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Morfologia do Português

Book · January 2008

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1 author:

Alina Villalva
University of Lisbon
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Collaboration on the study of the Aquisition and Development of Lexical Knowledge (European Portuguese) View project

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Alina Villalva

Morfologia do Português
Universidade Aberta
2007
CAPÍTULO 1. SOBRE MORFOLOGIA 7
Objectivos 9
1.1 Definições de Palavra 10
1.2 Análise Morfológica e Formação de Palavras 1
1.2.1 Composicionalidade e lexicalização 22
1.2.2 Palavras possíveis, existentes e atestadas 26
1.2.3 Produtividade e bloqueio 27
1.3 A Morfologia na Gramática 29
1.4 Os Estudos de Morfologia 30
Tópicos de Recapitulação Geral 32
Exercícios 35
Leituras Complementares 36
CAPÍTULO 2. O LÉXICO DO PORTUGUÊS 37
Objectivos 38
2.1 Herança Latina, Substratos e Superstratos 40
2.2 A Neologia 1
2.3 Recursos Não-morfológicos na Formação de Palavras 44
2.4 Os Empréstimos 56
2.5 Sobre Arcaísmos e Dialectalismos 64
Tópicos de Recapitulação Geral 64
Exercícios 66
Leituras Complementares 68
Para Consulta 68
CAPÍTULO 3. UNIDADES LEXICAIS E CONSTITUINTES MORFOLÓGICOS 70
Objectivos 72
3.1 Unidades lexicais: tipos e propriedades 74
3.1.1 Propriedades inerentes 75
3.1.2 Propriedades de selecção 81
3.2 Radicais 84
3.2.1 Propriedades dos radicais nominais 87
3.2.1.1 Propriedades morfo-semânticas 87
3.2.1.2 Género 89
3.2.1.3 Classes temáticas 93
3.2.2 Propriedades dos radicais adjectivais 98
3.2.3 Propriedades dos radicais verbais 99
3.2.4 Propriedades dos radicais adverbiais 102
3.3 Afixos 102
3.3.1 Sufixos especificadores 103
3.3.1.1 Sufixos temáticos 103
3.3.1.2 Vogal de ligação 107
3.3.1.3 Sufixos de flexão 108
3.3.2 Sufixos derivacionais 111
3.3.3 Afixos modificadores 121
3.3.3.1 Afixação avaliativa 122
3.3.3.2 Prefixação 124
3.4 Assinatura Categorial 128
3.5 Relações lexicais 129
3.5.1 Famílias de palavras 130
3.5.2 Paradigmas lexicais 133
Tópicos de Recapitulação Geral 134
Exercícios 136
Leituras Complementares 138
Para Consulta 138
CAPÍTULO 4. A ESTRUTURA MORFOLÓGICA 140
Objectivos 142
4.1 Vazios morfológicos 148
4.2 Flexão 152
4.2.1 Sobre a variação em género 153
4.2.2 Sobre a variação em grau 156
4.2.3 Flexão em número 157
4.2.4 Flexão verbal 164
4.2.4.1 A flexão em tempo-modo-aspecto 164
4.2.4.2 A flexão em pessoa-número 170
4.3 Análise fonológica de processos morfológicos 174
4.3.1 Formação do plural dos nomes e adjectivos 174
4.3.2 Análise fonológica da flexão verbal 176
4.3.2.1 Supressão da vogal temática 177
4.3.2.2 Harmonização vocálica 179
4.3.2.3 Abaixamento da vogal do radical 181
4.3.2.4 Alterações da vogal temática 182
4.3.2.5 Verbos irregulares 184
ANEXO – Lista de Verbos Irregulares 186
Tópicos de Recapitulação Geral 187
Exercícios 190
Leituras Complementares 192
SUGESTÕES DE RESOLUÇÃO PARA AS ACTIVIDADES PROPOSTAS194
Capítulo 1 196
Capítulo 2 198
Capítulo 3 202
Capítulo 4 207
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 214
Nota Prévia
Este manual trata de aspectos básicos da análise das palavras, quer no que diz respeito à
descrição da sua estrutura morfológica, quer quanto à caracterização lexical dos seus
constituintes. As questões fundamentais aqui tratadas são, pois:
a distinção entre palavras simples e palavras complexas
a distinção entre palavras complexas com uma estrutura composicional e palavras
complexas lexicalizadas
a identificação das principais propriedades dos constituintes morfológicos, ou seja, dos
radicais (adjectivais, nominais e verbais) e dos afixos (temáticos, derivacionais e
modificadores).
a descrição da flexão

Complementarmente, apresenta-se uma breve síntese da história do léxico do Português


e faz-se uma ligação à fonologia, olhando para os casos em que a flexão desencadeia a
intervenção de processos dessa natureza. Esta matéria, apresentada na secção 4.3, é da
autoria de Maria Helena Mateus.
Siglas e Abreviaturas

ADJ adjectivo [± ac] acentuável / inacentuável


ADV advérbio [± animado] animado / inanimado
CT constituinte temático [± anterior] anterior / não-anterior
F frase [± comum] comum / próprio
FLEX flexão [± contável] contável /massivo
IT índice temático [± fem] feminino / não-feminino
N nome [± graduável] graduável / não-graduável
P palavra [± grego] helenismo / não-helenismo
PN pessoa-número [± humano] humano / não-humano
PP particípio passado [± I] primeira
RAD radical [± II] segunda
RADJ radical adjectival [± inacabado] inacabado / acabado
RADV radical adverbial [± latino] latinismo / não-latinismo
RN radical nominal [± N] nominal / não-nominal
RV radical verbal [± necessário] necessário / não-necessário
SN sintagma nominal [± passado] passado / não-passado
SP sintagma preposicional [± plu] plural / singular
SUF sufixo [± possível] possível / não-possível
SUFADJ sufixo de adjectivalização [± presente] presente / não-presente
SUFADV sufixo de adverbialização [± V] verbal / não-verbal
SUFN sufixo de nominalização [1ª conj] 1ª conjugação
SUFV sufixo de verbalização [2ª conj] 2ª conjugação
T tema [3ª conj] 3ª conjugação
TADJ tema adjectival
TMA tempo-modo-aspecto
TN tema nominal
TV tema verbal
V verbo
VT vogal temática
Capítulo 1. Sobre Morfologia

7
8
Objectivos

Neste capítulo inicial pretende-se mostrar o que fundamenta a


consideração da morfologia como um domínio da linguística,
identificando:

o seu objecto de conhecimento


o modo como se articula com os demais domínios da
linguística
o caminho percorrido pela análise morfológica

No final desta unidade, o aluno deverá:

conhecer diversas definições de palavra e a especificidade


deste conceito em morfologia
compreender o que distingue a análise morfológica da
descrição dos processos de formação de palavras
saber identificar:
o palavras simples e complexas
o palavras variáveis e invariáveis
o palavras complexas composicionais e lexicalizadas
o palavras possíveis, existentes e atestadas
entender o conceito de produtividade
saber caracterizar alguns fenómenos de bloqueio
compreender o lugar da morfologia na gramática
conhecer as principais características de alguns modelos de
análise morfológica

9
Morfologia não é um termo exclusivo dos estudos linguísticos: a
botânica, a zoologia ou a geografia são algumas outras ciências que
compreendem estudos desta natureza. Em sentido lato, morfologia remete
para o conhecimento das formas, cabendo a cada domínio científico a
explicitação de quais são as formas que constituem o seu objecto de
estudo: a botânica poderá, então, reclamar para si, por exemplo, o estudo
da „morfologia das fanerógamas‟, a zoologia tratará, entre outras, da
„morfologia das aranhas‟ e a geografia ocupar-se-á, por exemplo, da
„morfologia urbana‟.

No âmbito dos estudos linguísticos, a morfologia dedica-se apenas


ao conhecimento de um tipo específico de formas, que são as palavras.
Mas dizer que a morfologia se ocupa do conhecimento da forma das
palavras é, simultaneamente, dizer pouco e dizer demais: há aspectos da
forma das palavras, como a sua realização fonética, que competem, não à
morfologia, mas sim à fonologia ou à prosódia. E, inversamente, também
não se pode afirmar que a morfologia se ocupa apenas da forma das
palavras, dado que a morfologia também trata das relações que se
estabelecem entre a forma, a função e o significado das palavras.

O que constitui então o objecto de estudo da morfologia? Dois


domínios distintos, embora fortemente inter-relacionados: o primeiro é o
da análise da estrutura interna das palavras existentes e o segundo é o da
descrição dos processos morfológicos de formação de novas palavras.

Comecemos, então, por reflectir sobre o conceito de palavra, dado


que a definição técnica exigida pela análise linguística se distingue do
entendimento próprio do senso-comum e, ainda, porque uma definição
técnica não é independente do subsistema da gramática que a propõe.

1.1 Definições de Palavra

As palavras não ocorrem isoladamente, ocorrem integradas em


frases, ou seja, em contínuos sonoros que podem (embora não tenham de)
ser interrompidos por pausas. É o que sucede numa sequência como:

(1) Inesperadamente, o ministro-sombra convocou uma conferência de


imprensa e no final demitiu-se.

Para um falante do Português, a identificação das palavras da sua


língua só é problemática num número relativamente pequeno de casos,
como ministro-sombra, conferência de imprensa ou demitiu-se, que a
contagem do número de palavras presentes em cada uma destas sequências

10
poderá suscitar dúvidas. A etimologia de palavra relaciona-a com
Esta margem de dúvida é a forma grega PARABOLE, que também
suficiente para concluir está na origem do cognato parábola. Do
que a intuição dos falantes significado original (i.e. „comparação‟)
não oferece um grau de só a segunda será herdeira, pela
fiabilidade razoável, comparação verbal que estabelece com
devendo a análise uma dada sequência de factos, mas há
linguística enunciar outros cognatos, como parola, parolar,
parlar ou palrar que mostram uma maior
critérios rigorosos que
proximidade do actual valor semântico
permitam identificar de palavra.
qualquer palavra de Curiosamente, a correlata forma
qualquer língua, ou seja, masculina (i.e. parolo) adquiriu um valor
que permitam explicitar o depreciativo que terá estado relacionado
conhecimento intuitivo dos com um modo de falar menos
falantes nativos e prestigiado, mas a actual interpretação já
esclarecer as suas dúvidas perdeu essa memória.
neste domínio.

Mas a definição de palavra é, ainda assim, uma questão complexa e


tem dado origem a variados debates, dado que os diversos níveis de
análise linguística usam critérios e procuram respostas não
necessariamente coincidentes.

Antes de mais, deve compreender-se que o contínuo sonoro pode


ser segmentado de várias formas, de acordo com o conhecimento que os
falantes possuem do sistema linguístico a que esse enunciado pertence. A
canção Joana Francesa1, cuja letra inclui versos em Francês e em
Português, mostra que uma mesma sequência fonética pode receber
diversas interpretações, consoante ela é identificada como uma sequência
de uma ou da outra língua.
(2) Tu ris, tu mens trop Vem molhar meu colo
Tu pleures, tu meurs trop Vou te consolar
Tu as le tropique Vem mulato mole
Dans le sang et sur la peau Dançar dans mes bras
Geme de loucura e de torpor Vem moleque me dizer
Já é madrugada Onde é que está
Accord’accord’accorda Ton soleil, ta braise
Mata-me de rir Quem me enfeitiçou
Fala-me de amor O mar, marée, bateaux
Songes et mensonges Tu as le parfum
Sei de longe e sei de cor De la cachaça e de suor
Geme de prazer e de pavor Geme de preguiça e de calor
Já é madrugada Já é madrugada
Accord’accord’accord’accord’accord’accord’accord’acorda

11
Esta transcrição respeita a grafia usada pelo autor, mas a grafia não
condiciona a interpretação do oral: na sequência do verso dans le sang et
sur la peau, geme pode ser compreendido como j’aime; tal como a
sequência d’accord que sucede a já é madrugada não pode deixar de
poder ser ouvida como acorda; e marée, bâteaux permite o
reconhecimento como m(e) arrebatou. A segmentação do contínuo sonoro
exige, pois, a identificação da língua em que é gerado, ou seja, é preciso
reconhecer o sistema linguístico a que um dado contínuo sonoro pertence
para conseguir identificar as palavras que o constituem.

É claro que a ambiguidade fonética também pode afectar


sequências pertencentes a um único sistema linguístico2. Rodrigues Lapa
(1945, 1977: 61, 64) apresenta dois exemplos de equívocos de
segmentação, sendo que o primeiro se apresenta como um caso de
manipulação política e o segundo como uma pequena anedota:
(3) No tempo das guerras liberais, por ocasião do cerco do Porto, os
pregadores miguelistas diziam ao povo ignorante das aldeias que o
liberal D. Pedro comia crianças assadas. E para prova desse crime
abominável liam do alto do púlpito um número da Crónica
Constitucional, onde se referia que Sua Majestade comia a cada jantar
um pequeno assado. Faziam por sua conta e com fins de propaganda
política o trocadilho, alterando a natureza gramatical e o sentido dos
dois elementos: pequeno, de adjectivo passava a substantivo, com a
significação de criança; assado, de substantivo passava a adjectivo-
particípio.

- Minha senhora, eu queria a mala.


- Que diz?! – exclama a senhora cheia de indignação. O senhor é muito
atrevido.
- Não sei porquê: desejo a mala, de que me ía esquecendo.
- Ah! A mala... Está bem: tem-na ali ao canto. Leve-a.

Estes exemplos servem ainda para mostrar que a segmentação não


é uma mera operação mecânica, exigindo a intervenção de instrumentos de
análise provenientes dos diversos subsistemas da gramática. Para que uma
única sequência fonética possa ser ambígua é necessário mais do que uma
simpes homofonia – é preciso que as propriedades gramaticais das
diversas interpretações em jogo sejam compatíveis com o seu contexto de
ocorrência, como se verifica nos exemplos de (4):
(4) jantar um pequenoAdj assado N
jantar um pequeno N assado Adj

queria [a mala]SN
queria [amá-la]F

12
Vejamos, então, que saberes requer a operação de segmentação de
um enunciado.

Para a fonologia, um tipo de unidades resultantes da segmentação


do contínuo sonoro é definido como um domínio para a atribuição do
acento principal de palavra. Os processos fonológicos que afectam os
segmentos que se encontram no início ou no final desse domínio são, por
vezes, distintos dos que afectam os segmentos no interior desse domínio, o
que justifica a existência deste tipo de segmentação3. Retomando a
sequência apresentada em (1), constata-se que os segmentos que os
falantes geralmente reconhecem como palavras não coincidem sempre
com os segmentos que constituem palavras fonológicas ou palavras
prosódicas:

(5) inesperada 


mente 
o ministro 
sombra 
convocou 
uma conferência 
de imprensa 
e no final 
demitiu-se 

Do ponto de vista da sintaxe, as palavras são as unidades que


ocupam posições terminais na estrutura sintáctica, que são posições de
núcleo de uma categoria sintagmática4. À semelhança de Di Sciullo e
Williams (1987: 47-48), pode afirmar-se que as palavras são, pois, átomos
sintácticos, ou seja, são unidades sintacticamente inanalisáveis: a sintaxe
não tem acesso a qualquer informação sobre a sua estrutura interna e não
pode operar sobre os seus constituintes. Considerando, de novo, a frase
apresentada em (1) constata-se que, a esta luz, as sequências registadas em
(6a) constituem inquestionavelmente palavras, que a sequência de (6b)
integra mais do que uma palavra e que as sequências em (6c) ocupam uma
única posição sintáctica terminal mas são formadas por várias palavras:
(6) a. inesperadamente
o
convocou
uma
e
final
demitiu
se

13
b. no = em o

c. ministro-sombra
conferência de imprensa

A sequência de (6b) é uma contracção5 desencadeada por razões de


natureza fonética, que ocupa mais do que uma posição terminal na
estrutura sintáctica. Note-se que, em alguns casos, as contracções fonéticas
não são consagradas pela ortografia. Por exemplo, para a maioria dos
falantes do Português, em de imprensa, a preposição está amalgamada
com a palavra seguinte, mas a ortografia não dá conta desse fenómeno.
Noutros casos, a grafia suscita dúvidas:
(7) o facto de o / do apresentador não ter identificado todos os convidados
deixou-me preocupada6

gostei deste ensaio e também gostei daquele artigo. Não sei se gostei
mais dum / de um se doutro / de outro / do outro

Quanto à existência de grupos de palavras que ocupam uma única


posição sintáctica terminal, ela deve-se à intervenção de dois tipos de
fenómenos que os casos de (6c) exemplificam: ministro-sombra é um
composto morfo-sintáctico, ou seja, é uma palavra gerada a partir de uma
expressão sintáctica; conferência de imprensa é uma estrutura
sintacticamente analisável, mas a sua interpretação semântica exige que
ela ocupe uma única posição terminal, constituindo-se como uma
expressão sintáctica lexicalizada7.

A definição semântica de palavra é ainda mais complexa do que as


anteriores, dado que, por um lado, a semântica identifica o valor
referencial das unidades linguísticas e, por outro, trata de operações sobre
esse valor, como a determinação ou a quantificação. Esta distinção não
coincide necessariamente com aquela que é dada pela delimitação das
palavras fonológicas, nem com a identificação produzida pela análise
sintáctica, mas permite estabelecer um contraste entre lexemas e
operadores gramaticais: copo, por exemplo, é um segmento do contínuo
sonoro a que está associado um lexema que garante a sua interpretação
como „recipiente geralmente utilizado para beber‟ e um operador que o
quantifica como „singular‟.

A identificação dos lexemas recorre frequentemente à chamada


forma de citação das palavras (que é a forma utilizada nos verbetes dos
dicionários para identificar todo um paradigma flexional), grafando-a
frequentemente em maiúsculas, de modo a evidenciar a distinção entre
lexemas e palavras. Assim, voltando à sequência (1), pode considerar-se
que os segmentos em (8a) identificam os lexemas presentes e que (8b)

14
regista os operadores:
(8) a. INESPERADAMENTE
MINISTRO-SOMBRA
CONVOCAR
CONFERÊNCIA DE IMPRENSA
FINAL
DEMITIR-SE

b. O
UMA
E
EM
SINGULAR
PRETÉRITO PERFEITO
3ª PESSOA-SINGULAR

A não coincidência do conceito de palavra nos domínios da análise


fonológica e sintáctica pode ser observada numa palavra como
ameixa, cuja forma é o resultado da intervenção de um processo de
metanálise. Na definição de Mattoso Câmara (1956: 166), a
metanálise é “um fenômeno que consiste em decompor mentalmente
um vocábulo ou uma locução de maneira diversa do que determina a
sua origem”. Com efeito, ameixa é uma palavra proveniente do
adjectivo latino DAMASCEA (que ocorria na expressão PRUNA
DAMASCEA), uma forma que pode ser traduzida pelo adjectivo
damascena ou pela expressão de Damasco. Na evolução para o
Português, a forma DAMASCEA foi provavelmente analisada como
D’AMASCEA, ou seja, como uma sequência de duas palavras –
preposição e nome. Só a segunda foi considerada na apropriação ao
Português, pelo que a forma resultante é ameixa.
A situação inversa também está atestada: a palavra alarme é o
resultado de uma metanálise da expressão italiana all(e) arme „às
armas‟, ocorrida no Francês, mas transmitida a muitas outras línguas,
nomeadamente ao próprio Italiano em formas derivadas como
allarmare e allarmista.

A definição de palavra em morfologia não coincide com nenhuma


das anteriores. Para a morfologia, as palavras são estruturas, ou seja, são
formas analisáveis em unidades menores a que se dá o nome de
constituintes morfológicos8. No Português, por exemplo, para que uma
dada estrutura seja reconhecida como uma PALAVRA é necessário que ela
contenha um RADICAL (simples ou complexo, como veremos em seguida),
um especificador morfológico, chamado CONSTITUINTE TEMÁTICO9, e um (ou
dois) especificador(es) morfo-sintáctico(s), que realiza(m) a FLEXÃO
10
MORFOLÓGICA . Por outro lado, estes constituintes morfológicos são
unidades lexicais, às quais estão associadas propriedades que condicionam

15
as suas possibilidades de ocorrência nas configurações aceites pelas
condições sobre hierarquização dos constituintes, segundo as quais o
constituinte temático deve associar-se ao radical para formar um tema e os
sufixos de flexão devem associar-se ao tema para formar uma palavra. No
Português, a estrutura morfológica básica11 pode, então, ser representada
da seguinte forma12:

(9) PALAVRA

TEMA FLEXÃO MORFOLÓGICA

RADICAL CONSTITUINTE
TEMÁTICO

bel o s
maravilh]os

PALAVRA

TEMA FLEXÃO MORFOLÓGICA

RADICAL CONSTITUINTE
TEMÁTICO

livr o s
livr]eir

PALAVRA

TEMA FLEXÃO MORFOLÓGICA

RADICAL CONSTITUINTE
TEMÁTICO

lig a va mos
des]lig

Note-se que, para a análise morfológica, as palavras são,


obrigatoriamente, formas flexionadas e cada forma flexionada é uma
palavra diferente. As formas não flexionadas não são palavras – são temas
ou radicais, ou seja, são constituintes da palavra. Retomando a sequência
(1), pode, então, afirmar-se que, para a morfologia, as palavras aí
presentes são as seguintes:

16
PALAVRAS ESTRUTURAS
ÁTOMOS SINTÁCTICOS LEXEMAS
FONOLÓGICAS MORFOLÓGICAS

(10)
inesperada

se
inesperadamente INESPERADAMENTE inesperadamente

de

no
uma

final
mente

demitiu
imprensa
convocou
o ministro o o

conferência
sombra ministro-sombra MINISTRO-SOMBRA ministro-sombra ministro-sombra
inesperadamente

convocou convocou CONVOCAR convocou

uma uma
uma conferência
CONFERÊNCIA DE
conferência
conferência de IMPRENSA
de
imprensa
de imprensa
imprensa

e e

em
e no final FINAL no
o

final final

demitiu
demitiu-se DEMITIR-SE demitiu-se
se
A comparação do que pode ser considerado palavra em cada nível

critérios em nenhum caso, justificando a necessidade de clarificar o


de análise linguística mostra que não existe coincidência absoluta de

conceito de palavra no que diz respeito à morfologia:

17
Do ponto de vista da ortografia, as palavras são sequências
semanticamente interpretáveis e delimitadas por espaços em branco ou
sinais de pontuação. Estas unidades podem coincidir com algumas das
unidades que os diversos níveis de análise linguística identificam como
palavras, mas também existem muitos casos de discordância.
No que diz respeito à relação com a fonologia, pode observar-se a
ortografia das sequências verbo-clítico. Note-se que a convenção
ortográfica é distinta nos casos de próclise e de ênclise, reconhecendo
graficamente duas unidades onde a fonologia identifica apenas uma:
(i) lhe disse [‟]
disse-lhe [‟]
Mas a inversa também é verdadeira no que diz respeito a algumas
palavras complexas onde a ortografia reconhece uma única palavra e a
fonologia encontra duas:
(ii) claramente [„] [„]
geofísica [„] [„]
Quanto às discordâncias entre a sintaxe e a ortografia, por um lado,
dizem respeito a todos os já referidos casos de contracção:
(iii) de+outro doutro
em+uma numa
Por outro, há casos em que a sintaxe encontra uma única palavra e a
ortografia distingue várias, recorrendo ou não ao uso de um sinal
gráfico específico (i.e. o hífen) para dar conta da atomicidade
sintáctica:
(iv) copo de água (no sentido de festa de casamento)
livre-trânsito
Quanto à variação na ortografia de sequências que a morfologia
reconhece como palavras, ela diz particularmente respeito ao uso do
hífen em palavras complexas, frequentemente motivada pela
lexicalização de algumas destas palavras:
(v) previsão
pré-campanha
sociologia
sócio-cultural

1.2 Análise Morfológica e Formação de Palavras

Na secção anterior ficou estabelecido que a morfologia se dedica


ao estudo das estruturas morfológicas, e que todas as palavras do
Português são instâncias da configuração (9), seguidamente retomada:

18
(11) PALAVRA

TEMA FLEXÃO MORFOLÓGICA

RADICAL CONSTITUINTE
TEMÁTICO

A existência de uma posição chamada FLEXÃO MORFOLÓGICA não


deve ser entendida como uma exigência de realização morfológica de
flexão, mas sim como uma restrição quanto ao lugar que a flexão pode
ocupar na estrutura morfológica: a haver flexão, ela ocorre na sua posição
canónica, que é a posição final. Com efeito, só há flexão
morfologicamente realizada nos casos em que ela é solicitada pela
categoria sintáctica do radical: os nomes e os adjectivos exigem flexão em
número, os verbos flexionam em tempo-modo-aspecto e pessoa-número.

Por outro lado, a existência de flexão não pode ser confundida com
a existência de variação. Também nem todas as palavras admitem variação
- há palavras variáveis e palavras invariáveis - mas a variação pode ser
realizada pelo constituinte temático, como se verifica em alguns contrastes
de género (cf. 12a), ou por flexão, como sucede com o contraste nominal
de número (cf. 12b) e os contrastes verbais de tempo-modo-aspecto
pessoa-número (cf. 12c):
(12) a. bel]RADJ o
bel]RADJ a

mestr]RN e
mestr]RN a

doutor]RN Ø
doutor]RN a

b. belo]TADJ
belo]TADJ s

mestre]TN
mestre]TN s

c. canta]TV va s
canta]TV va mos
canta]TV sse s
canta]TV sse mos

A variação realizada por flexão é inerente a cada categoria


sintáctica, e a variação temática é idiossincrática, ou seja, é lexicalmente
determinada por cada radical.

19
A configuração (11) descreve plenamente a estrutura das palavras
simples (e.g. claro, sistema ou ligar), palavras em que a relação entre a
forma, o significado e as propriedades gramaticais que lhes estão
associadas é uma relação arbitrária e imprevisível. Estas palavras possuem
um único radical, que é uma unidade lexical inanalisável, e sufixos que o
especificam morfológica e morfo-sintacticamente, variando nas suas
categorias de flexão:
(13) clar o cf. claro
sistem a s cf. sistemas
lig RADICAIS
a ESPECIFICADORES
r ESPECIFICADORES
cf. ligar
SIMPLES MORFOLÓGICOS MORFO-SINTÁCTICOS

No caso das palavras complexas, a posição do radical domina


uma nova estrutura morfológica, que pode integrar um radical e um afixo
(cf. clar-ificar, des-ligar) ou dois radicais (cf. ec-o-sistem-as), sendo que
cada um dos radicais encaixados pode, por sua vez, ser uma nova estrutura
morfológica (cf. clar-ifica-dor, re-des-ligar, micro-ec-o-sistema). Nestes
casos, a configuração é expandida por ramificação do RADICAL:
PALAVRA
(14)

TEMA FLEXÃO MORFOLÓGICA

RADICAL CONSTITUINTE
COMPLEXO TEMÁTICO

As palavras que possuem um RADICAL complexo são estruturas de


afixação e de composição: as primeiras, predominantes no Português,
resultam da concatenação de um afixo (prefixo ou sufixo) a um radical,
um tema ou uma palavra; as segundas são geradas por concatenação de
dois ou mais radicais:

(15) PALAVRA

TEMA FLEXÃO MORFOLÓGICA

RADICAL CONSTITUINTE
DERIVADO TEMÁTICO

BASE SUFIXO

clar ific a r
clar ific a dor Ø

20
PALAVRA

TEMA FLEXÃO MORFOLÓGICA

RADICAL CONSTITUINTE
MODIFICADO TEMÁTICO

PREFIXO BASE

des lig a r
re des-lig a r

PALAVRA

TEMA FLEXÃO MORFOLÓGICA

RADICAL CONSTITUINTE
COMPOSTO TEMÁTICO

RADICAL RADICAL

ec o sistem a
micr o ec-o-sistem a

As palavras complexas são (ou foram) geradas pela intervenção de


processos de formação de palavras, cujo conhecimento constitui um
segundo objecto de estudo da morfologia. Assim, de uma forma
esquemática, pode dizer-se que a morfologia se ocupa, por um lado, da
especificação (morfológica e morfo-sintáctica) do radical e, por outro, dos
processos de formação de radicais complexos:

(16) ESPECIFICAÇÃO MORFOLÓGICA


(FORMAÇÃO DO TEMA)
ESPECIFICAÇÃO
DE RADICAIS ESPECIFICAÇÃO MORFO-SINTÁCTICA
= FLEXÃO (FORMAÇÃO DA PALAVRA)

MORFOLOGIA
DERIVAÇÃO
AFIXAÇÃO
FORMAÇÃO DE MODIFICAÇÃO
RADICAIS
COMPLEXOS
MORFOLÓGICA
COMPOSIÇÃO
MORFO-SINTÁCTICA

21
Nas palavras complexas, a relação entre a forma, o significado e
as propriedades gramaticais que lhe estão associadas é uma relação
motivada e previsível. Pelo menos no momento em que são geradas, já que
a permanência no léxico pode afectar qualquer um destes aspectos,
alterando apenas um deles ou uma combinação de vários.
Consequentemente, é importante referir que os processos de formação de
palavras disponíveis numa dada língua se baseiam no modelo das
estruturas morfológicas existentes nessa língua, mas não em todas. A
distinção crucial faz uso do conceito de composicionalidade: apenas as
estruturas composicionais podem ser consideradas como base dos
algoritmos de formação de palavras que possuem um índice de
produtividade significativo.Vejamos, então, no que consiste esta
propriedade de composicionalidade e como se caracterizam as estruturas
que a não possuem, passando, seguidamente à distinção entre palavras
possíveis, existentes e atestadas, ao cálculo da produtividade e à
intervenção de factores de bloqueio na formação de palavras.

1.2.1 Composicionalidade e lexicalização

A distinção entre palavras simples e complexas estabelece uma


divisão fundamental no domínio das estruturas morfológicas, a que se
deve associar uma segunda, que traça um contraste entre palavras
complexas com uma estrutura composicional e palavras complexas
lexicalizadas. Composicionalidade é um princípio estabelecido para a
semântica, segundo o qual o significado de um todo é uma função do
significado das partes. Em morfologia, composicionalidade é um princípio
de análise das palavras complexas, que identifica aquelas cujas
propriedades são integralmente determinadas pela sua estrutura e pelas
propriedades dos seus constituintes. Por outras palavras, a
composicionalidade é uma propriedade das palavras cujas forma e
interpretação são funções directas da forma e da interpretação dos seus
constituintes. Vejamos os seguintes exemplos:
(17) [ [ [ [gord] [ur] ] [os] ] [o] ]
[ [ [janel] [inh] ] [a] ]
[ [ [ [in] [ [ [evit] [a] ] [vel] ] ] [ment] ] [e] ]

Estas palavras são estruturas composicionais: gorduroso, por


exemplo, é um adjectivo masculino, derivado do radical do nome gordura,
por intermédio do sufixo de adjectivalização denominal –os(o/a), que
forma adjectivos parafraseáveis pela expressão „que contém X‟, em que X
identifica a forma derivante; gordur- é o radical nominal de gordura, que,

22
por sua vez, deriva do radical do adjectivo gord(o/a), por intervenção do
sufixo –ur(a), que gera nomes de qualidade parafraseáveis pela expressão
„nome da propriedade do que é X‟, e X, uma vez mais, remete para a forma
derivante. São as palavras composicionais que permitem identificar as
propriedades dos constituintes morfológicos e estabelecer configurações
gramaticais para a formação de novas palavras.

Quanto à lexicalização, trata-se de um processo de perda da


composicionalidade, que actua de forma aleatória e imprevisível, sempre
que pelo menos um dos constituintes morfológicos sofreu alterações
semânticas ou formais ou é desconhecido para os falantes. A lexicalização
pode, pois, afectar a interpretação da palavra, a sua forma, as suas
propriedades gramaticais ou uma conjugação destes factores.

A lexicalização semântica, que pode ser exemplificada por formas


como sombrinha ou obrigação, consiste na intervenção de operações de
extensão ou substituição do significado original da palavra: sombrinha,
que corresponde a um diminutivo de sombra, é lexicalizado quando passa
também a referir um „objecto cuja utilização produz uma pequena sombra‟
e que acaba por referir um instrumento de protecção da chuva; obrigação,
para além de referir „o acto ou efeito de obrigar‟, designa um „título de
dívida‟ – neste sentido, é uma palavra lexicalizada.

A lexicalização formal pode afectar qualquer uma das propriedades


dos constituintes da palavra. A situação mais frequente diz respeito a
palavras complexas, reconhecíveis como tal, mas cujos constituintes (ou
algum deles) não correspondem a formas atestadas no Português. É o que
se verifica com um grande número de palavras formadas noutras línguas e
introduzidas no Português por empréstimo13. Os exemplos seguintes
mostram as formas atestadas, a base disponível e a potencial forma
composicional, que é agramatical14:
(18) agressão agredi(r) > *agredição
cf. fundir > fundição

construção construi(r) > *construição


cf. destruir > destruição

governamental govern(o) > *governal


cf. teatro > teatral

inimigo amig(o) > *inamigo


cf. verdade > inverdade

surrealismo realismo > *sobre-realismo


cf. casaca > sobrecasaca

23
Uma palavra como portuguesmente exemplifica um outro tipo de
lexicalização. Neste caso, tanto a base (i.e. português) quanto o sufixo (i.e.
–mente) são formas atestadas no Português. O que aqui se verifica é a
violação de uma restrição de selecção do sufixo: -mente selecciona
adjectivos invariáveis e a forma feminina dos adjectivos variáveis. Sendo
português um adjectivo variável (cf. português / portuguesa), a forma
composicional deveria ser *portuguesamente. Esta, que é uma forma
possível, não existe porque é bloqueada pela existência de
portuguesmente, um advérbio formado muito provavelmente num
momento em que os adjectivos em –ês eram invariáveis (o que ainda se
verifica em alguns casos, como cortês).

A lexicalização morfológica pode ainda afectar a totalidade de um


paradigma flexional15. É o que se verifica, por exemplo, com os chamados
verbos irregulares. Por outro lado, a lexicalização pode afectar uma dada
forma flexionada, conduzindo à perda do vínculo com o seu paradigma
flexional, o que se verifica com palavras como costas ou óculos, que
permitem duas interpretações: ou se trata do plural composicional de costa
e óculo; ou se trata de formas que não dispõem de uma contrapartida
singular e às quais se associa um valor semântico completamente distinto:
costas designa o „lado posterior do tronco‟ e óculos refere uma „prótese
ocular‟.

A lexicalização formal pode ainda afectar a realização fonética das


palavras. É o que se verifica em casos como:
(19) a. bondoso cf. bondad(e) > *bondadoso
caridoso cf. caridad(e) > *caridadoso
maldoso cf. maldad(e) > *madadoso

b. previsão [] cf. []


ecologia [] cf. []
corrimão [] cf. []
matacão [] cf. []

Em (19a) verifica-se a intervenção de um processo de haplologia


que consiste na supressão de uma das sílabas de um afixo que é
foneticamente idêntica ou muito próxima da sílaba seguinte ou da anterior.
(cf. femini(ni)smo, gratui(ti)dade, her(da)deiro, inven(ta)tivo ou
tragi(co)comédia). A forma de base destas palavras truncadas (i.e.
bondad-, caridad- e maldad-) é mais difícil de reconhecer do que nos
casos em que a sua forma não sofre modificações (cf. cuidadoso). Em
(19b), a lexicalização é desencadeada pelo desaparecimento de um
domínio de acentuação: é o que se verifica nos casos de previsão,

24
ecologia, corrimão ou
matacão mas não em O processo de lexicalização não afecta
casos equivalentes apenas estruturas morfológicas, como as
como pré-campanha, palavras complexas que acabam de ser
referidas. Pode também afectar unidades
ecossistema, corre-
sintácticas como aquelas que estão na base
corre ou mata-ratos. de expressões como brincos de princesa,
Algumas pés de galinha ou velho mundo. A
lexicalização é, nestes casos, estritamente
palavras são objecto
semântica, mas se se considerarem palavras
cumulativo de
como demão, fidalgo, aguardente ou
lexicalização formal e clarabóia, conclui-se que que a
semântica. Veja-se, por lexicalização de expressões sintácticas
exemplo, o caso de pode também afectar a sua realização (cf.
idoso, onde, para além de mão, filho de algo, água ardente, clara
da supressão de uma bóia, mal me quer).
sílaba (cf. idad+oso), Estes são casos tradicionalmente tratados
se verifica que o como compostos, mas estas formas não são
significado não é geradas por formação de palavras, resultam
paralelo ao de bondoso da intervenção de um processo de registo
no léxico de uma convenção particular
ou cuidadoso: idoso
entre uma forma, um significado e uma
não é uma
função gramatical. A lexicalização de
„propriedade de quem expressões sintácticas também está
tem idade‟, mas sim de presente em casos como maria vai com as
quem tem „muita outras, esticar o pernil, levar a água ao
idade‟. seu moinho, para lá do sol posto ou lugar
ao sol, que são, por vezes, designadas
As palavras como expressões idiomáticas.
são, pois, lexicalizadas
quando a relação entre uma sequência de sons e o seu significado se torna
uma relação arbitrária, o que é também uma característica das palavras
simples. Pode, assim, concluir-se que a lexicalização é um processo de
transformação de estruturas complexas em simples, por intervenção de
operações de mudança fonológica, morfológica ou semântica, que
obscurecem ou impedem mesmo o reconhecimento da palavra complexa a
partir do conhecimento dos seus constituintes morfológicos. Em suma,
trata-se de um fenómeno de mudança linguística.

A análise morfológica permite tornar explícito o grau de


composicionalidade, ou, inversamente, a lexicalização das palavras
complexas. Como o nome indica, o processo de lexicalização sugere o
registo das palavras no léxico. Assim, as palavras composicionais são
estruturas transparentes que podem mas não precisam de estar registadas

25
no léxico. As palavras lexicalizadas, tal como as palavras simples, são
estruturas opacas, obrigatoriamente registadas no léxico.

1.2.2 Palavras possíveis, existentes e atestadas

Para se saber se uma dada palavra existe, é necessário verificar se


se trata de uma estrutura bem-formada e se está devidamente associada a
um valor semântico preciso. Sequências como suna, gratificagem ou
preduzir, por exemplo, são interpretadas, por um falante do Português,
como inexistentes nesta língua. As operações desencadeadas para produzir
este tipo de juízo são operações diversas. No caso de suna, é a
impossibilidade de interpretação semântica que origina o juízo de
agramaticalidade; quanto a gratificagem, a identificação das sequências
gratific– e –agem e o conhecimento da incompatibilidade da sua
coocorrência, por um lado, e da compatibilidade da associação entre
gratifica– e –ção (cf. gratificação), por outro, permitem a sua exclusão; à
forma preduzir, e apesar de ser possível identificar as sequências pre– e –
duzir que ocorrem em formas como preferir e produzir, não está associada
qualquer interpretação semântica, o que, de novo, leva à sua exclusão.

Mas não basta verificar se estão cumpridas as condições de boa-


formação. Os algoritmos de formação de palavras, construídos
exclusivamente sobre estruturas morfológicas composicionais, têm uma
capacidade de geração de novas palavras muito maior do que o que a
realidade requisita. Estes algoritmos geram palavras potenciais, que, na
sua totalidade, dificilmente são reconhecidas pelos falantes de uma língua
como palavras existentes.

Todas as palavras que correspondem a formações legítimas de um


qualquer processo de formação de palavras recebem o nome de palavras
possíveis. Palavras O léxico de uma língua é uma entidade
existentes são aquelas que distinta da que constitui o léxico de um
formam um subconjunto falante. O léxico de uma língua é uma
das palavras possíveis entidade abstracta, que regista a
porque são usadas ou totalidade das palavras possíveis nessa
reconhecidas pelos língua, sem fronteiras de tempo, espaço
falantes. O juízo dos ou registo. O léxico de um falante, que é
falantes é, pois, uma frequentemente designado como léxico
condição fundamental mental, corresponde à apropriação que
para a existência das esse falante faz do léxico da sua língua e
é constituído pelas palavras existentes
palavras. Todas as
para esse falante.
palavras possíveis são

26
estruturas morfológicas complexas bem-formadas. Quanto às palavras
existentes, trata-se de palavras simples e complexas bem-formadas, mas
também de estruturas complexas tornadas agramaticais pela intervenção
de fenómenos de lexicalização.

Note-se que muitas das palavras que os falantes reconhecem como


palavras existentes não estão registadas na generalidade dos dicionários.
Veja-se, por exemplo, o caso dos diminutivos: formas como bolinha,
dedinho ou florinha são certamente palavras existentes, mas não estão
dicionarizadas. Pode então recorrer-se ao conceito de atestação para traçar
uma distinção mais clara entre palavras possíveis e palavras existentes:
palavras possíveis são palavras não atestadas e palavras existentes são
palavras atestadas, podendo a atestação de uma palavra pode vir de
fontes escritas ou de registos orais: por outras palavras, a atestação decorre
do uso e a dicionariazação decorre do uso do lexicógrafo, ou dos usos que
o lexicógrafo acolhe.

1.2.3 Produtividade e bloqueio

A produtividade é uma propriedade dos processos de formação de


palavras que diz respeito à medida da frequência do seu uso. Se um dado
processo de formação de palavras é muito frequentemente usado, então
esse é um processo muito produtivo, se, pelo contrário, um processo de
formação de palavras for raramente usado, então será um processo muito
pouco produtivo.

A identificação do grau de produtividade de um processo de


formação de palavras não é uma operação fácil de definir, menos ainda de
realizar e, no que diz respeito à morfologia do Português, está
absolutamente por fazer. Com efeito, há diversos parâmetros de medida e
a escolha de um ou de outro pode produzir resultados muito diferentes. O
primeiro parâmetro é o da intuição dos falantes: para qualquer falante do
Português, a formação de advérbios em –mente é sentida como muito
produtiva; o mesmo se verifica com a formação de avaliativos em –inho
ou –inha. No entanto, tanto um quanto o outro conhecem restrições (cf.
*gordamente, *peruinho). Este é um parâmetro de avaliação subjectivo e
inquantificável.

Se a avaliação for feita em função do número de palavras


possíveis, o resultado é virtual – nada obriga a que as palavras possíveis
venham a tornar-se palavras existentes. A produtividade também pode ser
medida por contagem das palavras formadas por um dado processo de

27
formação de palavras e reconhecidas como palavras existentes. Este é um
parâmetro de avaliação quantificável, mas não mede a produtividade
potencial. Se, no entanto, a contagem for feita com intervalos temporais
regulares, a curva dos resultados obtidos é a que melhor se aproxima da
avaliação da produtividade do uso.

A produtividade dos processos de formação de palavras pode ser


afectada por diversos factores. O primeiro diz respeito ao tipo e ao número
de restrições que o processo impõe sobre a sua base e à existência de
afixos concorrentes. A formação de nomes de qualidade, por exemplo,
dispõe, no Português, de diversos recursos:
(20) escass-ez
rebeld-ia
podr-idão
debil-idade
doç-ura

A existência de tantos sufixos concorrentes, já que todos têm


idênticas propriedades de selecção, associando-se a formas adjectivais,
enfraquece a produtividade de cada um, havendo razões que levam ao
favorecimento de alguns e razões que levam ao enfraquecimento de
outros. O sufixo –idade, por exemplo, beneficia do facto de ser
potenciado por um outro sufixo que é –vel16:
(21) aceitabil-idade
aplicabil-idade
culpabil-idade
infalibil-idade
navegabil-idade

Em contrapartida, a produtividade de um sufixo como –ez não


pode deixar de ser afectada pelo facto de este sufixo dispor de um
alomorfe (-eza) e da distribuição das duas formas ser sensível a uma
propriedade prosódica da base, relacionada com a sua extensão17:
(22) altiv-ez clar-eza
avid-ez dur-eza
limpid-ez fri-eza
pequen-ez riqu-eza

Um segundo factor que pode perturbar a produtividade é o da


utilidade ou necessidade de formação da nova palavra. Este tipo de
restrição, que tem sido referido na literatura por bloqueio (cf. Aronoff
1976: 43-45), é definido como um fenómeno que impede a ocorrência de
uma palavra devido à existência de uma outra. É de admitir que seja por

28
bloqueio que a forma *portuguesamente não faz parte do léxico do
Português.

No entanto, este fenómeno de bloqueio tem uma intervenção


frequentemente aleatória. Note-se que, num caso paralelo ao de
portuguesmente, como o da formação de nomes em –ção a partir de
verbos como construir ou destruir, o bloqueio intervém para impedir a
ocorrência do nome *construição, mas não interfere na formação do nome
destruição. Assim, e à semelhança de Di Sciullo e Williams (1987), deve
concluir-se que o bloqueio não é um princípio geral, mas sim a expressão
de uma tendência para a economia no léxico, que consiste em evitar
situações de sinonímia. Evitar situações de sinonímia não significa, porém,
impedi-las. Assim, e ainda que a tendência seja para a especialização de
significados, é possível encontrar casos de sinonímia absoluta:
(23) congelação / congelamento
chavinha / chavezinha
livrinho / livrito

Um último factor de perturbação da produtividade dos processos


de formação de palavras está relacionado com um fenómeno de moda ou
popularidade do uso. Veja-se o caso de super- que tende a bloquear a
formação do superlativo ou, mais notoriamente, a do aumentativo em –ão
(cf. super-caro vs. caríssimo; super-carro vs. carrão).

