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VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia

INDICE

Comportamentos interactivos maternos e envolvimento da criança..........................................2


Condutas agressivas, integração social e atributos psicossociais ............................................23
Confronto com o doente em fase terminal: um estudo com estudantes da área da Saúde.......39
A relação de ajuda e a aliança terapêutica no quadro clínico de Anorexia Nervosa: como pode
ser trilhado o caminho para a cura ...........................................................................................57
O Consumo de Bebidas Alcoólicas na População Escolar Juvenil do Concelho de Loulé .....74
Gravidez e Cuidados de Saúde: a importância da experiência subjectiva .............................102
Percepção da Relação Familiar e Índices Psicopatológicos em Adolescentes Vítimas de
Negligência ............................................................................................................................121
Impacto da percepção de controlo nos diferentes estilos de auto-regulação da motivação...133
Um Estudo Exploratório que Compara alunos de Psicologia e de Enfermagem da
Universidade do Algarve .......................................................................................................153
O Bem-estar Psicológico: Um estudo com idosos em institucionalização completa (lares de
terceira idade) e em institucionalização parcial (centros de dia) ...........................................159
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Comportamentos interactivos maternos e envolvimento da criança

Cecília Aguiar (Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do


Porto) *
Joaquim Bairrão (Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do
Porto)
*POCTI/BD/8317/2002 POCTI/PSI/35207/2000

Palavras-chave:
Responsividade, Envolvimento, Creche, Jogo diádico mãe-criança

Resumo/Abstract:
O envolvimento da criança pode ser definido como a quantidade de tempo que a criança
despende a interagir com o ambiente, de uma forma desenvolvimental e contextualmente
adequada, em diferentes níveis de competência (de Kruif, McWilliam, & Ridley, 2001).
Reconhecendo a importância da interacção mãe-criança enquanto contexto privilegiado de
desenvolvimento, este estudo teve como objectivo determinar a influência dos
comportamentos interactivos maternos no envolvimento sofisticado e no não-envolvimento
da criança em dois contextos: creche e situação diádica de jogo mãe-criança. Participaram
neste estudo 120 díades mãe-criança, aleatoriamente seleccionadas em 30 salas de creche do
distrito do Porto. Os resultados indicam que (1) o envolvimento sofisticado em contexto de
creche é influenciado pela idade cronológica da criança, pela expressividade verbal e
emocional da criança e pelo estado civil da mãe; (2) o não-envolvimento em contexto de
creche é influenciado pela qualidade global da sala, pelo estado civil da mãe, pela idade
cronológica da criança e pelo controlo socioemocional da criança; (3) o envolvimento
sofisticado em situação diádica é influenciado pela responsividade materna, pela idade
cronológica da criança e pela expressividade verbal e emocional da criança; e (4) o não-
envolvimento em situação diádica é influenciado pela responsividade materna e pela idade
cronológica da criança. Deste modo, os resultados sugerem que a responsividade materna
influencia o envolvimento da criança num contexto próximo e imediato mas não num
contexto mais distal.
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O envolvimento da criança pode ser definido como a quantidade de tempo que esta
despende a interagir com o ambiente, de uma forma adequada ao seu nível de
desenvolvimento e ao contexto de actividade, em diferentes níveis de competência (de Kruif,
McWilliam, & Ridley, 2001). De acordo com a operacionalização proposta por McWilliam e
de Kruif (1998), existem nove níveis de envolvimento, organizados numa hierarquia de
desenvolvimento: persistência (resolução de problemas), comportamento simbólico (implica
descontextualização), comportamento codificado (uso de linguagem compreensível
contextualizada), jogo construtivo, comportamento diferenciado (participação activa e
convencionalização), atenção focalizada, comportamento indiferenciado (implica repetição),
atenção ocasional e comportamento não envolvido (passivo, quando se verifica ausência de
actividade, ou activo, quando se observam comportamentos indesejados). Estes níveis de
envolvimento são mutuamente exclusivos e exaustivos, uma vez que permitem a classificação
de todos os comportamentos exibidos pela criança. Os comportamentos de nível superior
(i.e., a persistência, o comportamento simbólico, o comportamento codificado e o
comportamento construtivo) constituem indicadores de sofisticação cognitiva e são
considerados os mais importantes para o desenvolvimento das crianças (Quality and
Engagement Study, 2000).
O envolvimento constitui um constructo comportamental molar, ou seja, uma classe
abrangente de comportamentos, que é considerado uma condição necessária para que ocorra
mudança no desenvolvimento (McWilliam, Trivette, & Dunst, 1985) e um factor mediador,
potencialmente crítico, da aprendizagem das crianças (McWilliam & Bailey, 1992). Pode
ainda ser considerado como um indicador da perspectiva de qualidade orientada de baixo
para cima (Katz, 1998), segundo a qual os efeitos significativos e duradouros de um contexto
pré-escolar dependem, em primeiro lugar, da forma como são vividos pelas crianças, ou seja,
dependem da qualidade de vida experienciada, por cada criança, numa base diária.
A investigação permitiu identificar, até ao momento, dois grandes grupos de factores
que podem influenciar o envolvimento das crianças em contextos pré-escolares. O primeiro
conjunto de influências relaciona-se com as características das próprias crianças,
nomeadamente a idade de desenvolvimento (e.g., de Kruif & McWilliam, 1999), a idade
cronológica (e.g., Aguiar, Cruz, Barros, & Bairrão, 2005), o perfil de incapacidades (e.g.,
McWilliam & Bailey, 1992, 1995) e o temperamento ou estilo individual (e.g., de Kruif,
McWilliam, & Ridley, 2001). O segundo conjunto de influências diz respeito às
características dos contextos frequentados pelas crianças, nomeadamente o arranjo da sala
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(Twardosz, Cataldo, & Risley, 1974), os materiais acessíveis (Howes & Smith, 1995), o rácio
adulto-criança (Raspa, McWilliam, & Ridley, 2001; Dunst, McWilliam, & Holbert, 1986), as
transições entre actividades (Dunst et al., 1986), as estratégias de organização dos educadores
(Casey & McWilliam, 2005), a composição do grupo (McWilliam & Bailey, 1995), o nível
de estrutura das actividades (McWilliam & Bailey, 1995), as estratégias de ensino e
comportamentos interactivos dos educadores (McWilliam & Bailey, 1992; Dunst et al., 1986,
McWilliam, Scarborough, & Kim, 2003; de Kruif et al., 2001; Raspa et al., 2001) e a
qualidade global do ambiente pré-escolar (e.g., Raspa et al., 2001).
Naturalmente, o tempo das crianças em idade pré-escolar não é despendido apenas em
contextos formais de prestação de cuidados. As crianças participam em diferentes contextos
de vida e de socialização, entre os quais se incluem contextos de interacção diádica. Assim, o
envolvimento da criança tem sido utilizado, de uma forma eficaz, como variável dependente
com base na qual é possível avaliar o impacto de diferentes estilos de interacção dos adultos,
em situação diádica (e.g., Lussier, Crimmins, & Alberti, 1994; Girolametto, Verbey, &
Tannock, 1994). Por exemplo, Lussier et al. (1994) verificaram que (1) um estilo interactivo
contingente e responsivo, moderadamente estimulante, estava associado a maiores
percentagens de tempo despendido em formas de envolvimento interactivo; (2) um estilo
interactivo não responsivo e pouco estimulante estava associado a mais tempo despendido em
comportamentos de não-envolvimento e em envolvimento centrado em objectos; e (3) um
estilo interactivo altamente directivo e estimulante estava associado a grandes quantidades de
tempo despendido a observar. De acordo com os autores, interagindo de uma forma
estimulante, contingente e responsiva, os prestadores de cuidados podem aumentar a
probabilidade de estados de envolvimento que se considera serem promotores de um
desenvolvimento optimizado. Girolametto et al. (1994) verificaram que, quando as mães
encorajavam a participação das crianças na interacção social diádica, através da utilização de
comportamentos interactivos responsivos e centrados na criança, as díades demonstravam
mais episódios, mais prolongados, de envolvimento partilhado. Cielinski, Vaughn, Seifer e
Contreras (1995) verificaram que (1) comportamentos maternos mais responsivos (i.e.,
facilitadores) estavam associados a níveis mais sofisticados de jogo de crianças com
Síndrome de Down em situação diádica; (2) comportamentos maternos directivos estavam
positivamente associados à proporção de tempo que as crianças com Síndrome de Down
despendiam envolvidas com brinquedos; e (3) comportamentos maternos intrusivos tinham
implicações negativas na quantidade de envolvimento sustentado e na qualidade de jogo. Por
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seu turno, Kim e Mahoney (2004) verificaram que o envolvimento das crianças estava
positivamente relacionado com a responsividade materna no decurso de situações diádicas de
jogo e que a directividade materna, que ocorria com mais frequência com crianças com
incapacidades, não estava significativamente associada ao envolvimento das crianças.
Reconhecendo a importância da interacção mãe-criança como contexto privilegiado
de desenvolvimento e tendo em conta que a complexidade do jogo das crianças varia em
função do contexto em que ocorre (e.g., Fiese, 1990) e que a experiência das crianças num
determinado contexto de actividade pode influenciar o seu funcionamento num outro
contexto (Sameroff & MacKenzie, 2003), o presente estudo teve como principal objectivo
determinar a influência dos comportamentos interactivos maternos no envolvimento
sofisticado e no não-envolvimento da criança em dois contextos: creche e situação diádica de
jogo mãe-criança.
Método
Participantes
Participaram neste estudo 120 díades mãe-criança residentes no distrito do Porto,
aleatoriamente seleccionadas a partir de 30 salas de creche (inseridas em 11 instituições
particulares de solidariedade social e em 4 instituições particulares com fins lucrativos,
também elas aleatoriamente seleccionadas). Dois meninos e 2 meninas foram aleatoriamente
seleccionados em cada sala de actividades, num total de 60 meninos e 60 meninas. Foram
assim recrutadas 4 crianças em cada sala e, portanto, 8 crianças em cada instituição, dando
origem a um desenho de investigação com uma estrutura de dados hierárquica ou multinível.
A participação das crianças seleccionadas dependeu da autorização das respectivas famílias.
A taxa de participação das famílias contactadas foi de 71%.
A idade cronológica das crianças participantes variava entre 14 e 49 meses (M =
26.19, DP = 7.07). O rendimento mensal total do agregado familiar variava entre 324.22 e
2618.69 euros (M = 1362.76, DP = 735.91). A idade das mães participantes variava entre 18
e 43 anos (M = 30.9, DP = 5.3) e o número de anos de escolaridade materna variava entre 0 e
18 (M = 10.83, DP = 4.47). No que diz respeito ao estatuto profissional das mães
participantes, verificámos que 105 trabalhavam fora de casa (88%), 8 estavam
desempregadas (7%), 4 eram estudantes (3%), 2 eram donas de casa (2%) e 1 mãe estava
reformada (1%). Finalmente, no que diz respeito ao estado civil das mães, apurámos que 98
mães eram casadas (82%), 16 mães eram solteiras (13%) e 5 mães estavam divorciadas ou
separadas (5%).
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Instrumentos
Comportamentos interactivos maternos. A caracterização dos comportamentos
interactivos maternos foi efectuada com base na Escala de Avaliação dos Estilos de Ensino –
EAEE, tradução e adaptação portuguesa da Teaching Styles Rating Scale (McWilliam,
Scarborough, Bagby, & Sweeney, 1998). Esta escala, concebida com o objectivo de captar a
qualidade do comportamento interactivo de educadores de infância, foi adaptada à
observação do comportamento interactivo materno (Cruz, Aguiar, & Barros, 2004) em
situação diádica de jogo mãe-criança. A EAEE é composta por 20 itens organizados em duas
subescalas: a subescala dos comportamentos de ensino e a subescala do afecto. A primeira
inclui sete itens avaliados numa escala de 7 pontos com quatro descritores (1 = nunca, 3 =
ocasionalmente, 5 = frequentemente, 7 = a maior parte do tempo); a segunda inclui 13 itens
avaliados numa escala de 5 pontos com três descritores específicos a cada item nos pontos 1,
3 e 5.
Neste estudo, e para efeitos de redução de dados, constituiu-se uma única variável
compósita, constituída pela média aritmética de 14 comportamentos interactivos (6
comportamentos de ensino - redireccionar, introduzir, elaborar, desencadear, informar,
reconhecer e elogiar - e 8 comportamentos de afecto - expressão positiva, expressão negativa,
responsividade emocional, consistência nas interacções, responsividade aos interesses da
criança, directividade, tom e adequação ao nível de desenvolvimento). A consistência interna
desta variável, designada Responsividade Estimulante e Afectuosa, calculada com base no
coeficiente alpha de Cronbach, foi de .91.
Envolvimento da criança. Os comportamentos de envolvimento das crianças foram
codificados com base no Sistema de Avaliação da Qualidade do Envolvimento – SAQE
(Pinto, Aguiar, Barros, & Cruz, 2004), tradução portuguesa do Engagement Quality
Observation System (McWilliam & de Kruif, 1998). O SAQE consiste num procedimento de
observação por amostragem no tempo: o envolvimento das crianças é codificado de 15 em 15
segundos, no decurso de observações de 15 minutos (num total de 60 observações por
sessão). Em cada momento de observação são introduzidos dois códigos: um código para o
nível de envolvimento (i.e., a qualidade do comportamento da criança) e um código para o
tipo de envolvimento (i.e., o destinatário ou foco do comportamento da criança). No final de
cada sessão de observação, as frequências de cada código são somadas e o resultado é
dividido pelo tempo total da sessão, obtendo-se a percentagem de tempo despendido em cada
nível e tipo de envolvimento. Os nove níveis de envolvimento propostos por McWilliam e de
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Kruif (1998), estão organizados numa hierarquia de desenvolvimento em que o


comportamento persistente constitui o nível mais sofisticado e o comportamento de atenção
ocasional se assume como o nível de envolvimento menos sofisticado. Neste estudo, apenas
dois níveis de envolvimento foram considerados: envolvimento sofisticado (soma de
persistente, simbólico, codificado e construtivo) e não-envolvimento.
Qualidade do contexto de creche. A avaliação da qualidade das salas de creche foi
realizada através da aplicação da Escala de Avaliação do Ambiente de Creche, tradução e
adaptação portuguesa da Infant/Toddler Environment Rating Scale – ITERS (Harms, Cryer,
& Clifford, 1990). A ITERS foi desenvolvida para avaliar a qualidade global dos cuidados e
práticas educativas de contextos dirigidos a grupos de bebés e crianças pequenas (até 30
meses de idade, aproximadamente). Trata-se de uma escala ordinal, constituída por 35 itens,
organizados de acordo com 7 categorias: Mobiliário e sua Disposição para as Crianças,
Cuidados Pessoais de Rotina, Escuta e Conversação, Actividades de Aprendizagem,
Interacção, Estrutura do Programa e Necessidades do Adulto. Cada item é apresentado como
uma escala de 7 pontos, com descritores para 1 (inadequado), 3 (mínimo), 5 (bom) e 7
(excelente). A média global dos 35 itens da ITERS fornece uma imagem abrangente da
qualidade dos cuidados proporcionados numa sala de creche. Neste estudo, a consistência
interna dos dados foi elevada (α = .80).
Temperamento das crianças. As características de temperamento das crianças foram
determinadas com base na Escala de Personalidade da Criança, tradução e adaptação
portuguesa da Childhood Personality Scale (Dibble & Cohen, 1974). Esta escala é composta
por 48 itens comportamentais operacionalmente definidos e avaliados numa escala de 7
pontos (de 0 = nunca a 6 = sempre). Tendo por base a análise de componentes principais
realizada por Pinto, Poppe, Burchinal e Bairrão (2006), foram utilizados quatro factores:
Expressividade Verbal e Emocional/Adaptabilidade (α = .89), Atenção (α = .89), Controlo
Socioemocional (α = .81), e Empenhamento/Evitamento (α = .79).

Procedimento
Comportamentos interactivos maternos. Cada mãe foi convidada a deslocar-se à
creche frequentada pelo(a) seu(sua) filho(a), em três dias diferentes, no sentido de participar
em três sessões de jogo de carácter diádico. As instruções dadas a cada mãe iam no sentido de
“brincar com o(a) seu(sua) filho(a) como se estivesse em casa”, utilizando uma caixa de
brinquedos fornecida pela equipa de investigação e tentando explorar todos os brinquedos
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disponíveis. Após 10 minutos de jogo, o observador dava às mães uma instrução no sentido
de pedir à criança para arrumar os brinquedos na caixa. A sessão de jogo terminava 5 minutos
após esta instrução. Estas sessões de jogo decorreram numa sala disponibilizada pela creche
frequentada pela criança, numa manta disposta no chão. Todas as sessões foram filmadas
com consentimento prévio das mães.
Após a finalização do procedimento de recolha de dados, as 360 sessões de jogo
diádico mãe-criança, disponíveis em registo vídeo, foram analisadas com base na EAEE.
Realizaram-se verificações do acordo interobservadores em 25% das sessões de observação,
num total de 90 sessões de acordo. Para os 14 itens que compunham a variável compósita
Responsividade Activa e Afectuosa, a percentagem média de acordo interobservadores, com
diferenças de um valor, foi de 95% e o coeficiente kappa ponderado médio foi de .43.
Envolvimento das crianças em contexto de creche. Cada criança foi observada, ao
vivo, no decurso de 6 sessões de 15 minutos, realizadas em dias diferentes. Cada sessão de
observação foi dividida em 60 intervalos de 15 segundos; no final de cada intervalo, o
observador (alertado por um sinal sonoro), codificava o comportamento mais recente. Foram
realizadas duas sessões de observação durante actividades estruturadas e quatro sessões de
observação durante actividades de jogo livre. O acordo interobservadores no SAQE foi
verificado no decurso do procedimento de recolha de dados, em 183 sessões (25% do número
total de sessões). A percentagem média de acordo (i.e., soma das ocorrências e não
ocorrências) foi de 99% para o envolvimento sofisticado e de 96% para o não-envolvimento.
A média do coeficiente kappa foi de .76 para o envolvimento sofisticado e para o não-
envolvimento.
Envolvimento das crianças em situação diádica mãe-criança. Os registos vídeo das
360 sessões de jogo mãe-criança, anteriormente referidas, serviram de base à codificação do
envolvimento individual das crianças no decorrer de situações de jogo diádico mãe-criança.
Deste modo, o comportamento de cada criança foi codificado com base no SAQE, no decurso
de três sessões diádicas de 15 minutos realizadas em 3 dias diferentes, numa sala
disponibilizada pela creche. As sessões de observação eram constituídas por dois momentos
distintos: um primeiro momento, com a duração de 10 minutos, destinado a jogo livre (i.e.,
actividades desenvolvidas pela díade, sem indicações específicas por parte da equipa de
investigação) e um segundo momento, com a duração máxima de 5 minutos, destinado a uma
tarefa de arrumação proposta pela equipa. Realizaram-se verificações do acordo
interobservadores em 90 sessões (25% do total de sessões de codificação). A percentagem
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média de acordo interobservadores foi de 98% para o envolvimento sofisticado e de 99% para
o não-envolvimento. O coeficiente kappa médio foi de .73 para o envolvimento sofisticado e
de .56 para o não-envolvimento.
Avaliação da qualidade do contexto de creche. O elemento da equipa de investigação
responsável pela recolha de dados em cada sala de actividades permaneceu, em média, 4
semanas na sala. A ITERS foi cotada uma única vez, no final deste período alargado de
permanência na sala de actividades, com base nos materiais, rotinas e interacções observados
ao longo deste período e nas informações fornecidas pela educadora.
Avaliação do temperamento das crianças. A Escala de Personalidade da Criança foi
preenchida pela educadora responsável pela sala de actividades frequentada por cada criança,
em momento por ela definido, e posteriormente devolvida à equipa de investigação.

Análise de dados
O procedimento de análise dos dados teve início com a realização de um conjunto de
análises exploratórias no sentido de verificar a normalidade das distribuições e a existência de
outliers. Com base nos resultados obtidos, optou-se por transformar 4 variáveis: (1) a variável
não-envolvimento em contexto de creche foi transformada através do cálculo da raiz
quadrada; (2) a variável envolvimento sofisticado em contexto de creche foi sujeita a uma
transformação logarítmica, (3) a variável não-envolvimento em situação diádica mãe-criança
foi dicotomizada com base no valor da mediana [i.e., crianças que revelaram uma
percentagem de não-envolvimento menor ou igual a 0.67 foram consideradas crianças com
pouco não-envolvimento (tendo-lhes sido atribuído o valor 0) e crianças com percentagens de
não-envolvimento iguais ou superiores a 0.68 foram consideradas crianças com muito não-
envolvimento (tendo-lhes sido atribuído o valor 1)] e (4) a variável rendimento familiar per
capita foi transformada através do cálculo da raiz quadrada. A segunda fase do procedimento
de análise de dados incluiu a realização de análises estatísticas descritivas no sentido de
caracterizar os participantes no que diz respeito às principais variáveis em estudo. A terceira
fase incluiu uma série de análises de tipo modelo linear hierárquico e de tipo modelo não
linear hierárquico, com recurso ao programa estatístico HLM 5.04 (Raudenbush, Bryk, &
Congdon, 2001). No sentido de fornecer um contexto para a interpretação dos resultados
apurados com base nas análises HLM, foram calculados índices da magnitude dos efeitos.
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Resultados
O Quadro 1 apresenta as medidas estatísticas descritivas obtidas para as variáveis em
estudo (ainda sem qualquer transformação).
Quadro 1: Médias, desvios-padrão e amplitude das variáveis em estudo
M DP Amplitude
Qualidade Creche 2.60 0.45 1.76 – 3.47
Responsividade estimulante e afectuosa das mães 4.58 0.58 2.52 – 5.71
Rendimento familiar per capita (€) 328.88 223.81 64.84 – 872.90
Educação materna (anos) 10.83 4,47 0 – 18
Idade cronológica da criança (meses) 26.19 7.07 14 – 49
Expressividade/adaptabilidade da criança 4.12 0.87 2.19 – 5.81
Atenção da criança 3.65 1.05 0.75 – 5.75
Controlo socioemocional da criança 3.70 0.95 1.50 – 5.80
Empenhamento/vivacidade da criança 4.54 0.80 2.09 – 6.00
Envolvimento sofisticado em situação diádica 37.59 18.97 4.04 – 82.89
Envolvimento sofisticado em contexto de creche 9.23 9.78 0 – 42.85
Não-envolvimento em situação diádica 1.89 2.56 0 – 12.35
Não-envolvimento em contexto de creche 12.01 6.64 1.25 – 36.31

Os resultados globais relativos à qualidade das salas de creche sugerem a existência


de uma qualidade média pobre ou inadequada. Os resultados relativos ao rendimento familiar
per capita e ao nível de escolaridade das mães indicam uma grande diversidade de condições
económicas e sócioculturais das famílias participantes. No que diz respeito aos níveis de
envolvimento em estudo, verificámos que, em contexto de situação diádica mãe-criança, as
crianças passavam mais de um terço do seu tempo envolvidas em comportamentos
sofisticados, enquanto em contexto de creche, a percentagem de tempo despendido em
comportamentos sofisticados correspondia a menos de um décimo do tempo total. No que se
refere ao não-envolvimento, constatou-se a sua quase inexistência em situação diádica de
jogo mãe-criança, enquanto em contexto de creche correspondia a mais de um décimo do
tempo total.
No sentido de determinar a influência dos comportamentos interactivos maternos no
envolvimento das crianças, procedemos a análises de tipo linear hierárquico (no caso do
envolvimento sofisticado nos dois contextos de observação e no caso do não-envolvimento
em contexto de creche) e a análises de tipo não linear (no caso do não-envolvimento em
situação diádica mãe-criança). Para cada variável resultado, foi utilizado um modelo que
testava se a responsividade materna estava associada, de uma forma estatisticamente
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significativa, aos resultados de envolvimento das crianças, após controlar os efeitos da


qualidade da sala de creche, do rendimento familiar per capita, da educação materna, do
estado civil da mãe, da idade cronológica da criança, de quatro características de
temperamento das crianças e, finalmente, da interacção entre responsividade materna e
qualidade da sala de creche. Todas as variáveis foram centradas na média global, excepto o
estado civil materno, variável dicotómica que foi mantida na métrica original (1 = casada, 2 =
não casada).

