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Antônio Cândido

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Porto Alegre a 10 de outu- "Nos países subdesenvolvidos, o equipa- mação estavam claros nos anos 20, quan-
bro de 1980 no painel "O mento cultural se limita geralmente a do muitos deles se definiram e mani-
processo de 30 e suas conse-
qüências", parte do Simpósio círculos muito pequenos e classes médias festaram. Mas como fenômenos isolados,
so b re a revo lu çã o d e 1 93 0 rudimentares. Com freqüência consiste parecendo arbitrários e sem necessida-
no Rio Grande do Sul, orga-
nizado pela Universidade Fe- em apenas alguns poucos difusores e de real, vistos pela maioria da opinião
deral daquele Estado; e foi
publicado no livro de mesmo consumidores, ligados pela educação aos com desconfiança e mesmo ânimo agres-
título, Porto Alegre, ERUS, sivo. Depois de 1930 eles se tornaram
1983. Agradecemos a autori- mecanismos culturais de nações mais de-
zação para reproduzi-lo. senvolvidas. Esses desventurados eleitos até certo ponto "normais", como fatos
(these unhappy few) formam o único de cultura com os quais a sociedade
público disponível para os produtos e aprende a conviver e, em muitos casos,
serviços culturais". — C. Wright Mills passa a aceitar e apreciar. Pode-se dizer,
portanto, que sofreram um processo de
"rotinização", mais ou menos no senti-
uem viveu nos anos 30 sabe do em que Max Weber usou esta pala-
qual foi a atmosfera de fer- vra para estudar as transformações do
vor que os caracterizou no pla- carisma. Não se pode, é claro, falar em
no da cultura, sem falar de ou- socialização ou coletivização da cultura
tros. O movimento de outubro não foi artística e intelectual, porque no Brasil
um começo absoluto nem uma causa pri- as suas manifestações em nível erudito
meira e mecânica, porque na história são tão restritas quantitativamente, que
não há dessas coisas. Mas foi um eixo e vão pouco além da pequena minoria que
um catalisador: um eixo em torno do as pode fruir. Mas levando em conta es-
qual girou de certo modo a cultura bra- ta contingência, devida ao desnível de
sileira, catalisando elementos dispersos uma sociedade terrivelmente espoliado-
para dispô-los numa configuração nova. ra, não há dúvida que depois de 1930
Neste sentido foi um marco histórico, houve alargamento de participação den-
daqueles que fazem sentir vivamente que tro do âmbito existente, que por sua vez
houve um "antes" diferente de um "de- se ampliou.
pois". Em grande parte porque gerou Isto ocorreu em diversos setores: ins-
um movimento de unificação cultural, trução pública, vida artística e literária,
projetando na escala da nação fatos que estudos históricos e sociais, meios de di-
antes ocorriam no âmbito das regiões. fusão cultural como o livro e o rádio
A este aspecto integrador é preciso jun- (que teve desenvolvimento espetacular).
tar outro, igualmente importante: o sur- Tudo ligado a uma correlação nova en-
gimento de condições para realizar, di- tre, de um lado, o intelectual e o artista;
fundir e "normalizar" uma série de as- do outro, a sociedade e o estado — de-
pirações, inovações, pressentimentos ge- vido às novas condições econômico-so-
rados no decênio de 1920, que tinha si- ciais. E também à surpreendente toma-
do uma sementeira de grandes e inúme- da de consciência ideológica de intelec-
ras mudanças. tuais e artistas, numa radicalização que
Com efeito, os fermentos de transfor- antes era quase inexistente. Os anos 30

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A REVOLUÇÃO DE 1930 E A CULTURA

foram de engajamento político, religio- nuo, mas agora em escala nacional, a re-
so e social no campo da cultura. Mesmo forma que traz o seu nome e procurava
os que não se definiam explicitamente, e estabelecer em todo o país algumas das
até os que não tinham consciência clara idéias e experiências da pedagogia e da
do fato, manifestaram na sua obra esse filosofia educacional dos "escola-novis-
tipo de inserção ideológica, que dá con- tas". Assim, a integração e a generaliza-
torno especial à fisionomia do período. ção, já mencionadas, eram promovidas
como resposta a todo o movimento reno-
vador dos anos 20.
caso do ensino é significativo. Os ideais dos educadores, desabrocha-
Não foi o movimento revolu- dos depois de 1930, pressupunham de
cionário de 30 que começou as um lado a difusão da instrução elemen-
reformas; mas ele propiciou a tar que, conjugada ao voto secreto (um
sua extensão por todo o país. Antes hou- dos principais tópicos no programa da
vera reformas locais, iniciadas pela de Aliança Liberal), deveria formar cida-
Sampaio Doria em São Paulo (1920), dãos capazes de escolher bem os seus di-
que introduziu a modernização dos mé- rigentes; de outro lado, pressupunham
todos pedagógicos e procurou tornar rea- a redefinição e o aumento das carreiras
lidade o ensino primário obrigatório, de nível superior, visando renovar a for-
com notável incremento de escolas ru- mação das elites dirigentes e seus qua-
rais. Outras reformas localizadas foram dros técnicos; mas agora, com maiores
as de Lourenço Filho no Ceará (1924), oportunidades de diversificação e classi-
a de Francisco Campos em Minas ficação social. Tratava-se de ampliar e
(1927), a de Fernando de Azevedo no "melhorar" o recrutamento da massa vo-
então Distrito Federal (1928). Todas tante, e de enriquecer a composição da
elas visavam a renovação pedagógica con- elite votada. Portanto, não era uma re-
substanciada na designação de "escola volução educacional, mas uma reforma
nova", que representava posição avan- ampla, pois no que concerne ao grosso
çada no liberalismo educacional, e que da população a situação pouco se alterou.
por isso foi combatida às vezes violen- Nós sabemos que (ao contrário do que
tamente pela Igreja, então muito aferra- pensavam aqueles liberais) as reformas
da não apenas ao ensino religioso, mas a na educação não geram mudanças essen-
métodos tradicionais. Ora, a escola pú- ciais na sociedade, porque não modificam
blica leiga pretendia formar mais o "ci- a sua estrutura e o saber continua mais
dadão" do que o "fiel", com base num ou menos como privilégio. São as revo-
aprendizado pela experiência e a obser- luções verdadeiras que possibilitam as
vação que descartava o dogmatismo. Is- reformas do ensino em profundidade, de
to pareceu à maioria dos católicos o pró- maneira a torná-lo acessível a todos, pro-
prio mal, porque segundo eles favorecia movendo a igualitarização das oportuni-
perigosamente o individualismo raciona- dades. Na América Latina, até hoje isto
lista ou uma concepção materialista e só ocorreu em Cuba a partir de 1959.
iconoclasta. Não faltou quem falasse em Quanto ao Brasil, quinze ou vinte anos
"bolchevização do ensino" a propósito após o movimento revolucionário de
da reforma corajosa e brilhante de Fer- 1930, e apesar do progresso havido, as
nando de Azevedo. oportunidades mais modestas ainda eram
As idéias e aspirações dos grupos re- irrisórias, bastando mencionar que no
formadores nos anos 20 se encontram no decênio de 1940 os índices mais altos de
livro A educação pública em São Paulo escolarização primária (isto é, o número
(1937), que contém os resultados do in- de crianças em idade escolar freqüen-
quérito feito por Fernando de Azevedo tando efetivamente escolas) eram os de
em 1926 e publicado então em jornal. Santa Catarina e São Paulo, respectiva-
Nele podemos ver inclusive o grande de- mente 42% e 40%.
sejo de criar a universidade, cimentada e Mas houve sem dúvida aumento pon-
coroada pelas faculdades de filosofia, derável de escolas médias, bem como do
ciências, letras e educação — o que ocor- ensino técnico sistematizado. E a situa-
reria depois de 1930. ção se tornou mais favorável no ensino
O Governo Provisório instalado nesse superior, onde a criação das universida-
ano criou imediatamente o Ministério de des (a partir da de São Paulo em 1934)
Educação e Saúde, confiado ao reforma- alterou o esquema tradicional das elites.
dor da instrução pública em Minas, Fran- A prática anterior de criar faculdades
cisco Campos. Este promoveu ato contí- isoladas fazia com que cada uma adqui-