1.3 A Morfologia na Gramática

A descrição das estruturas morfológicas e dos processos de


formação de palavras são tarefas que cabem à morfologia num dado
quadro teórico de análise gramatical. Tomemos como referência um
modelo de gramática constituído por módulos com funções próprias e
distintas, inspirado nas propostas da teoria generativa, cujos pressupostos
e programa são assim formulados em Chomsky (1986: 3-4):
The generative grammar of a language (where ‘generative’ means
nothing more than ‘explicit’) is a theory that is concerned with (...) those
aspects of form and meaning that are determined by the ‘language
faculty’, which is understood to be a particular component of the human
mind. [...] The nature of this faculty is the subject matter of a general
theory of linguistic structure that aims to discover the framework of
principles and elements common to attainable human languages; this
theory is now often called ‘universal grammar’ (UG).

Este quadro permite conceber a morfologia como o subsistema da

29
gramática que contém o conjunto de princípios responsável por uma boa
parte dos processos de formação de palavras. Este subsistema da
gramática que é a morfologia relaciona-se com outros subsistemas e, em
particular, com o léxico, a fonologia e a sintaxe. O léxico, porque se trata
de um repositório de unidades linguísticas aonde as estruturas
morfológicas vão buscar as suas unidades terminais e porque é no léxico
que a morfologia deposita o resultado das suas capacidades neológicas.
Dado que a relação entre a morfologia e o léxico é uma relação
multifacetada e de grande proximidade, dela se ocupará o capítulo 2. Por
outro lado, a morfologia e a sintaxe são módulos de construção de
expressões linguísticas: a morfologia gera palavras; a sintaxe gera frases.
A relação entre a morfologia e a sintaxe assenta no facto de as unidades
produzidas pela morfologia, ou seja, as palavras, serem as unidades
terminais das estruturas sintácticas.

(24)
Estrutura sintáctica

Palavra= Núcleo sintáctico

Tema …

Radical = Núcleo …
morfológico
Quanto à fonologia, trata-se de um módulo que determina a
realização fonética das unidades que constituem os enunciados
linguísticos, em função das suas propriedades fonológicas inerentes e da
sua integração em sequências. Consequentemente, a fonologia opera sobre
as unidades geradas pela morfologia e pela sintaxe, mas também fornece
informação necessária ao processamento morfológico, como, por exemplo,
a que se relaciona com os fenómenos de alomorfia18.

1.4 Os Estudos de Morfologia

Durante séculos, os estudos de morfologia ocuparam um largo


espaço na descrição gramatical, mas o grande número de páginas que lhes
era dedicado era também quase exclusivamente utilizado para a

30
apresentação dos paradigmas regulares de variação das palavras (os verbos
regulares da primeira conjugação, a flexão dos substantivos ou o grau dos
adjectivos) e a exaustiva enumeração das chamadas „excepções‟ (os
verbos irregulares da terceira conjugação ou o plural dos compostos). Pelo
contrário, o conhecimento da formação de palavras, por afixação ou por
composição, recebia, quase sempre, uma sumária atenção. A situação é
assim referida por Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1913, 1946: 45,
47-49), na introdução a uma das suas Lições:
A história da sufixação, prefixação e composição portuguesa está por
escrever. Há, isso sim, em cada gramática portuguesa destinada ao
ensino secundário oficial, um capítulo sobre derivações e composição,
com listas dos sufixos e prefixos que servem actualmente para a
formação de substantivos, adjectivos e verbos, ordenados ora
alfabeticamente, ora segundo as funções que eles exercem. Mas os fins
práticos e restritos dessas obras não admitem que a matéria seja tratada
exaustivamente, nem mesmo com certa extensão e intensidade.
Na Gramática de Jules Cornu (...) os sufixos figuram apenas como
material comprovativo das regras fonéticas. Nas obras de glotólogos
portugueses (…) há bastantes informações acerca de processos de
derivação e de composição. Mas só pormenores soltos. Nenhum estudo
sistemático, como o exige a colheita abundante que se pode extrair dos
textos arcaicos, dos dialectos, do idioma galego e dos seus congéneres
em Leão e Astúrias; e em especial da linguagem portuguesa familiar,
com os seus modos variadíssimos de acumular sufixos, ora segundo
normas tradicionais, ora sem se importar com padrões preexistentes. (...)

Esta terá sido uma lição propedêutica, já que termina com um


apelo. Quase um século mais tarde, a situação não é muito diferente e que
o convite pode ser reiterado:
Não dizemos que alguém possa desde já fazer um trabalho completo,
definitivo. Há muito que coleccionar e apurar ainda. (...) Os estudantes
desta cadeira muito embora não queiram ser filólogos romanistas,
aprenderiam praticamente algo de metodologia, se na sua carteira
assentassem, não direi dia a dia, mas oportunamente, as formações
familiares espontâneas, bem ou mal inventadas, que lêem, ouvem ou
enunciam, e que lhes pareçam ser neologismos ou vulgarismos. (...)
Coleccionações e análises morfológicas são relativamente fáceis,
interessantes e compensadoras. E eu teria prazer e orgulho em ter
discípulos que nos ajudassem a resolver problemas ainda pendentes.

No século XX, o modelo de descrição da gramática tradicional, a


que Hockett (1958) viria a dar o nome de Palavra e Paradigma, por
privilegiar o conhecimento extensional dos paradigmas de flexão, vai
encontrar alternativas. Talvez por reacção à posição central que a flexão
ocupou nas gramáticas de modelo latino, a atenção dada à morfologia
pelos estudos linguísticos foi quase nula até aos anos 80, diluindo-se nos

31
estudos de fonologia e sintaxe. No domínio da fonologia, surge o chamado
modelo Item e Arranjo, que procede à segmentação das palavras em
morfemas e descreve o modo como estes morfemas se organizam
linearmente, ou seja, quais são as suas relações de precedência. O terceiro
modelo de análise surge para tentar resolver os problemas da chamada
morfologia não-concatenativa, ou seja, dos casos em que se pretende
estabelecer uma relação morfológica entre palavras, mas essa relação não
pode ser descrita por adição, subtracção ou substituição de material
morfológico. Este modelo, que opera por substituição de uma forma
abstracta (como os lexemas, por exemplo) por uma palavra flexionada, é
chamado Item e Processo.

O contributo da teoria generativa, particularmente com Aronoff


(1976), Selkirk (1982), Williams (1981) e Lieber (1992) consistiu em
adoptar os métodos da análise sintáctica à análise morfológica. É neste
quadro que surgem as propostas de análise X-barra em morfologia e a
discussão acerca do conceito de núcleo morfológico, e é neste quadro de
referência que se inscreve a presente descrição da morfologia do
Português.

Tópicos de Recapitulação Geral

A morfologia trata de palavras e, neste domínio da análise


linguística, as palavras são definidas como estruturas que nascem da
especificação morfológica e morfo-sintáctica de um radical,
respectivamente pelo constituinte temático e pelos sufixos de flexão, como
veremos nos capítulos seguintes.

PALAVRA

TEMA FLEXÃO MORFOLÓGICA

RADICAL CONSTITUINTE
TEMÁTICO

Esta é a estrutura morfológica que descreve plenamente as


palavras simples do Português, ou seja, as palavras cujo constituinte
temático é formado por um único constituinte morfológico. A gramática
das línguas naturais dispõe, no entanto, de diversos processos de
formação de palavras, responsáveis pelo aparecimento de novas
palavras. Alguns desses processos têm uma natureza morfológica, gerando
palavras complexas. Neste caso, o radical é formado por mais de um

32
constituinte morfológico, que pode ser uma base (radical, tema ou palavra)
e um afixo (prefixo ou sufixo), se se tratar de uma estrutura de afixação
(derivação ou modificação), ou dois (ou mais) radicais, se for uma
estrutura de composição (morfológica ou morfo-sintáctica).

MORFOLOGIA

especificação de radicais formação de radicais


complexos

formação do tema afixação


por especificação
morfológica derivação

modificação
formação da
palavra por composição
especificação
morfo-sintáctica = morfológica
flexão
morfo-sintáctica

Os processos morfológicos de formação de palavras geram


palavras composicionais, ou seja, palavras cuja estrutura e interpretação
respeitam todas as propriedades dos constituintes presentes e do processo
em questão. Todas as palavras que um processo morfológico pode gerar,
independentemente do seu grau de produtividade, são palavras
possíveis, ou seja, são palavras resultantes da intervenção de um processo
morfológico disponível, mas nem todas são palavras existentes, ou seja,
nem todas chegam de facto a ser usadas pelos falantes. A existência de
uma palavra depende, pois, da sua boa-formação, da inexistência de
qualquer factor de bloqueio ao seu aparecimento e da sua atestação.

A existência de uma palavra complexa é frequentemente afectada


por fenómenos de natureza formal ou semântica, como as assimilações
fonéticas, o desrespeito pelas propriedades gramaticais dos constituintes
ou as alterações do significado. A intervenção de um ou mais destes
fenómenos provoca um efeito de erosão na palavra complexa, conduzindo
à sua lexicalização, ou seja, à perda da informação sobre a sua estrutura
interna, e, em última análise, à sua progressiva transformação em palavra
simples. As palavras lexicalizadas podem ser analisadas
morfologicamente, mas não podem determinar padrões de formação de

33
palavras.

A análise morfológica, quer no que diz respeito à descrição das


estruturas existentes quer no que toca à caracterização dos processos de
formação de palavras, não pode ser feita fora de um modelo de análise
linguística global, nomeadamente no que diz respeito ao léxico, à sintaxe e
à fonologia. Ao léxico, a morfologia vai buscar as unidades lexicais que
são os seus constituintes morfológicos terminais e que são portadores de
um conjunto de informações determinantes para a sua ocorrência numa
estrutura morfológica. À sintaxe, a morfologia entrega as palavras e a
especificação que é sintacticamente relevante. E, por último, à fonologia a
morfologia entrega uma estrutura abstracta que precisa de ser
fonologicamente processada, de modo a poder vir a ser foneticamente
realizada.

34
Exercícios

1. O que é uma palavra?

2. Como se define palavra em morfologia?

3. As estruturas morfológicas podem ser simples ou complexas. Dê


cinco exemplos de palavras simples (com três ou mais sílabas) e
cinco exemplos de palavras complexas.

4. Como classifica as seguintes palavras do Português no que diz


respeito à complexidade da sua estrutura morfológica:
abre-latas mini-prato
cantássemos mordomia
clareza olhos
esclarecer reavaliação
livralhada sintoma

5. Como se distingue uma palavra composicional de uma palavra


lexicalizada?

6. Impressão, solúvel e persecutório são palavras lexicalizadas. Que


forma precisariam de ter para ser composicionais?

7. Indique cinco palavras complexas composicionais e cinco palavras


complexas lexicalizadas.

8. Considerando que –ção é um sufixo que forma nomes a partir de


temas verbais (e.g. continua-ção), indique cinco casos que
correspondam a palavras bem-formadas por este sufixo, mas não-
atestadas no Português Europeu contemporâneo.

9. As palavras imprimição, solvível e perseguitório são estruturas


morfológicas bem-formadas, mas não são palavras existentes. O
que impede o seu aparecimento?

10. Tanto o sufixo –ção quanto o sufixo –mento se associam a temas


verbais para formar nomes de acção (cf. continuação,
fortalecimento). Procure avaliar a produtividade de cada um deles,
tendo em conta os valores potenciais.

35
Leituras Complementares

ARONOFF, M. E ANSHEN, F.
1998 Morphology and the lexicon: lexicalization and
productivity
Spencer e Zwicky (1998: 237-247)

BASÍLIO, M.
2004 Formação e Classes de Palavras no Português do Brasil
São Paulo: Contexto

ROSA, M. C.
2000 Introdução à Morfologia
São Paulo: Contexto

SPENCER, A. E ZWICKY, A.
1998 The Handbook of Morphology
Oxford: Blackwell

VILLALVA, A.
1994 Estruturas Morfológicas. Unidades e Hierarquias nas
Palavras do Português
2000 Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian

36
Capítulo 2. O Léxico do Português

37
Objectivos

Neste segundo capítulo pretende-se apresentar os aspectos do


conhecimento do léxico do Português. Aqui se inclui:

uma breve descrição da história do léxico do Português


uma explicitação dos conceitos de neologismo, arcaísmo,
dialectalismo
a identificação de recursos não-morfológicos para a
formação de palavras

No final desta unidade, o aluno deverá conhecer:

as principais características históricas do léxico do


Português
o base latina
o substratos
o superstratos
o conceito de neologismo
alguns recursos não-morfológicos para a formação de
palavras, como:
o invenção de palavras
o onomatopeia
o redobro
o amálgama
o eponímia
o extensão semântica
o truncamento
o acronímia
o formação de siglas
o abreviação
o empréstimo

38
A identificação do conjunto de palavras que constitui o léxico de
uma língua é uma tarefa difícil de cumprir. Num livro intitulado
Catalogue des Idées Reçues sur la Langue, Marina Yaguello (1988: 87)
afirma o seguinte1:
Les mots de la langue constituent (...) un ensemble aux contours
incertains. On ne peut pas dénombrer les mots d'une langue. Tout au
plus peut-on donner un ordre d'idée. La diversité des registres,
l'abondance des argots et jargons spécialisés, le fait que certains mots
tombent en désuétude tandis que de nouveaux mots sont crées tous les
jours rendent tout décompte arbitraire.

É certo que para a maioria das línguas conhecidas existem


dicionários, vocabulários e outros inventários de palavras, que recobrem
partes mais ou menos extensas do léxico2, mas também é sabido que
nenhum destes objectos é exaustivo e que a informação que facultam é
seleccionada pelos seus autores e é frequentemente assistemática, variando
de entrada a Existem muitas espécies de dicionários, que
entrada. É, pois, variam em função da cobertura que oferecem e do
difícil alcançar tipo de informação que disponibilizam. Quando se
uma fala em dicionários, pensa-se quase sempre em
caracterização dicionários monolingues, que registam o léxico
global do léxico geral de uma língua e veiculam uma informação
de uma língua a gramatical sumária e paráfrases das diversas
partir da consulta significações. De fora ficam, em geral, arcaísmos,
deste tipo de dialectalismos e neologismos, ou seja, palavras
objectos, devendo consideradas como desvios à norma. Usos
particulares podem, no entanto, recorrer a
o conhecimento
dicionários de outros tipos, como os dicionários
do léxico em
plurilingues, os dicionários inversos ou dicionários
extensão dar lugar especializados, como os etimológicos ou os
a um dicionários técnicos dedicados a uma dada língua
conhecimento de especialidade.
qualitativo. Mais A vulgarização dos chamados dicionários
do que a electrónicos tem vindo a tornar possível a
enumeração das concentração de informação num único objecto, o
palavras que o que constituía um obstáculo inultrapassável para
compõem, a os dicionários apresentados em suporte-papel.
caracterização do léxico exige o reconhecimento das suas principais
propriedades históricas e sincrónicas, o que constitui o objecto de estudo
da lexicologia. Vejamos, então, como se apresenta o léxico do Português.

No presente capítulo começaremos por fazer uma breve descrição


da evolução do léxico do Português, para, em seguida, identificar alguns
dos fenómenos de perdas e ganhos no léxico desta língua, apresentando

39
conceitos como neologismo e arcaísmo. Dado que os capítulos seguintes
se dedicam exclusivamente às questões morfológicas, veremos aqui que
também existem recursos não-morfológicos de formação de palavras,
sendo o empréstimo um dos mais relevantes.

2.1 Herança Latina, Substratos e Superstratos

Tal como a própria língua, o léxico do Português está ancorado no


léxico latino e, em particular, no léxico do Latim falado no noroeste da
Península Ibérica durante a vigência do Império Romano3, que, segundo
Piel (1976), se começa a diferenciar do Latim falado noutras regiões por
volta do século V d.C. Nem as línguas faladas nesta região antes da
ocupação romana conseguiram subsistir à colonização linguística latina,
nem as línguas dos posteriores ocupantes foram capazes de suplantá-la.
Palavras como as de (1) exemplificam a monumental herança lexical latina
e permitem observar algumas das alterações fonéticas que acompanharam
a passagem do Latim ao Português:
(1) CAPILLUM > cabelo
CLAMARE > chamar
DOLORE > dor
FILIUM > filho
LACTE > leite
LUNA > lua
PLACERE > prazer
REGINA > rainha

Há, no entanto, alguns vestígios das línguas pré-romanas existentes


na Península Ibérica até ao século II a.C., habitualmente designadas por
substratos: Castro (1991) refere as palavras camurça, esquerdo e
chaparro, como exemplos dos substratos mediterrânico, proto-basco e
ibero, respectivamente. Os superstratos, ou seja, as línguas faladas pelos
ocupantes da Península Ibérica findo o domínio romano, também
deixaram vestígios no Português4. Segundo Castro (1991: 151), as
palavras registadas em (2) constituem verdadeiras formas de superstrato
germânico na Península Ibérica, dado que não ocorrem fora deste
território:
(2) GASALJA companheiro > agasalhar
SPITUS espeto > espeto
GANS ganso > ganso
LOFA palma da mão > luva
RAUBA despojos tomados ao inimigo > roupa

40
Os vestígios lexicais do superstrato árabe são mais abundantes. Os
exemplos seguintes mostram que estes empréstimos incorporam
frequentemente um determinante com a forma al- (cf. 3a) ou esta mesma
forma modificada por assimilações fonéticas desencadeadas pela palavra
que precede, ocorridas na língua de origem (cf. 3b, 3c e 3d), ou outros
tipos de alteração fonética (cf. 3f e 3g):
(3) a. AL-QATIFA > alcatifa
AL-QUFFA > alcofa

b. AR-RUZZ > arroz


AR-RABAD > arrabalde

c. AS-SUTEYHA > açoteia


AS-SUKKAR > açúcar

d. AT-TUNN > atum

e. AL-MAHAZÉN > armazém


AL-GULLA > argola

f. AD-DAYHA > aldeia


AD-DAHÁ'IM > andaime

Os arabismos que não são precedidos pelo determinante são menos


numerosos e podem ter sido integrados no Português de um modo
diferente dos anteriores, nomeadamente em fase posterior ou por
intermédio de uma terceira língua5.
(4) a. HANBAR 1256 > âmbar6
WA XÁ,LLÁH e queira Deus, 1495 > oxalá
XARÁB bebida, poção, séc. xiii > xarope

b. MISKIN pobre, infeliz, do Castelhano > mesquinho


HAXXÍXÍN consumidor de haxixe, do Italiano > assassino
SUFFA esteira; coxim, do Francês > sofá

Cronologicamente, segue-se a constituição do Português como


língua, facto localizável entre o século IX e o século XIII7. Mas a
caracterização histórica do seu léxico não termina aqui. Dos contactos
com outras línguas, ao sabor de alianças políticas, lutas pela preservação
das fronteiras e da nacionalidade, ou desejos de conquista do mundo,
surgem novas palavras a que se dá o nome geral de empréstimos e nomes
particulares determinados pela designação na língua de origem8.

41
A etimologia é uma disciplina que procura informação acerca da
história das palavras, até encontrar o seu étimo, que é a forma mais
antiga da palavra, de que há conhecimento.
O confronto da palavra com o seu étimo mostra, por vezes, alterações
que não são meramente linguísticas. O nome de alguns meses do ano,
por exemplo, preserva a memória de calendários já abandonados: é o
caso de Setembro, o sétimo mês do ano romano, Outubro, o oitavo,
Novembro, o nono e Dezembro, o décimo.Noutros casos, a distância
fonética entre o étimo e a forma contemporânea só se compreende à luz
de uma qualquer reinterpretação. Esse pode ser o caso de alfinete,
proveniente do Árabe AL-HILÂL, mas talvez contaminado pela forma de
fino, que é uma das suas propriedades (note-se que em Castelhano a
forma cognata é alfiler).
Etimologia popular é o nome dado a hipóteses etimológicas
fantasiosas, geralmente associadas a uma história curiosa e plausível,
mas que não encontra confirmação na observação dos dados
conhecidos. É o que se verifica, por exemplo, com a filiação do
adjectivo sincero na expressão SINE CERA („sem cera‟), que aludiria a
um episódio sobre a qualidade de vasos em cera. Esta hipótese não é
confirmada por etimologistas respeitados como Ernout e Meillet,
autores de um dicionário etimológico do Latim.

2.2 A Neologia

As palavras que não fazem parte do léxico de uma língua desde a


sua fundação como língua são ou foram neologismos. Neologismos são,
pois, palavras que, num dado momento da existência de uma língua são
consideradas palavras novas, como telemóvel, cujo aparecimento no final
do século xx motivou a integração da palavra no léxico do Português.

É fácil constatar que muitas das palavras que integram o léxico de


uma língua foram, no passado, neologismos – basta olhar para a data da
sua primeira atestação. Veja-se, por exemplo, a definição de Cunha (1996)
para a palavra penicilina:

(5) penicilina
Substância formada no crescimento de certos fungos, com acentuada
acção antibiótica, descoberta pelo inglês A. Fleming, em 1928, e obtida
em 1941, pelo australiano Howard Florey e pelo alemão Ernst Chain.
XX. Do lat. cient. penicillina, do nome científico do fungo Penicillium
notatum.

O aparecimento da palavra não pode ser anterior ao aparecimento


da substância que ela refere. Com efeito, o Dicionário Houaiss data a
palavra de 1929, filiando-a na palavra inglesa penicillin, por sua vez

42
formada a pertir do radical latino PENICILL(IUM) e –in, um sufixo
semelhante ao sufixo português –ina, responsável pela formação de nomes
como propriedade de substância (cf. acromatina, dextrina), ou como efeito
da substância (cf. morfina, ocitonina, narcotina, pepsina).

Alguns dicionários registam justamente a data da primeira


atestação de palavras que, nesse momento, eram neologismos. É o que se
verifica no Oxford English Dictionary, que indica a primeira ocorrência
das palavras, como se exmplifica em (6). O Dicionário Etimológico Nova
Fronteira da Língua Portuguesa, de Cunha (1996), atribui às palavras
portuguesas equivalentes datações bastante diferentes. Isto não significa
que estas palavras tenham entrado no léxico do Português muito mais
tarde do que os seus equivalentes ingleses no léxico do Inglês, mas indicia
a fragilidade da lexicografia portuguesa9. Com efeito, as datas que
ocorrem não referem necessariamente o documento que encerra a primeira
atestação da palavra, embora tal possa suceder, mas, mais frequentemente,
a data do primeiro registo lexicográfico da palavra10.

(6) OED Cunha (1996) Houaiss (2001)


temperature 1531 temperatura 1813 temperatura 1813
logarithm 1615 logaritmo 1813 logaritmo 1676
neurosis 1776 neurose 1899 neurose 1899
oxygen 1790 oxigénio XIX oxigénio 1836
metabolism 1878 metabolismo 1899 metabolismo 1877
genetics 1901 genética XX genética 1939

Independentemente do momento em que surgem, os neologismos


devem ser analisados quanto à sua génese. Não existe uma só maneira de
gerar neologismos, existem diversas: alguns neologismos são palavras
inventadas ou criadas, de forma mais ou menos aleatória, a partir de
palavras já existentes, outros são palavras introduzidas na língua por
empréstimo a outras línguas e outros ainda são palavras formadas a partir
dos recursos morfológicos disponíveis na língua. A criação de
neologismos encontra na morfologia uma potente ferramenta, que tem
como fortes aliados a sistematicidade e previsibilidade, mas não se esgota
aí.

43
2.3 Recursos Não-morfológicos na Formação de Palavras

Nesta secção, o propósito é mostrar alguns fenómenos de criação


de palavras que por vezes são apresentados também como domínio da
morfologia, mas que, em rigor, não o são. Formas como bezidróglio, que
teve uma vida efémera num concurso de televisão dos anos 70 do século
XX, ou como escanifobético, podem ser inventadas, sendo o produto da
criatividade dos falantes, basta que a sequência fonética resultante seja
reconhecível como uma palavra dessa língua e que a sua categorização
sintáctica seja plausível. Este tipo de invenção de palavras, totalmente
imotivado, é um processo por vezes utilizado na criação literária. É o que
se verifica nos seguintes textos:
Ditirambo, de Mário Cesariny
meu maresperantotòtémico
minha màlanimatógrafurriel
minha noivadiagem serpente
meu èliòtròpolipo polar
meu fiambre de sol de roseira
minha musa amiantulipálida
meu lustrefrenado céu grande
minha afiàurora manhã
minha fôgoécia de estátuas
minha labrioquimia cerrada
minha ponta na terra meu arsgrima
meu diamantermita acordado!

Urânia, de Jorge de Sena


Purília amancivalva emergidanto,
imarculado e rósea, alviridente,
na azúrea juventil conquinomente
transcurva de aste o fido corpo tanto...
Tenras nadáguas que oculvivam quanto
palidiscuro, retradito e olente
é mínimo desfincta, repente,
rasga e sedente ao duro latipranto.
Adónica se esvolve na ambolia
de terso antena avante palpinado.
Fímbril, filível, viridorna, gia
em túlida mancia, vaivinado.
Transcorre uníflo e suspentreme o dia
noturno ao lia e luçardente ao cado.

44
Estórias Abensonhadas, de Mia Couto
(…) Estava já eu predisposto a escrever mais uma crónica quando
recebo a ordem: não se pode inventar palavra. (...) Siga-se o código e
calendário das palavras, a gramatical e dicionárica língua. Mas ainda,
a ordem era perguntosa: 'já não há respeito pela língua-materna?'
Não é que eu tivesse a intenção de inventar palavras. (...) Mas a ordem
me deixou desesfeliz. (...) sou um homem obeditoso aos mandos.
Resumo-me: sou um obeditado. [...) Nunca ponho três pontos que é para
não pecar de insinuência. (...) Agora acusar-me de inventeiro, isso é
que não. Porque sei muito bem o perigo da imagináutica. Às duas por
triz basta uma simples letra para alterar tudo. (...) Entijole-se o homem
com tendência a imaginescências.
Voltando à língua fria: não será que o português não está já feito,
completo, made in e tudo? Porquê esta mania de usar os caminhos,
levantando poeira sem a devida direcção? Estrada civilizada é a que tem
polícia, sirenes serenando os trânsitos. Caso senão, intransitam-se as
vias, cada um conduzindo mais por desejo que por obediência. (...) Por
causa dessas contribuições dispérsicas que chegam à língua sem
atestado nem guia de marcha. (...) E montavam-se postos de controlo,
vigilanciosos.(...) Uma espécie de milícia da língua, com braçadeira, a
mandar parar falantes e escreventes. (...) E mesmo antes da resposta, eu,
arrogancioso:
- Não pode passar. Deixa ficar tudo aqui no posto.
(...) a vida é uma grande fábrica de imagineiros e há muita estrada para
poucos vigilentos.

Ainda que todos estes casos possam ser considerados como


invenções, a verdade é que nem todas estas invenções correspondem a
criação completamente original. O leque abre-se com a suposta motivação
sonora da onomatopeia, e desvenda-se na utilização mais ou menos
aleatória e assistemática de dados da própria língua, como se verifica nos
casos de amálgama, eponímia ou de operações semânticas sobre as
palavras. Vejamos, com um pouco mais de atenção, o que se passa em
cada um destes domínios.

As palavras onomatopaicas11 são formadas por uma sequência de


sons da fala que pretende reproduzir um dado estímulo sonoro não-verbal.
No Português Europeu, a criação de palavras onomatopaicas é muito
pouco frequente e as formas atestadas também não são muito numerosas:
(7) atchim ou atxim nome masculino
chio nome masculino
trás interjeição
zás interjeição

Em geral, estas palavras são usadas em registos particulares, como


o da banda desenhada ou a interacção verbal com crianças, por exemplo,
na designação de alguns animais ou das suas „vozes‟:

45
(8) cocorócocó nome masculino = voz do galo
cricri nome masculino = voz do grilo
gluglu nome masculino = voz do perú
piopio nome masculino = ave
miau nome masculino = gato e voz do gato

Excepcionalmente, a sequência fonética que reproduz o som é


formada por uma expressão linguística: é o que se verifica com a
designação informal do colibri como bem-te-vi, ou da galinha de angola
como (es)tou-fraca (ambas atestadas no Português do Brasil).

Note-se que estas


palavras integram uma O redobro (também chamado
onomatopeia mas reduplicação) é um processo de criação de
também. frequentemente, palavras que consiste na repetição de uma
palavra já existente e que é frequentemente
os constituintes
uma forma verbal, como cai-cai ou dói-
morfológicos exigidos dói.
pela sua integração numa Aparece frequentemente associado a outros
dada categoria (cf. miar, processos de criação de palavras, como a
piar, zumbir, zurrar). As onomatopeia (cf. zunzum) e o truncamento
formas onomatopaicas (cf. vóvó), e particularmente na formação
podem também servir de de hipocorísticos, que são a versão
base à formação de carinhosa de palavras existentes (cf. Nônô).
palavras, mas o formato é
quase sempre aleatório, com inserção de sons que tornem a sequência
fonética plausível, ou fazendo uso dos mecanismos de redobro:
(9) clique → clicar
popó
tautau
tlim → tilintar
tique-taque
toctoc

Em muitos casos, as formas onomatopaicas são empréstimos de


outras línguas, inclusivamente do Grego Antigo e do Latim:
Gr. MU ‘gemido’ Lat. MURMURARE Pt. murmurar
Lat. SUSSURRARE Pt. sussurrar
Fr. froufrou Pt. frufru
Ing. ping-pong Pt. pingue-pongue

A existência de empréstimos não impede que diferentes línguas


recorram à onomatopeia para formar palavras com um idêntico valor
referencial, mas diferentes realizações fonéticas, o que mostra como a
motivação física da onomatopeia é frágil e menos motivada do que se
esperaria. No exemplo seguinte pode ver-se que ou os cães latem de forma

46
diferentes em diferentes países, ou a onomatopeia é tão convencional e
arbitrária quanto qualquer outro signo linguístico:
(11) Portugal ão ão
Brasil au-au
França whou whou
Alemanha vow vow
Estados Unidos da América ruf ruf

A amálgama é um processo de combinação aleatória de segmentos


de palavras, que consiste, geralmente, na justaposição da primeira parte da
primeira palavra à última parte da segunda (cf. 12a), mas outras
combinações são possíveis (cf. 12b):
(12) a. fidalgo filho + de +algo
você (vossemecê, vomecê) vossa + mercê

b. modem modulator demodulator


posat portuguese sattelite
telex teleprinter exchange

Algumas destas formas estão plenamente integradas no léxico do


Português (cf. 12a), outras são sentidas como neologismos mais ou menos
familiares e mais ou menos efémeros (cf. 13a e 13b):
(13) a. analfabruto analfabeto + bruto
camurso camelo + urso
nim não + sim
franglês francês + inglês
portunhol português + espanhol

b. barrigordo barrigudo + gordo


bebemorar beber + comemorar
borbotixa borboleta + lagartixa
catastróica catástrofe + perestróica
cavaquistão Cavaco + (X)istão
showmício show + comício
teatreca teatro + biblioteca

Este recurso é frequentemente utilizado na construção de nomes de


empresas:
(14) Petrogal petróleo + Portugal
Portucel Portugal + celulose

E é também um recurso muito usado por alguns criadores


literários. Retomando os exemplos de Cesariny, Sena e Mia Couto,
constata-se a existência de casos de amálgama em todos eles:

47
(15) diamantermita diamante + térmita
insinuência insinuação + insolência
nadáguas nádegas + águas
noivadiagem noiva + vadiagem
palidiscuro pálido + escuro
suspentreme suspende + treme
vigilentos vigilantes + lentos

Algumas das formas geradas por amálgama são empréstimos de


outras línguas, incusivamente do Latim, o que atesta a sua antiguidade:
(16) freguês filius + ecclesiae
cyborg cibernética + organismo
metrossexual metropolitan + heterossexual

A eponímia (palavra que em Grego significava „que dá o seu nome


a uma coisa‟) consiste na formação de um adjectivo, de um nome comum
ou de um verbo a partir de um topónimo ou de um antropónimo:
(17) acaciano - „ridículo pela sua forma de ser ou de falar‟, de Conselheiro
Acácio, personagem de O Primo Basílio, romance de Eça de Queirós

almeida - „varredor de ruas‟, de Almeida, lugar de origem de uma


brigada de limpeza das ruas de Lisboa, constituída pelo Barão de
Almeida

jaquinzinho - „carapau pequeno‟, de um desconhecido Joaquim

sebastianismo - „crença de que a resolução dos problemas políticos


nacionais será alcançada com a vinda de um salvador misterioso‟, de
Sebastião, rei de Portugal morto na batalha de Alcácer-Quibir

zé-pereira - „tocador de bombo‟, de um desconhecido Zé Pereira

Muitos dos epónimos disponíveis no Português são empréstimos,


ou são formados sobre um nome próprio estrangeiro, podendo a sua
origem ser mais ou menos conhecida e remota:
(18) afrodisíaco - „que excita o desejo sexual‟, de Afrodite, deusa da
mitologia grega que representava o amor

alfarrábio - „livro antigo‟, do Árabe FARABI, nome de um filósofo do


Turquestão, que viveu nos séculos IX e X

algoz - „carrasco, executor da pena de morte ou de outras penas


corporais‟, do Árabe gozz, nome da tribo onde geralmente eram
recrutados os carrascos

benjamin - „o filho mais novo‟, do hebraico biniamin 'filho da mão


direita e, na Bíblia, filho mais novo e preferido de Jacob‟

48
diesel - „derivado do petróleo‟, de Rudolf Diesel, engenheiro alemão que
inventou o motor alimentado por este combustível

hamburguer - „bife de carne picada‟, do Alemão Hamburguer,


proveniente de Hamburgo

Janeiro - „primeiro mês do ano civil nos calendários juliano e


gregoriano‟, de Janus, deus da mitologia romana que protege as entradas
e as saídas, o interior e o exterior

sanduiche - „fatias de pão com carne‟, do título do Conde de Sandwich


(1718-1792), cujo cozinheiro inventou uma refeição própria para ser
consumida à mesa de jogo

saxofone - „instrumento de sopro‟, de A. J. Sax, seu inventor

tangerina - „citrino‟, de Tânger, cidade marroquina

Frequentemente, a eponímia dá origem não a uma forma mas a um


conjunto de formas, que podem, ou não, estar morfologicamente
relacionadas entre si:
(19) boicotar, boicote - de Boycott, nome de um capitão irlandês, que, em
consequência de exigências excessivas, suscitou uma recusa geral de
trabalhar sob as suas ordens

chauvinismo, chauvinista - de Nicolas Chauvin, soldado de Napoleão que


inspirou peças teatrais em que aparecia como patriota exagerado, de uma
lealdade totalmente cega

linchar, linchamento - de Lynch, nome de um norte-americano autor de


um tipo de punição sumária determinada por um tribunal judicial auto-
criado

maquiavélico, maquiavelismo - de Machiavelli, estadista florentino,


célebre pelas suas teorias políticas

pasteurizar, pauteurizado, pasteurização - de Pasteur, nome do cientista


francês que inventou este processo

tácito, tacitamente – de Tácita, deusa do silêncio, na mitoloogia romana

Vejamos, por último, a extensão semântica, que consiste na


atribuição de um novo significado a uma palavra já existente: papel (do
Latim PAPÝRUS, nome de uma planta), por exemplo, começa por referir
uma „substância formada por matérias vegetais ou de trapos reduzidos a
massa, e disposta em folhas, para se escrever, embrulhar, etc‟.
Posteriormente, passou a ser usado como sinónimo de „obrigação, dever‟,
mas também passou a referir a „parte de uma peça teatral que cabe a cada
actor‟. Actualmente, acumula todos estes valores semânticos e pode ainda
significar „dinheiro em notas‟. Por outro lado, usos específicos da matéria-

49
prima que é o papel receberam nomes distintos, como carta, que começa
por designar uma „folha de papel preparada para receber a escrita‟, mas
ganha novos significados, de sinónimo de „missiva, mensagem‟, a
documento de identificação de uma qualidade, como se verifica em carta
de condução. Nesta última acepção é o aumentativo cartão (cujo
significado original é o de folha de papel mais espessa) que ganha relevo,
surgindo na denominação de documentos, como o cartão de crédito,
cartão de eleitor, cartão de utente ou cartão de contribuinte. Mas se a
carta recebe uma marca que prova a autenticidade de uma proveniência
passa a ser um bilhete, como o bilhete de identidade que exibe um selo
branco; se vinha dobrado em dois era um diploma, e se autorizava o
exercício de uma actividade passava a chamar-se alvará.

A mudança semântica também pode ser exemplificada por uma


palavra como virtude, cujo étimo latino (i.e. VIRTUS, -UTIS) referia
„qualidades (físicas e morais) que distinguem o homem, força própria dos
homens‟, e que, no Português significa „disposição habitual para a prática
do bem‟, tanto por homens como por mulheres. O mesmo se verifica com
virtual ou com virilha, palavras que em Latim derivavam da forma VIR,
que significavam „homem‟, e cuja interpretação contemporânea não
conhece essa restrição semântica.

Para além destes processos de criação de palavras, há outros


recursos, igualmente não–morfológicos, que não se propõem criar novas
palavras, mas sim formas mais ágeis de utilizar palavras ou sequências de
palavras já existentes. Trata-se de processos como o truncamento, a
acronímia e a formação de siglas e abreviaturas, cujos principais traços
característicos serão seguidamente apresentados.

Truncamento é um processo de redução de uma palavra, que


elimina uma sequência, geralmente no final da palavra12, e pode associar à
sequência truncada um índice temático geralmente distinto do índice
temático da base, sendo imprevisivelmente -a ou -o, como se pode
constatar nos seguintes exemplos:
(20) analfa analfabeto
china chinês
cusca coscuvilheiro
emigra emigrante
monga mongolóide
reaça reaccionári{o; a}

facho fascista
agito agitação

50
Note-se que, de um modo geral, os nomes assim criados são
masculinos e não admitem contraste de género (cf. um china / ?uma
china), ou admitem a existência desse contraste, mas só permitem que seja
realizado sintacticamente (cf. um comuna / uma comuna). Nos restantes
casos, o truncamento não é seguido de qualquer alteração formal e
preserva o valor de género da forma de base (cf. um heli(cóptero) / uma
manif(estação)):
(21) def deficiente
expo exposição
heli helicóptero
manif manifestação
prof professor(a)

Por vezes, o truncamento parece reconhecer uma estrutura de


composição morfológica, preservando o primeiro radical (que é
geralmente um radical neoclássico) e a vogal de ligação:
(22) foto fotografia
metro metropolitano
micro [-fem] microfone
micro [+fem] micro-radiografia
moto13 motocicleta
porno pornográfico/a
quilo quilograma
zoo zoológico

Regra geral, as formas truncadas e as suas bases são sinónimas (cf.


otorrino vs. otorrinolaringologista), limitando-se as formas mais curtas a
facilitar o uso dessas palavras. Algumas outras, porém, são utilizadas
exclusivamente em registos linguísticos menos formais, e, em alguns
casos, podem mesmo ter uma carga pejorativa. (cf. comuna vs. comunista
ou prof vs. professor). O resultado de um processo de truncamento pode
ainda não ocorrer como forma livre, mas sim como um formativo de um
composto. É o que se verifica com a forma tele- que ocorre em telejornal
não com o mesmo valor com que ocorre em televisão, mas sim como
sinónimo truncado de televisão – um telejornal é um jornal apresentado na
televisão. O mesmo se verifica com auto- em autoestrada, onde retoma o
valor de automóvel, pelo que uma autoestrada não permite o trânsito de
bicicletas ou veículos de tracção animal.

Muitos hipocorísticos de antropónimos são formados por


truncamento, processo que pode afectar quer um segmento inicial (mais
frequente no Português Europeu), quer final (preferido pelo Português
Brasileiro), quer ambos, com eventuais alterações fonéticas:

51
(23) Quim = Joaquim Lena = Helena
Nando = Fernando São = Conceição
Zé = José Tina = Cristina

Alex = Alexandre Bia = Beatriz


Edu = Eduardo Carol = Carolina
Rafa = Rafael Isa = Isabel

Tó = António Bia = Maria

A acronímia é também um processo de redução, mas o seu


domínio de intervenção é uma sequência de palavras. Em termos práticos,
a acronímia consiste na criação de uma palavra a partir do(s) grafema(s)
que se situa(m) no início das palavras que integram um título ou uma
frase. A forma resultante é foneticamente realizada como um contínuo, e
não como uma sequência de sons independentemente articulados:
(24) IVA imposto sobre o valor acrescentado
PREC processo revolucionário em curso

De um modo geral, as propriedades gramaticais dos acrónimos são


herdadas das propriedades da palavra que constitui o núcleo sintáctico da
expressão que está na sua base: palop é um nome masculino porque país é
um nome masculino; Pide é um nome feminino porque polícia é um nome
feminino. TAC é um dos casos em que o uso não respeita essa condição:
TAC é uma tomografia – tomografia é um nome feminino, mas TAC é
geralmente usado como um nome masculino. Este desencontro pode ser
causado pela perda da identidade entre a expressão de base e o acrónimo,
mas também pelo facto do masculino ser o valor de género não-marcado.

Muitos dos acrónimos disponíveis em Português são empréstimos14


e especialmente anglicismos:
(25) faq frequently asked questions
laser light amplification by simulated emission of radiation
pin personal identification number
sonar sound navigating and ranging
yuppie young urban professional

Este processo de criação de palavras é frequentemente utilizado


para a denominação de empresas, instituições e organizações, embora não
ocorra exclusivamente neste domínio lexical:
(26) EPAL Empresa Pública das Águas de Lisboa
FIL Feira Internacional de Lisboa
ICEP Instituto de Comércio Externo de Portugal
PIDE Polícia de Intervenção e Defesa do Estado
REFER Rede Ferroviária Nacional

52
SIC Sociedade Independente de Comunicação
SOREFAME Sociedades Reunidas de Fabricações Metálicas
VARIG Viação Aérea Rio Grandense

Também neste caso se encontram denominações formadas noutras


línguas, mas utilizadas no Português, por se tratar de empresas ou
organizações internacionais ou estrangeiras relevantes em Portugal:
(27) FIAT Fabbrica Italiana di Automobili di Torino
FNAC Fédération Nationale d‟Achats des Cadres
CIA Central Inteligence Agency
UEFA Union of European Football Associations
UNICEF United Nations International Children‟s Emergency Fund

Muitas das organizações internacionais ou fenómenos globalizados


cujo nome é formado por acronímia com base numa expressão gerada
numa língua que não o Português, podem ser designadas por esse
acrónimo original ou por um outro acrónimo, formado com base na
tradução portuguesa da expressão inicial. É o que se verifica nos seguintes
casos:
(28) AIDS acquired immunodeficiency syndrome
SIDA síndrome de imunodeficiência adquirida
NATO Northern Atlantic Treaty Organization
OTAN Organização do Tratado do Atlântico Norte

Na passagem de língua para língua há, por vezes, siglas que se


transformam em acrónimos, mas o mesmo se verifica no interior de um
único sistema, como o Português, onde uma mesma sequência pode ser
realizada como acrónimo (cf. ONG de Organização Não-Governamental)
ou como sigla (cf. O.N.G.):
(29) VIP very important person

UN United Nations
ONU Organização das Nações Unidas

A formação de siglas também é um processo de redução de uma


sequência de palavras, de novo um título ou uma frase, consistindo na
sequencialização do primeiro grafema de cada uma dessas palavras ou
radicais, separados ou não por um diacrítico (cf. a.C. vs BD). A sua
realização fonética é soletrada. Tal como os acrónimos, as siglas
identificam frequente, mas não exclusivamente, empresas, instituições e
organizações:
(30) a.C. antes de Cristo
BD banda desenhada
BI bilhete de identidade

53
d.C. depois de Cristo

PJ Polícia Judiciária
RTP Radiotelevisão Portuguesa
TVI Televisão Independente

Algumas das siglas usadas no Português são empréstimos. Neste


domínio há que distinguir os empréstimos que resultam da adaptação da
base ao Português (cf. 31a), dos casos em que a base original é preservada
(cf. 31b), ainda que a preservação da soletração da língua original seja
mais rara (cf. DVD vs VIP).
(31) a. ADN ácido desoxirribonucleico
DNA desoxirribonucleic acid

IMF International Monetary Fund


FMI Fundo Monetário Internacional

OAU Organization of African Unity


OUA Organização de Unidade Africana

b. BBC British Broadcasting Corporation


BMW Bayerische Motorenwerke
CD compact disk
CNN Cable News Network
DVD digital video disk
IBM International Business Machines
SOS save our souls
TNT trinitrotolueno
WC water closet
www world wide web

Note-se que as siglas podem ser ambíguas. PS, por exemplo, pode
significar post scriptum ou Partido Socialista, PC remete para Partido
Comunista e também para computador pessoal (personal computer), APL
pode significar Administração do Porto de Lisboa, Associação dos
Produtores de Leite ou Associação Portuguesa de Linguística e PSP tanto
identifica a Polícia de Segurança Pública como a PlayStation Portable. A
polissemia é uma propriedade de muitas palavras, geralmente resolvida
pelo contexto, mas a proliferação do uso das siglas não deixa, em muitas
circunstâncias, de ser geradora de situações de dificuldade de
comunicação.

