Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
HUMANISMO
E DIDÁTICA
DA HISTÓRIA
JÖRN RÜSEN
1ª Edição - 2015
W. A. EDITORES
Curitiba
Copyright : LAPEDUH/UFPR – W.A. Editores Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta
publicação pode ser reproduzida, armazenada em sistema de reprodução ou transmitida, sob
qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico, fotocopiado, ou outro, sem prévia e
expressa permissão dos autores.
Organizadores
Maria Auxiliadora Moreira dos Santos Schmidt
Izabel Barca
Marcelo Fronza
Lucas Pydd Nechi
Revisão
Maria Auxiliadora Moreira dos Santos Schmidt
Walter Werner Schmidt
João Luis da Silva Bertolini
Direção editorial
Walter Werner Schmidt
Coordenação editorial
Maria Auxiliadora Moreira dos Santos Schmidt LAPEDUH/UFPR
Walter Werner Schmidt Rua General Carneiro, 460
João Luis da Silva Bertolini Telefone: 41 – 3360
Capítulo 1
Formando a consciência histórica – para uma didática
humanista da história, 19
Capítulo 2
Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e
diferença de culturas nos encontros de nosso tempo, 43
Capítulo 3
Humanismo clássico — um levantamento histórico, 57
Capítulo 4
Historicizando a humanidade – algumas considerações
teóricas na contextualização e compreensão sobre a ideia
de humanidade, 85
Capítulo 5
O enraizamento da ordem política nos valores dos
cidadãos, 99
Capítulo 6
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e
desafios contemporâneos, 123 3
Capítulo 7
Humanismo intercultural: ideia e realidade, 133
Capítulo 8
Humanismo na era da globalização: ideias sobre uma nova
orientação cultural, 153
Contribuições de Jörn
Rüsen para a didática da
história na perspectiva do
11
Humanismo: a utopia
necessária e sua
historicidade
Estevão C. de Rezende Martins
Professor titular de Teoria da História e História contemporânea
da Universidade de Brasília – Pesquisador 1B do CNPq.
4 Ver Jörn Rüsen. "Ideen einer neuen Philosophie der Geschichte", em Gerd Jüttemann (org.).
Entwicklungen der Menschheit. Humanwissenschaften in der Perspektive der Integration. Lengerich:
Pabst Publishers, 2014, pp. 41-48, esp. p. 43. Ver também Estevão de Rezende Martins. "Utopia:
uma história sem fim", em Marcos Antônio Lopes; Renato Moscatelli (orgs.). Histórias de países
imaginários. Variedades dos lugares utópicos. Londrina: Editora da Universidade Estadual de
Londrina, 2011, p. 11-19.
5 Ver Estevão de Rezende Martins. "Educar para a humanidade. História e Iluminismo", em Valério
Rohden (org.). Ideias de Universidade. Canoas: ULBRA, 2002, p. 63-92.
são pensados antropológica, antropocêntrica, antropotropicamente.
A historicidade instituidora de sentido para os processos temporais
submetidos à reflexão racional crítica haure sua lógica na individualidade
(por certo inserida em seu contexto social) do agente humano, em torno
do qual se pensa e enuncia a história, cujo decorrer destina-se a criar,
consolidar, manter e expandir a ideia do 'ser humano'.
A ideia de 'ser humano' não é unívoca, mas no mundo da modernidade
atual, está marcada pela dimensão transcendental da dignidade da pessoa
humana, da vocação a fazer o bem e a entender o respeito da alteridade
como essenciais. Na política, ontem e hoje, na academia, nas diversas
culturas, no mais distantes quadrantes do mundo, a enunciação de um 'ser
humano' para além e para acima das tensões e dos conflitos concretos da
história empírica, é um motor intelectual e prático que Rüsen considera
indispensável à 'boa forma de viver' entre seres humanos no século 21.
A ideia de humanismo funciona, para Rüsen, como um ideia
regulativa transcendental e universal: "Em minha argumentação, entendo
6 Ver, por exemplo, Luiz Sérgio Duarte da Silva. "Ação comunicativa e teoria da História aproximação
de Habermas e Rüsen", em L. S. Duarte da Silva. Comunicação Intercultural. Interdisciplinaridade,
comparação e compreensão I. Curitiba: Editora CRV, 2014, p. 41-53.
devo eu fazer? O que posso esperar? E ele acrescentou – numa expressão
típica do pensamento moderno – que todas estas três questões podem ser
resumidas numa única e decisiva questão: O que é o ser humano?"
O humanismo transcendental proposto por Rüsen é uma resposta
possível e consistente a essa pergunta. Para o autor, é "necessário
desenvolver uma compreensão da humanidade na era da globalização
que, enquanto inclusiva de todas as civilizações, dê ênfase à sua
particularidade e diversidade. ... Todas a tradições culturais incluem
elementos humanísticos. ‘Humanístico’ significa simplesmente que, pelo
fato de se ser uma pessoa, se valorize em cada um a relação quer com os
outros quer conosco próprios".
Para que esse excelso propósito se efetive, importa haver sido
formada, constituída em cada um, a consciência histórica. Na perspectiva
iluminista de Wilhelm von Humboldt, o que vem ao caso não é instruir
ou cultivar – embora essas virtudes devam vir junto – mas formar o ser
humano em sua plenitude e, por acréscimo, o bom cidadão, crítico e atento:
ensino de história tradicional, pois segue uma linha geral das humanidades
ao ignorá-la nos assuntos humanos. Por outro lado, uma compreensão
predominantemente naturalista da humanidade, que tem experimentado
um enorme impacto na orientação cultural pelo recente sucesso da
genética e da pesquisa sobre o cérebro falha, ao não revelar a dimensão
histórica específica da relação entre o homem e a natureza. Em todo caso,
o fato de que compartilhamos uma natureza humana comum além de
todas as diferenças culturais ganhou nova importância, uma vez que a
destruição das condições naturais de sobrevivência humana interessa a
todos. Portanto, temos que estabelecer regras transculturalmente válidas,
com o objetivo de ancorá-las na profundidade de nossa identidade
humana. Por isso, uma questão deve ser levantada: qual a atuação da
natureza humana comum no desenvolvimento da identidade histórica,
enquanto ela está sendo formada na consciência plena da importância das
diferenças culturais?
Todos esses desafios devem encontrar uma resposta em todos os
campos da cultura histórica. A Didática da História deve trabalhar a sua
resposta específica, e é a intenção deste artigo desenhar um esboço para
isso ou, pelo menos, dar algumas sugestões para uma resposta convincente.
3 Para uma argumentação mais detalhada ver Rüsen, Jörn: Historisches Lernen. Grundlagen und
Paradigmen. 2nd edition, Schwalbach/Taunus: Wochenschau, 2008 (RÜSEN, Jörn. Aprendizagem
histórica: fundamentos e paradigmas. Curitiba: W.A Editores, 2012).
A Didática da História
Primeiro de tudo: o que é Didática da História? É uma disciplina
acadêmica especial, cuja tarefa é realizar a competência para o ensino de
história. Seu pressuposto constitutivo é o fato de que os Estados modernos
têm internalizado a história como uma disciplina nos currículos escolares,
com o objetivo principal de permitir à geração mais jovem entrar na
cultura histórica estabelecida dessas nações. Para cumprir esta tarefa,
a Didática da História deve acumular conhecimentos sobre o que é a
A consciência histórica
A categoria básica para a compreensão da aprendizagem histórica é
a consciência histórica. A sua definição mais ampla ressoa como se segue:
a atividade mental da interpretação do passado para compreender o
presente e esperar o futuro. Assim, combina o passado, presente e futuro
de acordo com a ideia sobre o que trata a mudança temporal. Sintetiza as
experiências do passado com os critérios de sentido que são eficazes na
vida prática contemporânea e nas perspectivas de orientação de ação em
direção ao futuro. Na Didática da História este orientação para o futuro
deve desempenhar um papel importante uma vez que os estudantes
devem aprender a dominar sua vida futura enquanto cidadãos adultos, de
acordo com as exigências da cultura histórica de seu país.4
4 ANGVICK, Magne; BORRIES, Bodo von. Youth and History: a comparative European survey on historical
and political attitudes among adolescents. V. A and B, Hamburg: Koerber Fundation, 1997. KÖLBL, 23
Carlos; STRAUB, Jürgen. “Historical consciousness in Youth. Theoretical and exemplary empirical
analyses”, in, Forum qualitative social research. Theories, methods, applications. Vol. 2, nº 3, set.
2001, disponível em: http://qualitative-research.net.fas. MACDONALD, Sharon (ed.). Approches to
European Historical Consciousness: Reflections and Provocations. Hamburg: Edition Körber Stiftung,
2000. RÜSEN, Jörn. Geschichtsbewuβtsein. Psychologische Grundlagen, Entwicklungskonzepte,
empirische Befunde. Beiträge zur Geschichtskultu, vol. 21. Köln: Böhlau, 2001. TEMPELHOFF, Johann
W. N. (ed.). Historical consciousness and the future of our past. Vanderbijlpark: Clio, 2003. SEIXAS,
Peter (ed.). Theorizing historical consciousness. Toronto/Buffalo/London: University of Toronto
Press, 2006. STRAUB, Jürgen (ed.). Narration, Identity and Historical Consciousness. Making Sense of
History, vol. 3, New York: Berghahn Books, 2005. RÜSEN, Jörn. “O desenvolvimento da competência
narrativa na aprendizagem histórica: uma hipótese ontogenética relativa à consciência moral”. In
SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; Martins, Estevão de Rezende (Orgs.). Jörn Rüsen e o
ensino de História. Curitiba: Ed. UFPR, 2010, p. 51-77.
A cultura histórica
Cultura histórica5 é a manifestação da consciência histórica na
sociedade em diversas formas e procedimentos. Inclui o trabalho
cognitivo dos estudos históricos, bem como as atitudes da vida cotidiana
voltadas para a compreensão do passado e a conceitualização histórica
de nossa própria identidade; e não podemos nos esquecer dos museus e
da educação histórica nas escolas, nem as apresentações do passado nas
diversas mídias ou na literatura. É sempre útil refletir sobre a complexidade
Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história
A aprendizagem histórica
Aprendizagem histórica6 é um processo mental em que as
competências ganhas são necessárias para orientar a própria vida por
meio da consciência histórica presente na cultura histórica já existente na
própria sociedade. É composta de quatro diferentes habilidades que são
sistematicamente inter-relacionadas e interdependentes: a capacidade de
construir a experiência histórica, a capacidade de interpretar esta mesma
experiência, a capacidade de usar a experiência histórica interpretada
(conhecimento histórico) para orientar a própria vida, no quadro de
uma ideia empiricamente articulada ao decorrer do tempo nas vidas
humanas — esta orientação inclui um conceito de identidade histórica
—, e, finalmente, a capacidade de motivar as nossas próprias atividades de
acordo com a ideia de nosso lugar nas mudanças temporais.
24
5 Uma detalhada apresentação de meu conceito de ‘cultura histórica’ pode ser encontrada em:
RÜSEN, Jörn: Historische Orientierung. Über die Arbeit des Geschichtsbewußtseins, sich in der
Zeit zurechtzufinden. 2. Aufl. Schwalbach/Taunus: Wochenschau, 2008, pp. 233-284; RÜSEN, Jörn:
Berättande och förnunft. Historieteoretiska texter. Göteborg: Daidalos, 2004, pp. 149-194; uma
versão modificada foi desenvolvida por Klas-Göran Karlsson: KARLSSON, Klas-Göran; ZANDER, Ulf
(Eds.): Echoes of the Holocaust. Historical cultures in contemporary Europe. Lund: Nordic Academic
Press, 2003; KARLSSON, Klas-Göran; ZANDER, Ulf (Eds): Holocaust Heritage. Inquiries into European
Historical Culture. Malmö: Sekel, 2004.
6 Ver RÜSEN, Jörn: Aprendizagem histórica: esboço de uma teoria. RÜSEN, Jörn. Aprendizagem
histórica: fundamentos e paradigmas. Curitiba: W.A Editores, 2012, p. 69-112.
O humanismo
O humanismo não é um conceito bem definido nas humanidades.7
Tem uma multiplicidade de significados que variam numa escala que
tem como marco, para as humanidades, o começo da história da Europa
moderna, em especial na relação com a antiguidade clássica, de um lado,
e todo um discurso liberal e de grande abertura a respeito dos assuntos
humanos. Em minha argumentação, entendo por humanismo um recurso
fundamental e uma referência para a natureza cultural dos humanos
9 Ver: CANCIK, Hubert; VÖHLER, Martin (Eds): “Humanismus und Antikerezeption im 18. Jahrhundert”
(Fn. 6); essa forma francesa é descrita por TODOROV, Tzvetan: Imperfect garden. The legacy of
humanism. Princeton: Princeton University Press, 2002 (TODOROV, Tzvetan. O Jardim Imperfeito: o
Pensamento Humanista na França. São Paulo: EDUSP, 2005).
10 RÜSEN, Jörn; LAASS, Henner (Eds): Humanism in Intercultural Perspective. – Experiences and
Expectations. Bielefeld: Transcript, 2009. Ver neste livro: RÜSEN, Jörn; LAASS, Henner (Eds):
Humanismo na Perspectiva Intercultural – Experiências e Expectativas.
enfrentar a desumanidade; a ideia ilusória sobre o conceito paradigmático
da humanidade na antiguidade clássica; os elementos eurocêntricos na
ideia de história universal; e os limites em integrar a natureza no interior
da ideia de humanidade.
Um humanismo atualizado deve integrar a sombra da desumanidade
na ideia de humanidade com base no princípio da dignidade humana.11
Enquanto um princípio de dignidade antropológica, tem elementos
utópicos e deve ser entendido como uma reação à capacidade de cada
21 D'HAENENS, Albert: Oralité, Scribalité, Electronalité. La scribalité occidental depuis le moyen age.
Louvain-la-Neuve, 1987.
os fenômenos complexos fossem didatizados devidamente pela reflexão
teórica, de modo que os paradigmas tipológicos ideais sejam trabalhados,
o que poderia ser ilustrado com fatos concretos.
22 Ver STRAUB, Jürgen (Ed.): Narration, Identity, and Historical Consciousness. (Making Sense of History,
vol. 3). New York: Berghahn Books, 2005.
critérios de sentido do pensamento histórico. Estes critérios de sentido
são universais na sua lógica (cobrindo todo o campo da experiência
da mudança temporal ao torná-la “histórica”). Os estudantes devem
aprender quais são os critérios fundamentais de sentido, como funcionam
de maneira geral e na própria orientação para a vida. Ao aprender isso —
podemos chamá-lo de um aprendizado teórico ou filosófico pela história
— os estudantes internalizam a competência de lidar com a dimensão
universal da história enquanto um domínio da experiência e como uma
Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história
A interpretação histórica
A interpretação humanista da experiência histórica deve conduzir
para a ideia empiricamente fundada da história enquanto um processo
integral da humanização do homem. Neste contexto, deve ser abordada
a questão dos direitos humanos. Os estudantes devem saber que são o
38 resultado de um processo histórico. (A fim de entender a ideia moderna
de direitos humanos básicos deve se voltar para a antiguidade clássica, o
cristianismo, e a formação da dominação política em diferentes formas
de uso do poder institucionalizado.) É essencial para esse aprendizado a
compreensão de que a história inerente dos direitos humanos e civis não
chegou ao fim. O “fim” dessa história é a motivação das atividades práticas
voltadas para a defesa e para o desenvolvimento desses direitos sempre
24 Ver GÖSSMANN, Elisabeth (Ed.): Ob die Weiber Menschen seyn, oder nicht? München: Iudicium,
1988.
para mais além.