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risse importância equivalente ao papel Lúcio Costa, que chamou pela primeira
dos seus graduados na vida política e vez para esse certame os artistas de van-
administrativa do país, onde os diplo- guarda, provocando reações de escanda-
mas de bacharel em direito, doutor em lizada indignação acadêmica.2 A Lúcio
medicina e engenheiro conferiam uma Costa e Oscar Niemeyer seria confiado
espécie de nobreza funcional na socieda- por Gustavo Capanema o projeto do edi-
de de mentalidade ainda meio estamen- fício do Ministério de Educação e Saú-
tal, empurrando para baixo a arraia miú- de, em cujas paredes Cândido Portinari
da das outras escolas superiores. No de- pintou os seus murais e para cuja entra-
cênio de 1920 foram fundadas algumas da se encomendou a Bruno Giorgi o mo-
universidades nominais, isto é, que ape- numento da mocidade. Houve portanto
nas davam um nome novo à justaposição na arquitetura uma espécie de sanção
de unidades preexistentes. As que se fun- oficial do modernismo, que correspondia
daram no decênio de 1930 estabeleceram à aceitação progressiva pelo gosto mé-
um padrão inédito, pela idéia orgânica dio, a partir das primeiras residências
que pressupunham e que dependia das traçadas por Warchavchik e Rino Levi
novas faculdades de filosofia. Equipadas nos anos 20. O "estilo futurista" não
para a pesquisa nas ciências físicas, natu- apenas se difundiria, mas receberia a
rais e humanas, estas tiraram um pouco consagração do mau gosto nas inumerá-
da aura "científica" das grandes escolas veis casas quadradas, brilhantes de mi-
profissionais e dignificaram as "peque- ca, que se espalharam por todo o país.
nas" (farmácia, odontologia, agronomia, Tomando por amostra a literatura, ve-
veterinária), atuando como elemento rificam-se nela alguns traços que, embo-
aglutinador. Esboçou-se então um "siste- ra característicos do período aberto pelo
ma", onde as partes deveriam funcionar movimento revolucionário, são na maio-
em vista do todo, com atenuação das hie- ria "atualizações" (no sentido de "pas-
rarquias e ampliação dos grupos de elite sagem da potência ao ato") daquilo que
com formação superior. Houve assim se esboçara ou definira nos anos 20. É
uma espécie de "democratização" dentro o caso do enfraquecimento progressivo
dos setores privilegiados, com ascensão da literatura acadêmica; da aceitação
dos seus estratos menos favorecidos. Sem consciente ou inconsciente das inovações
contar que algumas faculdades de filoso- formais e temáticas; do alargamento das
fia e economia (estas, mais recentes) "literaturas regionais" à escala nacional;
efetuaram uma relativa radicalização das da polarização ideológica.
atitudes e concepções, devido à difusão Até 1930 a literatura predominante e
das ciências sociais e humanas, que leva- mais aceita se ajustava a uma ideologia
ram o espírito crítico a domínios onde de permanência, representada sobretudo
reinavam a tradição e o dogmatismo. pelo purismo gramatical, que tendia no
limite a cristalizar a língua e adotar co-
mo modelo a literatura portuguesa. Isto
as artes e na literatura foram correspondia às expectativas oficiais de
mais flagrantes do que em uma cultura de fachada, feita para ser
qualquer outro campo cultu- vista pelos estrangeiros, como era em
ral a "normalização" e a "ge- parte a da República Velha. Ela tinha
neralização" dos fermentos renovadores, encontrado o seu propagandista no Barão
que nos anos 20 tinham assumido o ca- do Rio Branco, o seu modelo no estilo
ráter excepcional, restrito e contunden- de Rui Barbosa e a sua instituição sim-
te próprio das vanguardas, ferindo de bólica na Academia Brasileira de Letras,
1
Acompanho aqui e noutros modo cru os hábitos estabelecidos. Nos ainda preponderante no decênio de 1920
lugares o ponto de vista de
João Luiz Lafetá, que estu-
anos 30 houve sob este aspecto uma per- apesar dos ataques dos modernistas (estes
dou no modernismo a passa- da de auréola do modernismo, propor- pareciam, então, uma excentricidade tran-
gem do "Projeto estético"
(anos 20) ao "Projeto Ideo- cional à sua relativa incorporação aos sitória). Mas a partir de 1930 a Acade-
lógico" (anos 30), como dois
momentos de um processo,
hábitos artísticos e literários.1 Não es- mia foi-se tornando o que é hoje: um
apontando a "diluição da van- queçamos que o Hino da Revolução de clube de intelectuais e similares, sem
guarda"; 1930: a crítica e o
modernismo, São Paulo, Duas 1930 é de Villa Lobos, músico de van- maior repercussão ou influência no vivo
Cidades, 1974, pp. 13-22. guarda que encontrou grande apoio na do movimento literário.
"era de Vargas", quando foi de algum A incorporação das inovações formais
2
A importância deste fato é modo oficializado e dirigiu o movimento e temáticas do modernismo ocorreu em
analisada por Gilda de Mello de canto coral. dois níveis: um nível específico, no qual
e Souza, "Vanguarda e na-
cionalismo na década de vin-
te", Exercícios de Leitura, De 1931 é o 38.° Salão da Escola Na- elas foram adotadas, alterando essencial-
São Paulo, Duas Cidades, cional de Belas Artes, organizado por mente a fisionomia da obra; e um nível
1980, pp. 249-250.