Vejamos, por último, a abreviação, que gera uma forma com


menor extensão, mas sinónima de uma palavra existente na língua. Trata-
se de um processo exclusivamente utilizado na escrita, já que a produção
oral desenvolve obrigatoriamente a abreviatura15:
(32) A/c ao cuidado de

54
obs. observação
p&b preto e branco

Estes exemplos mostram que a constituição das abreviaturas é


aleatória, podendo basear-se na ortografia das palavras que toma como
base (cf. l para „litro‟), procurar grafemas foneticamente próximos do alvo
(cf. Kg para „quilograma‟) ou convencionalmente equivalentes (cf. m2 para
„metro quadrado‟), e pode usar sinais de pontuação (cf. ex. „exemplo‟, c/
„com‟) ou não (cf. q „que‟, tb „também‟). Como a abreviação é um
processo muito ligado a uma dada norma ortográfica e as normas
ortográficas variam de língua para língua, não é fácil encontrar
empréstimos, excepção feita às abreviaturas de expressões latinas:
(33) etc. et caetera
e.g. exempla gratia

A abreviação é frequentemente utilizada em referências


toponímicas, registando-se, em alguns casos, divergências de uso:
(34) Av. Avenida
Av.ª Avenida

Pç. Praça
Pç.ª Praça

R. Rua

Nas abreviaturas que referem títulos pessoais ou profissionais pode


haver grafemas que distinguem o valor de género da forma plena:
(35) Dr. doutor
Dr.ª doutora
Sr. senhor
Sr.ª senhora
Ex.mo excelentíssimo
Ex.ma excelentíssima
Il.mo ilustríssimo
Il.ma ilustríssimo
V.ª Exª vossa excelência

Os numerais ordinais são frequentemente grafados com recurso ao


cardinal correspondente e um º ou ª, que marcam concordância de género,
em posição de expoente:
(36) 1º primeiro
1ª primeira
100º centésimo
100ª centésima

55
A expansão da comunicação electrónica é responsável pelo
aparecimento de um grande número de abreviaturas, ainda que muitas
vezes se trate da abreviação de expressões de outras línguas:
(37) bjs beijos
fds fim de semana
LOL riso (de „laughing out loud‟)

2.4 Os Empréstimos

A introdução de palavras de uma língua de origem numa língua-


alvo é um processo antigo e frequentemente atestado. A recepção destas
palavras estrangeiras é que nem sempre é idêntica. Não é raro encontrar
gramáticos e falantes que criticam ou rejeitam o uso de palavras não-
vernáculas, tendo até termos como estrangeirismo, decalque ou galicismo
uma certa conotação pejorativa16. Assim se explica que o uso de uma
palavra como detalhe (do Francês détail) ou gafe (do Francês gaffe) seja
desaconselhado por puristas, que recomendam, em sua substituição,
pormenor e deslize, respectivamente. Por vezes, a introdução de
empréstimos suscita mesmo polémica, dado que se trata de um processo
relacionado com a história social da comunidade linguística que os veicula
e daquela que os acolhe. Veja-se, por exemplo, como o seu uso é irónico
na letra de uma canção de José Afonso, intitulada Década de Salomé. O
conjunto de estrangeirismos identificáveis na transcrição seguinte não é
um conjunto homogéneo: algumas destas formas integram pacificamente o
léxico do Português (cf. bidé, do Francês bidet, e bricolage, que também é
uma palavra de origem francesa), ainda que a forma gráfica mais
consensual nem sempre seja aquela que aí se apresenta (cf. trousses, que
também é um galicismo, e champon, anglicismo de origem Hindu). Outras
são um pouco estranhas, mas ainda assim reconhecíveis (cf. bi-camion, de
novo um galicismo) e o terceiro conjunto é formado por palavras que
caricaturam o dialecto dos emigrantes portugueses em França (cf.
mariage, termo francês sinónimo de casamento; maison, palavra francesa
que pode ser traduzida por casa; e patron, que é uma palavra francesa
cognata de patrão).

56
(38) Vai terminar esta prosa
estamos na década de Salomé
será o apocalipse ou a torneira
a pingar no bidé?
É meio-dia, dia de feira
mensal em Vila Nogueira
Estamos na década do bricolage
Diz um jornal que um emigra
morreu afogado em Mira
antes da data
do mariage
Estamos na Europa
Civilizada
já cá faltava
uma maison
Pour la Patrie
plo Volkswagen
acabou-se a forragem
Viva o Patron!
Já tem destino esta terra
vamos mudar para o marché aux puces
o tempo das ceroilas está no fio
agora só de trousses
Saem quarenta mil ovos moles
Vilar Formoso
é logo ali
Faz-se um enxerto
com mijo de gato
sola de sapato
voilà Paris!
Aos grandes Super-Mercados
chega a cultura num bi-camion
Camões e Eça vendem-se enlatados
lavados com "champon"
A fina flor do entulho
largou o pêlo ganhou verniz
Será o Christian Dior o manageiro
a mandar no País?
Estamos na Europa
do "estou-me nas tintas"
Nada de colectivismos
Chacun por si, meu
e chacun por soi

A ocorrência de empréstimos é, no entanto, um fenómeno


incontornável e muitas vezes difícil de evitar, dada a inexistência de léxico
autóctone com idêntico valor referencial17. A sua introdução pode ocorrer
por via directa ou pode ser mediada por uma outra língua; e pode ser
objecto de (maior ou menor) conformação fonética e morfológica ao

57
Português tomando como base a realização fonética da palavra na língua
de origem ou a sua forma gráfica. Os empréstimos que transitam
directamente são empréstimos directos, como os seguintes:
(39) Castelhano: mantilla Português: mantilha
Francês: fantoche Português: fantoche

Os que são introduzidos na língua de chegada por intermédio de


uma outra língua são empréstimos indirectos. É o que se verifica nos
seguintes casos:
(40) Grego: pharmakéia Latim: pharmacia Português: farmácia
Germânico: garten Frâncico: jardin Português: jardim
Germânico: werra Frâncico: guerre Português: guerra
Neerlandês: *aenmarren Francês: amarrer Português: amarrar
Neerlandês: bakboord Francês: bâbord Português: bombordo

Note-se que a conformação dos empréstimos às propriedades


morfológicas e fonológicas do Português e, consequentemente, a sua
realização fonética e o modo como são grafados, não são sistemáticas.
Verificam-se hesitações tão mais frequentes quanto mais recente for a
introdução do empréstimo, relacionadas com o facto de a adaptação poder
privilegiar a sonoridade da palavra de origem (alterando-se a grafia na
forma de chegada) ou a sua forma gráfica (alterando-se a pronúncia e
fazendo apenas alguns ajustes na grafia da forma de chegada):
(41) a. Inglês - lunch > lanche
Inglês - beef > bife

Francês - chauffeur > chofer


Francês - haut-bois > oboé

b. Inglês - club > clube

As propriedades gramaticais das palavras, nomeadamente o género


dos nomes, também podem ser modificadas. É frequente que o género
atribuído a um empréstimo seja o masculino, mesmo que na língua de
origem essas palavras tivessem género feminino (cf. 46a), mas também se
regista o caso inverso (cf. 46b):
(42) a. Francês - une robe > um robe
Francês - une enveloppe > um envelope

b. Francês - le courage > a coragem

Vejamos agora que origens têm os empréstimos existentes no


Português. O uso do Latim na liturgia, no ensino, na diplomacia e na
ciência constituiu, durante séculos, um factor de contacto entre estas duas

58
línguas. Por esta razão, e ainda porque a matriz estético-ideológica o
propiciava, o recurso ao Latim para a adopção de novas palavras, os
chamados latinismos, particularmente durante o Renascimento18 é muito
visível no léxico do Português. Esta estratégia é responsável pela
ocorrência de palavras cuja forma não é muito distinta da do seu étimo
latino e pela modificação na forma de palavras já anteriormente presentes
no léxico do Português:
(43) a. aluno < ALUMNU-
aplauso < APPLAUSU-
infinito < INFINITU-
reduzir < REDUCERE
vicioso < VITIOSU-

b. ocupar substitui acupar < OCCUPARE


adversário substitui adversairo < ADVERSARÌU-
adquirir substitui aquirir < ADQUÍRÈRE
abundar substitui avondar < ABÚNDÁRE
digno substitui dino < DIGNU-
elefante substitui alifante < ELEPHANT-

Este processo de relatinização do léxico do Português é ainda


responsável pelo aparecimento das chamadas palavras divergentes, ou
seja, de palavras que têm o mesmo étimo, mas uma realização fonética e
um conteúdo semântico diferentes. Os exemplos seguintes mostram
formas que transitaram do Latim para o Português, ab initio, sujeitando-se
a todos os efeitos da mudança linguística que caracterizaram este
processo, e as palavras cognatas tomadas de empréstimo ao Latim depois
de terminado esse período de transição19:

(44) CATHEDRA- cadeira (952)


cátedra (séc. XIV)
DIRECTU- direito (1277)
directo (1836)
INTEGRU- inteiro (1093)
íntegro (séc. XIV)
MAGICU - meigo (1175)
mágico (séc. XIV)
OCULU - olho (séc. XIII)
óculo (1649-1666)
20
PLANU- chão (1264)
plano (séc. XIV)
PLENU- cheio (séc. XIII)
pleno (1708)

59
Encontra-se frequentemente uma classificação das formas divergentes
que caracteriza a sua entrada no Português como tendo ocorrido por via
popular ou por via erudita. Esta caracterização pode induzir em erro.
Na verdade, o que ela pretende captar são localizações temporais
distintas: as palavras que entram na língua por via popular são as
palavras que fazem parte do léxico do Português desde a formação
desta língua, ou antes do Renascimento, grosso modo até ao século
XIII; as palavras que se considera terem entrado por via erudita são
empréstimos tomados ao Latim a partir do Renascimento.
O recurso ao léxico do Latim continua a estar disponível, em
particular na formação de compostos pertencentes a terminologias
científicas e técnicas, como fratricida ou piscicultura. Mais frequente,
neste domínio, é, porém, o recurso ao léxico do Grego Antigo, com
empréstimos que recebem o nome de helenismos:
(45) dentalgia
electrotecnia
ergonomia
fotografia
hidrocefalia
idolatria
sociometria
teleologia

As línguas antigas não são, porém, a única fonte a que o Português


tem recorrido para a importação de palavras. Os exemplos seguintes
mostram empréstimos de diversas proveniências, introduzidos no
Português em diversos momentos da sua história e aqui apresentados por
ordem cronológica considerando as atestações de Houaiss (nos casos em
que a sua atestação é conhecida):

(46) a. Castelhanismos 21
chiste 1543 chiste
airoso 1552 airoso (de aire „ar‟)
moreno 1561 moreno (de moro „mouro‟)
neblina 1660 neblina
palito 1720 palito (de palo „pau‟)
lantejoula 1789 lentejuela
guerilha 1836 guerrilla
bandarilha 1871 banderilla (de bandera „bandeira‟)
cabecilha 1881 cabecilha
boina 1899 boina
cavalheiro caballero (de caballo „cavalo‟)

60
b. Provençalismos e Galicismos
abandonar XIII abandonner (de bandon „poder‟)
dama XIII dame
jóia XIII joyau
monge XIII monge
franja 1507 frange
chefe 1545 chef
bilhete 1611 billet (de bille „bola‟)
comboio 1654 convoi (de convoyer „ir pela estrada‟)
crêpe 1704 crêpe
terrina 1764 terrine de terre
blusa 1871 blouse
croquete 1871 croquette (de croquer „estalar‟)
fétiche 1873 fétiche
governamental 1881 gouvernemental (de gouvernement)
montra 1899 montre (de montrer „mostrar‟)
soutien XX soutiens-gorge
lingerie 1931 lingerie
tailleur 1933 tailleur
envelope 1938 enveloppe (de envelopper „envolver‟)
palmier 1938 palmier
maquilhar 1941 maquiller 'pintar (o rosto)‟
liseuse 1949 liseuse
boîte 1961 boîte
croissant croissant
filete filet (de fil „fio‟)
réveillon réveillon

c. Italianismos
balcão 1360 balcone
tenor XV tenore
piloto 1438 piloto
fachada 1548 facciata (de faccia „face‟)
grotesco 1548 grottesco (de grotte)
contralto 1573 contralto
sentinela 1571 sentinella
soneto 1587 sonetto (de son ‘som’)
aguarela 1615 acquarella
charlatão 1643 ciarlatano (de ciarlare „falar‟)
ópera 1698 opera 'obra'
bússola 1712 bussola
terceto 1789 terzetto
atitude 1817 attitudine
pitoresco 1833 pittoresco „relativo a pintor‟
piano 1858 pianoforte
violoncelo 1858 violoncello
fiasco 1872 fiasco 'frasco de vidro'
pizaria XX pizzeria

61
d. Empréstimos provenientes de línguas africanas
banana de uma língua falada na Guiné
berimbau do Quimbundo, língua falada em Angola
cacimba do Quimbundo
carimbo do Quimbundo
cubata do Quimbundo
samba do Quimbundo
senzala do Quimbundo
zumbi do Quimbundo

e. Empréstimos provenientes de línguas ameríndias


canoa 1533 do Aruaque, língua falada entre as
bacias do Amazonas e do Oiapoque
chocolate 1726 do Náuatle, língua falada no México
tomate 1721 do Náuatle
cacau 1675 do Náuatle
xícara 1706 do Náuatle
alpaca 1836 do Quíchua, língua falada na
Argentina, Bolívia, Equador e Peru
condor 1727 do Quíchua
amendoim 1618 do Tupi, língua falada no Brasil
mandioca 1549 do Tupi
tapioca 1587 do Tupi

f. Empréstimos provenientes de línguas asiáticas


leque 1600 do Chinês
bengala 1543 do Hindu
haraquiri 1874 do Japonês
quimono 1897 do Japonês
chá 1565 do Mandarim
pagode 1516 do Malaio
bule 1649 do Malaio
chávena 1649 do Malaio
ketchup XX do Malaio
xaile 1789 do Persa

Por último, mas apenas por se tratar do tipo mais relevante na


actual sincronia do Português, chegou a vez de falar dos empréstimos com
origem no Inglês, aos quais se dá geralmente o nome de anglicismos:
(47) este XV est
oeste XV west
bolina 1416 bou(e)line
pudim 1799 pudding
bife 1836 beef
lanche 1858 lunch
bluff 1899 bluff
futebol 1889 football

62
líder 1900 leader
golo 1904 goal
flirt 1909 flirt
craque 1913 crack
check-up 1921 checkup
marketing 1960 marketing
andebol XX handball
know how XX know-how
lobby XX lobby
must XX must
penalti XX penalty

A prevalência de anglicismos, que não se verifica apenas no


Português e muito menos ainda apenas no Português Europeu, é satirizada
por Zeca Baleiro e Zeca Pagodinho, no Samba do Approach:
(48) Venha provar meu brunch
Saiba que eu tenho approach
Na hora do lunch
Eu ando de ferry-boat
Eu tenho savoir-faire
Meu temperamento é light
Minha casa é high-tec
Toda hora rola um insight
Já fui fã do Jethro Tull
Hoje me amarro no Slash
Minha vida agora é cool
Meu passado é que foi trash
Venha provar meu brunch
Saiba que eu tenho approach
Na hora do lunch
Eu ando de ferry-boat
Fica ligado no link
Que eu vou confessar, my love
Depois do décimo drink
Só um bom e velho Engov22
Eu tirei o meu green card
E fui para Miami Beach
Posso não ser pop star
Mas já sou um nouveau riche
Eu tenho sex appeal
Saca só meu background
Veloz como Daemon Hill
Tenaz como Fitipaldi
Não dispenso um happy end
Quero jogar no dream team
De dia um macho man
E de noite drag queen

63
2.5 Sobre Arcaísmos e Dialectalismos

O léxico de uma língua é uma entidade dinâmica, sensível à


passagem do tempo e ao efeito das circunstâncias, e de contornos variáveis
em resultado de processos de perdas e ganhos das unidades que o
constituem. Arcaismos são as palavras que, num dado momento da
história de uma língua, deixaram de ser utilizadas pela comunidade
linguística falante dessa língua. Trata-se de palavras que já fizeram parte
activa do léxico da língua, mas que, por variadas razões, caíram em
desuso. É o que se verifica nos seguintes casos:
(49) antanho ADV = no ano passado
coita N[+fem] = dor, desgosto
fiúza N[+fem] = confiança, fé
igualdança N[+fem] = igualdade
luscar V = brincar, jogar, divertir-se
velido ADJ = belo

Geralmente também são excluídas as palavras cujo uso só é


frequente em dialectos ou em sociolectos não prestigiados. Quando
registadas, estas palavras são referidas como dialectalismos ou
provincianismos. Em relação ao dialecto de Lisboa, integram esta
categoria palavras como:
(50) caço = concha de sopa
carapins = sapatinhos de dormir, botinhas de bébé
ervilhana = amendoim
liteiro = coberta de trapo
porca-sara = bicho de conta
saltarico = gafanhoto
xerém = papas de milho

Tópicos de Recapitulação Geral

O léxico do Português tem como base o léxico latino,


particularizado por alguma resistência das línguas existentes na Península
Ibérica no período anterior ao da permanência do Latim e alguns vestígios
das línguas supervenientes.

Nos seus cerca de sete séculos de existência, o léxico do Português


não ficou, porém, imóvel, estando os processos de perdas e ganhos de
palavras em permanente tensão. Ou seja, o léxico do Português integra,
sistematicamente neologismos e, também sistematicamente, converte
algumas palavras em arcaísmos. Neste capítulo foram referidos alguns

64
processos não-morfológicos de formação de palavras, bem como a
importação de palavras que dá origem a diversos tipos de empréstimos.

ibero germânico
chaparro
matriz latina ganso
substratos
mediterrânico árabe
camurça alcatifa

LÉXICO DO
proto-basco PORTUGUÊS superstratos
esquerdo
arcaísmos
neologismos coita

dialectalismos
ervilhana

processos morfológicos de
formação de palavras latinismo
óculo
empréstimos
afixação
helenismo
composição idolatria

castelhanismo
neblina
línguas
processos não-morfológicos de africanas
formação de palavras senzala
italianismo
sentinela línguas
invenção ameríndias
bezidróglio amálgama
chocolate
analfabruto
galicismo
onomatopeia envelope
miar acronímia línguas
prec asiáticas
xaile
eponímia
jaquinzinho siglação anglicismo
adn pudim

truncamento abreviação
manif obs.

65
Exercícios

1. Dê cinco exemplos de palavras de origem latina que não sejam


latinismos introduzidos no Português após o Renascimento.
2. Procure encontrar três palavras portuguesas de origem pré-latina.
3. Identifique cinco formas caracterizáveis como vestígios dos
superstratos linguísticos do Português.
4. Caracterize etimologicamente cada uma das seguintes palavras:

abacate cobarde
alcunha diletante
alecrim fatia
alfaiate ganadaria
alfândega granizo
almofada jasmim
ananás javali
background maionese
bandido queque
biombo robe
burlesco tanga
cachimbo tertúlia
canja vagão
clube zero

5. Identifique dez anglicismos correntemente utilizados no Português


Europeu contemporâneo. Comente a sua forma fonética e
ortográfica, propondo, se assim o entender, formas alternativas,
novas pronúncias ou novas grafias.
6. Identifique dez empréstimos de diferente origem linguística.
7. Indique cinco neologismos recentes, bem como a paráfrase que
considera adequada a cada um deles.
8. Procure escrever um pequeno texto em que use três palavras
inventadas por si (certifique-se de que não estão atestadas,
consultando diversos dicionários). Dê esse texto a ler a outras
pessoas e pergunte-lhes se conhecem essas palavras, se sabem o
que significam. Se a resposta for negativa, peça-lhes que procurem
adivinhar um significado.
9. Classifique as seguintes palavras quanto à sua formação:
algarismo freudiano
AVC lipo
chupa-chupa radar
fã rádio
flagra stôr

66
10. Encontre cinco epónimos, cinco palavras formadas por amálgama,
cinco acrónimos, cinco siglas, cinco palavras formadas por
truncamento, cinco palavras onomatopaicas. Procure explicar
como se formou cada uma destas palavras.
11. Que hipocorístico corresponde ao seu nome próprio? E na sua
família que outras palavras deste tipo são geralmente usadas?
Procure identificar o processo de formação de cada uma dessas
palavras.
12. Como caracteriza a relação entre as palavras traição e tradição.
Identifique cinco outros casos do mesmo tipo.
13. Identifique cinco arcaísmos.
14. Procure um significado lexical que seja transmitido dialectalmente
por diferentes palavras.

67
Leituras Complementares

CORREIA, M. E LEMOS, L. S. P.
2005 Inovação Lexical em Português
Lisboa: Colibri

PIEL, J.M.
1976 Origens e estruturação histórica do léxico português
1986 Estudos de Linguística Histórica Galego-Portuguesa (9-16)
Lisboa: Imprensa-Nacional – Casa da Moeda
www.instituto-camoes.pt/CVC/hlp/biblioteca/origens_lex_port.pdf

Para Consulta

ACADEMIA DAS CIÊNCIAS


2001 Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea
Lisboa: Verbo

AURÉLIO ET AL.
2004 Novo Dicionário Eletrônico Aurélio
Rio de Janeiro: Positivo

CUNHA, A.G.
1996 Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua
Portuguesa
Rio de Janeiro: Nova Fronteira

HOUAISS ET AL.
2001 Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa
Rio de Janeiro: Objetiva

PRIBERAM INFORMÁTICA E PORTO EDITORA


1996 Dicionário da Língua Portuguesa
Porto Editora

VAZA, A. E AMOR, E.
2006 Novo Dicionário da Língua Portuguesa
Lisboa:Verbo

68
69
Capítulo 3. Unidades Lexicais e Constituintes Morfológicos

70
71
Objectivos

Este terceiro capítulo dedicará particular atenção à descrição dos


constituintes morfológicos que são unidades lexicais. Para tal,
procederemos previamente à caracterização das unidades lexicais,
identificando-as e identificando as suas propriedades, quer inerentes quer
combinatórias.

Em seguida, partindo da distinção básica entre radicais e afixos


(que são os dois tipos de constituintes morfológicos terminais disponíveis
no Português), faremos uma descrição das principais propriedades das
suas diversas subclasses. No que diz respeito aos radicais, começaremos
por estabelecer um contraste entre vernáculos e neoclássicos, para
prosseguir com a caracterização dos radicais nominais, adjectivais, verbais
e adverbiais. Quanto aos afixos, confrontaremos a abordagem clássica que
reconhece os afixos com base na posição que ocupam na estrutura da
palavra (e que permite distinguir os prefixos dos sufixos), com uma
abordagem gramatical que caracteriza os afixos a partir da função que
desempenham nas estruturas morfológicas, o que permite isolar os afixos
especificadores, os predicadores e os modificadores.

Por último, observar-se-ão alguns tipos de relações lexicais,


nomeadamente aquelas que são relevantes para a análise morfológica.

No final desta unidade, o aluno deverá:

saber caracterizar as unidades lexicais, identificando as suas


propriedades inerentes e as suas propriedades de selecção

conhecer as principais propriedades dos:


o radicais
 nominais
 adjectivais
 verbais
 adverbiais
o afixos
 especificadores
 derivacionais
 modificadores

conhecer e saber utilizar os conceitos de:


o família de palavras
o paradigma lexical

72
O léxico1, que é uma das componentes da gramática das línguas
naturais, pode ser caracterizado como uma base de dados onde se
armazena toda a matéria-prima que vai dar corpo a qualquer expressão
linguística e nomeadamente às estruturas morfológicas. Mas de que
matéria-prima se trata? Como são as unidades lexicais? E como é feito o
seu registo? A resposta mais imediata é a de que as unidades lexicais são
palavras, mas, como veremos em seguida, esta é uma resposta que não
basta à análise morfológica.

Com efeito, considerando os requisitos da formação de palavras,


facilmente se conclui que uma boa parte das unidades lexicais é
provavelmente formada por radicais e afixos de diversa natureza. Mas
também é provável que o léxico inclua todos os produtos da
lexicalização2, quer se trate de palavras, quer se trate de expressões
sintácticas. Assim, todos os radicais simples (cf. 1a), todos os afixos (cf.
1b), todas os radicais complexos lexicalizados (cf. 1c), todas as formas
flexionadas lexicalizadas (cf. 1d) e todas as expressões sintácticas
lexicalizadas (cf. 1e) estão listados no léxico:

(1) a. braç- Radical de braço


bel- Radical de belo / bela
beb- Radical de beber
b. -o Índice temático dos nomes de tema em –o
(cf. braço)
-ez Sufixo de nominalização deadjectival
(cf. estupidez)
-o- Vogal de ligação (cf. sócio-cultural)
c. sapienci- Radical de sapiência 3
complex- Radical de complexo / complexa 4
rejuvenesc- Radical de rejuvenescer 5
d. (dói-me as) costas Plural lexicalizado de costa
(esse teu) olhar Conversão nominal do verbo olhar
e. brinco de princesa
cabeça de alho chocho

Como a análise morfológica e a descrição dos processos de


formação de palavras assentam no conhecimento das unidades lexicais que
ocorrem nas posições terminais das estruturas morfológicas, ou seja, dos
radicais e dos afixos, é a estes dois tipos de unidades lexicais que daremos
seguidamente uma maior atenção.

A cada unidade lexical está obrigatoriamente associado um


conjunto de informações que determina o modo como as unidades lexicais

73
se relacionam entre si, o que condiciona a sua integração em estruturas
morfológicas e controla a sua projecção em estruturas sintácticas,
restringindo os possíveis contextos de inserção. Esta informação é
idiossincrática, ou seja, não pode ser derivada nem calculada a partir de
nenhuma outra informação e inclui, pelo menos, propriedades sintácticas,
morfológicas, semânticas e fonológicas. Note-se que esta distinção é
precária, dado que as informações associadas às unidades lexicais têm
frequentemente uma natureza compósita, combinando propriedades de
diferentes tipos. Vejamos, então, como se caracterizam as unidades
lexicais, distinguindo as suas propriedades inerentes, ou seja, as
propriedades com que cada unidade lexical se integra numa dada estrutura,
das suas propriedades de selecção, ou seja, das propriedades que
determinam o tipo de estrutura que pode acolher cada unidade lexical. Na
descrição que se segue, e sempre que possível, as propriedades das
unidades lexicais serão codificadas através de uma notação formal que
utiliza traços binários, em que o valor negativo especifica a forma não-
marcada6.
O termo que tradicionalmente designa as unidades de análise das
palavras é morfema. Sabe-se, no entanto, que a definição clássica de
morfema como a menor unidade portadora de significação, que é a
definição de Hockett (1958), é problemática para a análise morfológica
(como foi assinalado, por exemplo, por Aronoff 1976), dado que nem
todas as unidades que integram as palavras são unidades portadoras de
significado. É o que se verifica, por exemplo, com a vogal temática que
integra a generalidade das formas verbais (e.g. cantar, bebêssemos,
fugira), ou com a vogal de ligação (e.g. insecticida, insectólogo).
A redefinição do conceito de morfema como qualquer elemento que
participa na construção de uma palavra, por exemplo, poderia resolver o
problema, mas é uma solução equívoca, porque mantém o nome,
alterando a definição. É por essa razão que se torna preferível chamar
constituinte morfológico a cada uma das unidades que integram uma
estrutura morfológica.

3.1 Unidades lexicais: tipos e propriedades

A comparação entre palavras é uma operação fundamental para


proceder à sua segmentação e subsequente identificação das unidades que
as constituem, ou seja, dos seus constituintes morfológicos. Vejamos os
seguintes exemplos:
(2) teatr-o teatr-al teatr-inho

74
A sequência comum a estas três palavras é teatr-; o que resta (i.e. –
o, –al, –inho) são sequências recorrentes em muitas outras palavras do
Português, como gat–o, invern–al e ded–inho, que, por sua vez, vêem esta
segmentação confirmada por comparação com outras palavras
parcialmente idênticas, como gat–a, invern–ia e ded–ada:
(3) teatr-o gat-o gat-a
teatr-al invern-al invern-ia
teatr-inho ded-inho ded-ada

Antes de continuar, é necessário referir que nem todos os


constituintes morfológicos são idênticos: alguns são unidades lexicais,
outros são sequências de unidades lexicais. Numa palavra como
teatralizável, teatr–, –al, –iz, –a e –vel são as unidades lexicais que
constituem a palavra, mas as relações que estabelecem entre si variam em
função das relações estruturais que mantêm. Assim, teatr– e –al
combinam-se para gerar um novo constituinte (i.e. teatral), ao qual, por
sua vez, se associa –iz na formação de um novo constituinte (i.e. teatraliz),
que requer a formação de um novo constituinte (i.e. teatraliza) para,
finalmente, chegar à palavra inicialmente considerada (i.e. teatralização):
(4) teatr teatral
teatral teatraliz
teatraliz teatraliza
teatraliza teatralizável

Este capítulo diz respeito apenas à caracterização dos constituintes


morfológicos que são unidades lexicais; os restantes, que são estruturas
morfológicas, serão estudados no capítulo seguinte.

Os constituintes morfológicos que são unidades lexicais ocupam,


pois, as posições terminais das estruturas morfológicas, mas também aqui
há lugar para distinções. A primeira é a que separa os radicais dos afixos.
Retomando os exemplos acima considerados, radicais são formas como
teatr–, gat–, invern– ou ded–, enquanto que –a, –ad, –al, –o,–i, –inh-o, –iz
ou –vel são afixos. Vejamos, então, como se caracterizam globalmente as
unidades lexicais.

3.1.1 Propriedades inerentes

A categorização das unidades lexicais está intimamente


relacionada com a classificação sintáctica7, que determina a sua
distribuição frásica8, o tipo de variação morfo-sintáctica em que podem
participar9 e ainda a gama de possibilidades da sua participação em

75
processos de formação de palavras10. As categorias sintácticas que aqui
consideraremos, por serem as únicas que permitem a formação de novas
palavras, são adjectivo (ADJ), nome (N) verbo (V) e advérbio (ADV).
Utilizaremos a codificação11 que faz uso dos traços [ N] e [ V], excepto
no que diz respeito aos advérbios, categoria que esta classificação não
contempla:

(5) ADJECTIVO NOME VERBO


N + + -
V + - +

O segundo tipo de propriedades das unidades lexicais diz respeito à


categorização morfológica que as distribui por duas grandes classes, os
radicais (R) e os afixos (AF), que, por sua vez, se distribuem por três
classes determinadas pela posição relativa que ocupam na estrutura
morfológica: prefixos (PREF) se ocorrem à esquerda de uma base; sufixos
(SUF) se se encontram à direita; e interfixos se se encontram entre duas
bases12.

A classificação dos afixos não se esgota, porém, nesta


caracterização posicional, requerendo uma caracterização funcional que
tenha em conta o papel gramatical que o afixo desempenha na estrutura da
palavra. Esta caracterização permite distinguir os afixos especificadores,
os afixos derivacionais e os afixos modificadores. As propriedades
específicas de cada um destes tipos de afixos serão apresentadas nas
secções 3.3.1, 3.3.2 e 3.3.3, mas pode, sucintamente, caracterizar-se cada
um deles do seguinte modo:

Os afixos especificadores explicitam informação de natureza


morfológica, como os constituintes temáticos (cf. 6a), ou de
natureza morfo-sintáctica, como os sufixos de flexão (cf. 6b);
Os afixos derivacionais são responsáveis pela formação de novas
palavras, determinando as suas propriedades gramaticais e
semânticas (cf. 6c);
Os sufixos modificadores também são responsáveis pela formação
de novas palavras, mas intervêm apenas na sua dimensão
semântica e nunca na gramatical (cf. 6d).
(6) a. gat[o]
gat[a]
com[e]r
dorm[i]r

b. gato[s]
cantá[va] [mos]

76
c. treatr[al]
bebí[vel]

d. ded[inh]o
[re]começar

O diagrama seguinte mostra, esquematicamente, as diversas


subclasses de afixos existentes no Português:
(7)
PREFIXO MODIFICADOR

CONSTITUINTE ÍNDICE TEMÁTICO


TEMÁTICO
ESPECIFICADOR
VOGAL TEMÁTICA
AFIXO SUFIXO DERIVACIONAL
FLEXÃO
MODIFICADOR

INTERFIXO (VOGAL DE LIGAÇÃO)

A pertença a uma dada categoria sintáctica é um privilégio dos


radicais e dos sufixos derivacionais (os afixos modificadores e os sufixos
especificadores não possuem esta propriedade). A combinação das duas
especificações categoriais (sintáctica e morfológica) permite, então,
estabelecer as seguintes categorias:
(8) RADICAL ADJECTIVAL (RADJ) e.g. clar- cf. claro/a
RADICAL ADVERBIAL (RADV) e.g. ced- cf. cedo
RADICAL NOMINAL (RN) e.g. port- cf. porta
RADICAL VERBAL (RV) e.g. fal- cf. falar
SUFIXO DE ADJECTIVALIZAÇÃO (SUFADJ) e.g. –os- cf. gostoso/a
SUFIXO DE ADVERBIALIZAÇÃO (SUFADV) e.g. –ment- cf. claramente
SUFIXO DE NOMINALIZAÇÃO (SUFN) e.g. –ism- cf. idealismo
SUFIXO DE VERBALIZAÇÃO (SUFV) e.g. –ific- cf. clarificar

Uma outra das propriedades a ter em conta diz respeito à


subcategorização morfológica dos radicais, sufixos derivacionais e
constituintes temáticos. Os radicais verbais, os sufixos de verbalização e
as vogais temáticas são especificados quanto à conjugação:
(9) RADICAIS SUFIXOS DE
VOGAIS TEMÁTICAS
VERBAIS VERBALIZAÇÃO
1ª CONJUGAÇÃO fal- (ar) (clar) -ific- (ar) (fal) -a- (r)
2ª CONJUGAÇÃO beb- (er) (escur) -ec- (er) (beb) -e- (r)
3ª CONJUGAÇÃO fug- (ir) ----- (fug) -i- (r)

77
Os restantes radicais, afixos derivacionais e índices temáticos são
especificados quanto à classe temática.
(10) RADICAIS RADICAIS RADICAIS
ADJECTIVAIS ADVERBIAIS NOMINAIS
TEMA EM -a nov- (a) acim- (a) fal- (a)
TEMA EM -o nov- (o) ced- (o) ded- (o)
TEMA EM -e lev- (e) tard- (e) pent- (e)
TEMA maior- ( ) devagar- ( ) sal- ( )
ATEMÁTICOS ruim- já- chá-

(11) SUFIXOS DE SUFIXOS DE SUFIXOS DE


ADJECTIVALIZAÇÃO ADVERBIALIZAÇÃO NOMINALIZAÇÃO
TEMA EM -a (gost) -os- (a) ----- (emergê) -nci- (a)
TEMA EM -o (gost) -os- (o) ----- (segui) -ment- (o)
TEMA EM -e (urge) -nt- (e) (clara) -ment- (e) (ambigu) -idad- (e)
TEMA (amá) -vel- ( ) ----- (limpid) -ez- ( )
ATEMÁTICOS (aterr)-agem

(12) ÍNDICES ÍNDICES ÍNDICES


TEMÁTICOS TEMÁTICOS TEMÁTICOS
ADJECTIVAIS ADVERBIAIS NOMINAIS
TEMA EM -a (nov) -a (acim) -a (fal) -a
TEMA EM -o (nov) -o (ced) -o (ded) -o
TEMA EM -e (lev) -e (tard) -e (pent) -e
TEMA (maior) - (devagar) - (sal) -

Na caracterização dos radicais nominais, dos índices temáticos


adjectivais e nominais e dos sufixos de nominalização, a classe temática
conjuga-se com o género13, o que, no Português, implica uma distinção
entre masculino e feminino e a consideração de um valor subespecificado,
dado que lexicalmente não é possível determinar o género destas formas:
(13) cas- RN [+fem]14
livr- RN [-fem]
artist- RN [ fem]

Uma outra propriedade de natureza morfológica diz respeito à


variabilidade temática dos radicais adjectivais e dos sufixos de
adjectivalização, que distingue aqueles que têm formas diferentes
consoante concordam com formas masculinas ou femininas, dos que
possuem uma única forma para o masculino e para o feminino:

78
(14) RADICAIS ADJECTIVAIS SUFIXOS DE
ADJECTIVALIZAÇÃO
VARIÁVEIS INVARIÁVEIS VARIÁVEIS INVARIÁVEIS
TEMA EM -a grossa careca perigosa acolhedora
TEMA EM -o grosso perigoso
TEMA EM -e grande abafante
TEMA útil acolhedor amável
ATEMÁTICOS bom ruim ----- ----- -----

A informação semântica associada a cada unidade lexical também


difere de categoria para categoria. Aos lexemas (radicais simples ou
complexos lexicalizados) estão associadas paráfrases do significado literal
e a explicitação de eventuais significados figurados e acepções
particulares, pertencentes a vocabulários de especialidade. Esta é a
informação que está habitualmente presente nas descrições
lexicográficas15:
(15) Papel
1. substância constituída por elementos fibrosos de origem vegetal, os
quais formam uma pasta que se faz secar sob a forma de folhas delgadas,
para diversos fins: escrever, imprimir, embrulhar etc.
2. um pedaço ou uma folha de papel escrita
Ex.: este p. autoriza a entrega da encomenda
3. parte que cada ator ou atriz representa no teatro, cinema, televisão etc.
Ex.: ela tem um bom p. na novela
4. a personagem representada por cada ator ou atriz
Ex.: no seu último filme, ele fez o p. de um escritor
5. dever, obrigação legal, moral, profissional etc. ou atribuição, função
que se desempenha ou cumpre
Ex.: o p. dos pais é educar os filhos
6. m.q. papelão ('procedimento')
Ex.: mas que p. você fez na frente de todos!
7. dinheiro em notas
Ex.: não aceitam ouro, só p.
8. ação, título de crédito, letra de câmbio, nota promissória ou outro
documento negociável que represente um determinado valor

Para além de paráfrases deste ou de outro tipo, os lexemas são


caracterizáveis em termos de traços semânticos a que diversos processos
gramaticais são sensíveis. A caracterização dos radicais nominais como [
contável] é morfológica e sintacticamente relevante (cf. 3.2.1).

Aos afixos derivacionais e modificadores também estão associadas


paráfrases que identificam a alteração semântica que o afixo provoca na
base e que geralmente fazem uso de uma variável (i.e. X) para a
representar:

79
(16) Xvel = „que pode ser Xdo‟ e.g. bebível = „que pode ser bebido
reX = „voltar a X‟ e.g. refazer = „voltar a fazer‟

Quanto aos afixos especificadores, é necessário distinguir os


constituintes temáticos dos sufixos de flexão. Os constituintes temáticos
não possuem qualquer informação de natureza semântica: o significado
dos verbos não depende da conjugação a que pertencem, nem a
interpretação dos nomes é determinada pela classe temática em que se
integram. Os sufixos de flexão, por seu lado, estão associados a traços
morfo-semânticos (como [ plural], [ passado] ou [ primeira pessoa])
que se destinam prioritariamente à verificação da boa-formação das
configurações sintácticas e subsidiariamente à fixação da interpretação
semântica das frases, dado que a determinação nominal, por exemplo, ou a
expressão do tempo assentam em muito mais informação do que aquela
que é veiculada pela flexão morfológica. As propriedades semânticas com
relevância morfológica serão apresentadas na caracterização dos radicais e
dos afixos, em 3.2 e 3.3.

A informação fonológica associada a uma unidade lexical mostra


as suas representações fonológica e morfemática. Assim, o radical de casa
é representado como /#+/, o sufixo que forma a palavra teatral é
representado como /++/ e o prefixo que ocorre em desligar é
representado como /#+/. A representação da estrutura morfemática
mostra a possibilidade de ocorrência de uma dada unidade lexical em
início ou final de palavra (i.e. #), e mostra onde se encontram as fronteiras
de morfema (i.e. +), o que é particularmente relevante quando as unidades
lexicais em causa são radicais complexos lexicalizados:
(17) /#++/ e.g. sombrinha
/#++/ e.g. idoso

Por outro lado, a informação fonológica explicita eventuais


idiossincrasias de natureza fonológica, como, por exemplo, a circunstância
de a última vogal de um radical ser inacentuável. A notação geralmente
utilizada para marcar a impossibilidade de acentuação de uma vogal é o
traço [-ac], que pode marcar radicais adjectivais e nominais e sufixos de
adjectivalização e de nominalização:
(18) /#  +/ e.g. fácil
[-ac]
/#  +/ e.g. fábrica
[-ac]
/+  +/ e.g. amável
[-ac]
/+  +/ e.g. tolerância
[-ac]

80
As unidades lexicais são ainda portadoras de informações
idiossincráticas de outra natureza, como a etimológica, que permite
identificar radicais neoclássicos, codificndo-os, por exemplo, do seguinte
modo:
(19) duz [+latino] e.g. conduzir
antrop [+grego] e.g. antropologia

A informação que diz respeito a acidentes de flexão deve também


ser associada à unidade lexical afectada. Os verbos irregulares, por
exemplo, quer a irregularidade diga respeito à realização das formas
flexionadas, quer à sua ausência, quer à sua duplicação (o que permite dar
conta dos casos de supletivismo, defectividade ou abundância), vêem
inscritas no léxico todas as formas flexionadas que não podem ser geradas
pelos processos de flexão regular:
(20) sou, era, fui
chove
elegido, eleito

3.1.2 Propriedades de selecção

Os enunciados linguísticos são expressões formadas por diversas


unidades que estabelecem entre si diversos tipos de relações. Neste
sentido, as expressões linguísticas, nomeadamente as frases, mas também
as palavras, podem ser analisadas como predicações, construídas em
torno de um núcleo – a que se dá o nome de predicador - e descritas
através da explicitação da sua estrutura argumental, ou seja, dos
elementos que esse predicador requisita para dar origem a uma expressão
bem-formada. Estas restrições de coocorrência ou propriedades de
selecção dizem, de novo, respeito aos diversos níveis de informação
gramatical: sintáctico, semântico, morfológico e fonológico.

Quanto às restrições de selecção de natureza sintáctica, veja-se o


caso dos predicadores verbais, aos quais está obrigatoriamente associada
uma estrutura argumental que classifica os verbos em função do número
de argumentos que exigem16:
(21) Verbos com 0 argumentos (impessoais) e.g. chover
Verbos com 1 argumento (intransitivos) e.g. gritar
Verbos com 1 argumento (inacusativos) e.g. nascer
Verbos com 2 argumentos (transitivos directos) e.g. encontrar
Verbos com 2 argumentos (transitivos indirectos) e.g. gostar
Verbos com 2 argumentos (transitivos oblíquos) e.g. morar
Verbos com 3 ou mais argumentos e.g. dar, trazer

81
Uma outra restrição de natureza sintáctica diz respeito à estrutura
de selecção categorial, que permite especificar a categoria sintagmática
dos argumentos seleccionados por uma unidade lexical:
(22) a. amar [ ___ SN]17 e.g. O Romeu amava a Julieta
b. gostar [ ___ SP] e.g. O Romeu gostava da Julieta
18
c. fumar [ ___ (SN)] e.g. O Pedro fuma (cachimbo)
d. sorrir [ ___ ] e.g. O Pedro sorriu

Aos argumentos seleccionados por um predicador está também


associada informação sobre a sua função temática, ou seja, sobre a relação
semântica que estabelecem com o predicador. Há diversas propostas sobre
o elenco de funções temáticas e respectivas definições que melhor se
adequam à análise linguística. A que se segue é a de Eliseu (2007):
(23) Agente: entidade (dotada de volição, mesmo que involuntariamente) que
desencadeia a acção expressa pelo predicador
e.g. A Rute partiu o vidro (sem querer).

Instrumento: entidade (não controladora) que causa a acção expressa


pelo predicador ou o objecto com o qual se efectua um acção
e.g. O vento fechou a porta.

Tema: entidade que é afectada pela acção, movida, percebida ou


experienciada
e.g. O vento fechou a porta.