É muito importante que esta perspectiva histórica de alcance
altamente profundo receba elementos da diversidade multicultural. A
fim de trazer este fundamental pluralismo na história universal, deve ser
incorporada no currículo a discussão sobre o desenvolvimento das eras
axiais enquanto ideias universalistas sobre o homem [principalmente na
forma religiosa]25 e sobre o conceito de múltiplas modernidades.
O tratamento da religião como potência cultural na história pertence
25 Ver ARMSTRONG, Karen. A grande transformação: o mundo na época de Buda, Sócrates, Confúcio e
Jeremias. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
entendem como uma falta de compromisso social. Essa crítica tornou-se
um argumento padrão na comunicação intercultural, e vale muito a pena
levá-la a sério.)
26 ANTWEILER, Christoph: Menschliche Universalien. Kultur, Kulturen und die Einheit der Menschheit.
Darmstadt: Wiss. Buchgesellschaft, 2007; ANTWEILER, Christoph: Mensch und Weltkultur. Für einen
realistischen Kosmopolitismus im Zeitalter der Globalisierung. Bielefeld: Transcript, 2010.
naturais, a fim de chegar em um acordo com elas. A outra alternativa,
é a ideia da humanidade que alarga o sistema de valor fundamental
combinado com a natureza cultural da humanidade em geral, de modo
que sustenta também o aspecto natural da vida humana.
A primeira alternativa seria dissolver a tradição do humanismo em
um novo naturalismo a partir de uma particularidade que é totalmente
obscura (exceto no que diz respeito um conjunto de retornos de
cosmologias românticas pré-modernas). A outra alternativa, significa
Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história
42
Em direção a uma nova
ideia de humanidade:
unidade e diferença de
culturas nos encontros de
nosso tempo1
1 Tradução do inglês KOZLAREK, RUSEN, WOLFF (eds).Anthropology axial ages modernities. In: Shaping
a Humane World. 2012. Traduzido por Lucas Pydd Nechi.
2 Nota do Autor: (Assmann, Jan: Collective Memory and Cultural Identity, in: New German Critique, No
65 (1995), pp. 125-133.).
Em um significado específico, identidade cultural se refere ao mais amplo
horizonte desta auto-referência, distinção e experiência comum. Falamos em
'civilizações do mundo' e pensamos em formas únicas de vida humana, o
que caracteriza o sentimento de pertencer juntos e ser diferente dos outros,
algo partilhado por um número grandioso de pessoas. O vasto horizonte
da identidade humana é definido pela espécie humana e sua diferença
dos animais. A primeira distinção neste horizonte se refere a 'culturas' ou
'civilizações' como a segunda maior unidade de pessoas em respeito à sua
identidade. Não irei me aprofundar na duradoura, ainda vívida e controversa
discussão sobre a conceitualização destas culturas ou civilizações do mundo.
Ao invés disto, desejo elencar algumas distinções usuais destas grandes
unidades de identidade e desenvolver alguns pontos básicos de seus inter-
relacionamentos em uma perspectiva histórica e sistemática.
A perspectiva histórica é relacionada ao processo de globalização.
Globalização é aqui compreendida como um desenvolvimento histórico
Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e
diferença de culturas nos encontros de nosso tempo
3 Chakrabarty, Dipesh: Europa provinzialisieren. Postkolonialität und die Kritik der Geschichte, in:
Conrad, Sebastian; Randeria, Shalini (Eds.): Jenseits des Eurozentrismus. Postkoloniale Perspektiven
in den Geschichts- und Kulturwissenschaften. Frankfurt am Main (Campus) 2000, p. 283-312
[Chakrabarti, Dipesh: Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference.
Princeton, N.J.: Princeton University Press 2000; Lal, Vinay: Provincialising the West: World history
from the perspective of Indian history, in: Stuchtey, Benedikt; Fuchs, Eckhardt (Eds.): Writing world
history 1800 – 2000. Oxford: University Press 2003, pp. 271-289.
caso dos movimentos fundamentalistas da atualidade. Aqui, um conceito
universalista específico de interpretação do mundo, majoritariamente em
uma forma religiosa, contradiz fortemente diferentes formas de vida com
seus elementos universalistas inerentes em novas formas de conflito. Mas
este não é o único espaço onde o conflito de civilizações acontece. Ele é
culturalmente enraizado no simples fato de que universalismos, os quais
constituem diferenças culturais no nível da identidade coletiva, excluem-
se uns aos outros. Se a diferença cultural é baseada em sistemas de valores
universalistas, as pessoas são comprometidas a um destes sistemas e negam
os demais. Isto parece ser evidente em relação às crenças religiosas, mas
podemos observar esta exclusão mútua até mesmo em respeito a sistemas
de valores mais seculares.
Um exemplo é a negação das ideias ocidentais de direitos universais
humanos e civis ao se referir a uma ética confucionista fundamentalmente
diferente, como foi o caso (e talvez ainda seja) da filosofia política oficial
Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e
diferença de culturas nos encontros de nosso tempo
observar uma forte tendência de exclusão. Todas essas formas de vida que
não são semelhantes ou as mesmas, como aquelas que usam abordagens
universalistas para entender o mundo, são excluídas, discriminadas ou
desprezados. Assim, pode-se dizer que, em uma perspectiva universalista,
a história cultural do desenvolvimento dos universais começou com
um universalismo tenso. Fundamentalismo hoje é um legado e uma
radicalização dessa tensão. Ele é carregado com elementos etnocêntricos
e poder. Mas, ao mesmo tempo, universalismo cultural vai além do
etnocentrismo, uma vez que os outros estão integrados nos universais da
própria interpretação de criação de sentido do mundo e da vida humana.
O Renascimento da Origem
dos Tempos Axiais
52 Para entender a mudança radical dos universais culturais da
exclusão à inclusão, temos que voltar para as origens de todas as formas
de identidade cultural que receberam as suas características específicas ao
se introduzirem os universais. Há um termo específico para caracterizar
estas origens: o tempo axial. Devemos o termo à filosofia da história de
Karl Jaspers. De acordo com Jaspers, as chamadas civilizações do mundo
adquiriram as suas características tradicionais em um tempo axial7.
Diferentes culturas têm diferentes tempos axiais mas, em uma perspectiva
histórica universal, estes tempos axiais juntos formam um limiar na
evolução cultural da humanidade.
Nas raízes destes primórdios, podemos encontrar um potencial para
a solução dos problemas do nosso tempo. A solução é o universalismo
profundamente enraizado na identidade cultural. Em uma forma
inalterada é, é claro, não a solução, mas o problema. A solução não
pode ser encontrada contra ela, mas no seu interior e de acordo com
ela, ou seja, dentro de seu desenvolvimento histórico. Tempos axiais não
são origens atemporais de um status metafísico em todas as mudanças
temporais. O que se originou neste passado tornou-se uma questão de
temporalidade, de historicidade. Ele, essencialmente, está aberto para
mudanças e desenvolvimento. De acordo com essa historicidade, não é
uma questão utópica pedir por uma nova abordagem e tratamento prático
7 Jaspers, Karl: The Origin and Goal of History. Westport, Conn.: Greenwood Press 1976; Eisenstadt,
Shmuel N. (Ed.): Kulturen der Achsenzeit. Ihre Ursprünge und ihre Vielfalt. Part I, II, III. Frankfurt am
Main: Suhrkamp 1987, 1987, 1992
e com elementos normativos compartilhado por todos os outros seres
humanos.
Culturas podem ser chamadas humanistas, se elas atribuem uma
qualidade altamente normativa para ser um ser humano. Humanismo tem
desempenhado um papel importante na tradição ocidental, e todo mundo
que já olhou uma vez para o Lun Yü sabe, que 'humanidade'8 desempenha
um papel decisivo na tentativa de Confúcio para desenvolver um sistema
de regulações normativas para vida social e política. Na tradição judaica,
encontramos um provérbio que significa humanismo: Quem resgata um
ser humano, resgata a humanidade. Um provérbio semelhante pode ser
encontrado na tradição muçulmana. O Alcorão diz: "Se alguém mata um
homem, ele deve ser considerado como se tivesse matado a humanidade
em geral, e se alguém preserva a vida de um ser humano ele deve ser
considerado como se tivesse salvado a vida da humanidade”9. Na África,
encontramos um provérbio de significado semelhante: “Umuntu
Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e
diferença de culturas nos encontros de nosso tempo
11 Nota do Autor: Makgoba, Malegapuru: Wrath of dethroned white males, in: Mail & Guardian March
24 to 31 2005, p. 23.
12 Nota do Autor: Mail & Guardian April 8 to 14, 2005, p. 23. Dan Roodt é um ardente defensor da
Identidade Afrikaaner tradicional. Ele é criticado pela imprensa liberal na África do Sul, sendo
considerado racista.
percebido como manifesto em diferentes formas de vida humana. Esta
diferença não é uma variedade ilimitada. Os limites desta variedade e os
limites de reconhecimento e respeito estão exatamente lá, onde os outros
não compartilham esse elemento universalista e não percebem isso de uma
forma diferente, mas comparável, ou seja, através do desenvolvimento de
suas estratégias mentais específicas de respeito e reconhecimento.
À luz de tal perspectiva histórica, a comunicação intercultural adquire
a dinâmica de um novo tempo axial. Essas dinâmicas podem conceder
uma troca de possibilidades e potencialidades de se conceituar a qualidade
normativa geral de um ser humano. Isso se aplicaria a todos os membros
da espécie humana de formas diferentes, sob diferentes circunstâncias e
pressupostos históricos.
É minha a responsabilidade apresentar as possibilidades ocidentais de
tal comunicação e estou esperando as respostas não-ocidentais, propostas,
críticas, comentários, e talvez, até mesmo algum consentimento.
Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e
diferença de culturas nos encontros de nosso tempo
56
Humanismo clássico — um
levantamento histórico1
Why? Who? Where am I? For happiness.
A human being. On earth.
G.E. Lessing2
1 RÜSEN, Jörn. “Classical Humanism – a Historical Survey”. In: ANTOHI, Sorin; HUANG, Chun-Chieh;
RÜSEN, Jörn (ed.). Approaching Humankind – Towards an Intercultural Humanism. Essen-Germany/
Taiwan-China: National Taiwan University Press, 2013, p. 161-184. Tradução por Marcelo Fronza. As
obras citadas pelo autor editadas em português foram referenciadas também nesta língua.
2 “Por quê? Quem? Onde eu estou? Pela felicidade. Um ser humano. Sobre a terra.” LESSING, Gotthold
Ephraim: “Die Religion”, in: Werke, v. 1: Gedischte, Fabeln, Lustspiele, Darmstadt, 1996, p. 171.
3 Cf. e.g. GIUSTINIANI, Vito R.: "Homo, Humanus, and the Message of ‘Humanism’”', in: Journal of the
History of Ideas 46.2 (1985): p. 167 -195.
humano enquanto um ente culturalmente determinado. Por outro
lado, essa definição se limita a uma forma específica dessa essência
culturalmente definida, que, por sua vez, diz respeito a um elemento
central do seu arranjo de normas. O termo ‘humanidade’, assim, adquire
uma conotação decididamente normativa, para além da sua condição
empírica. Ele sustenta a existência humana em alguns fundamentos, isto
é, em referência à sua relação específica com a natureza e com o cosmos,
a qual regula a forma como os seres humanos estão lidando um com o
outro. A natureza cultural do ser humano, em sua forma mais extrema,
fornece significados para a escolha constante da ação e do sofrimento
humanos entre a desumanidade e a humanidade.
A forma mais pronunciada desta interpretação da humanidade é
chamada de ‘humanismo’. Minha preocupação é a seguinte: tornar visível
e compreensível esta variedade específica em relação ao seu contexto
histórico. Em fazendo isso, estarei fundindo os seres humanos com a forma
mais específica, ou seja, a do humanismo tal como tem se manifestado na
Humanismo clássico — um levantamento histórico
cultura ocidental.
Eu considero o ‘humanismo clássico’ do final do século XVIII e XIX
como a manifestação mais central desse fenômeno. Lidamos aqui com
uma tendência universal que apareceu em toda a Europa, a qual, contudo,
assumiu formas diferentes em seus diversos contextos regionais. Tzvetan
Todorov expôs a variedade francesa do modo mais impressionante.4 Estou,
portanto, focalizando a variedade alemã, que está inseparavelmente ligada
aos nomes de Herder e Humboldt.5
A pré-condição intelectual para construir essa constelação está na
antropologia do começo da história moderna. Aqui, pela primeira vez, a
interpretação do homem e do mundo já não era baseada numa autoridade
não humana de construção de significados (Deus ou a Natureza), mas
4 TODOROV, Tzvetan: Imperfect garden. The legacy of humanism, Princeton, 2002 (TODOROV, Tzvetan.
58 O Jardim Imperfeito: o Pensamento Humanista na França. São Paulo: EDUSP, 2005).
5 Esta definição historicamente específica do termo ‘humanismo’, não é a dominante na literatura
internacional sobre este objeto. Neste contexto, o termo é entendido no sentido de um lar filosófico
do discurso que é típico do humanismo moderno inicial, ou seja, o modo como naqueles dias dos
‘humanistas’ (pessoas educadas na antiguidade clássica) cultivavam a ‘humaniora’ (as disciplinas
intelectuais que investigavam e debatiam a antiguidade clássica) demarcando sua distância crítica
em relação à lógica discursiva da escolástica e aos laços com o dogmatismo eclesiástico. A partir
disso, pode ser concebida uma atitude intelectual mais geral perante a vida. Um exemplo disso
é a definição de Edward Said do humanismo enquanto uma atitude liberal, abrangente e crítica
das ciências humanas (“seja como abertura a todas as classes e origens, quanto um processo
interminável de discursos, descobertas, autocríticas, e da libertação”, Humanism and Democratic
Criticism, New York 2004, p. 28 e seg.). Nessa definição, o humanismo perde a sua especificidade
histórica e se torna uma fórmula estilizada do liberalismo intelectual — além ficar privado de todas
as manifestações concretas que existem por causa das circunstâncias históricas particulares.
era referida apenas à humanidade em si, enquanto um objetivo final. Isso
foi adequadamente expresso por Kant em sua famosa fórmula, segundo a
qual as três questões fundamentais da filosofia, as quais também formam
a diretriz geral para a orientação cultural dos seres humanos — o que
posso saber? O que devo fazer? O que posso esperar? —, convergem para
a pergunta: o que é o homem?6
Este recurso da humanidade em si mesma, como a única fonte para a
definição cultural do que é ser humano, só se torna humanista, no sentido
mais verdadeiro, se e quando os sujeitos passam a ser objetos do valor
específico como uma espécie enquanto princípio antropológico e se,
sendo assim humanos, adquirem o status de uma norma absoluta, quando
procuram regular toda prática humana.
O humanismo, na sua forma moderna, fusiona a dimensão empírica
da experiência humana com um elemento normativo. Immanuel Kant
formulou esta ideia em sua forma mais definitiva:
6 KANT, Immanuel: Kritik der reinen Vernunft 1781, 2nd ed. 1787, A 805, (Werke in 10 vols, ed. Wilhelm
WEISCHEDEL, vol, 4, Darmstadt 1968, p. 677 (KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.); KANT: Logik A. 26, (Werke in 10 vols, ed. Wilhelm WEISCHEDEL,
vol. 5, Darmstadt 1968, p. 448) (KANT, Immanuel. Lógica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.
7 KANT: Metaphysik der Sitten A 93, (Werke in 10 vols, ed. Wilhelm Weisehedel, voI. 7, Darmstadt 1968,
p. 569). (KANT. A Metafísica dos Costumes. Bauru: EDIPRO, 2003).
historicismo universal; assim como por princípio, o homem e o mundo
são interpretados e compreendidos a partir de critérios históricos.