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A REVOLUÇÃO DE 1930 E A CULTURA

genérico, no qual elas estimulavam a re- específicas do decênio de 1930 foi a ex-
jeição dos velhos padrões. Graças a isto, tensão das literaturas regionais, e sua
no decênio de 1930 o inconformismo e o transformação em modalidades expressi-
anticonvencionalismo se tornaram um di- vas cujo âmbito e significado se torna-
reito, não uma transgressão, fato notó- ram nacionais, como se fossem coextensi-
rio mesmo nos que ignoravam, repeliam vos à própria literatura brasileira.
ou passavam longe do modernismo. Na É o caso do "romance do Nordeste",
verdade, quase todos os escritores de considerado naquela altura pela média
qualidade acabaram escrevendo como be- da opinião como o romance por exce-
neficiários da libertação operada pelos lência. A sua voga provém em parte do
modernistas, que acarretava a depuração fato de radicar na linha da ficção regional
antioratória da linguagem, com a busca (embora não "regionalista", no sentido
de uma simplificação crescente e dos tor- pitoresco), feita agora com uma liber-
neios coloquiais que rompem o tipo an- dade de narração e linguagem antes des-
terior de artificialismo. Assim, a escrita conhecida. Mas deriva também do fato
de um Graciliano Ramos ou de um Dio- de todo o país ter tomado consciência
nélio Machado ("clássicas" de algum mo- de uma parte vital, o Nordeste, represen-
do), embora não sofrendo a influência tado na sua realidade viva pela literatura.
modernista, pôde ser aceita como "nor- Coisa igual se pode dizer da produção
mal" porque a sua despojada secura tinha do Rio Grande do Sul, tanto a "gaúcha"
sido também assegurada pela libertação quanto a outra, modernista ou simples-
que o modernismo efetuou. mente urbana. Num estudo sugestivo,
Na poesia a libertação foi mais geral Lígia Chiappini Moraes Leite mostrou
e atuante, na medida em que os modos como a projeção política do Estado, de-
tradicionais ficaram inviáveis e pratica- pois e por causa do movimento revolu-
mente todos os poetas que tinham algu- cionário de 1930, acarretou a projeção
ma coisa a dizer entraram pelo verso li- triunfal da sua literatura, conhecida e
vre ou a livre utilização dos metros, ajus- aceita por todo o país, em cuja vida in-
tando-os ao anti-sentimentalismo e à an- telectual o Rio Grande tinha sido até
tiênfase. Os decênios de 1930 e 1940 então uma presença episódica e margi-
assistiram à consolidação e difusão da nal, porque relativamente fechada sobre
3
MORALES LEIRE, Lígia C., poética modernista, e também à produ- si.3
Regionalismo e Modernismo ção madura de alguns dos seus próceres, Foi com efeito notável a interpenetra-
( O “caso Gaúcho”), São Pau-
lo, Ática, 1978, sobretudo pp.
como por exemplo Manuel Bandeira e ção literária em todo o Brasil depois de
139-201. Mário de Andrade. 30, quando um jovem, digamos do inte-
Essas coisas repercutiram na instrução, rior de Minas, ia vivendo numa expe-
e as reformas educacionais favoreceram riência feérica e real a Bahia de Jorge
a modernização na escolha de textos pa- Amado, a Paraíba ou o Recife de José
ra o ensino, e na maneira de os tratar. Lins do Rego, a Aracaju de Amando
Embora só nos nossos dias a literatura Fontes, a Amazônia de Abguar Bastos,
realmente contemporânea tenha predo- a Belo Horizonte de Ciro dos Anjos, a
minado nesse setor, as coisas começaram Porto Alegre de Érico Veríssimo ou Dio-
a mudar nos anos de 1930, podendo ser- nélio Machado, a cidade cujo rio imita-
vir de exemplo a Antologia da língua va o Reno, de Viana Moog. Foi como se
portuguesa, de Estevão Cruz (1933), ex- a literatura tivesse desenvolvido para o
celente e inovadora (nas primeiras edi- leitor uma visão renovada, não-conven-
ções), apesar do cunho ideologicamente cional, do seu país, visto como um con-
conservador. junto diversificado mas solidário.
Ela foi a primeira a incluir autores
considerados modernistas (Alceu Amo-
roso Lima, Agripino Grieco, Graça Ara- orno decorrência do movimen-
nha, Mário de Andrade, Manuel Ban- to revolucionário e das suas
deira, Jorge de Lima), juntando aos tex- causas, mas também do que
tos subsídios importantes para a análise. acontecia mais ou menos no
Graças a isto, pela primeira vez os auto- mesmo sentido na Europa e nos Esta-
res e as teorias da vanguarda foram pro- dos Unidos, houve nos anos 30 uma
postos em dose apreciável a professores espécie de convívio íntimo entre a lite-
e alunos do curso secundário, ficando as- ratura e as ideologias políticas e religio-
sim em pé de igualdade com os da tradi- sas. Isto, que antes era excepcional no
ção literária da língua. Brasil, se generalizou naquela altura a
Traço interessante ligado às condições ponto de haver polarização dos intelec-