Experienciador: entidade que sente ou se apercebe dos acontecimentos


e.g. A professora gosta de desenhos animados.

Beneficiário: entidade que beneficia da acção expressa pelo predicador


e.g. O António comprou estas flores para a namorada.

Alvo: entidade / lugar em relação à qual é dirigida a acção (concreta ou


abstracta) expressa pelo predicador
e.g. O António vendeu o carro à Margarida.

Origem: entidade / lugar a partir da qual uma coisa é movida devido à


acção expressa pelo predicador
e.g. A Margarida comprou o carro ao António.

Locativo: espaço em que se situa a situação expressa pelo predicador


e.g. A vizinha do ministro está em casa.

Os argumentos seleccionados por um dado predicador podem ainda


ser especificados por informações de natureza sintáctico-semântica,
codificada por traços como [± animado] e [± humano], que permitem
distinguir as entidades pertencentes à espécie humana dos restantes seres
vivos e todos estes de qualquer matéria inerte:

82
(24) a. morrer <[+animado] _ > e.g. O Pedro morreu
A tartaruga morreu
*O relógio morreu19
b. construir <[+humano] _ [-animado]> e.g. O Pedro construiu uma casa
O Pedro construiu *um rato
O Pedro construiu *um amigo
c. conversar <[+humano] _ [+humano]> e.g. O Pedro conversou com a Maria
O Pedro conversou *com o disco
O Pedro conversou *com o rato
O Pedro conversou *com a flor
*O livro conversou com a Maria
*O rato conversou com a Maria
*A flor conversou com a Maria
d. encomendar <[+humano] _ [-humano]> e.g. O Pedro encomendou um carro
O Pedro encomendou um rato
O Pedro encomendou *um amigo

Passemos agora às restrições de selecção de natureza


morfológica, que afectam exclusivamente os afixos, indicando, por um
lado, a posição que ocupam na estrutura morfológica e, por outro, qual o
tipo de unidades a que podem associar-se. O sufixo –ção, por exemplo,
associa-se a temas verbais; o sufixo –idade associa-se a radicais
adjectivais:
(25) -ção [[X] ] e.g. continua ]TV ção
TV
habitua]TV ção
irrita]TV ção
competi]TV ção

-idade [[X] ] e.g. etern]RADJ idade


RADJ
cumplic]RADJ idade
ambigu ]RADJ idade
idone]RADJ idade

Quanto às restrições de selecção de natureza fonológica, elas


dizem respeito a questões de alomorfia20. O sufixo –vel, por exemplo,
assume esta forma quando ocorre em posição final de palavra (cf. amável);
nos restantes contextos a sua forma é –bil (cf. amabilidade). A
representação deste sufixo deve, pois, tornar explícita a sua distribuição:
(26) [#]
[+]
Um outro caso de alomorfia é o que diz respeito ao sufixo –ez. De
um modo geral, este sufixo ocorre associado a radicais adjectivais que
contêm duas ou mais vogais (e.g. altivez, estupidez, invalidez, timidez).

83
Nos restantes casos, a forma do sufixo é –eza (e.g. beleza, dureza, pureza,
riqueza). A representação do sufixo deve integrar essa informação:
(27) [[[ 2V]RADJ []]RN [ ]]TN
[[[1V]RADJ []]RN []]TN

Concluída esta caracterização geral das unidades lexicais, vejamos


agora, com mais atenção, como se caracterizam os diversos constituintes
morfológicos terminais, ou seja, os radicais (nominais, adjectivais, verbais
e adverbiais) e os diversos tipos de afixos (especificadores, derivacionais e
modificadores).

3.2 Radicais

Poder-se-ia definir radical como o constituinte núcleo de uma


palavra simples, ou seja, como o constituinte que define o conteúdo
semântico e as propriedades gramaticais básicas da palavra que integra21.
Escola, por exemplo, é um nome feminino porque escol– é um radical
nominal feminino; grave é um adjectivo invariável porque grav– é um
radical adjectival invariável; pedir é um verbo da terceira conjugação
porque ped– é um radical verbal de terceira conjugação. Mas nem todos os
radicais podem ocorrer em palavras simples e nem todas as palavras são
palavras simples.

Há um relevante contingente de radicais que só podem ocorrer em


palavras complexas. É o que se verifica com formas como pisc– ou icti–,
semanticamente equivalentes ao radical peix–, mas que nunca surgem em
palavras simples:
(28) peix–e
pisc–i–cultura = criação de peixes
pisc–i–forme = que tem forma de peixe
pisc–í–voro = que se alimenta de peixe
icti–ó–fago = que se alimenta de peixe
icti–ó–lito = fóssil que contém um peixe ou pedaços de peixe
icti–ose = dermatose que torna a pele escamosa

Os radicais que não ocorrem em palavras simples são


frequentemente radicais neoclássicos (por oposição aos restantes, que
podem ser identificados como radicais vernáculos), ou seja, são
latinismos ou helenismos disponíveis apenas para a formação de palavras
e em particular para a formação de alguns tipos de palavras, como os
compostos morfológicos e alguns tipos de derivados (como os derivados

84
em –ose). A distinção entre radicais vernáculos e radicais neoclássicos
permite, pois, distinguir os radicais que podem ocorrer quer em palavras
simples (e.g. peix(e)), quer em palavras complexas (e.g. peix(ada)), dos
radicais que só podem ocorrer em palavras complexas (e.g. pisc(icultura),
icti(ofobia)).

Os radicais neoclássicos podem ser caracterizados como um


subléxico do Português, criado a partir de empréstimos do Grego Antigo e
do Latim, muito frequentemente por intermédio de uma língua
contemporânea, como o Inglês ou o Francês. Não ocorrendo livremente
em qualquer tipo de contexto sintáctico, é difícil identificar as suas
propriedades gramaticais. Note-se que um radical como vor-, proveniente
de um verbo latino (i.e. VORO, VORARE), ocorre, no Português, integrado no
verbo devorar (também herdado de um verbo latino - DEVORO, DEVORARE,
lexicalizado no Português), no adjectivo voraz (do Latim, VORAX,
igualmente lexicalizado no Português) e em compostos como carnívoro,
que pode ser um adjectivo ou um nome. Esta conjugação de dados explica
a impossibilidade de atribuir ao radical vor-, tal como a qualquer outro
radical neoclássico, uma categoria sintáctica.

Mas há outras diferenças relevantes: o género, por exemplo, é uma


propriedade inerente dos radicais nominais vernáculos (peix– é um radical
nominal masculino), enquanto que os radicais nominais neoclássicos não
possuem qualquer especificação deste tipo (pisc– ou icti– não têm género
feminino nem masculino); por outro lado, os radicais neoclássicos não
possuem a especificação temática que para os radicais vernáculos é uma
propriedade crucial (peix– é um radical nominal de tema em –e, pisc– ou
icti– não se integram em qualquer classe temática).

Pode, assim, concluir-se que a definição de radical inicialmente


proposta, e que vai ao encontro da intuição dos falantes, é insuficiente para
a análise morfológica, mas a sua discussão permite-nos compreender que a
caracterização dos radicais, em particular no confronto com os afixos,
exige que os radicais neoclássicos e os radicais vernáculos sejam
independentemente considerados. Centremo-nos, então, na descrição
destes últimos.

Nem todas as informações que estão associadas às unidades


lexicais são relevantes para a sua integração em estruturas morfológicas –
algumas, como a impossibilidade de acentuação de vogais em posição
acentuável (veja-se, por exemplo, a penúltima vogal de abóbora), ou a
etimologia são geralmente irrelevantes. A relação de pertença a uma
categoria sintáctica, pelo contrário é primordial, dado que dela depende
toda a restante classificação.

85
Como vimos há pouco, a categoria sintáctica dos radicais
vernáculos22 é determinada pela categoria sintáctica das palavras simples
em que ocorrem, qualquer que seja a forma flexionada considerada:

(29) boc RN gord RADJ com RV


boca N gordo ADJ como V coma V comerei V
bocas N gordos ADJ comes V comas V comerás V
gorda ADJ come V coma V comerá V
gordas ADJ comemos V comamos V comeremos V
comeis V comais V comereis V
comem V comam V comerão V
comi V comesse V comeria V
comeste V comesses V comerias V
comeu V comesse V comeria V
comemos V comêssemos V comeríamos V
comestes V comêsseis V comeríeis V
comeram V comessem V comeriam V
comia V comer V comendo V
comias V comeres V
comido V
comia V comer V
comíamos V comermos V comer V
comíeis V comerdes V
comiam V comerem V
comera V
comeras V
comera V
comêramos V
comêreis V
comeram V

Dados como os de (30) poderiam levar-nos a admitir que alguns


radicais pertencem a mais do que uma categoria sintáctica:
(30) solt- solto ADJ / soltar V
velh- velho N / velho ADJ
troc- troco N / troca N / trocar V
fabric- fabrico N / fábrica N / fabricar V
sec- sec(o,a) ADJ / seco N / seca N / secar V
Ainda que, foneticamente, estes radicais sejam idênticos, trata-se
de unidades lexicais distintas, que, para além de pertencerem a diferentes
categorias sintácticas, são portadoras de distintas propriedades fonológicas
(cf. 31a), morfológicas e morfo-sintácticas (cf. 31b):

86
(31) a. [„]ADJ
[„]V

b. troco N–o, [-feminino] troca N–a, [+feminino]

Estabelecida a distinção categorial básica, vejamos, então, como se


caracterizam os radicais nominais, os radicais adjectivais, os radicais
verbais e os radicais adverbiais.

3.2.1 Propriedades dos radicais nominais

Foi já dito que as unidades lexicais caracterizáveis como radicais


nominais são os constituintes que ocupam a posição de radical de um
nome simples (cf. [ [ros]RN [a]IT ]TN [ ][-PLU]] N[-PLU]), mas a descrição que se
segue não diz respeito apenas aos radicais nominais simples, diz respeito a
todos os radicais nominais, simples ou complexos. Ora, se o estatuto
categorial de um radical simples lhe advém da natureza categorial da
palavra simples em que ocorre, o que se passa com os radicais complexos?
São duas as situações a ter em conta. Nas palavras complexas, o núcleo é
um radical complexo: o radical simples que o integra pode ser o núcleo
dessa estrutura, se se tratar de uma estrutura de modificação, como
rosinha, ou não, se se tratar de uma estrutura de derivação, como roseira:
(32) [ [ros]núcleo de rosinh- [inh] ]núcleo de rosinha [a]
[ [ros] [eir]núceo de roseir- ]núcleo de roseira [a]

Para a análise morfológica, a especificação lexical dos radicais


nomnais mais relevante diz respeito a algumas propriedades morfo-
semânticas, ao género e à classe temática. Igualmente relevante é a
informação de que flexionam em número.

3.2.1.1 Propriedades morfo-semânticas

Aos radicais nominais está associada informação relativa à


distinção entre nomes próprios e comuns, animados e inanimados,
humanos e não-humanos e contáveis e massivos. A distinção entre nomes
próprios e nomes comuns é justificada por contrastes sintácticos como o
seguinte23:
(33) Lisboa é uma cidade antiga
*A Lisboa é uma cidade antiga
*Lisboa que está muito poluída é uma cidade antiga
*Lisboas

87
O professor é um homem velho
*Professor é um homem velho
O professor que chegou hoje é um homem velho
professores

A especificação dos nomes relativamente a este contraste morfo-


semântico faz uso do traço [±comum]:
(34) Lisboa [-comum]
professor [+comum]

Esta é uma informação morfologicamente relevante. Os sufixos


que formam adjectivos gentílicos, como –ense, por exemplo, seleccionam
obrigatoriamente um radical [-comum]. É o que se verifica no caso de
setubalense, adjectivo derivado do nome próprio (topónimo) Setúbal.

O traço [± animado] distingue entre a subclasse de nomes que


refere seres vivos (ainda que seres vivos, nesta visão do mundo, sejam
apenas pessoas e animais), da subclasse que refere entidades inanimadas e
conceitos:
(35) Maria [+animado]
rato [+animado]
pinheiro [-animado]
disco [-animado]
prazer [-animado]

Os radicais nominais animados requerem uma outra distinção


semântica que indica se o nome ao qual está associado refere ou não um
ser humano e usa, habitualmente, o traço [±humano]:
(36) Maria [+humano]
rato [-humano]
disco [-humano]

Note-se que entre estas duas propriedades (i.e. [±animado] e


[±humano]) há implicações lógicas que permitem simplificar a
especificação de alguns nomes:
(37) [+humano] [+animado]
[-animado] [-humano]

A análise morfológica faz uso desta informação, por exemplo, para


dar conta da formação de contrastes de género por composição morfo-
sintáctica. Só os radicais nominais [+ animado, - humano], que são os
radicais dos nomes epicenos, podem usar esse recurso:
(38) águia-macho
águia-fêmea

88
Os nomes comuns são ainda caracterizáveis como contáveis ou
massivos, distinção que também encontra justificação em contrastes
morfo-sintácticos24, como os seguintes
(39) a. uma cadeira / duas cadeiras
um vinho / *dois vinhos

b. *preciso de cadeira / preciso de cadeiras


preciso de vinho / *preciso de vinhos

c. *não tenho muita cadeira / não tenho muitas cadeiras


não tenho muito vinho / *não tenho muitos vinhos

A sequência precedida de asterisco em (39a) só não é agramatical


se significar diferentes qualidades de vinho, ou se for considerada como
elipse de uma sequência do tipo garrafas de vinho. Na entrada lexical de
cada uma destas palavras constará, assim, informação sobre o valor do
traço [± contável]:
(40) cadeira [+contável]
vinho [-contável]

Para além da relação com a flexão em número, este tipo de


informação é solicitada por alguns processos de formação de palavras. Os
sufixos que formam nomes colectivos, por exemplo, seleccionam nomes
contáveis e formam obrigatoriamente nomes não-contáveis.
(41) folh(a) [+contável] folhagem [-contável]
vasilh(a) [+contável] vasilham(e) [-contável]

3.2.1.2 Género

No Português, o género25 é uma propriedade inerente dos radicais


nominais. Todos os radicais nominais possuem, pois, informação de
género gramatical e esta informação é sintacticamente relevante, dado que
desencadeia mecanismos de concordância.
(42) Este bolo está delicioso
Esta tesoura precisa de ser afiada

Com foi já referido, são três os valores de género disponíveis no


Português: masculino, feminino e um valor subespecificado, que
caracteriza os radicais nominais cujo valor de género não é lexicalmente
determinado e a que habitualmente se dá o nome de comuns-de-dois:

89
(43) Este bolo está delicioso.
Este aluno está reprovado.
Este problema é fácil de resolver.
Este polícia multou-me.

masculino
Este pente está partido.
O Infante D. Henrique nasceu no Porto.
Este bar está aberto até tarde.
O professor atrasou-se.
Este chá está muito forte.
O avô está a chegar.

Esta tribo vive em total isolamento.


Esta tesoura precisa de ser afiada.
Esta menina está muito crescida.
feminino

Esta lente está riscada.


Esta vampe é a minha filha.
Esta paz foi conseguida com grande esforço.
Esta pá está partida.
A avó está a chegar.

Este / esta modelo já fez duas capas da mesma revista.


especificado

Este / esta paisagista faz projectos de grande qualidade.


sub-

Este / esta agente já multou dois condutores.


Este / esta furriel merece um louvor.

A sintaxe pode ou não fixar um valor de género para os nomes


formados a partir de radicais nominais subespecificados quanto ao género,
o que indicia que semanticamente essa informação não é indispensável.
(44) Este agente foi convidado a sair.
Esta agente foi convidada a sair.
Atletas assim é que dá gosto treinar.

É importante referir que, no Português, a relação entre um dado


radical e um dado valor de género é, na generalidade dos casos, aleatória.
Com efeito, essa relação só pode ser motivada quando os nomes denotam
entidades animadas, mas mesmo neste domínio registam-se variadíssimos
casos que mostram a fragilidade dessa hipótese de generalização. O
género é uma propriedade que guarda memória de uma semântica
relacionada com a repartição das entidades em animadas e inanimadas, e a
distinção, no primeiro caso, dos subconjuntos de entidades que referem
seres de sexo masculino e seres de sexo feminino. Este sistema é herdado
das línguas em que o Português se filia, mas já aí conhecia alguma
instabilidade: a relação arquetípica dos nomes inanimados com o neutro
também já estava comprometida em Latim, dado que já nessa língua se
encontram nomes inanimados com género feminino (cf. LUNA > lua) ou
masculino (cf. SOL > sol). O desaparecimento do valor neutro na formação

90
da generalidade das línguas românicas (à excepção do Romeno26) acabou
por torná-lo extremamente precário, dado que todos os nomes que referem
entidades inanimadas tiveram de inscrever-se ou na classe dos nomes que
referem entidades de sexo feminino, ou na classe dos nomes que referem
entidades de sexo masculino27.

Comecemos por observar os radicais nominais inanimados. Nestes


casos, a atribuição de um valor de género é estritamente acidental.
Considerem-se os seguintes exemplos:
(45) sofá poltrona
leito cama
chinelo chinela
o moral a moral
o lente a lente

Apesar de terem valores de género distintos, sofá e poltrona


referem dois objectos com formas e funções muito semelhantes, leito e
cama são sinónimos com alguma distribuição complementar (cf. o leito /
*a cama do rio vs. comprei uma cama / *um leito de casal) e chinelo e
chinela são sinónimos de distribuição equivalente. O valor de género
destes radicais é tão imotivado e imprevisível que requer aprendizagem
específica, explicando a ocorrência de contrastes entre variedades do
Português (cf. 46a), entre palavras cognatas do Português e outras línguas
românicas (cf. 46b) e hesitações no interior de um único dialecto do
Português (cf. 46c), algumas das quais historicamente atestadas (cf. 46d):
(46) a. Português Europeu cataplasma[-fem] entorse[+fem]
Português do Brasil cataplasma[+fem] entorse[-fem]
b. Português leite[-fem] árvore[+fem]
Castelhano leche[+fem] árbol[-fem]
Português lume[-fem] ponte[+fem]
Catalão llum[+fem] pont[-fem]
Português planeta[-fem] imagem [+fem]
Francês planète[+fem] image[-fem]
Português vale[-fem] margem [+fem]
Italiano valle[+fem] màrgine[-fem]
c. a/os diabetes a/o laringe
a/o ênfase a /o síndrome
d. PLANETA[+fem] /[-fem]>[+fem] > planeta[-fem]
LAC, LACTIS[neutro] > leite[-fem]
FOLIA[neutro plural] > folha[+fem]
MARE, -IS[neutro] > mar[+fem] > [-fem]
VALLIS, -IS[+fem] > vale[-fem]
DOLOR, -ORIS[-fem] > dor[+fem]

91
Em relação aos radicais de nomes animados, convém distinguir os
que referem seres humanos de todos os outros. Regra geral, a referência a
entidades humanas distingue o género masculino do feminino,
estabelecendo um nexo entre o primeiro e sexo masculino e entre o
segundo e sexo feminino:
(47) aluno aluna
doutor doutora
monge monja
homem mulher
conde condessa
cônsul consulesa
papa papisa
vendedor vendedeira

Esta relação entre género gramatical e sexo não é, porém,


universal. Como é sabido, e apesar de não serem casos frequentes, há
radicais nominais masculinos que referem mulheres (cf. um mulherão) e
radicais nominais femininos que referem homens (cf. uma bicha). Menos
raros são os radicais nominais chamados sobrecomuns que referem
indistintamente homens e mulheres, embora tenham um único valor de
género – é o caso de cônjuge, ídolo, testemunha ou criança. E menos raros
ainda são os já referidos radicais nominais comuns-de-dois, que podem ser
sintacticamente especificados como femininos ou masculinos, dado que,
lexicalmente, o seu valor de género está subespecificado:
(48) diplomata
modelo
adolescente

Note-se que a subespecificação de género constitui, no Português


contemporâneo, a estratégia preferencialmente utilizada para a obtenção
de denotação não-ambígua a referentes masculinos e femininos: uma
mulher que, na hierarquia militar, ocupa a patente de soldado será referida
como a soldado X, do mesmo modo que muitas magistradas preferem ser
designadas por a juiz e muitas criadoras literárias renunciam à forma
poetisa, preferindo ser chamadas a poeta. Esta preferência pela
subespecificação deve-se a uma conjunção de factores: por um lado, nem
sempre é fácil encontrar uma forma adequada ao feminino (cf. um capitão,
uma capitona? capitã? capitoa?), por outro, as potenciais formas do
feminino (cf. sargenta, generala) parecem referir não as mulheres que
detenham as patentes de sargento ou general, mas sim, caricaturalmente,
mulheres com características geralmente atribuídas aos militares com
essas patentes. Esta especialização do significado está consagrada, por

92
exemplo, no contraste entre a designação da função de embaixadora e o
título atribuído à mulher do embaixador, que é a embaixatriz.

Quanto aos radicais nominais que referem entidades animadas não


humanas, ainda que aqueles que referem animais domésticos ou familiares
(pelo menos no nosso imaginário) possam dispor de formas próprias para
o feminino e para o masculino (cf. gato, gata; leão, leoa), os casos mais
frequentes são os dos radicais nominais, masculinos ou femininos, que
referem indistintamente os machos e as fêmeas de cada espécie, e que são
chamados epicenos:
(49) chimpanzé cobra
elefante girafa
gafanhoto lontra
javali mosca
leopardo pantera
tigre zebra

Por último, pode referir-se que os radicais nominais derivados têm


uma relação mais motivada com o género, dado que todos os radicais
formados por um mesmo sufixo derivacional possuem idêntico valor. Por
exemplo:

todos os radicais nominais derivados pelo sufixo –idade são


femininos (cf. animosidade, especificidade, particularidade, etc.);

todos os derivados em –ismo são masculinos (cf. amadorismo,


presidencialismo, terrorismo, etc.)

todos os derivados em –nte são subespecificados (cf. assistente,


acompanhante, presidente, etc.).

Note-se, porém, que esta sistematicidade assenta na relação


aleatória que cada sufixo de nominalização mantém com o género, ou seja,
não existe qualquer motivação para que –ção forme radicais nominais
femininos, ou para que –mento forme radicais nominais masculinos, ou
para que –nte forme radicais nominais subespecificados.

3.2.1.3 Classes temáticas

Aos radicais nominais está geralmente associada informação sobre


a classe temática a que pertencem28, e que, em Português, é definida pela
natureza do índice temático que seleccionam29 (-a, -o, -e, -Ø) ou pela sua

93
ausência (╤)30, em combinação com o seu valor de género (masculino,
feminino ou subespecificado):

(50) tem RN[ -a, - FEMININO ] e.g. tema


folh RN[ -o, - FEMININO ] e.g. olho
dentRN[ -e, - FEMININO ] e.g. dente
tractor RN[ -Ø, - FEMININO ] e.g. tractor
chapéu RN[ ╤, - FEMININO ] e.g. chapéu
pern RN[ -a, + FEMININO ] e.g. perna
trib RN[ -o, + FEMININO ] e.g. tribo
estant RN[ -e, +FEMININO ] e.g. estante
luz RN[ -Ø, + FEMININO ] e.g. luz
mãe RN[ ╤, + FEMININO ] e.g. mãe
artist RN[ -a, FEMININO] e.g. artista
model RN[ -o, FEMININO] e.g. modelo
agent RN[ -e, FEMININO] e.g. agente
furriel RN[ - Ø, FEMININO] e.g. furriel

A identificação dos radicais de tema em –o, em –a e em –e não


coloca especial dificuldade: trata-se de radicais de nomes que, no singular,
exibem esse radical e o respectivo índice temático e, no plural, exibem o
radical, o índice temático respectivo e o sufixo de flexão adequado:
(51) folh-o folh-o-s
pern-a pern-a-s
dent-e dent-e-s

A distinção entre radicais de tema em –e e radicais de tema Ø é um


pouco mais complexa, dado que as palavras de tema Ø se caracterizam
pelo facto do índice temático não ter realização fonética no singular
(embora em alguns casos se produza um [] final) e ser realizado como
[] no plural. Mas esta caracterização também se adequa às formas de
tema em –e, que graficamente terminam sempre em <e> , no singular:
(52) tractor [()] tractores []
dente [()] dentes []

Aparentemente a distinção entre estas duas classes temáticas de


radicais nominais é, pois, meramente ortográfica31, sendo mesmo possível
encontrar pares de palavras em que não há diferenças visíveis na
realização fonética (nem no singular, nem no plural), nem contrastes de
outra natureza, nomeadamente morfológicos, por exemplo, na formação
de avaliativos:

94
(53) gar -e gares garezinha
lugar-Ø lugares lugarzinho
halter -e halteres halterezinho
mister-Ø misteres misterzinho
estor -e estores estorezinho
motor-Ø motores motorzinho

Há, porém, dois tipos de radicais que justificam a postulação destas


duas classes temáticas: trata-se dos radicais terminados em /l/ e dos
radicais terminados em /z/:
(54) val–e vales
enxoval–Ø enxovais
pel–e peles
papel–Ø papéis
móbil–e móbiles
móbil–Ø móbeis
desfil–e desfiles
perfil–Ø perfis
gol–e goles
mongol–Ø mongóis
bul–e bules
azul–Ø azuis
bas–e [] bases
cabaz–Ø [ ] cabazes
gaz–e [] gazes
gás–Ø [ ] gáses
tes–e [] teses
tez–Ø [ ] tezes
dos–e [] doses
tardoz–Ø [ ] tardozes

As formas do plural dos radicais de tema em –e terminados em //


não apresentam qualquer característica relevante – o plural é obtido por
simples adjunção do sufixo relevante, ou seja –s (cf. vale – vales). Já as
formas do plural dos radicais terminados em // e tema Ø são geradas por
adjunção do sufixo relevante e a intervenção de um processo
morfofonológico de semivocalização dessa consoante (cf. enxoval –
enxovais – *enxovales32).

Quanto aos radicais de tema em –e terminados em //, não é nas


formas do plural que se encontra o argumento para a distinção (aliás, neste
caso, o plural dos dois tipos de radicais é idêntico: bases e cabazes, doses

95
e tardozes). A distinção vem da realização fonética da consoante final do
radical que, no caso dos nomes de tema -Ø, mostra que o // está em final
de palavra, sendo realizado como [], como em [],[], [] ou
[], e no caso dos nomes de tema em –e mostra que o // não o
está, sendo realizado como [], como em [], [], [] ou
[].

Vejamos, por último, os radicais atemáticos. Esta classe terá


começado por englobar radicais com um comportamento marginal, quer
por se tratar de empréstimos de línguas menos presentes na etimologia do
léxico do Português, quer por apresentarem „acidentes‟ diacrónicos,
responsáveis pela ausência de qualquer um dos índices temáticos que
caracterizam as restantes classes temáticas. O que impede a consideração
desta classe temática como estritamente marginal é o facto de nela se
integrarem alguns tipos de palavras derivadas, como os radicais nominais
formados por sufixação em –ugem, em –ão ou em –ção:
(55) pen]RN ugem]N
chor]RV ão]N
aprova]TV ção]N

Pode admitir-se que estes sufixos não formam radicais atemáticos


se se considerar que a realização fonética que assumem no singular é
derivada de uma representação subjacente, que nos casos em análise seria
talvez /++#/, /++#/ e /++#/, mas há análises alternativas,
como as que estipulam alomorfes do radical, que talvez sejam menos
gravosas do ponto de vista do processamento lexical.

De um modo geral, as palavras formadas a partir de radicais


atemáticos terminam em vogal oral tónica33 (cf. 56a), vogal nasal tónica
(cf. 56b), ditongo oral tónico (cf. 56c) ou ditongo nasal tónico (cf. 56d),
embora também possam terminar em vogal ou ditongo átonos34 (cf. 56e)
ou até mesmo em consoante (cf. 56f). Note-se que nas palavras que
integram radicais atemáticos não está presente qualquer índice temático,
pelo que a forma do radical é idêntica à do singular e o plural é realizado
como uma sequência de radical e sufixo –s. Por outro lado, os radicais
atemáticos só podem ser modificados por sufixos z-avaliativos (cf.
*alvarainho, *neoninho):
(56) a. Árabe AL-BARÁÂ alvará-s [] alvara-zinho
Tupi YAKA'RE jacaré-s [] jacare-zinho
Francês CACHET cachê-s [] cache-zinho
Caraíba KOLIBRIS colibri-s [] colibri-zinho
Francês TRAÎNEAU trenó-s [] treno-zinho
Francês TRICOT tricô-s [] trico-zinho

96
Francês BAHUR baú-s [] bau-zinho
b. Latim AVELLANA avelã-s [] avelã-zinha
Francês ÉCRAN ecran-s [] ecran-zinho
sel(a)-im 35 selim-s [] selin-zinho
Latim DÓNUM dom-s [] don-zinho
Grego NÉON néon-s [] neon-zinho
bod(e)-um bodum-s [] bodun-zinho
c. Neerl. CABBELIAU bacalhau-s [] bacalhau-zinho
Latim REUS, REI réu-s [] reu-zinho
Latim LYCEUM liceu-s [] liceu-zinho
Japonês BONSAI bonsai-s [] bonsai-zinho
Latim REX REGIS rei-s [] rei-zinho
Latim BOS,BOVIS boi-s [] boi-zinho
Grego HEROS herói-s [] heroi-zinho
? chui-s [] chui-zinho
Latim GERMÁNUS irmão-s [] irmão-zinho
Árabe HARAM harém-s [] harem-zinho
Inglês JURY júri-s [] juri-zinho
Inglês JOCKEY jóquei-s [] joquei-zinho
Latim BENEDÍCTIO bênção-s [] bênção-zinha
Francês PAYSAGE paisagem-s [] paisagem-zinha
Grego ÍRIS íris-s [] iris-zinha
Latim LÁPIS lápis-s [] lapis-zinho
Árabe AR-RÁ'IS arrais-s [] arrais-zinho
Grego ÁTLAS atlas-s [] atlas-zinho
Grego HUPHÉN hífen-s [] hifen-zinho
Latim SÌLEX sílex-s [] silex-zinho
Inglês SCRIPT script-s [] script-zinho
Inglês LINK link-s [] link-zinho

Nem sempre é fácil distinguir as palavras de tema -Ø das palavras


atemáticas, dado que a distinção é lexicalmente estabelecida.
Compreende-se, assim, a dificuldade e as hesitações de alguns falantes na
flexão plural de palavras como arroz ou filhó. Ainda que as formas aceites
sejam arrozes e filhós, não é difícil encontrar ocorrências de um plural
com a forma arroz (cf. são dois arroz de peixe, por favor), como se se
tratasse de um radical atemático (i.e. arroz]RN ]TN), e filhoses, formada
sobre um inexistente radical de tema -Ø (i.e. filhos]RN Ø]TN). Note-se por
último, que, excluindo os que terminam em fricativa palatal (e.g. íris,
lápis, arrais ou atlas), os radicais atemáticos terminados em consoante
tendem a comportar-se como radicais de tema –Ø, pelo menos na
formação do plural (cf. [] vs. []; [] vs.

97
[]; [] vs. []; ou [] vs. []), apesar
da ortografia não o consagrar.

3.2.2 Propriedades dos radicais adjectivais

Aos radicais adjectivais está associada informação relativa à classe


temática, que, tal como nos radicais nominais, é definida pela natureza do
índice temático que seleccionam (-a, -o, -e, -Ø) ou não (╤), e pela sua
variabilidade, que distingue os radicais adjectivais variáveis em género, ou
seja, aqueles que possuem formas distintas para a concordância com
formas femininas e masculinas, e radicais adjectivais invariáveis, que
possuem uma única forma, qualquer que seja o valor de género da forma
com a qual concordam.

Os adjectivos variáveis têm formas distintas para o masculino e o


feminino, mas partilham o mesmo radical: todos os adjectivos masculinos
têm uma forma morfologicamente relacionada para o feminino e todos os
adjectivos femininos têm uma forma morfologicamente relacionada para o
masculino:
(57) bel RADJ[ -o, - FEMININO ] cf. belo
bel RADJ[ -a, + FEMININO ] cf. bela

devedor RADJ[ -A, + FEMININO ] cf. devedora


devedor RADJ[ -Ø, - FEMININO] cf. devedor

mau RADJ[ ╤, - FEMININO] cf. mau


má RADJ[ ╤, + FEMININO ] cf. má

Os adjectivos invariáveis36 têm uma única forma para concordância


com o masculino e com o feminino.
(58) lorp RADJ[ -a, FEMININO] cf. lorpa
livr RADJ[ -e, FEMININO] cf. livre
polar RADJ[ -Ø, FEMININO] cf. polar
comum RADJ[ ╤, FEMININO] cf. comum

Aos radicais adjectivais está ainda associada informação sobre


graduabilidade, ou seja, sobre a possibilidade ou impossibilidade de os
adjectivos indicarem o grau de presença da propriedade que denotam37. Os
radicais adjectivais graduáveis, como interessant-, exprimem qualidades
que podem ser medidas numa escala de dimensão ou de valor. Estes
radicais adjectivais podem ser morfologicamente modificados por afixos
avaliativos, como o sufixo –íssimo que é responsável pela formação do
superlativo absoluto sintético, o sufixo –inho que forma um atenuativo da

98
base e o prefixo super- que forma um intensificador da base38. Os radicais
adjectivais não-graduáveis, como sulfuric-, não podem ser modificados
porque as propriedades que denotam não podem ser avaliadas: ou estão
presentes ou ausentes. Esta informação pode ser formalizada pelo traço [±
graduável]:
(59) car [+GRADUÁVEL] e.g. caríssimo, carozinho, super-caro
sulfuric [-GRADUÁVEL] e.g.*sulfuriquíssimo,*sulfuricozinho, *super-sulfúrico

3.2.3 Propriedades dos radicais verbais

Como já vimos, aos radicais verbais está associado um traço que


indica a conjugação (primeira, segunda ou terceira) a que pertencem39. A
relevância desta informação é estritamente morfológica, e apenas porque,
em alguns casos, determina a realização da flexão40. Pode, aliás,
considerar-se que esta classificação dos radicais verbais obscurece o
contraste morfologicamente mais relevante que opõe a primeira
conjugação ao conjunto das segunda e terceira: à excepção do infinitivo e
do gerúndio (cf. 60a) e da forma que ocorre como base de alguns
derivados (cf. 60b), toda a restante flexão (cf. 60c) e todas as restantes
bases derivacionais (cf. 60d) se organizam de forma bipartida41:

(60) a. domin RV[1ª CONJ] dominar dominando


reg RV[2ª CONJ] reger regendo
confer RV[3ª CONJ] conferir conferindo

b. domin RV[1ª CONJ] dominador


reg RV[2ª CONJ] regedor
confer RV[3ª CONJ] conferidor

c. domin RV[1ª CONJ] dominava domine dominado


reg RV[2ª CONJ] regia reja regido
confer RV[3ª CONJ] conferia confira conferido

d. domin RV[1ª CONJ] dominância dominável


reg RV[2ª CONJ] regência regível
confer RV[3ª CONJ] conferência conferível

Para além da conjugação, os radicais verbais incluem informação


relativa ao tipo de flexão, que pode ser regular42 ou irregular43. Os radicais
de verbos irregulares devem conter indicação sobre o tipo de
irregularidade que os afecta e que pode ser de natureza fonológica,
morfológica ou semântica. A defectividade é um dos tipos de
irregularidade que pode afectar os radicais verbais, havendo vários tipos

99
de defectividade. Muitos verbos da terceira conjugação, como, por
exemplo, falir, são defectivos por razões de natureza fonológica, nas
formas rizotónicas (ou seja, que são formas acentuadas no radical), como
as do singular e da terceira do plural do presente do indicativo, todas as
formas do presente do conjuntivo e a segunda do imperativo44:
(61) *falo *fala fali, falisse …
*fales *falas faliste, falisses …
*fale *fala faliu, falisse …
falimos *falamos falimos, falíssemos …
falis *falais falistes, falísseis …
*falem *falam faliram, falissem …

*floro *flora flori, florisse …


*flores *floras floriste, florisses …
*flore *flora floriu, florisse …
florimos *floramos florimos, floríssemos …
floris *florais floristes, florísseis …
*florem *floram floriram, florissem …

Defectivos por razões semânticas são os verbos que referem vozes


de animais e fenómenos meteorológicos. Embora usos particulares possam
legitimar a ocorrência de todas as formas flexionadas, os primeiros são
geralmente defectivos na primeira e na segunda pessoas (cf. 62a) e os
verbos meteorológicos, como chover ou nevar, só são flexionados na 3ª
pessoa-singular (cf. 62b).
(62) a. ? ladro, ladrei, ladrava
? ladras, ladraste, ladravas
ladra, ladrou, ladrava
? ladramos, ladrámos, ladrávamos
? ladrais, ladrastes, ladráveis
ladram, ladraram, ladravam

b. ? chovo, choves, chovemos,chovem


chove
? nevei, nevaste, nevámos, nevaram
nevou
Também de natureza semântica é a defectividade dos verbos
recíprocos, que só flexionam nas formas do plural porque o sujeito não
pode ser singular:

100
(63) (nós) cumprimentamo-nos
(vós) cumprimentais-vos
(vocês, eles) cumprimentam-se

Por último, há defectividade provocada por acidentes de natureza


diacrónica. Alguns destes verbos recorrem ao supletivismo, ou seja, usam
radicais morfologicamente distintos para suprir a ausência das formas
defectivas. É o que se verifica com verbos como ser (é, era, fui, fosse) ou
ir (vai, vá, foi, fosse), cuja flexão está integralmente lexicalizada.

Um outro tipo de irregularidade diz respeito aos verbos


abundantes, nomeadamente aos que contam com duas formas
participiais45. A estes radicais verbais estão obrigatoriamente associadas as
duas formas participiais:
(64) imprim RV[2ª CONJ]
imprimido PPFRACO
impresso PPFORTE

Para além da informação lexical de relevância estritamente


morfológica, aos radicais verbais está associada, como vimos em 3.1.2,
informação relativa à estrutura argumental, à estrutura temática e à
estrutura de subcategorização. Esta informação tem, fundamentalmente,
relevância sintáctica, mas também pode ter consequências morfológicas.
Sabe-se, por exemplo, que o sufixo –vel se associa exclusivamente a temas
verbais de verbos que seleccionem um argumento não preposicionado ao
qual atribuem o papel de tema. Assim se explica que os verbos adorar ou
amedrontar permitam derivar adjectivos deste tipo (cf. adorável,
amedrontável), mas os verbos gostar ou assustar não (cf. *gostável,
*assustável).

Consideremos, por último, a classificação semântica


morfologicamente relevante. A tipologia que considera o valor referencial
dos verbos46 distingue, por exemplo, os verbos declarativos, dos verbos
psicológicos e dos verbos causativos:
(65) verbos declarativos: dizer, declarar, prometer
verbos psicológicos: agradar, entristecer, preocupar
verbos causativos: fazer, construir, planificar

É maioritariamente nesta última categoria que os processos


morfológicos de verbalização inscrevem os radicais que geram: os sufixos
–ific(ar) e –iz(ar), por exemplo, formam verbos causativos:
(66) estratificar infernizar
frutificar minimizar
planificar modernizar

101
3.2.4 Propriedades dos radicais adverbiais

Do ponto de vista estritamente morfológico, não há muito a dizer


sobre os radicais adverbiais. Distribuem-se por classes temáticas idênticas
às dos radicais adjectivais e nominais e geram palavras invariáveis:
(67) agor-a
ced-o
tard-e
melhor-

Tal como os radicais adjectivais, alguns são graduáveis e outros


não, sendo a afixação avaliativa a única que pode seleccionar uma base
adverbial, embora nem todos os advérbios permitam essa modificação:
(68) agorinha
cedíssimo
super-tarde

*aciminha
*claramentíssimo
*super-não

Do ponto de vista morfológico, os radicais adverbiais mais


interessantes são os derivados pelo sufixo –mente (e.g. clara-mente) e os
que resultam de operações de conversão (e.g. fala rápido).

3.3 Afixos

Os afixos são constituintes morfológicos que se caracterizam,


basicamente, pelo facto de se associarem obrigatoriamente a uma base
cujas propriedades são definidas pelos próprios afixos: o sufixo –os(o/a),
por exemplo, selecciona (i.e. só pode associar-se) a radicais nominais (e.g.
faust]oso).

Habitualmente, os afixos são caracterizados quanto à posição que


ocupam relativamente à sua base – designando-se prefixos os que ocorrem
à sua esquerda e sufixos os que ocorrem à sua direita47:

(69) a. desligar = des PREFIXO ligar BASE


incerto in PREFIXO certo BASE
refazer = re PREFIXO fazer BASE

102
b. poderoso = poder BASE oso SUFIXO
claramente = clara BASE mente SUFIXO
banalidade = banal BASE idade SUFIXO
infantilizar = infantil BASE izar SUFIXO

No Português, há ainda um outro tipo de afixos que são geralmente


classificados como interfixos, como a vogal de ligação que ocorre entre
dois radicais na estrutura dos compostos morfológicos:

(70) insect-í-voro
insect-ó-fago

Ora, para além do


Infixos são afixos que ocorrem no interior
lugar que ocupam na
de um radical. No Bontoc, uma língua das
palavra, os afixos têm Filipinas, -um- é um infixo que selecciona
propriedades específicas e adjectivos e forma verbos incoativos
funções diversas (dados de Gleason 1955: 29), ocorrendo à
lexicalmente direita da primeira consoante da base:
determinadas. A distinção fikas „forte‟
que se segue é definida a fumikas „ele está a tornar-se forte‟
partir da relação
fusul „inimigo‟
gramatical que os afixos fumusul „ ele está a tornar-se inimigo‟
estabelecem com a sua
No Português não há infixos. Os sufixos
base, distinguindo os
que não se encontram em posição final de
sufixos especificadores palavra, como -bil em amabilidade, não
dos sufixos derivacionais deixam de ser sufixos.
e dos prefixos e sufixos
modificadores.

3.3.1 Sufixos especificadores

Aos sufixos especificadores cabem duas tarefas: a de constituir um


tema a partir de um radical e a de formar uma palavra a partir de um tema.
Estas tarefas são desempenhadas, respectivamente, pelos sufixos
temáticos e pelos sufixos de flexão, cujas propriedades vamos observar
em seguida.

3.3.1.1 Sufixos temáticos

Os sufixos temáticos são especificadores morfológicos que tornam


visível a pertença de um dado radical a uma dada classe temática. Há dois

103
tipos de sufixos temáticos: a vogal temática se se trata de um sufixo
temático verbal, e os índices temáticos48 se se trata de sufixos temáticos
nominais, ou seja, associados a bases adjectivais ou nominais. Para além
destes dois tipos de sufixos temáticos, integra-se nesta classe a vogal de
ligação. Os sufixos temáticos não têm qualquer relevância sintáctica ou
semântica.

A vogal temática torna explícita a conjugação a que os verbos


pertencem: um radical verbal da primeira conjugação exige que a vogal
temática presente seja –a e a vogal temática da primeira conjugação (ou
seja, -a) só pode associar-se a radicais verbais da primeira conjugação.
Consequentemente, um tema verbal da primeira conjugação só é uma
estrutura bem-formada se integrar um radical verbal da primeira
conjugação e a vogal temática da primeira conjugação:
(71) i. cant- é um radical verbal da primeira conjugação
ii. –a é a vogal temática da primeira conjugação
iii. o tema verbal de cant- é canta-

A vogal temática está sempre presente na estrutura morfológica, mas só


pode ser realizada foneticamente quando não precede um sufixo
flexional começado por vogal. Nas estruturas canónicas, o sufixo que
se segue à vogal temática é o sufixo de tempo-modo-aspecto ou um
sufixo amálgama de tempo-modo-aspecto e pessoa-número. Formas
como converse, entendamos ou fujam ilustram o apagamento fonético
da vogal temática:
convers [a]VT [[e]TMA]Flexão = converse
entend [e]VT [[a]TMA [mos] PN]Flexão = entendamos
fuj [i]VT [[a]TMA [m] PN]Flexão = fujam
A ausência de realização fonética da vogal temática é
morfofonologicamente determinada, não interferindo com a sua
presença na estrutura morfológica e é descrita em 4.5.2.1.

Servindo para mostrar a que conjugação o radical verbal pertence,


não é de estranhar que as vogais temáticas das diferentes conjugações
tenham realizações fonéticas distintas. Habitualmente, considera-se que
[a] é a vogal temática da primeira conjugação (cf. cant[]r), [e] a da
segunda (cf. beb[]r) e [i] a da terceira (cf. fug[]r). Note-se que nas
formas do gerúndio, a vogal temática também é distinta nas três
conjugações, mas a sua realização fonética é condicionada pelo sufixo de
tempo-modo-aspecto (i.e. –ndo), que a nasaliza (i.e. [] em observando,
[] em regendo, []em conferindo). Podemos, então, convencionar que –a,
–e e –i são as vogais temáticas do infinitivo (que o gerúndio também usa)

104
das primeira, segunda e terceira conjugações, respectivamente.