De acordo com os resultados apresentados no Quadro 2, o estado civil da mãe, a idade


cronológica da criança e a expressividade verbal e emocional/adaptabilidade da criança
estavam associados, de uma forma estatisticamente significativa, às percentagens de
envolvimento sofisticado em contexto de creche.

Quadro 2: Sumário dos resultados do modelo linear hierárquico para as variáveis que influenciam o
envolvimento das crianças em contexto de creche
LOG Sofisticado √ Não-envolvimento
1
B ep ME B ep ME1
Intercept 1.04*** 0.06 2.68*** 0.25
Qualidade creche 0.11 0.08 0.12 -0.80** 0.20 -0.38
Responsividade materna -0.07 0.04 -0.09 -0.03 0.16 -0.02
√ Rendimento familiar per capita 0.01 0.01 0.06 0.04 0.04 0.11
Educação materna 0.00 0.01 0 -0.00 0.02 0
Estado civil da mãe (1= casada; 2=não casada) -0.19*** 0.04 -0.44 0.55** 0.17 0.57
Idade cronológica da criança 0.04*** 0.00 0.66 -0.05*** 0.01 -0.37
Expressividade/adaptabilidade da criança 0.13*** 0.03 0.26 0.16 0.11 0.15
Atenção da criança -0.00 0.03 0 -0.13 0.08 -0.14
Controlo socioemocional da criança 0.01 0.02 0.02 -0.15* 0.07 -0.15
Empenhamento/vivacidade da criança -0.06 0.04 -0.11 -0.10 0.09 -0.08
Responsividade materna X Qualidade creche -0.16 0.10 0.14 0.26
1
Magnitude do efeito.
* p < .05. ** p < .01. *** p < .001.

De acordo com os valores obtidos, (1) crianças cujas mães eram casadas passavam
mais tempo envolvidas em comportamentos sofisticados em contexto de creche e (2) crianças
mais velhas e mais expressivas, em termos verbais e emocionais, evidenciavam percentagens
superiores de tempo despendido em envolvimento sofisticado. O cálculo de coeficientes da
magnitude do efeito permitiu apurar um efeito considerável da idade cronológica da criança e
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um efeito pequeno da expressividade verbal e emocional da criança e do estado civil da mãe.


A responsividade materna e as restantes variáveis de controlo não estavam associadas às
percentagens de tempo despendido em envolvimento sofisticado em contexto de creche.
Os resultados apurados para o não-envolvimento da criança em contexto de creche
indicaram que a qualidade da sala de creche estava negativamente associada às percentagens
de tempo despendido em comportamentos indesejados (efeito moderado). O estado civil da
mãe também demonstrou uma associação estatisticamente significativa com o não-
envolvimento em contexto de creche (efeito moderado). A percentagem de tempo despendido
em comportamentos de não-envolvimento em contexto de creche estava ainda associada, de
forma estatisticamente significativa, a duas características da criança: a idade cronológica
(efeito negativo moderado) e o controlo socioemocional (efeito negativo pequeno). A
responsividade materna e as restantes variáveis de controlo não estavam associadas às
percentagens de tempo despendido em comportamentos de não-envolvimento em contexto de
creche. Deste modo, crianças mais novas, com menor controlo socioemocional, cujas mães
não eram casadas e que frequentavam creches de qualidade inferior, passavam mais tempo
não envolvidas em contexto de creche.
Os resultados do modelo obtido para o envolvimento sofisticado em situação diádica
mãe-criança são apresentados no Quadro 3.
Quadro 3: Sumário dos resultados do modelo linear hierárquico para as variáveis que influenciam o
envolvimento sofisticado em situação diádica
Envolvimento sofisticado
B ep ME1
Intercept 39.84*** 2.88
Qualidade creche -1.62 2.66 -0.04
Responsividade materna 3.82* 1.59 0.12
√ Rendimento familiar per capita -0.20 0.53 -0.03
Educação materna 0.08 0.31 0.02
Estado civil da mãe (1= casada; 2=não casada) -1.88 2.09 -0.10
Idade cronológica da criança 1.86*** 0.20 0.69
Expressividade/adaptabilidade da criança 4.57** 1.39 0.21
Atenção da criança -1.19 1.36 -0.07
Controlo socioemocional da criança 1.25 0.77 0.06
Empenhamento/vivacidade da criança -1.32 1.30 -0.06
Responsividade materna X Qualidade creche -5.04 2.78
1
Magnitude do efeito.
* p < .05. ** p < .01. *** p < .001.
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
13

A análise dos resultados permitiu verificar a existência de uma associação positiva,


estatisticamente significativa, entre responsividade materna e percentagem de tempo
despendido em comportamentos sofisticados no decurso de situações diádicas de jogo. A
magnitude desta associação revelou-se, contudo, pequena. A percentagem de tempo
despendido em comportamentos sofisticados no decurso de situações diádicas mãe-criança
estava ainda associada, de forma estatisticamente significativa, a duas características da
criança: a idade cronológica (efeito importante) e a expressividade verbal e emocional (efeito
pequeno). As restantes variáveis de controlo não estavam associadas às percentagens de
tempo despendido em comportamentos sofisticados em situação diádica mãe-criança. Assim,
crianças mais velhas, de temperamento mais expressivo e cujas mães eram mais responsivas,
estimulantes e afectuosas passavam mais tempo envolvidas em comportamentos sofisticados
no decurso de situações diádicas mãe-criança.
No que diz respeito à variável não-envolvimento em situação diádica, variável
dicotómica que assumiu valores de 0 e 1, foi necessário utilizar uma análise não linear, ou
seja, um Modelo Linear Hierárquico Generalizado, de tipo Bernoulli. Como se pode verificar
no Quadro 4, os resultados indicaram que a percentagem de tempo despendido em
comportamentos de não-envolvimento em situação diádica mãe-criança se encontrava
negativamente associada, de forma estatisticamente significativa, à responsividade materna e
à idade cronológica da criança. Crianças mais velhas e cujas mães eram mais responsivas,
estimulantes e afectuosas despendiam menos tempo não envolvidas em situação diádica mãe-
criança. O cálculo do rácio de probabilidades [probabilidade = exponente (B * DP)], para
cada variável incluída no modelo, fornece um índice da magnitude dos efeitos encontrados
para cada variável preditora. Assim, mantendo-se as restantes condições, um aumento de um
desvio-padrão na responsividade materna diminui a probabilidade de ocorrência de
comportamentos de não-envolvimento em situação diádica em 2.38 (1/0.42). Do mesmo
modo, um aumento de um desvio-padrão na idade cronológica da criança, diminui em 2.33
(1/0.43) a probabilidade de ocorrência de comportamentos de não-envolvimento em situação
diádica mãe-criança.
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
14

Quadro 4: Sumário dos resultados do modelo não linear hierárquico para as variáveis que influenciam o
não-envolvimento em situação diádica
Não-envolvimento
B ep Prob1
Intercept 0.01 0.91
Qualidade creche 0.14 0.44 1.06
Responsividade materna -1.49** 0.47 0.42
√ Rendimento familiar per capita -0.17 0.09 0.64
Educação materna -0.00 0.07 1.01
Estado civil da mãe (1= casada; 2=não casada) -0.01 0.75 0.99
Idade cronológica da criança -0.12*** 0.04 0.43
Expressividade/adaptabilidade da criança 0.33 0.28 1.33
Atenção da criança 0.11 0.26 1.12
Controlo socioemocional da criança 0.19 0.18 1.20
Empenhamento/vivacidade da criança -0.27 0.27 0.81
Responsividade materna X Qualidade creche -0.02 0.88
1
Rácio de probabilidades
* p < .05. ** p < .01. *** p < .001.

Discussão
Comparações entre as percentagens de envolvimento das crianças em contexto de
creche e em situações diádicas de jogo mãe-criança indicam que, no decurso de situações
diádicas, as crianças passam mais tempo envolvidas em comportamentos sofisticados e
menos tempo envolvidas em comportamentos de não-envolvimento. Estes resultados sugerem
que o jogo diádico mãe-criança constitui um contexto favorável à promoção da qualidade do
envolvimento das crianças.
Naturalmente, o contexto de creche e o jogo diádico mãe-criança não constituem
contextos de vida directamente comparáveis. No entanto, estes resultados parecem sugerir
que as crianças têm um potencial de envolvimento, captado (pelo menos parcialmente) no
decurso do jogo diádico com a mãe, que não é concretizado ou adequadamente promovido
nas salas de creche. Esta reflexão assume particular relevância no contexto dos resultados
obtidos em relação à qualidade das salas de creche frequentadas pelas crianças participantes.
Efectivamente, a maioria destas crianças frequentava salas de creche de baixa qualidade, que,
em média, não cumpriam os requisitos básicos de saúde e segurança, não forneciam os
materiais necessários para responder às necessidades de desenvolvimento das crianças e que
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
15

se caracterizavam por limitações ao nível da individualização das interacções (Aguiar,


Bairrão, & Barros, 2002).
A quantidade de tempo que as crianças despendem em comportamentos sofisticados
em contexto de creche, está associada ao estado civil da mãe, à idade cronológica da criança e
à expressividade e adaptabilidade da criança. Por seu turno, a quantidade de tempo que as
crianças despendem em comportamentos de não-envolvimento em contexto de creche está
associada ao estado civil da mãe, à idade cronológica da criança, ao controlo socioemocional
da criança e à qualidade global do ambiente de creche.
No que diz respeito aos efeitos do estado civil da mãe, os resultados sugerem que
crianças cujas mães são casadas despendem mais tempo envolvidas em comportamentos
sofisticados e menos tempo não envolvidas, em contexto de creche, do que crianças cujas
mães são solteiras, divorciadas ou separadas. Este resultado parece traduzir um processo de
acumulação de factores de desvantagem no contexto familiar. Efectivamente, neste conjunto
de participantes, o estado civil casada está moderadamente associado a um maior rendimento
familiar per capita e a maior qualidade do ambiente familiar. Para além destas associações,
neste grupo de participantes, as mães casadas tinham, em média, mais anos de educação
formal, completando um panorama familiar mais vantajoso para as crianças cujas mães eram
casadas. Estes resultados são convergentes com os dados da literatura sobre factores de risco.
Por exemplo, Bendersky e Lewis (1994) integram a variável estado civil num índice
compósito de risco ambiental, considerando o facto de os pais viverem juntos como um
indicador de baixo risco. Este conjunto de resultados revela o efeito da experiência da criança
em contexto familiar no seu funcionamento em contexto de creche (ver Bronfenbrenner,
1979), sugerindo o efeito de condições distais no envolvimento da criança.
Em relação à idade cronológica, os resultados sugerem que à medida que aumenta a
idade cronológica, aumenta o tempo despendido em comportamentos sofisticados e diminui o
tempo despendido em comportamentos indesejados. Estes resultados eram esperados e são
convergentes com os resultados da investigação prévia sobre o envolvimento da criança (e.g.,
Quality and Engagement Study, 2001; Aguiar et al., 2005). Este efeito sugere que o
envolvimento pode ser considerado um indicador do desenvolvimento e da competência
sociocognitiva da criança em idade pré-escolar (ver Pinto et al., no prelo), revestindo-se de
particular utilidade por se tratar de um constructo de desenvolvimento directamente
observável em contextos naturais e significativos para a criança.
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
16

No que se refere à influência do estilo individual da criança no seu envolvimento em


contexto de creche, constatou-se que crianças mais sociáveis, com maior apetência pelo uso
da linguagem oral, com humor mais positivo e que se revelavam cooperantes e obedientes
passavam significativamente mais tempo envolvidas em comportamentos sofisticados de
resolução de problemas, jogo simbólico e construtivo e utilização de linguagem
compreensível. Por outro lado, crianças que denotavam uma forte componente de controlo
motor (em termos da não exibição de comportamentos inadequados) passavam menos tempo
não envolvidas em contexto de creche. Estes resultados contribuem para a literatura que
identifica as características de temperamento ou o estilo individual da criança como factores
determinantes do seu envolvimento, encontrando paralelo nos dados de Ridley, de Kruif, et
al. (2000), segundo os quais crianças mais expressivas tinham mais probabilidade de se
envolverem em comportamentos sofisticados.
De acordo com os resultados obtidos, as crianças passavam mais tempo não
envolvidas em salas de menor qualidade, caracterizadas pelo incumprimento dos requisitos
básicos de saúde e de segurança, pela limitada quantidade e qualidade de materiais adequados
ao desenvolvimento da criança, por actividades inadequadas ao grupo etário e por limitações
na qualidade das interacções adulto-criança e criança-criança (Aguiar et al., 2002). Este efeito
replica os resultados obtidos por Raspa et al. (2001) e afigura-se congruente com uma
conceptualização do envolvimento enquanto indicador da experiência diária da criança e da
sua resposta comportamental às características do ambiente.
Dada a associação negativa entre não-envolvimento e qualidade em contexto de
creche, a inexistência de uma associação positiva paralela entre envolvimento sofisticado e
qualidade global da sala de creche, remete-nos para a baixa qualidade destes contextos.
Parece-nos, assim, pertinente formular uma hipótese segundo a qual os níveis de qualidade
existentes permitem explicar a quantidade de não-envolvimento das crianças, mas não
demonstram a adequação necessária ou a qualidade suficiente para influenciar os níveis de
envolvimento sofisticado das crianças. A confirmar-se empiricamente, esta proposição
reforça a necessidade de encarar a promoção da qualidade dos contextos de educação e
cuidados destinados a crianças com menos de 3 anos de idade como uma prioridade social.
De acordo com os resultados obtidos, os comportamentos interactivos maternos em
situação diádica não influenciam o envolvimento da criança em contexto de creche. A
primeira hipótese explicativa para esta ausência de associações inscreve a responsividade
materna em situação diádica num plano distal, cujo poder para influenciar a experiência
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
17

diária da criança em contexto de creche é limitado. Este conjunto de resultados indica que,
neste grupo de díades, e tendo em consideração um conjunto muito específico de variáveis de
controlo, a quantidade de responsividade materna em situação diádica de jogo (em contextos
não habituais) não é transportada pela criança para outro cenário de vida, conforme seria de
esperar de acordo com a formulação de Sameroff e MacKenzie (2003).
A quantidade de tempo que as crianças despendem em comportamentos sofisticados
no decurso de situações de jogo diádico mãe-criança, encontra-se positivamente associada à
idade cronológica e à expressividade e adaptabilidade da criança e à quantidade de
responsividade estimulante e afectuosa por parte de mãe. Paralelamente, a probabilidade de
as crianças demonstrarem episódios de não-envolvimento é negativamente influenciada pela
idade cronológica da criança e pela responsividade estimulante e afectuosa da mãe.
A convergência dos efeitos encontrados para a idade cronológica e respectiva
significância prática, nos dois contextos de observação, apoia uma conceptualização da idade
cronológica como o principal factor preditor do envolvimento sofisticado em múltiplos
contextos. Do mesmo modo, a associação negativa moderada entre a idade cronológica da
criança e a probabilidade de ocorrência de episódios de não-envolvimento reforça o carácter
desta classe de comportamentos como um potencial indicador das competências de
desenvolvimento da criança (Ridley, McWilliam, et al., 2000) em múltiplos contextos.
Relativamente aos efeitos da responsividade estimulante e afectuosa das mães no
envolvimento da criança em contexto de jogo diádico, verificou-se um efeito positivo de
pequena magnitude na quantidade de tempo que as crianças despendiam em comportamentos
sofisticados e um efeito negativo moderado na probabilidade de ocorrência de episódios de
não-envolvimento. Assim, crianças cujas mães eram mais responsivas, estimulantes e
afectuosas (1) passavam mais tempo envolvidas em comportamentos que implicam resolução
de problemas, jogo simbólico ou construtivo e a utilização de linguagem compreensível
durante o jogo diádico mãe-criança; e (2) tinham significativamente menos probabilidade de
exibir comportamentos de não-envolvimento durante o jogo diádico mãe-criança. Constatou-
se, deste modo, a permeabilidade do envolvimento sofisticado e do não-envolvimento da
criança à influência das características interactivas interpessoais do contexto imediato de
actividade lúdica. Os resultados de Bornstein et al. (1996) afiguram-se relevantes para a
discussão deste resultado, na medida em que demonstram que a influência dos
comportamentos de jogo das mães no comportamento de jogo das crianças é mais forte no
decurso de situações diádicas do que durante o jogo solitário da criança. Estes resultados
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
18

indicam a existência de efeitos imediatos dos comportamentos interactivos maternos em


situação diádica de jogo, sugerindo, contudo, um menor poder deste factor interactivo
materno para influenciar, de forma diferida, o comportamento da criança num outro contexto
de actividade.
Os efeitos da responsividade estimulante e afectuosa das mães são consistentes com
os dados da literatura, acrescentando, contudo, informação única relativamente aos factores
que influenciam o envolvimento da criança, codificado de acordo com a operacionalizaçao
proposta por McWilliam e de Kruif (1998). Recorrendo a uma operacionalização distinta do
constructo de envolvimento, também Kim e Mahoney (2004) encontraram associações
positivas entre a responsividade e o afecto maternos e o envolvimento da criança em situação
diádica mãe-criança. Outros autores têm encontrado associações positivas entre a
responsividade materna e a qualidade do jogo das crianças em situação diádica (e.g.,
Cielinski et al., 1995), bem como associações negativas entre comportamentos intrusivos por
parte da mãe e os níveis de jogo da criança (Fiese, 1990). Segundo Almqvist (2006), a
qualidade da interacção pais-criança constitui um factor a considerar nos mecanismos
dinâmicos de influência mútua e co-variância que determinam os resultados de envolvimento
das crianças.
Estes resultados sugerem a importância do papel dos comportamentos interactivos
maternos na colocação de andaimes1 para a promoção da qualidade do envolvimento da
criança durante o jogo diádico (Girolametto et al., 1994; Užgiris & Raeff, 1995). Assim, o
recurso a um padrão interactivo caracterizado por responsividade estimulante e afectuosa
poderá constituir um mecanismo efectivo de colocação de andaimes na medida em que (1)
permite criar um contexto afectivo propício à obtenção de segurança emocional, (2) respeita e
estimula o papel activo da criança na interacção social e na utilização dos recursos materiais
disponíveis no ambiente e (3) proporciona novidade e oportunidades de aprendizagem e
desenvolvimento com base no actual nível de competência e nos interesses da criança.
As trajectórias de influência potencial sugeridas pelos resultados suscitam duas
implicações essenciais: (1) uma vez que o jogo diádico mãe-criança constitui um contexto
privilegiado para a promoção da qualidade do envolvimento da criança, particularmente
quando as mães adoptam comportamentos responsivos, estimulantes e afectuosos, eventuais
esforços de intervenção destinados a promover a responsividade materna afiguram-se
pertinentes; (2) os resultados relativos à qualidade do contexto de creche, bem como a

1 No original, “scaffolding”.
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
19

aparente incapacidade deste contexto para influenciar positivamente os comportamentos


sofisticados imediatos da criança e para influenciar o funcionamento da criança num outro
contexto de actividade, sugerem a necessidade de promover a qualidade das respostas sociais
destinadas a crianças com menos de 3 anos de idade.

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VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
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Condutas agressivas, integração social e atributos psicossociais

Maria José D. Martins

Palavras-chave:
agressão; integração social; ajustamento psicossocial

Resumo/Abstract:
Vários autores têm constatado uma relação relativamente consistente entre
determinados tipos de estatutos sociométricos e as condições de agressor e de vítima em
contexto escolar. Os questionários de nomeação de pares (que incluem avaliação de índices
sociométricos e índices de atributos percebidos pelos pares) têm revelado uma razoável
eficácia na detecção destes problemas. Nesta comunicação apresenta-se uma investigação
empírica com 572 adolescentes que tinha como objectivo conhecer a relação entre o atributo
«ser agressivo» tal como percebido pelos companheiros da mesma turma e as seguintes
variáveis: índices sociométricos; outros atributos percebidos pelos companheiros;
competência social, avaliada através do tipo de estratégias (recorrendo à agressão ou não)
para a resolução de conflitos interpessoais hipotéticos e reais; e ainda com o facto de
admitirem ter vivido uma situação parecida à descrita numa história hipotética, em um de três
papeis possíveis (vítima, agressor e observador). Os resultados obtidos sugerem que os
adolescentes percebidos com o atributo «ser agressivo» eram mais rejeitados pelos
companheiros de turma; recebiam outros atributos aparentemente coerentes com «ser
agressivo»; resolviam os conflitos interpessoais hipotéticos e reais recorrendo a estratégias
agressivas e admitiam ter vivido situações parecidas à personagem da história hipotética que
desempenhava o papel de agressor, mas não o admitiam quando se tratava do papel de vítima
ou de observador. Apesar das correlações obtidas não serem elevadas, os dados sugerem que
os questionários de nomeação de pares podem ser úteis e eficazes na detecção de situações de
agressão nas turmas, apresentando uma razoável consistência interna e validade.

Introdução
Os amigos e a integração no grupo de pares são factores importantes na construção da
identidade na adolescência e no desenvolvimento de competências sociais sofisticadas (como
cooperar, negociar, criar normas) necessárias para a vida adulta (Diaz-Aguado, Royo, Segura,
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
24

& Andrés, 1996). Vários autores consideram que as expressões ajustamento psicossocial e/ou
integração social referem-se à capacidade de exibir comportamentos que revelam níveis
elevados de competência social, tais como a capacidade para entrar e ser aceite num grupo de
pares; fazer e manter amigos; envolver-se em actos pró-sociais (Crick & Dodge, 1994).
Os questionários sociométricos e os questionários de atributos percebidos pelos
colegas são um dos procedimentos mais utilizados para avaliar a integração social ou
ajustamento psicossocial das crianças e adolescentes. Neste sentido, vários autores (e.g.,
Dodge, 1983; Dodge, Coie, Pettit, & Price, 1990; Hodge & Perry, 1999; Diaz-Aguado et al.,
1996) têm constatado uma tendência no sentido de existir uma relação entre determinados
padrões de comportamento social dos indivíduos e o estatuto sociométrico que ocupam no
seu grupo de pares.
No que respeita ao caso particular das crianças e adolescentes que exibem condutas
agressivas, a maioria dos autores constata a existência de uma associação entre estas e a
rejeição por parte da maioria dos elementos do grupo de pares, em simultaneidade com uma
aparente capacidade para fazer e manter um grupo restrito de amigos. Esta aparente
contradição é explicada por vários autores pelo facto dos adolescentes agressivos procurarem
amigos com as mesmas características e pelo facto da agressão ser um fenómeno que
geralmente ocorre em grupo (e.g., Cairns, Cairns, Neckerkjman, Gest, & Gariépy, 1988;
Pellegrini, Bartini & Brooks, 1999; Xie, Swift, Cairns, & Cairns, 2002).
Pellegrini e Bartini (2000) consideram que os questionários de nomeação de pares são
eficazes na identificação de vítimas e agressores, reflectindo bastante razoavelmente as
experiências vividas pelos adolescentes nas escolas. Outro procedimento que tem sido
também utilizado na detecção de vítimas e agressores é o recurso a histórias hipotéticas que
permitem indagar se o adolescente já viveu alguma situação parecida com os personagens da
história, para além de lhes ser solicitado uma forma de resolução para os conflitos
interpessoais relatados nessas histórias (Martins, 2003; 2005).
O objectivo deste estudo era conhecer a relação entre o atributo «ser agressivo» tal
como percebido pelos companheiros da mesma turma e as seguintes variáveis: índices
sociométricos; outros atributos percebidos pelos companheiros (nomeadamente ser percebido
como tendo amigos, ser capaz de ajudar os outros, etc); competência social, avaliada através
do tipo de estratégias (recorrendo à agressão ou não) utilizadas para a resolução de conflitos
interpessoais hipotéticos e reais, descritos numa história hipotética; e ainda com o facto de
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
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admitirem ter vivido uma situação parecida à descrita nessa história hipotética, em um de três
papeis possíveis (vítima, agressor e observador).

Metodologia

Sujeitos
572 Adolescentes (286 raparigas e 286 rapazes) a frequentarem os 7º, 9º e 11º anos de
escolaridade em quatro escolas de uma cidade do Alto Alentejo.

