e para alguns humanistas, como Herder, (ele próprio um clérigo
protestante de alto escalão), a pessoa de Cristo continua a ser o modelo
para a humanidade.
127
A dignidade humana como um valor básico
de orientação cultural
Articulações de uma qualidade especial e dignidade geral do
Homem podem ser encontradas no patrimônio mitológico, religioso e
legal de muitas sociedades humanas. Esta dignidade pode ser derivada
a partir de conceitos cosmológicos e de reivindicações de uma qualidade
divina particular da natureza humana. Ela também pode ser construída
sobre a ideia de uma vida em harmonia com a natureza e o cosmos. Mas,
em geral, essas noções permaneceram em tensão com o etnocentrismo e
com uma tendência igualmente forte para justificar a superioridade e as
prerrogativas de certos grupos aristocráticos ou governantes monárquicos
e dinastias. A ampla extensão do conceito de dignidade humana foi
introduzida por várias religiões universais, mas também por aqueles
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos

impérios, cujas leis concediam direitos e liberdades a todos os cidadãos,


que muitas vezes incluía acesso regular a jurisdição e até mesmo o direito de
recorrer ao governante por justiça. Um espírito de otimismo educacional
(como na China) não foi raro também conectado com esta convicção da
dignidade e capacidade de aperfeiçoamento do Homem. A elaboração do
conceito de dignidade humana por humanistas europeus e pelos filósofos,
juristas e cientistas políticos do Iluminismo ampliou ainda mais a noção
além das fronteiras religiosas, sociais e políticas, mesmo que esta extensão
tenha sido claramente construída sobre alicerces mais antigos. O conceito
moderno de dignidade humana pode ser apropriadamente definido pela
fórmula de Kant (veja acima). Isso também leva a indefinição da natureza
humana (longamente discutido já por Plessner9) e da vulnerabilidade do
indivíduo humano mais profundamente em conta, as quais moldaram a
experiência humana em todo o mundo, especialmente no século XX.

A igualdade de todos os seres humanos em


relação à sua dignidade essencial
O Humanismo afirma a igualdade de todos os seres humanos no que
diz respeito à sua dignidade. Isso também tem uma validade intercultural
óbvia. Mas como essa igualdade pode levar a equidade e justiça em um
mundo humano cheio de desigualdades que se manifestam em termos
128 políticos, sociais, econômicos e também culturais é uma questão em aberto
e, basicamente, sem solução. No Ocidente, por um longo tempo, igualdade
humana foi definida principalmente em relação à dimensão religiosa
e étnica da vida humana10 e, mais tarde, com referência a princípios

9 Nota do Autor: Plessner, Helmuth: Die Stufen des Organischen und derMensch, Berlin 1928 (The
Levels of the Organic and Man. Introduction to Philosophical Anthropology).
10 Nota do Autor: Uma das mais impressionantes formulações Cristãs de igualdade social e étnica no
âmbito da religião pode ser encontrada na carta de São Paulo aos Gálatas, 3,28: "Não há judeu nem
grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo
Jesus." Seria fácil encontrar declarações semelhantes na tradição islâmica.
abstratos de direito natural. As desigualdades sociais e políticas, como
os dos cargos de propriedades sociais ou escravos, mantiveram-se em
grande parte intocadas. O Marxismo marca o humanismo da sociedade
burguesa emergente como uma mera formalidade, sem substância
social e afirma trazer um "humanismo real" por meio de uma revolução
proletária. A herança de incontáveis atos desumanos cometidos em nome
desse humanismo ou em nome do progresso humano continua a ser uma

Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos


‘sobra’ pesada do século 20. Até hoje a doutrina prevalecente de direitos
humanos e civis universais não resolveu a questão de como garantir as
condições sociais para uma vida livre de todos os cidadãos.

Referência fundamental para a


responsabilidade e alteridade na existência
humana
A fim de esclarecer o sentido da dignidade humana e liberdade é
necessário olhar para a relação das pessoas umas com as outras, uma
vez que esta relação não pode ser ignorada ao se prosseguir a vida de
acordo com a sua própria vontade. Alteridade é uma questão ainda
em aberto na tradição do humanismo ocidental. Foi o filósofo judeu
Emmanuel Levinas que tentou dar ao humanismo um novo fundamento:
a relação fundamental de todo ser humano à alteridade dos outros, a qual
estabelece uma responsabilidade primordial11. Isto implica uma ideia de
humanidade constituída por diálogo, que pode ser encontrada também
em outros pensadores judeus do século XX como Franz Rosenzweig e
Martin Buber, e que se move para além da fundamentação individualista
comum na ética ocidental, localizando o indivíduo em uma existência
dialógica.
129
Individualidade e responsabilidade social
O humanismo ocidental tem sido muitas vezes criticado por seu

11 Nota do Autor: Conferir um sumário conciso da filosogia de Levinas Bergo, B.: “Emmanuel Levinas”,
in: Stanford Encyclopedia of Philosophy (http://plato.stanford.edu/entries/levinas/ [15 April 2011]);
para sua Filosofia do Outro e implicações éticas, Bergo, B.: Levinas between Ethics and Politics. For
the Beauty that Adorns the Earth, The Hague 1999; Fryer, D. R.: The Intervention of the Other: Ethical
Subjectivity in Levinas and Lacan, New York 2004; Wolff, Ernst: Political responsibility for a globalised
world. After Levinas’ humanism, Bielefeld 2011.
aparente descaso com as dimensões sociais da vida humana, enquanto
as críticas ocidentais dos princípios e práticas sociais não-ocidentais
referem-se, em resposta, ao tratamento desumano dos indivíduos em
nome de normas sociais gerais e valores coletivos. Essa crítica mútua
toca no problema básico de um equilíbrio viável entre a proteção do
indivíduo e a criação e preservação da justiça social como condição para
um novo humanismo em todo o mundo. A tensão entre esses dois lados
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos

da existência humana pode ser visto no centro da luta social ao longo


da história moderna. Uma solução não-reducionista para este problema
persistente, que não confunda os dois lados com a despesa para um deles.
e que seja praticável tanto localmente como em contextos globais, ainda
deve ser encontrada.

Humanidade e Transcendência
Transcendência é aqui entendida como incluindo todos os tipos de
formas culturais de referência para além das circunstâncias e condições
da vida cotidiana, quer sejam expressas na religião, arte ou filosofia. Esta
pode também ser vista em ligação com a indefinição em larga escala da
natureza humana, que já foi discutido acima. O humanismo europeu no
decorrer do tempo, certamente desenvolveu relações muito mais estreitas
com a arte e a filosofia do que com a religião. Mas, como já vimos,
o entendimento comum do humanismo ocidental como essencialmente
secular é enganosamente incompleto. Um novo reflexo das múltiplas
relações entre a ordem política secular e uma compreensão religiosa do
mundo é necessário. O crescimento atual da militância religiosa é um
desafio para cada ideia da humanidade, seja com base secular ou em
princípios religiosos. Temos de reconhecer também a experiência histórica
do século XX, durante o qual, em nome de um humanismo radicalmente
secular e maciço, terríveis atos de desumanidade foram cometidos em
130 uma escala ainda muito mais ampla. Ambas as ideologias políticas e
religiosas seculares não são, portanto, imunes contra esses crimes contra a
humanidade, mesmo em nome do progresso e aperfeiçoamento humano.
Aqui a noção de vulnerabilidade humana vem novamente como um pré-
requisito para qualquer moderno conceito de dignidade humana.
Com vistas a estabelecer a abertura discursiva destes elementos
básicos de um humanismo intercultural, é fácil de identificar pontos
de partida da crítica que pode ser dirigida contra todas as tradições do
pensamento antropológico, incluindo a tradição ocidental. A interrelação
discursiva das diferentes tradições humanistas expõem-nas para um ponto
de crítica abrangente e fundamental: seja explícita ou implicitamente,
o tratamento da diferença cultural permanece fortemente influenciada
pelo etnocentrismo até hoje. Todas as culturas compartilham padrões
de auto afirmação etnocêntrica à custa de outros, como a distinção entre
civilização e barbárie, e outras concepções semelhantes. É uma das tarefas

Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos


mais importantes da comunicação intercultural identificar e superar esse
etnocentrismo em todos os níveis possíveis12.

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12 Nota do Autor: Ver Rüsen, Jörn: “How to Overcome Ethnocentrism: Approaches to a Culture of
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132
Humanismo intercultural:
ideia e realidade1
Por que Humanismo?

Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos


Um dos desafios mais urgentes para a orientação cultural de hoje
consiste em lidar com diferentes tradições e visões do mundo no processo
de globalização. Há necessidade de encontrar princípios globais para
organizar a vida humana de acordo com as tendências globais em todas
as suas dimensões. Quase toda a gente se vê confrontada na sua vida
com problemas económicos, políticos, sociais e ambientais que exigem
soluções globais.
Simultaneamente, permanece o poder de se compreender e
interpretar tais problemas de diferentes formas. E essa necessidade está
até a aumentar dado que os padrões culturais universais de compreensão
do ser humano e do mundo, que perduram desde há muito, estão a perder
a sua plausibilidade. As principais tendências do pensamento ocidental,
que moldaram as características do mundo moderno, têm sido alvo de um
criticismo radical. Tradições alternativas têm ganho visibilidade e exigem
reconhecimento. O bem conhecido slogan “Provincializar a Europa"
(Dipesh, 2000) indicia o novo problema: onde se situa agora o império se
já não existe o Ocidente? Ora se uma província é uma parte de um império,
de outra forma o slogan não tem sentido. Existem alguns candidatos a este
império escondendo-se por detrás da esquina, mas ninguém sabe o que
eles trarão e se são capazes de carregar a responsabilidade de lidar com as
dimensões globais da vida humana na atualidade.
A dominação ocidental na vida intelectual, incluindo na vida
académica das Humanidades e Ciências Sociais, tem sido desafiada 133
radicalmente - mas que alternativas têm aparecido? O criticismo da
tradição ocidental de modernização e modernidade é universal e
totalmente aceite, senão até criado, no Ocidente (pelo menos os seus
bastiões são as universidades ocidentais). Mas quando tal criticismo ‘faz
o seu trabalho’, que modos de pensamento são capazes de substituir as
velhas ideias e ideologias da modernidade e o seu legado Iluminismo?
1 Traduzido de Inter Cultural Humanism – Idea and reality In: An Insatiable Dialetic. Cambridge
Scholars:2013. Tradução: Isabel Barca
O que nós precisamos para compreender o nosso tempo é de uma
mediação entre universalidade e peculiaridade no pensamento: uma
síntese de comunalidade e diferença na organização das nossas vidas.
Como poderemos nós manter as nossas peculiaridades de formação
identitária e, simultaneamente, contribuir pela nossa parte para a solução
de problemas que partilhamos com todo os seres humanos, não obstante
a sua alteridade quanto a tradições, atitudes mentais e modos de pensar, e
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos

em muitas outras dimensões da vida humana?


Para encontrar resposta a tal questão, não podemos simplesmente
deixar as nossas raízes e saltar das circunstâncias históricas preexistentes
nas nossas vidas e simplesmente abraçar uma nova postura intelectual
que nos possa colocar mais próximos dos outros. Temos de perceber
que algumas diferenças culturais têm causado uma força divisória na
comunicação intercultural: por tendências etnocêntricas no processo
cultural de formação da identidade, elas desempenham um papel
destrutivo, impedindo a compreensão transcultural e o trabalho
conjunto para encontrar uma resposta aos problemas urgentes do mundo
globalizado.
Isto leva-me ao tema do Humanismo. Durante muito tempo
o Humanismo foi intelectualmente considerado completamente
desatualizado: a sua destruição radical enunciada por Nietzsche, em teoria,
e o combate do Darwinismo social contra os efeitos do imperialismo e
das ideologias totalitárias, na prática, tiveram um efeito profundo. Os
comentários relevantes de Heidegger (1976)2 e Foucault (1974) podem
servir de exemplos esmagadores até aos nossos dias. Contudo, tal como
diz um provérbio alemão, “Totgesagte leben länger” (as pessoas declaradas
mortas vivem mais tempo), o Humanismo está a ganhar recentemente
uma importância crescente nos discursos intelectuais sobre orientação
cultural.3 O principal problema e ponto de partida é a questão de como
conjugar diversidade e diferença na vida humana, uma vez que tal está
134 obviamente a tornar-se mais forte devido à migração, aos efeitos da
comunicação por internet e às mudanças gerais na política e aos graves
conflitos religiosos? Como ultrapassar a força das tensões etnocêntricas
na compreensão intercultural? O Humanismo oferece uma resposta a esta
questão, e há uma razão simples para isso. A condição de ser humano é

2 Tradução para Português da versão inglesa em: “Letter on ‘Humanism”. In: M. Heidegger, 1998.
Pathmarks. Cambridge & New York: Cambridge University Press.
3 Um exemplo alemão: Nida-Rümelin, J., 2006. Humanismus als Leitkultur. Ein Perspektivenwechsel.
Munich: C.H. Beck.
comum a toda a gente; ela define a sua comunalidade e, ao mesmo tempo,
é realizada numa multiplicidade de formas de vida e das suas mudanças
históricas. É isto precisamente o que o Humanismo tem feito na sua
forma moderna: analisa o elemento comum da vida humana, os seus
valores e normas, e ao mesmo tempo reconhece a diferença e a variedade
como uma manifestação da natureza cultural da humanidade. Será que
a tradição do Humanismo pode ser revitalizada enquanto abordagem

Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos


para a orientação cultural, que possa ser capaz de sintetizar princípios
universais de conduta humana e formas peculiares de vida? Neste artigo,
tentarei dar uma resposta positiva a esta questão.4

O que é Humanismo?
a.Três Fases de Desenvolvimento Histórico
O conceito de Humanismo não está claramente definido. Tendo
emergido no Ocidente e influenciado as discussões não ocidentais
desde finais do século XIX,5 o seu significado diverge largamente.
Por conseguinte, torna-se útil apresentar um breve historial dos seus
desenvolvimentos. Três fases devem ser distinguidas: (i) as suas raízes
na Antiguidade clássica, (ii) o seu primeiro estabelecimento no início
da História Moderna, (iii) e a sua forma moderna desde finais do século
XVIII e início do século XIX, estreitamente relacionada com o movimento
intelectual do Iluminismo. A sua articulação moderna não se limita à vida
intelectual pois pode encontrar-se também nas Belas Artes.
(i) Na Antiguidade Clássica, sobretudo na Filosofia estoica, a maior
parte dos termos básicos do pensamento humanístico, como por exemplo
a noção de dignidade humana (dignitas hominis) e de lei natural (lex
naturae), estavam aplicados a cada ser humano. Não existia uma teoria
sistemática que combinasse esses conceitos numa ideia de natureza
humana e que pudesse ser utilizada em tempos posteriores. Apesar de 135
tudo, surgiram ideias altamente eficazes que mais tarde tiveram um papel
decisivo no pensamento humanístico (Cancik, 2011). Tais ideias tinham
um estatuto antirrealista ao colocar o valor da humanidade contra o valor
4 A minha argumentação baseia-se em várias publicações que são os resultados preliminares
do projeto de investigação “Humanism in the Era of Globalization – An Intercultural Dialogue on
Humanity, Culture, and Values”, desenvolvido no Institute for Advanced Study in the Humanities at
Essen, Germany, de 2006 a 2009, e financiado por Stiftung Mercator. Ver Rüsen, J and Henner, L. eds.,
2009: Humanism in Intercultural Perspective. Experiences and Expectations. Bielefeld: Transcript.
5 Um exemplo: Zhang, K., 2010. Inventing Humanism in Modern China. In: C. Meinert, ed., 2010. Traces
of Humanism in China. Tradition and Modernity. Bielefeld: Transcript, pp. 131-149.
da desumanidade na política e vida social. Na sua forma idealista, podia
ser usada para criticar formas de dominação política e de desigualdade
social. Não é de admirar que os revolucionários do final do século XVIII
tivessem desenvolvido no seu imaginário visões de uma vida nova e
humana e fizessem uso intensivo dos símbolos da República romana.
(ii) O humanismo moderno inicial, que surgiu nos séculos XIV e
XV em Itália e se espalhou por toda a Europa, tinha como referência a
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos

Antiguidade Clássica e assim entrou na consciência intelectual das elites


instruídas. Tais referências abriram um novo espaço para os discursos
intelectuais, que tomaram a forma de disciplinas especializadas, as
humaniora (antepassadas das disciplinas académicas das Humanidades)
centradas em torno da filologia. Eram cultivadas por um novo tipo de
intelectuais, os humanistas – pessoas com competências de interpretação
do legado literário da Antiguidade. A sua figura representativa foi Erasmo
de Roterdão (1465-1536). O discurso dos humanistas permaneceu no
contexto da Cristandade, mas dentro desse contexto cresceu um modo
liberal de argumentação, contra o dogmatismo escolástico. O melhor
exemplo deste novo espaço para os discursos liberais foi a luta dos
humanistas iniciada por Johannes Reuchlin (1455-1522) contra a tentativa
da Igreja de estabelecer uma corrente anti-judaica na sua doutrina oficial
e de criar, de acordo com isto, tribunais da Inquisição na Alemanha
(Reuchlin, 1511).
(iii) Por último, o Humanismo moderno emergiu no final do século
XVIII e início do século XIX. Era formado essencialmente por uma revisão
geral dos conceitos básicos da compreensão do mundo humano.6 Situava-
se no movimento do Iluminismo tardio e apresentava a ideia da natureza
cultural da humanidade, o que originou novos tipos de pensamento
histórico, político e educacional (pelo menos em parte), e que ainda
permanece enquanto tradição nas humanidades, quer o ensino superior
quer a cultura política. Foi aqui que pela primeira vez na Alemanha
136 encontrámos o termo “Humanismus" (Cancik e Vöhler, 2009). Referirei
sobretudo o caso alemão, mas as suas ideias principais encontram-se por
toda a Europa.7

6 A melhor documentação sobre esta mudança encontra-se na enciclopédia Geschichtsliche


Grundbegriffe. Brunner, O. Conze, W. and Koselleck, R. eds., 1971-1997. Geschichtliche Grundbegriffe.
Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland. 8 vols. Stuttgart: Klett-Cotta
Stuttgart.
7 O caso francês é apresentado de forma brilhante por Todorov, T., 2002. Imperfect garden. The legacy
of humanism. Princeton: Princeton University Press.
b) Principais Tendências durante a História Moderna
Irei analisar este humanismo moderno como ponto de partida do
contributo ocidental para a discussão intercultural sobre as oportunidades
e os limites do Humanismo na crise de orientação atual. Mas primeiro
apresentarei uma descrição de tipologia ideal deste humanismo. Gostaria
de apresentá-lo como resultado de um desenvolvimento histórico
complexo no Ocidente. À luz deste desenvolvimento, uma explicação

Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos


mais sistemática tomará a forma de experiência histórica, indicando assim
os problemas da sua perspectiva futura. Para apresentar o humanismo
ocidental desta forma, gostaria de distinguir nove tendências diferentes,
cada uma das quais se encontra relacionada com todas as outras de forma
muito complexa.8
A primeira tendência consiste na antropologização dos procedimentos
de orientação cultural. É o Homem – ele e ela – que faz sentido do mundo.
Isto vai a par com a segunda tendência, nomeadamente a secula­
rização. Os princípios culturais da vida prática têm um estatuto de
foro íntimo (como resultado de guerras muito duras e sangrentas entre
diferentes correntes cristãs, que culminaram na Guerra dos Trinta Anos
na Europa central [1618-1648] e que causaram a perda de cerca de 30%
da população alemã).
Uma terceira tendência consiste na universalização da humanidade em
todas as culturas e tempos diversos. Esta universalização tem-se realizado
graças a um conhecimento crescente da variedade e mutabilidade das
formas de vida humana. Ela contém uma dimensão empírica e normativa:
empiricamente ela cobre toda a experiência histórica e antropológica,
e normativamente atribui valores básicos a todos seres humanos (em
princípio).
Numa interrelação muito dialética, a Humanidade tornou-se ao
mesmo tempo naturalizada e idealizada. O corpo humano podia ser
tratado como parte da natureza, enquanto que a mente humana era
137
diferenciada estritamente da natureza ao atribuir-lhe uma qualidade
não natural ou, até, sobrenatural. Na língua alemã, esta qualidade foi
conceptualizada com os termos “Geist". “Geist" significava síntese da
mentalidade e espiritualidade, com a força criativa de fazer emergir o
mundo humano como essencialmente diferente da natureza. Ela é a força
essencial de toda a atividade cultural e dos seus resultados na variedade da

8 Para mais detalhes, ver Rüsen, J. and Jordan, S., 2008. Mensch, Menschheit. In: F. Jaeger, ed., 2008.
Enzyklopädie der Neuzeit. Vol. 8: Manufaktur-Naturgeschichte. Stuttgart: Metzler 2008, col. 327-340.
vida humana no espaço e no tempo.
Esta variedade recebeu a sua forma cognitiva específica por meio da
historização, que foi fundamental. A Humanidade foi colocada no quadro
do desenvolvimento universal dentro do qual a unidade dos humanos se
realiza através da diversidade de culturas.
Assim, a Humanidade tornou-se individualizada. Cada pessoa
singular e cada comunidade social eram entendidas como manifestação
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos

única da Humanidade. O procedimento cognitivo de compreender as


diferenças, que dominou as regras metodológicas de investigação nas
Humanidades emergentes, baseia-se nesse princípio de individualização.
Uma tendência específica moldou a articulação e recepção das Belas
Artes. Através da estetização ela alcançou um lugar e função especial na
dimensão cultural da vida humana, libertando o poder da imaginação
de todos os constrangimentos e limites. A compreensão da vida humana
veio finalmente dar ênfase às suas potencialidades. A natureza cultural
dos humanos não é fixa, mas sim uma questão de desenvolvimento e
mudança. Por isso, educar os seres humanos como processo de cultivá-
los para a sua própria humanidade faz parte dos elementos essenciais
do humanismo moderno. É sintomático que na língua alemã o termo
“humanismo” tenha emergido na esfera pública como título de um livro
sobre educação (Niethammer, 1808).
Como resultado destas diferentes tendências e da sua inter-relação
complexa e até mesmo conflituosa, desenvolveu-se a ideia de humanidade
humanizada, representada por cada pessoa singular e também por cada
comunidade social. O Humanismo nada mais é do que uma forma
elaborada desta ideia.

O Conceito Moderno de Humanismo


Numa perspectiva mais sistemática de Humanismo, este pode
138 ser descrito como um padrão de pensamento acerca das diferentes
dimensões da vida humana e da sua regulação cultural. Este padrão
baseia-se numa argumentação antropológica centrada no princípio da
dignidade humana. As duas problemáticas - antropologia e dignidade
– foram claramente articuladas por Immanuel Kant, ao afirmar que em
cada orientação cultural da vida humana há três questões básicas que têm
de ser respondidas: O que posso eu saber? O que devo eu fazer? O que
posso esperar? E ele acrescentou – numa expressão típica do pensamento
moderno – que todas estas três questões podem ser resumidas numa
única e decisiva questão: O que é o ser humano (Kant,1800, p. 29)? De
acordo com Kant, a resposta a esta questão tem de reconhecer a qualidade
cultural fundamental de cada ser humano: ele ou ela é sempre mais do que
apenas um meio para os propósitos dos outros, é sim um propósito para si
mesmo. Kant denominou como dignidade humana este “ser um propósito
para si mesmo” (em alemão: Selbstzweckhaftigkeit).9

Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos


Com base neste humanismo antropológico, existe um necessário
fermento espiritual e mental da sociedade civil baseado culturalmente
em valores universais seculares, como liberdade de expressão, estado
de direito, igualdade perante a lei, pluralismo religioso num quadro de
moralidade universal, representação dos dominados nas instituições
dominantes, etc. Assim, o humanismo tem uma dimensão política. Ele
critica formas feudais de dominação política e de vida social e coloca
a dominação política submetida a leis sobre direitos humanos e civis.
O Humanismo é claramente oposto e dirigido contra qualquer forma
autoritária de dominação política.10 Na sua dimensão social o Humanismo
exige igualdade civil, contra a superioridade da nobreza e, mais tarde (na
sua particularidade socialista), contra qualquer tentativa de opressão
social.
Na sua dimensão intelectual, o Humanismo sustenta a ideia de
humanidade que vai de encontro à sua própria universalidade empírica
e normativa, dentro e através da diversidade e mutabilidade cultural.
Portanto, ele promove as categorias de historicidade e de individualidade
na compreensão do mundo humano. Com estas categorias, ele molda o
trabalho académico das Humanidades e as suas estratégias hermenêuticas
para compreender a diversidade cultural e a mudança histórica sob
a forma de processos cognitivos de investigação metodologicamente
regulados. Nesta dimensão, o Humanismo opõe-se fundamentalmente a

9 “O homem como pessoa, isto é, como sujeito da razão moralmente prática, é exaltado acima de
139
qualquer preço. Com esta individualidade (homo noumenon), ele não é valorizado simplesmente
como um meio para os fins de outras pessoas ou até para os seus próprios fins, mas existe para ser
apreciado como um fim em si próprio. Isto significa que ele possui dignidade (um valor intrínseco
absoluto) pelo qual ele merece o respeito de todos os outros seres racionais do mundo, pode avaliar-
se em relação a cada membro da sua espécie e pode considerar-se a si próprio em pé de igualdade
com todos eles." Kant, I. 1797. Metaphysik der Sitten, A 93 (tradução inglesa: http://praxeology.net/
kant7.htm; 9.5.2011])
10 No caso alemão, isto encontra-se documentado de forma paradigmática no manifesto político de
Wilhelm von Humboldt: zu einem Versuch, die Gränzen der Wirksamkeit des Staats zu bestimmen
de 1792 (tradução inglesa: Humboldt, W. v., 1854. The Sphere and Duties of Government [The
Limits of State Action]. London: John Chapman.) [http://oll.libertyfund.org/index.php?option=com_
staticxt&staticfile=show.php%3Ftitle=589&Itemid=99999999; 9.5.2011])
qualquer forma de dogmatismo e favorece a livre e ilimitada expressão
de pensamento como meio de discutir quaisquer assuntos de interesse
comum.11
Pela sua antropologia, o Humanismo tem um forte impacto na
Educação, num sentido lato de auto-cultivação humana ("Bildung").
Qualquer pessoa deve ter oportunidade de desenvolver as suas capacidades
de forma holística e, portanto, ele ou ela representa a criatividade cultural da
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos

mente humana, numa manifestação individual sob condições específicas


da sua vida. A Educação humanística opõe-se a qualquer utilitarismo
que instrumentalize o desenvolvimento humano, ao valorizar a utilidade
social como sendo essencial para criar uma personalidade independente.
Por fim, não se deve esquecer que o Humanismo teve uma relação
especial com as Belas Artes: ela existe no seio de uma autonomia ilimitada
de liberdade de expressão contra regras de formação previamente
estabelecidas, dependentes de interesses políticos e socais. As Belas
Artes ganham assim um lugar cultural na vida humana como condição
necessária para realizar a liberdade humana e a auto-realização.12
Este humanismo é um campo de ideias multifacetado. Mas o que dizer
da realidade? Ninguém pode negar que, em muitos países - sobretudo
no Ocidente, mas não só - se estabeleceu uma forma da sociedade
civil com elementos humanistas, como por exemplo, o princípio da
dignidade humana. Esta forma de vida tem os seus limites e encontra-
se permanentemente ameaçada por falta de bom senso. Mas em geral, é
evidente que existe uma atração por ela em todo mundo e, na prática,
vê-se que o seu impacto está a alargar-se. O humanismo político tem
sido plasmado em muitas constituições modernas, nas suas referências
aos direitos humanos e civis. A humanização da dominação política
tem sofrido muitos recuos e perversões mas, apesar de tudo, pode-
se observar uma tendência histórica geral quanto ao seu alargamento
e aprofundamento. Logo desde o início, o humanismo social teve de
140 confrontar a sua ideia de igualdade civil com as novas formações de classe
e as fortes tendências de limitarem o usufruto das classes inferiores aos
benefícios da sociedade civil como, por exemplo, a novas instituições de