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tuais nos casos mais definidos e explíci- Sem o sentimentalismo desta corrente,
tos, a saber, os que optavam pelo co- antes com dureza polêmica, destacou-se
munismo ou o fascismo. Mesmo quando a linha crítica e política de Octavio de
não ocorria esta definição extrema, e Faria, autor de importantes ensaios pa-
mesmo quando os intelectuais não tinham rafascistas. Já outros teóricos de direita
consciência clara dos matizes ideológicos, nada tinham de religioso, como Oliveira
houve penetração difusa das preocupa- Viana e Azevedo Amaral.
ções sociais e religiosas nos textos, como Simetricamente, os anos 30 viram um
viria a ocorrer de novo nos nossos dias grande interesse pelas correntes de es-
em termos diversos e maior intensidade. querda, como se pôde ver no êxito da
Naquela altura o catolicismo se tornou Aliança Nacional Libertadora e certo es-
uma fé renovada, um estado de espírito pírito genérico de radicalismo, que pro-
e uma dimensão estética. "Deus está na vocou as repressões posteriores ao le-
moda", disse com razão André Gide em vante de 1935 e serviu como uma das
relação ao que ocorria na França e era justificativas do golpe de 1937. Muita
verdade também para o Brasil. Os anos gente se interessou pela experiência da
de 1930 viram frutificar as sementes União Soviética, e as livrarias pululavam
lançadas por Jackson de Figueiredo no de livros a respeito, estrangeiros e na-
cionais.4 Estes, devidos a observadores
4
"No extenso e superficial
debate de idéias sociais, lite-
decênio anterior, com a fundação da re-
rárias, artísticas e científicas vista Ordem (1921), do Centro Dom Vi- entusiastas, como Caio Prado Júnior;
(marxismo, psicanálise, pós-
modernismo artístico, etc.) tal (1922) e a momentosa conversão de simpáticos, como Maurício de Medeiros;
que acompanhou a vitória da
também extensa e superficial
Alceu Amoroso Lima em 1928. De 1932 ou reticentes, como Gondim da Fonse-
revolução de 1930, avultava é a Ação Católica, feita para suscitar a ca. Editoras pequenas e esforçadas di-
o interesse em torno da Rús-
sia forjada pela revolução de militância dos leigos, e da mesma época vulgavam obras sobre anarquismo, mar-
outubro de 1917". Paulo Emi- são as primeiras Equipes Sociais, inspi-
lio de Salles Gomes, em Pla- xismo, sindicalismo, movimento operá-
taforma da nova geração; 29 radas pelo professor e crítico francês Ro- rio. Algumas, de grande êxito, como a
figuras da intelectualidade bra-
sileira prestam o seu depoi- bert Garric, que orientou o trabalho des- História do socialismo e das lutas sociais,
mento no inquérito promovi-
do por Mário Neme, Porto sas missões leigas nas favelas do Rio de de Max Beer, o ABC do comunismo, de
Alegre, Globo, 1945, p. 284. Janeiro. Bukarin, ou o famoso Dez dias que aba-
Além do engajamento espiritual e so- laram o mundo, de John Reed. Ao lado,
cial dos intelectuais católicos, houve na traduções de narradores engajados na
literatura algo mais difuso e insinuante: esquerda, como Boris Pilniak, Panai Is-
a busca de uma tonalidade espiritualista trati, Ilia Ehrenburg, Fiodor Gladkov,
de tensão e mistério, que sugerisse, de Michael Gold, Upton Sinclair, Jack
London.
um lado, o inefável, de outro, o fervor;
e que aparece em autores tão diversos Surgem então os primeiros livros bra-
quanto Octavio de Faria, Lúcio Cardoso, sileiros de orientação marxista: o polê-
Cornélio Pena, na ficção; ou Augusto mico Mauá, de Castro Rebelo (1932), e
Frederico Schmidt, Jorge de Lima, Muri- sobretudo Evolução política do Brasil,
lo Mendes, o primeiro Vinícius de Mo- de Caio Prado Júnior (1934). E assim
raes, na poesia. Na crítica e no ensaio como o espiritualismo atingiu largos se-
isto se traduziu num gosto paralelo pela tores não-religiosos, o marxismo reper-
pesquisa da "essência", o "sentido", a cutiu em ensaístas, estudiosos, ficcionis-
"vocação", a "mensagem", a "transcen- tas que não eram socialistas nem comu-
dência", o "drama" — numa espécie de nistas, mas se impregnaram da atmosfe-
visão amplificadora e ardente. ra "social" do tempo. Daí a voga de no-
ções como "luta de classes", "espolia-
Muitas vezes o espiritualismo católico
ção", "mais valia", "moral burguesa",
levou no Brasil dos anos 30 à simpatia
"proletariado", ligados à insatisfação di-
pelas soluções políticas de direita, e mes-
fusa com o sistema social dominante. Fo-
mo fascistas, como foi o caso do Inte-
ram muitos os escritores declaradamente
gralismo, cujo fundador, Plínio Salgado,
de esquerda, como Graciliano Ramos,
modernista e participante do movimento
Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Ab-
estético renovador, aliou a doutrinação
guar Bastos, Dionélio Machado, Oswald
a uma atividade literária de certo inte-
de Andrade; ou simpatizantes, como Má-
resse. E é curioso notar que as opções
rio de Andrade, Carlos Drummond de
desse tipo foram favorecidas pela combi-
Andrade, José Lins do Rego (este, ex-in-
nação de catolicismo, simbolismo e semi-
tegralista); ou que não eram uma coisa
modernismo nacionalista, como nos casos
nem outra, mas manifestaram a referida
de Tasso da Silveira, Andrade Muricy,
consciência "social", que os punha um
Mansueto Bernardi e, com alguma varia-
grau além do liberalismo que os anima-
ção de componentes, o citado Schmidt.