Instrumentos
O questionário sociométrico que utilizámos baseia-se no método das nomeações, por
parte dos pares, que consiste em pedir a cada aluno que indique, por um lado, os nomes de
três colegas da sua turma com os quais gostaria mais de interagir, e por outro, que indique o
nome de três colegas da sua turma com quem gostaria menos de interagir, em duas situações
diferentes: trabalho escolar e tempos livres. Obtêm-se assim, para cada aluno, seis pontuações
relativas às: preferências recebidas no trabalho, preferências nos tempos livres, preferências
no global, rejeições no trabalho, rejeições nos tempos livres, rejeições no global (ver Diaz-
Aguado et al., 1996).
O questionário de atributos percebidos pelos colegas foi apresentado aos sujeitos
juntamente com o questionário sociométrico atrás descrito formando um instrumento único.
Este questionário consiste numa lista de 23 adjectivos/atributos, face aos quais cada aluno
indica os nomes dos colegas de turma que considera que têm essas características. Através
deste procedimento pode obter-se informação sobre as características de cada aluno, tal como
são percebidas pelos colegas da turma. Esta informação, tal como a fornecida pelos índices de
preferências e rejeições, está relacionada com a adaptação socioemocional dos alunos e a sua
integração social na turma.
Com base neste questionário podem ainda obter-se dois índices globais da conduta
e/ou características percebidas pelos alunos, agrupando todas as nomeações que cada aluno
recebe relativamente aos atributos positivos, por um lado, e relativamente aos atributos
negativos, por outro lado. Assim, as características relativas a cada um dos dois tipos de
atributos são:
- Atributos positivos: ter muitos amigos, dar-se bem com os professores, ser simpático com
os companheiros, ter capacidade para compreender os outros, ser capaz de resolver conflitos
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
26

entre companheiros, estar disposto a ajudar os outros, saber comunicar e exprimir-se, alegrar-
se com os êxitos dos outros, ser maduro.
- Atributos negativos: ter poucos amigos, dar-se mal com os professores, ser antipático com
os outros, não compreender os outros, ser agressivo, não compreender a fraqueza dos outros,
ter dificuldades em comunicar e exprimir-se, ter inveja, ocultar a sua insegurança parecendo
o contrário, sentir-se fracassado, sentir-se superior, querer sempre chamar a atenção, ser
maçador, ser imaturo.
Utilizámos os mesmos atributos que Diaz-Aguado e colaboradoras (1996) haviam já
utilizado em um estudo prévio, porque esses atributos foram enunciados pelos próprios
adolescentes nesse estudo, quando justificavam as razões das suas preferências e rejeições, no
questionário sociométrico.
Uma vez que os resultados obtidos através deste tipo de questionários dependem do
número de sujeitos que a ele respondem, todos os índices que dele resultam dividem-se pelo
número de alunos que responderam à prova (geralmente o número total de alunos de cada
turma). Isto permitirá efectuar comparações entre todos os índices obtidos pela totalidade de
sujeitos que foram objecto de estudo desta investigação, permitindo também efectuar
comparações entre estes resultados e os resultados de outras provas.
A fim de verificar a consistência interna deste tipo de instrumentos Diaz-Aguado e
colaboradoras (1996) sugerem que se analisem as correlações entre os vários índices dos
questionários: preferências no trabalho, preferências nos tempos livres, preferências no
global, rejeições no trabalho, rejeições nos tempos livres, rejeições no global, atributos
positivos e atributos negativos. Verificou-se que existem correlações positivas significativas
entre os vários índices de preferências e os atributos positivos e os vários índices de rejeição e
os atributos negativos, bem como existem correlações negativas significativas entre os dois
índices de preferências e os atributos negativos, e os dois índices de rejeições e os atributos
positivos (ver tabela 1 e 2) o que sugere que a consistência interna do instrumento é razoável.
A respeito do padrão de correlações encontrado entre os vários índices agrupados (ver
tabela 1), destacam-se, por um lado, as correlações positivas estatisticamente significativas
(embora algumas sejam baixas, outras são razoáveis), entre as preferências no trabalho e nos
tempos livres (r = 0.732), e entre estas e os atributos positivos (r = 0,213 e r = 0,178,
respectivamente), e, por outro lado, as correlações positivas entre as rejeições no trabalho e
nos tempos livres (r = 0,767) e estas e os atributos negativos. As correlações mais elevadas
são entre as rejeições no trabalho e nos tempos livres (r = 0.767) e entre estas e os atributos
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
27

negativos (r = 0,492 e r = 0.448, respectivamente). A correlação entre o índice de preferência


no trabalho e a preferência no tempo livre também é elevada (r = 0.732).

Tabela 1: Correlações (Spearman) entre os principais índices sociométricos e índices de


atributos do questionário de nomeação de pares

preferências

preferências

preferências
tempo livre

tempo livre
no trabalho

negativos
Índice de

Índice de
positivos
rejeições

rejeições

rejeições

atributos

atributos
trabalho
Índices

Índice

Índice

Índice

Índice

Índice
Índices

total

total
Índice preferências

no trabalho

Índice rejeições
-,235** –
trabalho

Índice preferências
,732** -,184** –
tempos livres

Índice rejeições
-,209** ,767** -,178** –
tempo livre

Índice preferências
,893** -,258** ,870** -,256** –
total

Índice rejeições
-,247** ,919** -,194** ,888** -,277** –
total

Índice de atributos
,213** -,206** ,178** -,249** ,193** -,229** –
positivos

Índice de atributos
-,161** ,492** -,160** ,448** -,163** ,512** -,038 –
negativos

* * A correlação é significativa ao nível 0.01. n = 572

Foram também efectuadas as correlações entre todos os itens das duas partes dos
questionários das quais se destacam os seguintes resultados: o índice de preferência total
correlaciona positivamente, e de forma significativa estatisticamente, embora as correlações
sejam baixas em alguns casos, com os seguintes atributos positivos: «ter muitos amigos» (r =
0,175); «ser simpático com os companheiros» (r = 0,107); «ter capacidade para compreender
os outros» (r = 0,184); «ser capaz de resolver conflitos» (r = 0,121); «saber comunicar» (r =
0,194); «alegrar-se com os êxitos dos outros» (r = 0,111); «ser maduro» r = 0,159). O índice
de preferência total correlaciona negativamente com os seguintes atributos negativos: «ter
poucos amigos»(r = -0,280); «ter dificuldades em comunicar»( r = -0,237); «ter inveja»(r = -
0,100); «sentir-se fracassado» (r = -0,182). O índice de rejeição total correlaciona
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
28

positivamente, e de forma significativa estatisticamente, com os seguintes atributos


negativos: «ter pouco amigos» (r = 0,323); «dar-se mal com os professores» (r = 0,241); «ser
antipático com os companheiros» (r = 0,282); «não compreender os outros» (r = 0,391); «ser
agressivo» (r = 0, 285); «não compreender fraqueza dos outros» (r = 0,300); «ter dificuldades
em comunicar» (r = 0,161); «ter inveja» (r = 0,221); «ocultar a sua segurança parecendo o
contrário» (r = 0,208); «sentir-se fracassado» (r = 0,281); «sentir-se superior» (r = 0,298);
«querer sempre chamar a atenção» (r = 0,178); «ser maçador» (r = 0,330); «ser imaturo» (r =
0,306). O índice de rejeição total correlaciona negativamente com os seguintes atributos
positivos: «ser simpático» (r = -0,213); «ter capacidade para compreender os outros» (r = -
0,277); «ter capacidade para resolver conflitos» (r = -0,173); «estar disposto a ajudar os
outros» (r = -0,262); «saber comunicar» (r = -0,221); «alegrar-se com os êxitos dos outros»
(r= -0,168); e «ser maduro» (r = -0,235). Este padrão de correlações entre os índices
sociométricos e os vários atributos pode ser encarado como um indicador da consistência
interna do instrumento de nomeação de pares, uma vez que as correlações entre os vários
índices sociométricos e os vários atributos ocorrem no sentido esperado.
O questionário de competência social (QCS), visa conhecer o modo de resolução de
conflitos interpessoais em situação hipotética e real e consiste numa história hipotética sobre
maus tratos em contexto escolar que foi escrita propositadamente para esta investigação. Essa
história envolvia um observador, uma vítima de insultos e de extorsão de dinheiro e um grupo
de agressores. Seguiam-se várias perguntas que visavam conhecer o modo como o sujeito
sugeria a resolução do conflito hipotético (no qual se descrevia uma situação de bullying) e o
modo como havia resolvido uma situação real de conflito interpessoal que tivesse vivido no
passado recente. A situação apresentada era a seguinte (versão masculina):

Carlos frequenta o 9º ano de escolaridade. Tem muitos amigos e amigas entre os


colegas de turma e fala com todos eles. Nas últimas semanas, quando está no recreio ou
mesmo perto da sala de entrada da sala de aula, tem observado, várias vezes, um grupo de
rapazes e de raparigas da sua turma, com um ar de troça e por vezes mesmo ameaçador, em
volta de um outro colega de turma – o João. Este tenta, sem o conseguir, afastar-se desse
grupo. Umas vezes o Carlos observa os rapazes e de raparigas a darem safanões ao João,
outras vezes ouve chamarem-lhe nomes. Num dos dias Carlos viu o João a entregar dinheiro
a um dos elementos do grupo e, numa outra ocasião, ouviu um deles a ameaçar o João
dizendo-lhe que lhe bateriam se ele não trouxesse o dinheiro da próxima vez.

Deveria o Carlos fazer alguma coisa para ajudar o João? Sim  Não 
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
29

Explica o que poderia o Carlos fazer numa situação destas?

Já alguma vez te encontraste numa situação parecida à das personagens desta história?
(As alternativas «nunca»; «algumas vezes» e «muitas vezes» podiam ser assinaladas
para cada um dos 3 personagens: vítima, observador e agressor).

Como foi a situação que viveste? Podes descrevê-la?

Como resolveste a situação?

Haveria alguma outra solução para resolver essa situação? Sim  Não 

Qual?

As respostas às duas primeiras questões são codificadas em termos do tipo de


estratégia mobilizado para resolver conflitos interpessoais hipotéticos e as restantes respostas
são codificadas em termos do tipo de estratégia mobilizado para resolver conflitos
interpessoais reais. Os diferentes tipos de estratégias de resolução de conflitos reais e
hipotéticos podem aglutinar-se em duas grandes categorias: estratégias que recorrem à
agressão física e estratégias não agressivas. A fidelidade inter juízes foi de 95% de acordo
para a categorização das respostas relativas à resolução do conflito hipotético e de 91% para a
categorização do conflito real. O sistema de codificação utilizado pode ser consultado em
Martins (2003; 2005).

Procedimento

Os instrumentos foram aplicados colectivamente nas turmas dos adolescentes, dando-


se garantia da confidencialidade dos resultados, uma vez que as respostas não podiam ser
anónimas.

Resultados

A tabela 2 apresenta as correlações entre o atributo «ser agressivo», tal como


percebido pelos pares da mesma turma, os índices sociométricos e os restantes atributos
psicossociais.
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30

Tabela 2: Correlações (Spearman) entre o atributo «ser agressivo» e os


índices sociométricos e restantes atrbutos psicossociais
Índices sociométricos e atributos Atributo «Ser agressivo»
Preferências no trabalho -,044
Preferências no tempo livre -,049
Rejeições no trabalho ,290*
Rejeições no tempo livre ,211*
Ter muitos amigos ,123*
Ter poucos amigos -,013
Dar-se bem com os professores -,117**
Dar-se mal com os professores ,377*
Ser simpático com os companheiros ,003
Ser antipático com os companheiros ,263*
Ter capacidade de compreender os outros -012
Não compreender os outros ,334*
Ser capaz de resolver conflitos ,022
Estar disposto a ajudar os outros ,029
Não compreender a fraqueza dos outros ,211*
Saber comunicar -,067
Ter dificuldade em comunicar ,003
Alegrar-se com os êxitos dos outros ,043
Ter inveja ,059
Ocultar a sua insegurança parecendo o contrário ,142*
Sentir-se fracassado -,016
Sentir-se superior ,249*
Querer sempre chamar a atenção ,303*
Ser maçador ,204*
Ser maduro ,041
Ser imaturo ,199*
Índice de atributos positivos ,017
Índice de atributos negativos ,443*
* A correlação é significativa ao nível 0,01 (n=572)
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31

A leitura da tabela 2 indica-nos que o atributo «ser agressivo» correlaciona


positivamente e de forma estatisticamente significativa, embora algumas correlações sejam
baixas, com o índice de rejeições no trabalho (r = 0.290); rejeições no tempo livre (r = 0.211);
«ter muitos amigos» (r = 0.123); «dar-se mal com os professores» (r = 0.377); «ser antipático
com os companheiros» (r = 0.263); «não compreender os outros» (r = 0.334); «não
compreender a fraqueza dos outros» (r = 0.211); «ocultar a sua insegurança parecendo o
contrário» (r = 0.142); «sentir-se superior» (r = 0.249); «querer sempre chamar a atenção» (r
= 0.303); «ser maçador» (r = 0.204); «ser imaturo» (r = 0,199). Curiosamente o atributo «ser
agressivo» não apresenta qualquer correlação com os atributos negativos «ter inveja» e
«sentir-se fracassado», aspecto que nos parece consistente com o facto de alguns estudos
terem verificado que a auto-estima destes jovens não é mais baixa dos que a dos seus pares
não agressivos (e.g., Johnson & Lewis, 1999). Isto significa que o atributo «ser agressivo»
correlaciona positivamente com 9 dos 14 atributos negativos e com as rejeições no trabalho e
no tempo livre. Este atributo correlaciona também com o atributo positivo «ter muitos
amigos», embora esta correlação seja baixa. Estes dados parecem apoiar a ideia de que os
adolescentes agressivos, embora rejeitados pela maioria dos pares, cujos comportamentos são
de natureza mais normativa, são vistos como tendo um grupo de amigos razoável, aspecto
que tem sido salientado por vários autores (e.g., Cairns et al., 1988; Xie et al., 2002). Este
padrão de correlações com o atributo «ser agressivo» é similar ao obtido por Diaz-Aguado e
colaboradoras (1996) com adolescentes madrilenos, utilizando o mesmo instrumento.

Estas tendências acentuam-se quando efectuamos as inter-correlações apenas com a


amostra de rapazes, tal como pode ver-se na tabela 3. Neste caso o atributo «ser agressivo»
correlaciona de modo positivo e bastante razoável com as rejeições no trabalho (r = 0,321);
com as rejeições nos tempos livres (r= 0,235); com os atributos «dar-se mal com os
professores» (r = 0,422), «não compreender os outros» (r = 0,318), «não compreender a
fraqueza dos outros» (r = 0,398), «sentir-se superior» (r = 0,329), e o índice compósito de
atributos negativos (r = 0,469). Embora estas tendências sejam similares nas raparigas, as
correlações são muito mais baixas e algumas não são significativas (ver tabela 3).
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
32

Tabela 3: Algumas correlações entre o atributo “ser agressivo”


e outros índices sociométricos e atributos, em função
do género.
Índices sociométricos e Sexo masculino Sexo feminino
atributos “Ser agressivo”
Índice de rejeições no 0,321** 0,183**
trabalho
Índice de rejeições no 0,235** 0,133**
tempo livre
Dar-se mal com os 0,422** 0,171**
professores
Ser antipático com os 0,229** 0,221**
companheiros
Não compreender os 0,318** 0,232**
outros
Não compreender a 0,393* 0,024
fraqueza dos outros
Sentir-se superior 0,329** 0,035
Querer sempre chamar 0,299** 0,283**
a atenção
Índice de atributos 0,469** 0,321**
negativos
** A correlação é significativa ao nível 0,01.
n para o sexo masculino = 286
n para o sexo feminino = 286
Dados os objectivos do nosso estudo, e dadas as maiores correlações positivas obtidas
entre o atributo «ser agressivo» e alguns dos outros índices e atributos, efectuámos uma
comparação entre sexos no que respeita: aos índices de preferência e rejeição total, aos
atributos que mais correlacionavam com o atributo «ser agressivo», e aos índices dos
atributos positivos e negativos aglutinados.

A tabela 4 apresenta as médias obtidas pelos dois géneros, nos índices e atributos
referidos. A fim de testar a significância dessas diferenças, utilizámos o teste não paramétrico
de Mann-Whitney, os resultados desta análise encontram-se também na tabela 4.

A leitura da tabela 4 permite-nos constatar que a diferença entre géneros,


relativamente ao índice de preferências total não é estatisticamente significativa. Porém,
relativamente a todos os outros índices avaliados, as diferenças entre géneros são
estatisticamente significativas. O sentido dessas diferenças é o seguinte: no que respeita ao
índice de atributos positivos, as raparigas são nomeadas mais vezes, em média, do que os
rapazes; no que se refere ao índice de rejeições total, índice de atributos negativos e aos
restantes atributos negativos avaliados (ser agressivo, dar-se mal com os professores, ser
antipático com os outros, não compreender os outros, não compreender a fraqueza dos outros,
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
33

sentir-se superior, querer sempre chamar a atenção, e ser maçador), os rapazes foram, em
média, nomeados bastantes mais vezes, do que as raparigas, de forma estatisticamente
significativa, ao nível 0,05.

Tabela 4: Médias obtidas pelo género feminino e masculino em alguns índices


sociométricos e atributos psicossociais
Mann-
Sexo dos Média
Índices e atributos Whitney Sig.
sujeitos ordenada
U
Índice de preferências Masculino 280,90
39295,0 0,417
total Feminino 292,10
Masculino 311,29
Índice rejeições total 33808,5 0,000
Feminino 261,71
Masculino 323,33
Ser agressivo p.5.9 30364,0 0,000
Feminino 249,67
Dar-se mal com os Masculino 323,49
30319,0 0,000
professores p.5.4 Feminino 249,51
Ser antipático com os Masculino 318,29
31805,5 0,000
outros p5.6 Feminino 254,71
Não compreender os Masculino 325,06
29871,0 0,000
outros p5.8 Feminino 247,94
Não compreender a Masculino 311,14
33851,5 0,000
fraqueza dos outros p5.12 Feminino 261,86
Masculino 311,84
Sentir-se superior p.5.19 33650,5 0,000
Feminino 261,16
Querer sempre chamar a Masculino 310,02
34170,0 0,000
atenção p.5.20 Feminino 262,98
Masculino 326,12
Ser maçador p.5.21 29566,0 0,000
Feminino 246,88
Índice de atributos Masculino 266,46
35167,0 0,004
positivos Feminino 306,54
Índice de atributos Masculino 334,45
27185,5 0,000
negativos Feminino 238,55
N sexo masculino =286
N sexo feminino = 286
Este resultado vai no mesmo sentido do de muitos outros estudos, que salientam que
os rapazes são mais agressivos que as raparigas, sobretudo quando se fala de agressão física e
verbal (e. g., Bjorquist & Österman, 1999; Crick, 1997; Whitney & Smith, 1993). Em
particular, quando se usam questionários de nomeações de pares, os rapazes são geralmente
mais nomeados do que as raparigas, no respeitante às condutas agressivas. No nosso estudo
empírico os rapazes foram nomeados mais vezes do que as raparigas, em média e de forma
estatisticamente significativa, não só no atributo «ser agressivo», mas também em todos os
outros índices que tinham correlações positivas razoáveis com este atributo (isto é, o índice
de rejeições total, o índice de atributos negativos, e os atributos: dar-se mal com os
professores, ser antipático com os outros, não compreender os outros, não compreender a
fraqueza dos outros, sentir-se superior, querer sempre chamar a atenção, e ser maçador).
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
34

Em seguida, efectuaremos uma comparação entre as médias obtidas pelos 3 níveis de


escolaridade, no que respeita: aos índices de preferências total e de rejeições total, aos
atributos que mais correlacionavam com o atributo «ser agressivo», e aos índices dos
atributos positivos e negativos aglutinados. A fim de testar a significância das diferenças
utilizámos o teste não paramétrico de Kruskal-Wallis. As médias obtidas pelos sujeitos dos
diferentes níveis de escolaridade, juntamente com os resultados da análise estatística,
encontram-se na tabela 5.

Tabela 5: Médias obtidas nos três níveis de escolaridade nos índices sociométricos
e alguns atributos.
Ordenação K. W.,
Nível de
Índices e atributos N das Qui Sig.
Escolar.
Médias Quadrado
7º ano 196 280,97
Índice de preferências total 9º ano 207 294,19 0,725 0,696
11º ano 169 283,50
7º ano 196 299,28
Índice rejeições total 9º ano 207 309,09 16,515 0,000
11º ano 169 244,01
7º ano 196 275,89
Ser agressivo p.5.9 9º ano 207 329,73 38,333 0,000
11º ano 169 245,86
7º ano 196 310,81
Dar-se mal com os professores p.5.4 9º ano 207 288,08 15,535 0,000
11º ano 169 256,36
7º ano 196 285,85
Ser antipático com os outros p.5.6 9º ano 207 283,47 0,218 0,897
11º ano 169 290,96
7º ano 196 265,53
Não compreender os outros p.5.8 9º ano 207 312,63 10,440 0,005
11º ano 169 278,81
7º ano 196 290,76
Não compreender a fraqueza dos outros
9º ano 207 292,75 1,615 0,446
p.5.12
11º ano 169 273,91
7º ano 196 314,24
Sentir-se superior p5.19 9º ano 207 282,70 14,291 0,001
11º ano 169 258,99
7º ano 196 314,12
Querer sempre chamar a atenção p.5.20 9º ano 207 289,52 15,676 0,000
11º ano 169 250,77
7º ano 196 297,41
Ser maçador p.5.21 9º ano 207 303,60 13,613 0,001
11º ano 169 252,90
7º ano 196 267,64
Índice de atributos positivos 9º ano 207 310,59 7,313 0,026
11º ano 169 278,86
7º ano 196 291,41
Índice de atributos negativos 9º ano 207 301,80 5,643 0,060
11º ano 169 262,07
N=572
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
35

A leitura da tabela 5 permite-nos constatar que, no que respeita ao índice de


preferências total, aos atributos «ser antipático com os outros», «não compreender a fraqueza
dos outros», e ao índice de atributos negativos aglutinado, as diferenças entre a ordenação das
médias nas nomeações efectuadas aos alunos dos 3 níveis de escolaridade não são
significativas. Relativamente, aos atributos: «dar-se mal com os professores», «sentir-se
superior», e «querer sempre chamar a atenção», estes são mais utilizados quanto mais baixo o
nível de escolaridade dos sujeitos, isto é, os do 7º ano recebem mais esse tipo de nomeações,
seguidos dos do 9º ano, e só depois os do 11º ano. No que se refere aos atributos «ser
agressivo», «ser maçador» e índice de rejeições total, os alunos do 9º ano recebem o maior
número de nomeações, em média, seguidos dos do 7º ano, e depois dos do 11ºano. Quanto ao
índice de atributos positivos aglutinados, e ao atributo «não compreender os outros», os
valores mais elevados encontram-se no 9º ano, seguido pelo 11ºano e, finalmente, pelo 7º
ano. Em suma, os alunos do 9º ano são os mais nomeados no atributo «ser agressivo»
seguidos pelos do 7º ano de escolaridade, de modo estatisticamente significativo.
A tabela 6 apresenta as correlações entre o atributo «ser agressivo» e os indicadores
do questionário de competência social. Apesar das correlações serem baixas, a leitura dessa
tabela indica-nos que os adolescentes mais nomeados no atributo «ser agressivo» são também
os que admitem mobilizar mais estratégias agressivas para a resolução de conflitos reais e
hipotéticos, bem como ter vivido uma situação parecida à do personagem agressor da história
hipotética. Os dados indicam que não existe qualquer relação entre as nomeações no atributo
«ser agressivo» e a vivência de situações parecidas à da vítima e à do observador. Estes dados
sugerem que os instrumentos utilizados têm uma validade razoável.
Tabela 6: Correlações entre o atributo «ser agressivo» e os indicadores de
agressividade do QCS
Indicadores do QCS Nomeações no atributo «Ser
agressivo»
Estratégias agressivas na resolução de conflitos reais 0,178**
Estratégias agressivas
na resolução de conflitos hipotéticos 0,85*
Vivência de uma situação parecida à de observador 0,075
Vivência de uma situação parecida à da vítima 0,57
Vivência de uma situação parecida à do agressor 0,142**
* Correlação significativa a 0,05
** Correlação significativa a 0,01
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36

Discussão e conclusões

Os resultados obtidos sugerem que os adolescentes agressivos (em termos de atributo


percebido pelos companheiros da mesma turma) são em geral rejeitados pelos pares, embora
sejam percepcionados como indivíduos com tantos ou mais amigos que os colegas. Este dado
vai ao encontro dos resultados obtidos por vários autores que consideram que os adolescentes
agressivos procuram afiliar-se com adolescentes similares e que os actos agressivos, são regra
geral, um fenómeno que ocorre em grupo (Pellegrini et al., 1999; Salmivalli, 1998).