11 Apesar de criticar radicalmente a forma ocidental de compreender as diferenças culturais, Edward


Said saudou o Humanismo (que, na verdade, é um pressuposto para a sua crítica): Said, E., 2004.
Humanism and Democratic Criticism. New York: Columbia University Press.
12 Na tradição humanista alemã, isto está documentado de forma paradigmática nas cartas sobre
a cultura estética da humanidade, de Friedrich Schiller (Ueber die aesthetische Erziehung des
Menschen in einer Reyhe von Briefen 1795, Stuttgart: Cotta (tradução inglesa: On the Aesthetic
Education of Man in a Series of Letter [http://www.bartleby.com/32/501.html; 9.5.2011])
Educação. Um problema específico da igualdade social foi excluírem as
mulheres de direitos políticos e de independência social; mas, a longo
prazo, a sociedade civil está a ultrapassar a relação desequilibrada entre
sexos. Um outro problema específico emergiu do princípio humanista de
individualismo: muito facilmente isto poderá levar a um enfraquecimento
da responsabilidade e solidariedade social e, portanto, esse princípio
tem de ser complementado essencialmente com o reconhecimento da

Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos


dimensão intersubjetiva da personalidade humana.
O humanismo intelectual tem-se estabelecido no seio da constituição
teórica e metódica das Humanidades e Ciências Sociais – contanto que
elas trabalhem com a hermenêutica enquanto estratégia cognitiva para
lidar com a diversidade e a diferença cultural. Os seus princípios de
reconhecimento das diferenças têm de lutar contra o viés nacionalista.
E numa perspectiva intercultural tem de ser aplicado e reforçado ainda,
contra tendências etnocêntricas na formação da identidade cultural.
O Humanismo educacional entrou finalmente na educação superior
mas, ao mesmo tempo, estabeleceu limites no acesso social. Isto é evidente
no caso do ensino secundário humanístico na Alemanha. Mas não foi só
neste país que as atitudes elitistas foram confrontadas com abordagens
universalistas de Educação para todos. A ideia de centrar a Educação em
torno do princípio de personalidade livre continua ainda sob pressão, em
nome da utilidade social.

Limites do Auto-Criticismo
Gostaria de trazer a tradição humanista ocidental à atual discussão
intercultural acerca de como lidar com o desafio da globalização,
ao nível dos princípios de orientação cultural que sejam válidos ao
nível transcultural. Para tal, é necessário aguçar a nossa visão sobre os
seus limites e realizar o seu auto-criticismo. Embora tenha já indicado
anteriormente alguns deles, eles devem ser listados de um modo mais 141
sistemático:
Política e socialmente, o humanismo moderno tem o seu limite no
problema insolúvel de assegurar um estatuto social para se ser membro
da sociedade civil de pleno direito. Sem um estatuto social da pessoa que
ganha a sua vida, todas as vantagens de dignidade humana não podem
evoluir completamente. Adicionalmente, o Humanismo moderno tem de
enfrentar o perigo da desigualdade social crescente, e, como consequência,
uma dissolução do bom senso.
Intelectualmente, o Humanismo moderno encontra os seus limites
(a) por não estar suficientemente consciente da desumanidade humana,
(b) pela sua relação ilusória com a Antiguidade clássica, (c) por manter
elementos etnocêntricos na sua ideia de Humanidade e História universal,
(d) por um conceito limitado de razão, e (e) pela relação altamente
problemática entre humanos e natureza.
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos

Estes cinco pontos necessitam de uma breve explicação:13


a) O Humanismo clássico está consciente das potencialidades
de cada ser humano se tornar desumano, suprimir, subjugar,
instrumentalizar e desumanizar outros seres humanos. No quadro
da antropologia e teoria da história idealista, este potencial de
desumanidade foi negligenciado não tendo sido, portanto, tomado
em conta de forma sistemática. Os seus seguidores acreditavam
no progresso como um processo de longa duração humanização
das condições de vida humana. Herder (1784-91, pp. 588f.), por
exemplo, afirmou na sua Filosofia da história:
“O curso da história demonstra que, pelo crescimento de uma
humanidade autêntica, os demónios destrutivos da raça humana
foram realmente diminuídos.
Após os crimes contra a humanidade que culminaram no Holocausto,
que deu ao século XX a sua assinatura histórica, tal otimismo tornou-
se impossível. Só um humanismo que possa enfrentar o desafio destes
crimes e encarar a face do Holocausto pode ser viável para uma
orientação da vida humana dirigida para o futuro (Rüsen, 2008).

b) O Humanismo clássico teve de demonstrar que a sua ideia de


humanidade era realista. Tal foi feito por uma referência básica
à Antiguidade clássica. Os humanistas do final do século XVIII
e início do século XX acreditavam que nesse tempo específico
142 – sobretudo na Grécia clássica – tinha sido alcançado o pleno
desenvolvimento das ideias sobre a forma de vida humana.14
Sabemos que tal não aconteceu, e que a razão histórica para a

13 Na apresentação seguinte, recorro a uma parte de um texto para publicação (Temporalizing


Humanity – Towards a Universal History of Humanism. In: Rüsen, J., Spariosu, M. and Zhang, L.
eds., 2011. Exploring Humanity – Intercultural Perspectives on Humanism. Bielefeld: Transcript
[forthcoming]).
14 Encontra-se um exemplo em Humboldt, W. v., 1807. Über den Charakter der Griechen, die
idealische und historische Ansicht derselben. In: A. Flitner and K. Giel, eds., 1961. Werke in fünf
Bänden. Vol. 2: Schriften zur Altertumskunde und Ästhetik. Die Vasken. Darmstadt: Wissenschaftliche
Buchgesellschaft, pp. 65-72.
concretização do humanismo era uma grande ilusão.
c) O conceito humanista clássico de uma História universal
pretendia dar espaço às diferenças culturais no curso da história
sem o preconceito da superioridade ocidental. Contudo, este
humanismo tinha de se colocar a si próprio no curso da história, e
ao faze-lo não conseguiu evitar privilegiar a civilização ocidental,
embora o seu criticismo do imperialismo ocidental seja evidente,

Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos


principalmente no pensamento de Herder. E se lançarmos um
breve olhar à caracterização dos Africanos na antropologia desse
tempo (por exemplo, na antropologia de Kant), podemos ver uma
parte de etnocentrismo que, com efeito, ainda existe.
(d) O pós-colonialismo trouxe um criticismo radical do conceito
ocidental de razão. Essa corrente interpretou tal conceito como
um meio de dominação, subjugando todas as outras formas
de vida intelectual, que seguiram diferentes ideias de mente e
espírito humano. O Humanismo clássico usou o conceito de
razão mas não reproduziu simplesmente a atitude de governar o
mundo inerente ao conceito moderno de razão. Em vez disso, o
Humanismo atribuiu-lhe um potencial hermenêutico abrindo-se
assim a uma nova consciência da variedade e diferença das formas
de vida humana. Contudo, está ainda aberta a questão sobre se
este potencial de compreensão é realmente livre em relação a
qualquer vontade de dominação, e se ele abre suficientemente um
espaço para o reconhecimento dessas formas de vida humana que
não estejam comprometidas com este tipo de razão.
(e) Um aspecto do carácter problemático do conceito ocidental de
razão encontra-se no seu modo de moldar a relação humana
com a natureza, que é uma forma de dominação incondicional.
Atualmente, tornaram-se evidentes as consequências catastróficas
desta relação. O Humanismo ocidental não confirmou ou
legitimou completamente esta atitude de dominação. Além disso, 143
a sua ideia da relação humana com a natureza tem-se mostrado
bastante vaga. Na penumbra desta ambiguidade, o Humanismo
ocidental tradicional tem provado ser incapaz de desenvolver uma
ideia acerca de como é a relação entre o ser humano e a natureza
(Rüsen, 2006).
O desenvolvimento intelectual no ocidente após o processo
da modernização mostrou uma renúncia progressiva à tradição do
Humanismo embora haja várias tentativas para a sua renovação. O
representante mais proeminente desse anti-humanismo é Friedrich
Nietzsche. Essa renúncia culminou na ideia de que o homem se torna
subjugado sob o efeito quer de não instâncias – ou de super instâncias
como o super-homem – quer do “ser”, ou de estruturas anónimas da vida
social ou mental. Isto foi o fim do movimento antropológico; o homem
‘descentrou-se’ do interesse filosófico de compreender o mundo.
Na política podemos observar correntes similares de enfraquecimento
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos

e descrédito da tradição de Humanismo: Houve, talvez, apenas um fraco


protesto contra o poder de movimentos políticos desumanos como o
fascismo e o comunismo. Pelo contrário: o comunismo até podia invocar
a tradição do humanismo e subscrever o “humanismo real” para a
supressão e aniquilação de formações e movimentos sociais que não se
enquadravam na sua ideia de progresso histórico (Scherrer, 2011).
Nos tempos mais recentes, dois movimentos intelectuais contribuíram
substancialmente para a marginalização e dissolução do Humanismo: a)
o pós-modernismo negou qualquer abordagem aos valores universais, e
b) o pós-colonialismo acusou a ideia ocidental moderna de legitimar a
destruição de países não ocidentais. O Humanismo tem sido criticado
como um meio para dominação política e de roubo da dignidade e
autodeterminação aos outros povos e culturas. (será outra questão ainda
ver se este criticismo fez ou não uso de princípios humanistas, confirmando
assim o Humanismo no seu movimento contra ele próprio). Por fim, o
sucesso fascinante da investigação biogenética e do cérebro apoiaram uma
nova tentativa de substituir os modos de pensamento centrados na cultura
(que incluem, evidentemente, o humanismo) por modos de pensamento
centrados na natureza.