Para cada ser humano e para cada modo particular de conceber a
sua vida, esse tipo de humanismo assume uma forma específica: a da
individualidade.
A qualidade universal, bem como a individualizada, de cada ser
humano só é conceitualizada enquanto um potencial antropológico; sua
realização está condicionada à implementação de um processo individual,
o qual, ao mesmo tempo, tem uma dimensão social. Este processo pode
ser categorizado sob o nome de ‘educação’, (em alemão “Bildung”).
Todas estas particularidades são os elementos essenciais que
caracterizam o humanismo moderno como uma construção intelectual.
Mas, isso é mais do que apenas uma simples ideia. Já está institucionalizado
na forma de vida da sociedade civil burguesa. A convicção de que
toda crença religiosa, em suas diversas manifestações históricas e em
suas divergências com outras crenças, pode ser integrada numa ordem
Humanismo clássico — um levantamento histórico
60 As Premissas Antropológicas
Qualquer conceito do que significa ser humano8 é determinado
pela diferença fundamental existente entre as criaturas humanas e não
humanas. Na maioria das formas de vida humanas as qualidades não
8 For the following cf.: ANTWEILER, Christoph: Was ist den Menschen gemeinsam? Über Kultur und
Kulturen, Darmstadt, 2nd ed., 2009; ANTWEILER, Christoph: Mensch und Weltkultur. Für einen
realistischen Kosmopolitismus im Zeitalter der Globalisierung (= Der Mensch im Netz der Kulturen -
Humanismus in der Epoche der Globalisierung, vol. 10), Bielefeld 2011. (English translation: Inclusive
Humanism. Anthropological Basics for a Realistic Cosmopolitanism, Göttingen, 2012).
humanas são distribuídas entre duas dimensões: a natural e a divina. O
homem está localizado em algum lugar entre as duas — seu lugar está
onde as duas dimensões (a humana, entre a natural e a divina) estão
hierarquicamente ordenadas: o maior valor é atribuído ao mundo divino,
o menor à natureza, e o homem que ocupa o caminho do meio, é marcado
pela qualidade ‘intermediária’ de ser capaz de distinguir entre o bem e
o mal, e seja, mesmo, compelido a fazê-lo. À qualidade de diferenciar
entre o bem e o mal — algo que é único ao homem — soma-se à
necessidade resultante de ter que fazer escolhas práticas sob o mandato
de seus atributos divinos e naturais. As regras morais que determinam o
comportamento humano são definidas por uma clara distinção entre o
bem e o mal. A capacidade de fazer tal distinção pressupõe certa ideia do
que significa ser humano: os seres humanos são definidos como pessoas,
eles são indivíduos dotados de certa consistência física e psicológica, e,
como tal, são responsáveis por suas ações, pelo menos na medida em que
a esfera da sua vida quotidiana está em causa. Esta responsabilidade dota
9 Isso corresponde a certas normas de comportamento moral cujo status é igualmente universal: a
equidade entre a competitividade e uma organização cooperativa do mundo do trabalho.
10 As seguintes reflexões ocupam as ideias propostas por Reinhart Kosellek: KOSELLECK, Reinhart:
“Historik und Hermeneutik”, in: KOSELLECK, Reinhart: Zeitschichten. Studien zur Historik, Frankfurt/
Main 2000, p. 97 -118.
categoria social fundamental.
– A distinção entre o velho e o jovem que vai além da diferença
meramente biológica, ao definir assim o status social e geracional
de processos educativos.
– A distinção entre o ter que morrer e a capacidade de matar.
– A distinção entre o amigo e o inimigo que, em conjunto com
o acima mencionado, regula o uso do poder e da força na vida
social, tanto em termos de suas relações internas quanto externas.
– A distinção entre o interior e o exterior, ou seja, entre um grupo
de pessoas com um sentimento de pertença com quem forma uma
comunidade — o que significa uma identidade coletiva com fortes
laços emocionais e cognitivos —, de um lado, e àquelas pessoas,
por outro, com quem se considera e se trata como os ‘outros’ ou os
‘estranhos’.
Essa última distinção desempenha um papel importante no
desenvolvimento histórico da humanidade, porque trata de uma camada
Humanismo clássico — um levantamento histórico
11 A lógica do etnocentrismo é tratada mais extensivamente em: RÜSEN, Jörn: “How to Overcome
Ethnocentrism: Approaches to a Culture of Recognition by History in the 21st Century”, in: Taiwan
Journal of East Asian Studies 1.1 (June 2004): p. 59-74; and in: History and Theory 43 (2004), Theme
Issue “Historians and Ethics”: p. 118 -129.
A Mudança Histórica
Seria tentador definir esses universais antropológicos, enquanto
características essenciais de todas as formas de vida, como contrários à
mudança histórica. Tal oposição impediria qualquer compreensão mais
profunda da mutabilidade da cultura humana; as quais não contrariam
os universais antropológicos, mas ocorrem no interior deles. Eles ainda
nos permitem determinar o direcionamento das mudanças nas formas
de vida humana que comumente são, em nome da ‘história’, inimigas. A
história é muito mais do que uma mudança arbitrária ou acidental. Ela é
estruturada no que diz respeito a sua qualidade enquanto um processo
de desenvolvimento. Este processo deriva sua força das contínuas
tentativas dos seres humanos para alcançar um equilíbrio aceitável entre
as distinções listadas acima — distinções que são também oposições, e,
como tal, constantemente geram tensões. A vida humana é impulsionada
para frente por meio da luta constante para superar as forças destrutivas, “a
As Sociedades Arcaicas
Em sociedades arcaicas, apenas os membros da própria comunidade
são qualificados como seres humanos. Todas as outras pessoas que vivem
fora da sua própria esfera de vida não são consideradas como humanas;
estas são vistas como não possuidoras das características essenciais que
definem a própria humanidade.15 Isso é evidenciado pelo simples fato
64
13 JASPERS, Karl: Vom Ursprung und Ziel der Geschichte, Munich, 1963 (primeiramente Zürich, 1949);
EISENSTADT, Shmuel N. (Ed.): Kulturen der Achsenzeit. Ihre Ursprünge und ihre vielfalt, vol. I, II, III,
Frankfurt/Main 1987, 1987, 1992; ARNASON, Johann P./EISENSTADT, S.N./WITTROCK, Björn (Eds.):
Axial Civilisations and World History, Leiden, 2005.
14 EISENSTADT, S.N.: "Multiple Modernities", in: Daedalus 129.1 (Winter 2000): 1- 30; ibid.: Die groβien
Revolutionen und die Kulturen der Moderne, Wiesbaden, 2006. (EISENSTADT, S.N.: “Múltiplas
Modernidades”. Sociologia, Problemas e Práticas, n.35, Oeiras, p. 139-163, abr. 2001.)
15 A fim de designar essa universalidade exclusiva, bem como particular, do ser humano nas sociedades
arcaicas Klaus Müller cunhou o termo apropriado “o absoluto de seu próprio mundo”. (MÜLLER,
Klaus E. (Ed.): Menschenbilder früher Gesellschaften. Ethnologische Studien zum Verhältnis von
Mensch und Natur, Frankfurt/Main 1983, p. 15).
de que muitos dos nomes que as pessoas que vivem em tais condições,
dão a testemunhar tal particularidade: chamam-se de ‘homem’. Têm este
significado nomes como “Bantu”, “Khoikhoi” e “Apache”, e muitos outros.
As regras culturais dessas formas de vida são baseadas no imperativo
fundamental de manter a tradição e perpetuá-la em todas as circunstâncias,
a fim de inculcá-la nas mentes e nos corações das pessoas. As relações
sociais são dominadas pelo princípio da reciprocidade. Existe um padrão
duplo: por um lado, os princípios prescrevem o tratamento mútuo entre
as próprias pessoas e, por outro lado, a exploração e a sujeição dos outros,
os estranhos. Nada prova isso de maneira mais surpreendente do que o
fato do canibalismo ser uma estratégia generalizada para adquirir a força
do poder vital e mental dos outros.
As Mudanças Culturais nas Eras Axiais
Seguindo Karl Jaspers, o termo “era axial” designa uma mudança
acentuada de formas de vida humanas. Ele coincide com o surgimento
16 Cf.: EISENSTADT, Shmuel N.: “Die Achsenzeit in der Weltgeschichte”, in: ibid.: Theorie und Moderne.
Soziologische Essays, Wiesbaden 2006, pp. 253 - 275, and in: JOAS, Hans/WIEGANDT, Klaus (Eds.): Die
kulturellen Werte Europas, 4th ed., Frankfurt/Main, 2006, pp. 40-68.
consiste principalmente no mundo divino que adquire uma nova (ou
seja,“transcendental”) qualidade, que foi removida da realidade do
mundo, quando os seres humanos agem fora de suas vidas. Para ser mais
preciso em termos filosóficos, deve-se, na verdade, dizer “transcendente”
ao invés de “transcendental”. O Divino assume uma forma de existência
que o diferencia da vida cotidiana que, assim, torna-se absolutamente
mundana. Aquelas áreas que, numa forma arcaica de vida, ainda estavam
estreitamente inter-relacionadas, agora podem tornar-se unidades
separadas, e isto ocorre através do seu novo caráter enquanto uma espécie,
por assim dizer, intermediária.
A nova qualidade do ser humano pode ser definida por um senso de
subjetividade. Isso significa que o valor que acrescenta o além, implícito
na ideia de transcendência, é agora pensado como inerente à própria
humanidade, marcando assim o ser humano como uma subjetividade
cujo significado é derivado somente a partir de si mesmo. Neste sentido,
a profecia judaica pode ser considerada como um exemplo paradigmático
Humanismo clássico — um levantamento histórico
20 Cf. ROETZ, Heiner: Die chinesische Ethik der Achsenzeit. Eine Rekonstruktion unter dem Aspekt des
Durchbruchs zu postkonventionelIem Denken, Frankfurt/Main; ibid.: Confucian ethics of the axial
age, Albany, 1993.
21 Carta aos Gálatas 3, 28. Bíblia Sagrada. Tradução João Ferreira de Almeida. Disponível em: http://
www.culturabrasil.org/biblia.htm. Acesso em: 05 dez. 2014.
22 Assim está no Alcorão 5, 32 em referência a um ditado judaico.
Os Passos em direção à Modernidade
O novo conceito de homem que evoluiu durante a era axial lançou as
bases para o surgimento de dois novos fatores que se revelaram decisivos
para a última época no desenvolvimento da humanidade: a racionalidade
científica e a secular (ou seja, não definida e legitimada em termos
religiosos) de ordenação da vida social. As ciências naturais e, mais
tarde também, as ciências humanas e sociais foram fundamentais para
desmistificar o natural, assim como o mundo humano. Isto foi aplicado
em igual medida às regras fundamentais da vida social e à ascensão
concomitante da democracia como a regra de princípio organizador. Essa
nova cultura de uma sociedade civil secular e do conceito de humanidade
vai ao encontro de sua expressão mais adequada na formulação de Kant,
de que cada ser humano é um fim em si mesmo e nunca apenas um meio
para os fins de outras pessoas, isto porque ele é dotado de uma dignidade
Humanismo clássico — um levantamento histórico
A Humanização da Humanidade na
68 História da Europa Moderna
O alvorecer da Era Moderna foi marcado pelo surgimento de vários
tratados novos em filosofia e em teologia a respeito da “a humanidade
como tal”, sua dignidade, seus riscos, bem como o seu potencial. O
Oratio de hominis dignitate (Discurso sobre a Dignidade do Homem) de
Giovanni Pico della Mirandola, de 1486-1487, tornou-se famoso neste
23 Esta descrição é baseada em observações pertinentes à Enciclopédia da Era Moderna: RÜSEN, Jörn/
JORDAN, Stefan: “Mensch, Menschheit”, in: JAEGER, Friedrich (Ed.): Enzyklopãdie der Neuzeit, vol. 8:
Manufaktur-Naturgeschichte, Stuttgart, 2008, pp. 327 - 340.
contexto.24 No início do século XVII, o termo “antropologia” foi criado. A
Era Moderna, no entanto, é também marcada pela ideia de que o conceito
de humanidade tornou-se um assunto de muita controvérsia, o que
resultou em diversas reflexões sobre a sua natureza cada vez mais plural
e divergente. No século XVII, a disciplina da teologia, que inicialmente
manteve o monopólio da definição de como é o homem, foi substituída
pela filosofia, com a qual, por sua vez, passou a competir com o discurso
antropológico da jurisprudência, da medicina e das novas ciências.
Mas, deixando o nível de reflexão teórica de lado, foi também no campo
da própria prática cultural que as mudanças no conceito de homem
ocorreram: as áreas religiosas, políticas e sociais da atividade humana;
desde o século XVII, na literatura e nas artes visuais, que se tornaram
cada vez mais autônomas; E, finalmente, na tecnologia, que, com base em
conhecimentos científicos, tornou-se cada vez mais dominante na vida
cotidiana e deu origem ao tipo humano chamado homo faber, ou seja, o
homem pensado apenas em termos do que é tecnicamente viável. Além
24 PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni: Oratio de hominis dignitate. Rede über die Würde des Menschen,
Latin-German, ed. and transl. by Gert von der Gönna, Stuttgart, 1997. MIRANDOLA, Giovanni Pico
della. Discurso sobre a dignidade do homem. Lisboa: Edições 70, 2006.
25 VAN DÜLMEN, Richard (Ed.): Entdeckung des Ich. Die Geschichte der Individualisierung vom
Mittelalter bis zur Gegenwart, Cologne, 2001.
2) universalização, 3) naturalização, 4) idealização, 5) historicização, 6)
individualização.
a) A Secularização
Na Era Moderna, a autonomia de um homem agindo como sua própria
autoridade estava em conflito com os preceitos religiosos de orientação
cultural. A doutrina cristã tradicional da salvação, e sua interpretação
religiosa do mundo, foi incapaz de manter seu ritmo com o crescente
estoque de conhecimento fornecido pelas ciências e pelas humanidades.
No século XVII, a interpretação tradicional do mundo se diferenciou em
diversas áreas do conhecimento em que as explicações empíricas, sem
qualquer referência a uma autoridade transcendental, tornaram-se cada
vez mais relevantes para a percepção da própria humanidade. O exemplo
mais flagrante disso é a virada copernicana nas ciências, o que pode ser
considerado como uma revolução filosófico-científica dirigida contra a
antiga visão de mundo geocêntrica do que era “natural” e sancionado pela
Humanismo clássico — um levantamento histórico
Igreja cristã.
O retorno à antiguidade clássica era de importância decisiva para
este processo de secularização. Desde o Renascimento e os movimentos
humanistas a ele associados, o humanismo tem desempenhado um papel
vital na formação do conceito intelectual que as classes educadas têm de si
mesmas por toda a Europa.26
Sem cair completamente no esquecimento como uma fonte de
significado, a religião cristã, no entanto, apresentava alguma autoridade
interpretativa no que diz respeito ao fornecimento de alguma orientação
em relação ao aqui e agora. Moral e intelectualmente desacreditada por
várias guerras civis devido a motivos religiosos, as igrejas cristãs no
século XVII foram submetidas a uma crítica da religião, tendo como
consequência a subjetividade do homem moderno que, anteriormente,
70 tinha sido fundamentada na religião cristã, enquanto agora passa a ser
definida em termos exclusivamente seculares. Reivindicações a partir de
verdades religiosas, que tinham encontrado a sua expressão em várias
denominações (articulações “positivas” da fé), foram substituídas por
uma moral universalmente humana cujas bases foram formadas pela lei
da razão (por exemplo, no drama filosófico de G. E. Lessing “Nathan der
26 Cf. CANCIK, Hubert: “Die Rezeption der Antike - Kleine Geschichte des europaischen Humanismus”,
in: RÜSEN, Jörn/LAASS, Henner (Eds.): Interkultureller Humanismus. Menschlichkeit in der Vielfalt der
Kulturen, Schwalbach/Taunus, 2009, pp. 24- 52.