A vogal temática dos verbos da primeira conjugação é


invariavelmente –a,
Na formação do particípio passado dos verbos
mas a situação nas
da segunda conjugação, a vogal temática –e
segunda e terceira
não é realizada como [] à semelhança do que
conjugações é, em
se verifica nas formas arrizotónicas, ou seja,
circunstâncias nos casos em que a vogal temática é tónica, (cf.
específicas, beb[]r, beb[]ste, beb[]ramos beb[]mos,
diferente. No beb[]ssemos, beb[]rmos), nem como [],
particípio passado, realização que ocorre tipicamente quando a
por exemplo, a vogal vogal temática é átona, ou seja nas formas
temática da segunda rizotónicas (cf. beb[]s) e nas formas
conjugação, tal como resultantes de um processo de gramaticalização
a da terceira, é –i (cf. do auxiliar (cf. beb[]rei, beb[]ria), mas como
bebido, fugido) – [], o que se verifica no imperfeito do
chamemos-lhe a indicativo e no particípio passado (cf. beb[]a,
vogal temática do beb[]do). Nos dois primeiros casos, a
passado. realização fonética é fonologicamente
explicável, sendo a elevação e centralização da
Por outro vogal [] determinada pelo processo geral que
lado, a flexão de afecta as vogais átonas, mas à elevação da
segunda e terceira vogal que ocupa uma posição tónica não pode
pessoas do singular ser atribuída uma causa fonológica que não seja
do presente do aleatória. A causa não é totalmente conhecida,
indicativo dos mas o efeito é o do esbatimento do contraste
verbos da terceira entre os verbos da segunda e os da terceira
conjugação mostra conjugações, (cf. bebia, fugia, bebido, fugido).
uma vogal temática
centralizada (cf. fog[]s, fog[]), idêntica à da segunda conjugação (cf.
beb[]s, be[]b[]). Chamemos-lhe a vogal temática do presente.

As vogais temáticas do Português estão, pois, organizadas do


seguinte modo:
(72) VOGAL TEMÁTICA DO VOGAL TEMÁTICA DO VOGAL TEMÁTICA DO
PRESENTE INFINITIVO PASSADO

1ª C dominância dominador dominável


2ª C regência regedor regível
49
3ª C conferência conferidor conferível

Estes contrastes de realização fonética da vogal temática são


morfologicamente interessantes não só no que diz respeito à flexão, mas
também porque os sufixos derivacionais deverbais são sensíveis às sub-

105
classes desta categoria morfológica. É por esta razão que formas como
*regével (cf. regível) ou como *conferíncia (cf. conferência), por
exemplo, são agramaticais. Pode, assim, concluir-se, que alguns sufixos
derivacionais, como –dor, seleccionam o tema do infinitivo (cf. 73a), que
outros sufixos, como –vel, seleccionam o tema do passado (cf. 7b), e que
outros ainda, como –ncia, seleccionam o tema do presente (cf. 73c):
(73) a. dominador
regedor
conferidor

b. dominável
regível
conferível

c. dominância
regência
conferência

Nos nomes e adjectivos, o índice temático explicita a classe


temática a que pertencem. Retomando os exemplos apresentados na
caracterização dos radicais, constata-se que os quatro índices temáticos
dominantes (i.e. –a, -o, -e e –Ø) são partilhados por nomes e adjectivos,
ainda que só no domínio dos adjectivos seja possível fazer algumas
generalizações:
(74) ADJECTIVOS
NOMES
VARIÁVEIS
INVARIÁVEIS
MASCULINO FEMININO SUBESPECIFICADO MASCULIINO FEMININO

-a tema perna artista ----- bela lorpa


-o olho tribo modelo belo ----- -----
-e dente estante agente ----- ----- livre
-Ø tractor luz ----- devedor ----- polar

O quadro (74) mostra que todos os adjectivos de tema em –o são


masculinos, que todos os adjectivos de tema em –e são invariáveis e que
todos os adjectivos femininos têm tema em –a. Nenhuma generalização
deste tipo pode ser feita no que diz respeito aos nomes.

Note-se que a realização fonética dos índices temáticos –a, –o, –e


mostra tratar-se de vogais átonas, respectivamente [], [] e []. Esta
realização fonética permite distinguir com facilidade o índice temático –o
(cf. sócio) da vogal de ligação –o– (cf. sócio-cultural), dado que esta
vogal de ligação é geralmente realizada como [], mas dificulta a distinção
entre os índices temáticos –e e –Ø, que tanto podem ter idêntica realização
fonética (i.e. []), como podem não ser foneticamente realizados.

106
Há, por último, um pequeno conjunto de palavras (geralmente
empréstimos neoclássicos), caracterizáveis como nomes atemáticos, mas
que exibem vestígios de índices temáticos distintos dos anteriormente
considerados, o que pode ser comprovado pela sua ausência em formas
derivadas:
(75) –as maric-as mariqu-inhas
mecen-as mecén-ico
traquin-as traquin-ice

–es diabet-es diabét-ico


fáci-es faci-al cf. face
hércul-es hercúl-eo
simpl-es simpl-ismo

–os cosm-os cósm-ico cf. cosmo


tóp-os tóp-ico

–um curricul-um curricul-ar cf. currículo


for-um for-ense cf. foro

–us bón-us bon-ificar cf. abono


cact-us cac-táceo cf. cacto
húm-us húm-ico cf. humo
vírus vir-al

O carácter marginal destes índices temáticos proporciona, em


alguns casos, a sua substituição por um índice temático regular. É por esta
razão que cactus é substituído por cacto e curriculum tende a ser
substituído por currículo.

3.3.1.2 Vogal de ligação

As vogais de ligação disponíveis no Português (i.e. –o– e –i–) são


o constituinte morfológico que facilita a identificação da fronteira entre
quaisquer dois radicais que integrem os compostos morfológicos, sendo
realizadas como [] ou como []:

(76) insect-í-voro
insect-ó-fago

Este constituinte comporta-se como um especificador do radical à


sua esquerda, embora seja determinado pela natureza da estrutura em que
ocorre e por um traço idiossincrático do radical à sua direita. Com efeito,
nas estruturas de coordenação a vogal de ligação é sempre –o– (cf. 77a),
mas nas estruturas de subordinação só é –o– nos casos em que o radical da

107
direita não faz parte de um restrito grupo de radicais neoclássicos
classificados como latinismos – nestes casos, a vogal de ligação é –i– (cf.
77b):
(77) a. sóci[o] cultural
b. insect[ó]fobo
insect[i]cida, insect[i]voro, insect[i]forme, insect[i]cultura

A vogal de ligação não ocorre nos casos em que o radical da direita


começa por vogal e ainda quando o radical da esquerda tem uma natureza
adjectival ou adverbial:
(78) ped-agogo
decâ-metro
tele-difusão

3.3.1.3 Sufixos de flexão

Os sufixos de flexão são especificadores que realizam uma única


categoria morfo-sintáctica, determinada pela categoria sintáctica da base
(ou um único conjunto de categorias, no caso de amálgamas). No
Português, o sufixo –s especifica o plural dos adjectivos e dos nomes50 (cf.
casa vs. casas); e os valores de tempo-modo-aspecto e pessoa-número dos
verbos51 estão associados aos seguintes sufixos de flexão verbal:

(79) Tempo-Modo-Aspecto 1ª C 2ª C e 3ª C
Imperfeito –va –a
Indicativo Mais-que-
–ra
perfeito
Presente –e –a
Conjuntivo Imperfeito –sse
Futuro –re
Infinitivo –re
Gerúndio –ndo
Particípio –do

1ª -----
singular
Pessoa-Número

2ª –s
3ª -----
1ª –mos
plural

2ª -is (des)
3ª –m

108
Tempo-Modo-Aspecto
Amálgama
Presente do indicativo Perfeito do indicativo
1ª –o –i
singular
Pessoa-Número

2ª –s –ste
3ª –u
1ª –mos –mos
plural

2ª –is –stes
3ª –m –ram

A formalização desta informação é recente52 e ainda sujeita a


discussão. Relativamente à categoria de pessoa-número, e considerando
que as formas da terceira pessoa-singular correspondem às formas não-
marcadas53 (o que exclui os traços [±III] e [±SINGULAR]), pode admitir-se
que os traços adequados à formalização desta categoria são três: [±I], [±II]
e [±PLURAL]. Deste modo, identificam-se oito diferentes formas, sendo a
terceira pessoa-singular a que recebe todos os valores negativos, ou seja,
aquela que é reconhecida como forma não-marcada nesta categoria. Por
outro lado, a segunda pessoa-plural (vós) recebe todos os valores
positivos, o que também é desejável, dado que esta é uma forma em
desuso no Português Europeu e provavelmente extinta no Português do
Brasil.

Esta codificação permite ainda distinguir as duas formas de


tratamento relativas à segunda pessoa: [-I, + II] (exs. tu cantas, vocês
cantam) diz respeito à segunda pessoa num registo menos formal; e [+I, +
II] (exs. você canta, vós cantais) refere, inversamente, a segunda pessoa
num registo mais formal:

(80) [+ I, - II, - PLURAL] = 1ª pessoa-singular e.g. (eu) canto


[- I, + II, - PLURAL] = 2ª pessoa-singular e.g. (tu) cantas
[+ I, + II, - PLURAL] = 2ª pessoa-singular e.g. (você) canta
[- I, - II, - PLURAL] = 3ª pessoa-singular e.g. (ele) canta
[+ I, - II, + PLURAL] = 1ª pessoa-plural e.g. (nós) cantamos
[- I, + II, + PLURAL] = 2ª pessoa-plural e.g. (vocês) cantam
[+ I, + II, + PLURAL] = 2ª pessoa-plural e.g. (vós) cantais
[- I, - II, + PLURAL] = 3ª pessoa-plural e.g. (eles) cantam

A estipulação do conjunto de traços adequado à especificação dos


valores de tempo-modo-aspecto é um pouco mais complexa, dado que esta
categoria regista valores semânticos que não são adequadamente
identificáveis fora do contexto sintáctico. A codificação que apresento é,
pois, uma hipótese que inclui traços relativos à modalidade
([±NECESSÁRIO] e [±POSSÍVEL]) e a uma combinação de tempo e aspecto

109
([±PASSADO], [±PRESENTE/INACABADO] e [±ANTERIOR]), inspirados em
Mateus et al. (1989, 1993: 76-109). Estes traços devem ser entendidos
como uma base para a verificação de concordância e não como factor de
limitação da interpretação semântica.

Assim, o traço [+NECESSÁRIO] refere uma relação entre os


elementos envolvidos na produção do enunciado que, em abstracto, é tida
como certa ou como obrigatória e específica. Caracteriza, tipicamente, as
formas do indicativo. O traço [+POSSÍVEL] refere uma relação que é tida
como plausível ou permitida e especifica o conjuntivo. A combinação dos
valores negativos destes dois traços especifica as formas nominais
(gerúndio, particípio e infinitivo), enquanto que a combinação dos valores
positivos especifica as formas do imperativo, do futuro simples e do
condicional. Este conjunto de traços ([±NECESSÁRIO, ±POSSÍVEL])
distingue, pois, quatro classes modais: a do indicativo, a do conjuntivo, a
classe de formas nominais, que não têm qualquer valor modal inerente, e o
conjunto das restantes formas.

A identificação das formas que integram estas quatro classes


modais fica a cargo de traços de tempo, que pode ter correlações
aspectuais. Assim, o traço [+PASSADO] refere que o intervalo de tempo que
contém o estado de coisas descrito pela predicação é anterior ao intervalo
de tempo em que ocorre a enunciação e especifica as formas do pretérito,
ou seja, o pretérito mais-que-perfeito, o perfeito e o imperfeito do
indicativo, o condicional, o imperfeito do conjuntivo e o particípio. O
traço [+PRESENTE/INACABADO] refere que o intervalo de tempo em que
ocorre o estado de coisas descrito e o intervalo de tempo em que ocorre a
enunciação são simultâneos e/ou que a descrição do estado de coisas
localizado num dado intervalo de tempo tem como ponto de referência um
momento interno a esse intervalo de tempo. Assim, este traço (que, para
simplificar a notação, referirei como [+PRESENTE]) especifica o presente
do indicativo, o presente do conjuntivo, o imperativo e o gerúndio, bem
como, combinado com o traço [+PASSADO], os pretéritos imperfeitos do
indicativo e do conjuntivo. A combinação dos valores negativos dos traços
[±PASSADO] e [±PRESENTE] especifica o futuro simples, o futuro do
conjuntivo e o infinitivo. Por último, o traço [+ANTERIOR], que só é
utilizado para distinguir o pretérito mais-que-perfeito do pretérito
perfeito54, refere que o intervalo de tempo que contém o estado de coisas
descrito é anterior a um outro intervalo de tempo também descrito e que é
anterior ao intervalo de tempo em que ocorre a enunciação.
Consequentemente, as formas do pretérito mais-que-perfeito são
codificadas apenas como [+ANTERIOR], dado que todas as outras

110
especificações são redundantes, e as restantes formas não precisam de
especificação quanto a este traço - ela é previsivelmente negativa.

Como se pode verificar no quadro seguinte, o infinitivo


corresponde à forma não-marcada, dado que recebe exclusivamente
especificações com valor negativo.

(81) MODO TEMPO-ASPECTO NECESSÁRIO POSSÍVEL PASSADO PRESENTE ANTERIOR

MAIS-QUE-PERFEITO + - + - +
INDICATIVO

PERFEITO + - + - -
IMPERFEITO + - + +
PRESENTE + - - +
IMPERATIVO + + - +
FUTURO SIMPLES + + - -
CONDICIONAL + + + -
CONJUNTIVO

IMPERFEITO - + + +
PRESENTE - + - +
FUTURO - + - -
INFINITIVO - - - -
GERÚNDIO - - - +
PARTICÍPIO - - + -

3.3.2 Sufixos derivacionais

Considerando que os contra-exemplos disponíveis (como acaule55


ou anti-rugas56) são raros e exibem comportamentos marginais, pode
afirmar-se que, no Português, não há prefixos derivacionais. É por esta
razão que aqui se consideram apenas sufixos deste tipo, que se
caracterizam pelo facto de seleccionar a base à qual se associam e de
determinar as propriedades gramaticais dos derivados que geram.

No que diz respeito às propriedades de selecção, os sufixos


derivacionais determinam a categoria sintáctica e a categoria morfológica
da forma de base: o sufixo –mento, por exemplo, associa-se a temas
verbais, enquanto o sufixo –ez se associa a radicais nominais:

(82) X] TV mento] N X] RADJ ez] N


acompanha] TV mento] N altiv] RADJ ez] N
apura] TV mento] N estupid] RADJ ez] N
endureci] TV mento] N gagu] RADJ ez] N
trata] TV mento] N pacat] RADJ ez] N
alui] TV mento] N timid] RADJ ez] N

111
Note-se que há sufixos derivacionais que se associam
exclusivamente a um tipo de bases (como o sufixo –mento), mas também
há sufixos que admitem maior variação, podendo associar-se a diferentes
categorias sintácticas ou a diferentes categorias morfológicas (como o
sufixo –izar):

(83) X] TV mento] N X] RADJ/RN izar] N


apura] TV mento] N banal] RADJ izar] N
endureci] TV mento] N cristal] RN izar] N

Em alguns casos, os sufixos derivacionais estabelecem restrições


de natureza sintáctica (cf. 84a), morfo-semântica (cf. 84b) e até morfo-
fonológica (cf. 84c): o sufixo –vel, por exemplo, associa-se
exclusivamente a verbos que possuam um argumento directo ao qual
esteja associada a função de tema (cf. 84a); um sufixo como –agem, que
forma nomes colectivos, selecciona obrigatoriamente o radical de um
nome contável (cf. 84b); e o sufixo –al selecciona radicais nominais que
não contenham uma consoante lateral dental, enquanto –ar se associa aos
radicais adjectivais que possuem uma consoante lateral dental (cf. 84c).

(84) a. apresentar: [ ___ SN] apresentável ADJ


depender: [ ___ SP] *dependível ADJ
sorrir: [ ___ ] *sorrível ADJ

b. [[borbulh] RN[+CONT] (a) borbulhagem N


[[folh] RN[+CONT] (a) folhagem N

c. ambient RN (e) ambiental RADJ


exempl RN (o) exemplar RADJ

Quanto às suas propriedades inerentes, os sufixos derivacionais


formam invariavelmente radicais, mas definem simultaneamente a sua
categoria sintáctica e todas as suas propriedades morfológicas e morfo-
sintácticas: o radical nominal automat-, por exemplo, pode ser
seleccionado pelo sufixo –ic(o), pelo sufixo –ism(o) e pelo sufixo –iz(ar) –
a categoria sintáctica dos derivados em que ocorre não pode, pois, ser
determinada pela forma derivante, dado que ela é constante, mas sim pelos
sufixos, que variam de caso para caso (cf. 85a); por outro lado, os sufixos
derivacionais determinam propriedades morfológicas, como a conjugação
dos verbos (cf. 85b) ou a classe temática dos nomes e propriedades morfo-
sintácticas como o género, nos nomes (cf. 85c) e ainda estabelecem
propriedades morfo-semânticas (cf. 85d):

112
(85) a. automat RN (o) autómat]ic RADJ (o)
automat RN (o) automat]ism RN (o)
automat RN (o) automat]iz RV (ar)
b. [[mord] RV (er) mord]isc RV[1ª CONJUGAÇÃO] (ar)
c. [[desloca] TV (r) desloca]ção RN[+FEMININO]
[[desloca] TV (r) desloca]ment RN[-FEMININO] (o)
d. [[ferr] RN[-ANIM] (o) ferr]eir RN[+HUM] (o)

Os sufixos derivacionais determinam ainda o tipo de operação


semântica que se produz sobre a base à qual se associam. Trata-se, no
entanto, de uma operação de aproximação à fixação de um significado,
que só pode ser concretizada com o apoio do valor referencial da base e,
frequentemente, de um particular conhecimento do mundo. A
caracterização morfo-semântica dos nomes derivados procura identificar
categorias arquetípicas, ancoradas em paráfrases maximamente
generalizadoras, e não considera interpretações particulares, que muitas
vezes só é possível determinar tendo em conta o significado específico das
bases e um dado conhecimento do mundo. O sufixo –aria, por exemplo,
permite formar nomes locativos, aos quais está associada uma natureza
comercial, mas o entendimento de palavras como barbearia e pastelaria
requer que os falantes saibam que, em condições normais, numa barbearia
não se vende barba, vende-se o serviço de cortar a barba; e que numa
pastelaria não se cortam pastéis, vendem-se pastéis e também se vendem
outros produtos bebíveis e comestíveis. A operação semântica associada a
este sufixo é apenas a da criação de um nome locativo.

Os principais tipos morfo-semânticos de nominalização geram:


Nomes de acção = „acção, processo ou resultado de X‟
activação = „a acção de activar‟
Nomes de quantidade = „conjunto ou porção de X‟
eleitorado = „o conjunto de eleitores‟
colherada = „porção que cabe dentro de uma colher‟
Nomes de qualidade = „qualidade de ser/estarX‟
magreza = „a qualidade de ser magro‟
Nomes locativos = „lugar onde há X ou onde se pode fazer X‟
berçário = „lugar onde estão os berços‟
Nomes relacionais = „N relacionado com X‟
cebolada = „preparação culinária feita com cebola‟
amigdalite = „afecção nas amígdalas‟
Nomes-sujeito = „alguém ou algo que X‟
pedinchão = „alguém que pedincha‟; esfregão = „algo que esfrega‟
Hipónimos = „N que é um tipo de X‟
beijoca = „tipo de beijo

113
As propriedades dos sufixos derivacionais permitem caracterizar os
processos de nominalização, adjectivalização, adverbialização e
verbalização e permitem também caracterizar as propriedades gramaticais
e semânticas dos derivados deadjectivais, denominais e deverbais. Quanto
à formação de nomes:

Os sufixos de nominalização deadjectival associam-se a um


radical adjectival (cf. clar-) para formar um nome (cf.
claridade) e formam predominantemente nomes de qualidade
femininos (cf. claridade = „qualidade do que é claro‟). De um
modo geral, um radical adjectival seleccionado por um destes
sufixos (cf. clar-) não pode ser seleccionado por outro com
idênticas propriedades, ou seja, por um sufixo concorrente, a
menos que dê origem a uma palavra com um significado
distinto (cf. clareza). Claridade e clareza são ambos nomes de
qualidade derivados do radical adjectival clar-, mas o primeiro
relaciona-se preferencialmente com a „qualidade da
iluminação‟ e o segundo com a „qualidade do raciocínio‟.

Os sufixos de nominalização denominal associam-se a um


radical nominal (cf. ferr-) para formar um nome, que pode
pertencer a uma de entre várias categorias morfo-semânticas:
dos nomes-sujeito (como ferreiro) aos colectivos (como
papelada), aos eventivos (como cotovelada) e aos hipónimos
(como beijoca), são muitas as possibilidades de nominalização
deste tipo.

Os sufixos de nominalização deverbal associam-se a um


radical verbal (cf. aban-ão), a um tema verbal do infinitivo (cf.
ajuda-nte, descende-nte, pedi-nte), a um tema verbal do
passado (cf. activa-ção, absolvi-ção, repeti-ção) ou a um tema
verbal do presente (cf. forma-ndo, elege-ndo, instrue-ndo).
Com qualquer uma destas bases é possível formar nomes-
sujeito (cf. pedinchão, administrador, convidado, formando) e
nomes de acção (cf. consumismo, abanadela,
acompanhamento, abundância). A formação de nomes
deverbais locativos é menos variada (cf. estendal, vestiário).

O quadro seguinte mostra alguns dos sufixos de nominalização do


Português e algumas das suas propriedades:

114
SUFIXOS DE NOMINALIZAÇÃO

NOMES DE QUALIDADE NOMES DE ACÇÃO

FEMININOS MASCULINOS baix-aria


DEADJECTIVAL

cegu-eira voluntari-ado
ADJECTIVAL
RADICAL

clar-idade
pacat-ez, magr-
eza NOMES LOCATIVOS
escur-idão amador-ismo
sabedor-ia
ampl-itude azed-ume
velh-ice clar-eira
brav-ura
calv-ície

QUALIDA SUJEITO RELACIONAIS


DE EVENTIVOS
bag-aço

profission-al cebol-ada
general-ato cotovel-ada
empres-ário simbol-ismo
portugal- peixeir-ada
idade ferr-eiro pap-eira

QUANTID maquin-ista LOCATIVOS nab-iça


ADE
amigdal-ite
ESPÉCIES
RADICAL NOMINAL

VEGETAIS laranj-al vir-ose


DENOMINAL

papel-ada
livr-aria HIPÓNIMOS
folh-agem
laranj-eira berç-ário FEMININOS MASCULINOS
vasilh-ame
pessegu-eiro terr-eiro
cas-ario
OBJECTOS abad-ia peit-aça pen-acho
formul-ário
can-il forn-alha fac-alhão
arvor-edo
ded-al molh-anga flor-ão
berr-eiro
hosti-ário son-eca cas-ebre
pen-ugem
torn-eira beij-oca fit-ilho
colher-ada
chuv-eiro dent-ola fest-im

dent-uça escad-ote

115
acost-agem
pedinch-ão(ona)
aban-ão cans-eira estend-al
lamb-ão(pna)
RADICAL

repel-ão coc-eira refin-aria


fuj-ão(ona
zomb-aria transform-ismo viv-eiro
esfreg-ão
coment-ário consum-ismo
esfreg-ona
apalpa-deiro(a)

benze-deiro(a)
entra-da

NOMES DE ACÇÃO / RESULTADO DE UMA ACÇÃO


cerzi-deiro(a) vesti-ário
saí-da
administra-dor(a) aspira-dor ancora-douro
abana-dela belisca-dura
INFINITIVO

corre-dor(a) ferve-dor bebe-douro


DEVERBAL

varre-dela morde-dura

NOMES LOCATIVOS
descobri-dor(a) transferi-dor sumi-douro
NOMES-SUJEITO

sacudi-dela investi-dura
ajuda-nte observa-tório
destina-tário
descende-nte dormi-tório
prepara-tivo
pedi-nte
TEMA

fugi-tivo(a)

activa-ção

absolvi-ção
convida-do(a)
PASSADO

repeti-ção
convenci-do(a)
acompanha-mento
argui-do(a)
aborreci-mento

cumpri-mento

forma-ndo(a) vinga-nça abundâ-ncia


PRESENTE

elege-ndo(a) nasce-nça ascendê-ncia

instrue-ndo(a) difere-nça afluê-ncia

116
Quanto à formação de adjectivos:

Os sufixos de adjectivalização deadjectival associam-se a


um radical adjectival (cf. fratern–) para formar um
adjectivo (cf. fraternal). Os casos atestados mostram que se
trata de um processo bastante marginal: por um lado, os
sufixos disponíveis (e.g. –al e –ista) são tipicamente
sufixos de adjectivalização denominal (cf. ambiental,
alarmista); e, por outro lado, os derivados resultantes não
são semanticamente muito distintos das suas próprias bases
(cf. fraterno vs. fraternal; bélico vs. belicista).

Os sufixos de adjectivalização denominal associam-se a


radicais nominais (cf. cabel–) para formar adjectivos
semanticamente caracterizáveis como relacionais (cf.
cabel–udo). Esta etiqueta morfo-semântica identifica uma
relação vaga que cada sufixo (ou grupo de sufixos)
restringe de forma mais ou menos precisa: sufixos como –
ano, –ão, –eno, –ense, –ês, –eta, –eu, –ita ou –oto
estabelecem uma clara relação de origem ou proveniência,
se a base derivante for um topónimo (cf. alentej–ano, beir–
ão, chil–eno, aveir–ense, chin–ês, lisbo–eta, europ–eu,
israe–lita ou minh–oto). Mas, ainda que o sufixo seja o
mesmo, a relação é menos facilmente caracterizável se a
base derivante for um antropónimo ou um nome comum
(cf. acaci–ano, bacteri–ano, foli–ão, cort–ês, pleb–eu).
Com os restantes sufixos a caracterização semântica é
igualmente vaga: a relação entre o adjectivo e a base pode
ser uma imprecisa relação de pertença ou posse (cf. maní–
aco, ambient–al, partid–ário, tem–ático, aventur–eiro,
animal–esco, metód–ico, ansi–oso, cabel–udo) ou uma
espécie de relação de causalidade (cf. exempl–ar, agoir–
ento, aliment–ício, med–onho), e o mesmo sufixo pode até
ocorrer com as duas interpretações:

(86) um gesto poderoso é um gesto que tem poder


um bife apetitoso é um bife que causa apetite

Os sufixos de adjectivalização deverbal associam-se, em


poucos casos, a um radical verbal (cf. desdenh–oso) para
formar um adjectivo e, com maior frequência, a temas
verbais. Neste último caso, é necessário distinguir os
sufixos que se associam ao tema do infinitivo (cf. namora–
deiro, abrasa–dor, alaga–diço, reina–dio, amacia–nte,

117
acomoda–tício, afirma–tivo, explora–tório), dado que têm
tipicamente uma interpretação activa, dos sufixos que se
associam ao tema do passado (cf. acentua–do, explorá–
vel), cuja interpretação é tipicamente passiva:

(87) um encontro exploratório é um encontro que explora


um encontro explorável é um encontro que pode ser
explorado

O quadro seguinte sistematiza os dados acima apresentados:

SUFIXOS DE ADJECTIVALIZAÇÃO
DEADJECTIVAL

ADJECTIVAL
RADICAL

fratern-al

belic-ista

ADJECTIVOS RELACIONAIS

abad-engo(a) aliment-ício(a)
mani-aco(a)
ferr-enho(a) febr-il
desastr-ado(a)
chil-eno(a) vicent-ino(a)
RADICAL NOMINAL

jud-aico(a)
DENOMINAL

aveir-ense algarv-io(a)
ambient-al, exempl-ar
agoir-ento(a) israel-ita
alentej-ano(a)
chin-ês(a) alarm-ista
beir-ão(ã)
animal-esco(a) med-onho(a)
partid-ário(a)
lisbo-eta ansi-oso(a)
tem-ático(a)
europ-eu(eia) minh-oto(a)
aventur-eiro(a)
metód-ico(a) cabel-udo(a)

118
RADICA L
expuls-ivo(a)
Quanto à
desdenh-oso(a)
formação de verbos:

Os
alaga-diço(a)
sufixos
de move-diço(a)
verbaliz namora-deiro(a) acomoda-tício(a)
sumi-diço(a)
ação benze-deiro(a) nutri-tício(a)
mais reina-dio(a)
DEVERBAL

INFINITIVO

produtiv buli-deiro(a) afirma-tivo(a)


os corre-dio(a)
abrasa-dor(a) defini-tivo(a)
associam fugi-dio(a)
TEMA

-se, abastece-dor(a) prepara-tório(a)


indiferen amacia-nte
destruí-dor(a) defini-tório(a)
temente,
absorve-nte
a
radicais segui-nte
adjectiva
acentua-do(a) prepará-vel
is (cf.
PASSADO

barat- abati-do(a) sofrí-vel


ear,
solid– feri-do(a) falí-vel
ificar,
escur–ecer) e nominais (cf. guerr-ear, frut–ificar, favor–
ecer).

Os sufixos de verbalização que se associam


exclusivamente a radicais adjectivais (cf. facil-itar) ou a
radicais nominais (cf. alv-ejar) são relativamente pouco
utilizados.

Os sufixos de verbalização deverbal associam-se a um


radical verbal (cf. ferv-, escrev-, lamb-, chup-, fal-) para
formar verbos que têm geralmente um valor frequentativo
(cf. ferv-ilhar, escrev-inhar, lamb-iscar, chup-itar, fal-
ocar) e são geralmente pouco produtivos.

SUFIXOS DE VERBALIZAÇÃO

119
barat-ear

DEADJECTIVAL
obscur-ecer

ADJECTIVAL
RADICAL
solid-ificar

facil-itar

agil-izar

RADICAL NOMINAL guerr-ear


DENOMINAL

favor-ecer

alv-ejar

class-ificar

rubor-izar

ferv-ilhar

cusp-ilhar

murmur-inhar

escrev-inhar
RADICA L VERBAL
DEVERBAL

cusp-inhar

namor-iscar

lamb-iscar

chup-itar

dorm-itar

fal-ocar

Neste domínio dos sufixos derivacionais falta referir–mente, que é


o único sufixo de adverbialização e é também o único sufixo que
selecciona não um radical ou um tema, mas sim uma palavra
integralmente especificada. É por esta razão que os advérbios em –mente
exibem duas sílabas tónicas (embora, do ponto de vista prosódico, o
acento da direita seja dominante) e a sua base adjectival mostra todas as

120
características de um adjectivo, ocorrendo no feminino se não for
invariável (cf. 88a), exibindo modificação se as suas propriedades e a
vontade do locutor se conjugarem para que ela ocorra (cf. 88b) e
mostrando a realização fonética própria de uma palavra autónoma, caso
haja alomorfia sensível a esse factor (cf. 88c):

(88) a. l[]ve]mente
n[]va]mente cf. n[]v]idade
*n[]vo]mente
b. novissima]mente
c. sensivel]mente cf. *sensibil]mente, sensibil]idade

3.3.3 Afixos modificadores

Na tradição gramatical portuguesa, não é habitual estabelecer uma


distinção entre afixos derivacionais e afixos modificadores, mas ao tratar
todos de igual modo, perde-se a possibilidade de melhor compreender uns
e outros. As propriedades dos sufixos derivacionais foram descritas na
secção anterior, mas podemos relembrar que se trata de constituintes
morfológicos que se associam obrigatoriamente a uma base cujas
propriedades determinam integralmente e que formam radicais derivados
cujas propriedades são também por si definidas. Os afixos modificadores
também restringem o conjunto de bases a que podem associar-se, mas têm
restrições de selecção menos estritas do que os derivacionais. Um sufixo
como –inh(o/a), por exemplo, pode associar-se a radicais pertencentes a
diversas categorias sintácticas. O mesmo se verifica com um prefixo como
in-:

(89) a. peix]RN inho


fin] RADJ inho
ced] RADV inho
adeus] RINTERJEIÇÃO inho

b. in[feliz] ADJ
in[verdade] N
in[deferir] V

O que sobretudo caracteriza estes afixos é o facto de não


determinarem as propriedades gramaticais das palavras em que ocorrem,
afectando, exclusivamente, a semântica da base:

(90) a. antigo ADJ -> super-antigo ADJ


filme N -> super-filme N

121
b. gord(o) ADJ -> gordinho ADJ
moed(a) N -> moedinha N

Nesta categoria de afixos encontram-se, por um lado, os


avaliativos, categoria onde se inscrevem todos os sufixos modificadores e
alguns prefixos, e, por outro, todos os restantes prefixos, onde se incluem
os prefixos de negação e oposição, os prefixos de repetição, os prefixos
localizadores e ainda os quantificadores.

3.3.3.1 Afixação avaliativa

Os afixos modificadores são frequentemente avaliativos. A sua


função consiste em veicular um juízo de valor do locutor acerca da base a
que o afixo se associa. Assim, é frequente encontrar sufixos que avaliam a
dimensão, como os diminutivos (e.g. livrinho, dedito) e os aumentativos
(e.g. mega-livro, dedão), ou sufixos que classificam valorativamente a
base, como os pejorativos (e.g. cheirete, revisteca) e os valorativos (e.g.
super-carro, mulheraça). Não obstante, facilmente se encontram exemplos
que mostram que a interpretação semântica destas palavras depende em
grande medida do contexto da sua ocorrência: um livrinho pode remeter,
de facto, para um livro de pequena dimensão (cf. este livrinho cabe em
qualquer lado), mas também para um livro que o locutor considera muito
interessante (cf. este é o meu livrinho de estimação), ou, pelo contrário,
para um livro que lhe suscita algum desdém (cf. ele escreveu uns livrinhos
sem importância). A caracterização semântica destes afixos é, pois, mais
uma questão lexicológica e pragmática do que morfológica. Do ponto de
vista morfológico consideremos, então, que se trata de sufixos formadores
de hipónimos: um livrinho é um tipo de livro, tal como um mega-livro, um
dedito e um dedão são tipos de dedos; um cheirete é um tipo de cheiro;
uma revisteca é um tipo de revista; um super-carro é um tipo de carro; e
uma mulheraça é um tipo de mulher. Vejamos, agora, as propriedades
formais destes afixos.

A primeira característica dos afixos avaliativos prende-se com a


constatação de que há três tipos a operar em paralelo: há, por um lado, os
sufixos avaliativos (como –inho/a) que se associam a radicais e formam
radicais modificados, cujas propriedades gramaticais são, em tudo,
idênticas às da sua base; há depois os sufixos Z-avaliativos (como –
zinho/a), semelhantes aos anteriores, mas que se associam a palavras (e
não a radicais), formando palavras modificadas; e há, por último, os
prefixos avaliativos (como super-), que se podem associar a radicais ou a
palavras:

122
(91) a. Base = RN [-o, -FEMININO] Base = RN [-a, +FEMININO]
retrat] inh]o] moldur] inh]a]
retrat] o] zinh] o] moldur] a] zinh] a]
super] retrat] o] super] moldur] a]

b. Base = RN [-e, -FEMININO] Base = RN [-e, +FEMININO]


alfinet] inh]o] maldad] inh]a]
alfinet] e] zinh] o] maldad] e] zinh] a]
super] alfinet] e] super] maldad] e]

Base = RN [-e, ±FEMININO]


estudant] inh] o/a]
estudant] e] zinh] o/a]
super] estudant] e]

Base = RN [- , -FEMININO] Base = RN [- , +FEMININO]

funil] inh] o] flor] inh] a]


funil] ] zinh] o] flor] ] zinh] a]
super] funil] ] super] flor] ]

c. Base = RN [╤, -FEMININO] Base = RN [╤, +FEMININO]


*trenó] inh] o] *mãe] inh] a]
trenó] ] zinh] o] mãe] ] zinh] a]
super] trenó] super] mãe]

d. Base = RN [-o, +FEMININO] Base = RN [-a, -FEMININO]


trib] inh]o] problem] inh] a]
trib] o] zinh] a] problem] a] zinh] o]
super] trib] o] super] problem] a]

e. Base = RN [-o, ±FEMININO] Base = RN [- a, ±FEMININO]


model] inh] o] jornalist] inh]a]
model] o] zinh] o/a] jornalist] a] zinh] o/a]
super] model] o] super] jornalist] a]

Os dados aqui apresentados mostram que os sufixos avaliativos


não podem associar-se a radicais atemáticos (cf. 91c) e mostram ainda que
estes sufixos herdam o índice temático das bases de tema em –o (cf.
retratinho, tribinho) e de tema em –a (moldurinha, probleminha),
independentemente do seu valor de género, que também é determinado
pela base: retratinho e probleminha são nomes masculinos, tal como as
suas bases; moldurinha e tribinho são nomes femininos tal como as suas
bases. Quando a base é de tema em –e ou de tema – , as formas
modificadas que incluem um sufixo avaliativo, tal como todas as formas
que incluem um sufixo Z-avaliativo são formas de tema em –o, quando são
masculinas (cf. alfinetinho, retratozinho, alfinetezinho, etc.) e são formas

123
de tema em –a quando são femininas (cf. maldadinha, moldurazinha,
maldadezinha, etc.).

A distribuição destes afixos parece indicar que o avaliativo –inho é


preferido para a modificação diminutiva/valorativa/afectiva de bases com
menor número de sílabas e que pertencem a um léxico mais frequente e
informal (cf. 92a); que é -zinho o sufixo que intervém para modificar
bases mais extensas e menos frequentes com idêntico valor semântico-
pragmático (cf. 92b); e que o prefixo super- é preferencialmente escolhido
para a modificação aumentativa/valorativa (cf. 92c):
(92) a. carinha, mesinha, livrinho, bolinho, dentinho
b. maçanetazinha, relampagozinho, estantezinha

c. super-mesa, super-maçaneta, super-livro, super-relâmpago,


super-dente, super-estante

A produtividade dos afixos avaliativos está ainda por determinar,


suspeitando-se de que a distribuição dependerá, eventualmente, de factores
de natureza dialectal (indiciada por uma aparente preferência pelo sufixo –
ito em alguns dialectos meridionais) ou sociolectal (denunciada pela
preferência que super- colhe em faixas etárias mais jovens).

3.3.3.2 Prefixação

A maior parte dos prefixos que a tradição gramatical identifica só


ocorre em palavras lexicalizadas. Mesmo que a forma não prefixada seja
uma forma existente no Português (cf. usar, mirar, crescer, onerar,
formar ou clamar, nos exemplos seguintes), a forma prefixada não é
composicional. Estas são palavras que não foram formadas em Português,
sendo empréstimos e frequentemente latinismos e não há dados que
comprovem a disponibilidade destes prefixos para a formação de palavras
no Português contemporâneo:

(93) ab(s)- abusar, abstracção


ad(s)- admirar, adstringente
de- decrescer, deduzir
ex- exonerar, excluir
in- informar, injectar
pro- proclamar, progredir

Os prefixos disponíveis para a formação de palavras no Português


contemporâneo são, pois, muito menos numerosos do que o que

124
habitualmente se pensa, distribuindo-se em geral pelas seguintes
categorias morfo-semânticas:
(94) a. NEGAÇÃO
a] normal = não normal
des] leal = não leal
in] eficaz = não eficaz

b. OPOSIÇÃO
anti] bacteriano = que combate o que é bacteriano
contra] curva = curva na direcção oposta
des] montar = desfazer o que foi montado

c. REPETIÇÃO
re] começar = voltar a começar

d. LOCALIZAÇÃO ESPACIAL
circum] navegação = navegação em volta de X
retro] escavadora = escavadora de colher invertida
sobre] loja = local por cima de uma loja
sub] cave = local por baixo de uma cave

e. LOCALIZAÇÃO TEMPORAL
pós] graduação = ciclo de estudos posterior à graduação
pré] adolescência = período anterior à adolescência

f. QUANTIFICAÇÃO
bi] campeão = campeão duas vezes
mono] carril = (via que possui) um carril
tri] gémeo = cada um de três gémeos

Quanto às propriedades formais destes prefixos, constata-se que,


como os restantes afixos modificadores, estas formas não têm qualquer
intervenção na determinação das propriedades gramaticais das formas que
integram: nunca alteram a categoria sintáctica, nem o género, nem o
número, o tempo-modo-aspecto ou a pessoa-número:
(95) [contra [intuitivo(/a(s))] ADJ] ADJ
[contra [revolução(/ções)] N] N
[contra [argumentar(/ava/arias/assem)] V] V

125
Parece haver casos em que o prefixo altera alguma das propriedades
gramaticais da base. É o que se verifica com a prefixação que ocorre
em alguns verbos e que altera a subcategorização desses verbos:
O produtor pensou no problema Ele acreditou no ministro
O produtor repensou o problema Ele desacreditou o ministro
Ele gostou da Maria Ele insistiu em falar
Ele desgostou a Maria Ele desistiu de falar
Ele concordou com a Maria Ele confiou na Maria
Ele discordou da Maria Ele desconfiou da Maria
Ele recordou a Maria
Provavelmente, todos estes verbos prefixados estão lexicalizados, não
havendo registo de qualquer caso produtivo e composicional em que a
prefixação afecte sistematicamente a sua base desta forma.

De um modo geral, os prefixos seleccionam uma única categoria


sintáctica como base, ou seleccionam bases pertencentes a duas categorias
que partilham um mesmo traço sintáctico, como os adjectivos e os nomes.
Mas há casos em que um único prefixo se pode associar a bases
pertencentes a três diferentes categorias:

(96) a. in [evitável]ADJ
in [eficaz] ADJ
in [completo] ADJ
b. bem [educado] ADJ
bem [dizer] V
c. contra [intuitivo] ADJ
contra [revolução] N
contra [argumentar] V

Note-se que alguns prefixos que integram uma sílaba tónica (cf.
97a) e outros são formas átonas (cf. 97b). A distinção é relevante porque
geralmente as formas geradas pelos prefixos tónicos não permitem formar
palavras derivadas, enquanto que com prefixos átonos, a relação com
formas derivadas existe:

(97) a. anti-caspa
circum-navegação
contra-curva
mono-carril
pós-graduação
pré-adolescência
retro-escavadora
sobre-loja

126
b. a-normal a-normal-idade a-normal-mente
des-honesto des-honest-idade des-honest-íssimo
des-montar des-montá-vel des-monta-dor
im-puro im-pur-eza im-pur-ificar
re-utilizar re-utiliza-ção re-utilizá-vel

Aliás, a presença de um determinado afixo, na base, pode favorecer


ou impedir a associação de um prefixo a essa forma. Prefixos como des- e
in-, por exemplo, quando associados a adjectivos, operam uma
modificação do significado parafraseável como „não X‟, mas o prefixo
des- não se associa a adjectivos derivados onde está presente o sufixo –vel.
A este tipo de bases associa-se sempre o prefixo in-:
(98) a. des leal = não leal
des honesto = não honesto
in seguro = não seguro
in capaz = não capaz

b. in sensível = não sensível


in acessível = não acessível
in legível = não legível
in suportável = não suportável

c. *des sensível = não sensível


*des acessível = não acessível
*des legível = não legível
*des suportável = não suportável

O próximo conjunto de dados parece contradizer a constatação


anterior, mas esta aparente contradição é fácil de explicar. Com efeito, o
prefixo des- que ocorre nestas formas não é o mesmo que ocorre nas
formas de (98): o anterior é um prefixo de negação, o seguinte é um
prefixo de oposição, parafraseável pela expressão „o contrário de X‟. Por
outro lado, no conjunto seguinte não é o prefixo des- que se associa a um
adjectivo em –vel, mas o sufixo –vel que se associa a formas prefixadas
por des-:
(99) a. desconectá vel = que pode ser desconectado
desfiá vel = que pode ser desfiado
desmobilizá vel = que pode ser desmobilizado
desmontá vel = que pode ser desmontado
desprezá vel = que pode ser desprezado

b. des conectar = o contrário de conectar


des fiar = o contrário de fiar
des mobilizar = o contrário de mobilizar
des montar = o contrário de montar
des prezar = o contrário de prezar

127
c. *des sentir
*des aceder
*des ler
*des suportar

Há, ainda, um último conjunto de prefixos, usados na formação dos


derivados parassintéticos, como os seguintes verbos:
(100) a formos e a r
des feit e a r
a fogu e a r
des casqu ej a r
a podr ec e r
des odor iz a r
a pedr ej a r
des figur a r
a terror iz a r
a grav a r en lam e a r
a torment a r en tont ec e r
en tard ec e r
es verd e a r
em polvor iz a r
es pern e a r
en gord a r
es clar ec e r
en caix a r
es pavor ec e r
es brav ej a r re louqu e a r
es quarta ej a r re cens e a r
es pavor iz a r re virgin iz a r
es vazi a r
es burac a r

Alguns destes prefixos ocorrem em estruturas não-parassintéticas


(cf. a-normal, des-fazer, re-começar), mas o seu papel semântico, se for
possível determiná-lo, é distinto. Com efeito, não é fácil atribuir uma
função gramatical ou semântica aos prefixos que ocorrem nas construções
parassintéticas, razão pela qual se podem caracterizar como expletivos.
Talvez esta vacuidade permita compreender a ocorrência e até mesmo a
freuência de palavras não sancionadas pela norma lexical, como
deslargar ou amandar.