Uma nova abordagem com um propósito


144 intercultural
Qualquer abordagem para revitalizar o Humanismo ligado a um
novo tipo de compreensão intercultural, tem de começar com uma atitude
claramente distanciada: Não se pode usar o paradigma humanista ocidental
sobre a humanidade na sua peculiaridade histórica como parâmetro de
comparação intercultural, e tão pouco se pode olhá-lo como um objetivo
de perspectiva futura de comunicação intercultural. Isto seria um erro
quer epistemológico quer político. Tal iria apenas apoiar as suspeições
não ocidentais de continuação do domínio intelectual pelo Ocidente e,
portanto, não poderia levar a um consenso transcultural sobre valores
essenciais e princípios quanto à compreensão da natureza cultural do ser
humano, que é comum mas que tem também o poder de ser diferente.
Contudo, por outro lado, a ética do Humanismo ao nível dos
princípios – e não tanto sobre o nível da experiência histórica no plano
do uso prático – pode ser compreendida como uma solução de síntese da
comunalidade e diversidade da humanidade, e que poderá ir de encontro

Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos


ao problema de orientação cultural desafiado pela globalização. Em muitos
países ocidentais e, também, não ocidentais, estabeleceram-se elementos
básicos desta ética nas formas de vida da sociedade civil, e onde diferentes
tradições podem ser vividas pacificamente pelos seus seguidores. A
universalidade da dignidade e ideias correspondentes sobre a vida
humana e a humanidade pode ser adaptada a contextos historicamente
diferenciados. Nisto essas ideias podem provocar uma atração mental e
espiritual por contribuírem para tendências de humanização dos humanos
em todas as dimensões das suas vidas práticas. Os princípios humanistas
não são, evidentemente, um privilégio da história ocidental. Eles podem
encontrar-se e reforçar-se também em muitas outras tradições (Meinert
e Zoellner, 2009; Huang, 2010; Meinert, 2010; Longxi, 2010; Reichmuth,
Rüsen e Sarhan, 2010).
Perante este facto histórico tem de se levantar a seguinte questão: O
que faz manter estas diferentes tradições em conjunto sem dissolver a sua
diversidade? A resposta a esta questão é atualmente um dos assuntos mais
urgentes para as Humanidades e Ciências Sociais.
Gostaria de propor uma dupla estratégia: (a) pela decomposição
do paradigma ocidental em elementos particulares – que nós podemos
encontrar em qualquer lado – em diferentes constelações de culturas
específicas; (b) por um quadro conceptual de integração desta variedade
de abordagens humanistas em relação à vida prática. Tal conceptualização
não dissolveria a variedade de manifestações culturais dessas abordagens
em favor de uma única ideia universal, antes pelo contrário, manteria 145
todas elas pela sua integração. Para este propósito, necessitamos de uma
nova Filosofia da história que, ao mesmo tempo, abra espaço ao pluralismo
histórico e vá de encontro à unidade da humanidade:
(a) Os elementos básicos duma visão humanista, listados a seguir,
devem ser considerados como contributos necessários para uma ideia
válida no plano intercultural, em termos de dar resposta à exigência de
criar uma síntese da unidade da humanidade e da variedade das suas
manifestações culturais no campo da experiência histórica:
– Uma posição excecional do ser humano como fonte de orientação
cultural, que inclui a ideia de dignidade essencial a qualquer ser
humano;
– Igualdade de cada ser humano quanto ao respeito pela sua
dignidade essencial;
– Uma referência fundamental à noção de alteridade no quadro
da compreensão da existência humana e da conceptualização da
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos

própria condição humana;


– Uma distinção clara entre o individual e o social na comunidade
em que cada um ou uma vive a sua vida;
– Uma relação do ser humano com uma dimensão exultante da vida,
entendida como ponto de referência para lá das circunstâncias e
condições prévias da vida prática;
– Um reconhecimento da mutabilidade das formas de vida humana
como oportunidade para se estabelecerem as condições da vida
humana;
– Uma ênfase na educação centrada na ideia de responsabilidade
moral e na capacidade de viver a sua própria vida de acordo com
valores universais;

(b) A variedade de formas de vida no tempo e no espaço pode ser


historicamente incorporada numa ordem que dê ênfase a esta unidade
e diferença, em simultâneo. A base para esta ordem são os universais
antropológicos. Estes são as raízes para o Humanismo na natureza
cultural da humanidade, e formam um quadro para a mudança temporal
e a diferença regional.
Gostaria de resumir esta antropologia cultural do Humanismo do
seguinte modo: 15
Em todas as culturas, e em todos os tempos e lugares do mundo, a
vida humana tem sido regulada moralmente por uma distinção clara entre
146 o bem e o mal, com os seus respetivos princípios de conduta humana. A
capacidade de tal distinção e aplicação à ação do ser humano16 pressupõe
uma certa ideia acerca do que significa ser um ser humano: os humanos
definem-se como pessoas; são indivíduos com uma continuidade física
15 Refiro-me principalmente a Antweiler, C., 2011. Mensch und Weltkultur. Für einen realistischen
Kosmopolitismus im Zeitalter der Globalisierung. Bielefeld: Transcript (tradução inglesa em
preparação).
16 ‘Human agency’, na expressão utilizada na versão inglesa, Esta expressão é usada no quadro dos
debates sobre epistemologia da História para acentuar a capacidade interventiva do ser humano
(agente) na sociedade [nota de Tradução].
e psíquica. Como tal, são responsáveis pelo que fazem ou falham – pelo
menos ao nível do quotidiano.
Esta responsabilidade equipa cada ser humano com a qualidade da
dignidade (numa expressão própria da nossa linguagem moderna). A
‘dignidade’ exige respeito e reconhecimento em todos os contextos sociais
da vida.
Essa ideia de uma qualidade moral substantiva de cada ser humano

Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos


baseia-se numa outra qualidade dos humanos antropologicamente
universal, nomeadamente a capacidade de mudar a sua própria perspectiva
de percepção e interpretação, ao considerar as perspectivas dos outros. A
ideia humanista da 'dignidade' do ser humano está antropologicamente
enraizada na capacidade humana de tomar decisões perante a tensão entre
o bem e o mal e na capacidade de empatia. Esta qualidade antropológica
exige formas de cooperação humana, que são importantes para a
organização social da vida humana em todas as diferentes culturas.
Fora destas raízes cresce a árvore da cultura humana com todos os
seus inúmeros ramos e folhas. Por conseguinte, a antropologia cultural do
Humanismo precisa de uma adição e complemento históricos para que
seja possível identificá-lo nas principais tendências da história universal.
A humanidade poderá então tornar-se finalmente na face da história. O
sumário filosófico de tal história universal é muito abstrato, mas penso
que é necessário para nos tornarmos abertos à riqueza da experiência
histórica e ao mesmo tempo para o propósito de dar a essa riqueza um
significado abrangente.
A história universal pode ser conceptualizada filosoficamente como
um processo de humanização da humanidade. Este processo é evidente e
pode ser facilmente tornado plausível a respeito da experiência histórica
por três períodos.
O primeiro período é o das sociedades arcaicas, que são as mais
antigas. No quadro de uma Filosofia da história humanista, elas podem
caracterizar-se genericamente pela sua definição cultural do que é ser 147
humano, nomeadamente: só as pessoas da sua própria comunidade têm
essa qualidade. Os povos que vivem para lá da sua própria esfera de vida
não são percebidos como humanos, falta-lhes elementos essenciais da
humanidade que é própria de si mesmo.17
O segundo período é o das sociedades de tempo axial. A expressão
‘tempo axial’ implica uma mudança fundamental na visão humana do
mundo.18 Essa mudança de visão acontece a par com mudanças também
nas outras dimensões da vida humana, evidentemente. Considerando
todos estes desenvolvimentos em conjunto, pode-se falar da nova forma
de vida designada como ‘civilizações avançadas’. Elas floresceram em
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos

diferentes tempos e em diferentes lugares (mas aproximadamente entre


600 A.C e 600 D.C.). Enquanto formas de vida partilham elementos,
qualidades e fatores essenciais que definem a novidade histórica que
marca a sua época. Com o propósito de apresentar a minha argumentação,
a qualidade mais importante nesta mudança é a universalização da ideia
de humanidade. Então, não só o próprio povo de cada um é considerado
humano com as suas capacidades específicas, mas (principalmente) todos
os outros membros da raça humana são vistos como imbuídos também
dessa qualidade.
O processo evolutivo dos tempos axiais trouxe um aumento de
transcendência e subjetividade. Ambas conferem à humanidade um novo
molde. Na perspectiva do Humanismo este molde indica um aumento
de humanidade. A qualidade moral de ser humano torna-se humanizada.
Um exemplo característico é o Confucionismo e o seu princípio moral ‘ren’
(benevolência) (Huang, 2010; Meinert, 2010). A moralidade traz consigo
o seu próprio universalismo, expresso pela ‘regra de ouro’. Em ambos os
casos a humanidade quebrou os constrangimentos da etnicidade.19 Isto é
expresso em afirmações centrais de religiões de tempos axiais diferentes
(chamamos-lhe ‘religiões do mundo’ para caracterizar a sua nova
abordagem universalista). Na relação cristã entre o indivíduo singular e