Os dados indicam também que o atributo «ser agressivo» aparece associado aos
seguintes atributos negativos: «dar-se mal com os professores»; «não compreender os
outros»; «não compreender a fraqueza dos outros»; «ser antipático com os companheiros»;
«querer sempre chamar a atenção» e «sentir-se superior». Este padrão de características
(nomeadamente «não compreender os outros» e «não compreender a fraqueza dos outros»)
parece coerente com o facto de alguns autores considerarem que a agressividade está
associada a défices na empatia (Gibbs, 1987). Os atributos «querer sempre chamar a atenção»
e «sentir-se superior» sugerem que a agressividade é uma forma de obter protagonismo social
e que não está necessariamente associada a uma baixa auto-estima, de acordo com o que
sugerem vários autores (e.g., Johnson & Lewis, 1999; Diaz-Aguado et al., 1996; 2004).
Tal como em muitos outros estudos, os resultados indicam que os indivíduos do sexo
masculino são mais agressivos do que os do sexo feminino, ou que, pelo menos, são assim
percebidos pelos seus pares (Bjorquist & Österman, 1999; Whitney & Smith, 1993). No que
respeita aos níveis de escolaridade, foi no 9º ano que se registou uma média de nomeações
mais elevada no atributo «ser agressivo», seguido do 7º ano e depois do 11º ano de
escolaridade. Tendo em conta que muitos autores consideram que as condutas agressivas
apresentam uma elevada estabilidade no tempo compreende-se que as médias sejam mais
elevadas durante a escolaridade obrigatória, uma vez que a maioria dos jovens agressivos
abandonam o sistema de ensino (Olweus, 1997).
As nomeações no atributo «ser agressivo» correlacionavam também positivamente
com a mobilização de estratégias agressivas na resolução de conflitos interpessoais
hipotéticos e sobretudo reais, bem como com o facto dos jovens nomeados nesse atributo
admitirem terem vivido situações parecidas ao papel do agressor numa história hipotética,
pois apesar das correlações serem baixas, foram no sentido esperado.
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
37

Os resultados obtidos sugerem que este tipo de questionários (sobretudo os


questionários sociométricos associados aos de atributos) podem ser utilizados por psicólogos,
professores, animadores e directores de escolas com vista a estudar as dinâmicas relacionais
de uma turma. O diagnóstico da situação no grupo-turma fornecido pelos questionários de
nomeação de pares (índices sociométricos e atributos) poderá contribuir para uma
intervenção esclarecida em situações de agressão e vitimação entre alunos; prevenção do
bullying e melhoria do clima relacional nas turmas e nas escolas. O questionário de
competência social necessita ainda de mais estudos que permitam verificar a sua fidelidade e
validade.

7. Referências:

Bjorkquist, K. & Osterman, K. (1999). Finland. In P. Smith, Y. Morita, J Junger-tas,


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VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
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VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
39

Confronto com o doente em fase terminal: um estudo com estudantes da área da Saúde

Ana Monteiro Grilo (Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa)


ana.grilo@estesl.ipl.pt

Helga Pedro (Escola Superior de Enfermagem de São Vicente de Paulo)

Palavras-chave:
doente em fase terminal, estudantes da área da saúde, sentimentos, estratégias de confronto

Resumo/Abstract:

Este trabalho pretendeu avaliar as significações e as estratégias de confronto utilizadas


pelos estudantes de profissões da área da Saúde perante o doente de mau prognóstico.
Trata-se de uma investigação qualitativa, com 189 sujeitos de três cursos da área da saúde,
sendo a recolha de dados efectuada através da resposta a uma história de vida inacabada.

Através da análise de conteúdo foram encontradas quatro categorias relativas ao confronto


com o doente de mau prognóstico. Estes resultados, nomeadamente, a prevalência de
categorias como a tentativa de recusa da situação, apontam para a necessidade dos conteúdos
programáticos destes cursos oferecerem treino de competências específicos nesta área.

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, temos assistido a um grande avanço na medicina: técnicas mais
sofisticadas, exames complementares de diagnóstico mais detalhados; um culminar de
progressos que levaram a comunidade científica a acreditar que podia resolver a totalidade
dos problemas de saúde (Hesbeen, 2000; Grilo, 1999, Nuland, 1995).

Nos países ocidentais, a par com a evolução na medicina, ocorreram grandes


melhorias nas condições de vida que permitiram o aumento das expectativas de vida (Andrés,
1995; Lafuente, 1996) e potenciaram um afastamento cada vez maior da doença e da morte.
Na verdade, quanto mais a medicina progride, maior é o medo que temos da morte e mais
negamos o seu carácter real e inevitável (Andrés, 1995; Cabodevilla, 1999; Greif & Golden,
1994; Kübler-Ross, 1992; Oliveira, 1999; Rogers, 1990, cit., Paul & Fonseca, 2001; Subtil &
Gomes, 1997; Vidal & Vidal, 1993).
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
40

A prática da medicina actual é pautada pelo predomínio do modelo biomédico onde


a centração na cura e nos aspectos físicos do doente ditam as prioridades (Larivaana et al.,
2000). Neste contexto, a abordagem da morte e questões a ela associadas, deixou de ter
lugar nos programas curriculares de muitas escolas de saúde. Não é, pois, de estranhar que
a generalidade dos profissionais de saúde tenham muitas dificuldades na comunicação com
o paciente de mau prognóstico, assim como com os seus familiares (Fallowfield et al.,
2002).
Paradoxalmente, foi a cultura de “afastamento” da morte que a trouxe para os
hospitais. Efectivamente, e contrariando a tendência dominante até meados do século
passado, nos nossos dias os enfermos passam os últimos tempos da sua vida nos serviços
de saúde e não em casa junto das pessoas que lhe são significativas (Kübler-Ross, 1992;
Oliveira, 1999, Paul & Fonseca, 2001). Esta realidade leva a que cada vez mais técnicos
de saúde se confrontem com doentes de mau prognóstico/terminais em serviços
hospitalares genéricos, como os serviços de medicina, onde hoje, a grande maioria dos
idosos terminam a sua vida. Dito de outra forma, o paciente terminal deixou de estar
confinado a serviços muito específicos, como os de oncologia ou de doenças
infectocontagiosas, ou seja, hoje, qualquer profissional de saúde pode ver-se obrigado a
“conviver”, de forma mais ou menos frequente, com a morte de pacientes no serviço onde
trabalha.
Alguns estudos têm vindo a dar destaque à insatisfação dos pacientes quanto à forma
como são cuidados pelos profissionais de saúde no fim da vida (Beirão & Simão, 2000,
Queirós, 1999). Efectivamente, a investigação tem demonstrado que em doenças de mau
prognóstico, como o cancro, os doentes desejam ser informados acerca das opções de
tratamento e do prognóstico. Contudo, o revelar um mau prognóstico, o fornecimento de más
noticias e o preparar para procedimentos invasivos constituem algumas das áreas com que os
profissionais de saúde parecem ter mais dificuldade em lidar (Schofield & Butow, 2004).
Estas dificuldades na comunicação impedem o doente de tomar decisões sobre a sua própria
morte e sobre o processo de fim de vida (Grilo, 2001; Paul & Fonseca, 2001).

Ao técnico de saúde compete o acompanhamento do doente terminal, em cada nível


do seu confronto com a morte (Kubler-Ross, 1992). É necessário que cada profissional de
saúde se mostre disponível para acolher as verbalizações destes doentes, ainda que estas
sejam de raiva ou de tristeza profunda, logo, de difícil aceitação e gestão por parte de quem
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
41

as escuta. Não obstante, o técnico deverá ser capaz de falar abertamente sobre o fim da vida.
Só desta forma conseguirá diminuir o sofrimento destes pacientes (Gameiro, 1999).
(...) acolher, acompanhar (...) o sofrimento de uma pessoa que vai morrer não é uma
tarefa “opcional” ou facultativa (...). É uma tarefa fundamental que todas as pessoas
podem e devem assumir, pela simples razão de que é uma tarefa humana.
(Hennezel; M & Leloup, L., 1998, p. 16)sd

Torna-se assim relevante que os futuros técnicos de saúde, das mais diversas áreas,
adquiram competências de comunicação e relação de ajuda para com os doentes terminais. É
importante que os profissionais que trabalham com enfermos em fim de vida resolvam as
suas próprias ansiedades e medos acerca da morte e do processo de morrer (Cabodevilla,
1999). Deste modo, compreenderão as reacções dos pacientes e, consequentemente, serão
mais eficazes na ajuda que lhes prestam (Lafuente, 1996, Subtil & Gomes, 1997).
A presente investigação pretende avaliar as significações e as estratégias de confronto
dos estudantes das áreas da saúde perante o doente terminal para que, posteriormente, se
possam propor o treino de competências específicas nesta área.

Método

Participantes
A amostra deste estudo é constituída por 189 estudantes do 1º ano de três cursos da
área da saúde, da região da grande Lisboa, a saber: 110 alunos do curso de Enfermagem, 55
alunos do curso de Fisioterapia e 24 alunos do curso de Radioterapia.

A opção por estes três cursos da área da saúde resulta do facto de se tratarem de profissões
em que existe um contacto relativamente prolongado com o utente e onde as situações de
doença de mau prognóstico/terminal podem ocorrer com alguma frequência.
A escolha de alunos do 1º ano permite que o estudo recaía sobre estudantes que não
tenham abordado a temática do doente de mau prognóstico/terminal no âmbito de alguma
unidade curricular do curso e que não possuam ainda, enquanto estudantes, qualquer
experiência de contacto com pacientes. Pretende-se desta forma efectuar como que um
diagnóstico avaliativo, no que a esta área diz respeito, dos alunos que optam por cursos da
área da saúde.
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
42

Material
A avaliação dos pensamentos, emoções e comportamentos suscitados pelo paciente
em fase terminal e, consequentes estratégias de confronto, foi efectuada através da resposta a
uma história de vida inacabada, construída para esse fim. Estas histórias de vida baseiam-se
habitualmente em dilemas hipotéticos. Contudo, nesta fase preliminar da investigação, optou-
se pela elaboração de histórias inacabadas.
Os dilemas hipotéticos têm vindo a ser utilizados por vários autores da Psicologia do
Desenvolvimento (Colby & Kohlberg, 1987; Damon, 1981; Kohlberg, 1984; Lourenço,
1992), revelando-se uma metodologia eficaz para a avaliação dos estádios de
desenvolvimento e para a classificação desenvolvimentista de significações, relativas à
representação da doença e do seu confronto com pacientes com infecção por VIH/SIDA
(Grilo, 1999). Num dilema hipotético assume-se que o sujeito terá de escolher entre duas
alternativas equivalentes, ou seja, o tipo de resposta deste está, de alguma forma, a ser
condicionada a priori. Para evitar esta “indução de resposta” a escolha metodológica recaiu,
tal como Santos (2003) no seu estudo para avaliação desenvolvimentista de stress
ocupacional e recursos de coping nos técnicos de diagnóstico e terapêutica, na construção de
histórias de vida inacabadas, que confrontam o sujeito com uma situação de difícil resolução,
dando-lhe total liberdade de resposta.
Uma vez que se trata de um estudo de carácter exploratório, através do qual
pretendemos recolher o máximo de informação sobre a temática em questão, pareceu-nos
mais adequado utilizar uma história aberta e não uma situação dilemática com alternativas de
resposta dicotómicas.
Na elaboração de cada história procurámos retratar situações susceptíveis de acontecer
no dia a dia de trabalho dos Enfermeiros, Técnicos de Radioterapia e Fisioterapeutas, e que
exemplificassem aspectos da relação Técnico de Saúde-Doente terminal. Optamos assim por
elaborar uma história específica para cada um dos três cursos estudados. O quadro 1
apresenta a história inacabada apresentada aos estudantes do curso de Radioterapia.
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
43

Quadro 1: História inacabada para o curso de Radioterapia


A Técnica de Radioterapia Filipa Sousa vai começar mais um tratamento à Raquel.
A Raquel é uma jovem de 22 anos que tem um cancro em fase avançada. A jovem
está fisicamente muito debilitada e a Técnica de Radioterapia sente que de dia para
dia o seu estado físico piora e que os tratamentos não a poderão curar. A Técnica
Filipa sente que a Raquel está a morrer.

Hoje, antes do tratamento, a Raquel parece ainda mais abatida que ontem. Ao
entrar na sala dirige-se para a Técnica Filipa e verbaliza: “Já viu como eu estou?
Não me vai deixar morrer pois não?”

A Técnica Filipa fica sem palavras... O que poderá dizer a esta jovem?

Imagine que se encontra numa situação semelhante.


Se eu me encontrar numa situação semelhante…

1. O que é que eu penso? (indique os pensamentos que lhe surgiriam a deparar-se


com esta situação)
2. Como me sinto? (indique os sentimentos/emoções que esta situação lhe suscitaria)
3. O que eu penso fazer? Que solução lhe parece mais adequada para esta situação?
(especifique as acções ou verbalizações que lhe parecem mais adequadas)

Após a leitura da história cada estudante era convidado a identificar os seus pensamentos
(questão 1), sentimentos (questão 2) e estratégias de confronto (questão 3) que aquela situação lhe
suscitava.

Procedimento
As histórias inacabadas foram aplicadas logo no início da unidade curricular de
Psicologia dos três cursos nos anos lectivos 2004/05 e 2005/06.
Antes da entrega da história inacabada e respectivas questões foi dito aos estudantes
que se tratava de uma investigação e que a participação de cada um era inteiramente livre.

RESULTADOS

Na análise dos resultados procuramos determo-nos separadamente sobre cada uma das
três questões suscitadas pela história inacabada. Contudo, em relação à questão 1: “O que é
que eu penso?”, não foi possível fazer qualquer análise de conteúdo uma vez que a maioria
dos sujeitos não indicou pensamentos, mas sim sentimentos e acções, que correspondem às
questões 2 e 3. Assim, optámos por apresentar apenas os resultados relativos a estas duas
últimas questões.
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44

Questão 2: Sentimentos despoletados pela história


Em relação aos sentimentos suscitados pela história inacabada os estudantes dos três cursos
enumeraram uma grande diversidade de sentimentos que agrupamos em cinco categorias principais:
vontade/desejo de cuidar do outro; procura de identificação/sintonia com os sentimentos do doente;
percepção da falta de controlo para a resolução da situação do doente; sensação subjectiva de
vulnerabilidade perante a situação do doente e sensação subjectiva de ameaça perante a situação do
doente. Cada categoria inclui vários sentimentos (quadro 1).

A vontade/desejo de cuidar do outro inclui sentimentos como a esperança, a vontade


de ajudar e a coragem e traduz a crença na capacidade do próprio (estudante) para mobilizar o
doente para tomar uma atitude.
A procura de identificação/sintonia para com os sentimentos do doente inclui
sentimentos como a compreensão, a compaixão e a solidariedade e pressupõe a necessidade
de partilhar a realidade/sofrimento do doente.
A percepção da falta de controlo para a resolução da situação contém sentimentos como a
impotência, a frustração e a incapacidade por não saber o que fazer, e também sentimentos como a
revolta por se recusar a aceitar passivamente a inevitabilidade da morte do doente.

A sensação subjectiva de vulnerabilidade perante a situação diz respeito a


sentimentos como a dor, a tristeza e o desconforto e traduz o sofrimento psicológico que esta
situação despoleta nos estudantes dos três cursos.
Finalmente, a sensação subjectiva de ameaça inclui sentimentos como o medo e a
ansiedade e resulta da sensação de incerteza perante o que vai acontecer e o que se deve
fazer.
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45

Quadro 1: Categorias de resposta e respectivos sentimentos

Categoria Sentimentos N TOTAL %

Vontade/desejo de cuidar do (Vontade de) Ajudar 27


outro (crença na sua capacidade Esperança 9
48 11,3
para mobilizar o outro a tomar Forte 3
Coragem 4
uma atitude, para olhar por ele) Responsabilidade 5
Compreensão 2
Compaixão 9
Carinho 1
Procura de Amor 1
identificação/sintonia com os Simpatia 1
21 5
sentimentos do doente Enternecido 1
Sensibilizado 1
Respeito 1
Solidariedade 4
Impotência 60
Inferioridade 1
Incapacidade 28
Embaraço 2
Percepção da falta de controlo Constrangimento 1
para a resolução da situação do Desprevenido 1
Destroçado 2 150 35,5
doente
Abatido 1
Frustração 18
Revolta 26
Desespero 7
Culpa 1
Inutilidade 2
Pena 30
Dor 3
Desilusão 2
Sensação subjectiva de Desolação 1
Desconforto 1
vulnerabilidade perante a 160 37,8
Tristeza 93
situação do doente Infeliz 2
Angustia 23
Amargura 1
Emocionado 4
Duvidoso 1
Admirado 1
Confuso 5
Indeciso 6
Atrapalhado 1
Pânico 3
Sensação subjectiva de ameaça Aflição 1
perante situação do doente Medo 7 43 10,2
Assustada 5
Choque 2
Ansiedade/ Nervoso 4
Receio 2
Agitada 1
Preocupado 4
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Como se pode verificar pelo gráfico 1 a categoria de sensação subjectiva de


vulnerabilidade foi a mais referida (37,8%), logo seguida da categoria de percepção da falta
de controlo para a resolução da situação (35,5%). A categoria de vontade/desejo de cuidar
do outro foi mencionada por 11,3% dos estudantes e a sensação subjectiva de ameaça por
10,2% dos mesmos. Os sentimentos que traduzem a sensação subjectiva de
identificação/sintonia com os sentimentos do doente foram apenas referidos por 5% dos
sujeitos em estudo.

Vontade/desejo de cuidar
do outro

Procura de
identificação/sintonia
para com os sentimentos
do doente

10% 11% Percepção da falta de


5% controlo para a resolução
da situação

Sensação subjectiva de
38% vulnerabilidade
36%

Sensação subjectiva de
ameça

Gráfico 1: Principais categorias de resposta obtidas (%)

Questão 3: Estratégias de confronto


A questão 3 procurava avaliar quais as estratégias de confronto utilizadas pelos
estudantes.
Através da análise de conteúdo das respostas a esta questão encontramos quatro
categorias principais: tentativa de recusa da situação; tentativa de resolução da situação;
centração no fornecimento de informação e centração na pessoa doente. O quadro 2
apresenta as categorias, subcategorias e respectivos exemplos, salientando-se que cada
estudante podia fazer referência a mais do que uma categoria ou sub-categoria.
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47

A tentativa de recusa da situação foi referenciada por 34,9% dos estudantes. Esta
categoria inclui duas sub-categorias: evitamento e centração no tratamento, sendo que, em
ambas, os estudantes dão respostas em que se recusam a lidar com os sentimentos do doente e
procura alternativas face à negatividade da situação (e.g., pensar noutra coisa, continuar com
o tratamento).
A categoria tentativa de resolução da situação foi mencionada por 34,5% dos
estudantes. Esta categoria faz referência às tentativas dos estudantes para encontrarem uma
forma de solucionarem o problema apresentado pelo doente (noção de proximidade pela
morte). Para tal, recorrem a duas sub-categorias: centração na cura/esperança de cura e dar
conselhos. Na primeira sub-categoria existe uma tentativa de proporcionar esperança ao
doente através da referência à possibilidade de cura. Alguns estudantes assumem que tal
possibilidade não é real, mas que esta “mentira” seria benéfica para o doente. Na sub-
categoria dar conselhos os estudantes tentam desviar a atenção do doente da sua real
situação, propondo para tal uma série de estratégias concretas que visam a melhoria do estado
emocional deste (e.g., sair com os amigos).
A categoria de centração no fornecimento de informação foi referenciada por 12,1%
do total dos estudantes. Esta categoria enfatiza a necessidade de dizer a verdade e, portanto,
assumir a proximidade da morte do doente. Contudo, enquanto na sub-categoria dizer a
verdade os estudantes apenas aludem à importância de informar o doente fazendo referência
à gravidade da sua situação, na sub categoria dizer a verdade e fornecer apoio os estudantes
enfatizam a necessidade de informar o doente sobre a severidade da sua situação clínica, mas,
ao mesmo tempo, procuram minimizar o impacto desta notícia, tentando apoiar
emocionalmente o doente (e.g., ficava a fazer-lhe companhia).
A última categoria foi designada por centração na pessoa doente, tendo sido
referenciada por 31,7% dos estudantes. Trata-se de uma categoria genérica que inclui duas
sub-categorias: disponibilidade para acolher o sofrimento da doente e fornecimento de apoio.
A sub-categoria disponibilidade para acolher o sofrimento do doente inclui algumas
dimensões da relação de ajuda, nomeadamente, a escuta e empatia. Na sub-categoria
fornecimento de apoio a preocupação dos estudantes é a de proporcionar ao doente momentos
de bem estar nos últimos tempos de vida, e para tal, propõem-se conversar, estar presentes,
etc.
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48

Quadro 3: Principais categorias e respectivas sub-categorias que caracterizam as estratégias


de confronto utilizadas pelos estudantes
CATEGORIA Sub- N Definição Exemplos
categorias
“Tentava reconfortá-la
55 - Percepção da situação de mudando rapidamente o
doença terminal, mas tema da conversa para
Evitamento recusa em abordá-la. algo mais positivo.” (F22)
- Fuga da situação,
tentando que o doente “Fazia fisioterapia ao ar
Tentativa de pense ou faça outra coisa. livre caso isso fosse
recusa da possível” (F47)
situação “O tratamento não
(n=66) - Recusa em aceitar a deixaria de ser feito.”
situação e os sentimentos (F32)
Centração na 11 negativos do doente
continuação do centrando-se para tal na “Eu não podia fazer nada
tratamento necessidade de manter o para concretizar o desejo
tratamento deste. da Raquel. Teria de
continuar a cuidar dela.”
(E77)

- Centração na “Dizia que o cancro tem


possibilidade de cura da cura (...)” (R14)
Centração na doença, enfatizando o
cura/esperança 37 poder curativo do “(...) farei todos os
da cura tratamento ou a possíveis para que possas
Tentativa de necessidade de procura de recuperar. Tudo há-de
resolução da tratamentos alternativos. correr bem.” (F42)
situação
(n=65) - Indicar directamente ao
doente o que este deve “Dizer-lhe que se deve
fazer em concreto (e.g., juntar à família ou ir para
Dar conselhos não desanimar, viver um sitio que seja para si
(directivo) 28 intensamente os dias que especial (...)” (E28)
lhe restam, sair com os
amigos…)

- Preocupação em “Contar a verdade.”


Dizer a verdade 5 informar o doente da sua (R15)
real situação.
Centração no
fornecimento de
informação - Preocupação em “Começar por fazê-la
(n=23) Dizer a verdade 18 informar o doente da sua compreender a sua
e fornecer apoio situação, sem descurar o situação debilitada (...)
modo como o faz e a mas dar-lhe apoio moral
emocionalidade que esta ao máximo.” (E14)
informação suscita no
doente.
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
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“Ouvia as suas
- Preocupação em ouvir o preocupações e receios.”
13 doente e em apresentar-se (E39)
Disponibilidade completamente disponível
para acolher o para acolher o sofrimento “Antes de mais tocava-a,
sofrimento da deste (e.g. escutar; dar a fazia sentir que estou
doente mão, dizer que está ali.) alerta, a ouvir e
disponível. Era muito
importante acolher a sua
angústia.” (E5)
Centração
na pessoa doente - Centração em “(...) É muito importante
(n=60) proporcionar apoio ao transmitirmos toda a força
doente assumindo que este positiva que
não terá muito tempo de conseguirmos. Mostrar a
Fornecer apoio 47 vida. (e.g., ajudar, indicar nosso apoio, a nossa
que estará presente, passar amizade e tranquilizar a
confiança, conversar). doente dizendo que nunca
- Centração no bem estar a abandonaremos.” (F15)
emocional do doente.