Weise” (“Nathan, o Sábio”), de 1779, com sua “Parábola do anel”).
Como essa orientação cultural secular da moralidade da vida humana
veio à existência, derivou-se daí sua autoridade na sociedade civil. Neste
contexto, a fé religiosa foi concebida como uma questão meramente
privada por causa da lei fundamental da tolerância. Devido à influência
do Iluminismo, a compreensão secular do homem como um ser que pode
dispor livremente do seu mundo, de acordo com os preceitos da razão,
tornou-se o alicerce cultural da sociedade civil moderna.
b) A Universalização
Com o aumento do conhecimento fornecido pelas ciências humanas
e naturais, a ideia da unidade da raça humana teve de ser revista. Na teoria
racial, foi possível abandonar, por um tempo, o conceito unitário por
completo, por exemplo, em La-Peyrêre, Voltaire, E. Long ou Ch. Meiners.27
No final, no entanto, o reconhecimento da unidade monogenética da
humanidade prevaleceu contra a ideia de sua poligenia.28 Este quadro
27 LA PEYRERE, I.: Prae-Adamitae, 1655 (Reprint: Kessinger Publishing, 2009); VOLTAIRE: Essai sur les
moeurs et l’esprit des nations et sur les principaus faits de l'histoire depuis Charlemagne jusqu'a
Louis XIII, 1756 (repr.: Paris, 1963, 2 voIs.); LONG, E.: History of Jamaica, 1774 (new print New York,
2009); MEINERS, Ch.: Grundriβ der Geschichte der Menschheit, Lemgo, 1785.
28 A antropologia de Johann Friedrich Blumenbach era típica em relação a isso, bem como altamente
influente em termos discursivos. (De generis humani varietate nativa liber, Göttingen, 1775). Sobre o
contexto histórico e cultural Cf. REILL, Peter Hanns: Vitalizing nature in the Enlightenment, Berkeley,
2005.
duradouro sobre os direitos naturais. A história desta cultura se estende
desde as modernas constituições democráticas, que ainda estavam
confinadas às nações individuais, a todo o caminho até a “Declaração
Geral dos Direitos Humanos” proposta pela Organização das Nações
Unidas em 1948, a qual incluiu toda a humanidade.
Este valor correspondeu a uma quebra em relação à assimetria
etnocêntrica da maneira em que a identidade cultural foi constituída, e
que a inclusão ou exclusão foram acusadas de defender diferentes valores
positivos ou negativos. Mesmo que as culturas ocidentais afirmassem
processar padrões civilizatórios mais elevados do que outras culturas, a
legitimação da exploração e repressão que vieram junto com ela eram
claramente limitadas — pelo menos no que se referia à reflexão teológica,
filosófica, jurídica e moral. Ao atribuir aos “outros” certas qualidades
humanas, incluindo-os também na raça humana, o seu tratamento
bárbaro era (em nome de uma civilização superior) colocado abertamente
à crítica à luz dos padrões humanos mínimos, e em nome de um tipo
Humanismo clássico — um levantamento histórico
de civilização mais elevado, que por sua vez significava que poderia ser
limitado por meios legais.
As regras políticas dos homens sobre os outros homens assim ficaram
restritas em termos teóricos, e sua legitimidade se pôs como uma premissa
para a liberdade fundamental de cada indivíduo submetido a tal regra.
Isso implicou numa reivindicação fundamental na participação no poder
político. A humanização moderna do homem teve seu apogeu político,
especialmente na Europa e nos EUA, na evolução dos direitos humanos e
civis, constitucionalmente consagrados e sancionados, os quais continuam
vigentes até o presente.
Como os direitos humanos, por definição, foram derivados e
pertencem a toda a raça humana, eles também poderiam ser reivindicados
pelas pessoas que, seja por conta da falta de liberdade real (por exemplo,
no caso de repressão) ou a falta real para alguns da definição básica do
72 elemento da humanidade (por exemplo, da razão, no caso de crianças
pequenas, ou deficientes mentais ou morais, no caso, de desvios sociais),
não foi alcançada uma definição padrão de um ser humano livre, razoável
e ético. Ao mesmo tempo, o processo moderno de regulamentação das
regras políticas e vida social por meios constitucionais, que começou na
Europa Ocidental e nos EUA, tornou-se, em algum grau, globalizado.
c) A Naturalização
Desde o início da Era Moderna, o homem descobriu a si mesmo
em termos do contraste acentuado e da mediação dialética entre o seu
estatuto como um ser natural e intelectual, tudo ao mesmo tempo: por um
lado, tornou-se, assim, uma coisa, isto é, um objeto corpóreo da análise
racional e, com base nisso, de dominação tecnológica e manipuladora.
Por outro lado, tornou-se o senhor da dominação e da manipulação. Esta
distinção deve-se ao fato de que o homem, ao estudar a si mesmo, nunca
pode descrever-se como tal, mas sempre apenas em termos relacionais:
por causa de suas qualidades naturais como um animal e por causa de
suas particularidades espirituais enquanto um ser relacionado com Deus.
O homem, assim, foi dividido em um objeto de observação científica, por
um lado, e em um ser espiritual, por outro.
René Descartes expressou esta dicotomia na relação do homem
consigo mesmo e com o mundo numa fórmula altamente relevante através
da diferenciação entre “res cognitas” — uma substância exclusivamente
d) A Idealização
Concomitante e num intercâmbio complexo com a visão naturalizadora
da humanidade, a tendência histórica da idealização evoluiu, por meio
do conceito de natureza humana, que assumiu um caráter nitidamente
espiritual. Nesse processo, a tradição religiosa do homem enquanto feito à
Humanismo clássico — um levantamento histórico
30 DESCARTES, René: Discours de Ia méthode, 1637 VI, S. 2 (Discours de Ia Méthode, 6e partie. Paris,
1966, p. 168; German translation: Abhandlung über die Methode, transl. Arthur Bu- chenau, Leipzig,
1919, p. 51). DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
homem como um ser natural foi concebida pelo idealismo alemão.
A pré-condição histórica mais importante para este conceito
antropológico ligado à personalidade moral era a ideia do homem que
foi feito à imagem de Deus, além da prática religiosa — sobretudo no
protestantismo — da relação pessoal e direta com Deus. “Estar diante
de Deus” tornou-se agora parte do conceito da própria humanidade.
Assim, por exemplo, Dürer deu traços semelhantes aos de Cristo no seu
autorretrato de 1500. Esta interiorização da relação com Deus, da parte do
sujeito individual, levou à ideia da subjetividade humana, que é marcada
pela liberdade de consciência e de ação autoresponsável. O homem
agora se torna consciente de sua capacidade de se afundar no status de
um animal ou de ascender às esferas de Deus por meio de suas próprias
ações. A autonomia cultural da humanidade resultante deste ato de
emancipação religiosa com relação à determinação de si e de seu mundo
foi sucintamente expressa por G. Pico della Mirandola (1486), quando,
por ocasião da criação do mundo, ele faz Deus dizer para humanidade:
e) A Historicidade
A temporização do conceito de humanidade é uma especificidade
Humanismo clássico — um levantamento histórico
34 HERDER, Johann Gottfried: Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit (Werke, ed.
Wolfgang Pross, vol. III/1), Munich, 2002, p. 135 .
completamente determinada pelo histórico. O homem como um animal
sociale passa por vários estágios de uma evolução histórica universalizante
que, finalmente, culmina com a forma de vida da sociedade civil moderna.35
Como consequência do crescente conhecimento sobre a diversidade
de formas humanas de vida, dispersou-se a ideia de uma generalização
e de uma lei física aplicada à forma como todos os seres humanos
regulam suas vidas carnais. Em vez disso, o conceito de “humanidade”
como uma categoria fundamental para definir a natureza humana
adquiriu uma dimensão temporal. Teorizar sobre essa condição se tornou
primeiramente a tarefa da filosofia da história no Iluminismo (precoce).
Forneceu a temporalidade inerente das formas de vida humana enquanto
um senso geral de direção. O ser humano foi assim dilatado pela diferença
qualitativa entre o passado e o futuro. O processamento intelectual da
experiência passada foi considerado o princípio que capacitou o homem
a ultrapassar este “espaço experiencial” fechado e transformá-lo em um
“horizonte de expectativa” aberto onde — devido sua capacidade de
35 FERGUSON, Adam: Versuch über die Geschichte der bürgerlichen Gesellschaft, Frankfurt/Main,
1986; MILLAR, John: Vom Ursprung des Unterschieds in den Rangordnungen und Ständen der
Gesellschaft, Frankfurt/Main, 1985.
36 KOSELLECK, Reinhart: “’Erfahrungsraum' und 'Erwartungshorizont’ - zwei historische Kategorien”,
in: ibid., Vergangene Zukunft. Zur Semantik geschichtlicher Zeiten, Frankfurt/Main, 1979, pp. 349-
375. KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categoria
históricas. In: ibid. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto/PUC-Rio, 2006, p. 305-327.
37 DROYSEN: Historik. (nota de rodapé 34), p. 41.
da humanidade foi realizada ao se manifestar na variedade das suas
culturas.38 Ranke expressou essa ideia da seguinte forma: “O princípio de
que a diversidade das nações e dos indivíduos contribuem para a ideia da
humanidade como um todo é um progresso absoluto”.39
f) A Individualização
Já nos finais da Idade Média um processo de motivação religiosa
ligada à individualização definiu qual singularidade de cada indivíduo
(diante de Deus e de todos os outros seres humanos) tornou-se perceptível.
A Reforma, a reforma do catolicismo e o surgimento de formas místicas
de religiosidade em todas as denominações e em todos os caminhos
até o Pietismo ou o Iluminismo religioso, promoveram esse processo
que teria consequências de longo alcance para as práticas culturais. A
individualidade assim formada foi absorvida, por vezes, sem problemas
e, às vezes, no meio de um conjunto de lutas, a partir do conceito de
autonomia individual.
Humanismo clássico — um levantamento histórico
Nos séculos XVII e XVIII isso deu origem a novas ideias sobre a
maneira como o homem e a humanidade foram relacionados entre si. Por
um lado, essa relação foi interpretada de forma biológica-antropológica,
reconhecendo cada indivíduo como parte de uma mesma espécie humana.
Baseado nisso era, então, possível em termos teóricos, deduzir a coesão
social da humanidade a partir de um contrato social fictício celebrado
por indivíduos autônomos em prol da garantia da sua sobrevivência
comum. Essa ideia — inicialmente desenvolvida de forma exemplar por
Thomas Hobbes em seu “Leviathan” [“Leviatã”] (1651) — encontrou sua
expressão clássica em John Locke nos “Two Treatises on Government”
[“Dois Tratados sobre o Governo”] (1690) e, sobretudo, em Jean-Jacques
Rousseau “Du contrat social” [“Do contrato social”] (1762). Neste
contexto, o indivíduo foi percebido no papel de um patriarca, mas o fator
78 decisivo foi sua vontade pessoal e a sociabilidade como o fundamento
próprio da sociedade humana.40
O conceito da individualidade humana foi derivado da ideia de que,
através da introdução da mão de obra, surgiu a capacidade de adquirir
a propriedade da natureza. O conceito de humanidade, dominante na
38 JAEGER, Friedrich, RÜSEN, Jörn: Geschichte des Historismus. Eine Einführung, Munich, 1992.
39 RANKE, Leopold von: Über die Epochen der neueren Geschichte, ed. Th. Schieder and H. Berding
(Aus Werk und Nachlaβ, vol. 2), Munich, 1971, p. 80.
40 VAN DÜLMEN, Richard: Die Entdeckung des lndividuums 1500-1800, Frankfurt/Main, 1997.
forma de vida pós-corporativa da sociedade burguesa, tinha como base a
igualdade do homem em relação a todos os outros homens e à liberdade
para acumular propriedades. A associação entre o proprietário de imóveis
com outros donos de propriedades passou a formar sociedade burguesa.
Ao tornar-se parte dessa sociedade, a ele foi concedido o estatuto de um
cidadão que contava com a proteção de seus direitos humanos garantidos
pela Constituição e que, em companhia de todos os outros cidadãos,
passou a ser o próprio fundamento da soberania e da dominação política.41
Paralelamente a este individualismo social da sociedade burguesa
surgiram as teorias sobre a existência de um vínculo espiritual entre os
seres humanos, por exemplo, em G.W. Leibniz a partir da ideia de uma
harmonia pré-estabelecida, em G. F. Fichte, da derivação do indivíduo
com autoconsciência absoluta e, ainda, outro representante do idealismo
alemão, tal como em J. G. Herder e da noção de W. von Humboldt da
comunhão de todos os seres humanos através da sua participação
individual em determinadas ideias transcendentais.42 A experiência de
41 MACPHERSON, C.B.: Die politische Theorie des Besitzindividualismus. Von Hobbes bis Locke,
Frankfurt/Main, 1973. (MACPHERSON, C.B. A teoria política do individualismo possessivo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979).
42 LEIBNIZ, G.W.: Monadologie (French/German, transl. by Heinrich Kôhler), Frankfurt/Main, 1996
(LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. “A monadologia”. Os pensadores - história das grandes idéias do
mundo ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1974.); Fichte, J.G.: Die Bestimmung des Menschen, 5th 79
ed., Hamburg 1979; Fichte, J.G.: Die Anweisung zum seligen Leben, oder auch die Religionslehre, 4th
ed., Hamburg 1994; HERDER, J.G.: Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der Menschheit,
Frankfurt/Main 1967 (HERDER, Johaan Gottfried. Também uma filosofia da história para a formação
da humanidade. Uma contribuição a muitas contribuições do século. Lisboa: Antígona, 1994.);
HUMBOLDT, Wilhelm von: “Über die Aufgabe des Geschichtsschreibers”, in: Werke, ed. Andreas
Flitner and Klaus Giel, vol. 1: Schriften zur Anthropologie und Geschichte, Darmstadt, 1960, pp. 585 -
606 (Gesammelte Schriften [Akademie-Ausgabe] IV, pp. 35 - 56) (HUMBOLDT. W. “Sobre a Tarefa do
Historiador”. In: Anima. Ano 1, número 2, 2001, p. 88.).
43 SCHLÖZER, August Ludwig: Vorstellung seiner Universalhistorie, Göttingen/Gotha 1772. Newprint
Hagen, 1990; GATTERER, J.Ch.: Abrifl der Universalhistorie in ihrem ganzen Umfange. Bey dieser
zwoten Ausgabe völlig umgearbeitet und bis auf unsere Zeiten fortgesetzt, Göttingen, 1773.
44 Cf. nota de rodapé 43.
perceptível na multiplicidade das formas de vida e, ao mesmo tempo,
tornou-se um preceito para cada ser humano se governar individualmente
e dar forma à sua vida. A realização específica de tal individualização
da humanidade foi denominada “formação geral” (“Bildung”), e
tornou-se o conceito orientador da socialização humana, bem como da
individualização ao informar programas educacionais e práticas artísticas.