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A REVOLUÇÃO DE 1930 E A CULTURA

va no plano consciente, como Érico Ve- mentos de análise, bem como dos do-
ríssimo, Amando Fontes, Guilhermino cumentos e fatos a estudar (papéis
César. íntimos, jornais; moda, alimentação, ma-
neiras, vida sexual, etc). Discreta mas
segura foi a contribuição de Sérgio Buar-
alvez essa radicalização ainda que de Holanda em Raízes do Brasil
tenha sido mais nítida num (1935), que efetuou uma crítica muito
certo sentido próprio daquela aguda das soluções autoritárias do pas-
fase, que consistia em procurar sado e do presente, ao mesmo tempo
uma atitude de análise e crítica em face que quebrava o sentimentalismo lusófilo
do que se chamava incansavelmente a (visível em Gilberto Freyre) e punha em
"realidade brasileira" (um dos concei- dúvida a capacidade das elites para o pa-
tos-chave do momento). Ela se encarnou pel que se arrogavam, e que era um dos
nos "estudos brasileiros" de história, temas dominantes do momento.
política, sociologia, antropologia, que ti- O aparecimento de Formação do Bra-
veram incremento notável, refletido nas sil Contemporâneo, de Caio Prado Jú-
coleções dedicadas a eles. Antes de qual- nior, em 1942, foi uma espécie de culmi-
quer outra a "Brasiliana", fundada e di- nação desse movimento cultural pois, ba-
rigida por Fernando de Azevedo na Com- seando-se no marxismo, deu realce à vi-
panhia Editora Nacional; e ainda: "Co- da econômica e chamou a atenção para
leção azul", da editora Schmidt; "Pro- as formas oprimidas do trabalho de um
blemas políticos contemporâneos" e ângulo estritamente econômico. Ao mes-
"Documentos brasileiros", de José mo tempo desmistificava a aura que en-
Olympio (esta, dirigida primeiro por Gil- volvia certos conceitos como "patriar-
berto Freyre e depois por Octavio Tar- cado" ou "elite rural", apresentando
quinio de Sousa, ainda existe sob a dire- uma visão ao mesmo tempo objetiva e
ção de Afonso Arinos de Melo Franco); radical, que encarna as tendências mais
"Biblioteca de divulgação científica", di- avançadas do pensamento renovador dos
rigida por Artur Ramos na Editora Civi- anos 30.
lização Brasileira, etc.
Lembre-se nesta chave o papel dos re-
Deixando de lado o cunho mais con- cém-fundados cursos superiores de filo-
servador de algumas destas coleções e sofia, ciências sociais, história, letras,
de obras isoladas, digamos que a radica- bem como a difusão do ensino da socio-
lização propriamente dita, crítica e "pro- logia no nível médio. Isto contribuiu pa-
gressista", teve como traços mais salien- ra desenvolver o espírito analítico nos
tes, além da "consciência social", a ânsia estudos sobre o Brasil, com incremento
de reinterpretar o passado nacional, o in- do interesse pelos grupos até então me-
teresse pelos estudos sobre o negro e o nos estudados, ou estudados com ilusões
empenho em explicar os fatos políticos deformadoras: além do negro, o índio, o
do momento. Quanto ao negro, é preci- trabalhador rural, o operário, o pobre.
so mencionar a iniciativa cultural dos Neste campo foi decisiva a contribuição
próprios "homens de cor", que inclusive de professores e pesquisadores estran-
criaram então uma imprensa muito ativa, geiros, temporária ou definitivamente ra-
não raro ligada a organizações, como a dicados no Brasil, como Samuel Lowrie,
Frente Negra Brasileira. No domínio dos Claude Lévi-Strauss, Donald Pierson,
estudos foi decisiva a contribuição de Roger Bastide, Herbert Baldus, Pierre
Gilberto Freyre, a partir de Casa Gran- Deffontaines, Pierre Monbeig, Jacques
de e Senzala (1933) e do 1.° Congresso Lambert, Emílio Willems, etc.
Afro-Brasileiro, que ele organizou no Re-
cife em 1934. Antes houvera os traba-
lhos da escola de Nina Rodrigues na s mudanças na educação, na
Bahia, sobretudo os de Artur Ramos, que literatura e nos estudos brasi-
se tornou a grande autoridade na ma- leiros repercutiram na indús-
téria. tria do livro, desde o projeto
Com referência à interpretação histó- gráfico até a difusão; mas sobretudo
rica, o livro de Gilberto Freyre (apesar quanto à matéria preferencial das suas
do peso saudosista de uma visão aristo- páginas, cada vez mais receptivas aos au-
crática) funcionou como fermento radica- tores novos integrados nas tendências do
lizante, modificando o enfoque racista e momento. Pode-se dizer que, reciproca-
convencional reinante até então, sobre- mente, essas tendências foram estimula-
tudo pela escolha inovadora dos instru- das pelo livro renovado, na medida em