17 Klaus E. Mueller caracterizou esta universalidade particular de exclusão sobre o ser humano nas
148 sociedades arcaicas com o termo “Eigenweltverabsolutierung" (estabelecer o seu próprio mundo
como absoluto). Müller, K. E., 1983. Einleitung. In: K. E. Mueller ed., 1983. Menschenbilder früher
Gesellschaften. Ethnologische Studien zum Verhältnis von Mensch und Natur. Frankfurt am Main:
Campus 1983, pp. 13-69, cit. p. 15.
18 A parte seguinte é baseada sobretudo no trabalho de Shmuel N. Eisenstadt. Eisenstadt, S. N., ed.,
1986. The Origins and diversity of axial age civilizations. Albany: State University of New York Press;
ver Arnason, J. P. Eisenstadt, S. N. e Wittrock, B., eds., 2005. Axial Civilisations and World History.
Leiden: Brill 2005; Kozlarek, O. Rüsen, J. e Wolff, E., eds., 2011. Shaping a Human World – Civilizations,
Axial Times, Modernities, Humanisms. Bielefeld: Transcript (no prelo).
19 É importante notar que ‘evolução’ não significa que formas mais antigas de orientação cultural se
dissolvam e desapareçam. Elas permanecem com diferentes manifestações, incluindo em vastas
regiões do subconsciente, mas o seu lugar no quadro cultural muda. A etnicidade nos tempos
modernos, por exemplo, é diferente da etnicidade nas sociedades arcaicas.
Deus todas as diferenças entre os homens se esvaem;20 e é possível dizer
que matar um único ser humano desafia a humanidade em geral.21
O terceiro período é o da modernização e globalização. A passagem
para a modernidade, que aconteceu por todo o mundo, desenvolveu-se sob
a forte influência da cultura ocidental mas, acima de tudo, ela foi praticada
de forma diferenciada e, portanto, foi mais do que um simples processo
de ocidentalização. Para descrever este processo, deve-se seguir a proposta

Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos


de Shmuel Eisenstadt (2000) – um dos representantes mais proeminentes
da teoria do tempo axial – e falar de “modernidades múltiplas" em vez de
uma única modernidade unificadora (Sachsenmaier and Riedel, 2002). Isto
pode ser pensado ao nível da Filosofia da história uma vez que a mudança
para esta época é uma mudança na lógica do universalismo(múltiplo) já
alcançado na compreensão da humanidade. Penso que podemos identificar
muita evidência factual e teórica em relação ao caráter específico da
humanidade como uma mudança radical de universalismos exclusivos para
inclusivos em termos de compreensão da humanidade.
Ainda não está claro um paradigma consolidado e abrangente
deste humanismo inclusivo, mas alguns dos seus elementos já podem
ser identificados. Uma dimensão universalista na compreensão da
humanidade já foi estabelecida na época anterior de tempos axiais, e não
vejo quaisquer razões para desistir dela em favor de qualquer tipo de
relativismo (o Relativismo pode ser útil só para criticar universalismos
dogmáticos perante o processo de globalização; mas seria uma rendição
intelectual no choque de civilizações. Apoiando-o iria entregar ao jogo do
poder da política todos os esforços para resolver tensões interculturais).
Mas o que dizer acerca do problemático caráter inclusivo deste univer­
salismo? Como pode a lógica de exclusão historicamente preexistente
mudar para uma outra totalmente oposta? Podemos encontrar sinais e
exemplos de um processo histórico de estabelecimento de universalismos
inclusivos na conceptualização e compreensão da humanidade. No
meu ponto de vista, uma das indicações mais fortes desta situação é o 149
Humanismo moderno ocidental e o interesse crescente sobre os seus
resultados positivos. Embora este Humanismo tenha lacunas atrás
listadas, os seus grandes méritos não podem ser desprezados: ele trouxe

20 O mais característico são as palavras de S. Paulo: “Não há nem Judeu nem Grego, nem escravo ou
livre, nem homem ou mulher, pois todos somos um em Jesus Cristo" (Gal. 3,28).
21 Ver o Corão, 5,32: “Nós decretamos para os Filhos de Israel que quem matar um ser humano por algo
que não seja homicídio ou corrupção na terra, seja como se ele tenha matado toda a humanidade, e
o que salvar a vida de um seja como se ele tenha salvado a vida de toda a humanidade.”
ideias de inclusão que poderão ser aceites no plano intercultural.22 Mas
isto apenas marca um início de um modo comum de estar com todos
os limites e insucessos que todos agora conhecemos. É uma questão de
comunicação intercultural na atualidade ver se estes insucessos e lacunas
podem ser ultrapassados e como a ideia inclusiva de humanidade pode
aproveitar tradições não ocidentais e suas aplicações a problemas de
orientação cultural atualmente efetivamente partilhados por toda a gente.
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos

Bibliografia
Antweiler, C., 2011. Mensch und Weltkultur. Für einen realistischen
Kosmopolitismus im Zeitalter der Globalisierung. Bielefeld: Transcript (Tradução
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Cancik, H., 2011. Europa – Antike – Humanismus. Humanistische Versuche
und Vorarbeiten. Edited by Hildegard Cancik-Lindemaier. Bielefeld: Transcript
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Eisenstadt, S. N., ed., 1986. The Origins and diversity of axial age civilizations.
Albany: State University of New York Press.

22 Ver os contributos de Dipesh Chakrabarty, Muhammd Arkoun and Longxi Zhang in Rüsen, J and
Henner, L. eds., 2009: Humanism in Intercultural Perspective. Experiences and Expectations.
Bielefeld: Transcript.
Foucault, M., 1974. The Order of Things. An Archaeology of the Human Sciences.
New York: Pantheon.
Heidegger, M.: Brief über den "Humanismus". In: Gesamtausgabe, 1976. I.
Abteilung: Veröffentlichte Schriften 1914-1970. Vol. 9: Wegmarken. Frankfurt am
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Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos


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Humanismo na era da
globalização: ideias sobre
uma nova orientação

Humanismo na era da globalização: ideias sobre uma nova orientação cultural1


cultural1
O objetivo do estudo não é mais do que humanidade. Humanidade é a
virtude pela qual o Céu participa em nós próprios.
Cui Shu2

É necessário um novo tipo de Humanismo


Uma das tarefas intelectuais mais importantes atualmente consiste
no desenvolvimento de um novo tipo de Humanismo. Os atuais conflitos
globais na política, economia, cultura e religião exigem fortemente a
definição e reforço de uma cultura global de valores e humanidade.
O fundamentalismo e o terrorismo, assim como a fome, a pobreza e a
miséria em muitas partes do mundo fornecem bastante evidência quanto
a essa necessidade. A ausência de equilíbrio nas estruturas económicas,
a vontade insuficiente para implementar princípios de boa governança
por parte de muitos regimes, além de poderosas tensões sociais, requerem
novas e melhores respostas ao apelo para uma nova ordem; e precisam
igualmente que se estabeleça, em diálogo construtivo e intercultural, um
sistema de valores para que tal ordem possa ser aceite não só como nova
mas, também para este caso, construtiva. Torna-se igualmente necessário
desenvolver uma compreensão da humanidade na era da globalização que, 153
enquanto inclusiva de todas as civilizações, dê ênfase à sua particularidade
e diversidade. Esta compreensão deverá levar elementos normativos
de orientação cultural a todas as arenas de encontro e comunicação
intercultural. Uma vez que nós, enquanto seres humanos, partilhamos