Na Alemanha, por exemplo, esse processo foi implementado através da
reforma da educação e dos sistemas universitários no final do século XIX,
os quais foram influenciados, principalmente, por Wilhelm von Humboldt
e Friedrich Schleiermacher, e se manifestaram no gênero literário do
“Bildungsroman” que encontrou o seu exemplar mais expressivo na obra
“Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister”, de Goethe (“Wilhelm
Meisters Lehrjahre”) (1795-1796). Este conceito educacional, que ainda
é válido contemporaneamente, pode ser considerado, tanto estrutural
quanto geneticamente, a projeção da categoria de historicismo em direção
ao processo de individualização.
Humanismo clássico — um levantamento histórico
45 HU SHI: Autobiographie mit Vierzig (transl, from Chinese by Marianne Liebermann and Alfred
Hoffrnann), Dortrnund, 1998. See a1so GRIEDER, Jerome B.: Hu Shih and the Chinese Renaissance,
Cambridge, Mass., 1999; EGLAUER, Martina: Wissenschaft aIs Chance. Das Wissenschaftsverstiindnis
des chinesischen Philosophen Hu Shi (1891-1962) unter dem Einfluβ von John Deweys (1859-1952)
Pragmatismus, Stuttgart, 2001.
46 GANDHI, Mahatma: “Hindu Swaraj”, in: MUKHERJEE, Rudrangshu (Ed.): The Penguin Gandhi Reader,
New York, 1993, pp. 3-66.
ela adquire a singularidade que tem em comum com a singularidade do
eu, e tudo isso dentro de um quadro conceitual no qual a diferença cultural
enquanto elemento determinante da própria identidade não desaparece,
mas desempenha um papel importante. Neste sentido, a diferença em
relação ao outro se torna uma maneira de fazer-se a si mesmo ao ser
refletido pelo outro; e os outros representam para o eu o desafio de serem
reconhecidos.47 Uma compreensão abrangente da humanidade é, portanto,
capaz de mitigar a amargura do etnocentrismo transformando-o em uma
oportunidade de humanizar ambos os lados.48
Esta mudança fundamental é mais do que um postulado teórico
distante da realidade. Há algumas conquistas históricas em que esta
mudança já é prenunciada: primeiro de tudo, no enriquecimento da ideia
da humanidade através da dimensão estética. Dentro dessa esfera —
mas só nela — a dureza da diferenciação política e social é atenuada por
meio da resolução imaginária. As “Briefe über die ästhetische Erziehung
des Menschen”, de Schiller, equivalem a uma formulação clássica desta
Humanismo clássico — um levantamento histórico
47 Emmanuel Levinas radicalizou esse argumento no sentido de conceber o eu nos termos do outro.
(LEVINAS, Emmanuel: Humanismus des anderen Menschen, Hamburg, 1989 [LEVINAS, Emmanuel.
Humanisrno do Outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993]).
82 48 Cf. RÜSEN, Jörn: “How to Overcome Ethnocentrism: Approaches to a Culture of Recognition by
History in the 21st Century”, in: Taiwan Journal of East Asian Studies 1.1 (June 2004): 59- 74; also in:
History and Theory 43 (2004) Theme Issue "Historians and Ethics": 118-129.
49 SCHILLER, Friedrich: “Über die ästhetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen
(1795)”, in: Sämtliche Werke in 5Bänden,ed. Peter-André Alt, Albert Meier and Wolfgang Riedel, vol. 5,
Munich, 2004, pp. 570-669 (SCHILLER, Friedrich. A educação estética da humanidade: numa série de
cartas. São Paulo: Iluminuras, 1995.).
50 EISENSTADT, Shmuel N.: "Multiple Modernities", in: Daedalus 129.1 (Winter 2000): pp. 1-30
(EISENSTADT, S.N.: “Múltiplas Modernidades”. Sociologia, Problemas e Práticas, n.35, Oeiras, p. 139-
163, abr. 2001.).
51 WALDENFELS, Bernhard: Vielstimmigkeit der Rede. Studien zur Phänomenologie des Fremden 4,
Frankfurt/Main, 1999.
própria subjetividade, naqueles traços que constituem a alteridade do
outro. Percebemos que estes traços não são nada mais que a sombra da
extraterritorialidade de nós mesmos. Finalmente, a forma de vida secular
da sociedade civil tem de ser mencionada. Em termos culturais, e com
base na ideia da dignidade humana abre-se a oportunidade de viver
com a diferença. O princípio da tolerância foi um primeiro passo nesse
sentido. Mais do que isso, o passo importante que vai da tolerância para o
reconhecimento é buscado em vários contextos.52
No entanto, a ideia de uma humanidade fundada no princípio da
dignidade humana está ameaçada. Considerada a força avassaladora da
economia de mercado e da lógica instrumental da tecnologia, a noção
da autonomia moral e autodeterminação da humanidade parece ser
apenas uma ilusão. Movimentos políticos poderosos, como o fascismo
ou o comunismo foram inspirados pela ideia de superar o status quo do
homem em favor de um “novo homem” ou “além-do-homem”, os quais
eram considerados capazes de abandonar todas as imperfeições da vida
52 No entanto, as formas de vida sociedade civil secular são pluralisticamente entendidas apenas como
algumas entre outras, por isso, a chance de fazer da alteridade um espaço habitável é perdida.
A sociedade civil é, em primeiro lugar, uma meta-chave que permite o pluralismo da orientação
cultural.
53 Cf. KÜENZLEN, Gottfried: Der neue Mensch, Frankfurt/Main, 1997.
axial. O que está em jogo aqui são as visões (no sentido de uma melhoria
qualitativa) de todas as realizações dos conceitos universalistas da
humanidade que foram desenvolvidas na primeira era axial. Tal revisão
exige uma “Renaissance”, uma recepção produtiva e um desenvolvimento
do conceito de humanidade que, do humanismo moderno e até hoje,
determina uma variedade de tradições culturais, as quais, numa
comunicação intercultural decididamente ainda estão competindo umas
com as outras em busca de uma compreensão não subsumida à cultura
unitária da modernidade.54
De qualquer forma, a ideia de que a humanidade pode ser desenvolvida
para além dela mesma, é um fator tão elementar quanto universal da vida
humana, o que trouxe em jogo um novo pensamento humano, uma vez
que até agora tinha sido totalmente sub exposto, se não mesmo antes
desconsiderado: o sofrimento humano. Em vista dos vários crimes contra
a humanidade que, como sempre, são experiências deprimentes dos
nossos tempos e que as ciências humanas e sociais ainda estão lutando
Humanismo clássico — um levantamento histórico
84
54 Cf. RÜSEN, Jörn/LAASS, Henner (Eds.): Humanism in Intercultural Perspektive. Experiences and
Expectations, Bielefeld 2009; RÜSEN, Jörn/LAASS, Henner (Eds.): Interkultureller Humanismus.
Menschlichkeit in der Vielfalt der Kulturen, Schwalbach/Taunus, 2009.
Historicizando a
humanidade – algumas
considerações teóricas
na contextualização e
compreensão sobre a ideia
de humanidade1
1 Publicado em Taiwan Journal of East Asian Studies. Vol.7, N.1 (Issue 13) June 2010, p.21-39. Traduzido 85
por Lucas Pydd Nechi.
2 Nota do Autor: A palavra “genética” pode ser mal compreendida. Seu significado aqui não tem
relação com os genes do corpo humano, mas se refere à palavra grega ‘genesis’, que significa
‘produção’, ‘geração’, ‘vir a ser’. Eu compreendo por ‘genética’ um modo temporal do mundo humano
enfatizando a mudança.
3 Nota do Autor: O texto clássico descrevendo esta mudança está em Reinhart Koselleck, Historia
magistra vitae. Über die Auflösung des Topos im Horizont neuzeitlich bewegter Geschichte, in idem:
Vergangene Zukunft. Zur Semantik geschichtlicher Zeiten (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1979),
pp. 38-66. English version in: Reinhart Koselleck, Futures Past: On the Semantics of Historical Time
(Cambridge, Mass.: MIT Press, 1985). Eu analisei estes dois tipos de quadros de tipologia geral de
produção de sentido histórico em Jörn Rüsen, History: Narration, Interpretation, Orientation (New
York: Berghahn Books, 2005), pp. 9-39.
à forma pré-concebida dominante de se fazer história em tempos pré-
modernos. Então, era a maneira exemplar de dar sentido ao passado que
moldou o pensamento histórico na maioria, se não todas, as culturas por
um longo tempo. Foi exatamente essa lógica do pensamento histórico
contra o qual o especificamente moderno, a lógica de geração de sentido
genético, se opôs.
O pensamento exemplar estava interessado em derivar regras gerais
de conduta humana, a partir de casos concretos de eventos históricos.
A experiência histórica fornecia um grande estoque de personagens e
eventos para o discernimento moral e político. Cicero expressa essa lógica
do pensamento histórico com o famoso slogan “historia magistra vitae”.
Estas regras foram encaradas como sendo trans-temporalmente
válidas, para além do contexto específico de tempo e espaço em que a
vida humana ocorre. No âmbito desta lógica da história, a compreensão
do passado como repleto de sentido para o presente significava que ambas
as dimensões temporais incorporavam-se como um dado natural de
Humanismo clássico — um levantamento histórico
4 Nota do autor: À história tem sido atribuída a tarefa de julgar o passado, para ensinar ao mundo
contemporâneo em benefício do futuro. Nosso esforço presente não reivindica uma tarefa tão
prestigiosa: Ele só tem como objetivo mostrar, como as coisas eram realmente [o que eram as
coisas realmente; como as coisas realmente aconteceram; como ele realmente foi]. In Leopold von
Ranke, Geschichten der romanischen und germanischen Völkervon 1494-1514, Sämtliche Werke,
Bd. 33 (Leipzig, 1855), p. VIII. Also in Leopold von Ranke, The Theory and Practice of History, ed. with
an Introduction by Georg G. Iggers and Konrad von Moltke (Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1973), p. 137.
através de um quadro de interpretação no qual a auto-compreensão
das pessoas do passado tenha sido sistematicamente integrada. Este é o
significado de outro slogan famoso de Ranke, "Cada época é imediata a
Deus."5 Isto significa que cada época tem o seu significado histórico em si.
Ele não é de forma alguma conquistado por sua assumida relação direta
com os padrões atuais de significância (o conceito mais relevante dessa
relação direta é o conceito de progresso); pelo contrário, o seu significado
é definido pela sua diferença em relação ao presente. Assim, o passado e
o presente obtem uma nova relação temporal caracterizada pela diferença
e não mais pela semelhança trans-temporal da vida humana em relação a
alguns supostos princípios básicos da vida prática, válidos apesar de todos
os contextos diferentes.
Esta mudança na formação das categorias temporais de pensamento
histórico pode ser caracterizada pelos termos de temporalização ou
historicização. De acordo com esta nova lógica da história, a compreensão
adquiriu um novo significado: ela concretiza esta temporalidade ou
5 Em inglês: Leopold von Ranke, The Theory and Practice of History (Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1973),
fn. 2, p. 53.
6 (n.r. Jonathan Sacks, The Dignity of Difference: How to Avoid the Clash of Civilizations (London:
Continuum, 2003).
ciências humanas nunca foram estabelecidos definitivamente. Eles foram
concebidos no início do pensamento moderno sobre o mundo humano,
e tornaram-se eficazes no desenvolvimento do pensamento histórico
como modos flexíveis e dinâmicos – correspondendo a temporalização e
historicização do assunto em questão, a própria história.
Contextualização e compreensão, ou historicidade e hermenêutica,
tendem a mudar no processo de discursos disciplinares. Esta mudança
pode até ser explicitamente trazida por uma reflexão dentro desses
discursos. (Esta entrada reflexiva nos conceitos e métodos básicos do
pensamento histórico especialmente acontecem em tempos chamados
de "crises de princípios fundamentais" (Grundlagenkrise.) - como o
Lamprecht-Streit na Alemanha. Mas, também podem ocorrer como uma
tendência em instituições bem estabelecidas de pesquisa, interpretação
e representação.) Exemplos bem conhecidos desta mudança ocorrida na
longa discussão sobre generalização e individualização, sobre explanações
e compreensões, e hoje em dia sobre a racionalidade e poética nas
Humanismo clássico — um levantamento histórico
7 Nota do Autor: Essa expansão é descrita no caso da história por Georg G. Iggers e Q. Edward Wang,
A Global History of Modern Historiography (Harlow: Pearson Education, 2008).
históricos. No entanto, desde o início das humanidades modernas e
em diante ela foi epistemologicamente inválida. A dependência da
interpretação hermenêutica sobre o contexto cultural ou mediante o
então chamado "ponto de vista" dos profissionais no contexto cultural
de suas sociedades foi notado e refletido já no final do século 18. Ela
tornou-se um elemento importante na lógica da auto compreensão e
autorreflexão das novas disciplinas acadêmicas das ciências humanas.
Isso aconteceu exatamente ao mesmo tempo e na inter-relação sistemática
com o surgimento e o desenvolvimento da nova racionalidade metódica,
que definiu as humanidades como disciplinas acadêmicas. Em plena
consciência dessa racionalidade, eles se chamavam no mundo não falante
de inglês (Alemanha, França, Itália, etc.) de "ciências". Seu caráter erudito
ou acadêmico foi definido pelo profissionalismo dos estudiosos. E, este
profissionalismo foi manifestado na capacidade dos estudiosos de trazer o
progresso do conhecimento pela pesquisa.
Foi esse profissionalismo e a eficiência dos novos métodos de pesquisa
Humanismo clássico — um levantamento histórico
10 Nota do Autor: Só para dar um exemplo: "A filosofia indiana começou por volta de 2000 a.C. e durou
até os dias de hoje, enquanto os escritos sobre filosofia grega começam geralmente com Thales
do século VII a.C. e termina com os alexandrinos do terceiro século d.C. ... Enquanto o pensamento
indiano tem tido uma continuidade de cerca de 4.000 anos ... o pensamento grego teve uma
continuidade de apenas cerca de mil anos." Veja P.T. Raju, " The Concept of Man in Indian Thought
", em S. Radhakrishnan e P.T. Raju (eds.), The Concept of Man: A Study in Comparative Philosophy
(London: George Allen & Unwin, 1960), pp. 206-305, esp. p. 206.)
estratégia de conflitos e jogos de poder. Mas, gostaria de enfatizar a outra
forma de compreensão: ela não segue a lógica de uma estratégia de auto-
preservação ou mesmo auto-aprimoramento, com a consequência de
subjugação e dominação na relação com os outros, e isso não é inspirada
por as forças mentais de etnocentrismo. Em vez disso, a compreensão
pode seguir a lógica de comunicação com o objetivo de dar e receber o
reconhecimento. Aqui a peculiaridade se não singularidade da forma da
própria vida e da diferença dos outros é uma preocupação primordial11.
Esta alternativa não é uma questão de livre escolha ou de inclinação
moral arbitrária; ao contrário, é uma questão de argumentação racional.
Em tais casos, a compreensão não é possível sem que haja pelo menos alguns
elementos de reconhecimento de diferenças. Ela não pode ser provocada
sem uma mudança de perspectiva, de modo que a própria forma de vida
de alguém não é percebida como unilateral, mas em uma forma relacional
pela consciência da alteridade. Além disso, ninguém pode ignorar o
simples fato de que o grau e o nível de compreensão aumentam com o grau
Humanismo clássico — um levantamento histórico
11 Nota do Autor: Conferir Jörn Rüsen, "How to Overcome Ethnocentrism: Approaches to a Culture of
Recognition by History in the 21st Century," in Taiwan Journal of East Asian Studies, 1, 1 (June, 2004),
pp. 59-74; also in History and Theory, 43 (2004), Theme Issue "Historians and Ethics", pp. 118-129)
Por fortalecimento, eu entendo as vantagens metódicas de uma
contextualização sistematicamente reflexiva. Meu argumento é bastante
simples. Ao refletir contextos, as mentes humanas podem romper suas
fronteiras. Qual é a dimensão semântica deste rompimento? Uma vez que
a capacidade de refletir sua orientação cultural (ou, como Richard Rorty,
uma vez colocou, "para falar sobre a linguagem") constitui a peculiaridade,
se não a singularidade do ser humano, esta dimensão é a humanidade.