DISCUSSÃO

Tendo em consideração os sentimentos e estratégias de confronto podemos afirmar


que os estudantes da amostra demonstraram dificuldade em lidar com a situação apresentada
na história inacabada. Efectivamente, os estudantes fizeram referência a um número
considerável de sentimentos de desconforto ao serem hipoteticamente confrontados com a
situação de uma jovem no final de vida. Recorde-se que os sentimentos que traduzem
vulnerabilidade e a sensação de falta de controlo da situação foram os mais referenciados.
Estes sentimentos de desamparo face à situação de doença terminal foram também
encontrados no relato de estudantes de medicina aquando da sua primeira experiência com
pacientes (Pitkälä & Mäntyranta, 2004).
Estes sentimentos não devem ser negligenciados, mas pelo contrário, devem ser
reconhecidos e trabalhados dentro de um programa de treino de competências adequado. Na
verdade, segundo Pitkälä e Mäntyranta (2004) o lidar com a morte e o processo terminal é
uma experiência muito intensa, devendo, ao longo da formação académica, ser
proporcionadas aos estudantes oportunidades para desenvolverem competências para lidar
com estas situações.

Em relação às categorias e sub-categorias encontradas para o confronto hipotético


com a situação do doente em fase terminal gostaríamos de salientar a referência
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
50

(relativamente elevada) de estratégias de evitamento (29,1%). Aparentemente, trata-se de


uma estratégia a que os estudantes recorrem naturalmente e que, se não existir treino de skills
que potencie uma abordagem diversa, continuará a ser utilizada posteriormente na vida
profissional. Na verdade, sabemos que o distanciamento é uma das estratégias que os
profissionais de saúde tendem a utilizar como forma de gerir o stress potenciado pelo trabalho
com doentes de mau prognóstico (Danou, 1994; Melo, 1990), nomeadamente, a existência de
sentimentos de falta de controlo para lidar com a situação.
Ainda em relação às estratégias de confronto, importa destacar a utilização de
algumas estratégias que se enquadram claramente dentro do modelo biomédico (Grilo, 2005;
Reis, 1992). Efectivamente, nas sub-categorias centração na continuação do tratamento e
centração na cura/esperança de cura, os estudantes detêm-se apenas nos aspectos
fisiológicos da situação, deixando de “fora” a pessoa doente (Kjeldmand; Holmström &
Rosenqvist, 2006).
Em outras das estratégias de confronto referenciadas são já considerados os aspectos
biológicos e psicossociais da situação, contudo os estudantes atribuem-se o si próprios o
estatuto de autoridade epistemológica (Reis, 1992) assumindo que sabem o que é melhor para
o doente. A sub-categoria dar conselhos é disto o exemplo mais claro, porém, consideramos
que a sub-categoria fornecer apoio e dizer a verdade e fornecer apoio podem igualmente
enquadrar-se nesta dimensão.
Por fim, em nossa opinião, apenas a sub-categoria disponibilidade para acolher o
sofrimento do doente pode ser considerada como exemplo de uma estratégia de confronto de
centração no paciente. Neste tipo de confronto, os estudantes preocupam-se em aceder às
crenças do doente face à sua situação actual (Michie, Miles & Weinman, 2003), isto é,
procuram compreender o que o paciente realmente pensa e sente (Kjeldmand; Holmström &
Rosenqvist, 2006), não havendo imposição da opinião por parte do hipotético profissional de
saúde (estudantes).
Parece-nos importante salientar, que em nenhuma categoria, os estudantes incluem
uma dimensão relativa ao controlo da situação por parte do doente. Contudo, o permitir que o
doente tenha algum controlo sobre o seu processo de doença constitui uma das dimensões
fundamentais dos modelos de centração no paciente (Michie, Miles & Weinman, 2003) e é
considerado um dos aspectos fundamentais do cuidar do paciente em fase terminal (Grilo,
2001, Lafuente, 1996).
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
51

Em termos globais, estes resultados indicam que os estudantes da amostra por nós
estudada têm dificuldade em promover a expressão/discussão dos sentimentos do doente.
Este tipo de dificuldades parece continuar a existir após a formação académica conduzindo a
barreiras na comunicação entre o técnico de saúde e paciente (Fallowfield et al., 2002;
Schofield & Butow, 2004). Quando o profissional de saúde tem que lidar com doentes de
mau prognóstico, os problemas de comunicação tornam-se mais complexos (Fallowfield et
al., 2002).
Alguns autores (Beckman & Frankel, 2003) consideram mesmo que os défices na
comunicação constituem um dos principais problemas da prática clínica dos nossos dias,
tanto mais que esta falta de skills comunicacionais têm vindo a ser associada
consistentemente a piores resultados de saúde e insatisfação da parte dos doentes (Beckman
& Frankel, 2003; Fallowfield et al., 2002).
Poder-se-á argumentar que o presente estudo foi realizado com alunos do 1º ano e que
com o tempo estas competências serão adquiridas. Contudo, diversas investigações (Evans,
Stanley, Burrows, 1992; Fallowfield et al., 2002; Melo, 1990) têm evidenciado que a prática
profissional não favorece o desenvolvimento de competências comunicacionais e, portanto,
estas deverão ser aprendidas na formação geral inicial. Apesar deste reconhecimento, temos
constatado que muitos dos programas curriculares da área da saúde continuam a ser
excessivamente centrados nas características do modelo biomédico (Larivaara et al., 2000),
não oferecendo, ao longo do plano de estudos, treino de competências especificas que ajudem
os futuros profissionais a lidar com os problemas do paciente.
A questão que se coloca agora é como ensinar estas competências aos estudantes da
área da saúde? É hoje amplamente defendido (Fallowfield et al., 2002; Hulsman & Steele,
2006; Larivaara, et al., 2000; Makoul, 2003) que estas competências podem ser aprendidas
(“Good communicators are not only born, they can be made”., Hulsman & Steele, 2006,
pg.1). Cabe pois às Escolas que formam estes profissionais a responsabilidade de ensinar e
avaliar as competências comunicacionais dos seus estudantes (Hulsman & Steele, 2006;
Makoul, 2003). Isto é tanto mais importante quanto, nos nossos dias, a comunicação e as
competências interpessoais se tornaram um dos critérios principais para a acreditação de
algumas escolas da área da saúde (Makoul, 2003). É assim fundamental construir planos de
estudos que propiciem o desenvolvimento de competências que permitam que os futuros
profissionais de saúde utilizem o modelo centrado no paciente (Aita et al., 2005; Benbassat &
Baumal, 2002; Larivaara et al., 2000; Makout & Schofiel, 1999, cit. Makoul, 2003) e
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
52

possuam competências comunicacionais adequadas. A utilização do modelo centrado no


paciente pressupõe que o profissional de saúde possua treino para aceder às crenças do
paciente e para promover a participação activa deste último no seu processo terapêutico
(Michie, Miles & Weinman, 2003). As competências comunicacionais incluem aspectos
como a escuta activa, a facilitação da expressão de sentimentos do paciente, o lidar com
emoções, a elaboração de questões abertas, o dar más noticias e o fornecimento de suporte
(Schofield & Buttow, 2004; Silverman et al., 1998, cit. Deveugele et al., 2005).
Alguns autores propõem que o treino destas competências seja efectuado ao longo do
plano de estudos (Deveugele et al., 2005;Gude et al., 20005), e não apenas numa única
unidade curricular, e incluindo ainda metodologias como role-playing com pacientes
simulados e reais (Rees, Sheard & McPherson, 2004), estudos de caso (Beckman & Frankel,
2003); trabalhos de grupo (Deveugele et al., 2005) e prática gravada em vídeo com posterior
análise e feedback (Deveugele et al., 2005, Gordon, 2003).
Nos cursos em que a prática profissional o justifique, como é o caso da enfermagem,
fisioterapia e radioterapia, este treino deve incluir necessariamente situações que envolvam
doentes de mau prognóstico. Esta formação é tanto mais importante, quanto, como já
referimos, a sociedade ocidental não lida bem com a morte e tende a evitá-la, pelo que não
será de estranhar que, a maior parte dos alunos que ingressam no ensino superior em cursos
da área, da saúde nunca tenham lidado de perto com o processo de fim de vida. Assim, é
nossa convicção que, se os profissionais de saúde tiverem formação específica sobre a
temática do confronto com a morte durante a sua formação de base, terão no futuro mais
facilidade em trabalhar com esta população. Na verdade, a aprendizagem formal relativa ao
confronto com a morte (Paúl, 1995), permite, para além da transmissão de conhecimentos,
que os estudantes trabalhem os seus próprios sentimentos face à morte, os quais, como vimos
nos resultados de estudo, podem ser bastante perturbadores, e que consigam identificar as
emoções dos próprios doentes. Espera-se assim, que os estudantes que recebem formação
nesta área, possam utilizar menos estratégias defensivas (de que são exemplo o evitamento e
a centração na cura) quando iniciarem o seu contacto profissional com doentes terminais.
Numa palavra, a adequação dos programas curriculares nas áreas da saúde tem
implicações directas na qualidade dos cuidados prestados (Lewis & Wisson, 2004). Neste
sentido, torna-se imperativo realçar a importância de que os estudantes adquiram, durante a
sua formação genérica, conhecimentos, atitudes e skills comunicacionais que lhes permitam
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
53

uma maior orientação para as necessidades dos pacientes e para a promoção da participação
activa destes no seu próprio processo terapêutico (Benbassat & Baumal, 2002).

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A relação de ajuda e a aliança terapêutica no quadro clínico de Anorexia Nervosa: como


pode ser trilhado o caminho para a cura

Vânia Pereira Branco (Aluna do Curso de Especialização em Psicoterapia na Contemporânea


– Clínica de Investigação e Desenvolvimento Psicológico)
vania.r.pereira@gmail.com

Palavras-chave: Anorexia Nervosa, Relação de Ajuda, Psicoterapia, Aliança Terapêutica.

Resumo/Abstract:

O presente estudo tem como objectivo reflectir sobre a relação de ajuda e a aliança
terapêutica estabelecidas no decorrer da psicoterapia dum caso de Anorexia. Através da
metodologia de estudo de caso, num trabalho fenomenológico de compreensão do doente
pela forma como este se relaciona, se dá a conhecer e utiliza o espaço psicoterapêutico, e
integrando esta descrição com a grelha conceptual psicanalítica, enfatizasse a importância do
psicoterapeuta ler a anorexia enquanto sintoma com um valor desenvolvimental, familiar e
individual, de modo a puder existir uma maior afinação afectiva.

As perturbações do comportamento alimentar, de que são exemplos mais comuns a


anorexia e bulimia nervosas, são quadros psicopatológicos de etiologia complexa que se
caracterizam, em termos latos, por uma alteração do propósito normal e adaptativo de certas
actividades ligadas à ingestão alimentar. Estas perturbações são mais frequentes na população
adolescente feminina, no entanto, actualmente, cresce a descrição de casos clínicos na
população pré-púbere e na população adolescente masculina.
Nos últimos anos têm-se multiplicado as investigações e as teorias explicativas que
incidem directamente sobre os distúrbios do comportamento alimentar. Tal deve-se, a meu
ver, à complexidade biopsicossocial desta doença, que atinge várias áreas do funcionamento
do ser humano e que, como tal, é melhor compreendida quando são reunidos os esforços de
várias áreas científicas. A Anorexia Nervosa “é uma doença no mais profundo sentido da
palavra, porque nos remete para a unidade psicofisiológica do ser humano, impedindo o
discurso dualístico corpo/emoções, mente/espírito, self/pensamento, dado que a essência do
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
58

distúrbio está precisamente na descontinuidade dessa unidade indissolúvel, que é condição


para a saúde e para a vida, pelo menos a humana” (Bouça, 2000, pp. 153).
A literatura proveniente da Psicologia, que aborda as perturbações do comportamento
alimentar, tem modificado consideravelmente o seu foco ao longo dos tempos. Os primeiros
estudos, de orientação psicanalítica, revelaram-se difusos e pouco relevantes, de um ponto de
vista explicativo e compreensivo. Estes estudos baseavam-se em casos clínicos e, por isso,
forneciam uma visão psicopatológica estritamente individual. Só nos anos setenta surgiram
autores que, de um modo mais sistemático, aprofundaram e desenvolveram teorias fulcrais
para a sua compreensão, como que a Anorexia Nervosa é melhor compreendida em termos do
desenvolvimento da personalidade no contexto individual e familiar, e para o desencadear de
questões que têm alimentado a investigação científica até hoje.
Após a década de setenta as investigações tomaram várias direcções, constituindo as
que possuíam uma perspectiva da teoria sistémica familiar as mais relevantes, visto que esta
teoria, a partir da sua compreensão conceptual, desenvolveu uma intervenção com um alto
grau de eficácia (Relvas, 2000). Actualmente, e devido à importância do contexto familiar no
despoletar e na manutenção desta doença, muitos autores defendem uma intervenção em que
se combina um tratamento psicoterapêutico individual com terapia familiar, visto que este
duplo procedimento aumenta as probabilidades de sucesso.
A minha apresentação pretende aprofundar a primeira forma de psicoterapia, a
individual, na Anorexia Nervosa. Para tal, tenho como ponto de partida a fenomenologia
presente no caso clínico de uma adolescente com 16 anos, em acompanhamento
psicoterapêutico individual durante dois anos, que nos ajuda a reflectir não só sobre este
quadro psicopatológico especifico, mas também levanta questões pertinentes sobre a
condução do processo psicoterapêutico, o papel, a atitude e a postura adoptadas pelo
psicoterapeuta e a centralidade da qualidade da aliança terapêutica no caminho para a cura.
Recuemos, então, até ao Verão de 2004.

1. Um caso clínico de Anorexia Nervosa

A Cláudia tem 13 anos de idade e vem à consulta de Psicologia encaminhada pela


médica de família. O problema prende-se, segundo a médica, com um peso abaixo do que
seria desejável, uma amenorreia presente há cerca de três meses e uma restrição alimentar
excessiva.
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
59

Na primeira consulta, a Cláudia entra no gabinete com a sua mãe, e a primeira


impressão que causam é a de contraste. A Cláudia é uma menina fisicamente franzina, vestida
com umas calças e um top colorido de Verão, que deixa a descoberto os seus braços
demasiado delgados. A mãe é uma mulher com um aspecto envelhecido, com excesso de
peso e vestida toda de negro, o que lhe confere um ar soturno.
A forma como cada uma aborda o problema que as levou a pedir ajuda também
evidencia dois modos diferentes de vivenciar a realidade. Enquanto que a Cláudia apenas
foca o desagrado que sente pelo seu corpo e a necessidade de fazer dieta para se sentir bem
consigo própria, a mãe relata dificuldades familiares presentes em casa desde sempre,
relacionadas com um alcoolismo crónico do pai. A mãe sente que o ambiente familiar
desfavorável poderá estar relacionado com o estado actual da Cláudia e relata que é muito
difícil para a família, e sobretudo para ela, pactuar com a restrição alimentar da filha. A mãe
acha que o que começou por ser uma simples dieta passou a ser uma obsessão e que, segundo
a médica de família, a filha já se encontra fisicamente doente derivado ao excesso de
alimentos que deixou de comer (refere-se à amenorreia). Por isso, procuraram a ajuda de um
psicólogo, visto que a Cláudia necessita urgentemente de ser chamada à razão, para que a sua
situação não piore, e nem a mãe, nem a médica de família conseguiram que ela acatasse os
seus conselhos.
Desta primeira consulta ressaltou informação suficiente para perceber que se trata de
uma adolescente com uma perturbação grave do comportamento alimentar, que preenche
todos os critérios de Anorexia Nervosa, do tipo restritivo, segundo o DSM-IV. O seu
discurso, centrado exclusivamente no sintoma, ou seja, no que é que engorda e no que ajuda a
emagrecer, faz transparecer a forte dor psíquica de uma adolescente que, para não pensar esta
dor, povoa a sua mente de alimentos, calorias e corpos perfeitos. Para além disso, o seu
desprendimento da realidade, percebido pelo discurso alienado e pelo pensar ruminante, leva
a terapeuta a sentir o perigo da morte e a alertar a Cláudia para o facto de, se continuar a
restringir em demasiado os alimentos, poderá ficar debilitada ao ponto de morrer.

1.1. O encontro entre paciente e psicoterapeuta

Na primeira sessão é estabelecido o contrato terapêutico que orienta a estrutura da


psicoterapia, relativamente à sua frequência e à duração da sessões. A Cláudia frequenta uma
sessão de cinquenta minutos semanal, onde, nos primeiros dois meses aproveita para
esclarecer dúvidas acerca do valor nutricional dos alimentos e da melhor composição para
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
60

uma dieta. Apesar da terapeuta explicar várias vezes que as sessões de psicoterapia serviam
para falar sobre coisas que a perturbavam de alguma forma, e que apesar de entender que
aquela era uma preocupação genuína, em termos de conhecimento técnico eu não era a
pessoa mais adequada para lhe esclarecer aquelas dúvidas. Mesmo assim, todas as semanas a
Cláudia trazia alguma coisa que a perturbava, mas sobre a forma do sintoma, e durante
cinquenta minutos questionava-me sobre a marca de iogurtes que menos engordava ou
quantas calorias se perdia a estudar ou a dormir.
Com o desenrolar das sessões, tornou-se cansativo para a relação terapêutica, tentar
direccionar o discurso da Cláudia para outras temáticas (por exemplo, família, escola,
amigos). Por isso, foi tomada outra atitude pela terapeuta, que começou a pegar nas dúvidas
trazidas pela paciente, sempre relacionadas com dietas e o valor nutricional dos alimentos, e,
em conjunto com a paciente, procurou encontrar respostas para estas questões, por exemplo,
através de folhetos sobre alimentos e alimentação que cada uma trazia, visto que senti que se
conseguisse apaziguar a ansiedade da Cláudia relativamente àquela temática, provavelmente
conseguiria encetar uma relação de confiança com ela, e, então, passar para outras temáticas.
Ao permitir à Cláudia falar do sintoma, e ao lhe dar respostas que iam de acordo com
as suas preocupações e dúvidas, consegui finalmente estabelecer com ela uma relação
empática e de escuta activa, na qual, o meu papel, passava, sobretudo, por uma devolução
tranquilizante e tranquilizadora das suas angústias. Quase simultaneamente, a Cláudia
começou a permitir-me fazer algumas ligações entre o sintoma e o mundo que a rodeava,
concordando com o que eu dizia e aprofundando algumas questões relacionadas com a sua
vida. Três meses depois de nos termos conhecido eu senti que, as sessões, já não se cingiam a
um simples encontro entre paciente e psicoterapeuta: iniciávamos uma relação. Entretanto o
Verão já se tinha ido embora, estávamos no Outono, iniciava a escola e a Cláudia completava
14 anos.

1.2. O estabelecimento da relação

Ao perceber que a terapeuta conseguia compreender o seu sintoma, pensá-lo e


significá-lo, a Cláudia baixou as suas defesas, começou a falar do seu dia a dia e de uma
tristeza e de um vazio que a preenchia a maior parte do tempo. Entretanto, o seu peso estava
num limiar perigoso, a Cláudia não seguia o plano alimentar diário elaborado em conjunto
pela médica de família, pela terapeuta e por ela, e quando o seguia levantava-se às sete da
manhã para correr durante uma hora seguida. Conjuntamente com ela e com a mãe foi
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
61

decidido um encaminhamento para a Consulta de Distúrbios do Comportamento Alimentar


do Hospital de Santa Maria, de modo a que a Cláudia pudesse beneficiar de um apoio
psiquiátrico. Daqui resultou uma terapêutica à base de ansiolíticos e antidepressivos, um
plano alimentar diário e um atestado para não praticar exercício físico na escola.
Apesar de ter concordado com este encaminhamento, sempre que tinha consulta em
Lisboa, a Cláudia “odiava”. Fazia questão de me dizer que eu era a única que a compreendia
e que o psiquiatra era um “parvo”(sic), que não percebia nada daquilo que ela dizia e que
constantemente lhe perguntava a mesma coisa. “Parece que não se lembra de nada daquilo
que eu lhe conto”, dizia-me. Esta raiva manifesta relativamente ao psiquiatra fazia-me
perguntar o que é que esta relação, simbolicamente, representava, para incomodar tanto a
Cláudia. Ao inicio pensei que tivesse a ver com o facto do psiquiatra ser homem, e que isso
fazia com que a Cláudia pensasse que ele nunca a poderia compreender, visto que as suas
relações mais significativas, e de maior intimidade, eram encetadas exclusivamente com
mulheres. Mais tarde, quando comecei a perceber algumas nuances da história de vida desta
adolescente, compreendi que tinha a ver com o género do psiquiatra, mas principalmente com
o facto de eu ter promovido uma relação triangular, no seio da qual a Cláudia não se sabia
movimentar, visto que sempre estivera habituada a uma relação simbiótica de dependência
com a mãe. Fazia, então, questão de me dizer, por outras palavras, que tinha uma relação com
o psiquiatra, mas nada comparada com a que tinha comigo, visto que na relação que possuía
com a mãe esta fazia questão de colocar a filha como a sua confidente e a sua melhor amiga,
ou seja, como uma extensão de si mesma, sem espaço para se autonomizar, para gostar e
apreciar outros objectos que não o materno, sem que isso constituísse uma ameaça ao laço
materno-filial.
Nas sessões de psicoterapia, o humor da Cláudia foi-se alterando (ou melhor, revelando-
se, quando a relação terapêutica permitiu passar-se para além das calorias) e uma tristeza
profunda foi progressivamente mostrando-se. Falava do mundo que a rodeava de um modo
apático, como se nada a entusiasmasse ou motivasse. “Se pudesse – dizia-me – não saia da
cama o dia inteiro e ficava lá quietinha.” Eu ligava esta desmotivação com o medo que a
Cláudia sentia em não ser capaz de lidar com as coisas do dia a dia do modo perfeito como
idealizava na sua mente. Entretanto a Cláudia foi-me contando alguns aspectos da sua
vivência e foi-me mostrando a razão de ser da sua tristeza: uma falha narcísica profunda,
causada, em grande parte, por uma família altamente patológica.
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
62

1.3. O sofrimento silencioso e a busca da perfeição

A Cláudia é a filha mais nova de uma família composta por um pai com problemas de
alcoolismo, uma mãe com sinais e sintomas de depressão e um irmão mais velho do que a
Cláudia dois anos, com uma história escolar marcada por insucessos e reprovações
sucessivas. Apesar do problema da anorexia, a Cláudia é uma boa aluna, como aliás é comum
neste quadro psicopatológico, nunca tendo descido as suas notas e continuando mesmo a ser a
melhor aluna da turma em algumas disciplinas, entre as quais a Matemática. Apesar da sua
desmotivação, não falta a uma aula e encontra alguma capacidade de concentração para
estudar, achando a matéria relativamente fácil de aprender.
A mãe tem tido empregos, mais ou menos, fixos, tendo trabalhado durante vários anos
por turnos. O pai trabalha na área da construção civil, mas não tem um emprego fixo, fazendo
o que vai aparecendo. Existem períodos em que o ordenado da mãe é a única fonte de
rendimento fixo em casa, o que provoca alguma instabilidade, visto que o pai, devido ao seu
problema de álcool, endivida-se nos cafés, excepto quando a mãe da Cláudia lhe dá dinheiro.
Quando o pai trabalha, a única diferença é que a mãe da Cláudia não necessita de lhe dar
dinheiro para ele gastar na bebida, visto que tudo o que ele ganha é investido no vicio.
A mãe da Cláudia tem, segundo esta, “uma história de vida muito triste” (sic). Quando
ainda era nova ficou órfã de mãe e de pai, tendo começado a trabalhar muito cedo para se
sustentar. Aos dezanove anos casou com o pai da Cláudia, e terá sido nesta altura que este
começou a ter problemas relacionados com o álcool e desde aí “a vida dela começou a ser
um inferno” (sic). Quando a Cláudia se refere à mãe utiliza frequentemente o adjectivo
“coitadinha”, o que espelha uma vivência próxima dos desgostos vividos da mãe, como se
durante muitos anos tivesse servido como receptáculo da dor, da angústia e da tristeza
maternas.
Numa sessão muito próxima da época natalícia, a Cláudia vem visivelmente perturbada.
Diz-me que está “fula com uma data de coisas” e eu dou-lhe espaço para, se quiser, me falar
sobre essas coisas e pensarmos as duas sobre elas. A Cláudia explode e, com um volume de
voz elevado, diz-me que sabe que o que eu quero é saber coisas sobre ela, e que sabe que há
meses que eu espero que ela me conte os seus podres e os da família. Eu refiro que de facto
estou ali para perceber o que a faz sofrer, e que, para tal, necessito de conhecer as suas partes
boas, mas também as suas partes más, para que a possa ajudar da melhor forma, mas que
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respeito o tempo da Cláudia e percebo que não é de um dia para o outro que começamos a
confiar em alguém. Ela continua no mesmo tom de voz zangado a falar-me do pai, num
discurso pouco coerente, do qual vou retirando algumas partes e clarificando. Percebo, então,
que o pai tinha levantado do banco o dinheiro que a Cláudia havia recebido como presente de
algumas pessoas próximas, familiares e amigos, e que tinha gasto todo esse dinheiro em
bebida. Esta zanga com o pai é o mote para a Cláudia me contar algumas nuances da relação
entre ambos, e de como o pai, desde muito nova e até ao despoletar da anorexia, a utilizava
como criada para fazer tudo o que queria.
Por serem demasiado extensas as vivências da Cláudia, relacionadas especificamente
com a relação pai-filha, vou resumi-las em dois aspectos fundamentais. Por um lado, nesta
relação ressalta uma desvalorização massiva da pessoa da Cláudia, visto que o pai a chamava
constantemente para satisfazer as suas necessidades, como se duma criada se tratasse:
descalçar os sapatos, calçar os chinelos, estrelar um ovo, pôr a mesa ou preparar alguma
refeição.
Devido ao problema de álcool, o pai e a mãe da Cláudia deixaram de ter uma relação
conjugal quando os filhos ainda eram pequenos. A Cláudia relata que assim que aprendeu a
fazer algumas coisas em casa, relacionado com as lides domésticas, a mãe deixou de
desempenhar esse papel perante o pai, e que era ela que o fazia. Por exemplo, quando o pai
chegava a casa alcoolizado, mesmo que a Cláudia já estivesse deitada a dormir, o pai
acordava-a para ela lhe ir dar o jantar, e a mãe continuava sentada no sofá fingindo não
perceber o que se passava. Depois a Cláudia tinha que se manter acordada, até o pai decidir ir
para a cama, pois era ela que ia abrir-lhe a cama e deitá-lo.
Daqui ressalta outro aspecto que caracteriza esta relação, a erotização do contacto filio-
paternal. A Cláudia relata com alguma repugnância e vergonha este lado da sua relação com
o pai, descrevendo momentos em que a sua intimidade é brutalmente violada, e em que as
formas femininas recentemente adquiridas são ridicularizadas pelo pai perante o grupo
familiar. Quando a Cláudia me relata isto eu refiro-lhe que, muitas vezes, ela deve ter tido
medo que o pai lhe fizesse outro tipo de pedidos ou que abusasse dela sexualmente. Ao inicio
a Cláudia diz-me que não, que o pai seria incapaz de fazer isso, mas logo depois diz-me que
muitas vezes o pai estava alcoolizado e que ela tinha muito nojo, e muito medo que ele
fizesse outra coisa, visto que estava alcoolizado e podia não ter consciência para se controlar.