32 NOVOS ESTUDOS N.º 4


que os autores procuravam se ajustar à leiros. Estes últimos constituíram a "Bra-
preferência da moda e dos editores — siliana", ainda em atividade, que foi um
como, por exemplo, o "romance social" marco decisivo não apenas pela reedi-
e os estudos brasileiros. (Em meados do ção de clássicos estrangeiros e nacionais,
decênio de 1930 Plínio Barreto pôde mas pelo estímulo aos contemporâneos.
escrever que assim como na geração an- Importante foi a atuação da Editora
terior os jovens procuravam se afirmar Globo, de Porto Alegre, que passou do
através de um livro inaugural de versos, livro didático para a literatura, divulgan-
os de então tendiam a fazê-lo por meio do os novos valores do Rio Grande do
do ensaio de cunho sociológico.) Sul e uma quantidade de autores estran-
Ainda aqui estamos ante um processo geiros contemporâneos, tudo isso com a
começado nos anos 20, quando Monteiro colaboração de Érico Veríssimo como
Lobato fundou e desenvolveu a sua edi- conselheiro editorial e tradutor. A Glo-
tora, marcada por alguns traços inovado- bo distribuía gratuitamente, a título de
res: preferência quase exclusiva por au- propaganda, o folheto periódico Preto e
tores brasileiros do presente; interesse Branco, que desempenhou uma boa ta-
pelos problemas da hora; busca de uma refa de popularização cultural pelo país
fisionomia material própria, diferente afora, graças às notícias informativas e
dos tradicionais padrões franceses e por- críticas sobre escritores brasileiros e es-
tugueses; esforço para vender por pre- trangeiros editados pela casa. No geral,
ços acessíveis sem quebra da qualidade gente pouco difundida antes, como Jo-
editorial. Mas só depois de 1930 se ge- seph Conrad, Thomas Mann, Somerset
neralizaria em grande escala este desejo Maugham, Aldous Huxley, Lion Feuch-
de nacionalizar o livro e torná-lo instru- twanger, William Faulkner, Charles
mento da cultura mais viva do país. As Morgan, Rosamond Lehman, Sinclair Le-
editoras procuraram inclusive criar uma wis, Ernst Glaeser, etc, etc. Mais tarde
literatura didática ajustada aos novos ela chegaria aos empreendimentos monu-
programas e aos ideais das reformas edu- mentais que foram a tradução da Comé-
cacionais. Consolidou-se deste modo o dia Humana, de Balzac (sob a direção de
livro escolar brasileiro para o nível mé- Paulo Rónai) e de À busca do tempo
dio, atento às necessidades imediatas da perdido, de Marcel Proust.
nossa cultura e procurando substituir a No Rio algumas pequenas editoras
clássica bibliografia estrangeira do tipo exerceram papel importante: Adersen,
coleções de F.T.D. e F.I.C., série Royal Schmidt, Ariel (que publicava o famoso
Readers, história de Raposo Botelho, Boletim), seguidas logo depois por uma
matemática de Comberousse, física de grande editora, sob vários aspectos a mais
Ganot (ou do seu mau adaptador portu- característica do período — José Olym-
guês Nobre), química de Bazin, geologia pio. Estas casas confiaram abertamente
de Lapparent, história natural de Pizon, no autor nacional jovem e, assim, permi-
etc, etc. A obrigação do curso seriado tiram a difusão da literatura moderna.
(anterior à Reforma Campos) propiciou Confiaram também nos jovens artistas,
o aparecimento de séries de livros para que trouxeram para as capas e ilustra-
as diferentes matérias, que antes existiam ções as conquistas das artes visuais do
sobretudo para o ensino primário de por- decênio anterior, incorporando à sensi-
tuguês e história pátria. bilidade média o que antes ficara confi-
Neste sentido destaca-se a atividade nado aos amadores esclarecidos. Assim,
da Companhia Editora Nacional, de São insensivelmente o leitor se familiarizou
Paulo, sucessora de Monteiro Lobato & com o cubismo, o primitivismo, o surrea-
Cia. Conservadora em literatura, publi- lismo, as estilizações do realismo — nas
cou apenas os novos menos avançados capas de Santa Rosa, Cícero Dias, Jorge
(Guilherme de Almeida, Cassiano Ricar- de Lima, Cornélio Pena, Fulvio Pen-
do, Menotti del Picchia, Ribeiro Couto). nacchi, Clovis Graciano, João Fahrion,
Mas foi longe noutros terrenos, como se Edgard Koetz e outros, para elas e ou-
comprova pela famosa "Biblioteca Peda- tras editoras. Nos anos 20 isto ocorrera
gógica Brasileira", talvez o mais notável em escala bem restrita, através de algu-
empreendimento editorial que o país co- mas capas de Di Cavalcanti, Tarsila do
nheceu até hoje. Ideada e durante muito Amaral, Brecheret, Flávio de Carvalho
tempo dirigida por Fernando de Azeve- para uns poucos livros de Mário de An-
do, abrangia coleções de livros didáticos, drade, Oswald de Andrade, Raul Bopp.
atualidades pedagógicas, divulgação cien- No centro deste movimento, José
tífica, literatura infantil e estudos brasi- Olympio pode ser considerado verdadei-

ABRIL DE 1984 33
A REVOLUÇÃO DE 1930 E A CULTURA

ro herói cultural, pelo arrojo e a ampli- tos de peso, porque eles podiam assu-
tude com que estimulou e editou os no- mir a função de "delegados" da coletivi-
vos, bem como pelo estilo das capas de dade. De um lado isto servia de pretexto
suas edições, criadas sobretudo por San- para manter posições privilegiadas, com
ta Rosa em suas diversas fases. A man- a conseqüente sujeição das camadas do-
cha colorida com o desenho central em minadas (que não eram cultas, nem "pre-
branco e preto se tornou nos anos 30, paradas" para dirigir o seu destino, se-
por todo o país, o símbolo da renovação gundo a ideologia reinante). Mas sob
incorporada ao gosto público. o ponto de vista estritamente cultural,
Como uma espécie de ilha artesanal podia ser oportunidade de servir como
e graficamente conservadora nessa onda veículo possível para manifestar os in-
de industrialização e atualização edito- teresses e necessidades de expressão des-
rial, funcionou em Belo Horizonte, por tas camadas. Desde o pensador político
iniciativa de Eduardo Frieiro, a princí- que formula um ideário radical, até o
pio a Pindorama, depois a Amigos do artista que constrói estruturas por meio
Livro, mantidas por cotizações mensais das quais se manifesta o humano, acima
que davam direito à edição periódica de dos interesses de classe, muitos setores
um volume. Deste modo foram editadas das elites puderam (e podem) encontrar
algumas obras importantes de Carlos uma alta justificativa para a sua ativi-
Drummond de Andrade, João Alphon- dade.
sus, Emílio Moura, Ciro dos Anjos etc. Além disso, depois de 1930 se esbo-
çou uma mentalidade mais democrática
a respeito da cultura, que começou a ser
e maneira geral a repercussão vista, pelo menos em tese, como direito
do movimento revolucionário de todos, contrastando com a visão de
de 1930 na cultura foi posi- tipo aristocrático que sempre havia pre-
tiva. Comparada com a de an- dominado no Brasil, com uma tranqüili-
tes a situação nova representou grande dade de consciência que não perturbava
progresso, embora tenha sido pouco, em a paz de espírito de quase ninguém. Pa-
face do que se esperaria de uma verda- ra esta visão tradicional, as formas ele-
deira revolução. Se pensarmos no "povo vadas de cultura erudita eram destina-
pobre" (como diria Joaquim Manuel de das apenas às elites, como equipamen-
Macedo), ou seja, na maioria absoluta to (que se transformava em direito) pa-
da nação, foi quase nada. Mesmo pondo ra a "missão" que lhes competia, em
entre parênteses as modificações que po- lugar do povo e em seu nome.
deriam ter ocorrido na estrutura econô- O novo modo de ver, mesmo discre-
mica e social, para ele o que se impunha tamente manifestado, pressupunha uma
era a implantação real da instrução pri- "desaristocratização" (com perdão da
mária, com possibilidade de acesso futu- má palavra) tinha aspectos radicais que
ro aos outros níveis; e ela continuou a não cessariam de se reforçar até nossos
atingi-lo apenas de raspão. Mas se pen- dias, desvendando cada vez mais as con-
sarmos nas camadas intermediárias (que tradições entre as formulações idealistas
aumentaram de volume e participação da cultura e a terrível realidade da sua
social depois de 1930), a melhora foi fruição ultra-restrita. Por extensão, hou-
sensível graças à difusão do ensino mé- ve maior consciência a respeito das con-
dio e técnico, que aumentou as suas pos- tradições da própria sociedade, podendo-
sibilidades de afirmação e realização, de se dizer que sob este aspecto os anos 30
acordo com as necessidades novas do de- abrem a fase moderna nas concepções de
senvolvimento econômico. Se, finalmen- cultura no Brasil.
te, pensarmos nas chamadas elites, veri- Uma das conseqüências foi o conceito
ficaremos o grande incremento de opor- de intelectual e artista como opositor, ou
tunidades para ampliar e aprofundar a seja, que o seu lugar é no lado oposto
experiência cultural, inclusive com aqui- da ordem estabelecida; e que faz parte
sição de um corte progressista por alguns da sua natureza adotar uma posição crí-
dos seus setores. Este fato não poderia tica em face dos regimes autoritários e
deixar de repercutir na sociedade por da mentalidade conservadora.
causa do papel que as elites desempe-
nhavam, muito grande devido à extrema No entanto, este processo foi cheio de
privação cultural do país. A qualidade e paradoxos, inclusive porque o intelec-
grau de consciência dos detentores da tual e o artista foram intensamente
cultura e do saber tornavam-se elemen- cooptados pelos governos posteriores a