3.4 Assinatura Categorial

Todas as informações associadas às unidades lexicais serão


requisitadas por um ou outro nível de processamento linguístico. À
morfologia interessa um subconjunto de informações a que Lieber (1989)
deu o nome de assinatura categorial. A assinatura categorial plena, que
inclui informação acerca da categoria sintáctica e das categorias morfo-
sintácticas relevantes para cada categoria lexical (género e número para os
adjectivos e os nomes e tempo-modo-aspecto e pessoa–número para os
verbos), é uma propriedade dos radicais e dos sufixos derivacionais:

128
(101)
+N, +V SUF +N, +V
Adjectivos: feminino Sufixos de
feminino
plural adjectivalização:
plural

Sufixos de SUF adverbialização


Advérbios: Advérbio adverbialização:

+N, -V SUF +N, -V


Sufixos de
Nomes: feminino feminino
nominalização:
plural plural

-N, +V SUF -N, +V


Verbos: TMA
Sufixos de
TMA
verbalização:
PN PN

A assinatura categorial dos afixos especificadores inclui


informação relativa apenas às categorias que especifica:
(102) -s: +plural

Os restantes afixos não possuem assinatura categorial.

3.5 Relações lexicais

A última questão que aqui será tratada diz respeito à estrutura do


léxico. Existem diversas formas de relacionar unidades lexicais e,
consequentemente, diversas categorias lexicais. À morfologia interessam
particularmente aquelas que fazem uso de instrumentos de análise
morfológica, como, por exemplo, as relações de partilha de um dado
radical ou de um dado afixo.

Como já foi dito, o léxico é um repositório de unidades lexicais


portadoras de especificações idiossincráticas que provavelmente aí são
armazenadas de forma não aleatória. Com toda a probabilidade, o léxico é
uma entidade estruturada com base em princípios de relacionamento entre
as diversas unidades lexicais.

129
Alguns destes princípios fazem apelo a instrumentos da análise
morfológica, outros recorrem a critérios sintácticos e outros ainda fazem
apelo a propriedades semânticas. Vejamos aqueles que são relevantes para
a análise morfológica.
A distinção entre classes abertas e fechadas é uma distinção relevante
quer no domínio da lexicologia, quer para a morfologia. Em termos
gerais, uma classe aberta integra um determinado conjunto de
elementos de uma mesma categoria, mas pode vir a integrar outros
elementos nessa mesma categoria. Uma classe fechada, pelo contrário,
é uma classe que integra um conjunto finito de elementos de uma dada
categoria, sem que, em princípio, esse conjunto possa vir a integrar
novos elementos.
As classes dos nomes, dos adjectivos e dos verbos são classes abertas.
A associação de um sufixo de nominalização a uma base nominal,
adjectival ou verbal é suficiente para fornecer à classe dos nomes um
novo elemento. A classe das preposições, pelo contrário, é uma classe
fechada: não há mecanismos de criação de novas preposições, ainda
que, de um modo assistemático e imprevisível seja possível, por
conversão, por exemplo, atribuir a categoria preposição a uma palavra
pertencente a outra classe.
A relevância morfológica da distinção entre classes abertas e fechadas
prende-se com o facto de os processos de formação de palavras
alimentarem exclusivamente as classes abertas, pelo que são
caracterizáveis como processos de nominalização, adjectivalização e
verbalização. Nesta, como noutras circunstâncias, os advérbios em –
mente apresentam características particulares. Com efeito, no domínio
dos advérbios, este tipo também constitui uma classe aberta.

3.5.1 Famílias de palavras

No domínio dos princípios de natureza morfológica, um dos


conceitos herdados da gramática tradicional é o de família de palavras, que
Cunha e Cintra (1984: 83), por exemplo, definem como o “conjunto de
todas as palavras que se agrupam em torno de um radical comum, do qual
se formaram pelos processos de derivação ou de composição”57. De
acordo com esta definição, o radical form- define uma família de palavras
que contém, entre outros, os seguintes itens:

130
(103) form-
a form osear form ável
bem form ado form azinha
bi form e form azona
con form ação form inha
con form ar form ita
con form ável form oso
con form e form osura
contra-in form ação fórm ula
de form ação form ulação
de form ador form ular
de form ar form ulário
de form ável form ulável
de form idade in form ação
desen form ar in form ante
desin form ação in form ar
desin form ar in form ativo
dis form e inde form ável
en form ar in form al
f[o]rm a in form almente
f[]rm a mal form ação
form ação mal form ado
form ado multi form e
form ador re form a
form al re form ado/a
form alidade re form ar
form alismo re form atório
form alista re form ismo
form alização re form ista
form alizar re form ulação
form alizável re form ular
form almente trans form ação
form ando trans form ador
form ão trans form ar
form ar trans form ável
form atação tri form e
form atar uni form e
form ativo uni form ização
form ato uni form izar
form atura uni form izável

Note-se que o privilégio dado à partilha de um mesmo radical,


form- no exemplo (103), torna este conceito pouco operatório para a
análise morfológica. Por um lado, não permite dar conta da relação
morfológica existente entre palavras que partilham outros constituintes:
formação, por exemplo, é uma palavra morfologicamente relacionada com
todas as palavras que integram o sufixo -ção (cf. aprovação, continuação,
perseguição), do mesmo modo que formal se relaciona com todas as
palavras em que ocorre o sufixo -al (cf. cultural, dialectal, teatral). Por
outro lado, sugere que todas as formas que integram uma família de
palavras mantêm o mesmo tipo de relação morfológica com o radical. Ora,
se em alguns casos o radical corresponde, de facto, à forma de base
seleccionada pelos processos morfológicos que geram as outras palavras
(cf. formal, forminha, fórmula), noutros, é uma destas últimas que
intervém como base:

131
(104)
formazinha
forma
formazona

formalização

formalizador
formalizaTV
formalizante

formalizável

formalismo
formal
formalista

formRN formalidade

formalmente

informal informalmente

forminha

formita

formosamente

formos-RADJ formosura

formosíssimo

fórmula

Por último, relativamente a pares de palavras como forma e


formar, reforma e reformar, formato e formatar ou fórmula e formular,
sendo certamente desejável incluí-las num conjunto de formas
morfologicamente relacionadas, não parece adequado tratá-las como
palavras derivadas ou compostas. O conceito de família de palavras deve,
pois, ser redefinido de modo a incluir todas as palavras que partilhem um
mesmo radical, e não deve ser o único conceito que identifica conjuntos de
formas morfologicamente relacionadas.

132
3.5.2 Paradigmas lexicais

Paradigmas são conjuntos de unidades linguísticas que entre si


estabelecem uma dada relação, num dado contexto. No léxico, os
paradigmas são constituídos por unidades lexicais e definem-se a partir de
uma dada função relacional58. É à luz deste conceito que a noção de
família de palavras pode e deve ser reinterpretada. Um dos tipos de
relação lexical, assente em critérios estritamente morfológicos, implica a
comparação de configurações da estrutura interna das palavras. Existe uma
relação lexical entre palavras se apenas o seu núcleo59 ou apenas o seu
não-núcleo são diferentes, podendo essa diferença ser encontrada por
substituição ou por supressão:
(105) a. Substituição do afixo

estrutura ção re fazer


vel des

b. Substituição da base

estrutura ção re fazer


organiza tomar

c. Supressão do afixo

Ø fazer leve Ø
re zinho

A substituição do afixo permite encontrar todas as formas


complexas geradas a partir de uma determinada base (cf. estruturação,
estruturável, etc.; refazer, desfazer, etc.). A substituição da base permite
encontrar a extensão da actuação de um dado afixo (cf. estruturação,
organização, etc.; refazer, retormar, etc.). A supressão do afixo permite
estabelecer uma relação entre uma forma complexa e a sua forma de base
(cf. leve levezinho; fazer refazer).

133
Tópicos de Recapitulação Geral

Habitualmente o conceito de unidade lexical não é distinto do


conceito de palavra, mas esse é um equívoco promovido pela escassez de
descrições lexicais de natureza formal. A descrição apresentada neste
capítulo permite caracterizar como unidades lexicais todos os constituintes
morfológicos terminais (i.e. radicais e afixos) e todas as expressões
linguísticas lexicalizadas, sejam elas palavras complexas ou expressões
sintácticas. Por outro lado, defendendo que todas as unidades lexicais são
entidades detentoras de propriedades inerentes e propriedades de selecção,
de natureza lexical, fonológica, sintáctica ou semântica, propriedades que
determinam quer a sua ocorrência em estruturas morfológicas ou
sintácticas quer a sua realização fonética e a sua interpretação semântica.

UNIDADES
LEXICAIS

radicais constituintes
morfológicos
afixos terminais

palavras
lexicalizadas

expressões sintácticas
lexicalizadas especificação

propriedades propriedades
inerentes de selecção

sintácticas

morfológicas

semânticas

fonológicas

134
Quanto aos constituintes morfológicos, vimos as principais
propriedades dos diversos tipos de radicais e de afixos que podem ser
relembrados da seguinte forma:

cali(grafia)
CONSTITUINTES bel(o)
neoclássicos (insecti)cid(a)
MORFOLÓGICOS nunc(a)
vernáculos livr(o)
radicais
(livr)o - (trib)o cant(ar)
afixos
(cas)a - (map)a
especificadores índice
(pent)e - (lent)e
temático
(mar)Ø - (paz)Ø
constituinte
vogal (cant)a(r)
temático
temática (beb)e(r) - (beb)i(do)
(fug)i(r) - (fug)i(do)
sufixos de vogal de (bi)o(diversidade)
flexão ligação (bacter)i(cida)
(livro)s
nominal número
(novo)s

verbal tempo-modo-aspecto (canta)va(mos)

pessoa-número (cantava)mos

(maravilh)os(o)
predicadores
adjectivalização (repeti)tiv(o)

(clara)ment(e)
adverbialização
sufixos (clar)idad(e)
derivacionais (colher)ad(a)
nominalização
(continua)ção

(clar)ific(ar)
verbalização (cristal)iz(ar)
modificadores
(dorm)it(ar)
prefixos des(fazer)

sufixos avaliativos (cas)inh(a)


modificadores z-avaliativos (nuven)zinh(a)

135
Exercícios

1. O que é uma unidade lexical?


2. O que é um constituinte morfológico?
3. O que distingue um radical de um sufixo derivacional?
4. O que é um afixo modificador?
5. Como se distingue um sufixo avaliativo de um sufixo Z-
avaliativo?
6. Identifique as propriedades das seguintes unidades lexicais:
-a (de casa)
-a (de casar)
bel- (de belo)
casac- (de casaca)
casac- (de casaco)
co- (de co-autoria)
co- (de coar)
fei- (de feio)
-ic (de panorâmico)
in- (de incompatível)
-iz (de eternizar)
-mos (de cantamos)
perd- (de perder)
re- (de refazer)
sistem- (de sistema)
7. Segmente as seguintes palavras e identifique as propriedades
dos seus constituintes morfológicos:
apartidarismo fertilização
avaliardes ideológico
caudaloso ininterpretável
civilizacional personificação
correspondências preconizassem
cosmopolitismo procuradoria
denunciante retroescavadora
enqueijar rigorosissimamente
8. Encontre cinco radicais neoclássicos que tenham equivalentes
vernáculos. Faça uma recolha das palavras complexas que
usem uns e outros e compare os seus dados com a análise
apresentada em 3.2.
9. Há diversos constituintes morfológicos que, quando

136
considerados em abstracto, são ambíguos. É o caso do radical
sec-, por exemplo, que pode ser um radical adjectival (cf.
seco/a), um radical nominal (cf. seca) ou um radical verbal (cf.
secar). Identifique um outro radical, um índice temático, uma
vogal temática, um sufixo de flexão e um sufixo derivacional
que sejam lexicalmente ambíguos e desambigue-os,
integrando-os em estruturas relevantes.
10. Considere os dois seguintes conjuntos de palavras e comente a
relação que se pode estabelecer entre os sufixos que as
integram:
consultório afogadiço
comedouro segregatício
observatório
11. Construa uma família de palavras que integre o radical corp-.
12. Organize esta família de palavras tendo em consideração as
relações morfológicas que os seus membros estabelecem entre
si.
13. Considere a palavra reunificável. Segmente-a e integre cada
dos seus constituintes num paradigma lexical morfológico que
contenha, pelo menos, cinco formas distintas.
14. Como caracteriza o paradigma definido pelo sufixo –os(o/a)?

137
Leituras Complementares

MATEUS, M. H. M. ET AL
2003 Gramática da Língua Portuguesa
5ª edição revista e aumentada (Capítulo 25.4)
Lisboa: Editorial Caminho

RIO-TORTO, G. M.
1998 Morfologia Derivacional. Teoria e Aplicação ao Português
Porto: Porto Editora

Para Consulta

MorDebe
www.portaldalinguaportuguesa.org

138
139
Capítulo 4. A estrutura morfológica

140
141
Objectivos

Este quarto capítulo é dedicado à caracterização das estruturas


morfológicas, identificando as propriedades estruturais que são comuns a
todas as palavras, sejam simples ou complexas, particularmente no que diz
respeito à flexão.

No final desta unidade, o aluno deverá:

conhecer alguns dos princípios que regulam a boa-formação de


estruturas morfológicas, como:

o o princípio de ramificação binária;

o a função gramatical dos constituintes morfológicos:

 núcleo
 especificador
 complemento
 modificador

o as convenções de percolação;

compreender a estrutura básica das palavras, ou seja, que para


formar uma palavra é necessário partir de um radical (simples
ou complexo), integrá-lo numa classe temática, para formar um
tema, e, por último, flexionar o tema (se a palavra pertencer a
uma categoria flexionável);

compreender a distinção entre flexão e variação;

conhecer a flexão e a variação nominal, aqui se integrando a


explicação fonológica da formação do plural dos nomes e
adjectivos, sobretudo dos terminados em consoante e em
ditongo nasal;

conhecer a flexão dos verbos, quer no que diz respeito à sua


formação morfológica, quer quanto à compreensão dos vários
processos fonológicos que caracterizam a morfologia da flexão
verbal do português, especialmente o papel fundamental da
vogal temática e o processo de harmonização vocálica dos
verbos, quer ainda quanto à identificação dos aspectos
particulares da flexão dos verbos irregulares.

142
Uma estrutura morfológica bem-formada é uma palavra. Mas como
se define uma estrutura morfológica bem-formada? Nos capítulos
anteriores foram já feitas algumas referências às configurações que, no
Português, caracterizam as palavras simples e os diversos tipos de palavras
complexas. Vejamos agora como se obtêm estas configurações.

As estruturas morfológicas são geradas por princípios1 que regulam


a ordenação linear e hierárquica dos constituintes morfológicos. Os
princípios em que a análise da morfologia do Português aqui apresentada
assenta assumem:
i. que as estruturas morfológicas que acolhem estes constituintes são,
tipicamente, estruturas formadas pelo princípio de ramificação
binária
ii. que os constituintes que ocupam as diversas posições disponíveis
na estrutura desempenham funções gramaticais, nomeadamente as
funções de núcleo, especificador, complemento ou modificador
iii. que o núcleo morfológico se encontra à esquerda dos seus
especificadores e à direita do seu complemento (quando existe
algum complemento) e pode preceder ou ser precedido por
modificadores
iv. que as propriedades dos constituintes que ocupam as posições
terminais das estruturas morfológicas são sucessivamente
transmitidas ao nó que as domina por intervenção de um princípio
de instanciação de traços, a que se dá o nome de convenções de
percolação.

A ramificação binária tem sido proposta e aceite como um


princípio regulador das estruturas morfológicas2, pelo que aqui se aceita
que uma estrutura bem-formada é tipicamente uma estrutura do seguinte
tipo3:
(1) X

Y Z
A atribuição de uma função gramatical a cada um dos
constituintes que ocupam posições estruturais é decorrente desta análise
das palavras como estruturas linear e hierarquicamente organizadas. Em
cada nível de ramificação de um nó X é necessário identificar o ramo
dominante, ou seja o núcleo, e o ramo subordinado, cuja função
gramatical é determinada conjuntamente pelas propriedades do núcleo e
pela posição que ocupa na estrutura4. A definição de núcleo morfológico,
de que a presente análise faz uso, requer uma verificação da partilha de

143
propriedades entre a palavra, que corresponde à projecção máxima do
núcleo, e o constituinte que detém primeiramente essa função, ou seja, o
radical5. O tema corresponde ao primeiro nível de projecção do núcleo,
sendo gerado por adjunção6 de um especificador morfológico, que é o
constituinte temático (i.e. índice temático ou vogal temática), ao radical.
Por último, a palavra é gerada por adjunção de um especificador morfo-
sintáctico, que é o complexo de sufixos de flexão, ao tema. O uso que
aqui se faz do termo especificador permite definir os constituintes que
ocupam essas posições como adjuntos subcategorizados, respectivamente,
pelo radical e pelo tema. No Português, a estrutura morfológica das
palavras simples é, pois, a seguinte:
(2)
PALAVRA

TEMA FLEXÃO =
especificador morfo-sintáctico
RADICAL = CONSTITUINTE TEMÁTICO =
núcleo especificador morfológico

A informação associada ao constituinte que ocupa a posição de


núcleo é transmitida ao nó que o domina por um mecanismo de
instanciação de traços, a que se dá o nome de percolação. Como os
radicais não possuem todas as informações que a especificação das
palavras exige (a informação relativa à flexão, por exemplo, é dada pelo
especificador morfo-sintáctico) é necessário recorrer a um mecanismo
próprio que regule esta instanciação de traços. Assim, adoptam-se aqui as
duas seguintes convenções de percolação7:
(3) PERCOLAÇÃO DE NÚCLEO
O núcleo propaga os traços da sua assinatura categorial ao nó que o
domina.
PERCOLAÇÃO RETROACTIVA
Se a assinatura categorial do nó que domina o núcleo não tiver recebido
algum valor após a percolação de núcleo, então esse valor é percolado a
partir do não-núcleo imediatamente dominado e marcado quanto a esse
traço.

Radical, tema e palavra são, pois, as etiquetas que identificam os


constituintes morfológicos que ocupam os três vértices nucleares da
estrutura básica das palavras. Os restantes constituintes morfológicos, o
sufixo temático e os sufixos flexionais, são especificadores do núcleo.
Mas, para descrever a estrutura das palavras complexas é necessário
considerar outras funções gramaticais. A estrutura morfológica destas
palavras também parte do radical, mas, neste caso, trata-se de um nó que

144
ramifica podendo integrar um radical e um afixo ou dois ou mais radicais,
distinção que opõe a afixação à composição. Ora, a relação entre os
constituintes que integram um radical complexo pode ser quer uma relação
de complementação, quer uma relação de modificação, quer uma relação
de coordenação:
COMPLEMENTAÇÃO
Relação típica da derivação. O núcleo, que é o sufixo derivacional, ocupa
uma posição final relativamente ao complemento seleccionado, que é a
base derivante e pode ser um radical, um tema ou mesmo uma palavra.

(4)
PALAVRA DERIVADA

TEMA DERIVADO FLEXÃO

RADICAL CONSTITUINTE
DERIVADO TEMÁTICO

COMPLEMENTO = NÚCLEO =
= SUFIXO
= PALAVRA DERIVACIONAL

TEMA FLEXÃO

RADICAL CONSTITUINTE
TEMÁTICO

sec a [-plu] ment e


sec a dor  [-plu]
sec ur a

145
MODIFICAÇÃO
O núcleo, que é um radical ou uma palavra, pode ser modificado por um
prefixo ou por um radical, à sua esquerda, ou por um sufixo à sua direita.

(5) PALAVRA MODIFICADA

TEMA MODIFICADO FLEXÃO

RADICAL CONSTITUINTE
MODIFICADO TEMÁTICO

PREFIXO RADICAL
MODIFICADOR MODIFICADO

NÚCLEO = SUFIXO
= PALAVRA MODIFICADOR

TEMA FLEXÃO

RADICAL CONSTITUINTE
TEMÁTICO

pared inh a [-plu]


pared e [-plu] zinh a [-plu]
mini pared e [-plu]

146
COORDENAÇÃO
Relação típica da composição morfológica. Só há relações de
coordenação entre radicais.

(6) PALAVRA COMPOSTA

TEMA COMPOSTO FLEXÃO

RADICAL CONSTITUINTE
COMPOSTO TEMÁTICO

RADICAL VOGAL DE RADICAL


COORDENADO LIGAÇÃO COORDENADO

sóci o polític o [-plu]

Em suma, independentemente da complexidade do radical, todas as


palavras do Português podem ser descritas como instâncias da estrutura já
conhecida:
(7)
PALAVRA

TEMA FLEXÃO

RADICAL CONSTITUINTE TEMÁTICO

A estipulação desta estrutura como estrutura canónica para a


totalidade das palavras do Português requer, no entanto, alguns
comentários. Em primeiro lugar, é necessário justificar a consagração de
uma posição de flexão morfológica na representação da estrutura das
palavras invariáveis. Em segundo lugar, é necessário confrontar esta
estrutura abstracta com a existência de palavras que não preenchem todas
as posições disponíveis.

147
4.1 Vazios morfológicos

A existência de uma posição para a flexão deve ser entendida como


uma informação relativamente à posição que os sufixos de flexão ocupam
nos casos em que essa informação é requerida pelo radical, ou seja, no
caso das palavras variáveis por flexão, e não como uma condição de boa-
formação para toda e qualquer palavra. O preenchimento da posição da
flexão morfológica está inteiramente dependente da natureza categorial
das palavras e, consequentemente, da sua assinatura categorial: os nomes e
os adjectivos (tal como alguns determinantes e alguns pronomes)
flexionam em número; os verbos flexionam em tempo-modo-aspecto e
pessoa-número; as restantes categorias principais não flexionam.

As categorias de palavras flexionáveis vêem a posição da flexão


preenchida por um sufixo, como o –s do plural (cf. 8a), por um complexo
de sufixos, como –va e –mos da primeira pessoa do plural do imperfeito
do indicativo (cf. 8b), ou por um conjunto de traços que identificam as
propriedades da ausência de sufixo de flexão, como [-PLURAL] para o
singular dos nomes e adjectivos (cf. 8c). Já a posição da flexão nas
categorias de palavras invariáveis, como os advérbios, por exemplo, fica
vazia, ou seja, nenhuma informação lhe está associada (cf. 8d):
(8) a. [[[livr]RN [o]IT ]TN [s][+PLURAL] ]N[+PLURAL]
b. [[[nad]RV [a]VT ]TV [[va][IMPERFEITO IND.] [mos][1ª PLURAL]] ]V[IMPERFEITO IND., 1ª PLURAL]
c. [[[livr]RN [o]IT ]TN [ ][-PLURAL] ]N[-PLURAL]
d. [[[nunc]RADV [a]IT ]TADV [ ] ]ADV

Consequentemente, a existência de palavras invariáveis não pode


ser utilizada como argumento para pôr em causa a estrutura (7). O
contraste entre o que se verifica na posição da flexão no singular dos
nomes e adjectivos e nas palavras invariáveis, verifica-se também noutros
casos. Qualquer posição da estrutura morfológica pode estar vazia, mas
estes „vazios‟ não são todos iguais. Vejamos, então, de forma sistemática,
quais são os casos relevantes.

Comecemos por considerar a posição da flexão das palavras


flexionáveis. Nas formas nominais e adjectivais, a flexão em número é
realizada pelo contraste entre a presença de um sufixo, no plural, e a
ausência de qualquer informação, no singular:
(9) [[[esfer]RADICAL NOMINAL [a]]TEMA NOMINAL [s] [+PLURAL]]NOME
[[[esfer]RADICAL NOMINAL [a]]TEMA NOMINAL [ ] [-PLURAL]]NOME

148
O que se verifica, neste caso, é que a ausência de informação é
interpretada como uma ocorrência do valor padrão8 para a categoria em
questão, identificando, assim, a forma do singular como forma não-
marcada na categoria de número.

Por outro lado, em formas como convés ou caracoizinhos é


plausível admitir que o sufixo de flexão em número não está presente, mas
nestes casos, trata-se de um vazio desencadeado por um processo
morfofonológico de assimilação:
(10) [[[convés]RN [ ]]TN [[s] [+PLURAL] ]FM ]N = []
[[[[caracol]RN [ ]]TN [[s][+PLURAL] ]FM ]N [[[zinh]SUF [o]]TN [[s] [+PLURAL] ]FM ]N ] =
= [’’] [’’]

Quanto às formas verbais, é necessário distinguir três situações:

i. a não-ocorrência de sufixo de pessoa-número é própria das


chamadas formas nominais do verbo, que flexionam apenas em
tempo-modo-aspecto, sendo defectivas em pessoa-número:
(11) infinitivo: nadar
gerúndio: nadando
particípio: nadado

ii. a ocorrência de um único sufixo com informação de tempo-modo-


aspecto e pessoa-número, como sucede no caso do perfeito do
indicativo, é o resultado de uma amálgama historicamente
motivada e que, consequentemente, está lexicalizada:
(12) [[[nad]RV [a ]]TV [[ste]TMA+PN]FLEX]V = nadaste

iii. nos casos em que se verifica a ausência do sufixo de tempo-modo-


aspecto, a ausência do sufixo de pessoa-número, ou a ausência
simultânea dos dois sufixos de flexão verbal, a situação que se
obtém aproxima-se da situação da flexão nominal em número.
Com efeito, a ausência de sufixo de tempo-modo-aspecto é a
marca específica do presente do indicativo; a ausência de sufixo de
pessoa-número é a marca específica das primeira9 e terceira
pessoas do singular, realizadas por uma única forma ambígua
quanto à pessoa; a ausência de sufixo de tempo-modo-aspecto e
pessoa-número é a marca específica da terceira pessoa do singular
do presente do indicativo, que, assim, ganha o estatuto de forma
não-marcada no paradigma da flexão verbal:

149
(13) [[[nad]RV [a ]]TV [[ ]TMA [mos]PN]FLEX]V = nadamos
[[[nad]RV [a ]]TV [[sse]TMA [ ]PN]FLEX]V = nadasse
[[[nad]RV [a ]]TV [[ ]TMA [ ]PN]FLEX]V = nada

Também a posição de constituinte temático pode estar vazia.


Vejamos os seguintes exemplos:
(14) a. nadar nademos
b. amor amores
c. café cafés

Apesar de se tratar de casos em que o constituinte temático não


está presente, trata-se de três casos diferentes. Quanto ao primeiro (cf.
14a), recorde-se que diversas análises da fonologia das formas verbais
(nomeadamente a que é apresentada em 4.5.2.1) defendem que a vogal
temática é suprimida nos casos em que o sufixo de flexão à sua direita
começa por vogal. É pois plausível admitir que, na estrutura morfológica
destas formas, a vogal temática está presente:

(15) [[[nad]RV [a]]TV [[e] TMA [mos]PN]FM ]V = [][]


[[[beb]RV [e]]TV [[o]TMA+PN]FM ]V = [][]

O vazio morfológico que ocorre na posição da vogal temática é,


pois, desencadeado pela intervenção de um processo morfofonológico,
que, por dissimilação, contorna a ocorrência de um hiato.

Quanto às formas nominais e adjectivais (cf. 14b e 14c), é


necessário distinguir duas situações: nos radicais de tema - , o índice
temático é foneticamente realizado por um [] no plural e não tem
realização fonética no singular; nos radicais atemáticos a posição do índice
temático está vazia, tanto no singular, quanto no plural:

(16) a. [[[amor]RN []]TN [s]]N = [‟]


[[[amor]RN []]TN [ ]]N = [‟]
b. [[[café]RN [ ]]TN [ ]]N = []
[[[café]RN [ ]]TN [s]]N = []

O último caso em análise diz respeito a palavras em que o radical


não está presente. Estes são casos mais raros, de análise mais complexa, e
frequentemente geradores de situações anómalas. O primeiro diz respeito
aos determinantes definidos: trata-se de estruturas de natureza nominal,
mas semanticamente pobres e desprovidas de lexema:
(17) [[[ ][+N] [o/a]IT ]T[+N] [ /s]Nº][+N] = o, a, os, as

150
Talvez por esta razão ocorram como especificadores sintácticos e
como especificadores morfológicos – no primeiro caso cliticizam ao nome
à sua direita (e.g. as cores), no segundo afixam-se ao radical à sua
esquerda (e.g. cordas).

O segundo caso diz respeito ao verbo ir. Nas formas não-


supletivas, este verbo é constituído por uma vogal temática e,
eventualmente, por sufixos de flexão. É o que se verifica no paradigma do
imperfeito do indicativo:
(18)
V

TV FM

RV VT TMA PN

i a = ía
i a s = ías
i a mos = íamos
i a is = íeis
i a m = iam

O mesmo se verifica em algumas das formas do presente do


indicativo, ainda que nem todas sejam aceites pela norma do Português:
(19)
V

TV FM

RV VT TMA PN

i s = *is (= vais)
i mos = *imos (= vamos)
i des = ides

Também se registam ocorrências de formas agramaticais deste tipo


na flexão do imperfeito do conjuntivo, particularmente frequentes no
decorrer do processo de aquisição de linguagem, a partir do momento em
que a construção sintáctica relevante fica disponível:

151
(20)
V

TV FM

RV VT TMA PN

i sse = *isse (= fosse)


i sse s = *isses (= fosses)
i sse mos = *issemos (= fossemos)
i sse des = *issem (= fossem)

Note-se que é a este verbo que a formação perifrástica do futuro


recorre, num processo de gramaticalização10 lento, mas progressivo (cf.
Oliveira 2004), caso tão mais curioso quanto a forma analítica do futuro é
ela própria resultante de um processo de gramaticalização a partir da
construção com haver:
(21) Vou comprar este livro.
Comprarei este livro.
Hei-de comprar este livro.

4.2 Flexão

A flexão é um processo de especificação morfo-sintáctica, que


preenche a informação solicitada pela assinatura categorial do radical. A
flexão assegura a concordância em pessoa-número com o sujeito, a
concordância modo-temporal que assegura a gramaticalidade sintáctica e
restringe o universo de possibilidades de interpretação semântica das
frases.

As duas principais propriedades da flexão são a obrigatoriedade e a


sistematicidade, ou seja, a flexão opera obrigatoriamente nas categorias
estabelecidas pela assinatura categorial e opera sempre da mesma maneira.
A descrição da flexão apresentada em 4.2.3. e 4.2.4. mostrará como se
processam a flexão nominal e a flexão verbal, no Português, discutindo os
casos que aparentemente põem em causa a sua obrigatoriedade e/ou
sistematicidade.

Antes, porém, convém tornar claro que nem toda a especificação


morfo-sintáctica das palavras é realizada por flexão: os casos não
obrigatórios e assistemáticos não cabem no âmbito da flexão. No

152
Português, os mais flagrantes relacionam-se com a variação em género11 e
em grau.

4.2.1 Sobre a variação em género

Em 3.2.1.2. foi dito que os radicais nominais e adjectivais possuem


obrigatoriamente um valor de género (masculino, feminino ou
subespecificado) e foi feita uma descrição sumária da semântica do género
gramatical dos nomes, que associa o masculino ao sexo masculino e o
feminino ao sexo feminino, mas que se vê perturbado quer pelos diversos
contra-exemplos quer pela existência de palavras que não têm como
referência entidades sexuadas, ou que, tendo essa referência possuem uma
especificação de género gramatical ambígua.

Outra questão é a que diz respeito à participação destes nomes e


adjectivos em contrastes de género. No que diz respeito aos adjectivos, a
impossibilidade é lexicalmente definida: faz parte da especificação lexical
dos adjectivos a sua classificação como variáveis ou invariáveis: os
variáveis participam em contrastes de género, tendo obrigatoriamente um
valor masculino (realizado por uma forma de tema em –o, por uma forma
de tema -Ø ou por uma forma atemática) ou um valor feminino (realizado
por uma forma de tema em –a ou, marginalmente, por uma forma
atemática); os invariáveis (realizados predominantemente por formas de
tema em –e, mas também podendo ocorrer em formas de tema em –a,
tema -Ø e atemáticas) não podem participar em contrastes de género:
(22) a. belo bela
devedor devedora
mau má
b. livre
lorpa
polar
comum

Tal como o valor de género dos adjectivos é semanticamente


irrelevante, também a sua variabilidade e a existência de contraste de
género, quando possível, o são: a especificação e a variação em género dos
adjectivos só encontram justificação na sintaxe, enquanto marcador de
concordância.

A variação em género nos nomes não funciona da mesma maneira.


É de natureza semântica a generalização que impede o acesso dos nomes
inanimados a contrastes de género: ainda que sejam portadores de uma

153
especificação de género lexicalmente A oposição temática -o/-a
determinada e semanticamente remete, em alguns casos,
irrelevante, ou seja, ainda que se trate de para uma expressão de
nomes masculinos ou femininos, estes cardinalidade, em que o
nomes não podem variar em género nome de tema em -o é
porque não referem uma entidade quantificado como uma
sexuada: unidade e o de tema em –a
corresponde a um
(23) problema N[-FEM] colectivo:
olho N[-FEM]
ovo ova
pente N[-FEM]
fruto fruta
bar N[-FEM]
chá N[-FEM] Trata-se de casos em que
um mesmo radical latino
tesoura N[+FEM]
deu origem às duas formas:
tribo N[+FEM]
lente N[+FEM] OV]UM, -I
paz N[+FEM] OV]A, -ORUM
pá N[+FEM]

Mesmo nos casos em que formalmente parece haver um contraste


de género, dado que existe um contraste temático (e mesmo que se trate de
formas semanticamente relacionadas), facilmente se conclui que o
contraste gramatical entre masculino e feminino não codifica a oposição
entre macho e fêmea:
(24) folho N[-FEM] folha N[+FEM]
bolo N[-FEM] bola N[+FEM]
preço N[-FEM] prece N[+FEM]
parto N[-FEM] parte N[+FEM]
porte N[-FEM] porta N[+FEM]
balde N[-FEM] balda N[+FEM]

Quanto ao acesso dos nomes animados a contrastes de género,


ainda que semanticamente plausível, ele nem sempre se concretiza e
mesmo quando é possível não se concretiza sempre da mesma forma. Não
há contraste de género no caso dos nomes sobrecomuns, cujo valor de
género é lexicalmente determinado e semanticamente vazio:
(25) ele cf. ele o convidado
é uma pessoa incansável é de honra
ela ela a convidada
o leão cf. o leão um predador
a pantera é um animal selvagem a pantera é uma predadora

Nos casos em que há contraste de género é necessário distinguir a


sua realização morfológica das restantes. São morfológicos os contrastes
gerados por derivação (cf. 26a) ou por composição, sendo os primeiros

154
muito pouco frequentes e os segundos exclusivos dos chamados nomes
epicenos, ou seja, dos nomes que (à semelhança dos sobrecomuns)
possuem um único valor de género12 que, quer seja masculino quer seja
feminino, tem uma interpretação genérica. A sua interpretação pode ser
desambiguada pela adjunção dos modificadores macho ou fêmea (cf. 26b):
(26) a. jogral-esa
abad-essa
mestr-ina
gal-inha
pap-isa
b. leopardo N[-FEM]
[leopardo-macho] N[-FEM]
[leopardo-fêmea] N[-FEM]
zebra N[+FEM]
[zebra-macho] N[+FEM]
[zebra-fêmea] N[+FEM]

Os restantes contrastes de género são lexicais ou sintácticos. No


primeiro caso, são contrastes temáticos, que recorrem tipicamente à
oposição entre o índice temático -o e o índice temático –a (embora
também possam envolver outros índices temáticos) ou são contrastes de
radicais sem qualquer relação formal:
(27) a. médico médica
cantor cantora
infante infanta
réu ré
b. boi vaca
cavalo égua
homem mulher

Nem todas as oposições temáticas (-o/-a, por exemplo) associadas a


radicais nominais codificam uma oposição de género. Em pares como
botânico/botânica, físico/física ou matemático/matemática, o nome
masculino tem um referente animado, mas o feminino não.
Noutros casos, o feminino é entendido como depreciativo – é o que se
verifica com palavras como generala ou sargenta. Ainda que as
patentes militares de general ou sargento possam ser atribuídas a
mulheres, dificilmente a forma feminina poderá ser socialmente aceite.
E talvez por esta razão haja uma crescente reacção negativa a
femininos como poetisa ou juíza.
Quanto aos contrastes sintácticos, eles ocorrem em presença dos
chamados nomes comuns-de-dois, que são extremamente frequentes no
Português por duas ordens de razões: por um lado, há diversos sufixos de
nominalização que são bastante produtivos e formam agentivos comuns-

155
de-dois (e.g. -ista, -nte); por outro lado, a conversão de nomes masculinos
em nomes comuns-de-dois é talvez o processo mais popular de obtenção
de novos contrastes de género (cf. o/a sargento). Estes nomes são
lexicalmente subespecificados quanto ao género, mas a sintaxe precisa,
quase sempre de uma especificação positiva, mesmo que essa
especificação seja o masculino com valor genérico:
(28) a. atleta
jornalista
concorrente

b. este jornalista é um homem corajoso


esta jornalista é uma mulher corajosa
um jornalista é uma pessoa corajosa
todos os jornalistas são corajosos

4.2.2 Sobre a variação em grau

A variação em grau é geralmente descrita no âmbito da flexão dos


adjectivos e até da flexão dos nomes. Trata-se, porém, de uma descrição
inadequada. Vejamos porquê.

No que diz respeito aos adjectivos, e de acordo com a


caracterização feita em no capítulo 3, é necessário distinguir os que
admitem graduação dos que não a admitem. Ou seja, nem todos os
adjectivos podem variar em grau. Segundo Mateus et al. (2003: 379-380),
são graduáveis os adjectivos que designam qualidades ou propriedades
que admitem uma escala de valores, como os adjectivos de medida e os
valorativos:
(29) pequeno pequeníssimo muito pequeno
frequente frequentíssimo muito frequente
belo belíssimo muito belo
desejável desejabilíssimo muito desejável

Não graduáveis são os adjectivos relacionais e diversos tipos de


adjectivos qualificativos, como os adjectivos de cor, de estado e de
matéria:
(30) ambiente *ambientalíssimo *muito ambiental
castanho *castanhíssimo *muito castanho
nortenho *nortenhíssimo *muito nortenho
titânico *titanicíssimo *muito titânico

Não existe, pois, obrigatoriedade na geração destes contrastes de


grau. Por outro lado, nem todos são realizados por recursos morfológicos,

156
sendo até predominantemente gerados por recursos sintácticos: o sufixo -
íssimo13 (e também -érrimo, embora este sufixo seja menos produtivo) é
responsável pela formação do superlativo absoluto sintético (cf. 31a), mas
a sintaxe gera o superlativo absoluto analítico, os superlativos relativos (de
superioridade e inferioridade) e os comparativos (de igualdade,
superioridade e inferioridade) (cf. 31b), bem como outras quantificações
(cf. 31c):
(31) a. frequentíssimo
frequentérrimo

b. muito frequente
o mais frequente
o menos frequente
tão frequente quanto/como
mais frequente do que
menos frequente do que

c. bastante frequente
igualmente frequente
nada frequente
relativamente frequente

Há, por último, um conjunto de situações que mostram a


inadequação da análise da variação em grau como flexão, dado que tanto
na formação do superlativo absoluto sintáctico, quanto na formação do
comparativo de superioridade se registam casos de contrastes lexicais que
evitam a formação de contrastes morfológicos ou sintácticos:
(32) bom melhor (*mais bom)
mau pior (*mais mau)
grande maior (*mais grande)
pequeno menor (*mais pequeno)

A morfologia envolvida na formação de contrastes de grau diz,


pois, respeito à formação do superlativo absoluto sintético, que é realizada
por modificação, envolvendo o sufixo avaliativo -íssimo/a ou -zíssimo/a14:
(33) leve levíssimo
ruim ruinzíssimo

4.2.3 Flexão em número

Os nomes e os adjectivos flexionam em número, sendo


obrigatoriamente realizados ou como singular ou como plural: estes dois
valores da categoria número, que aqui serão codificados pelo traço

157
[ plural]15, encontram-se A flexão de número não é a única
em distribuição operação morfológica relacionada com
complementar: os cardinalidade. A formação de nomes
adjectivos e os nomes ou colectivos, como eleitorado, casario ou
são especificados com o arvoredo, e a formação de palavras como
valor singular por ausência unissexo, bianual, tridimensional,
de qualquer sufixo quadrigémeo, tetravô, penta-campeão ou
específico, ou são decilitro exemplificam outros recursos
morfológicos que envolvem
especificados como plural
quantificação.
pela adjunção do sufixo -s:
(34) livro livros
raro raros

Nos adjectivos, a oposição de número não tem qualquer relevância


semântica, trata-se de um recurso estritamente gramatical que reforça a
ligação do adjectivo ao nome que modifica ou predica:
(35) livro raro
o livro que encontrei nesse alfarrabista é muito raro
livros raros
os livros que encontrei nesse alfarrabista são muito raros

Pelo contrário, a oposição de número nos nomes é semanticamente


relevante, exprimindo uma oposição de cardinalidade: o singular
quantifica o nome com o valor de „igual a uma unidade‟ e o plural
quantifica com o valor „superior a uma unidade‟:
(36) livro = „um livro‟
livros = „mais do que um livro‟

A realização da flexão em número nos termos acima descritos não


suscita qualquer dúvida quando se trata de radicais de tema em –a, tema
16
em –o, tema em –e e atemáticos
(37) velh]RADJ a]TADJ velh a]TADJ [ ][-plu] ]ADJ[-plu] velha]TADJ [s][+plu] ]ADJ[+plu]
antig]RADJ o]TADJ antig o]TADJ [ ][-plu] ] ADJ[-plu] antigo]TADJ [s][+plu] ]ADJ[+plu]
lev]RADJ e]TADJ lev e]TADJ [ ][-plu] ] ADJ[-plu] leve]TADJ [s][+plu] ]ADJ[+plu]
bom]RADJ ]TADJ bom]TADJ [ ][-plu] ] ADJ[-plu] bom]TADJ [s][+plu] ]ADJ[+plu]

bonec]RN a]TN boneca]TN [ ][-plu] ]N[-plu] boneca]TN [s][+plu] ]N[+plu]


bol]RN o]TN bolo]TN [ ][-plu] ]N[-plu] bolo]TN [s][+plu] ]N[+plu]
lequ]RN e]TN leque]TN [ ][-plu] ]N[-plu] leque]TN [s][+plu] ]N[+plu]
pudim]RN ]TN pudim]TN [ ][-plu] ]N[-plu] pudim]TN [s][+plu] ]N[+plu]

Os adjectivos e nomes atemáticos cujo radical termina em []


formam o plural desta mesma forma, no entanto, dado que o sufixo é

158
foneticamente idêntico à consoante que o precede, as duas formas acabam
por ser idênticas e consequentemente ambíguas:
(38) simples]RADJ ]TADJ simples]TADJ [ ][-plu] ] ADJ[-plu] simples]TADJ [s][+plu] ]ADJ(39)
[+plu]
[„] [„]

pires]RN ]TN pires]TN [ ][-plu] ]N[-plu] pires]TN [s][+plu] ]N[+plu]


[„] [„]

A formação do plural dos nomes e adjectivos de tema -Ø é um


pouco mais complexa, sendo necessário distinguir três casos17: o primeiro
é o dos radicais terminados em consoante fricativa (i.e. [], quer seja
ortografado com <z>, como em feroz ou rapaz, quer seja ortografado com
<s>, como em cortês ou país) ou vibrante [], que exige a inserção de
uma vogal epentética [] à esquerda do sufixo do plural []:
(39) feroz]RADJ Ø]TADJ ferozØ]TADJ [ ][-plu] ] ADJ[-plu] ferozØ]TADJ [s][+plu] ]ADJ[+plu]
[„] [„]
menor]RADJ Ø]TADJ menorØ]TADJ [ ][-plu] ] ADJ[-plu] menorØ]TADJ [s][+plu] ]ADJ[+plu]
[„] [„]
rapaz]RN Ø]TN rapazØ]TN [ ][-plu] ]N[-plu] rapazØ]TN [s][+plu] ]N[+plu]
[„] [„]
calor]RN Ø]TN calorØ]TN [ ][-plu] ]N[-plu] calorØ]TN [s][+plu] ]N[+plu]
[„] [„]

O segundo caso diz respeito aos radicais terminados em consoante


lateral. A realização do plural é fonologicamente complexa18, mas do
ponto de vista morfológico não se afasta do caso geral de adjunção do
sufixo –s:
(40) normal]RADJ Ø]TADJ normalØ]TADJ [ ][-plu] ] ADJ[-plu] normalØ]TADJ [s][+plu] ]ADJ[+plu]
[„] [„]
habil]RADJ Ø]TADJ habilØ]TADJ [ ][-plu] ] ADJ[-plu] habilØ]TADJ [s][+plu] ]ADJ[+plu]
[„] [„]

anel]RN Ø]TN anelØ]TN [ ][-plu] ]N[-plu] anelØ]TN [s][+plu] ]N[+plu]


[„] [„]
funil]RN Ø]TN funilØ]TN [ ][-plu] ]N[-plu] funilØ]TN [s][+plu] ]N[+plu]
[„] [„]

O terceiro caso diz respeito aos radicais adjectivais e nominais que


terminam em [] no singular. Destes, há um pequeno subconjunto que
forma o plural como esperado, ou seja por adjunção do sufixo –s. É sabido
que estas palavras formam o plural desta maneira por provirem de
palavras latinas terminadas em –ANU (cf. SANU-, MANU-), mas não estando
essa informação ao alcance da generalidade dos falantes, é possível que

159
estes radicais tendam a deixar de ser formas de tema em –o e passem a
atemáticas (mantendo eventualmente um alomorfe de tema em –o,
seleccionado por processos de formação de palavras, como se verifica em
casos como sanidade ou manual):
(41) san]RADJ o]TADJ sano]TADJ [ ][-plu] ] ADJ[-plu] sano]TADJ [s][+plu] ]ADJ[+plu]
são]RADJ ]TADJ são]TADJ [ ][-plu] ] ADJ[-plu] são]TADJ [s][+plu] ]ADJ[+plu]
[„] [„]

man]RN o]TN mano]TN [ ][-plu] ] N[-plu] mano]TN [s][+plu] ]N[+plu]


mão]RN ]TN mão]TN [ ][-plu] ] N[-plu] mão]TN [s][+plu] ]N[+plu]
[„] [„]

Os restantes radicais adjectivais e nominais que terminam em []


no singular são radicais de tema -Ø, cuja terminação, no singular, é o
resultado de um processo de neutralização que deu esta configuração
fonética a terminações latinas cuja evolução esperada seria outra (cf.
CANIS, LEONIS). É também esta base etimológica que está na origem dos
contrastes exibidos pela flexão no plural: as formas provenientes de
palavras em –ANIS formam o plural em –ães (cf. cão, cães), as que têm
origem em formas em –ONIS formam o plural em –ões (cf. leão, leões).
(42) a. catalan]RADJ Ø]TADJ catalanØ]TADJ [ ][-plu] ] ADJ[-plu] catalanØ]TADJ [s][+plu] ]ADJ[+plu]
catalão]RADJ ]TADJ catalão]TADJ [ ][-plu] ] ADJ[-plu] catalãe]TADJ [s][+plu] ]ADJ[+plu]
[„] [„]

can]RN Ø]TN canØ]TN [ ][-plu] ] N[-plu] canØ]TN [s][+plu] ]N[+plu]


cão]RN ]TN cão]TN [ ][-plu] ] N[-plu] cãe]TN [s][+plu] ]N[+plu]
[„] [„]

b. varon]RADJ Ø]TADJ varonØ]TADJ [ ][-plu] ] ADJ[-plu] varonØ]TADJ [s][+plu] ]ADJ[+plu]


varão]RADJ ]TADJ varão]TADJ [ ][-plu] ] ADJ[-plu] varõe]TADJ [s][+plu] ]ADJ[+plu]
[„] [„]

leon]RN Ø]TN leonØ]TN [ ][-plu] ] N[-plu] leonØ]TN [s][+plu] ]N[+plu]


leão]RN ]TN leão]TN [ ][-plu] ] N[-plu] leõe]TN [s][+plu] ]N[+plu]
[„] [„]
Esta descrição não cobre, porém, a totalidade dos casos que
ocorrem no Português: por um lado, há palavras que formam o plural em –
ães, apesar de não terem o étimo previsto (cf. capitão, por exemplo,
provém do Latim tardio CAPITĀNUS) e também há palavras sem a origem
etimológica acima identificada que formam o plural em –ões (cf. limão, é
uma palavra de origem persa, que entra no Português, provavelmente, a
partir do Árabe LIMŪN). Por outro lado, esta descrição não dá conta da
tendência dominante no uso destas formas para privilegiar o plural em -
ões, num processo de neutralização semelhante ao que ocorreu no singular

160
(em benefício de –ão): em alguns casos, esta tendência encontra já
acolhimento na prescrição gramatical, razão pela qual alguns autores
admitem mais do que uma forma de plural para palavras terminadas em –
ão. Percebe-se, aliás, que a hesitação pode ser provocada por uma tensão
entre a motivação etimológica e a pressão paradigmática que privilegia –
ões (cf. anãos, anões; corrimãos, corrimões; vilãos, vilões) e percebe-se
também que é esta última a forma que tende a ter maior sucesso (cf.
verãos, verões). Noutros casos, a escolha múltipla oferecida pela
prescrição gramatical não tem qualquer justificação que não seja o
resultado de um processo de hipercorrecção (cf. refrães, refrãos; aldeães,
aldeãos, aldeões; anciães, anciãos, anciões ou sultães, sultãos, sultões).
Há, por último, casos idênticos aos anteriores, ou seja, casos em que a
etimologia da palavra não legitima a formação do plural em –ões (cf.
cidadão), a prescrição gramatical não a sanciona (cf. cidadãos), mas o uso
tende a consagrá-la (cf. *cidadões).