1.4. A ausência do pai e o retorno ao mundo ideal


VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
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Na Primavera, o pai da Cláudia adoece gravemente, devido a uma cirrose alcoólica , e


num espaço de semanas fica acamado, perdendo progressivamente a consciência, vindo
posteriormente a falecer, cerca de um mês depois. Foi um período muito difícil na
psicoterapia, visto que a morte era esperada, no entanto todos aguardávamos qual seria o dia,
e a Cláudia vivia dias de desespero, pois assistia a um enfraquecimento do pai de dia para dia.
Após o falecimento do pai a situação não melhorou, visto que o movimento que a
Cláudia havia feito anteriormente, ao me contar o que este lhe havia feito ao longo de vários
anos, dissolveu-se, e ela começou a falar de um pai ideal, que em nada correspondia ao pai
real, e que apenas existia no mundo interno da Cláudia. Qualquer movimento que roçasse as
partes más do pai era abruptamente abafado, visto que “coitadinho”(sic) do pai havia
morrido e “das pessoas que não estão cá para se defender não se pode dizer mal”.
O facto dela não estar a dizer bem, nem a dizer mal, mas sim a contar-me a realidade foi
fortemente trabalhado, mas a Cláudia mantinha-se num registo de forte culpabilidade se
dissesse alguma coisa que denegrisse a imagem do pai. O sentimento depressivo agravou-se,
assim como a necessidade de controlar os alimentos. O sintoma começou novamente a ser um
tema recorrente nas sessões da psicoterapia, e a Cláudia abafava assim a sua dor psíquica,
pensando em alimentos, em dietas e em como seria bom para si (e para o seu narcisismo) ter
um corpo perfeito.

1.5. A ausência prolongada da terapeuta e a mudança de registo

A morte do pai da Cláudia fez com que a angústia interna vivenciada por esta se tornasse
mais intensa e, como tal, mais ameaçadora para a sua integridade psíquica. Existiram
momentos em que esta angústia conduziu a uma ideação suicida e a um desejo intenso de
morte. “Só tenho vontade de ir ter com o meu pai. Ele agora ficou sozinho!”(sic).
A vivência deste momento mais destruturado da Cláudia fez com que eu sentisse a
necessidade de reforçar a relação de confiança e de ajuda estabelecida no seio das sessões de
psicoterapia e lhe fornecesse o meu contacto telefónico, para que quando a ideação suicida
estivesse presente ela, primeiro do que tudo, recorresse à minha ajuda.
Se por um lado esta estratégia resultou, e representou uma grande ajuda para que a
Cláudia interiorizasse o sentimento de que tinha um suporte sempre presente (ou seja, que
ganhasse a consciência da constância da terapeuta enquanto objecto), por outro lado, colocou-
me algumas dúvidas no que concerne o facto de ser uma forma de promover uma
dependência relacional da paciente para com a terapeuta. Frequentemente, a Cláudia ligava-
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
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me só para ouvir a minha voz, porque independentemente do que eu poderia falar, a minha
voz, dizia, acalmava-a. Foi uma época do processo psicoterapêutico em que a Cláudia
evidenciou falhas desenvolvimentais muito precoces e em que houve uma grande exigência
para com a terapeuta, em termos de presença, com o fim de não deixar a Cláudia se
desintegrar psiquicamente.
Por este motivo, a ausência da terapeuta por um período de três semanas começou a ser
trabalhado nas sessões com bastante antecedência, visto que havia o perigo da Cláudia
vivenciar a minha ausência como abandono e desamparo. Foram pensadas estratégias e
pessoas de referência a quem a Cláudia poderia recorrer quando se sentisse mais angustiada,
assim como foi falado que a ausência física não é sinónimo de esquecimento, e que a Cláudia
continuaria a ter existência psicológica no corpo mental da terapeuta.
O período de ausência da terapeuta terminou e, progressivamente, ao longo das sessões
seguintes, a Cláudia foi saindo do registo de idealização do objecto perdido e começou a
questionar as competências parentais, não só paternas, mas também maternas. Isto porque
havia o mito familiar que a família só não era melhor por causa do problema do pai. Contudo,
o pai faleceu e as dificuldades permaneceram na relação pouco satisfatória entre mãe e filha,
e, igualmente, na gestão que a mãe realiza entre os cuidados prestados aos dois filhos, a
Cláudia e o irmão.
A Cláudia começa, então, a contar-me como o irmão sempre tinha tido tudo o que pedia
e ela não. Em como, por exemplo, no Natal o pai comprava uma prenda para o irmão e dizia à
Cláudia que não havia dinheiro para comprar uma para ela e, então, a mãe tinha que enviar
dinheiro para uma tia que mora longe, para esta enviar uma prenda para a Cláudia e fingir que
tinha sido ela a oferecer, só porque a mãe achava que não valia a pena discutir com o pai por
causa disso. Ou em como a mãe, mesmo após a morte do pai, tirava o dinheiro da semanada
da carteira da Cláudia para dar ao irmão, porque ao meio da semana este já havia gasto o
dinheiro todo que a mãe lhe tinha dado, e a mãe não tinha dinheiro para lhe dar.
A Cláudia relata um tratamento parental muito diferente relativamente aos dois irmãos,
tendo ela, ao longo do seu desenvolvimento, sido frustrada frequentemente, e o irmão, pelo
contrário, constantemente gratificado. A Cláudia acha que isto acontece porque, antes do
irmão nascer a mãe havia estado grávida de uma menina que faleceu no parto. A mãe sofreu
um enorme desgosto e quando o irmão nasceu, segundo a Cláudia, ela sempre teve uma
atitude de o querer agradar ao máximo, para o fazer feliz. Eu acrescento que a mãe, enquanto
uma mulher profundamente deprimida, sempre necessitou de sentir que os filhos gostavam
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
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muito dela e, por isso, sempre teve muita dificuldade em frustrá-los, pois isso implica alguma
raiva momentânea da parte dos filhos, o que a mãe sente como deixar de amar. E para a
integridade e sobrevivência psíquicas desta mãe especifica é importante sentir que é amada
pelos filhos. Mais tarde no processo psicoterapêutico, percebo que este acontecimento
familiar, da morte do primeiro filho, organizou um importante conflito na vida fantasmática
desta paciente, que frequentemente me dizia que “gostava de nascer outra vez”. Eu
interpretei durante algum tempo este aspecto como o querer refazer o vinculo emocional com
as figuras mais significativas, mas depois percebi a verdadeira profundidade deste desejo: a
Cláudia imaginava que matando esta filha, a qual ela tinha sido até agora, e à qual se exigia
perfeição e uma atitude de reparação, nasceria ela novamente, mas agora como uma filha
desejada e gratificada, e quiçá rapaz, tal como tinha acontecido com o seu irmão.
Presentemente, e passado dois anos, a Cláudia continua o seu processo psicoterapêutico
individual com uma frequência semanal. Para além disso, está a ser acompanhada
individualmente em psiquiatria e em endocrinologia no Hospital de Santa Maria, e a
frequentar sessões de terapia familiar com a mãe e o irmão no mesmo local. Encontra-se
menstruada há cerca de um ano e tem mantido o peso, apesar de continuar bastante rígida na
sua alimentação, ingerido apenas os alimentos que constam no seu plano alimentar diário
passado pelo psiquiatra. Começou há relativamente pouco tempo a fazer as primeiras saídas
com amigas, de dia e à noite, apesar de se sentir sempre muito ansiosa relativamente ao seu
desempenho e ao que poderá encontrar nessas saídas, que esteja fora do seu controlo e seja
potencialmente ameaçador. Começa a surgir a dificuldade em gerir os limites da distância e
da proximidade nas relações com os pares, dificuldade essa produto do engalfinhamento
relacional, simbiótico, entre mãe e filha.
Actualmente, é a temática da relação filio-materna que mais surge nas sessões de
psicoterapia. A forma como a mãe utiliza a Cláudia como extensão narcísica de si mesma,
servindo-se da filha para reparar as suas próprias feridas, numa relação de simetria e,
simultaneamente, boicota todas as tentativas de autonomia encetadas por esta, tentando que a
filha permanece num lugar assimétrico, começa a ser tornada consciente. Começa também a
evidenciar-se a presença duma vinculação ambivalente, construída no seio da relação com a
figura materna, em que a atitude paradoxal e a resposta emocional inconsistente desta, não
permitiram à Cláudia a internalização duma visão segura acerca de si mesma, dos outros e do
mundo, mas também no seio da relação com a figura paterna, que de manhã era um anjo,
porque acordava bem disposto e não alcoolizado, e à noite um diabo.
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
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2. O espaço psicoterapêutico, o desenvolvimento da relação e a reparação


interna

Após a descrição deste caso clínico, gostaria de aprofundar três aspectos que ressaltam e
me parecem fundamentais, não só para uma melhor compreensão daquilo que anteriormente
expus, mas também para ir ao encontro do objectivo geral desta comunicação: reflectir sobre
o papel da psicoterapia individual na Anorexia Nervosa. Esses aspectos são: o percurso
desenvolvimental e a estrutura psíquica que estão por detrás da patologia no caso clínico da
Cláudia, a dinâmica interna geralmente associada à Anorexia Nervosa, e o que o espaço
psicoterapêutico pode oferecer de diferente de forma a se puder alcançar a reparação interna
do paciente.
As perturbações do comportamento alimentar estão directamente relacionadas com o
período desenvolvimental da adolescência, no qual ocorre o pico da sua incidência. A
puberdade constitui um período em que as alterações corporais ocorrem mais rapidamente do
que em qualquer outro período da vida, à excepção do tempo passado no útero, não sendo
então de admirar “que o corpo desempenhe na adolescência um papel central, tanto no registo
das interacções concretas com o ambiente como no registo da actividade fantasmática”
(Marcelli & Braconnier, 2005, pp.149). Vários autores de diversas correntes psicológicas
referem que o corpo, devido ao “barulho” que faz quando adolesce, constitui um dos pontos
possíveis de cristalização de uma angústia sempre disposta a reaparecer.
Constituindo o desenvolvimento humano um percurso com tarefas próprias de cada
idade, em que a vivência de um certo período depende da forma como os períodos anteriores
foram elaborados, podemos pensar que existem certas tarefas fulcrais que deverão estar
resolvidas quando a entrada na puberdade.
Na altura da adolescência, os conflitos antigos, especialmente os da infância e os das
lutas edipianas, são re-organizados, agora no contexto da genitalidade, conflitos esses que
testam a qualidade da contenção e internalização iniciais (Waddell, 2003). Deste modo,
qualquer distúrbio que surja na adolescência é sentido como manuseável ou não, como
possível de ser pensado ou não, conforme a qualidade da contenção original dos sentimentos
e impulsos infantis, do grau de estabilidade alcançado durante os anos do período de latência
e das pressões internas e externas que o jovem tiver que enfrentar.
Extrapolando estes conceitos para o caso clínico da Cláudia, apresentado anteriormente,
podemos pensar que com a entrada desta jovem na puberdade foram reactivados alguns
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
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conflitos anteriores, que devido ao carácter patológico das relações intrafamiliares, não foram
elaborados na altura devida. Estes conflitos prendem-se com aspectos muito precoces, de
falta de significação materna das angústias sentidas pela Cláudia enquanto bebé, e a sua
devolução sobre uma forma mais tranquilizadora (recorrendo a um conceito de Bion podemos
afirmar que a mãe não cumpriu a sua função na relação de continente-conteúdo), e de um
amor materno para com a filha como uma posse ou um prolongamento de si mesma, e não
como um ser separado e diferente, e com aspectos edipianos, de uma não triangulação da
relação simbiótica e dependente materno-filial e de uma relação paterno-filial
maioritariamente desnarcisante, ou seja, desvalorizante em termos da auto-estima e do
narcisismo da Cláudia.
Este tipo de constelação familiar organizou dois conflitos muito fortes: um em torno da
autonomia e outro em torno do narcisismo, dois pólos fundamentais na vivência e elaboração
do período da adolescência.
Em termos da autonomia, percebemos que a Cláudia é uma adolescente muito
dependente da mãe e que no processo psicoterapêutico transfere esta dependência para a
terapeuta. Em termos de relação materno-filial evidencia-se, sobretudo, o mito de que só
poderá haver união e amor se a filha se mantiver idêntica e unida à mãe, sem vontade própria
e diferente. A adolescência coloca-se, deste modo, como um obstáculo a anular, o que
acontece através da anulação das formas púberes do corpo com a anorexia.
Os sentimentos depressivos da Cláudia são o sintoma desta relação materno-filial sem
espaço para a existência da segunda enquanto objecto diferente, mas mesmo assim amado.
Coimbra de Matos (2001) refere, a este propósito, que o drama do paciente depressivo
“resulta, em grande parte, de ter sido amado de um modo narcísico: a mãe amou-o como
uma parte – que foi (enquanto feto) – do seu próprio corpo. Ama-o como uma posse ou um
prolongamento de si mesma, não como um ser separado e diferente.” Como refere o mesmo
autor, neste tipo de relação reina o lema “Gosto porque é meu e não porque é ele”, ou seja, o
sujeito investidor está em primeiro plano, é o mais importante, coloca-se a si e ao objecto
numa posição narcísica (que se contrapõe à posição objectal, em que o objecto é o mais
importante). “Na catexia narcísica do objecto, este só é reconhecido, apreciado, admirado e
desejado, assim como aceite e respeitado, enquanto é sentido como idêntico e unido ao
sujeito, sem vontade própria nem diferente. Por isso, desde muito cedo é abandonado
afectivamente, em maior ou menor grau: desde que, e na medida em que, mostra o seu
querer, a sua personalidade própria (...) – por altura do primeiro «não» ou aquando da
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
69

afirmação genital infantil; ainda, apenas na adolescência.” (Coimbra de Matos, 2001,


pp.499)
Para além disso, a mãe da Cláudia sempre se colocou no papel de mulher fragilizada,
mal amada e sem sorte na vida, sem “energia” psíquica para aguentar a diferenciação da filha,
fazendo sentir a esta que para sobreviver necessita de manter com ela uma relação de amor
infantil. Esta postura e este pedido acarretam consequências, sobretudo ao nível da
interiorização objectal realizada pela filha, que sente que não pode consciencializar as partes
más daquele objecto – não pode haver verdadeira ambivalência, há sim divalência: “o objecto
é total, mas bifacial: uma das faces é visível, a outra fica na sombra, ou por detrás; contudo,
o sujeito sabe que ela existe. À distância o objecto é idealizado (a face negra é esquecida,
recalcada ou negada); na permanência da proximidade, a face má aparece, a realidade
impõem-se – e o conflito agressivo, sadomasoquista aparece.” (Coimbra de Matos, 2001,
pp.498). Deste jogo projectivo-introjectivo, em torno do qual se organiza o processo
depressivo, surge a projecção da idealidade e a introjecção nuclear da malignidade, ou seja,
decorre a desculpabilização do objecto e a inculpação do próprio, com inflexão da
agressividade (Coimbra de Matos, 2001).
A Cláudia demonstra este jogo de projecção da idealidade e de introjecção da
malignidade quando fantasia que todos os outros têm uma vida como aparece nas telenovelas
ou quando acha que só vai ser feliz quando atingir o corpo perfeito, ideal portanto. Mas este
objectivo nunca pode ser atingido, porque o sentimento que tem acerca de si própria, não
apenas acerca do seu corpo, mas sobretudo acerca das suas qualidades enquanto objecto
digno de ser amado, é um sentimento desnarcisante e culpabilizante, de baixa auto-estima,
mas igualmente de perda da esperança de recuperar o afecto perdido.
Em termos do narcisismo, ou seja, em termos da libido que tem como objectivo a
promoção do próprio (Coimbra de Matos, 2001), a Cláudia apresenta uma dependência do
olhar do outro. Ou seja, em vez de já ter desenvolvido um narcisismo autónomo ou autárcico,
com um locus regulador interno, em que é o próprio sujeito a executar comportamentos de
promoção e manutenção da auto-imagem e auto-estima, a Cláudia apresenta ainda um
narcisismo maioritariamente regulado pelo exterior, um narcisismo dependente, com um
locus de regulação externa. Ao longo do seu desenvolvimento, o papel de espelho foi sendo
representado pela sua mãe, mas chegada a altura da adolescência o olhar dos outros começou
a ter uma maior importância. O ideal de um corpo perfeito é também o ideal de ser aceite e
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
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amada incondicionalmente pelos pares, numa tentativa de eliminar as partes más que podem
danificar a relação (pois assim foi aprendido na relação com a mãe).
Mas o corpo perfeito, idealizado pela Cláudia, é também um corpo assexuado, pois a
definição de uma identidade sexual, num desenvolvimento em que os pilares relacionados
com a identificação de género, não foram cimentados, é uma tarefa impossível de realizar. A
identidade sexuada, no desenvolvimento normal, é vivida com angústia na adolescência,
devido à activação do conflito edipiano (Golse, 2001), tanto mais no caso da Cláudia em que
o pai heterossexual manteve com ela uma relação erotizada e desnarcisante. A anulação das
formas púberes do corpo é, então, também uma defesa contra o perigo da relação paterno-
filial passar para um plano sexual.
Temos, assim, a Anorexia Nervosa como sintoma de conflitos não resolvidos ao longo
do desenvolvimento do psiquismo. Ou seja, devido à ausência de condições no espaço
relacional, isto é, no contexto das relações próximas com outros significativos, podemos
afirmar que, neste caso em particular, a doente anoréctica foi incapaz de resolver de uma
forma sadia tarefas essenciais para o desenvolvimento de um sentimento de si coeso,
diferenciado, seguro do amor do objecto e seguro da sua própria capacidade de amar, isto é,
da sua capacidade de estabelecer com outros significativos vínculos afectivos.
Se olharmos a origem da palavra anorexia, com raízes gregas, observamos que é
composta por um prefixo de negação e por um verbo que significa tocar, oferecer algo,
inclinar-se para algo, desejar alguém (Baravalle, Jorge & Vaccarezza, 1993). Neste sentido,
são anorécticas aquelas pessoas que não desejam, que não se inclinam, não só em termos
nutricionais, mas também, e sobretudo, em termos pulsionais. Ou seja, a anorexia é um
estado em que as pulsões são dirigidas ao próprio corpo, sendo várias as interpretações
teóricas sobre porque tal acontece.
No caso clínico da Cláudia, penso que a angústia centrada no corpo físico tem a ver,
inicialmente, com a relação erotizada mantida pelo pai e com a atitude de ridicularização que
este teve quando as suas formas femininas, próprias de um corpo púbere, começaram a
delinear-se. Ou seja, a angústia cristalizou-se no corpo imperfeito, distante do ideal (como
todo o corpo humano), acreditando a Cláudia que se fosse detentora deste corpo ideal o pai a
reconheceria genuinamente, ou seja, como uma pessoa digna de ser amada. Apesar de
inicialmente a sua angústia estar assim concebida, actualmente, o corpo imperfeito não é a
temática central, e a anorexia serve outras funções: a de manter o controlo sobre si mesma, ou
seja, pelo menos na área da alimentação, a Cláudia não se deixa invadir pela mãe,
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
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conservando assim um espaço próprio, fechado a prováveis invasões. A anorexia, serve