Com este argumento, eu utilizo a ideia pré-moderna de
compreensão, referindo-se a mesma natureza cultural do homem. Mas,
é uma natureza cultural completamente historizada e individualizada.
A ideia dessa natureza cultural temporalizada da humanidade tem sido
sistematicamente levada em conta como conceitual, ou melhor, como a
pré-condição categórica para intersubjetividade no trabalho hermenêutico
das humanidades.
Esta é uma tarefa filosófica inserida nas humanidades e em nome de
seu status acadêmico. Em vez de desistirmos de uma mudança topológica
14 Nota do autor. Conferir: Christoph Antweiler, Menschliche Universalien. Kultur, Kulturen und die
Einheit der Menschheit (Darmstadt: Wiss. Buchgesellschaft, 2007)
pertencem essencialmente à estrutura interpretativa de conceituar
a diferença no pensamento hermenêutico. A fim de avançar a partir
de universais antropológicos para peculiaridades culturais, devem-se
construir tipos ideais. Eles revelam em que condições os universais obtém
suas manifestações peculiares. Aqui o processo de contextualização obtém
rigor metódico no trabalho cognitivo das ciências humanas.
Cada cultura tem uma ideia do que significa ser um ser humano. Esta
ideia se manifesta em uma grande variedade de ideias da humanidade.
Hoje, é a tarefa das ciências humanas para entender tais variações,
trazendo-as em perspectiva intercultural. Este processo, no entanto, é
contestado pelos problemas atuais de comunicação intercultural. O que
precisamos é de uma teoria da humanidade que fundamentalmente
historicize o significado de ser humano e, ao fazê-lo, torne a variedade
deste significado compreensível.
Eu comecei a desenvolver uma teoria, mas seria necessário outro artigo
para apresenta-la apropriadamente. Talvez eu possa tentar esboça-la em
15 Nota do Autor: Um exemplo típico é Kant em “Ideia para História Universal com Propósito
Cosmopolita” de1784. Conferir “Kant’s Political Writing”, H. Reiss (ed.) (Cambridge: Cambridge
University Press, 1991), pp. 41-53.
Jaspers nos introduziu tal conceito de história com a sua ideia de Tempo
Axial16.
Dentro desta perspectiva histórica universal, a humanidade aparece
como uma variedade de universalismos articulando a natureza cultural
dos seres humanos de diferentes formas. A diferença ou, para utilizar
um conceito tradicional, a individualidade tornou-se uma característica
essencial da humanidade. Durante muito tempo, e mesmo hoje em dia
(no poder da tradição), estes universalismos foram excluindo-se uns
aos outros. Essas exclusões são eficazes como limites da compreensão.
Mas, esses limites podem ser transgredidos apenas para o nível em que
os universais da humanidade já não se excluem mutuamente, isto é,
somente mudando a lógica da exclusão para uma lógica da inclusão. Esta
mudança vai abrir novas possibilidades de compreensão. Ao usá-las, as
humanidades podem responder com êxito os desafios da comunicação
intercultural na era da globalização.
Humanismo clássico — um levantamento histórico
96
16 Nota do autor: Karl Jaspers, Vom Ursprung und Ziel der Geschichte (inicialmente em Zürich, 1949;
rpt. München: Piper, 1963) . Em inglês: The Origin and Goal of History.
Bibliografia
ANTWEILER, Christopher. Menschliche Universalien. Kultur, Kulturen und die
Einheit der Menschheit .Darmstadt: Wiss. Buchgesellschaft, 2007.
CHADENIUS, Johann Martin.(1752) Allgemeine Geschichtswissenschaft.
Leipzig, 1752; rpt. Wien: Böhlau 1985.
FUGLESTAD, F. The Ambiguities of History: The Problem of Ethnocentrism in
Historical Writing.. Oslo: Academic Press, 2005.
HERDER, Johann Gottlieb. Briefe zur Beförderung der Humanität, 2 vols, vol. 1
Berlin,Weimar, 1971.
IGGERS, Georg G., and Q. Edward Wang. A Global History of Modern
Historiography Harlow: Pearson Education, 2008.
JASPERS, Karl. Vom Ursprung und Ziel der Geschichte (first Zürich, 1949; rpt.
München: Piper, 1963); English: The Origin and Goal of History .Westport,
Conn.: Greenwood Press, 1976.
KANT, Immanuel. "Idea for a Universal History with a Cosmopolitan Purpose"
98
O enraizamento da ordem
política nos valores dos
cidadãos
Algumas ideias sobre o humanismo político
e a religião como uma base necessária para
1 Eu gostaria de agradecer a Ursula van Beck pelas inúmeras questões críticas e argumentos que
produziram melhorias substanciais em minhas próprias argumentações. Continuo responsável, é
claro, pelo que permaneceu ainda não convincente e problemático.
2 Traduzido do inglês Rooting political order in the values of the citizens. Some ideas on political
humanism and religion as a necessary base for a sustainable democracy, por Maria Auxiliadora
Schmidt (Texto cedido pelo autor).
é fácil alterá-las para formas menores ou não-democráticas.3 Portanto, a
mentalidade das pessoas que vivem nas instituições desempenha um papel
importante para a comparação entre diferentes países, na perspectiva da
sustentabilidade da sua ordem política democrática.
Neste capítulo, não discutirei as peculiaridades das diferentes
democracias e os problemas de comparar suas diferentes culturas políticas
e sua manifestação na mentalidade da elite. Em vez disso, eu gostaria de
focar o sistema de valores fundamentais pelos quais a democracia em
geral e em seus princípios é definida, e continuar a olhar para a questão da
diferença cultural que decorre de diferentes tradições da cultura política.
A fim de deixar claro sobre o que democracia é essencialmente, é útil
olhar para o seu contrário. O contrário é a teocracia, o autoritarismo e o
totalitarismo. Tendo como exemplo o Islã e o papel que ele desempenha
O enraizamento da ordem política nos valores dos cidadãos.
5 Apreciação de si e reconhecimento pelos outros – e ambos ao mesmo tempo – são uma condição
necessária para a identidade estável e dignidade.
6 Isto é claramente expresso por Chipkin (2007): 2. "... a nação é uma comunidade política cuja forma
é dada em relação ao exercício da democracia e da liberdade."
outros, quer se trate de autoreferência de uma pessoa ou de um grupo. Esta
distinção é uma fonte de tensões, uma vez que é normalmente baseada
na lógica do etnocentrismo (Rüsen, 2004 a, b, c). Essa lógica é composta
por três elementos, (a) uma avaliação desequilibrada: a auto-imagem é
caracterizada por um conjunto de valores positivos. Considerando que
a imagem dos outros é caracterizada por um conjunto menos positivo,
ou mesmo valores não negativos. O exemplo generalizado desta
avaliação desigual é a justaposição da civilização contra a barbárie. (b)
o etnocentrismo consiste em uma teleologia orientada a origem como a
forma dominante da narrativa mestra, que informa as pessoas quem está
lhes apresentando a história, como eles se tornaram o que são e o que eles
querem ser no futuro. (c) finalmente, etnocentrismo fornece às pessoas
uma posição central entre a variedade de povos e países ao redor deles,
O enraizamento da ordem política nos valores dos cidadãos.
7 Isto é sempre o caso se democracias com uma tradição histórica longa comparam-se com as
recém estabelecidas. Atitudes ocidentais para as democracias não-ocidentais não são livres desta
auto-estima etnocêntrica. Mas, mesmo no Ocidente pode ser observada uma inter-relação tão
desiquilibrada. Intelectuais alemães no pós-guerra, por exemplo, olharam com alguns sentimentos
de inferioridade (ou, pelo menos, das deficiências históricas) para as democracias mais estabelecidas
no oeste da Europa e EUA.
Essa dimensão histórica da identidade política democrática é um
lugar para a mesma luta. Toda a gente apela para a origem decisiva (com
provas mais ou menos histórica) de que o fundamento da democracia é a
liberdade. 8
Um aspecto especial desta luta é o fato de que a democracia
é um resultado da história ocidental. Isto levou a um problema de
identidade política nas democracias não ocidentais. Sua cultura política
historicamente refere-se não ao seu próprio passado (em uma perspectiva
de tempo histórico), mas a uma origem fora de suas próprias histórias.
Isto freqüentemente conduziu a um sentimento de alienação ou a uma
identidade fragmentada, enquanto a lógica do etnocentrismo é efetiva.
Para superar este fato, o humanismo político da democracia moderna
deve ser reconsiderado.
9 Friedrich Schleirermacher apresentou tal universalismo inclusivo em relação à vida religiosa nas
sociedades modernas. (Schleiermacher, 1913).
10 Um exemplo revelador para tal aprendizagem é o conceito de zero em matemática. Foi inventado
na Índia e todas as outras culturas utilizaram sem problemas com a auto estima.
a dimensão cultural de arte e a dimensão cultural de outras formas de
vida, tais como política, religião, vida social etc.
Aqui é um vasto campo de atividades culturais, no que respeita
a base da cultura democrática que está relacionado a um conceito de
humanidade. Debater democracia e procurar por suas condições culturais
não pode ser feito sem a pergunta de como é possível alterar formas
tradicionalmente pré-determinadas da ordem política e identidade
cultural na vida política presente, para que os conceitos universalistas de
humanidade integrem a diferença cultural, mesmo onde esta diferença é
baseada em universalismos diferentes. Deveríamos pedir universalismos
inclusivos na cultura política de hoje, para tornar a democracia segura
para o futuro, nas perspectivas nacional e internacional.
A cultura política da democracia pede fortes elementos para reconhecer
11 Lessing, Gotthold Ephraim: Nathan the Wise, V. 516 sqq. (primeira publicação 1799; Traduzido para
o inglês por William Taylor 1893 obtido em http://www.fullbooks.com/Nathan-the-Wise1.html).
sociedade civil e ainda mais o estado democrático moderno perderiam
uma condição necessária para si mesmo, que não pode ser substituída
apenas por elementos seculares. Esta é uma versão ampliada do famoso
argumento-Böckenförd: O estado vive em condições que ele não pode
definir-se (Böckenförde, 1991). Minha tese é - é errado que a religião
de maneira tradicional, incluindo o cristianismo permanece um desafio
e um problema para uma sociedade civil? Acho que no nível lógico
meu argumento é sólido ainda. Enquanto há reivindicações de validade
universal e, enquanto excluem as outras religiões de sua verdade universal,
pelo menos, um potencial de uma intolerância profundamente enraizada
permanece. Exclusividade é o caso. Deixe-me acrescentar um argumento
para a argumentação-Böckenförde, que é muito popular na Alemanha,
principalmente na jurisprudência. Na Alemanha, há um conflito agudo
sobre a questão de se professoras muçulmanas devem usar um lenço de
cabeça nas escolas estatais. A primeira decisão do Tribunal Constitucional
aconteceu contra um veredicto sobre a proibição de lenços de cabeça em
escolas públicas, argumentando que não havia leis em que se pudesse
referir para chegar a uma solução jurídica. Agora a maioria dos governos
dos Estados responsáveis pelas escolas públicas na Alemanha aprovou leis
que proíbem usar os cachecóis, mas, ao mesmo tempo, permite símbolos
cristãos. Eu acho que eles se referem ao argumento de que símbolos
cristãos representam uma condição cultural necessária para a cultura
política da democracia moderna, enquanto símbolos muçulmanos a
coloca em dúvida.
Meu argumento pode ser defendido não apenas em nível lógico. Não
devemos esquecer que o estabelecimento de valores culturais básicos
Bibliografia
12 Formulações expressivas podem ser encontradas em Weber, 1988.Em uma perspectiva comparativa,
esta tese é apresentada em Weber, 1963.
histórico muitas organizações religiosas estabelecidas apresentaram seus
sistemas de crença em como legitimar a forma de vida secular da sociedade
civil, especialmente os princípios da tolerância e os valores básicos da
sociedade civil, nomeadamente os direitos humanos e civis. Vis-à-vis o
fato de que em outras partes as palavras dos sistemas de crença luta contra
a forma de vida secular da sociedade civil, bem como nas organizações
religiosas, de uma cultura política democrática, a questão decisiva não é
mais a alternativa entre o secularismo e religião, mas uma inter-relação
muito mais complexa.
O caráter laico da sociedade civil está além da dúvida. É um prosaico
em cada cultura política democrática. Mas a pergunta permanece: que
tipo de religião desempenha o papel e em que o contexto cultural da
sociedade civil? A guerra amarga e cruel do fundamentalismo religioso
contra a moderna sociedade civil levou a atenção do público da cultura
política ao poder mental da crença religiosa. Mas a alternativa de outro
relacionamento não encontrou ainda interesse suficiente. É o potencial
por que a religião pode contribuir para a validade da cultura política
democrática. Novamente temos que abordar experiências históricas
como evidências empíricas de uma possível contribuição (e observar
cuidadosamente nossos passos).
No decorrer da história, a religião mudou seu caráter, e é esta mudança
como um processo contínuo que gostaria de abordar na minha busca para
o papel da religião em uma futura cultura de reconhecimento. De que
maneira temos de reconhecer o papel da religião na cultura humana? Estou
a pedir uma versão em que a religião torna-se compatível com a sociedade
civil moderna e sua cultura. Uma proposta para sua compatibilidade é o
Bibliografia
Mas, este argumento tem de ser ampliado: primeiro, tem que se reconhecer
o poder da secularização no processo histórico de trazer a ideia moderna
do individualismo humano, e, em segundo lugar, tem que se incluir as
religiosidades não-cristãs que podem suportar a ideia de individualização
116 da universalidade do divino. Isto é fácil em relação ao islamismo e o
judaísmo e não é impossível em relação às outras religiões do mundo.
O Hinduísmo, por exemplo, tem trazido uma idéia especificamente
religiosa de respeito e reconhecimento em sua impressionante trajetória
na modernidade, indo além da ideia ocidental secular de tolerância, como
podemos ver em Vivekananda.13
Como nós podemos perceber esses argumentos lógicos (theo-)
13 Vivekananda 2007.
na vida real? O primeiro passo para a realidade, seria a consciência da
historicidade de cada religião e a pluralidade de sua manifestação. Por
exemplo, o cristianismo não é uma única crença, como sabemos, mas
uma vasta variedade de igrejas, denominações e confissões. O mesmo é
verdadeiro para o Islã e todas as outras religiões. No entanto, este pluralismo
não é ilimitado. Portanto, podemos ainda distinguir as religiões. Mas a
partir da experiência histórica de nossa própria religião podemos deduzir
um pluralismo religioso em geral e alargá-lo. A historicização irá dotá-
lo com a força de um horizonte aberto e dinâmico. Historicizar significa
olhar para os universalismos tradicionalmente exclusivos das religiões
do mundo e como eles mudam e desenvolvem. Crenças religiosas
tradicionalmente são conceitualizadas como imutáveis e fixas de uma vez
por todas. Mas tal conceito nunca enfrentou o desenvolvimento cultural
que chamamos historicismo. Historicização é um inevitável processo
cultural nas sociedades civis modernas. É a grande chance de superar
universalismos exclusivos das crenças religiosas, enriquecendo-os com
uma temporalidade dinâmica, que pode reformular sua relação com
outras religiões. Acho que assistimos um tempo em que a transformação
de universalismos exclusivos para os universalismos inclusivas está
ocorrendo.