1 Humanism in the Era of Globalization: Ideas on a New Cultural Orientation. Publicado originalmente
em: Humanism in Intercultural Perspective: Experiences and Expectations. Bielefeld: Trascript. 2009.
(Introdução ao livro). Tradução: Isabel Barca
2 Cui Shu: Lun Yu Yu Shuo. Citado em alemão por Quirin 1994: 389.
uma natureza comum e como esta natureza inclui as formações mentais
da cultura – que dão sentido e significado à vida humana – e porque esta
autoconsciência (‘humanness’) inclui os elementos normativos tal como
são praticados na vida, existe a possibilidade de se chegar a um acordo
sobre tal visão abrangente de orientação cultural, sem sacrificar quer as
identidades quer as alteridades.
Todas a tradições culturais incluem elementos humanísticos.
‘Humanístico’ significa simplesmente que, pelo facto de se ser uma
Humanismo na era da globalização: ideias sobre uma nova orientação cultural1

pessoa, se valorize em cada um a relação quer com os outros quer conosco


próprios. Contudo, estes elementos não são suficientes para enfrentar os
desafios envolvidos no traçar de normas universais válidas no processo de
globalização; porque, mesmo que eles tenham uma dimensão universal,
a sua validade está sobretudo limitada à da cultura dentro da qual essas
normas particulares se desenvolvem. As pessoas de outras culturas com
tradições diferentes poderiam hesitar em aceitá-las sem uma reflexão
crítica dentro de um sistema de valores universal.
Após os acontecimentos traumáticos de século XX, o Humanismo
europeu tradicional, com os seus elementos etnocêntricos óbvios,
sofreu um forte criticismo pelo pós modernismo e pós colonialismo. No
Ocidente, foi principalmente substituído por uma forma de relativismo
cultural que não consegue resolver os problemas urgentes da comunicação
intercultural, e que se tornaram evidentes desde o incidente de 11 de
setembro.
Perante o desafio colocado pela globalização, a orientação cultural
no presente debate-se entre duas opções distintas: uma seria (e está a
chegar rapidamente) um choque de civilizações; a outra poderá ser o
desenvolvimento de um novo ethos transcultural, de reconhecimento
mútuo baseado em normas partilhadas de diálogo com o objetivo de
compreensão mútua.
Na civilização ocidental, o Humanismo foi sempre um assunto
154 central dentro das Humanidades; mas, tendo perdido a credibilidade
com o surgir de um intenso auto-criticismo levado a cabo pelos teóricos
pós-modernos e pós-coloniais, ele representará agora apenas um papel
insignificante se se mantiver a ideia de regresso a um estilo tradicionalista,
não viável para o futuro. Esta situação é altamente problemática uma vez
que existem requisitos a exigir o aparecimento de novos conceitos, viáveis,
acerca do que significa ser humano. E só por meio das Humanidades e
Ciências Sociais, e uma consequente esperança de que os seus argumentos
racionais levem a um acordo geral, será possível desenvolver tais conceitos.
O Papel de um novo Humanismo no
Choque de Civilizações
Atualmente, o debate intercultural é marcado pelo conceito
de civilização, que se relaciona estreitamente com diferentes tradições
culturais e coloca as civilizações mundiais em
relações superficiais entre si; são consideradas pelos seguidores de

Humanismo na era da globalização: ideias sobre uma nova orientação cultural1


Spengler e Toynbee como construções autónomas e independentes de
conceitos do mundo humano e de orientação da ação humana. Os seus
conceitos sobre o Homem são caracterizados por diferenças que não
podem ser sintetizados numa unidade. Todas as civilizações mundiais
desenvolvem conceitos universalistas sobre a humanidade, isto é,
conceitos que se afirmam como válidos para todas as pessoas. Estes,
contudo, revelam traços culturais específicos e, por isso, são diferentes
entre si. Ao nível do discurso conceptual, a relação entre as diversas
civilizações mundiais podem ser definidas como uma competição de
conceitos universalistas sobre a humanidade – sendo frequentemente
colocados uns contra os outros: o modo como nações não europeias em
particular (China, Índia, Japão, África, partes da América Latina) estão a
ganhar uma nova autoconfiança, para entrar nas tendências intelectuais
que a globalização representa, é um claro movimento contra o Ocidente
que dominou historicamente. Existe também, por parte destas sociedades,
uma tendência para se definirem e afirmarem contra o Ocidente em termos
culturais, e que é encorajada pelas correntes dominantes no discurso
intelectual ocidental; o Ocidente encontra-se envolvido numa penosa
autocrítica em que se afasta do seu humanismo universalista tradicional
para cultivar uma forma de relativismo cultural; está a cultivar uma forma
de relativismo cultural que abandonou esses padrões de humanidade
datados. Esta rendição do Ocidente caminha a par da relativização dos
insights no seio das Humanidades, que afirmam a sua validade universal; 155
e caminham também a par da perda da função de fornecer orientação
à sociedade. Juntamente com a atitude antiocidental de muitos países
não-europeus no seu processo de construção de identidade, essas
tendências criam uma atmosfera tensa. Ainda não existe um conceito
geral de comunicação a que diferentes tradições culturais e afirmações de
reconhecimento de cada identidade cultural possam recorrer.
Será que as diferenças de inter-relações podem ser reconhecidas no
base de um novo conceito de humanidade? A situação global do discurso
intercultural pede uma cultura onde tais diferenças sejam reconhecidas.
A tendência para o fundamentalismo nas religiões mundiais são a prova
mais do que suficiente desta necessidade.
Algumas formas de identidade cultural, no seu desenvolvimento
basicamente por oposição entre si, têm construído conceitos de
humanidade que vão para lá dos limites étnicos, nacionais ou mesmo
culturais. Ora em vez de usarem este universalismo uns contra os outros,
seria mais sensato integrá-lo num conceito geral de humanidade em que
Humanismo na era da globalização: ideias sobre uma nova orientação cultural1

as diferenças culturais fossem conceituadas como diferenciações internas


de uma ideia universal sobre a humanidade. Em teoria, o choque de
civilizações, no sentido de choque de diferentes identidades culturais,
seria então ultrapassado, tornando-se assim possível novas formas de
compreensão discursiva.
Tal projeto não pode ser realizado por meio de debates académicos
menores, pois precisa de ser delineado, tentado e desenvolvido num longo
processo de diálogo crítico entre representantes de diversas civilizações.

O Novo Humanismo e a Economia Global3


Considera-se frequentemente que a convergência cultural
constitui um fator relevante da globalização. Quem acredita nesta linha
de raciocínio sustenta uma conclusão, à partida, de que certas instituições
tais como os mercados de capital estão organizados segundo as melhores
práticas e, por isso, prevalecem na competição global devido à sua eficiência
avançada e crescimento. Um exemplo bem conhecido são os direitos de
propriedade intelectual. Sob a orientação da Organização Mundial do
Comércio (WTO) existe um processo de homogeneização, formalizada
por todo o mundo, que tem resultado em conflitos. Países como a China
são forçados a tomar medidas, a nível interno, contra atitudes culturais
divergentes em relação aos direitos de propriedade intelectual. Todavia,
156 está ainda em aberto a questão de tal convergência ser de facto uma
necessidade. Como se tem visto recentemente com os desenvolvimentos
da indústria de software, os direitos de propriedade intelectual podem
tornar-se irrelevantes à luz dos avanços tecnológicos dessa indústria. O
paradigma da livre fonte de informação torna-se então um fator cultural
per se, o que muda os critérios quanto à divergência e convergência

3 Os meus agradecimentos ao Prof. Carsten Herrmann-Pillath pelo seu apoio ao aplicar à Economia a
ideia de um novo Humanismo.
cultural. A tecnologia, como produto da cultura humana, passa a ser um
fator de divergência cultural no campo das economias nacionais. Este não
é mais do que um simples exemplo que mostra que a evolução do mercado
força a necessidade e, constantemente, cria a diversidade.
Ao nível das economias nacionais, também não se vislumbra uma
convergência com um dado padrão institucional: embora os países
escandinavos mantenham posições de topo no Índice de Competitividade
Mundial, tal não se aplica em países com mercados altamente liberalizados;

Humanismo na era da globalização: ideias sobre uma nova orientação cultural1


a China, um estado socialista, tem um sistema económico que se apoia no
Capitalismo de Manchester. Simultaneamente, a fundação cultural que
sustenta qualquer sistema económico torna-se cada vez mais transparente.
Os USA, como uma “referência institucional”, experimentam conflitos
culturais para os quais o revivalismo cristão tem constituído uma força
motora. E, ao nível do negócio, encontra-se um processo em curso de
complexidade semelhante: empresas ativas a nível global percebem
cada vez mais e mais que as inconstantes bases culturais em que as suas
unidades regionais estão fundadas geram problemas mas podem também
constituir-se como fonte de criatividade. Novas disciplinas, tais como
“gestão da diversidade”, estão a trazer esta multiplicidade ao nível do
individual.
Tais mudanças históricas resumem o problema explorado por aqueles
que consideram a integração do humanismo na política económica. É
óbvio que o mercado não é um meio para alcançar os seus próprios fins
mas, pelo contrário, recebe os seus objetivos de forças que agem fora dele.
Contudo, outros fatores que não os económicos colocam frequentemente
restrições à liberdade dos povos para escolher os seus próprios fins. É por
isso que um debate sobre o Humanismo enquanto ligado às economias
nacionais se torna inevitável neste aspeto. Além disso, o papel do
Humanismo quanto ao lugar do mercado global transcende os velhos
conflitos ideológicos, nomeadamente entre capitalismo e socialismo. É
um facto que o capitalismo dinâmico (“mercado livre”) contribuiu para 157
a prosperidade de pessoas cada vez em maior número. Contudo, há que
levantar as questões acerca de “porquê” e “para quê” essa prosperidade.
Até muitos economistas acreditam hoje que as raízes mais profundas da
dinâmica económica se encontram fora do próprio mercado. Conceitos-
chave tais como capital social apontam para o fundamento cultural dos
sistemas económicos – embora a cultura em si mesma não seja uma
mercadoria. Em vez disso, a cultura ganha força ao ser disseminada, por
se tornar um “bem de consumo público” que transcende os interesses
privados. O Humanismo, com o seu papel de ‘fermento’ nas economias
mundiais, chama a atenção para a exploração contínua das características
e do risco do capitalismo de mercado.
A força motora por detrás da política económica moderna advém
de uma mudança histórica: a de uma “economia moral” para a economia
de mercado; a das regras de mercado se terem tornado superiores aos
princípios de responsabilidade social. No texto do Manifesto Comunista
esta tendência foi colocada da seguinte forma:
Humanismo na era da globalização: ideias sobre uma nova orientação cultural1