Em suma, o plural das palavras terminadas em –ão é um assunto


complexo do ponto de vista fonológico e diacrónico, mas não no que diz
respeito à componente morfológica da flexão em número. Para a
morfologia, as palavras em –ão formam o plural por adjunção do sufixo –
s, sendo formadas a partir de radicais atemáticos, que dispõem de dois ou
mais alomorfes:
(43) san RADJ sanidade man RN manual
são RADJ são, sãos mão RN mão, mãos

catalan RADJ catalânico can RN canil


catalão RADJ catalão cão RN cão
catalãe RADJ catalães cãe RN cães

varon RADJ varonil leon RN leonino


varão RADJ varão leão RN leão
varõe RADJ varões leõe RN leões

Muitos patronímicos têm uma forma que se aproxima da forma do


plural, mas não é plural. Trata-se de palavras originalmente geradas a
partir de um antropónimo, com o significado de „filho de‟, e que só
mais tarde passam a identificar um patronímico de carácter geral, não
necessariamente transmitido por via varonil:
Álvares, filho de Álvaro Marques, filho de Marco
Domingues, filho de Domingo Martins, filho de Martim
Fernandes, filho de Fernando Mendes, filho de Mendo
Geraldes, filho de Geraldo Nunes, filho de Nuno
Henriques, filho de Henrique Rodrigues, filho de Rodrigo
Lopes, filho de Lopo Simões, filho de Simão

161
O carácter obrigatório da flexão em número é aparentemente posto
em causa pelos nomes próprios, que, por definição, designam entidades
únicas, não pluralizáveis (por vezes chamados singularia tantum). No
entanto, a restrição não vale nos casos em que é possível interpretar o
plural como identificação de vários sujeitos portadores de um dado nome
próprio – deste modo, é possível falar da dinastia dos Filipes, dos
Almeidas como membros da família Almeida, ou das Marias, como
metáfora de mulheres. A restrição é, pois, semântica e não morfológica.

O mesmo se verifica com os nomes não-contáveis. Também neste


caso, a pluralização é possível, mas a interpretação semântica é um pouco
diferente. O plural de granito (i.e. granitos) não é interpretado como „mais
do que um granito‟, mas sim como „mais do que um tipo de granito‟; o
plural de ingenuidade também não é interpretado como „mais do que uma
ingenuidade’, mas sim como „mais do que uma manifestação de
ingenuidade’:
(44) Podemos usar granitos e madeiras
Não acredito em tantas ingenuidades

Por outro lado, alguns nomes, classificados como pluralia tantum,


apresentam apenas uma forma plural19. Em alguns casos, estas formas têm
uma espécie de valor dual, por referirem objectos constituídos por duas
partes salientes (cf. algemas, calças, calções, cuecas, óculos), podendo até
surgir como complemento da expressão „um par de‟. Note-se que algumas
destas palavras podem ocorrer no singular (cf. uma calça, um calção, uma
cueca) – no Português do Brasil20 o uso do singular tende a suplantar o do
plural, mas no Português Europeu estas formas de singular não são
valorizadas pela dialecto-padrão21. Noutros casos, como afazeres,
arredores, confins, trevas, pêsames ou víveres, o plural tem um valor de
colectivo22, tal como se verifica nos vestígios de plurais latinos (cf. fruta,
lenha, ova). Todos estes plurais, que foram inicialmente gerados por
flexão, estão lexicalizados, pelo que a sua existência não pode interferir
com a análise da flexão.

Resta, agora, olhar para os casos em que o sufixo do plural não


ocorre na sua posição canónica, ou seja, na posição mais periférica à
direita. É o que se verifica em palavras formadas por sufixação z-
23
avaliativa , que apesar de não exibirem a realização fonética do sufixo do
24
plural mostram a forma do tema que é exclusiva do plural :

162
(45) flor flores
florzinha florezinhas

caracol caracóis
caracolzinho caracoizinhos

leão leões
leãozinho leõezinhos

pão pães
pãozinho pãezinhos

Este caso não mostra a ocorrência de flexão numa posição distinta


daquela que anteriormente foi referida, ou seja, na posição mais periférica
à direita. O que este caso mostra é que o sufixo z-avaliativo –zinh(o/a) se
associa a formas flexionadas (i.e. palavras), copiando o valor de género da
sua base, e ainda que há palavras complexas que contêm palavras como
um dos seus constituintes. Se o sufixo de flexão da base não é realizado
foneticamente é por razões de natureza fonológica e não morfológica,
relacionadas, certamente, com a degeminação de consoantes muito
próximas (i.e. [] e []):
(46) [[flores]N zinhas]N

[[caracóis]N zinhos]N

[[leões]N zinhos]N

[[pães]N zinhos]N

Um outro caso de ocorrência da flexão fora do seu lugar canónico,


25
é o que diz respeito a alguns tipos de compostos morfo-sintácticos .
Dependendo da sua estrutura, que é sintáctica, o plural ocorre na periferia
da primeira palavra (se se tratar de uma estrutura de modificação) ou na
periferia de todas as palavras (se se tratar de uma estrutura de
coordenação):
(47) bomba-relógio
bombas-relógio
trabalhador-estudante
trabalhadores-estudantes
surdo-mudo
surdos-mudos

A localização do sufixo de flexão, neste caso, não tem nada de


problemático para a análise morfológica: ela ocorre sempre na periferia
direita das palavras. Não ocorre na periferia direita do composto

163
obrigatória e exclusivamente porque estes compostos têm uma estrutura
sintáctica e não morfológica.

4.2.4 Flexão verbal

A flexão morfológica dos verbos diz respeito à formação dos


chamados tempos simples26. Nos verbos regulares27, a flexão é realizada
por sufixação, que é sensível à conjugação28 a que o radical verbal
pertence, e dispõe de duas posições estruturais para especificar o tema: a
primeira é ocupada pelo sufixo de tempo-modo-aspecto (TMA) e a
segunda, à sua direita, é ocupada pelo sufixo de pessoa-número (PN).
(48) V= +

TV[CONJ= ] Flexão= +

RV[CONJ= ] VT TMA= PN=

O que a flexão verbal faz é gerar um dado conjunto de formas


portadoras de um dado conjunto de traços: „ ‟ traços de tempo-modo-
aspecto e „ ‟ traços de pessoa-número. A primeira questão que se pode
colocar é a de saber por que razão é que estes sufixos têm estes nomes.
Vejamos então o que se sabe sobre esta matéria.

4.2.4.1 A flexão em tempo-modo-aspecto

A informação semântica contida na flexão verbal em tempo-


modo-aspecto é uma informação abstracta e imprecisa – o contexto
sintáctico é indispensável à interpretação modal, temporal e aspectual dos
enunciados: leio é uma forma de presente do indicativo, que, por
definição, remete, para uma simultaneidade do momento da enunciação
com o momento da situação descrita. Sabe-se, porém, que esta informação
semântica é condicionada por outras informações modais, temporais e
aspectuais presentes na frase:
(49) Leio o jornal todos os dias.
Não quero ler esse artigo hoje, leio amanhã.
Se leio durante muito tempo, fico com dores de cabeça.
Chegou o relatório. Leio ou não leio?
Leio, leio, leio e não encontro respostas.

164
O facto de o sufixo de tempo-modo-aspecto associar informação
sobre a atitude do locutor relativamente ao seu enunciado e sobre a
localização temporal da situação que ele descreve29 não é semanticamente
motivado – trata-se de uma amálgama morfológica de três categorias
morfo-semânticas que, embora possam estar relacionadas, são
independentes:
(50) canta – va – mos pretérito imperfeito do indicativo
canta – sse – mos pretérito imperfeito do conjuntivo

canta – ra pretérito mais-que-perfeito do indicativo


canta – ndo gerúndio

Este sufixo de TMA está presente em todas as formas da flexão


verbal excepto nos casos de amálgama e nas restantes formas do presente
do indicativo. A amálgama ocorre sempre que a flexão verbal dispões de
um único sufixo para as categorias de tempo, modo, aspecto, pessoa e
número. É o que se verifica com o pretérito perfeito e com a primeira
pessoa do singular do presente do indicativo:
(51) canta – ei canta – o
canta – ste
canta – ou
canta – mos
canta – stes
canta – ram

A ausência do sufixo nas restantes formas do presente do


indicativo é igualmente significativa, identificando inequivocamente o
presente do indicativo, transformando os sufixos de pessoa-número em
amálgamas de tempo-modo-aspecto e pessoa-número:
(52) canta - - s
canta - -
canta - - mos
canta - - is
canta - - m

Os contrastes de flexão verbal tradicionalmente considerados


distinguem as formas nominais (i.e. infinitivo impessoal, gerúndio e
particípio passado) das formas pessoais, identificando, neste caso, dois
modos com variação interna (indicativo e conjuntivo), dois modos sem
variação interna (imperativo e infinitivo pessoal) e dois paradigmas de
difícil classificação (o futuro simples e o condicional). O imperfeito do
indicativo, o imperfeito do conjuntivo, o futuro simples, o condicional, o
gerúndio e o particípio passado contribuem com todos os contrastes que
estão ao seu alcance30.

165
(53) cantava bebia fugia
cantavas bebias fugias
Indicativo
cantávamos bebíamos fugíamos
pretérito imperfeito
cantáveis bebíeis fugíeis
cantavam bebiam fugiam
cantasse bebesse fugisse
cantasses bebesses fugisses
Conjuntivo
cantássemos bebêssemos fugíssemos
pretérito imperfeito
cantásseis bebêsseis fugísseis
cantassem bebessem fugissem
cantarei beberei fugirei
cantarás beberás fugirás
cantará beberá fugirá
Futuro simples
cantaremos beberemos fugiremos
cantareis bebereis fugireis
cantarão beberão fugirão
cantaria beberia fugiria
cantarias beberias fugirias
Condicional cantaríamos beberíamos fugiríamos
cantaríeis beberíeis fugiríeis
cantariam beberiam fugiriam
Gerúndio cantando bebendo fugindo
Particípio passado cantado bebido fugido

Nos restantes casos, o número de contrastes possíveis é


substancialmente reduzido pela identidade de diversas formas. É o que se
verifica com a ambiguidade entre:

(i) a terceira pessoa-plural do mais-que-perfeito e do perfeito;

(ii) a primeira pessoa-plural do presente e do perfeito do indicativo;

(iii) a terceira pessoa-singular do indicativo e a segunda pessoa-singular


do imperativo afirmativo;

(iv) a terceira pessoa-singular do presente do indicativo e a segunda


pessoa-singular do imperativo afirmativo;

(v) as formas do presente do conjuntivo e diversas formas do imperativo;

(vi) diversas formas do imperativo afirmativo e negativo;

(vii) todas as formas do futuro do conjuntivo31 e todas as formas do


infinitivo pessoal;

(viii)a primeira/terceira pessoa-singular do futuro do conjuntivo e


infinitivo pessoal e o infinitivo impessoal.

Os casos relevantes estão assinalados a negrito no quadro seguinte:

166
(54)

cantara bebera fugira


pretérito cantaras beberas fugiras
mais-que- cantáramos bebêramos fugíramos
perfeito cantáreis bebêreis fugíreis
cantaram beberam fugiram
cantei bebi fugi
cantaste bebeste fugiste
pretérito cantou bebeu fugiu
perfeito cantámos bebemos fugimos
cantastes bebestes fugistes
cantaram beberam fugiram
canto bebo fujo
cantas bebes foges
canta bebe foge
presente
cantamos bebemos fugimos
cantais bebeis fugis
cantam bebem fogem
cante beba fuja
cantes bebas fujas
presente cantemos bebamos fujamos
canteis bebais fujais
cantem bebam fujam
cantar beber fugir
cantares beberes fugires
futuro cantarmos bebermos fugirmos
cantardes beberdes fugirdes
cantarem beberem fugirem
canta bebe foge
cante beba fuja
forma
cantemos bebamos fujamos
afirmativa
cantai bebei fugi
cantem bebam fujam
cantes bebas fujas
cante beba fuja
forma
cantemos bebamos fujamos
negativa
canteis bebais fujais
cantem bebam fujam
cantar beber fugir
cantares beberes fugires
pessoal cantarmos bebermos fugirmos
cantardes beberdes fugirdes
cantarem beberem fugirem
impessoal cantar beber fugir

167
Há, no Português, dois paradigmas de flexão verbal cuja estrutura
não pode ser descrita pela representação apresentada em (48). Trata-se do
futuro simples e do condicional. Como é sabido, estes dois conjuntos de
formas resultam de um processo de gramaticalização de construções
perifrásticas que, de algum modo, ainda hoje subsistem, e que consistiu
em justapor algumas formas do verbo haver (ou apenas partes dessas
formas) ao infinitivo impessoal de qualquer verbo – para formar o futuro
juntam-se as formas do presente do indicativo de haver (truncando o
radical, nos casos em que ele está presente), e, para formar o condicional,
juntam-se as formas do imperfeito do indicativo de haver (sendo o radical,
neste caso, sempre truncado):
(55) a. nadar hei cf. hei-de nadar
nadar hás cf. hás-de nadar
nadar há cf. há-de nadar
nadar (hav)emos cf. havemos de nadar
nadar (hav)eis cf. haveis de nadar
nadar hão cf. hão-de nadar

b. nadar (hav)ia cf. havia de nadar


nadar (hav)ias cf. havias de nadar
nadar (hav)íamos cf. havíamos de nadar
nadar (hav)íeis cf. havíeis de nadar
nadar (hav)iam cf. haviam de nadar

Esta original procedência do futuro simples e do condicional, no


quadro da flexão verbal do Português, tem consequências que é necessário
identificar. Em primeiro lugar, são estes os únicos casos que dão lugar à
ocorrência de mesóclise, ou seja, da colocação do pronome clítico no
interior da forma verbal:
(56) a. falarei falar-lhe-ei
falarás falar-lhe-ás
falará falar-lhe-á
falaremos falar-lhe-emos
falareis falar-lhe-eis
falarão falar-lhe-ão

b. falaria falar-lhe-ia
falarias falar-lhe-ias
falaríamos falar-lhe-íamos
falaríeis falar-lhe-íeis
falariam falar-lhe-iam

Na verdade, o clítico não ocorre numa posição aleatória, mas sim


entre o infinitivo do verbo principal e o que pode ser entendido como um
espécie de verbo auxiliar. Neste sentido, pode defender-se que a mesóclise
é uma forma particular de ênclise, que qualquer proclisador desfaz:

168
(57) Falar-lhe-emos ainda hoje.
Já não lhe falaremos hoje.
Penso que lhe falaremos ainda hoje.

A mesóclise mostra que o processo de gramaticalização não está


ainda concluído, mas há muitos indícios de que a transformação das
formas analíticas em formas sintéticas é irreversível. Por um lado, Martins
(1994) identifica casos de ênclise numa fase remota da história do
Português, exemplificando com formas como darey-te ou faria-se. Por
outro lado, Mateus et al. (2003: 866) afirmam que “dados da aquisição,
produção de falantes de variedades populares e, em geral, de gerações
mais novas, revelam que a ênclise está a invadir os contextos de
mesóclise”, dando como exemplo frases onde ocorrem as formas
telefonarei-te e poderá-se. Por último, é interessante confrontar a
realização fonética das formas do futuro simples e do condicional com e
sem a presença de um clítico: na forma sintética há uma única sílaba
tónica e a vogal temática do verbo principal é reduzida; na forma analítica
há duas sílabas tónicas (a vogal temática do verbo principal e o acento do
verbo auxiliar).
(58) a. fal[„]rei fa[„]l[]r-lhe-[„]ei
fal[„]rás fa[„]l[]r-lhe-[„]ás
fal[„]rá fa[„]l[]r-lhe-[„]á
fal[„]remos fa[„]l[]r-lhe-[„]emos
fal[„]reis fa[„]l[]r-lhe-[„]eis
fal[„]rão fa[„]l[]r-lhe-[„]ão
b. fal[„]ria fa[„]l[]r-lhe-[„]ia
fal[„]rias fa[„]l[]r-lhe-[„]ias
fal[„]ríamos fa[„]l[]r-lhe-[„]íamos
fal[„]ríeis fa[„]l[]r-lhe-[„]íeis
fal[„]riam fa[„]l[]r-lhe-[„]iam

A representação da estrutura morfológica destas formas não é fácil.


No caso do condicional, pode admitir-se uma estrutura semelhante à do
infinitivo flexionado, com o sufixo de tempo-modo-aspecto a incorporar o
sufixo do infinitivo (i.e. –re), a vogal temática do verbo haver (i.e. –i) e o
sufixo do imperfeito do indicativo do verbo haver (i.e. –a), que resulta na
sequência –ria. A situação do futuro simples é ainda mais complexa, dado
que só uma amálgama dos sufixos de tempo-modo-aspecto e pessoa-
número permite dar conta da sua estrutura.

169
(59) V

TV Flexão

RV VT TMA PN

fal a ria -/s/mos/is/m

TV Flexão

RV VT TMA PN

fal a rei/rás/rá/remos/reis/rão

Esta representação é compatível com a forma sintética do


condicional, mas não com a forma analítica, dado que só permite a
ocorrência de um acento de palavra (sobre a vogal temática) e exigiria que
o clítico interrompesse, de forma inexplicável, o sufixo de tempo-modo-
aspecto. Consequentemente, todas estas formas devem ser lexicalizadas.

4.2.4.2 A flexão em pessoa-número

O segundo sufixo de flexão verbal diz respeito à referência pessoal.


A tradição gramatical identifica habitualmente três pessoas – a primeira, a
segunda e a terceira, associadas aos pronomes eu, tu e ele/ela, quando
referem, respectivamente, o locutor, o interlocutor ou um sujeito ausente
da enunciação; e os pronomes nós, vós, eles/elas, quando referem,
respectivamente, o locutor acompanhado pelo(s) seu(s) interlocutor(es) (eu
e tu (e tu…))32 ou por um ou mais sujeitos ausentes da enunciação (eu e
ele/a (e ele/a…))33, o interlocutor acompanhado por outro(s)
interlocutor(es) (tu e tu (e tu…))34 ou por um ou mais sujeitos ausentes da
enunciação (tu e ele/a (e ele/a…))35, e, por último, mais de um sujeito
ausente da enunciação (ele/a e ele/a (e ele/a…)). As três primeiras são
chamadas as pessoas do singular e as três últimas são chamadas pessoas
do plural, mas a descrição feita permite compreender que esta oposição
singular/plural não é idêntica à oposição de número nos nomes – trata-se
de uma designação que dá conta da referência ao sujeito como sendo:

170
(60) 1ª pessoa do singular = o locutor
2ª pessoa do singular = o interlocutor
3ª pessoa do singular = um sujeito ausente da enunciação
1ª pessoa do plural = o locutor e mais alguém
2ª pessoa do plural = o interlocutor e mais alguém (excepto o locutor)
3ª pessoa do plural = dois ou mais sujeitos ausentes da enunciação

Uma observação mais atenta dos dados permite, no entanto,


constatar que esta caracterização de flexão em pessoa-número não
corresponde integralmente ao que se verifica na gramática morfológica do
Português contemporâneo: por um lado, nem todas estas distinções são
sistematicamente realizadas; por outro, há contrastes atestados que aqui
não estão contemplados.

No que diz respeito ao primeiro aspecto, é necessário distinguir o


caso das chamadas formas nominais do verbo dos restantes. As formas
nominais, ou seja, o infinitivo, o gerúndio e o particípio são formas
defectivas em pessoa-número36, caracterizáveis, aliás, como o nome, o
advérbio e o adjectivo verbais. De algum modo, é a própria tradição
gramatical que coloca estas formas na periferia da flexão verbal e na órbita
da derivação:
(61) Infinitivo: cantar beber fugir
Gerúndio: cantando bebendo fugindo
Particípio: cantado bebido fugido

Também o imperativo é afectado por defectividade, que impede a


formação da primeira e da terceira pessoas. Trata-se de um caso de
defectividade semanticamente motivada, dado que não é plausível que o
locutor dê uma ordem ou faça um pedido a si próprio ou a sujeitos
ausentes da enunciação. A ocorrência da primeira pessoa-plural é
legitimada pelo facto do locutor se encontrar acompanhado por um ou
mais interlocutores e é geralmente utilizada como recurso retórico de
suavização de uma ordem ou de captatio benevolentia.

O segundo caso diz respeito à distinção entre a primeira e a terceira


pessoas do singular: a maior parte dos paradigmas de flexão não a
realizam:
(62) Imperfeito do indicativo: cantava bebia fugia
Mais-que-perfeito do indicativo: cantara bebera fugira
Presente do conjuntivo: cante beba fuja
Imperfeito do conjuntivo: cantasse bebesse fugisse
Futuro do conjuntivo: cantar beber fugir
Infinitivo flexionado: cantar beber fugir
Condicional: cantaria beberia fugiria

171
A distinção só é feita no presente do indicativo (cf. canto/cante),
no perfeito do indicativo (cf. cantei/cantou) e no futuro simples (cf.
cantarei/cantará), ou seja, nos casos em que há amálgama de tempo-
modo-aspecto e pessoa-número. Esta ambiguidade entre as formas de
primeira e terceira pessoas do singular não pode deixar de ser relacionada
com um outro fenómeno que afecta a segunda pessoa. Trata-se do caso das
formas de segunda pessoa habitualmente identificadas pelos pronomes
você e vocês37 e que correspondem a uma forma de tratamento diferente da
que está associada às formas pronominais tu e vós: você ocorre num
registo mais formal ou mais distante do que tu e vocês ocorre num registo
menos formal ou menos distante do que vós. A necessidade de considerar
estas formas de um ponto de vista morfológico advém do facto de elas
recorrem às formas verbais de terceira pessoa e de, por essa via, assim se
estabelecer uma nova fonte de ambiguidade: à indistinção entre a primeira
e a terceira pessoas do singular, junta-se a da segunda. No plural a
ambiguidade afecta a segunda e a terceira.
(63) Imperfeito do indicativo: eu/você/ele cantava bebia fugia
Mais-que-perfeito do indicativo: eu/você/ele cantara bebera fugira
Presente do conjuntivo: eu/você/ele cante beba fuja
Imperfeito do conjuntivo: eu/você/ele cantasse bebesse fugisse
Futuro do conjuntivo: eu/você/ele cantar beber fugir
Infinitivo flexionado: eu/você/ele cantar beber fugir
Condicional: eu/você/ele cantaria beberia fugiria
Imperfeito do indicativo: vocês/eles cantava bebia fugia
Mais-que-perfeito do indicativo: vocês/eles cantara bebera fugira
Presente do conjuntivo: vocês/eles cante beba fuja
Imperfeito do conjuntivo: vocês/eles cantasse bebesse fugisse
Futuro do conjuntivo: vocês/eles cantar beber fugir
Infinitivo flexionado: vocês/eles cantar beber fugir
Condicional: vocês/eles cantaria beberia fugiria

O último caso diz respeito ao uso da segunda pessoa do plural. A


ocorrência destas formas é dialectalmente condicionada: no dialecto de
Lisboa ela é, praticamente, inexistente. O esquema de pessoa-número de
(60) deve, pois ser revisto, prevendo oito diferentes contrastes
(64) 1ª pessoa do singular = o locutor
2ª pessoa do singular = o interlocutor – tratamento informal
2ª pessoa do singular = o interlocutor – tratamento formal
3ª pessoa do singular = um sujeito ausente da enunciação
1ª pessoa do plural = o locutor e mais alguém
2ª pessoa do plural = o interlocutor e mais alguém (excepto o locutor)
2ª pessoa do plural = o interlocutor e mais alguém (excepto o locutor)
3ª pessoa do plural = dois ou mais sujeitos ausentes da enunciação

172
(65)
Indicativo Imperativo Conjuntivo
Infinitivo Futuro
pretérito Condicional
pretérito pretérito presen pretérito pessoal simples
mais-que- presente afirmativo negativo futuro
imperfeito perfeito te imperfeito
perfeito
Tu nadavas nadaras nadaste nadas nada nades nadasses nadares nadarás nadarias
Você nade
nadou nada nadará
Ele/ela nadava nadara nadasse nadar nadaria
Eu nadei nado nadarei
nadávamo
Nós nadáramos nadámos/nadamos nademos nadássemos nadarmos nadaremos nadaríamos
s
Vós nadáveis nadáreis nadastes nadais nadai nadeis nadásseis nadardes nadareis nadaríeis
Vocês nadem
nadavam nadaram nadam nadassem nadarem nadarão nadariam
Eles/elas

Gerúndio Particípio passado Infinitivo


nadando nadado impessoal

173
4.3 Análise fonológica de processos morfológicos

A categoria sintáctica e as propriedades morfológicas que estão


adstritas aos itens lexicais podem desencadear a actuação de processos da
fonologia, evidenciando a relação existente entre as componentes
fonológica e morfológica da gramática. Esta interacção é analisada em
4.3.1. no que respeita aos processos fonológicos decorrentes da formação
do plural dos nomes e adjectivos, e em 4.3.2 relativamente aos processos
que actuam para a constituição de certas formas verbais, tomando em
consideração não só a categoria sintáctica da palavra mas também a sua
estrutura interna.

4.3.1 Formação do plural dos nomes e adjectivos

A formação do plural dos nomes e adjectivos em Português


38
exige, por regra geral, a junção do sufixo // (<s> gráfico) ao tema da
palavra. Quando o radical está seguido de uma das três vogais fonéticas
[], [] ou [] que marcam as classes de nominais (exemplos: gata
[‘], sorte[‘], copo [‘]) essa junção tem apenas, como
consequência, a palatalização do // (/+/ [‘], /+/
[], /+/ [‘]). Porém, nas palavras terminadas na
consoante do radical (como valor //, terminado em //, mês //,
terminado em // ou animal //, terminado em //), a formação do
plural não é obtida apenas pelo acrescentamento do sufixo. Considerem-se
os seguintes exemplos:
(66) valor [] valores []
professor [] professores []
mês [„] meses [„]

Nas palavras incluídas em (66) é inserida a vogal [] entre a


consoante final do radical e o sufixo do plural. Esta é a vogal não-marcada
na estrutura fonética do Português Europeu, ou seja, a mais frequente nas
inserções e supressões. Por ser inserida, a vogal chama-se epentética. Ela
vem ocupar a posição de núcleo de uma nova sílaba formada pela junção
do //. Nas palavras terminadas em //, como valor, a consoante final da
palavra torna-se início da nova sílaba que se formou no plural (valores).
Se o radical terminar em // como em mês, a sua realização fonética no
plural é [] por ser o início da sílaba seguinte criada com a introdução da
vogal [] ([‘]).

174
Em (67) pode ver-se a diferença do número de sílabas nas palavras
valor e mês, entre o singular e o plural (os pontos separam sílabas).

(67) va.lor va.lo.res []


mês me.ses [‘]

As palavras de (68) terminam em //. No plural exibem um ditongo


com a semivogal [].
(68) animal [] animais []
papel [] papéis []
caracol [] caracóis []
azul [] azuis [‟]
redil [] redis [‟]

No plural das palavras de (68), o // final do radical realiza-se


foneticamente como a semivogal [] e forma um ditongo decrescente com
a vogal anterior. Por essa razão não é necessário que seja inserida a vogal
[], porque o radical da palavra passa a terminar em vogal, a qual, em
conjunto com a semivogal [] que se segue, constitui um ditongo que
39
forma o núcleo da sílaba . Em (69) está representada a divisão silábica de
animal / animais. Não há diferença no número de sílabas mas na sua
natureza.

(69) a.ni.mal a.ni.mais []

Os nomes e adjectivos terminados em ditongo nasal também


apresentam algumas particularidades na formação do plural. Vejam-se os
seguintes exemplos:

(70) a. mão [„] mãos [„]


grão [„] grãos [„]
b. cão [„] cães [„]
pão [„] pães [„]
c. devoção [] devoções []
ocasião [] ocasiões []

Estes nomes e adjectivos terminam no mesmo ditongo nasal no


singular mas têm três terminações diferentes no plural. A explicação
destas diferenças decorre dos respectivos étimos:

- As palavras que formam o plural em [] derivam de um étimo


terminado em –ANU (MANU > [‘]).

- As palavras que formam o plural em [] derivam de um étimo


terminado em –ANE (CANE > [‘]).

175
- As palavras que formam o plural em [] derivam de um étimo
terminado em –one (DEVOTIONE > []).

Actualmente, a única formação do plural produtiva tem terminação


em –ões (por exemplo, brigões) Os outros plurais têm que ser
memorizados. O singular convergente destes três grupos de palavras
resulta da aplicação de regras da gramática do Português sobre as palavras
terminadas em –ane e –one. Em cão e pão a semivogal [] , [–recuada],
passa a [], [+recuada], por assimilação de [] que é também [+recuada]
formando o ditongo []. Em devoção, ocasião dá-se a inserção de uma
semivogal [+recuada], [], tal como a vogal [o] que é também [+recuada].
Desta inserção resulta a forma devoçom [o] que subsiste em alguns
dialectos do norte de Portugal. Na modificação de [o] em
[] dá-se uma dissimilação entre os dois elementos do ditongo,
com a passagem de [], que é arredondado como [], a [], não
arredondado. A convergência destas formas no singular resulta, portanto,
da aplicação de regras de inserção, de assimilação e de dissimilação que
actuam em outros pontos da gramática do Português.

4.3.2 Análise fonológica da flexão verbal

Os tempos simples dos verbos em Português repartem-se por três


grupos se nos basearmos nos processos fonológicos a que estão sujeitos.
São esses processos o comportamento da Vogal Temática (VT), a
Harmonização Vocálica e o Abaixamento da Vogal do Radical

Os grupos de formas verbais acima referidos são designados por


Tempos do Presente, Tempos do Passado e Tempos do Futuro. Estas
designações são convencionais e não indicam o funcionamento sintáctico
ou semântico das formas verbais. O agrupamento destes tempos verbais
40
tem interesse também para a análise dos verbos irregulares
(71) Tempos do Presente Tempos do Passado Tempos do Futuro
Presente do Indicativo Imperfeito do Indicativo Futuro do Indicativo
Presente do Conjuntivo Perfeito do Indicativo Condicional
Imperativo Mais-que-perfeito do Indicativo
Infinitivo não flexionado Imperfeito do Conjuntivo
Infinitivo flexionado Futuro do Conjuntivo
Gerúndio Particípio passado

A análise dos processos fonológicos que se aplicam na flexão


verbal só pode realizar-se se tivermos em conta a estrutura interna das
formas verbais. Essa estrutura interna é constituída pelo Radical do verbo,
pela Vogal Temática (VT) e pelos Sufixos de tempo-modo-aspecto e

176
pessoa-número. A vogal temática é a vogal que distingue paradigmas – em
Português, // em nadar [], 1ª conjugação, // em bater [],
segunda conjugação e // em partir [], terceira conjugação. O
radical é a parte da palavra que antecede a vogal temática. Esta vogal está
presente na estrutura fonológica, ou estrutura de base, de todas as formas.
O radical e a vogal temática constituem o Tema da forma verbal.

Nos verbos em Português, como em muitas línguas românicas, a


vogal temática é o ponto nevrálgico da estrutura interna das formas
verbais. Nas secções seguintes são analisadas as consequências da sua
supressão e a influência dos seus traços distintivos sobre a vogal do
radical.

4.3.2.1 Supressão da vogal temática

Em (72) estão apresentadas as estruturas internas das formas do


Presente do Indicativo e do Presente do Conjuntivo dos verbos nadar,
bater e abrir. Estes três verbos exemplificam as três conjugações verbais
do Português e têm // na vogal do radical. Para simplificar a apreensão
das questões tratadas, as formas estão apresentadas de acordo com a
ortografia, com uma única excepção: todas as formas têm a vogal temática
inserida depois do radical. Os morfemas constituintes – radical, vogal
temática e sufixo – estão separados por [+] que indica uma fronteira de
morfema.
(72) a. Presente do Indicativo
nad+a+o bat+e+o abr+i+o
nad+a+s bat+e+s abr+i+s
nad+a bat+e abr+i
nad+a+mos bat+e+mos abr+i+mos
nad+a+is bat+e+is abr+i+s
nad+a+m bat+e+m abr+i+m
b. Presente do Conjuntivo
nad+a+e bat+e+a abr+i+a
nad+a+e+s bat+e+a+s abr+i+a+s
nad+a+e bat+e+a abr+i+a
nad+a+e+mos bat+e+a+mos abr+i+a+mos
nad+a+e+is bat+e+a+is abr+i+a+is
nad+a+e+m bat+e+a+m abr+i+a+m

Nestes tempos verbais, a Vogal Temática é suprimida quando à


sua direita se encontra uma vogal. No Presente do Indicativo essa
supressão dá-se apenas na primeira pessoa do singular (sufixo //) visto
que em todas as outras formas a VT está seguida de consoante ou está no

177
final da palavra (terceira pessoa do singular). Na segunda pessoa do plural
a VT também está seguida da consoante // em forma subjacente
(/++/) que só se manifesta em superfície em algumas formas
verbais como credes, vedes, ledes. Na maioria dos verbos, a consoante foi
suprimida por uma regra particular que faz parte da história da língua, e
por isso a consoante não ocorre na realização fonética. No entanto, a sua
presença em estrutura de base impede a supressão da vogal temática.

Nas formas do Presente do Conjuntivo a VT está sempre seguida


de outra vogal que é o sufixo de tempo-modo-aspecto (// na primeira
conjugação e // nas outras duas). A supressão da vogal temática torna-se
evidente em (73), na comparação entre as formas com a estrutura interna e
as correspondentes realizações fonéticas em que a VT não está presente.
(73) Presente do Indicativo Presente do Conjuntivo
nad+a+o nado [„] nad+a+e nade [„]
(mas []: a VT está seguida de //) nad+a+e+s nades [„] etc.
bat+e+o bato [„] bat+e+a bata [„]
(mas []: a VT está seguida de //) bat+e+a+s batas [„] etc.
abr+i+o abro [„ abr+i+a → abra [„]
(mas [‟]: a VT está seguida de //) abr+i+a+s → abras [] etc.

A supressão da vogal temática implica a supressão da posição que


essa vogal ocupa na estrutura subjacente. Contudo, o traço de Altura da
vogal mantém-se (// é vogal baixa (ou seja, aberta), // é média e // é
alta). Diz-se então que a altura da vogal temática se mantém como um
segmento flutuante que não está ligado a nenhuma posição. A
representação das vogais, em (74), está simplificada: apenas figuram a
indicação das três vogais e o traço de Altura da vogal temática.
(74) Regra de supressão da Vogal Temática (Tempos do Presente)
(a) X X]Tema X (b) X ]Tema X

=
Radical (V1) VT (V2) Sufixo (V3) Radical (V1) Sufixo (V3)

Altura Altura

Na parte (a) da regra estão indicadas três vogais – a vogal do


radical (V1), a vogal temática (V2) e a vogal do sufixo (V3). O radical e a
vogal temática em conjunto constituem o Tema dos verbos, marcado na
regra. A condição necessária para a supressão da vogal temática é que esta
41
esteja imediatamente seguida da vogal do sufixo . Na parte (b) da regra, a
vogal temática já não figura, tendo ficado a Altura como segmento
flutuante. A vogal do radical (V1) passou assim a ser a última vogal do

178
tema. A seta ( ) indica a relação entre as duas sequências, a da estrutura
fonológica com VT e a da realização fonética sem VT. Do lado direito da
seta, mantém-se, portanto, a Altura da vogal temática.

Veremos a seguir que a Harmonização Vocálica nos verbos do


Português resulta exactamente da projecção da Altura da VT sobre a vogal
do radical.

4.3.2.2 Harmonização vocálica

Um dos aspectos mais peculiares dos verbos do Português que


possuem <e> e <o> ortográficos como última vogal do Radical (como
pegar, corar, beber, correr, ferir, cobrir) é a alternância de altura que esta
vogal apresenta quando tónica, se compararmos as três conjugações (veja-
se 75). Esta alternância não permite identificar as vogais subjacentes como
// ou // ou como // ou //, ou seja, não há evidência de que as vogais
fonológicas sejam as médias ou as baixas (o que podemos determinar, por
exemplo, nas formas nominais como pega [‘] e pega [‘] ou bola
[‘] e bola [‘]). Assim, nas formas analisadas em (75) referiremos
sempre estas quatro vogais como ocorrem no nível fonético. Sendo as
vogais do radical as mesmas nos verbos das três conjugações, a alternância
verifica-se nas diferentes realizações fonéticas da primeira pessoa do
singular do Presente do Indicativo (cf. 75a) e da primeira, segunda e
terceira pessoas do singular, e da terceira do plural do Presente do
Conjuntivo (cf. 75b).
(75) pegar corar beber correr ferir cobrir
(a) p[]go c[]ro b[]bo c[]rro f[]ro c[]bro
(b) p[]gue c[]re b[]ba c[]rra f[]ra c[]bra
p[]gues c[]res b[]bas c[]rras f[]ras c[]bras
p[]gue c[]re b[]ba c[]rra f[ ra c[]bra
p[]guem c[]rem b[]bam c[]rram f[ ram c[]bram

As formas verbais incluídas em (76) mostram que as vogais do


radical quando acentuadas são:
(76) [] e [] nos verbos de vogal temática // (1ª conjugação)
[] e [] nos verbos de vogal temática // (2ª conjugação)
[] e [] nos verbos de vogal temática // (3ª conjugação)

Como se verifica, estes três grupos de vogais tónicas diferentes


ocorrem nas formas em que a vogal temática foi suprimida. Nestas formas
verbais, os verbos pegar e corar, com vogal temática baixa //, têm uma

179
vogal baixa no radical ([] e []); os verbos beber e correr, com vogal
temática média //, têm uma vogal média no radical ([] e []); os verbos
ferir e cobrir, com vogal temática alta //, têm uma vogal alta no radical
([] e []). Esta alternância entre as vogais do radical deve-se a uma
assimilação provocada pela vogal temática, assimilação que se denomina
Harmonização Vocálica e que consiste na projecção dos traços de altura
da vogal temática sobre a vogal do radical acentuada. Note-se que as
vogais do radical assimilam apenas os traços de altura, mantendo os
valores dos traços [recuado] e [arredondado] ([], [], [] são [–recuadas]
e [–arredondadas] e [], [], [] são [+recuadas] e [+arredondadas]).

A harmonização vocálica não se dá quando as vogais do radical são


// e //, como se pode verificar em virar e furar ou viver (a 2ª conjugação
não possui verbos com [] no radical).
(77) viro v[]ro (e não *v[]ro)
furo f[]ro (e não *f[]ro)
vivo v[]vo (e não *v[]vo)

Além deste tipo de verbos, os que têm a vogal // como última
vogal do radical também não manifestam alternância, o que é evidente nas
formas de nadar, bater e abrir que mantêm a vogal baixa (ou aberta) nas
três conjugações, independentemente, portanto, da altura da vogal
temática:
(78) a. Presente do Indicativo
n[]do b[]to []bro
b. Presente do Conjuntivo
n[]de b[]ta (e não *b[]ta) []bra (e não *[]bra)

Considerando os exemplos apresentados em (77) e (78) pode


afirmar-se que, em forma de base, a vogal do radical que sofre a
assimilação tem duas restrições: não pode ser alta (i.e. // ou //) e não
pode ser baixa (i.e. //). A harmonização vocálica nas formas verbais em
Português está, portanto, relacionada com a supressão da vogal temática
que se dá nos tempos do presente, quando o sufixo que se lhe segue é uma
vogal (// na primeira pessoa do singular do Presente do Indicativo e // ou
// no Presente do Conjuntivo). Quando a vogal temática é suprimida, os
seus traços de Altura mantêm-se como um segmento flutuante (ver (74b)).
Este segmento flutuante projecta-se então na vogal do radical provocando
uma assimilação de altura.