então, a função de autonomia perante uma figura materna invasiva, com pouca
disponibilidade para pensar a filha como objecto e existe, da parte da Cláudia, um
deslocamento para os alimentos da angústia que sente face à figura materna: a de ser invadida
e ser envenenada (nas suas palavras, “Quando como nunca sei se o que vou comer me vai
fazer bem ou mal. Se vou morrer envenenada.”), sentimento plausível se olharmos a
toxicidade materna presente ao longo de tantos anos.
Resumidamente, para a presente comunicação, quando pensamos o quadro clínico da
Anorexia Nervosa interessa-nos, essencialmente, três níveis de leitura: a anorexia enquanto
sintoma com um valor desenvolvimental – porque acontece na adolescência –, com um valor
familiar – porque espelha dificuldades comunicacionais e relacionais do grupo familiar –, e
com um valor individual – porque acontece num terreno psicológico especifico, com uma
trajectória individual única, com relações de objecto, concretas e imaginárias, já
internalizadas. Por isso, quando iniciamos um processo psicoterapêutico com uma paciente
anoréctica devemos estar atentos às questões que estes três níveis de leitura levantam: como é
que a personalidade da paciente está estruturada (visto que a anorexia pode surgir como
sintoma em diferentes estruturas psíquicas), o que é que a adolescência, enquanto fase de
desenvolvimento com tarefas especificas, coloca de tão critico para despoletar a patologia e
que tipo de desenvolvimento individual, e de relação de objecto, as figuras familiares
permitem, e permitiram no passado. Sobretudo, é fundamental o psicoterapeuta desvendar a
função do sintoma: o que é que a anorexia permite e permitiu em termos do funcionamento
total do paciente.
Para terminar, algumas considerações sobre qual deve ser a postura do psicoterapeuta
perante este quadro clínico. Sistematizando, podemos referir, em três pontos, que é
importante:
- o psicoterapeuta entrar em afinação afectiva e actividade de rêverie, ou seja, que seja
um psicoterapeuta responsivo, acessível e disponível para pensar o paciente. Mesmo que ao
início se pense o sintoma, o importante é que este último sinta que estamos disponíveis para
pensar o que o perturba. Alguns autores referem que se deve evitar falar de calorias, dietas ou
outros temas semelhantes na psicoterapia, visto que o paciente pode pensar que aquele espaço
serve para trabalhar esses assuntos e não os afectos. Eu penso, e aprendi isso com a Cláudia,
que quando o quadro de anorexia mental é grave, o psicoterapeuta tem que trabalhar o
sintoma, para que possa ser disponibilizado espaço mental para se pensarem outras coisas,
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
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internalizadas e conflituais. Para além disso, dar importância às coisas do corpo é criar uma
linguagem comum com o paciente, que sente que ao estarmos a valorizar a sua parte física,
onde está investida a sua principal energia, estamos a valorizar o seu sofrimento. No entanto,
cabe ao psicoterapeuta fazer ligações com outros aspectos da vivência do paciente, ou seja, ir
mais além do seu discurso e propiciar terreno psicológico para serem trabalhados os afectos.
Utilizando um conceito de Bion, o psicoterapeuta coloca-se com a função de aparelho para
pensar os pensamentos.
- para além disso, é ainda importante o psicoterapeuta ajudar o paciente a deflectir a
agressividade e a não sentir culpa por falar das partes más do objecto divalente, de modo a
que o Eu deixe de ser o depositário da agressividade, e se quebre o ciclo de projecção da
idealidade e introjecção da malignalidade. Esta tarefa é conseguida, sobretudo, através da
postura do psicoterapeuta que percepciona o paciente como uma pessoa diferenciada, como
um ser separado, e, mesmo assim, gostado e valorizado pelas suas qualidades únicas. Este
desejo é expresso frequentemente pela Cláudia no decorrer do processo psicoteraapêutico
quando me diz “eu só queria ser aceite”.
- e, ainda, é vital o psicoterapeuta servir como espelho narcisador, de modo a que deixe
de existir uma dependência do olhar do outro, ou seja, de modo a que o paciente desenvolva
um narcisismo autónomo, que o leve a encetar acções que valorizem a sua própria auto-
estima. Pois o amor próprio constrói-se de dentro para fora, e só podemos gostar do corpo
que temos se apreciarmos, em primeiro lugar, as nossas qualidades enquanto ser relacional. E
só o poderemos fazer se formos amados e carregados narcisicamente. Como refere Coimbra
de Matos (2001), “o próprio é primariamente investido pelo objecto – só assim sabendo
investir-se e aprendendo a investir o outro. A série evolutiva é: ser amado – amar-se a si
mesmo – amar o objecto.” (pp.495)
O que se espera então é que a psicoterapia ofereça uma relação diferente, que atribui
significados às dificuldades do paciente, mas que igualmente transmite a segurança da
disponibilidade e da compreensão, da aceitação das partes boas e das partes más, que não
impõe significados, nem necessidades, mas que estabelece ligações entre as sensações físicas
e as vivências afectivas. Um espaço onde a proximidade e o distanciamento relacionais
possam ser experimentados pelo paciente, permitindo-lhe a vivência de dois processos
básicos do desenvolvimento humano: o da vinculação e o da separação individuação. Isto é, o
espaço da relação terapêutica, sempre entendido, e esperamos nós que sentido, como uma
experiência emocional correctiva.
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
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Referências Bibliográficas:
- Baravalle, G., Jorge, C.H., & Vaccarezza, L.E. (1993). Anorexia: teoria y clínica
psicoanalítica. Barcelona: Paidós.
- Bouça, D. (2000). Anorexia Nervosa, Minha Amiga (2ª ed.). Porto: Âmbar Editora.
- Coimbra de Matos, A. (2001). Narcisismo e Depressão. In A. Coimbra de Matos, A
Depressão. Lisboa: Climepsi Editores.
- Golse, B. (2002). Do corpo ao pensamento. Lisboa: Climepsi Editores.
- Marcelli, D., & Braconnier, A. (2005). Adolescência e Psicopatologia. Lisboa: Climepsi
Editores.
- Relvas, A. P., (2000). Magreza é realeza: terapia familiar e intervenção na Anorexia Mental.
In A. P. Relvas, Por detrás do espelho: da teoria à terapia com a família. Coimbra: Quarteto
Editora.
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
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O Consumo de Bebidas Alcoólicas na População Escolar Juvenil do Concelho de Loulé

Fernando Sousa (Instituto Superior Dom Afonso III)


cardoso_sousa@hotmail.com
Doris Pires (Instituto Superior Dom Afonso III)
d.twice@gmail.com

Resumo/Abstract:
Este estudo foi promovido pelo GAIM (Gabinete Académico de Investigação e
Marketing), no âmbito do programa Rede Social, em parceria com a Câmara Municipal de
Loulé, a Direcção Regional de Educação, o Centro de Saúde de Loulé, a Segurança Social e o
Instituto Dom Afonso III, e teve como finalidade fazer um diagnóstico do consumo de
bebidas alcoólicas na população escolar do concelho de Loulé, do 7º ano até ao 12º ano de
escolaridade, tendo sido definidas como proposições 1 – É possível realizar uma investigação
conclusiva a partir dos dados parcelares recolhidos por estudantes sem experiência de
investigação e; 2 – Existem nichos da população susceptíveis de serem objecto de acções
diferenciadas.
Assim, de modo a determinar em que ponto se encontram os jovens no que respeita ao
consumo de álcool, sessenta e cinco alunos do 3º ano do curso de Psicologia Clínica do
INUAF (no âmbito das disciplinas de Psicologia Organizacional e de Psicologia Social),
inquiriram no total 3345 alunos de todos os estabelecimentos do concelho e efectuaram 70
entrevistas a alunos e entidades ligadas ao consumo de álcool.
Relativamente às proposições desta investigação ficou provado que a investigação no
terreno pode ser realizada, de modo abrangente e completo, com alunos universitários, no
âmbito curricular normal de disciplinas que se unem para um trabalho coordenado de
investigação, no âmbito dos PASC – Projectos Académicos de Serviço à Comunidade.
Relativamente à segunda proposição, ficou patente a associação entre o consumo de álcool e
a ultrapassagem de fases do crescimento coincidentes com determinados anos escolares, no
caso o 9º e o 11º, correspondentes às idades de 14-15 anos e 16-17, respectivamente. Esta
incidência foi também superior em determinadas escolas, em relação às restantes.
Este estudo permitiu-nos redigir um manual que pode ser utilizado como modelo em
investigações futuras, realizar recomendações concretas sobre os nichos de consumo
constatados e obter uma panorâmica geral acerca do consumo de álcool dos jovens do
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
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concelho de Loulé, a partir da qual será possível realizar investigações mais específicas e
diferenciais.

Introdução

Este estudo foi promovido pelo GAIM (Gabinete Académico de Investigação e


Marketing), no âmbito do programa Rede Social, em parceria com a Câmara Municipal de
Loulé, a Direcção Regional de Educação, o Centro de Saúde de Loulé, a Segurança Social e o
Instituto Dom Afonso III, e teve como finalidade fazer um diagnóstico do consumo de
bebidas alcoólicas na população escolar do concelho de Loulé, do 7º ano até ao 12º ano de
escolaridade.
O alcoolismo, tal como os estupefacientes, é uma problemática cada vez mais
abordada em estudos científicos, devendo-se isto ao facto da sociedade contemporânea ser
cada vez mais aberta a debater todo o tipo de temas e a tentar encontrar solução para os
problemas. O alcoolismo sempre existiu mas, no passado, as pessoas que sofriam desta
doença eram em geral discriminadas, ou então eram os próprios alcoólicos que se auto-
excluíam do convívio social, por vergonha ou medo da sociedade e também por incapacidade
de ver o seu mal com clareza.
Apesar de, hoje em dia, ainda haver alguma discriminação e, obviamente, alguma
vergonha de enfrentar os outros, incluindo os próprios familiares existe, todavia, uma série de
instituições e associações especializadas de apoio; associações, na sua grande maioria,
anónimas. Os tratamentos ministrados, para além da medicação, estão associados a terapias
de grupo feitas em sessões, baseando-se no testemunho de cada doente e na partilha de cada
caso, para que todos percebam que não são um caso isolado. É, em geral, no âmbito das
instituições de acolhimento, tratamento e acompanhamento dos alcoólatras que têm surgido
estudos relevantes sobre a problemática do alcoolismo.
Analisámos relatórios de vários desses estudos e, seguidamente, mencionamos alguns
deles. A partir dessa análise, os referidos relatórios serviram-nos de referência, pela
bibliografia citada, na medida em que nos permitiram alargar o âmbito das nossas consultas e
pela reflexão que nos proporcionaram no respeitante, quer aos resultados neles obtidos, quer
a opções metodológicas, nomeadamente a nível da construção do instrumento usado neste
estudo.
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
76

O estudo mais recente por nós consultado intitula-se “Os Jovens e o Álcool na
Sociedade Contemporânea”, da autoria de Luís de Oliveira Nabais. Trata-se da sua
dissertação de Mestrado, publicada pela Universidade Aberta, em 2005. Tem por subtítulo:
“Estudo de um grupo de jovens consumidores excessivos da região de Lisboa”. O objectivo
do autor foi o de “compreender as motivações e implicações do beber excessivo no
adolescente / jovem adulto, com idades compreendidas entre os 16 e os 25 anos (...), [para
neles] identificar os motivos que levam os indivíduos a beber em excesso, qual a função do
álcool na sua dinâmica relacional (consigo próprio e com os outros), como evolui o consumo
de álcool no percurso de vida, que consequências advêm do seu consumo e qual a atitude do
sujeito face aos consumos apresentado” (p. 1).
O estudo evidencia algumas constantes que vêm de encontro ao apurado com o
presente estudo, a saber: a) que o consumo de álcool, entre adolescentes e jovens é um
fenómeno predominantemente de fim-de-semana, em contexto de grupo de amigos e em
diversões nocturnas; b) que as bebidas alcoólicas mais consumidas são a cerveja e as bebidas
destiladas; c) que o número de unidades consumidas por episódio é bastante elevado; d) que o
consumir bebidas alcoólicas constitui um factor de integração e de afirmação no grupo de
pares; e) que o estado de alcoolização é visto como facilitador das relações interpessoais.
Também bastante recente, a obra “Alcoolismo e Toxicodependência – Usos, Abusos e
Dependências”, realizada por Carina Ferreira-Borges & Hilson Cunha Filho, e publicada em
2004. Trata-se de um manual técnico, dirigido essencialmente a profissionais da saúde, e que
versa todos os tipos de toxicodependência. O alcoolismo aparece aqui inserido no contexto
mais global e vasto das toxicodependências. Como manual que é, contém muitos dados
actualizados sobre o tema em questão.
No que ao álcool diz respeito, podem destacar-se neste estudo diversos temas, tais
como: aspectos epidemiológicos e neurobiológicos relacionados com o abuso do álcool (1.ª
parte); problemas associados a esse consumo, nomeadamente a disfunção familiar e social
que antecede ou que se segue ao alcoolismo, bem como os efeitos do alcoolismo feminino
numa eventual gravidez (2.ª parte); evolução da legislação sobre o álcool e suas contradições
(3.ª parte); programas de prevenção do alcoolismo (4.ª parte); e, finalmente, formas de
intervenção, tratamento e reabilitação dos alcoólicos (5.ª parte).
O estudo que tem por título “A Saúde dos Adolescentes Portugueses”, publicado em
2003, que foi levado a cabo durante o biénio 2001-2002, por Margarida G. Matos &
Colaboradores, integrando o “Programa Aventura Social & Saúde”, da rede de investigação
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
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HBSC (Health Behaviour in School-aged Children), patrocinada pela Organização Mundial


de Saúde (OMS), contempla uma parte dedicada ao problema do consumo do álcool. Deste
estudo podemos retirar alguns dados significativos, por comparação com os que a nossa
investigação apurou. A amostra desse estudo foi de 7331 alunos do ensino básico e
secundário (turmas desde o 6.º ano até ao secundário), correspondendo a 2,4% da população
escolar no ano de 2001-02, e distribuídos por cinco regiões do país (Norte, Centro,
Lisboa/Vale do Tejo, Alentejo e Algarve). Nesta amostra apurou-se que 91,5% raramente ou
nunca consumiram cerveja, 96,9% nunca ou raramente consumiram vinho, e 87,7%
raramente ou nunca consumiram bebidas espirituosas.
Estes valores absolutos sofrem depois variações, mas não muito significativas, de
acordo com o género e com a idade, sendo que se pode reter que o consumo de vinho e de
cerveja é o menos usual, enquanto o mais vulgarizado é o consumo de bebidas espirituosas.
Entre os rapazes este consumo é mais comum, especialmente de bebidas espirituosas e
cerveja, e a partir dos 15 anos esse mesmo consumo sofre um aumento significativo (da
ordem dos 7 ou mais pontos percentuais), ao menos uma vez por semana.
Outro dado significativo é o da primeira bebida alcoólica e da embriaguez.
Retenhamos apenas que 17,2% dos adolescentes tomaram a sua primeira bebida alcoólica
com 11 anos, ou menos, e 26,7% fizeram-no depois dos 12 anos, sendo que também neste
ponto a maior incidência vai mais para os rapazes (20,2%), do que para as raparigas (14,4%).
A embriaguez já foi experimentada 1 a 3 vezes por 19,2%, e 4 ou mais vezes por 5,3%, dos
quais a maior percentagem também aqui pertence aos rapazes, sendo que pelo menos 4% dos
adolescentes tiveram a sua primeira embriaguez antes dos 11 anos e 17,3% dos 12 anos em
diante.
Um outro estudo, elaborado em 2003, tinha por objectivo medir a evolução dos
consumos de substâncias lícitas e ilícitas, nos alunos de 16 anos nos diversos países da
Europa. Foi realizado pelo ESPAD (European School, Survey on Alcohol and other Drugs), a
nível Europeu, por proposta do CAN (The Swedish Council on Alcohol and other Drugs) e
com o apoio do Grupo Pompidou do Conselho da Europa. Este estudo realizou-se pela
primeira vez em 1995 e repetiu-se em 1999 e 2003, sendo Portugal um dos países
participantes desde o início. Consistiu na inquirição de amostras, não só representativas dos
alunos de 16 anos, mas também dos outros grupos etários. A dimensão da amostra foi de
cerca de 18000 alunos do 7.º ao 12.º anos, assegurando a representatividade a nível de
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
78

Portugal Continental, para cada ano e grupo de escolaridade, bem como para o grupo etário
dos 13 aos 18 anos.
Salientou-se, neste estudo, o saldo qualitativo que esta decisão implica, já que até
aqui, com excepção do ESPAD (16 anos), os dados que têm sido apresentados nos diferentes
estudos realizados em meio escolar, são representativos ou de grupos de escolaridade (3.º
Ciclo e Ensino Secundário) ou de anos de escolaridade (6.º, 8.º e 10.º anos). Passar-se-á
assim, a poder seguir a evolução ao longo do tempo, das diferentes faixas etárias, de 4 em 4
anos (periodicidade do ESPAD) com pontos de referência a cada 2 anos (já que o INME,
também com periodicidade de 4 anos está desfasado do ESPAD de 2 anos).
Apresentam-se aí os primeiros resultados que permitem uma análise longitudinal,
comparando a dimensão actual dos consumos com a existente em 1999, bem como a primeira
análise transversal, comparando a dimensão dos consumos nos diferentes grupos etários dos
13 aos 18 anos. A análise dos resultados confirma a tendência que vem sendo evidenciada
nos estudos anteriores a este e que se traduz num acréscimo da percentagem de jovens em
idade escolar que já experimentou drogas ou que as consome esporádica ou habitualmente.
Assim, de 1999 para 2003, a percentagem de alunos de 16 anos que já experimentou alguma
droga subiu de 12% para 18%.
Maria Manuela Pereira (2003) elaborou a sua dissertação de Mestrado em
Sociopsicologia da Saúde, intitulada: “Consumo de Álcool na Adolescência e Relações
Parentais”. O objectivo deste estudo foi analisar como se correlaciona o padrão de consumo
de álcool dos adolescentes, o seu locus de controlo e a relação pais-filhos. Este estudo
baseou-se numa amostra de alunos do 12.º ano de duas Escolas Secundárias, sendo a amostra
de 184 alunos (61,4% do género feminino e 38,6% do género masculino) em que as idades
variavam entre os 16 e 22 anos, com uma média de 18 anos.
Tal como refere Pereira (2003), foram utilizados como instrumentos de medida:
“Questionário de Caracterização de Hábitos de Bebida (Duarte 1997)”; “Questionário de
Relações Pais-Filhos, de Bastin e Delrez (1976)”; “Escala de Locus de Controlo, de Rotter
(1966)”. No estudo concluiu-se que o padrão de consumo de álcool nos adolescentes é
elevado e difere quanto ao género masculino, o qual apresenta consumos mais elevados.
Relativamente às relações pais-filhos, verificou-se que:
- Não há diferença significativa entre o grupo dos consumidores ocasionais e o grupo
dos não consumidores, relativamente à percepção da relação pais-filhos.
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
79

- As mães dos adolescentes não consumidores tendem a ser menos apreciativas e mais
tolerantes do que as mães dos consumidores ligeiros.
- Os adolescentes não consumidores tendem a apresentar melhor ambiente familiar
geral, melhor relação com a mãe, sendo a mãe mais tolerante e menos apreciativa do que no
caso dos consumidores moderados ou excessivos.
- Os consumidores ocasionais têm melhor relação com os pais, melhor ambiente
familiar, pais mais tolerantes e mais consistentes do que os adolescentes consumidores
moderados/ excessivos.
- Os consumidores ligeiros evidenciam melhores relações pais/filhos do que os
consumidores moderados/ excessivos.
- A consistência das relações dos pais, de um modo geral, e as atitudes apreciativas
das mães, de um modo particular, têm influência no padrão de consumo.
Concluiu-se que os adolescentes que percepcionam os pais como mais tolerantes
referem melhor ambiente familiar e pais mais consistentes, e têm tendência a consumir menos
álcool e a desculparem-se menos com causas externas a si próprios para justificarem
comportamentos desviantes.
A Faculdade de Motricidade Humana (Universidade Técnica de Lisboa) efectuou um
estudo no âmbito de um Programa de Educação Para Todos - PEPT Saúde, em parceria com
o Gabinete de Prevenção da Toxicodependência da Câmara Municipal de Lisboa. Esse estudo
tem como designação: “Os Jovens Portugueses e o Álcool”, tendo sido a Equipa do Aventura
Social e Saúde a desenvolver todo este estudo, nomeadamente Margarida Gaspar de Matos,
Susana Fonseca Carvalhosa, Carla Reis e Sónia Dias (2002).
O estudo visou a avaliação do comportamento dos jovens em idade escolar, isto é,
tende para a análise e compreensão dos estilos de vida dos jovens e dos hábitos de vida
ligados à saúde ou ao risco. Foi utilizado no estudo um questionário “Comportamento e
Saúde em Jovens em Idade Escolar”, que foi adoptado a partir do estudo Europeu HBSC em
1998. Foram incluídas algumas questões, tais como, “expectativas para o futuro, história de
consumos (consumo de álcool, tabaco e drogas), prática de exercício físico e tempos livres,
hábitos alimentares e de higiene, bem-estar e apoio familiar, ambiente na escola (amigos,
professores e violência), imagem pessoal, queixas de sintomas psicológicos e somáticos e
crenças e atitudes face ao VIH/ SIDA”.
O estudo contou com uma amostra de 6903 jovens, os quais frequentavam o 6.º, 8.º e
10.º anos de 191 escolas nacionais de ensino regular (por todo o do país). As 191 escolas
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
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foram sorteadas de uma lista nacional e os anos lectivos também foram seleccionados.
Concluiu-se, entre outras coisas, que: “os rapazes e os mais velhos não só mais
frequentemente já experimentaram álcool, como são mais consumidores regulares e
abusivos”; “os jovens que já experimentaram, bem como os consumidores abusivos de álcool,
apresentam um perfil de afastamento em relação à família, à escola e ao convívio com os
colegas em meio escolar. Apresentam um maior envolvimento com experimentação e
consumo de tabaco e outras drogas ilícitas e envolvimento em lutas e situações de violência
na escola”; “os jovens que já experimentaram álcool, bem como os consumidores regulares e
abusivos, afirmam-se menos felizes e referem com mais frequência sintomas de mal-estar
físico e psicológico”; constatou-se também que “o perfil dos jovens que experimentaram ou
são consumidores regulares ou abusivos de álcool, aparecendo com grandes semelhanças aos
perfis dos jovens consumidores de tabaco”.
“Adolescentes e Álcool - Estudo do Comportamento de Consumo de Álcool na
Adolescência”. Esta designação foi utilizada como rosto de um estudo efectuado por Isabel
Trindade e Rita Correia (1999). O presente estudo foi efectuado em parceria com o Centro de
Saúde da Parede e o ISPA (Instituto Superior de Psicologia Aplicada), o qual serviu de
impulsionador da primeira fase de um vasto trabalho que decorreu no Centro de Saúde da
Parede, cujo fim passava pela intervenção e prevenção.
Este estudo teve os seguintes objectivos gerais: efectuar uma avaliação da situação
sobre comportamentos de consumo de álcool dos alunos dos 10.º e 11.º anos de escolaridade,
numa escola da zona, e estudar, em simultâneo, a influência das variáveis psicológicas: a
ansiedade, a vulnerabilidade ao stress, a baixa auto-estima e as expectativas face aos efeitos
do álcool, e também o estudo da variável consumo.
A amostra foi constituída por 110 estudantes que frequentavam os 10.º e 11.º anos e
que tinham idades compreendidas entre os 14 e os 19 anos. Os instrumentos de avaliação que
foram utilizados foram: “Questionário de Consumo de Álcool”; “Escala de Auto-Estima de
Rosenberg (1965)”; “Inventário de Ansiedade Traço – Estado, de Spielberger”; “Questionário
de Expectativas face aos efeitos do álcool (Trindade e Correia, 1999).
Algumas das conclusões que resultaram deste estudo foram: ”A população,
maioritariamente, não consome álcool”; “o uso de álcool varia significativamente consoante o
sexo dos sujeitos, aparecendo o consumo como um comportamento essencialmente
masculino”; “tanto a auto-estima como a ansiedade não se relacionam significativamente com
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
81

o consumo de álcool nos adolescentes da amostra”; “não há diferenças na maioria dos itens
da escala de expectativas entre os dois grupos de consumidores de álcool”.
No entanto, verificou-se uma relação significativa entre consumo de álcool e algumas
expectativas face aos efeitos do álcool, nomeadamente a expectativa de ser bem aceite pelos
outros; de conseguir falar com maior facilidade; de se sentir mais independente; de poder
faltar às aulas e de os pais se zangarem caso bebam. Segundo o estudo, os resultados obtidos
apontam para a necessidade de promover o desenvolvimento psicológico através do reforço
da autonomia, independência e competências sociais.
O problema de investigação prendeu-se com a dúvida dupla de não se saber se é
possível conseguir um trabalho harmónico a partir da metodologia escolhida para realizar a
investigação (coordenação de grupos de estudantes em partes complementares), assim como
de retirar dos dados recolhidos conclusões susceptíveis de gerar recomendações específicas
para a população estudada. Assim, as proposições definidas foram as respostas afirmativas
aos problemas expressos.
Método

Sujeitos
A população-alvo foi constituída por 4761 sujeitos, distribuídos por 13 escolas, dos
quais foram questionados 3345 (alunos do ensino básico e secundário do Concelho de Loulé),
tanto do sexo masculino (1614 indivíduos), como do sexo feminino (1731 indivíduos).
Os jovens tinham idades compreendidas entre os 11 e os 25 anos, sendo que a maioria
tinha entre 13 e 17 anos. A Figura 1 ilustra precisamente a distribuição dos indivíduos por
idades.

600
564
542
525
516

500

434

400

326

Nº de Alunos 300
250

200

101
100

42
23
6 9 3 2 2
0
11 Anos 12 Anos 13 Anos 14 Anos 15 Anos 16 Anos 17 Anos 18 Anos 19 Anos 20 Anos 21 Anos 22 Anos 23 Anos 24 Anos 25 Anos

Idade

Figura 1. Frequência absoluta dos indivíduos por idade.


VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
82

A distribuição dos indivíduos por nacionalidade revelou que a grande maioria dos
alunos eram de nacionalidade portuguesa, havendo porém uma incidência expressiva de
alunos provenientes de países da Europa Ocidental, maioritariamente filhos de famílias
inglesas, radicadas no nosso país. Esta distribuição está ilustrada na Figura 2.

3.000

2.500
Frequência absoluta

2.000

1.500 2.857

1.000

500

76 200 95 117
0
Am

Af
Po

Eu

Eu

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pa

pa

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ga

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l

do

O
ci
Le

de
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nt
e

al
e
As
ia

Figura 2.
Frequência absoluta da nacionalidade dos inquiridos.