A burguesia, onde quer que tenha conseguido dominar, destruiu


todas as relações feudais, patriarcais e idílicas. Rasgou sem piedade
todos os laços feudais que prendiam o homem aos seus “superiores
naturais” e não deixou qualquer outro laço entre as pessoas além
do seu interesse pessoal, o do insensível “pagamento a dinheiro”.
Ela afogou os êxtases sagrados do fervor religioso, do entusiasmo
cavalheiresco, do sentimentalismo filistino, na água gelada do cálculo
egoísta. Ela converteu a dignidade pessoal em valor de troca, e no
lugar das inúmeras liberdades pré-estabelecidas, colocou a liberdade,
única e inconcebível, do Comércio Livre.4

O capitalismo moderno pode ser entendido como um sistema


económico amoral. Atualmente, pode-se observar uma re-moralização:
ao nível da macroeconomia veem se por todo o mundo esforços para
enquadrar a economia de mercado num conjunto de regras políticas
e sociais que poderão domar a sua dinâmica em prol do bem da
maioria da população mundial. As políticas económicas foram sempre
contextualizadas política e socialmente; contudo, no processo da
globalização, transgrediram todas as fronteiras nacionais e parece que que
não há qualquer influência transnacional alternativa de conciliação com as
necessidades meta-económicas das pessoas cujas vidas são radicalmente
condicionadas pelas forças do mercado. Todavia, há uma consciência
158 crescente de que um sistema económico que siga exclusivamente as suas
próprias regras pode tornar se autodestrutivo; e, de acordo com este
criticismo, emergiu por todo mundo um esforço para ultrapassar este
“fundamentalismo de mercado” (George Soros) a favor de um “capitalismo
com face humana”5. Ao nível da administração empresarial, a importância
crescente da “responsabilidade social coletiva” como um fator de atividade

4 http://www.anu.edu.au/polsci/marx/classics/manifesto.html [24.08.2007]; texto alemão em: Marx/


Engels 1972: 464 ff .
5 A “Iniciativa do Plano Global de Marshall” é um exemplo paradigmático. Cf. Radermacher, 2004.
prática corresponde a esta tendência. No seguimento disto, o humanismo
pode tornar-se um fator cultural que abra novas perspectivas de prática
económica dentro do processo de globalização.

O Novo Humanismo e a Religião


A religião sempre representou um papel importante no processo de
construção das identidades culturais humanas. Hoje em dia, a religião

Humanismo na era da globalização: ideias sobre uma nova orientação cultural1


parece ser um obstáculo suficientemente preocupante ao desenvolvimento
de um sistema de valores universal de modo a alcançar alguma relevância
transcultural. O fundamentalismo religioso opõe-se de forma agressiva
a qualquer tentativa de estabelecer um Humanismo universalista como
princípio condutor da compreensão da diversidade cultural, dado que
a visão humanista caminha frequentemente a par de um modo de vida
secular. Mas mesmo para lá desta oposição entre religião e secularização,
a religião permanece um problema de comunicação intercultural. No
momento exato em que a crença religiosa se liga a afirmações de verdade
universal, ela está a negar todas os outros sistemas de crença considerados
não verdadeiros, invalidando assim quaisquer outras visões religiosas
em termos de natureza da verdade. A única solução parece consistir
em ultrapassar formas peculiares e específicas de fanatismo religioso, a
favor de uma moralidade universalista ou sistema ético (Küng, 1995).
Contudo, a religião não pode ser reduzida ou dissolvida na moralidade.
Ela permanece, juntamente com a sua própria lógica, dentro do domínio
da orientação cultural. Será que esta lógica leva inevitavelmente à exclusão
e negação: não poderá ela, perante a força das exigências humanistas,
reconsiderar a sua posição? Se este tipo de universalismo alcança uma
qualidade humanista, ela poderá mudar a sua relação com outros
universalismos; partir, portanto, da exclusividade para uma inclusão
universal.
159

Os Desafios Colocados pela Desumanização


A traumática experiência histórica dos crimes contra a
humanidade constitui o desafio mais radical ao novo Humanismo. Esses
crimes desfiguraram as características da história humana com enormes
e terríveis manchas, pondo radicalmente em causa quaisquer noções
humanísticas da história compatível com o pensamento histórico moderno
desde o Iluminismo e o seu subsequente historicismo e, também, com
muitas formas de ‘História nova’ nos séculos XX e XXI. Existem muitos
argumentos morais a favor da criação de um novo Humanismo que
resolva o problema da comunicação
intercultural no quadro da atual agenda de globalização. Mas
quão válida será a moralidade se isso não corresponder à história? Se a
impressão da desumanidade persistir, será o Humanismo apenas uma
visão utópica, incapaz de atacar os reais problemas da existência humana?
Humanismo na era da globalização: ideias sobre uma nova orientação cultural1

O Holocausto é um paradigma para esta desta desumanidade desafiante,


representativa na sua formulação mais radical. A resposta deverá surgir na
forma de um “novo” Humanismo que entreteça insights antropológicos
na fragilidade e falibilidade da vida humana com o desenvolvimento de
novas categorias de interpretação histórica - enquanto, em simultâneo, dê
ênfase ao impacto que o sofrimento humano tem no desenvolvimento e
potencial humano e na mudança de critérios de interpretação tradicional
para outros muito mais abertos (ver Rüsen, 2008b:191-200).
Finalmente, há que realçar outro desafio ao Humanismo: o poder
crescente de conceitos de naturalismo na atual vida intelectual. Ao falar-
se de “humanidade” como um princípio de auto compreensão humana
e como m guião para a vida prática, o Humanismo realça qualidades
culturais dos povos civilizados como sendo essencialmente diferentes de
um estado da natureza, diferente, portanto, de todas as outras espécies no
mundo visível.
Herder expressou esta “natureza” trans-natural da humanidade
ao dirigir-se aos seus colegas como sendo Freigelassene der Schöpfung
(escravos libertados da criação) (Herder, 2002, vol. III/1: 135). Isto tem de
ser entendido como o homem que se libertou das limitações da natureza,
da submissão dos constrangimentos de viver sob as suas leis. O Homem
criou uma outra ordem de existência com novas leis, nomeadamente as leis
da razão e da moralidade, o compromisso com o que define humanidade
160 dos humanos. Os seres humanos, diferentes de todos os outros seres
naturais que se encontram numa ordem pré-determinada da existência,
criaram eles próprios esta ordem, facilitada pela sua competência de
gerar critérios interpretativos do sentido a dar às suas próprias vidas. Ao
concretizar esta competência na multiplicidade cultural, a vida humana
tem de ser entendida como um processo de cultivar o seu próprio
caráter único. A humanidade é ela própria um processo pelo qual o auto
“empoderamento” vai além de todos os limites naturais, o que nos conduz
ao mundo da cultura – uma vez que cultura é o oposto de natureza. Ela é
constituída por um conjunto de valores e normas que devem ser aplicadas
a cada membro da raça humana. Embora este conjunto de valores tenha
mudado ao longo do tempo, alguns dos seus elementos comuns podem,
todavia, ser enunciados: a ideia de igualdade, a posse de direitos básicos e
a coesão social como consequência da fragilidade da vida humana; e, no
geral, a regra moral de que estes valores e normas que uma dada pessoa
ou grupo social sente como direitos ou compromissos seus, deveria ser
também válida para as outras pessoas e grupos sociais. É esta ênfase

Humanismo na era da globalização: ideias sobre uma nova orientação cultural1


no conceito normativo de “natureza cultural do Homem” que coloca o
Humanismo em forte contraste e oposição face a todos os movimentos
que aspiram a “naturalizar” a natureza humana – pois nesta ideia de os
humanos darem sentido ao mundo, o termo “naturalismo” é definido
exclusivamente por referência aos atributos da raça humana. Atualmente,
o Humanismo está a ser desafiado por teorias biológicas com poderosos
argumentos que aspiram a compreender o comportamento humano por
meio de referências a condições genéticas da vida humana e da estrutura
física do cérebro humano.
Neste aspeto o Humanismo, tal como realmente se apresenta, pode
ser saudado como uma crítica a tais teorias da natureza humana (cf.
Sturma, 2006). O Humanismo afirma a natureza não determinista da
pessoa humana na medida em que ela pertence ao plano da vida prática
e das relações sociais, em que todos os participantes se tornam referentes
das suas orientações culturais. Graças a esta referência, as pessoas podem
compreender-se umas as outros e fornecer razões para o que fazem,
sofrem e, também, para as suas falhas. O Humanismo torna a vida humana
compreensível ao referir-se às razões (subjetivas) para o que as pessoas
fazem, e não a causas (objetivas) do que elas fazem. O Humanismo dá
ênfase à subjetividade humana como um elemento constitutivo de
tornar inteligível o mundo da experiência humana, enquanto que o
naturalismo realça apenas os aspetos biologicamente determinados da
vida humana, que têm uma relação mais externa com a subjetividade 161
humana. O Humanismo sempre argumentou a favor dos valores, normas
e constrangimentos da cultura humana, que nunca poderá ser substituída
pela simples aplicação do conhecimento científico. O Humanismo insiste
na diferença principal entre conhecimento cultural que, por um lado, os
humanos usam sempre ao dar significado e relevância às suas vidas e, por
outro, à lógica do conhecimento científico e da sua explicação racional
assente em leis de causalidade.

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