34 NOVOS ESTUDOS N.º 4


1930, devido ao grande aumento das ati- Trata-se do seguinte: a preocupação
vidades estatais e às exigências de uma absorvente com os "problemas" (da
crescente racionalização burocrática. Nem mente, da alma, da sociedade) levou
sempre foi fácil a colaboração sem sub- muitas vezes a certo desdém pela ela-
missão de um intelectual, cujo grupo se boração formal, o que foi negativo.
radicalizava, com um Estado de cunho Posto em absoluto primeiro plano, o
cada vez mais autoritário. Resultaram "problema" podia relegar para segundo
tensões e acomodações, com incremento a sua organização estética, e é o que sen-
da divisão de papéis no mesmo indiví- timos lendo muitos escritores e críticos
duo. Sérgio Miceli estudou os aspectos da época. Chega-se a pensar que para
externos desta situação num livro pio- eles não era necessário, e talvez até fos-
neiro — ao qual seria preciso todavia se prejudicial, fundir de maneira válida
acrescentar que o serviço público não a "matéria" com os requisitos da "fatu-
significou e não significa necessariamen- ra", pois esta poderia atrapalhar even-
te identificação com as ideologias e inte- tualmente o impacto humano da outra
5
MICELI, Sérgio, Intelectuais resses dominantes.5 E que uma análise (quando na verdade é a sua condição).
e classes dirigentes no Brasil mais completa mostra como o artista e
(1920-1945), São Paulo, Difel, Esta atitude, bem característica dos
1979. Veja-se também a aná- o escritor aparentemente cooptados são anos 30, se explica em boa parte pela
lise realmente notável sobre
a indústria do livro no ca- capazes, pela própria natureza da sua referida passagem do "projeto estético"
pítulo II: “A expansão do atividade, de desenvolver antagonismos
mercado do livro e a gênese ao "projeto ideológico" no processo mo-
de um grupo de romancistas objetivos, não meramente subjetivos, dernista (Lafetá), e por aí contrasta com
profissionais” pp. 69-128.
com relação à ordem estabelecida. A sua a posição dos modernistas do decênio de
margem de oposição vem da elasticida- 1920, baseada no esforço para discernir
de maior ou menor do sistema dominan- a correlação matéria-fatura. Leia-se, por
te, que os pode tolerar sem que eles dei- exemplo, a nota prévia de Jorge Amado
xem com isto de exercer a sua função a Cacau (1933):
corrosiva. Assim, durante a ditadura do
Estado Novo, depois de 1937, Cândido Tentei contar neste livro,, com um
Portinari, cumprindo encomenda oficial, mínimo de literatura para um máximo
pintou no Ministério de Educação os fa- de honestidade, a vida dos trabalha-
mosos murais que, pela concepção, te- dores de cacau do sul da Bahia.
mário e técnica, eram a negação do regi- O leitor fica com a impressão que
me opressor, ao mostrarem como repre- "honestidade" é pouco compatível com
sentante da produção o trabalhador, não "literatura", e que esta (aqui, sinônimo
o patrão; o negro, não o branco; e ao de elaboração formal) tende a ser um
fazê-lo conforme uma fatura que afirma- embuste que atrapalha o enfoque certo
va a inovação criadora contra as normas da realidade. Outros autores mostravam
tradicionais, de agrado dos poderes. É o ter consciência dos requisitos da produ-
que sugere Annateresa Fabris numa aná- ção literária, mas na prática a sua escri-
6
FABRIS, Annateresa, Porti- lise precisa e matizada.6 ta permanecia no nível cursivo que pare-
nari pintor social, Dissertação Já vimos também que muitos intelec-
de Mestrado, Universidade de cia ignorá-los — como Abguar Bastos,
São Paulo, Escola de Comu- tuais significativos daquele momento, em cujo romance Safra (1937) há um
nicações e Artes, 1977, mi-
meografada. A autora focaliza mesmo sem qualquer definição ideológi- lúcido prefácio onde, depois de informar
a pintura social de Portinari ca explícita, participavam dum tipo de
à luz da teoria marxista da que vai descrever a vida dos apanhado-
alienação, analisando o trata- consciência crítica identificada aos temas res de castanha da Amazônia, pondera:
mento revolucionário do ne-
gro, cuja função em telas e e atitudes radicais. E que, apesar das dis-
painéis dos anos 30 "é uma crepâncias (dentro de cada indivíduo) en- Porém, devo advertir o seguinte:
afirmação racial, é um reco-
nhecimento do seu papel his- tre estas e os automatismos conservado- um romance permite que se lhe adi-
tórico, é símbolo do prole-
tariado" (p. 176). A análise res, engrossaram o que se poderia cha- vinhem os planos, quando se trata de
do assunto é feita da p. 174
mar o "espírito dos anos 30". Sobretu- reconstituir qualquer fase da existên-
à p. 198.
do levando em conta que graças a eles cia humana. Mas evita que eles sur-
se instalou no Brasil uma situação de jam, à flor do texto, com um ar de
ambigüidade que levaria aos esforços pa- deliberação.
ra superá-la. Síntese de acontecimentos que não
Mencionemos, para terminar, algumas perdem de vista o fundo mais nobre
conseqüências formais da "consciência das suas paisagens: eis o romance. As-
social" dos escritores e artistas, que foi sim sendo, o seu material não só é in-
bastante característica daquele momen- trínseco ao segredo da sua forma, co-
to, mesmo antes do Congresso de Karkov mo proíbe uma seqüência de arte que
(1934) ter apresentado o "realismo so- não se revele muito naturalmente.
cialista" como padrão. Desse modo o plano do livro, isto é, a