Como esta transformação da crença religiosa pode ser relacionada
com a forma de vida secular de uma sociedade civil? Há um tipo de
passagem que uma religião inclusiva pode tomar para finalmente entrar
da sociedade civil e enriquecê-la com o seu poder de reconhecimento
religioso? Sociedade civil de fato tem tal uma passagem ou pelo menos uma
porta chamada religião civil. Religião civil é um conjunto de convicções
Bibliografia
fundamentais compartilhadas pela maioria dos membros da sociedade
civil. Este conjunto de valores implanta a forma de vida da sociedade civil
nas mentes dos cidadãos como o mais fundamental dos valores e normas,
por exemplo, a ideia da dignidade do homem e do direito à vida. Religião
civil não é uma ideologia política, apoiada e doutrinada pelo Estado, mas, 117
pelo contrário, é uma mentalidade cultural meta-política, que subordina
o estado e outras formas de dominação ao senso comum dos dominados.
(Pelo senso comum eu entendo a orientação social mais fundamental ou
a forma da intersubjetividade na prática ao vivo, que constitui a sociedade
pela cultura).
Religião civil é, na verdade, o humanismo político e sua crença na
dignidade humana, que descrevi no início deste artigo. Não defendo que
as religiões estabelecidas, como o cristianismo, têm que desbastar até
atingirem o nível bastante baixo deste senso comum secular. É justamente
o contrário: as religiões estabelecidas têm que apoiar o senso comum
secular, reforçando-o com o poder de uma crença religiosa genuína.
Não devemos descurar que o poder mental da crença religiosa é muito
mais forte do que o poder da religião civil. Por outro lado não devemos
subestimar o poder quase religioso na religião civil do humanismo político.
Caso contrário, nós nunca vamos entender as pessoas que dedicam suas
vidas para assuntos de direitos humanos ou movimentos similares da
sociedade civil.
Mas, quanto à própria vida religiosa? Eu gostaria de terminar
minha linha de argumentação, dando três exemplos que demonstram
a possibilidade de um universalismo inclusivo em perseguir a própria
crença religiosa. Eles mostram que há um poder na religião em si para
estabelecer este universalismo inclusivo que acabaria definitivamente
com a luta pela verdade em diferentes crenças religiosas.
O primeiro exemplo é um monge católico, vivendo nos arredores de
Essen, que ensina meditação Zen budista (Kopp, 1994). Eu o conheci há
alguns anos e tive uma longa entrevista com ele. Ele me disse que ele tinha
passado anos em mosteiros budistas no Japão e praticava meditação Zen.
No final, a dignidade de um Mestre Zen nomeado o influenciou. Quando
eu pedi sua opinião sobre a diferença entre o budismo e o cristianismo
e como ele podia viver com os dois, eu esperava ouvir da boca dele,
que na sua essência, todas as religiões eram a mesma coisa, e que faria
com que essa identidade plausível, referindo-se ao misticismo. Mas ele
disse uma coisa muito diferente: "Por minha inspiração Zen budista eu
me tornei um cristão melhor". Ele manteve a diferença em uma inter-
Bibliografia
14 Quando eu discuti este incidente com teólogos, foi levantada a questão: quem é o maestro? A única
resposta teologicamente diz respeito à cultura política da democracia moderna esta resposta é de
grande importância, desde que ela não se refere a uma instituição mundana ou terrena reivindicando
a regra da diferença religiosa para o poder.
15 http://www.chiefrabbi.org/sp-index.html. Para mais detalhes ver : Sacks, 2003.
Bibliografia
ASSMANN, J. Die mosaische der de oder Unterscheidung Preis des
Compromiseless. Hanser: München, 2003.
BAETS, A.de. A successful utopia.: The doctrine of human dignity. In: Historein,
Vol. 7: History and Utopia. Nefeli: Athens, 2007.
BÖCKENFÖRDE, E-W. die Entstehung des Staates als Vorgang der Säkularisation,
in: idem: Recht, Staat, Freiheit. Studien zur Rechtsphilosophie, Staatstheorie und
Verfassungsgeschichte, Frankfurt am Main, 1991, 92-114.
CANCIK, H. Gleichheit und Freiheit. Die antiken Grundlagen der
Menschenrechte. Em Kehrer, G. (Ed.). Vor Gott sind alle gleich. Soziale Gleichheit,
soziale Ungleichheit und die Religionen. : De Patmos Düsseldorf. 1983,190-211
CANCIK, H. Humanismus. In: Cancik, H, Gladigow, B. e Kohl, K-H (Eds).
O enraizamento da ordem política nos valores dos cidadãos.
121
Humanismo e cultura
muçulmana: patrimônio
histórico e desafios
1 Traduzido do ingles: Rooting political order in the values of the citizens. Some ideas on political
humanism and religion as a necessary base for a sustainable democracy.In: Stefan Reichmuth.
Jorn Rusen, Aladdin Sarhan Humanism and Muslin Culture: Historical heritage and contemporary
challenges. 2012. Traduzido por Lucas Pydd Nechi
dessa situação tornaram-se, nos últimos anos, uma ferramenta útil de
mobilização política e manipulação por parte de uma vasta gama de atores,
quer pertencentes a círculos dominantes ou a movimentos de oposição.
Apesar de uma imprudência política crescente, que pode ser observada
em conflitos comuns em todo o mundo durante a última década, a
consciência da necessidade de ir além das limitações da política de
identidade comunitária e religiosa e para organizar o apoio global para os
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos
124 2 Nota do Autor: Said, Edward: “Orientalism 25 Years Later : Worldly Humanism v. the Empire-builders”,
in: Counterpunch, 4 August 2003 (http://www.counterpunch.org/said08052003.html [8 April 2011]),
citado também Schmitz, Markus: Kulturkritik ohne Zentrum. Edward W. Said und die Kontrapunkte
kritischer Dekolonisation, Bielefeld 2008, p. 274; veja além em Said, Edward: Humanism and
Democratic Criticism, New York 2004, a posthumous publication of four lectures delivered between
2000 and 2003
3 Nota do Autor: Veja, entretanto Siddiqi, Yumna: “Edward Said, Humanism, and Secular Criticism”,
in: Ghazoul, Feryal Jabouri (Ed.): Edward Said and Critical Decolonization, Cairo 2007, pp. 65–88.
Para mais discussões da posição humanista de Edward Said ver Abraham, Matthew (Ed.): Edward
Said and After : Toward a New Humanism, special issue of Cultural Critique, 2007, p. 67; e, mais
recentemente, Radhakrishnan, R: “Edward Said and the Possibilities of Humanism”, in Iskandar, A./
Rustom, H.: (Eds.): Edward Said. A Legacy of Emancipation and Representation, Berkeley 2010, pp.
431– 447.
profundamente envolvido na unidade globalizante da cultura árabe ao
longo das duas últimas décadas4.
Parece, portanto, útil colocar a herança humanista de volta em
consideração e explorar as possibilidades de um humanismo intercultural
sob as condições de um mundo globalizado. Isso impede qualquer forma
elitista do humanismo, que tende a atribuir altas virtudes da humanidade à
imagem normativa da vida e da cultura própria de um indivíduo ou etnia,
4 Nota do Autor: Ver, sobre isso: e. g. Schmitz, Markus: Kulturkritik ohne Zentrum, ch. 5, “Eine andere
Leserschaft – Das Andere als Leserschaft”, Bielefeld 2008, pp. 305– 359.
5 Nota do Autor: Kant, Immanuel: Grundlegung zur Metaphysik der Sitten BA 65 (Fundamental
Principles of the Metaphysic of Morals), 1st edition (Johann Friedrich Hartknoch) Riga 1785, p. 65
6 Nota do Autor: Straub,Jürgen: “Personal and Collective Identity. AConceptual Analysis”, in: Friese,
Heidrun (Ed.): Identities, Difference, and Boundaries, New York/Oxford 2002, pp. 56– 76.
herança humanista universal, a fim de lidar com as tensões e lutas entre as
normas e os padrões de vida em diferentes partes do mundo em conflito,
eles enfrentam as suspeitas e reações críticas de seus colegas.
Para um humanismo intercultural emergente, que deva ser capaz de
superar essa herança difícil e, para lidar com o desafio da globalização,
pelo menos sete elementos que possam fornecer uma base sólida para a
compreensão e comunicação intercultural podem ser identificados. Todos
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos
estes pontos são uma questão de discussão intensa e contínua, que pode
apenas ser sugerida no contexto desta breve introdução. Eles também
podem servir como um quadro para a compreensão e interpretação das
múltiplas e em parte divergentes contribuições no que se segue. A inter-
relação sistemática desses pontos que é sugerida aqui, pode servir como
uma tentativa de estruturar um discurso sobre o humanismo, que em
grande parte prossegue como um trabalho inacabado7.
9 Nota do Autor: Plessner, Helmuth: Die Stufen des Organischen und derMensch, Berlin 1928 (The
Levels of the Organic and Man. Introduction to Philosophical Anthropology).
10 Nota do Autor: Uma das mais impressionantes formulações Cristãs de igualdade social e étnica no
âmbito da religião pode ser encontrada na carta de São Paulo aos Gálatas, 3,28: "Não há judeu nem
grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo
Jesus." Seria fácil encontrar declarações semelhantes na tradição islâmica.
abstratos de direito natural. As desigualdades sociais e políticas, como
os dos cargos de propriedades sociais ou escravos, mantiveram-se em
grande parte intocadas. O Marxismo marca o humanismo da sociedade
burguesa emergente como uma mera formalidade, sem substância
social e afirma trazer um "humanismo real" por meio de uma revolução
proletária. A herança de incontáveis atos desumanos cometidos em nome
desse humanismo ou em nome do progresso humano continua a ser uma
11 Nota do Autor: Conferir um sumário conciso da filosogia de Levinas Bergo, B.: “Emmanuel Levinas”,
in: Stanford Encyclopedia of Philosophy (http://plato.stanford.edu/entries/levinas/ [15 April 2011]);
para sua Filosofia do Outro e implicações éticas, Bergo, B.: Levinas between Ethics and Politics. For
the Beauty that Adorns the Earth, The Hague 1999; Fryer, D. R.: The Intervention of the Other: Ethical
Subjectivity in Levinas and Lacan, New York 2004; Wolff, Ernst: Political responsibility for a globalised
world. After Levinas’ humanism, Bielefeld 2011.
aparente descaso com as dimensões sociais da vida humana, enquanto
as críticas ocidentais dos princípios e práticas sociais não-ocidentais
referem-se, em resposta, ao tratamento desumano dos indivíduos em
nome de normas sociais gerais e valores coletivos. Essa crítica mútua
toca no problema básico de um equilíbrio viável entre a proteção do
indivíduo e a criação e preservação da justiça social como condição para
um novo humanismo em todo o mundo. A tensão entre esses dois lados
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos
Humanidade e Transcendência
Transcendência é aqui entendida como incluindo todos os tipos de
formas culturais de referência para além das circunstâncias e condições
da vida cotidiana, quer sejam expressas na religião, arte ou filosofia. Esta
pode também ser vista em ligação com a indefinição em larga escala da
natureza humana, que já foi discutido acima. O humanismo europeu no
decorrer do tempo, certamente desenvolveu relações muito mais estreitas
com a arte e a filosofia do que com a religião. Mas, como já vimos,
o entendimento comum do humanismo ocidental como essencialmente
secular é enganosamente incompleto. Um novo reflexo das múltiplas
relações entre a ordem política secular e uma compreensão religiosa do
mundo é necessário. O crescimento atual da militância religiosa é um
desafio para cada ideia da humanidade, seja com base secular ou em
princípios religiosos. Temos de reconhecer também a experiência histórica
do século XX, durante o qual, em nome de um humanismo radicalmente
secular e maciço, terríveis atos de desumanidade foram cometidos em
130 uma escala ainda muito mais ampla. Ambas as ideologias políticas e
religiosas seculares não são, portanto, imunes contra esses crimes contra a
humanidade, mesmo em nome do progresso e aperfeiçoamento humano.
Aqui a noção de vulnerabilidade humana vem novamente como um pré-
requisito para qualquer moderno conceito de dignidade humana.
Com vistas a estabelecer a abertura discursiva destes elementos
básicos de um humanismo intercultural, é fácil de identificar pontos
de partida da crítica que pode ser dirigida contra todas as tradições do
pensamento antropológico, incluindo a tradição ocidental. A interrelação
discursiva das diferentes tradições humanistas expõem-nas para um ponto
de crítica abrangente e fundamental: seja explícita ou implicitamente,
o tratamento da diferença cultural permanece fortemente influenciada
pelo etnocentrismo até hoje. Todas as culturas compartilham padrões
de auto afirmação etnocêntrica à custa de outros, como a distinção entre
civilização e barbárie, e outras concepções semelhantes. É uma das tarefas
Bibliografia
ABRAHAM, Matthew (Ed.): Edward Said and After : Toward a New Humanism,
special issue of Cultural Critique, 2007.
AL-HAMAMIS, Muhammad. “Alıas-Samman: Lam yuzlam dın ama
zulima lislam”, in: Ilaf / Elaph, 6 April 2009, (http://www.elaph.com/Web/
Culture/2009/4/426947.htm [29 March, 2011]).
ARKOUN, M.: Miskawayh. Trait_ d’_thique (Tahdhıb al-akhlaq wa-tat˙hır al-
araq), Paris 2010.
BERGO, B.: “Emmanuel Levinas”, in: Stanford Encyclopedia of Philosophy
(http://plato.stanford.edu/entries/levinas/ [15 April 2011]).
BERGO, B.: Levinas between Ethics and Politics. For the Beauty that Adorns the
Earth, The Hague 1999.
BROCKER, M. /Neu, H. H. (Eds.): Ethnozentrismus. Möglichkeiten und Grenzen
es interkulturellen Dialogs, Darmstadt 1997.
FRYER, D. R.: The Intervention of the Other: Ethical Subjectivity in Levinas and
Lacan, New York 2004.
GUDYKUNST, W. /Mody, B.: Handbook of International and Intercultural 131
Communication, 2nd edition, Thousand Oaks/London/New Delhi 2002.
KANT, Immanuel: Grundlegung zur Metaphysik der Sitten BA 65 (Fundamental
Principles of the Metaphysic of Morals), 1st edition (Johann Friedrich Hartknoch)
Riga 1785.
12 Nota do Autor: Ver Rüsen, Jörn: “How to Overcome Ethnocentrism: Approaches to a Culture of
Recognition by History in the 21st Century”, in: Taiwan Journal of East Asian Studies 1 (2004), pp. 59–
74; also in: History and Theory 43 (2004) Theme Issue “Historians and Ethics”, pp. 118– 129.
PLESSNER, Helmuth: Die Stufen des Organischen und derMensch, Berlin
1928 (The Levels of the Organic and Man. Introduction to Philosophical
Anthropology).
RADHAKRISHNAN, R: “Edward Said and the Possibilities of Humanism”, in
Iskandar, A. /Rustom, H.: (Eds.): Edward Said. A Legacy of Emancipation and
Representation, Berkeley 2010, pp. 431– 447.
RÜSEN, Jörn/Laass,Henner (Eds): Humanism in Intercultural Perspective.
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos
132
Humanismo intercultural:
ideia e realidade1
Por que Humanismo?
2 Tradução para Português da versão inglesa em: “Letter on ‘Humanism”. In: M. Heidegger, 1998.
Pathmarks. Cambridge & New York: Cambridge University Press.