A distribuição dos sujeitos da amostra por Escolas ficou assim organizada: 775 da
E.S. de Loulé; 261 alunos da E. Profissional Cândido Guerreiro (de ambos os pólos: Loulé e
Alte); 296 alunos da E.B. n.º 13 de Almancil; 240 alunos da E.B. São Pedro do Mar; 333
alunos da E.B. Eng. Duarte Pacheco; 328 alunos da E.B. Padre Cabanita; 133 alunos da E.B.
Professor C. Silva; 22 alunos da E.B. de Salir; 590 alunos da E.S. Laura Aires; 242 alunos da
E.S. D. Dinis; 118 alunos do Colégio de Vilamoura; 10 alunos do Colégio S. Lourenço.

Instrumento

Para a obtenção de um instrumento de avaliação, foi solicitado aos alunos do 3º ano


de Psicologia Clínica, das turmas P1 e P2, do Instituto Superior D. Afonso III (INUAF), a
elaboração de um questionário, a partir de uma matriz fornecida pelo GAIM. Tendo sido
escolhidos alguns questionários elaborados pelos grupos, foi então construído um final com
base naqueles. Este questionário final compunha-se da seguinte forma:
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
83

Em cabeçalho, uma caixa com uma breve explicação sobre o projecto, onde se dava a
conhecer o objectivo, as entidades intervenientes no estudo, bem como a garantia do
anonimato, seguindo-se espaços para identificação da escola, ano, turma, idade, sexo e
nacionalidade. Depois, seguiam-se 6 grupos com perguntas de resposta fechada, em que era
pedido que fosse assinalado com um X a resposta na qual o sujeito mais se enquadrava.

No primeiro grupo de perguntas fechadas, o sujeito era questionado quanto ao facto


de consumir bebidas alcoólicas. Se respondesse sim, deveria continuar a responder ao
questionário pela ordem a que este está elaborado, em caso negativo, o sujeito deveria passar
à pergunta aberta nº 24.
Em caso de uma resposta afirmativa, ser-lhe-ia perguntado, no primeiro grupo, qual a
frequência com que bebia, podendo optar pela situação que lhe parecesse ser a sua: uma vez
por mês ou menos; 2 a 4 vezes por mês; 2 a 3 vezes por semana; 4 ou mais vezes por semana.
No segundo grupo era perguntado ao sujeito qual a quantidade, em doses, que este
ingeria num dia em que consumisse, sendo as opções de resposta: nenhuma; 1 a 2; 3 a 5;
mais de 6.
No grupo que se encontrava em terceiro lugar, o sujeito deparava-se com uma grelha
com cinco perguntas: Experimentei o consumo de álcool antes dos 15 anos; Já me
embriaguei; Já tive necessidade de receber atendimento médico por ter ingerido bebidas
alcoólicas; Bebo na companhia de familiares; Bebo na companhia de amigos. Neste grupo
pretendeu-se conhecer qual a predisposição do sujeito para o consumo do álcool, ou seja, o
que é que deveria acontecer para que ele bebesse.
No quarto grupo de perguntas fechadas, o sujeito tinha uma grelha com oito
perguntas: Tomo bebidas alcoólicas em bares e discotecas; Bebo sozinho; Bebo na
companhia de familiares; Bebo na companhia de amigos (estando estas duas últimas
perguntas repetidas, para verificação de resposta); Bebo quando algo corre mal; Quando
consumo álcool fico agressivo; Quando consumo álcool fico mais desinibido; Já conduzi
depois de ter bebido. Neste grupo, o objectivo era tentar conhecer os hábitos de consumo do
sujeito, tais como com quem bebia e quais os reflexos do consumo do álcool no seu
comportamento.
No quinto grupo, o sujeito era questionado quanto ao tipo de bebidas alcoólicas que
consome e/ou prefere, através de quatro opções; Cerveja; Vinho; Outras bebidas alcoólicas
(ex. Aguardentes); Misturas de bebidas alcoólicas (ex. shots).
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
84

No sexto grupo, o objectivo era saber quais as condicionantes do consumo de bebidas


alcoólicas por parte do sujeito, sendo este confrontado com três perguntas: Já me criticaram
pelo resultado das minhas bebedeiras; Já me sugeriram que parasse de beber; Já me senti
culpado ou com remorsos depois de beber.
Com este grupo de questões pretendia-se conhecer se o sujeito teria sentimentos de
culpa, arrependimento, remorsos ou angústia em relação à bebida e se se sentiria criticado
pelos outros ou com mal-estar. Estas questões (do grupo 3 ao 6), eram apresentadas em
formato de escala de Likert, de modo a formatar as respostas em 5 opções: Nunca;
Raramente; Algumas vezes; Frequentemente; Muitas vezes.
Seguidamente, eram apresentadas duas perguntas de resposta aberta, a saber: a)
Porque é que começou a beber?” (n.º 23), questão que permitiria conhecer os factores que
levaram o sujeito a beber e qual a sua motivação para esse acto; b) Que medidas acha que
devem ser tomadas para a diminuição do consumo? (n.º 24) podendo esta questão ser
respondida tanto por quem bebia, como por quem não bebia. Esta última questão tinha o
objectivo de levar o sujeito a olhar à sua volta para a problemática do consumo do álcool, e
tentar arranjar soluções ou contributos para a sua resolução ou ferramentas que permitissem
atenuar o consumo.

Procedimento

Após conseguidas as autorizações formais, uma equipa da Rede Social foi recebida
em todas as escolas pelo Conselho Executivo, tendo ficado definidos os dias de aplicação dos
questionários, ou a forma de coordenação entre os grupos de investigadores e os sujeitos, bem
como os representantes das escolas a serem entrevistados e as entrevistas colectivas com
alunos a serem realizadas. Passada essa fase, os 16 grupos de alunos dirigiram-se às escolas a
fim de realizar a aplicação do questionário.
Foram também executadas entrevistas foram dirigidas aos elementos escolares que
pudessem estar mais próximos dos jovens e dos temas que lhes diziam respeito.
Entrevistaram-se, de uma forma geral, os psicólogos, os directores de turma ou os seus
coordenadores, e os presidentes dos conselhos executivos. Para além das entrevistas nas
escolas decidiu-se também entrevistar outras entidades que, de uma ou outra forma,
pudessem ter uma palavra a dizer quanto aos jovens e aos seus comportamentos relativos ao
álcool.
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
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Resultados

Estudo Descritivo

Para o estudo descritivo inicial, calcularam-se os dados que se apresentam na Tabela


1.
Na sua generalidade as médias apresentam-se abaixo do valor médio da escala (3.0), dentro de
uma distribuição próxima da normal (desvio-padrão 1.0), excepto nos casos de médias muito baixas,
em que existe uma grande concentração de valores à volta da média, como se compreende.

Tabela 1. Valores das Médias, Desvio-Padrão e Cotações Máximas e Mínimas Obtidas em


Cada Item e no Total (N = 3345)
ITEM MÉDIA DESVIO MINIMO MÁXIMO
Consumo diário 2.3 0.89 1 4
Antes 15 2.6 1.04 1 5
Embriaguei 2.0 1.15 1 5
Medico 1.1 0.34 1 5
Familiares 2.3 1.07 1 5
Amigos 3.4 1.26 1 5
Bares 3.1 1.33 1 5
Sozinho 1.4 0.73 1 5
Algo corre mal 1.4 0.78 1 5
Agressivo 1.2 0.60 1 5
Desinibido 2.5 1.35 1 5
Conduzi 1.2 0.65 1 5
Cerveja 2.4 1.28 1 5
Vinho 1.8 0.94 1 5
Outras 2.2 1.13 1 5
Misturas 3,0 1.28 1 5
Criticaram 1.4 0.80 1 5
Parar de beber 1.4 0.85 1 5
Culpado 1.4 0.74 1 5

Apesar da interpretação das médias simples não permitir ma apreciação muito


adequada da população, constitui já uma primeira indicação de que os jovens começam desde
cedo a beber, principalmente em contexto social, sendo possível verificar que uma boa parte
assume ter consumido bebidas alcoólicas antes dos 15 anos.

O consumo diário nos jovens aparece como frequente e há uma predisposição para o
consumo de álcool na presença de amigos e em bares (ainda que as respostas para a questão
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
86

do consumo em bares tenha tido valores muito dispersos), sendo o consumo na companhia de
familiares menos acentuado. A preferência desta população vai especialmente para as
misturas de bebidas (como os “shots”).
Para a questão da necessidade de receber atendimento médico, a média foi de 1.1, o
que revela que os estudantes (quase na globalidade dos que consomem) referiram nunca ter
necessitado de receber atendimento médico, e o desvio correspondente a esta questão (o
menor desvio do estudo – 0.34) revelou que a resposta dada pelo conjunto de estudantes foi a
mais coesa, ou seja, foi a resposta em que os estudantes mais se assemelharam.

Este estudo revela também que os jovens inquiridos, relativamente à questão da


agressão e condução após a ingestão de bebidas, deram respostas negativas, ou seja, na sua
globalidade, referiram que nunca se sentiram agressivos após a ingestão de bebidas, nem
conduziam embriagados (sendo esta segunda questão também explicada pelo facto de grande
parte dos estudantes não ter idade para ter carta de condução).

Relativamente à questão da desinibição, esta foi a que teve os valores mais dispersos,
o que indica que as respostas variaram muito (estando, porém, mais concentradas entre as
respostas “Raramente” e “Algumas vezes”), o que dá a entender que existem tantos jovens
que ficam desinibidos após a ingestão de álcool, como os que não ficam.

Consumos Absolutos

A percentagem dos sujeitos que consome bebidas alcoólicas é superior (57%; 1906) à
dos que não consome (43%; 1433). Esta diferença é significativamente mais acentuada
(ξ²<.01) nos sujeitos do sexo masculino (41% “Não”; 59 % “Sim”), em relação aos do sexo
feminino (45% “Sim”; 55% “Não”).

Efectuando o cruzamento por ano de escolaridade, verifica-se que a transição para o


consumo se dá, em ambos os sexos, do 8º para o 9º ano de escolaridade. Os rapazes, sendo
mais precoces no consumo, mostram alguma retracção no 10º ano, enquanto as raparigas
continuam a aumentar até ao 10º, altura em que estabilizam; os rapazes continuam a aumentar
o consumo, ultrapassando-as a partir do 11º ano. Em ambos os casos há uma redução no
número de indivíduos que bebe, do 11º para o 12º.
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
87

Entrando agora com a diferenciação entre países de origem, verifica-se que a


percentagem de consumidores se mantém na generalidade dos países, se bem que seja, em
geral, mais reduzida nos filhos de emigrantes do Leste (51% “Não”) e de africanos (47%
“Não”), e maior nos filhos de estrangeiros europeus ocidentais (32% “Não”).

Por último, há diferenças significativas entre as várias escolas, relativamente na


proporção geral consome - não consome. Com efeito, as escolas com uma média de idades
mais elevada (Escola Profissional Cândido Guerreiro e Colégio de S. Lourenço, 18 anos;
Escolas Secundárias, 16; Escolas Básicas, 14) revelam uma percentagem mais acentuada de
consumidores. O caso do Colégio de S. Lourenço afigura-se de destacar mas convém
lembrar que estamos a falar de apenas 10 sujeitos, carecendo, assim, de representatividade.

Verifica-se que a maior parte dos que consomem dizem fazê-lo raramente ou apenas
ao fim de semana. Com efeito, mais de 80% referem consumir esporadicamente (uma vez por
mês, ou 2 a 4 vezes). Estes valores não diferem muito dos das variáveis “sexo” e “país de
origem”, nem mesmo com o “ano de escolaridade”, se bem que se admita que os mais velhos
bebem com mais frequência, como é natural.
Relativamente aos que consomem (57%), verifica-se que apenas 16% (255) referem
consumos acima de 6 doses quando bebem, com uma grande concentração no 11º ano (24%).
Este consumo é muito mais vincado nos rapazes (22%; 178) do que nas raparigas (10%; 77)
e, se mencionarmos os consumos declarados pelos sujeitos do 11º ano, a proporção masculina
sobe para 34% (65), enquanto a feminina se fica pelos 12% (21). Esta distinção entre os sexos
mantém-se, em geral, ou então não existe diferença, dependendo da variável. Em nenhuma
variável observada os sujeitos do sexo feminino revelaram medidas significativamente
superiores aos do sexo masculino.

Se deste grupo (mais de 6 doses), mencionarmos apenas os que dizem consumir


quatro ou mais vezes por semana, verifica-se que o número desce para 34 sujeitos, quase
todos rapazes (30), dos quais 47% (16) se concentra no 11º ano.

Estes 34, que se podem considerar, em princípio, o verdadeiro grupo de risco,


caracterizam-se por: a) terem entre 16 e 18 anos de idade; b) 95% ter experimentado a bebida
antes dos 15 anos; c) 92% já se ter embriagado; d) 60% terem-no feito muitas vezes; e) 85%
beberem com os amigos cerveja e misturas, em bares, fundamentalmente para se desinibirem;
f) raramente foram criticados ou foram ao médico e concentram-se nas escolas secundárias de
Loulé (incluindo o núcleo da Escola Profissional Francisco Guerreiro) e de Quarteira.
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Consumos de Risco

Raros foram os casos dos sujeitos que bebem que o fizeram com frequência antes dos
15 anos de idade mas também foram raros os casos dos que nunca o fizeram.

Efectuando uma pesquisa por ano de escolaridade, verifica-se também que a tendência
para experimentar bebidas alcoólicas antes dos 15 anos é cada vez mais frequente entre os
mais jovens, facto que aparece confirmado quando se efectua a regressão entre a idade e esta
variável (R2 = .06; p<.00 e β = -.24; p<.00). A menos que haja um efeito diferenciador devido
à memória, que ocasiona uma desvalorização desta variável com a idade, estamos perante um
fenómeno de aumento do consumo precoce.

Relativamente ao resultado com o cruzamento desta variável com as independentes,


não se observaram diferenças significativas entre os sexos, países de origem ou escolas.

As declarações sobre a embriaguez, revelam que esta parece já ter ocorrido em mais
de metade dos casos, proporcionalmente ao ano de escolaridade e, o que é curioso, sem
distinção de sexo. Das restantes variáveis apenas a região de origem parece ter alguma
influência, parecendo mais frequente entre os filhos de emigrantes dos países de Leste, com
realce para a Moldávia.

Do cruzamento entre as restantes variáveis independentes e dependentes verificou-se


que as raparigas mantêm valores iguais ou inferiores aos rapazes em todas elas, como já se
referiu, e que, relativamente às restantes, apenas se revela com algum interesse examinar as
diferenças relativas ao ano de escolaridade.

Começando pelo consumo na companhia dos familiares, constataram-se diferenças no


sentido de uma desvinculação progressiva, invertida apenas no 12º ano, que é significativa
(teste de Scheffé; p<.05) apenas do 7º e 8º para os restantes. Relativamente ao consumo na
companhia dos amigos, a evidência estatística aponta para a marcação da diferença a partir do
9º ano, sendo os valores deste idênticos aos do 10º e não havendo também diferença
significativa entre este ano e o 11º e 12º anos. Quanto ao consumo em bares, a tendência
mantém-se, mas todos os anos revelam diferenças, excepto a partir do 10º. A razão invocada,
reduzir a inibição social aparece também em crescendo ao longo dos anos, mas sem
diferença significativa em anos consecutivos (ex. do 7º para 8º; do 8º para o 9º, etc.).
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Quanto ao tipo de bebida ingerida, podemos verificar que as misturas ocupam o


primeiro lugar, seguidas da cerveja e de outras bebidas, ficando a preferência pelo vinho em
último lugar. No que respeita à cerveja, o teste de Scheffé apenas confere significância à
diferença entre o 9º e o 10º e entre este e o 12º; no vinho o 11º e 12º diferem dos restantes;
nas misturas (ex. shots), a diferença aparece generalizada, excepto entre o 7º e o 8º e entre o
10º, 11º e 12º.

Daqui se pode deduzir que, se bem que as misturas ocupem o primeiro lugar nas
preferências pelo consumo, tal ocorre sobretudo no 9º e no 10º anos, sendo depois
suplantadas pela cerveja (bebida social) e até pelo vinho (bebida familiar).

No estudo correlacional realizado, pode observar-se que são os itens 2, 4, 7, 8 e 19


que possuem um número mais acentuado de correlações elevadas com outros itens, o que
significa que a associação mais forte é entre o consumo de álcool, a embriaguez, a companhia
de amigos, a frequência de bares e discotecas, e o consumo de shots. Pelo contrário, os
relevância da necessidade de atendimento médico e do consumo com familiares para a
questão do alcoolismo jovem desta população.

Estudo Factorial

Procedeu-se a um estudo factorial, no sentido de tentar identificar um conjunto menor


de variáveis latentes (ou factores) de modo a reduzir a dimensão dos dados sem perder
informação.
Foram submetidos à análise os itens 3 a 22 (excepto 10 e 11). Após extracção dos
componentes principais e rotação varimax, foram obtidos quatro componentes (ou factores)
com valores próprios (eigenvalues) superiores a 1, os quais explicam, conforme indicado na
Tabela 3, mais de 52% da variância total do questionário. Isto é, com apenas quatro índices
consegue-se obter 52% da informação que se obteria com todos os itens, o que se pode
considerar muito bom num estudo desta natureza.
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Tabela 2. Saturações de Cada Item em Cada Factor, e Respectiva Percentagem de


Variância Explicada.
Factores (% de variância explicada)
Itens 1 (19%) 2 (12%) 3 (11%) 4 (10%)
Embriaguei 0,57 0,39 0,28 0,26
Amigos 0,84 0,06 0,07 0,15
Bares 0,86 0,10 0,09 0,04
Desinibido 0,63 0,30 0,12 0,04
Outras 0,44 0,12 0,20 0,42
Misturas 0,83 0,08 0,08 -0,03
Criticaram 0,25 0,74 0,18 0,09
Parar de beber 0,11 0,65 0,17 0,11
Culpado 0,05 0,79 -0,00 -0,01
Medico -0,03 0,03 0,65 -0,02
Sozinho 0,12 0,02 0,57 0,25
Algo corre mal 0,25 0,35 0,50 0,07
Agressivo 0,14 0,25 0,60 0,04
Conduzi 0,10 0,05 0,56 0,17
Antes 15 0,33 -0,00 0,28 0,43
Familiares -0,17 -0,16 -0,00 0,70
Cerveja 0,29 0,26 0,16 0,57
Vinho 0,08 0,21 0,13 0,64

Segundo esta divisão dos factores e após verificação dos valores mais significativos
para cada questão, chegou-se à conclusão de que os factores 1, 2, 3 e 4 seriam chamados
posteriormente de: consumidores, vigiados, grupo de risco e em família, respectivamente.
Relativamente aos valores de consistência interna, todos os factores revelaram índices baixos
( Alfa de Cronbach entre .55 e .75), à excepção do primeiro (Alfa de .85).
Assim, o factor consumidores referir-se-ia aos jovens que bebem normalmente,
fazendo-o principalmente por questões sociais; o factor vigiados agruparia jovens que se
sentem como alvo do olhar crítico dos outros; o grupo de risco seria constituído por aqueles
que basicamente têm razões e comportamentos mais problemáticos no que se refere aos
motivos pelos quais bebem, bem como às acções que levam a cabo após a ingestão; o factor
em família é caracterizado pelos jovens que preferem beber mais em casa, com os familiares.

Análise de Variância com os Factores

Fazendo a verificação da diferença entre os vários anos de escolaridade (Tabela 3),


vemos que as tendências vêm confirmar os elementos já conhecidos, ainda que com algumas
alterações. Relativamente ao consumo, o 9º e o 10º ano continuam a ser os anos-charneira,
VI Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia
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sendo o 9º mais próprio dos rapazes e o 10º das raparigas. Dos restantes factores apenas
merece a pena assinalar o Grupo de risco, em que o 12º ano aparece mais elevado
fundamentalmente pelo acesso à carta de condução; enquanto o factor Em família vem
evidenciar, com mais relevância, o regresso ao consumo em família dos mais velhos.

Tabela 3. Valores das Médias Obtidas pelos Sujeitos de Cada Ano Escolar, em Cada Factor
Factores
Ano N
Consumidores Vigiados Grupo de Risco Em Família
7 224 2.1 1.3 1.3 2.2
8 264 2.2 1.3 1.2 2.2
9 340 2.6 1.3 1.3 2.2
10 368 2.9 1.4 1.3 2.0
11 406 3.0 1.4 1.3 2.1
12 302 3.0 1.4 1.4 2.3
Sig. .00 (*) .03 .00 (**) .00 (***)
Testes de Scheffé :
(*) Todos diferem, excepto o 7º do 8º e o 10º do 11º e 12º
(**) Todos diferem do 12º
(***) 7º, 8º e 9º diferem do 10º e este dos 11º e 12º
Por último, confirmando os resultados do ano de escolaridade, a idade revela uma
relação positiva e significativa com todos os factores, nomeadamente com Consumidores,
como era esperado. No entanto, sabe-se que a relação não é linear, como já foi observado
com os anos de escolaridade.

Análise Qualitativa

Foram efectuadas entrevistas a algumas turmas de alunos e a entidades, tais como


psicólogos, professores, assistentes sociais, alcoólicos, proprietários de bares, de discotecas e
lojas de conveniência, entre outros. Ainda que o teor do discurso fosse, muitas vezes, reflexo
das funções ocupacionais dos entrevistados (o que conduziu, necessariamente, à abordagem
do tema sobre perspectivas diferentes), muitos dos conteúdos convergiram para uma opinião
comum.
Designadamente, no que respeita aos motivos que levam os jovens a consumir álcool,
são de destacar quatro factores determinantes referenciados pelos entrevistados: factores de
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ordem pessoal (aventura, curiosidade, libertar a tensão, auto-afirmação, perda da timidez,


fuga aos problemas, fácil acesso às bebidas); familiar (incentivo dos pais, influência dos
irmãos mais velhos, liberdade excessiva – pais permissivos); sociais (influência dos amigos,
integração nos grupos; falta de alternativa para ocupar os tempos livres, publicidades
apelativas) e culturais (crença de que beber faz parte da noite, rebeldia típica da idade, beber
como ritual de passagem à idade adulta e como sinónimo de diversão, Portugal como país de
fortes tradições vitivinícolas).

Entre as diversas medidas, enunciadas pelos entrevistados como eficazes para a


diminuição do consumo de álcool, destacam-se quatro: sensibilização, motivação para outras
actividades, informação sobre efeitos do álcool e consciencialização por parte do consumidor,
tal como se apresenta nas seguintes ilustrações: “A sensibilização durante a frequência da
escola. Educar para prevenir na família e na escola”; “As próprias Juntas de Freguesia
deveriam incentivar os jovens desocupados a participarem em actividades desportivas,
escolares, culturais (…), abrir espaços para os tempos livres”; “Divulgar os efeitos nocivos
do álcool (…) informando-os das repercussões destrutivas ao nível do sistema nervoso
central; o álcool destrói os neurónios de forma irreversível”; “O consumir menos deve partir
da consciência de cada um (…) não podemos mudar a forma de pensar das pessoas”.
É ainda importante realçar que a grande maioria das entidades reconheceu que o
consumo excessivo de álcool por parte dos jovens é uma realidade preocupante, que merece
uma intervenção cuidada e mais eficaz, passando essencialmente por uma maior
sensibilização para o problema junto da população e por um maior acompanhamento a este
público específico, não negligenciando as responsabilidades que tal acarreta.
Assim, segundo esta pequena abordagem, pode-se verificar que o jovem, nos dias de
hoje, inicia o consumo levado pela curiosidade e influências por parte dos amigos ou mesmo
dos pais, tendo, muitas vezes, como objectivo a diversão, a desinibição perante os que o
rodeiam e o esquecimento de alguns problemas que o possam estar a incomodar. Segundo os
inquiridos, as medidas que poderiam ser tomadas para evitar o consumo de bebidas alcoólicas
pelos jovens, começam por uma restrição da venda de álcool (tendo em conta as idades) e,
para isso, seria necessário apresentar sempre o BI em qualquer local de consumo; o aumento
dos preços do álcool (sendo que os jovens passariam então a consumir cada vez menos, não
se embriagando); sensibilização e prevenção.
Após uma análise factorial de correspondências (programa Data Mining) sobre as 12
variáveis em questão, verificou-se que se tornaram relevantes apenas dois factores com 96%

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