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A REVOLUÇÃO DE 1930 E A CULTURA

sua intenção social e a sua aparência que fora empreendida nos anos de 1920
artística, se misturam sem que um per- sobretudo por Oswald de Andrade (cujo
ceba o outro. Não será como a água Serafim Ponte Grande, aliás, foi publi-
e o azeite. Será, antes, como a luz cado em 1933); e que nos anos 30 en-
e a cor. controu manifestação curiosa no irreali-
Estas considerações mostram cons- zado O Anjo, de Jorge de Lima (1934).
ciência clara do problema essencial na O gosto, ou pelo menos a tolerância
elaboração literária; mas comparadas pelo informe, o não-artístico (em rela-
com a realização, em seu autor e muitos ção aos padrões da tradição ou aos da
outros, ficam mais como alegação ritual; vanguarda), levou por vezes a supervalo-
e os "planos", (isto é, os intuitos, as con- rizar escritores que pareciam ter a vir-
vicções) acabam absorvendo o resto, co- tude do espontâneo; e a não reconhecer
mo uma "tese" a ser "ilustrada" pela fic- devidamente certas obras de fatura re-
ção. Poucos, naquele período, tiveram a quintada, mas desprovidas de ideologia
capacidade de corresponder ao programa ostensiva, como Os Ratos, de Dionélio
traçado por Abguar Bastos: Graciliano Machado (1935) ou O Amanuense Bel-
Ramos, Dionélio Machado, alguns mais. miro, de Ciro dos Anjos (1937). E tal-
E pouquíssimos puderam unir a formula- vez um artista de grande nível, como
ção crítica adequada à realização correta, Graciliano Ramos, tenha sido mais valo-
como se observa num veterano do de- rizado pelo temário, considerado incon-
cênio precedente, Mário de Andrade. formista e contundente, do que pela rara
qualidade da fatura, que lhe permitiu fa-
O que houve mais foi preocupação de zer obras realmente válidas.
discutir a pertinência dos temas e das
atitudes ideológicas, quase ninguém per- Post Scriptum — Aqui foram aborda-
cebendo como uma coisa e outra depen- dos alguns aspectos da vida cultural pos-
dem da elaboração formal (estrutural e terior a 1930; mas haveria muitos ou-
estilística), chave do acerto em arte e tros, relativos a teatro, rádio, cinema,
literatura. E note-se que isto não foi pró- música, que escapam à minha competên-
prio dos escritores e artistas de esquerda, cia. Lembro apenas que na música po-
ou radicais no sentido amplo. Ocorreu pular ocorreu um processo equivalente
também nos outros, inclusive os de di- de "generalização" e "normalização", só
reita, devido ao mesmo desvio obsessivo que a partir das esferas populares, rumo
rumo aos "problemas", bastando pensar às camadas médias e superiores. Nos
no aspecto pouco elaborado de obras am- anos 30 e 40, por exemplo, o samba e
biciosas e não desprovidas de força, co- a marcha, antes praticamente confinados
mo a de Octavio de Faria, que se tor- aos morros e subúrbios do Rio, con-
nou um crítico acerbo do modernismo e quistaram o país e todas as classes, tor-
dos temas "sociais", defendendo a con- nando-se um pão-nosso quotidiano de
centração nos de cunho religioso, moral consumo cultural. Enquanto nos anos 20
e psicológico, que praticava no entanto um mestre supremo como Sinhô era de
com total insensibilidade em relação aos atuação restrita, a partir de 1930 ganha-
aspectos de fatura. Tanto no caso da fic- ram escala nacional homens como Noel
ção espiritualista quanto do "romance Rosa, Ismael Silva, Almirante, Lamarti-
social", a imersão nos "planos" (senti- ne Babo, João da Bahiana, Nássara, João
do de Abguar Bastos) como aspecto do- de Barro e muitos outros. Eles foram
minante conduzia ao espontâneo, que no o grande estímulo para o triunfo avassa-
limite é o informe. lador da música popular nos anos 60, in-
clusive de sua interpenetração com a poe-
Na poesia houve fenômeno paralelo,
sia erudita, numa quebra de barreiras
mas diferente, que foi positivo: a tensão que é dos fatos mais importantes da nos-
entre o verso (elaborado segundo as re- sa cultura contemporânea e começou a
gras) e o não-verso (livre, em vários sen- se definir nos anos 30, com o interesse
tidos). Poetas como Drummond e Mu- pelas coisas brasileiras que sucedeu ao
rilo Mendes pareciam reduzir o verso a movimento revolucionário.
uma forma nova de expressão, que in-
corporou as qualidades da prosa e funcio-
nou como instrumento adequado para
exprimir o dilaceramento da consciên-
cia estética. Sob este aspecto eles prolon-
garam a experiência modernista de apa- Novos Estudos Cebrap, São Paulo,
v. 2, 4, p. 27-36, abril 84
gamento das fronteiras entre os gêneros,

36 NOVOS ESTUDOS N.º 4

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