3 Um exemplo alemão: Nida-Rümelin, J., 2006. Humanismus als Leitkultur. Ein Perspektivenwechsel.
Munich: C.H. Beck.
comum a toda a gente; ela define a sua comunalidade e, ao mesmo tempo,
é realizada numa multiplicidade de formas de vida e das suas mudanças
históricas. É isto precisamente o que o Humanismo tem feito na sua
forma moderna: analisa o elemento comum da vida humana, os seus
valores e normas, e ao mesmo tempo reconhece a diferença e a variedade
como uma manifestação da natureza cultural da humanidade. Será que
a tradição do Humanismo pode ser revitalizada enquanto abordagem
O que é Humanismo?
a.Três Fases de Desenvolvimento Histórico
O conceito de Humanismo não está claramente definido. Tendo
emergido no Ocidente e influenciado as discussões não ocidentais
desde finais do século XIX,5 o seu significado diverge largamente.
Por conseguinte, torna-se útil apresentar um breve historial dos seus
desenvolvimentos. Três fases devem ser distinguidas: (i) as suas raízes
na Antiguidade clássica, (ii) o seu primeiro estabelecimento no início
da História Moderna, (iii) e a sua forma moderna desde finais do século
XVIII e início do século XIX, estreitamente relacionada com o movimento
intelectual do Iluminismo. A sua articulação moderna não se limita à vida
intelectual pois pode encontrar-se também nas Belas Artes.
(i) Na Antiguidade Clássica, sobretudo na Filosofia estoica, a maior
parte dos termos básicos do pensamento humanístico, como por exemplo
a noção de dignidade humana (dignitas hominis) e de lei natural (lex
naturae), estavam aplicados a cada ser humano. Não existia uma teoria
sistemática que combinasse esses conceitos numa ideia de natureza
humana e que pudesse ser utilizada em tempos posteriores. Apesar de 135
tudo, surgiram ideias altamente eficazes que mais tarde tiveram um papel
decisivo no pensamento humanístico (Cancik, 2011). Tais ideias tinham
um estatuto antirrealista ao colocar o valor da humanidade contra o valor
4 A minha argumentação baseia-se em várias publicações que são os resultados preliminares
do projeto de investigação “Humanism in the Era of Globalization – An Intercultural Dialogue on
Humanity, Culture, and Values”, desenvolvido no Institute for Advanced Study in the Humanities at
Essen, Germany, de 2006 a 2009, e financiado por Stiftung Mercator. Ver Rüsen, J and Henner, L. eds.,
2009: Humanism in Intercultural Perspective. Experiences and Expectations. Bielefeld: Transcript.
5 Um exemplo: Zhang, K., 2010. Inventing Humanism in Modern China. In: C. Meinert, ed., 2010. Traces
of Humanism in China. Tradition and Modernity. Bielefeld: Transcript, pp. 131-149.
da desumanidade na política e vida social. Na sua forma idealista, podia
ser usada para criticar formas de dominação política e de desigualdade
social. Não é de admirar que os revolucionários do final do século XVIII
tivessem desenvolvido no seu imaginário visões de uma vida nova e
humana e fizessem uso intensivo dos símbolos da República romana.
(ii) O humanismo moderno inicial, que surgiu nos séculos XIV e
XV em Itália e se espalhou por toda a Europa, tinha como referência a
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos
8 Para mais detalhes, ver Rüsen, J. and Jordan, S., 2008. Mensch, Menschheit. In: F. Jaeger, ed., 2008.
Enzyklopädie der Neuzeit. Vol. 8: Manufaktur-Naturgeschichte. Stuttgart: Metzler 2008, col. 327-340.
vida humana no espaço e no tempo.
Esta variedade recebeu a sua forma cognitiva específica por meio da
historização, que foi fundamental. A Humanidade foi colocada no quadro
do desenvolvimento universal dentro do qual a unidade dos humanos se
realiza através da diversidade de culturas.
Assim, a Humanidade tornou-se individualizada. Cada pessoa
singular e cada comunidade social eram entendidas como manifestação
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos
9 “O homem como pessoa, isto é, como sujeito da razão moralmente prática, é exaltado acima de
139
qualquer preço. Com esta individualidade (homo noumenon), ele não é valorizado simplesmente
como um meio para os fins de outras pessoas ou até para os seus próprios fins, mas existe para ser
apreciado como um fim em si próprio. Isto significa que ele possui dignidade (um valor intrínseco
absoluto) pelo qual ele merece o respeito de todos os outros seres racionais do mundo, pode avaliar-
se em relação a cada membro da sua espécie e pode considerar-se a si próprio em pé de igualdade
com todos eles." Kant, I. 1797. Metaphysik der Sitten, A 93 (tradução inglesa: http://praxeology.net/
kant7.htm; 9.5.2011])
10 No caso alemão, isto encontra-se documentado de forma paradigmática no manifesto político de
Wilhelm von Humboldt: zu einem Versuch, die Gränzen der Wirksamkeit des Staats zu bestimmen
de 1792 (tradução inglesa: Humboldt, W. v., 1854. The Sphere and Duties of Government [The
Limits of State Action]. London: John Chapman.) [http://oll.libertyfund.org/index.php?option=com_
staticxt&staticfile=show.php%3Ftitle=589&Itemid=99999999; 9.5.2011])
qualquer forma de dogmatismo e favorece a livre e ilimitada expressão
de pensamento como meio de discutir quaisquer assuntos de interesse
comum.11
Pela sua antropologia, o Humanismo tem um forte impacto na
Educação, num sentido lato de auto-cultivação humana ("Bildung").
Qualquer pessoa deve ter oportunidade de desenvolver as suas capacidades
de forma holística e, portanto, ele ou ela representa a criatividade cultural da
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos
Limites do Auto-Criticismo
Gostaria de trazer a tradição humanista ocidental à atual discussão
intercultural acerca de como lidar com o desafio da globalização,
ao nível dos princípios de orientação cultural que sejam válidos ao
nível transcultural. Para tal, é necessário aguçar a nossa visão sobre os
seus limites e realizar o seu auto-criticismo. Embora tenha já indicado
anteriormente alguns deles, eles devem ser listados de um modo mais 141
sistemático:
Política e socialmente, o humanismo moderno tem o seu limite no
problema insolúvel de assegurar um estatuto social para se ser membro
da sociedade civil de pleno direito. Sem um estatuto social da pessoa que
ganha a sua vida, todas as vantagens de dignidade humana não podem
evoluir completamente. Adicionalmente, o Humanismo moderno tem de
enfrentar o perigo da desigualdade social crescente, e, como consequência,
uma dissolução do bom senso.
Intelectualmente, o Humanismo moderno encontra os seus limites
(a) por não estar suficientemente consciente da desumanidade humana,
(b) pela sua relação ilusória com a Antiguidade clássica, (c) por manter
elementos etnocêntricos na sua ideia de Humanidade e História universal,
(d) por um conceito limitado de razão, e (e) pela relação altamente
problemática entre humanos e natureza.
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos
17 Klaus E. Mueller caracterizou esta universalidade particular de exclusão sobre o ser humano nas
148 sociedades arcaicas com o termo “Eigenweltverabsolutierung" (estabelecer o seu próprio mundo
como absoluto). Müller, K. E., 1983. Einleitung. In: K. E. Mueller ed., 1983. Menschenbilder früher
Gesellschaften. Ethnologische Studien zum Verhältnis von Mensch und Natur. Frankfurt am Main:
Campus 1983, pp. 13-69, cit. p. 15.
18 A parte seguinte é baseada sobretudo no trabalho de Shmuel N. Eisenstadt. Eisenstadt, S. N., ed.,
1986. The Origins and diversity of axial age civilizations. Albany: State University of New York Press;
ver Arnason, J. P. Eisenstadt, S. N. e Wittrock, B., eds., 2005. Axial Civilisations and World History.
Leiden: Brill 2005; Kozlarek, O. Rüsen, J. e Wolff, E., eds., 2011. Shaping a Human World – Civilizations,
Axial Times, Modernities, Humanisms. Bielefeld: Transcript (no prelo).
19 É importante notar que ‘evolução’ não significa que formas mais antigas de orientação cultural se
dissolvam e desapareçam. Elas permanecem com diferentes manifestações, incluindo em vastas
regiões do subconsciente, mas o seu lugar no quadro cultural muda. A etnicidade nos tempos
modernos, por exemplo, é diferente da etnicidade nas sociedades arcaicas.
Deus todas as diferenças entre os homens se esvaem;20 e é possível dizer
que matar um único ser humano desafia a humanidade em geral.21
O terceiro período é o da modernização e globalização. A passagem
para a modernidade, que aconteceu por todo o mundo, desenvolveu-se sob
a forte influência da cultura ocidental mas, acima de tudo, ela foi praticada
de forma diferenciada e, portanto, foi mais do que um simples processo
de ocidentalização. Para descrever este processo, deve-se seguir a proposta
20 O mais característico são as palavras de S. Paulo: “Não há nem Judeu nem Grego, nem escravo ou
livre, nem homem ou mulher, pois todos somos um em Jesus Cristo" (Gal. 3,28).
21 Ver o Corão, 5,32: “Nós decretamos para os Filhos de Israel que quem matar um ser humano por algo
que não seja homicídio ou corrupção na terra, seja como se ele tenha matado toda a humanidade, e
o que salvar a vida de um seja como se ele tenha salvado a vida de toda a humanidade.”
ideias de inclusão que poderão ser aceites no plano intercultural.22 Mas
isto apenas marca um início de um modo comum de estar com todos
os limites e insucessos que todos agora conhecemos. É uma questão de
comunicação intercultural na atualidade ver se estes insucessos e lacunas
podem ser ultrapassados e como a ideia inclusiva de humanidade pode
aproveitar tradições não ocidentais e suas aplicações a problemas de
orientação cultural atualmente efetivamente partilhados por toda a gente.
Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos
Bibliografia
Antweiler, C., 2011. Mensch und Weltkultur. Für einen realistischen
Kosmopolitismus im Zeitalter der Globalisierung. Bielefeld: Transcript (Tradução
inglesa em curso).
Arnason, J. P. Eisenstadt, S. N. And Wittrock, B., eds., 2005. Axial Civilisations
and World History. Leiden: Brill 2005.
Brunner, O. Conze, W. and Koselleck, R., eds., 1971-1997. Geschichtliche
Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in
Deutschland. 8 vols. Stuttgart: Klett-Cotta Stuttgart.
Cancik, H. and Vöhler, M., eds., 2009. Humanismus und Antikerezeption im
18. Jahrhundert. Vol. 1: Genese und Profil des europäischen Humanismus.
Heidelberg: Winter 2009.
Cancik, H., 2011. Europa – Antike – Humanismus. Humanistische Versuche
und Vorarbeiten. Edited by Hildegard Cancik-Lindemaier. Bielefeld: Transcript
(distributed in North America by Transaction Publishers, New Brunswick and
London).
150 Chakrabarti, D., 2000. Provincializing Europe: postcolonial thought and historical
difference. Princeton, N. J.: Princeton University Press.
Eisenstadt, S. N., 2000. Multiple Modernities. Daedalus 129/1 (2000), pp. 1-30.
Eisenstadt, S. N., ed., 1986. The Origins and diversity of axial age civilizations.
Albany: State University of New York Press.
22 Ver os contributos de Dipesh Chakrabarty, Muhammd Arkoun and Longxi Zhang in Rüsen, J and
Henner, L. eds., 2009: Humanism in Intercultural Perspective. Experiences and Expectations.
Bielefeld: Transcript.
Foucault, M., 1974. The Order of Things. An Archaeology of the Human Sciences.
New York: Pantheon.
Heidegger, M.: Brief über den "Humanismus". In: Gesamtausgabe, 1976. I.
Abteilung: Veröffentlichte Schriften 1914-1970. Vol. 9: Wegmarken. Frankfurt am
Main: Klostermann, pp. 313-364 (English Translation: “Letter on ‘Humanism’”. In:
M. Heidegger, 1998. Pathmarks. Cambridge & New York: Cambridge University
Press).
a foreword by Peter Wortsman, 2000. New York, Mahwah, NJ : Paulist Press 2000.
Rüsen, J. and Henner, L. eds., 2009: Humanism in Intercultural Perspective.
Experiences and Expectations. Bielefeld: Transcript.
Rüsen, J. and Jordan, S., 2008. Mensch, Menschheit. In: F. Jaeger, ed., 2008.
Enzyklopädie der Neuzeit. Vol. 8: Manufaktur-Naturgeschichte. Stuttgart:
Metzler 2008, col. 327-340.
Rüsen, J., 2006. Humanism and Nature – Some Reflections on a Complex
Relationship. The Journal for Transdisciplinary Research in Southern Africa 2/2
(2006), pp. 265-276.
Rüsen, J., 2008. Humanism in response to the Holocaust – destruction or
innovation? Postcolonial Studies 11/2 (2008), pp. 191-200.
Rüsen, J. 2011. Temporalizing Humanity– Towards a Universal History of
Humanism. In: J. Rüsen M. I. Spariosu and L. Zhang eds., Exploring Humanity –
Intercultural Perspectives on Humanism. Bielefeld: Transcript (no prelo).
Sachsenmaier, D. and Riedel, J., eds., 2002. Reflections on Multiple modernities.
European, Chinese and other interpretations. Leiden: Brill 2002.
Said, E. W., 2004. Humanism and Democratic Criticism. New York: Columbia
University Press.
Scherrer, J., 2011. Die pervertierte Macht der Menschlichkeit - Humanismus in
der Sowjetunion. Bielefeld: Transcript (no prelo).
Schiller, F., 1795. Ueber die aesthetische Erziehung des Menschen in einer Reyhe
von Briefen. Stuttgart: Cotta (English translation: On the Aesthetic Education of
Man in a Series of Letter [http://www.bartleby.com/32/501.html])
152 Todorov, T., 2002. Imperfect garden. The legacy of humanism. Princeton:
Princeton University Press.
Zhang, K., 2010. Inventing Humanism in Modern China. In: C. Meinert, ed., 2010.
Traces of Humanism in China. Tradition and Modernity. Bielefeld: Transcript,
pp. 131-149.
Humanismo na era da
globalização: ideias sobre
uma nova orientação
1 Humanism in the Era of Globalization: Ideas on a New Cultural Orientation. Publicado originalmente
em: Humanism in Intercultural Perspective: Experiences and Expectations. Bielefeld: Trascript. 2009.
(Introdução ao livro). Tradução: Isabel Barca
2 Cui Shu: Lun Yu Yu Shuo. Citado em alemão por Quirin 1994: 389.
uma natureza comum e como esta natureza inclui as formações mentais
da cultura – que dão sentido e significado à vida humana – e porque esta
autoconsciência (‘humanness’) inclui os elementos normativos tal como
são praticados na vida, existe a possibilidade de se chegar a um acordo
sobre tal visão abrangente de orientação cultural, sem sacrificar quer as
identidades quer as alteridades.
Todas a tradições culturais incluem elementos humanísticos.
‘Humanístico’ significa simplesmente que, pelo facto de se ser uma
Humanismo na era da globalização: ideias sobre uma nova orientação cultural1
3 Os meus agradecimentos ao Prof. Carsten Herrmann-Pillath pelo seu apoio ao aplicar à Economia a
ideia de um novo Humanismo.
cultural. A tecnologia, como produto da cultura humana, passa a ser um
fator de divergência cultural no campo das economias nacionais. Este não
é mais do que um simples exemplo que mostra que a evolução do mercado
força a necessidade e, constantemente, cria a diversidade.
Ao nível das economias nacionais, também não se vislumbra uma
convergência com um dado padrão institucional: embora os países
escandinavos mantenham posições de topo no Índice de Competitividade
Mundial, tal não se aplica em países com mercados altamente liberalizados;