Em (79) estão representados os dois passos da regra de


harmonização vocálica. Em (79a) figura o resultado da supressão da
vogal temática (repetição da segunda parte da regra (74)), e em (79b) está

180
representada a assimilação dos traços de altura pela vogal do radical.
Como em (74), V1 é a vogal do radical e V3 é a vogal do sufixo que se
segue à vogal temática. A assimilação está representada pelo tracejado que
liga a Altura à vogal do radical.
(79) Regra de harmonização vocálica

(a) Supressão da vogal temática (segunda parte da regra (74))

X ]Tema X

Radical (V1) Sufixo (V3)

Altura
(b) Assimilação da vogal do radical

X ]Tema X

Radical (V1) Sufixo (V3)

Altura

4.3.2.3 Abaixamento da vogal do radical

Nas formas do Presente do Indicativo em que a vogal temática não


foi suprimida, quando as vogais do radical são acentuadas (i.e. nas
segunda e terceira pessoas do singular e na terceira do plural), manifesta-
se uma outra peculiaridade do sistema verbal do Português: as vogais são
todas [+baixas] nas três conjugações:
(80) pegar corar beber correr ferir cobrir
p[]gas c[]ras b[]bes c[]rres f[]res c[]bres
p[]ga c[]ra b[]be c[]rre f[]re c[]bre
p[]gam c[]ram b[]bem c[]rrem f[]rem c[]brem

As vogais baixas do radical dos verbos que se encontram em (80)


resultam de um processo de Abaixamento que actua nas formas em que a
vogal temática não é suprimida. Esse abaixamento provoca uma
alternância no interior dos verbos da segunda e terceira conjugações pela
diferença de altura entre as vogais tónicas da primeira pessoa do singular,
médias e altas, resultantes da harmonização vocálica e as segunda e
terceira pessoas do singular e a terceira do plural, baixas, resultantes do
abaixamento. Vejam-se as seguintes formas:

181
(81) beber correr ferir cobrir
b[]bo c[]rro f[]ro c[]bro
b[]bes c[]rres f[]res c[]bres
b[]be c[]rre f[]re c[]bre
b[]bem c[]rrem f[]rem c[]brem

Na primeira conjugação, a vogal do radical acentuada é sempre


[+baixa] e, portanto, as formas do Presente do Indicativo não manifestam
alternância (ver em (80) as formas de pegar e corar). Os verbos com vogal
do radical // e // ([+alta]) também não manifestam abaixamento como se
42
exemplifica em (82) :
(82) vives v[]ves (e não *v[]ves)
iludes il[]des (e não *il[]des)

Resumindo: a harmonização vocálica dos verbos em Português é


um processo de assimilação com duas fases. Na primeira fase a vogal
temática é suprimida num contexto morfológico específico (a junção da
vogal do sufixo, nos tempos do presente) e deixa o seu traço de altura
como um segmento flutuante. Na segunda fase, o segmento flutuante
projecta-se sobre a vogal do radical (excepto se ela for alta, // ou //, ou
se for //).

O abaixamento das vogais do radical nas formas do Presente do


Indicativo em que a vogal temática não foi suprimida é um processo
diferente da harmonização. O processo de abaixamento actua quando o
acento já incidiu na palavra e especifica como [+baixas] as vogais do
radical das segunda e terceira pessoas do singular e terceira do plural.

A harmonização vocálica e o abaixamento são dois processos que


estão relacionados através da aplicação do acento: a harmonização
vocálica dá-se antes das vogais serem acentuadas, o abaixamento ocorre
quando as vogais já estão acentuadas.

4.3.2.4 Alterações da vogal temática

Recorde-se que os Tempos do Passado são: Imperfeito do


Indicativo, Perfeito do Indicativo, Mais-que-perfeito do Indicativo,
Imperfeito do Conjuntivo, Futuro do Conjuntivo e Particípio Passado.
Nestes tempos verbais, quando a vogal temática é seguida, na estrutura
fonológica, por um sufixo de pessoa-número constituído por uma vogal
alta (// ou //), algumas regras gerais actuam sobre essa sequência tendo
como consequência a alteração da vogal temática. Assim:

182
i. Na primeira pessoa do singular do Perfeito do Indicativo, a
amálgama do sufixo de tempo-modo-aspecto e do de pessoa-
número (i.e. //) provoca a assimilação da vogal temática
acentuada. Na primeira conjugação, //, baixa, passa a //, média,
por influência de //, alta, e na segunda conjugação, a vogal
temática // passa a //. Na primeira conjugação, o sufixo //
realiza-se como semivogal no nível fonético. A terminação []
(vogal temática mais sufixo semivocalizado) mantém-se em muitos
dialectos do Português Europeu ou passa a [] por dissimilação
no dialecto-padrão. Nas segunda e terceira conjugações, a
terminação // simplifica-se em [] (bati [], abri []).

(83) nadei /nad+á+i/ /nad+é+i/ [] ([] no dialecto-padrão)


bati /bat+é+i/ /bat+í+i/ [] (simplificação das duas vogais)

ii. Na terceira pessoa do singular do Perfeito do Indicativo dos verbos


da primeira conjugação, o sufixo de pessoa-número (i.e. //)
provoca a assimilação da vogal temática acentuada e realiza-se
como semivogal. A sequência [‘], resultante da assimilação,
simplifica-se em [‘] na maioria dos dialectos do Português.

(84) nadou /nad+á+u/ /nad+ó+u/ [] ([] no dialecto-padrão)

iii. No Imperfeito do Indicativo, o sufixo de tempo-modo-aspecto, //,


provoca, na segunda conjugação, a dissimilação da vogal temática
acentuada que passa de // a [].

(85) batia /bat+é+a/ /bat+í+a/ []

iv. Na terceira pessoa do plural, o sufixo de pessoa-número


representado pela consoante ortográfica <m> é um segmento nasal
que nasaliza a vogal temática. Embora nestas formas a vogal
temática não seja acentuada, o facto de se encontrar em posição
final absoluta provoca uma ditongação, ou seja, a inserção de uma
semivogal ([], [+recuada] depois de [] e [], [–recuada], depois
de []). Esta ditongação da vogal nasal átona ocorre em todas as
terceiras pessoas do plural, excepto no Futuro simples.

(86) nadam /nad+a+[+nasal]/ /nád+ã/ [‘]


batem /bat+e+[+nasal]/ /bát+ẽ/ [‘] ([‘] no dialecto-
padrão)

v. No Gerúndio, a vogal temática é nasalizada pelo segmento nasal


que tem na letra <n> a sua representação ortográfica.

183
(87) nadando /nad+a+[+nasal] + do/ /nad+ã+do/ []

Concluindo: se exceptuarmos as formas verbais em que actuam as


regras referidas em (i)-(v) e as formas em que a vogal temática é
suprimida, podemos afirmar que a estrutura interna de cada forma verbal –
a sua forma fonológica – constituída pelo Radical, pela Vogal Temática e
pelos Sufixos coincide com a sua realização fonética no Português
Europeu.

4.3.2.5 Verbos irregulares

As irregularidades dos verbos podem ser constituídas por


alternâncias de consoantes ou vogais do radical em diferentes grupos de
tempos (e nesse caso estamos perante irregularidades fonológicas como
se observa nos verbos dizer ou caber, incluídos em (88)) ou podem
consistir no que se denomina supletivismo verbal, ou seja, a existência,
nas formas de um verbo, de radicais inteiramente diferentes em
consequência da ausência de certas formas (p.ex., ser ou ir). As
irregularidades fonológicas manifestam-se na oposição entre subgrupos do
43
Presente e do Passado e, também, na oposição entre estes dois grupos .

Nos Tempos do Presente, entre o Infinitivo, por um lado, e a


primeira pessoa do singular do Presente do Indicativo e todas as do
Presente do Conjuntivo, por outro, verificam-se as seguintes
irregularidades:
(88) Infinitivo Presente do Indicativo Presente do Conjuntivo

(a) Alternância na última consoante do radical


dizer digo diga, digas, diga, digamos…
poder posso possa, possas, possa, possamos…
valer valho valha, valhas, valha, valhamos…

(b) Semivogal a seguir à vogal do radical


caber caibo caiba, caibas, caiba, caibamos…
querer (quero) queira, queiras, queira, queiramos…

As alternâncias observadas em (88) permitem-nos verificar que


também nos verbos irregulares se manifesta um comportamento particular
nas formas em que a vogal temática é suprimida, visto que são essas
formas (primeira pessoa do singular no Presente do Indicativo e todas as
do Presente do Conjuntivo) que exibem uma consoante diferente da do
Infinitivo (p.ex. dizer / digo; poder / posso).

184
Nos Tempos do Passado – Perfeito do Indicativo, Mais-que-
perfeito do Indicativo, Imperfeito do Conjuntivo e Futuro do Conjuntivo –
alguns verbos apresentam alternâncias entre esses tempos e o Infinitivo,
no que respeita à vogal do radical e/ou à consoante do radical.
(89) Infinitivo Tempos do Passado

(a) Alternância da vogal e da consoante do radical


ter tive / tivera / tivesse / tiver
pôr pus / pusera / pusesse / puser

(b) Alternância apenas da consoante


dizer disse / dissera / dissesse / disser

(c) Alternância apenas da vogal


fazer fiz / fizera / fizesse / fizer
poder pude / pudera / pudesse / puder44

A comparação entre o Infinitivo e os Tempos do Passado dos


verbos irregulares incluídos em (89) permite-nos estabelecer uma relação
morfológica entre certos tempos, aproximando o Futuro do Conjuntivo dos
outros ‘perfeitos’ e distinguindo-o do Infinitivo Flexionado, com o qual
coincide nos verbos regulares (p.ex. disseste / disseres em oposição a
dizeres; pudeste / puderes em oposição a poderes).

Do ponto de vista da história da língua, as alternâncias


consonânticas e a inserção da semivogal com a consequente formação de
ditongos nos Tempos do Presente dos verbos irregulares (ver (88)) são
devidas a causas fonéticas, enquanto as alternâncias dos Tempos do
Passado (ver (89)) têm causas morfológicas, visto tratar-se neste caso de
verbos latinos com os chamados perfeitos ‘fortes’.

185
ANEXO – Lista de Verbos Irregulares

Esta lista de verbos irregulares inclui, em (90), as irregularidades


entre o Infinitivo e os Tempos do Presente e em (91) as irregularidades
entre o Infinitivo e os Tempos do Passado. A primeira pessoa do singular
do Presente do Indicativo dos verbos haver, ser, saber e querer não
manifesta alternância por ter uma derivação específica para cada caso (hei,
sou, sei e quero). Nos verbos ter, vir, pôr, ser, ver não existe, no
Infinitivo, uma consoante correspondente às do Presente do Indicativo e
do Presente do Conjuntivo. Os verbos são apresentados com a consoante
e/ou vogal alternantes em transcrição fonética.
(90) Infinitivo Presente do Indicativo Presente do Conjuntivo
a. ou[]ir ou[]o ou[]a…
me[]ir me[]o me[]a…
po[]er po[]o po[]a…
pe[]ir pe[]o pe[]a…
fa[]er fa[]o fa[]a…
tra[]er tra[]o tra[]a…
di[]er di[]o di[]a…
per[]er per[]o per[]a…

b. há[]er hei há[]a…


ter te[]o te[]a…
vir ve[]o ve[]a…
pôr po[]o po[]a…
ser sou se[]a…
ver ve[]o ve[]a…

c. caber ca[]bo ca[]ba…


saber sei sa[]ba…
cair ca[]o ca[]a…
querer quero que[]ra…

(91) Infinitivo Tempos do Passado


a. qu[]er qu[] / qu[]era / qu[]esse / qu[]er…
tr[]er tr[]e / tr[]era / tr[]esse / tr[]er…

b. fazer fiz / fizera / fizesse / fizer


poder pude / pudera / pudesse / puder
haver houve / houvera / houvesse / houver
caber coube / coubera / coubesse / couber
saber soube / soubera / soubesse / souber

186
Tópicos de Recapitulação Geral

As estruturas morfológicas são estruturas binárias recursivas,


formadas a partir de um radical, o núcleo, que se projecta num tema, por
especificação morfológica e, finalmente, numa palavra, por especificação
morfo-sintáctica. A representação seguinte mostra uma expansão da
estrutura básica, que incorpora uma radical derivado e a sua modificação
por sufixação avaliativa e por prefixação. Esta é a estrutura de alavras
como des-interess-ant-issim-o-s, por exemplo:

PALAVRA

tema flexão = especificador


morfo-sintáctico

radical = núcleo constituinte temático =


especificador morfológico

prefixo radical = núcleo


modificador
radical derivado sufixo
= núcleo modificador

palavra = sufixo derivacional


complemento = núcleo

A postulação de uma estrutura deste tipo foi confrontada com os


casos em que as posições estruturais ficam vazias, concluindo-se que a
aceitação de uma estrutura comum a todas as palavras do Português não
exige o preenchimento de todas as posições, mas restringe as
possibilidades de ocorrência dos diversos constituintes morfológicos. Os
vazios morfológicos identificados são gerados por diferentes ordens de
razões:

há vazios lexicais que são determinados pelas propriedades


inerentes das unidades lexicais:

187
o o radical das palavras invariáveis, como, por
exemplo, o dos advérbios, é lexicalmente
especificado por uma assinatura categorial que não
prevê variação realizada por flexão, pelo que
nenhum sufixo de flexão ocorre;

o os adjectivos e os nomes atemáticos são formados a


partir de radicais especificados como atemáticos,
pelo que nenhum índice temático os poderá
especificar (cf. ruim, café);

o não existe, no léxico do Português, nenhum sufixo


de flexão nominal, especificador do valor de
número singular – consequentemente, o singular dos
nomes e dos adjectivos é formado pela ausência de
um especifcador de número (cf. livro, raro).

há outros vazios lexicais que são determinados pelas


propriedades fonológicas da formação de palavras, como:

o no plural de nomes e adjectivos atemáticos cujo


radical termina em consoante fricativa – o sufixo de
flexão não é realizado porque assimila à consoante
que o precede (cf. /#+#/ -> [];
/#+#/ -> []);

o na sufixação de z-avaliativos a bases flexionadas no


plural, verifica-se idêntico fenómeno de assimilação
(cf. /#’+++++#/-> [’’];

o na flexão verbal, sempre que a vogal temática é


seguida por um sufixo de flexão que começa por
vogal – é o que se verifica na primeira pessoa do
singular do presente do indicativo (cf. /#++#/ -
> []) e em todas as formas do presente do
conjuntivo (cf. /#++#/ -> []).

Este capítulo dedicou ainda uma particular atenção a diversas


questões relacionadas com a flexão. Antes de mais, foi estabelecida uma
distinção entre flexão e outros tipos de variação das palavras. A flexão é
um processo morfológico que actua de forma obrigatória (ou seja, sempre
que a assinatura categorial associada a um radical o exige) e sistemática
(ou seja, sempre do mesmo modo). Os contrates de género ou a variação
em grau não apresentam nenhuma destas propriedades: nem são

188
obrigatórias nem são gerados sempre do mesmo modo, pelo que não são
realizados por flexão.

Em seguida, tratou-se da descrição dos aspectos morfológicos da


flexão nominal e da flexão verbal, e concluiu-se com a descrição dos seus
aspectos fonológicos. Neste domínio, analisou-se a formação do plural
regular dos nomes e adjectivos e do plural de palavras terminadas em // e
em ditongo nasal. Em seguida descreveu-se a supressão da vogal
temática e a sua relação com a harmonização vocálica e com o
abaixamento da vogal do radical; apresentaram-se os vários casos de
alteração da vogal temática: assimilação, dissimilação e ditongação; e
concluiu-se com algumas observações sobre os verbos irregulares e com
uma lista organizada desses verbos.

189
Exercícios

1. Que razões podem levar a que uma posição de uma estrutura


morfológica esteja vazia. Enumere-as, exemplificando.
2. Identifique o núcleo das seguintes palavras:
desresponsabilização
desresponsabilizar
finalidade
finalíssima
indesmontável
pseudo-apreciação
repatriamento
tecladozinho
3. Uma palavra como desinteressantíssimo é uma estrutura formada
por uma sequência de constituintes morfológicos linearmente
dispostos da seguinte forma:
1. prefixo modificador des
2. radical interess
3. constituinte temático a
4. sufixo derivacional nt
5. sufixo modificador issim
6.constituinte temático o
Dê três exemplos de palavras formadas pelo mesmo tipo de
constituintes (sendo unidades lexicais diferentes), linearmente
ordenados do mesmo modo.
4. Encontre duas palavras formadas pela seguinte sequência de
constituintes morfológicos e represente a sua estrutura:
1. prefixo modificador
2. radical
3. sufixo derivacional
4. constituinte temático
5. sufixo derivacional
6. sufixo derivacional
7.constituinte temático
8. sufixo modificador
9. constituinte temático
5. Dê cinco exemplos de adjectivos graduáveis e de adjectivos não-
graduáveis.
6. Que processos de graduação conhece? Exemplifique-os, retomando
os exemplos acima apresentados.

190
7. Como caracteriza a relação existente entre os seguintes pares de
palavras:
i. o filho a filha
o actor a actriz
ii. o jornalista a jornalista
o juiz a juiz
iii. o físico a física
o místico a mística
iv. o saco a saca
o manto a manta
8. Distribua os seguintes pares de palavras pelas classes
anteriormente consideradas:
o agente a agente o matemático a matemática
o cano a cana o mestre a mestra
o cavalo a égua o personagem a personagem
o crítico a crítica o poço a poça
o cuco-macho a cuco-fêmea o político a política
o gaveto a gaveta o sargento a sargento
9. Flexione os verbos podar e poder em todas as suas formas simples.
10. Que comentário lhe merece a forma pode? E a forma poderes?
11. Descreva a formação do plural de palavras terminadas em /l/.
12. Explique por que os nomes e adjectivos terminados no singular em
ditongo nasal –ão têm três formações distintas do plural.
13. Explique por que temos as realizações fonéticas diferentes do sufixo do
plural da palavra capas em:
a) capas [];
b) capas pretas [];
c) capas verdes [];
d) capas azuis [].
14. Tendo presentes as três conjugações do Português, explique a alternância
vocálica das seguintes formas verbais e diga por que se denomina
harmonização vocálica este aspecto fonológico da morfologia do
Português.

Presente do indicativo (1ª pessoa do singular)


l[ ´ ]vo m[ ´ ]ro d[]vo m[]vo f[]ro d[]rmo

Presente do conjuntivo (primeira, segunda e terceira pessoas do


singular e terceira do plural)
l[]ve m[]re d[]va m[]va f[]ra d[]rma
l[]ves m[]res d[]vas m[]vas f[]ras d[]rmas
l[]ve m[]re d[]va m[]va f[]ra d[]rma
l[]vem m[]rem d[]vam m[]vam f[]ram d[]rmam

191
Leituras Complementares

FARIA, I., GOUVEIA, C., PEDRO, E. E DUARTE, I. (ORGS.)


1996 Introdução à Linguística Geral e Portuguesa (Capítulo 4)
Lisboa: Caminho

MATEUS, M. H. M. E D‟ANDRADE, E.
2000 The Phonology of Portuguese (Capítulos 4.2., 7.3. e 7.4.)
Oxford: Oxford University Press

MATEUS, M. H. M. ET AL
2003 Gramática da Língua Portuguesa
5ª edição revista e aumentada (Capítulo 25.4)
Lisboa: Editorial Caminho

192
193
Sugestões de resolução para as actividades propostas

194
195
Capítulo 1

1. O que é uma palavra?


O uso comum deste termo define-o como uma unidade da escrita,
delimitada por espaços em branco e cuja existência se confirma por
consulta a um dicionário. A definição ortográfica de palavra não serve à
análise linguística, dado que a ortografia não regista sistemática nem
rigorosamente nenhum nível de análise linguística. O registo em
dicionário também não serve, dado que é definido por critérios
lexicográficos e não gramaticais.
A definição técnica de palavra, em linguística, depende do nível de
análise que a requisita, havendo pois uma definição para a fonologia,
outra para a morfologia, outra para a sintaxe e outra para a semântica.

2. Como se define palavra em morfologia?


No domínio da análise morfológica, palavra é uma projecção máxima de
um radical, obtida por especificação morfológica (que forma o tema) e
posterior especificação morfo-sintáctica.

3. As estruturas morfológicas podem ser simples ou complexas. Dê


cinco exemplos de palavras simples (com três ou mais sílabas) e
cinco exemplos de palavras complexas.
Palavras simples Palavras complexas
borboleta borboletear
cavalo cavaleiro
imagem imaginação
madeira madeiramento
segredo segredinho

4. Como classifica as seguintes palavras do Português no que diz


respeito à complexidade da sua estrutura morfológica:
abre-latas Palavra complexa
cantássemos Palavra simples
clareza Palavra complexa
esclarecer Palavra complexa
livralhada Palavra complexa
mini-prato Palavra complexa
mordomia Palavra complexa
olhos Palavra simples
reavaliação Palavra complexa
sintoma Palavra simples

196
5. Como se distingue uma palavra composicional de uma palavra
lexicalizada?
As palavras composicionais são estruturas morfológicas complexas bem-
formadas, e cujos constituintes terminais preservam integralmente as
suas propriedades inerentes e de selecção. Avaliação é uma palavra
composicional.
As palavras lexicalizadas são palavras complexas, cuja estrutura,
constituintes ou interpretação semântica não respeita as condições de
boa-formação das estruturas morfológicas ou as propriedades inerentes
ou de selecção dos constituintes terminais. Erudição é uma palavra
lexicalizada porque o sufixo –ção surge associado a uma forma que não é
um tema verbal no Português.

6. Impressão, solúvel e persecutório são palavras lexicalizadas. Que


forma precisariam de ter para ser composicionais?
impressão *imprimição
solúvel *solvível
persecutório *perseguitório

7. Indique cinco palavras complexas composicionais e cinco palavras


complexas lexicalizadas.
P. complexas composicionais P. complexas lexicalizadas
borboletear calcorrear
cavaleiro cavalariça
imaginação suposição
madeiramento instrumento
segredinho cebolinho

8. Considerando que –ção é um sufixo que forma nomes a partir de


temas verbais (e.g. continua-ção), indique cinco casos que
correspondam a palavras bem-formadas por este sufixo, mas não-
atestadas no Português Europeu contemporâneo.
abastardação
acautelação
catrapiscação
depositação
gratinação

9. As palavras imprimição, solvível e perseguitório são estruturas


morfológicas bem-formadas, mas não são palavras existentes. O
que impede o seu aparecimento?
A existência destas palavras é bloqueada pela existência de palavras
morfologicamente relacionadas, semanticamente equivalentes, mas
lexicalizadas (i.e. impressão, solúvel, persecutório).

197
10. Tanto o sufixo –ção quanto o sufixo –mento se associam a temas
verbais para formar nomes de acção (cf. continuação,
fortalecimento). Procure avaliar a produtividade de cada um deles,
tendo em conta os valores potenciais.
Considerando um universo de cerca de 14.600 verbos, 4.500 palavras em
–ção e 2.800 palavras em –mento (dados de Houaiss 2001), pode
concluir-se que o sufixo –ção é mais produtivo do que –mento.

Capítulo 2

1. Dê cinco exemplos de palavras de origem latina que não sejam


latinismos introduzidos no Português após o Renascimento.
abismo
abundar
cadeia
domingo
feição

2. Procure encontrar três palavras portuguesas de origem pré-latina.


carrasco
manteiga
arroio

3. Identifique cinco formas caracterizáveis como vestígios dos


superstratos linguísticos do Português.
almofariz
alfarroba
alface
brita
guarida

4. Caracterize etimologicamente cada uma das seguintes palavras:


abacate awa'katl Náuatle
alcunha al-kunya Árabe
alecrim al-iklíl Árabe
alfaiate al-hayyât Árabe
alfândega al-fundaq Árabe
almofada al-muhaddâ Árabe
ananás naná Tupi
background background Inglês

198
bandido bandito Italiano
biombo bióbu Japonês
burlesco burlesco Italiano
cachimbo ki'xima provavelmente do Quimbumdo
canja kañji provavelmente do Malaio
clube club Inglês
cobarde coart Francês
diletante dilettante Italiano
fatia fitátâ Árabe
ganadaria ganadería Castelhano
granizo granizo Castelhano
jasmim yásmín Árabe
javali djabalí Árabe
maionese mayonnaise Francês
queque cake Inglês
robe robe Francês
t
tanga angka Sânscrito
tertúlia tertulia Castelhano
vagão wag(g)on Inglês
zero sifr Árabe

5. Identifique dez anglicismos correntemente utilizados no Português


Europeu contemporâneo. Comente a sua forma fonética e
ortográfica, propondo, se assim o entender, formas alternativas,
novas pronúncias ou novas grafias.
briefing reunião
cash flow fluxo de caixa
check in registo de embarque
email mensagem electrónica
flop fracasso
franchise franquia
light leve
ranking classificação
turismo
upgrade incrementação

6. Identifique dez empréstimos de diferente origem linguística.


bué
burca
esparguete
feng shui
movida
patê
picanha
quivi
sushi
zen

199
7. Indique cinco neologismos recentes, bem como a paráfrase que
considera adequada a cada um deles.
descontinuar interromper
deslocalizar mudar a localização
download transferir um ficheiro de um computador de
origem para um computador de chegada
jogabilidade qualidade do que pode ser jogado
resort estância de turismo / complexo turístico

8. Procure escrever um pequeno texto em que use três palavras


inventadas por si (certifique-se de que não estão atestadas,
consultando diversos dicionários). Dê esse texto a ler a outras
pessoas e pergunte-lhes se conhecem essas palavras, se sabem o
que significam. Se a resposta for negativa, peça-lhes que procurem
adivinhar um significado.
Fiz uma estropificação para retinear a minha indigabilidade.

9. Classifique as seguintes palavras quanto à sua formação:


algarismo empréstimo
AVC sigla
chupa-chupa onomatopeia formada por redobro de chupa
fã empréstimo de um truncamento
flagra truncamento de flagrante
freudiano epónimo
lipo truncamento de lipoaspiração
radar empréstimo de uma amálgama
rádio truncamento de radiofonia
stôr amálgama de senhor doutor

10. Encontre cinco epónimos, cinco palavras formadas por amálgama,


cinco acrónimos, cinco siglas, cinco palavras formadas por
truncamento, cinco palavras onomatopaicas. Procure explicar
como se formou cada uma destas palavras.
epónimos
cesariana César
daltonismo Dalton
edipiano Édipo
epicurismo Epicuro
guilhotina Guillot

200
amálgamas
flexigurança flexibilidade + segurança
cibernauta cibernética + astronauta
blogue web+log
docudrama documentário + drama
fantasporto fantástico + Porto
acrónimos
ovni objecto voador não identificado
opa oferta pública de aquisição
sis serviço de informações e segurança
bcg vacina antituberculosa (de bacille bilié de Calmette
et Guérin)
cecê cheiro de corpo
siglas
rsff responda se faz favor
ecg electrocardiograma
FCP Futebol Clube do Porto
SCP Sporting Clube de Portugal
SLB Sport Lisboa e Benfica
truncamento
def deficiente
eco ecografia
fantas fantasporto
euro Europa
estranja estrangeiro
onomatopeias
burburinho
mémé
pio
pumba
tique

11. Que hipocorístico corresponde ao seu nome próprio? E na sua


família que outras palavras deste tipo são geralmente usadas?
Procure identificar o processo de formação de cada uma dessas
palavras.
Resposta pessoal

12. Como caracteriza a relação entre as palavras traição e tradição.


Identifique cinco outros casos do mesmo tipo.
mancha mácula
leal legal
adro átrio
madeira matéria
cuidar cogitar

201
13. Identifique cinco arcaísmos.
asinha depressa
chus mais
guisa maneira
mercar comprar
samicas talvez

14. Procure um significado lexical que seja transmitido dialectalmente


por diferentes palavras.
armarinho retrosaria
boas-novas joaninha
cadelinha conquilha
greiro grão
semilha batata

Capítulo 3

1. O que é uma unidade lexical?


Uma unidade lexical é um membro do léxico. Pode tratar-se de um
radical, de um afixo ou de qualquer outra expressão linguística, desde
que tenha sido lexicalizada.

2. O que é um constituinte morfológico?


Constituinte morfológico é uma unidade de uma estrutura morfológica.
Os constituintes morfológicos terminais (i.e. os radicais e os afixos) são
unidades lexicais.

3. O que distingue um radical de um sufixo derivacional?


Os radicais são predicadores intransitivos, que podem formar palavras
apenas por especificação (morfológica e morfo-sintáctica); os sufixos
derivacionais são predicadores intransitivos que formam radicais
derivados quando se associam a uma forma de base, que pode ser um
radical, um tema ou uma palavra.

4. O que é um afixo modificador?


Um afixo modificador é um afixo adjunto de uma base: a sua função é a
de produzir uma alteração semântica da base, preservando todas as suas
propriedades gramaticais.

5. Como se distingue um sufixo avaliativo de um sufixo z-avaliativo?

202
Os sufixos avaliativos associam-se a radicais e os sufixos z-avaliativos
associam-se a palavras

6. Identifique as propriedades das seguintes unidades lexicais:


-a (de casa) índice temático nominal
-a (de casar) vogal temática da 1ª conjugação
bel- (de belo) radical adjectival variável ou radical nominal de
tema em –o, masculino
casac- (de casaca) radical nominal de tema em –a, feminino
casac- (de casaco) raddical nominal de tema em –o, masculino
co- (de co-autoria) prefixo modificador de companhia
co- (de coar) radical verbal da 1ª conjugação
fei- (de feio) radical adjectival variável ou radical nominal de
tema em –o, masculino
-ic (de panorâmico) sufixo derivacional de adjectivalização
denominal
in- (de incompatível) prefixo modificador de negação
-iz (de eternizar) sufixo derivacional de verbalização deadjectival
-mos (de cantamos) sufixo de flexão verbal, amálgama de tempo-
modo-aspecto e pessoa-número (presente do
indicativo ou perfeito do indicativo)
perd- (de perder) radical verbal da 2ª conjugação
re- (de refazer) prefixo modificador de repetição
sistem- (de sistema) radical nominal de tema em –a, masculino

7. Segmente as seguintes palavras e identifique as propriedades dos


seus constituintes morfológicos:
apartidarismo
a prefixo modificador de negação
part radical verbal
i vogal temática
d sufixo derivacional de adjectivalização deverbal
ári sufixo derivacional de adjectivalização denominal
ism sufixo derivacional de nominalização deadjectival
o índice temático
avaliardes
a prefixo expletivo
vali radical nominal
a vogal temática
r sufixo de flexão em TMA
des sufixo de flexão em PN
caudaloso
caudal radical nominal
os sufixo derivacional de adjectivalização denominal
o índice temático

203
civilizacional
civil radical adjectival
iz sufixo derivacional de verbalização deadjectival
a vogal temática
cion sufixo derivacional de nominalização deverbal
al sufixo derivacional de adjectivalização denominal
correspondências
correspond radical verbal
e vogal temática
nci sufixo derivacional de nominalização deverbal
a índice temático
cosmopolitismo
cosmopolit radical nominal
ism sufixo derivacional de nominalização deverbal
o índice temático
denunciante
denunci radical verbal
a vogal temática
nt sufixo derivacional de nominalização deverbal
e índice temático
enqueijar
en prefixo expletivo
queij radical nominal
a vogal temática
r sufixo de flexão em TMA
fertilização
fertil radical adjectival
iz sufixo derivacional de verbalização deadjectival
a vogal temática
ção sufixo derivacional de nominalização deverbal
ideológico
ideologi radical nominal
ic sufixo derivacional de adjectivalização denominal
o índice temático
ininterpretável
in prefixo modificador de negação
interpret radical verbal
a vogal temática
vel sufixo derivacional de adjectivalização deverbal
personificação
personific radical verbal
a vogal temática
cão sufixo derivacional de nominalização deverbal

204
preconizassem
preconiz radical verbal
a vogal temática
sse sufixo de flexão em TMA
m sufixo de flexão em PN
procuradoria
procur radical verbal
a vogal temática
dor sufixo derivacional de nominalização deverbal
i sufixo derivacional de nominalização denominal
a índice temático
retroescavadora
retr prefixo modificador
o vogal de ligação
es prefixo expletivo
cav radical nominal
a vogal temática
dor sufixo derivacional de nominalização deverbal
a índice temático
rigorosissimamente
rigor radical nominal
os sufixo derivacional de adjectivalização denominal
issim sufixo modificador avaliativo
a índice temático
ment sufixo derivacional de adverbialização deadjectival
e índice temático

8. Encontre cinco radicais neoclássicos que tenham equivalentes


vernáculos. Faça uma recolha das palavras complexas que usem
uns e outros e compare os seus dados com a análise apresentada
em 3.2.
hemat- hematoma
sangu- sanguinário
alg- algospasmo
dor- dorido
hepat- hepatite
figad- figadal
hip- hipódromo
caval- cavalaria
cosm- cósmico
mund- mundano

9. Há diversos constituintes morfológicos que, quando considerados


em abstracto, são ambíguos. É o caso do radical sec-, por exemplo,

205
que pode ser um radical adjectival (cf. seco/a), um radical nominal
(cf. seca) ou um radical verbal (cf. secar). Identifique um outro
radical, um índice temático, uma vogal temática, um sufixo de
flexão e um sufixo derivacional que sejam lexicalmente ambíguos
e desambigue-os, integrando-os em estruturas relevantes.
film- RN filme
film- RV filmar
-a IT bola
-a VT falar
-e VT beber
-e SUF_TMA fale
-s SUF_Nº bolas
-s SUF_PN fales
-ist(a) SUF_NOM_DEV consumista
-ist(a) SUF_NOM_DEN dentista

10. Considere os dois seguintes conjuntos de palavras e comente a


relação que se pode estabelecer entre os sufixos que as integram:
consultório afogadiço
comedouro segregatício
observatório
Os sufixos –ório, -douro e -tório são cognatos, provenientes do sufixo
latino -ORÌUS,A,UM, provavelmente introduzidos no léxico do Português
em momentos diferentes. -diço e -tício são também sufixos cognatos,
sendo o segundo, provavelmenre, um latinismo introduzido no Português
em data posterior ao primeiro. Houaiss (2001) atribui a estas palavras as
seguintes datações:
comedouro XIV afogadiço XIV
observatório XVIII segregatício XIX
consultório XIX

11. Construa uma família de palavras que integre o radical corp-.


corp- corpúsculo encorpar
*corpor- corporal incorporar
corpo corpuscular encorpado
corporação corporalidade incorporação
corpanzil corpóreo encorpamento
corporativo corporalizar incorporável
corpete corpulento desencorpar
corpinho corporalização desincorporar
corporativismo corpulência desencorpamento
corporativista corporizar desincorporação

206
12. Organize esta família de palavras tendo em consideração as
relações morfológicas que os seus membros estabelecem entre si.
corp- *corpor-
corpo corporação
corpanzil corporativo
corpete corporativismo
corpinho corporativista
corpúsculo corporal
corpuscular corporalidade
corpóreo corporalizar
corpulento corporalização
corpulência corporizar
encorpar incorporar
encorpado incorporação
encorpamento incorporável
desencorpar desincorporar
desencorpamento desincorporação

13. Considere a palavra reunificável. Segmente-a e integre cada dos


seus constituintes num paradigma lexical morfológico que
contenha, pelo menos, cinco formas distintas.
re- pref un- radj ific- sufv -a vt -vel sufadj
refazer unidade certificar cantar perecível
recomeçar unário desertificar falar contratável
reencontrar unânime solidificar parar confessável
relembrar unicelular fortificar mudar deteriorável
repensar uniforme planificar pensar transformável

14. Como caracteriza o paradigma definido pelo sufixo –os(o/a)?


O paradigma definido pelo sufixo –os(o/a) é constituído por
adjectivos denominais, como:
poderoso brioso
anguloso caprichoso
ansioso carinhoso
ardiloso cauteloso
poroso delicioso

Capítulo 4

1. Que razões podem levar a que uma posição de uma estrutura


morfológica esteja vazia. Enumere-as, exemplificando.

207
Há razões de natureza lexical, como a inexistência de um sufixo de
número para a flexão do singular dos nomes e dos adjectivos, e razões de
natureza morfofonológica, como a supressão da vogal temática, quando o
sufixo de flexão à sua direita começa por vogal.

2. Identifique o núcleo das seguintes palavras:


desresponsabilização desrenponsabiliza
desresponsabilizar responsabilizar
finalidade final
finalíssima final
indesmontável desmontável
pseudo-apreciação apreciação
repatriamento repatria
tecladozinho teclado

3. Uma palavra como desinteressantíssimo é uma estrutura formada


por uma sequência de constituintes morfológicos linearmente
dispostos da seguinte forma:
1. prefixo modificador des
2. radical interess
3. constituinte temático a
4. sufixo derivacional nt
5. sufixo modificador issim
6.constituinte temático o
Dê três exemplos de palavras formadas pelo mesmo tipo de
constituintes (sendo unidades lexicais diferentes), linearmente
ordenados do mesmo modo.
1. prefixo modificador in des re
2. radical evit educ corr
3. constituinte temático a a e
4. sufixo derivacional bil tiv nt
5. sufixo modificador issim érrim inh
6.constituinte temático o a o

4. Encontre duas palavras formadas pela seguinte sequência de


constituintes morfológicos e represente a sua estrutura:
1. prefixo modificador in des
2. radical fals organ
3. sufixo derivacional ific iz
4. constituinte temático a a
5. sufixo derivacional bil cion
6. sufixo derivacional idad al
7.constituinte temático e 

5. Dê cinco exemplos de adjectivos graduáveis e de adjectivos não-

208
graduáveis.
Adjectivos graduáveis Adjectivos não-graduáveis
amável alcoólico
claro amarelado
leve borrachudo
poderoso férreo
profundo teatral

6. Que processos de graduação conhece? Exemplifique-os, retomando


os exemplos acima apresentados.
A graduação pode ser realizada morfologicamente, por sufixação
avaliativa (cf. amabilíssimo, clarinho) ou z-avaliativa (cf. levezíssimo),
por prefixação (cf. super-poderoso) ou, ainda, sintacticamente, em
construções comparativas (cf. menos profundo / mais profundo).

7. Como caracteriza a relação existente entre os seguintes pares de


palavras:
i. o filho a filha
o actor a actriz
ii. o jornalista a jornalista
o juiz a juiz
iii. o físico a física
o místico a mística
iv. o saco a saca
o manto a manta

Nos grupos i. e i. há um contraste de género, lexicalmente realizado, no


primeiro caso, e sintacticamente, no segundo.
Nos grupos iii. e iv. Há um contraste temático que opõe um radical de
tema em -o ao mesmo radical (pelo menos aparentemente), mas de tema
em –a. Em iii. o masculino é um nome animado e o feminino é um nome
animado (opondo o nome de um especialista ao nome da sua
especialidade); em iv. O contraste temático não é semanticamente
analisável.

8. Distribua os seguintes pares de palavras pelas classes


anteriormente consideradas:
ii. iii. iv.
égua o agente a agente o crítico a crítica o cano a cana
co-fêmea o personagem a personagem o matemático a matemática o gaveto a gaveta
mestra o sargento a sargento o político a política o poço a poça

209
9. Flexione os verbos podar e poder em todas as suas formas simples.
podar – podando – podado

Indicativo Futuro Condicional


Presente Imperfeito MQperfeito Perfeito simples
podo podava podara podei podarei podaria
podas podavas podaras podaste podarás podarias
poda podava podara podou podará podaria
podamos podávamos podáramos podámos podaremos podaríamos
podais podáveis podáreis podastes podareis podaríeis
podam podavam podaram podaram podarão podariam

Conjuntivo Infinitivo Imperativo


Presente Imperfeito Futuro flexionado afirmativo negativo
pode podasse podar podar
podes podasses podares podares poda podes
pode podasse podar podar pode pode
podemos podássemos podarmos podarmos podemos podemos
podeis podásseis podardes podardes podai podeis
podem podassem podarem podarem podem podem

poder – podendo – podido

Indicativo Futuro Condicional


Presente Imperfeito MQperfeito Perfeito simples
posso podia podera pude poderei poderia
podes podias poderas pudeste poderás poderias
pode podia podera poude poderá poderia
podemos podíamos podéramos podémos poderemos poderíamos
podeis podíeis podéreis podestes podereis poderíeis
podem podiam poderam poderam poderão poderiam

Conjuntivo Infinitivo Imperativo


Presente Imperfeito Futuro flexionado afirmativo negativo
possa pudesse poder puder
possas pudesses poderes puderes pode possas
possa pudesse poder puder possa possa
possamos pudéssemos podermos pudermos possamos possamos
possais pudésseis poderdes puderdes podei possais
possam pudessem poderem puderem possam possam

10. Que comentário lhe merece a forma pode? E a forma poderes?


A forma pode é ambígua: pode tratar-se da primeira ou da terceira
pessoas do presente do conjuntivo do verbo podar (e consequentemente
também da terceira pessoa do singular do imperativo deste verbo) e pode
se a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo poder

210
(bem como a segunda pessoa do singular do imperativo afirmativo deste
verbo).
A forma poderes também é ambígua, podendo tratar-se quer da segunda
pessoa do singular do futuro do conjuntivo do verbo poder, quer do
plural do nome poder.

11. Descreva a formação do plural de palavras terminadas em /l/.

As palavras cujo radical termina em // – que coincide com a terminação


da palavra – formam o plural com a semivocalização da consoante que se
realiza como [] e constitui um ditongo com a vogal antecedente. O
sufixo do plural junta-se ao ditongo. Exemplos: sinal [] / sinais
[]

12. Explique por que os nomes e adjectivos terminados no singular em


ditongo nasal –ão têm três formações distintas do plural.

Os nomes como irmão, cão e limão, terminados no ditongo [„], têm no


plural as formas irmãos [„], cães [„] e ocasiões
[]. Esta diferença explica-se da seguinte forma:
- As palavras que formam o plural em [‘] derivam de um
étimo terminado em –ANU (IRMANU > [‘+])
- As palavras que formam o plural em [‘] derivam de um
étimo terminado em –ANE (CANE > [‘+])
- As palavras que formam o plural em [‘] derivam de um
étimo terminado em –ONE (OCCASIONE > [+])
Actualmente, a única formação do plural produtiva tem terminação em –
ões (por exemplo, brigões) Os outros plurais têm que ser memorizados.

13. Explique por que temos as realizações fonéticas diferentes do sufixo do


plural da palavra capas em:

e) capas [];
f) capas pretas [];
g) capas verdes [];
h) capas azuis [].

O sufixo do plural é um // fonológico. Quando esta fricativa está em


final absoluto, realiza-se como [] (capas []). Quando seguida
de outra palavra, a fricativa realiza-se com o traço vozeado da consoante
inicial da palavra seguinte (capas pretas ...[]..., capas verdes ....[]...)
ou como [] se a palavra que se segue começar com uma vogal (capas
azuis ...[]...).

211
14. Tendo presentes as três conjugações do Português, explique a alternância
vocálica das seguintes formas verbais e diga por que se denomina
harmonização vocálica este aspecto fonológico da morfologia do
Português.

Presente do indicativo (1ª pessoa do singular)


l[ ´ ]vo m[ ´ ]ro d[]vo m[]vo f[]ro d[]rmo

Presente do conjuntivo (primeira, segunda e terceira pessoas do singular e


terceira do plural)
l[]ve m[]re d[]va m[]va f[]ra d[]rma
l[]ves m[]res d[]vas m[]vas f[]ras d[]rmas
l[]ve m[]re d[]va m[]va f[]ra d[]rma
l[]vem m[]rem d[]vam m[]vam f[]ram d[]rmam

Os verbos levar e morar são da primeira conjugação, com vogal temática


//, [+baixa]. Assim, todas as formas apresentadas destes verbos, que são
as formas em que a vogal temática é suprimida, manifestam uma vogal
baixa no radical.
Os verbos dever e mover são da segunda conjugação, com vogal
temática //, [–alta, –baixa], ou seja, média. Assim, todas as formas
apresentadas destes verbos, que são as formas em que a vogal
temática é suprimida, manifestam uma vogal média no radical.
Os verbos ferir e dormir são da terceira conjugação, com vogal
temática //, [+alta]. Assim, todas as formas apresentadas destes
verbos, que são as formas em que a vogal temática é suprimida,
manifestam uma vogal alta no radical.
Trata-se de uma assimilação (ou harmonização) da altura da vogal
temática pela vogal do radical nas formas em que a vogal temática
é suprimida.

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