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TONAL/ ATONAL Nattiez.

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Doc Musica comtemporânea século XX

Parte1 - https://www.youtube.com/watch?v=H682mczLXUY

Parte 2- https://www.youtube.com/watch?v=W5OA_6wbt58

Parte 3 - https://www.youtube.com/watch?v=BS1rpcwOjVE

24 - TONAL/ ATONAL Nattiez.pdf

1. Tom, tonal, tonalidade


Encontramo-nos aqui perante uma primeira dificuldade de carácter específico:
a análise semântica deve distinguir as diferenças que nos aparecem de
uma língua para outra. Com efeito, a ambiguidade da palavra «tonalidade» é
devida, em grande parte, à ambiguidade da palavra «tom», da qual deriva. p.331

1.1. O tom
a) O inglês fone e o alemão der Ton designam, primeiro que tudo,
uma altura determinada: C i.r a tone 'dó é uma altura' [ou também, em
português, 'dó é uma nota', vocábulo que designa tanto a altura como o
símbolo gráfico]. Em francês e em português, o sentido é já mais ambíguo,
porque, se é possível falar dos tons aigus de Ia voix 'tons agudos da voz' para
aludir à sua altura num dado momento, não se trata, neste caso, de designar
uma altura precisa. O italiano tono aproxima-se do sentido inglês e alemão,
mas mais raramente; prefere-se neste idioma o vocábulo diapason para falar
de uma frequência específica. P.331

Nos anos 50, a situação do conceito de tonalidade era considerada tão


confusa que no VII Congresso internacional de musicologia foi criado um atelier
propositadamente dedicado a esse assunto [Chailley 19581; é de lamentar
que não se possuam aetas detalhadas. Sabe-se, no entanto, que um dos participantes
(Wilhelm Heinitz) «queria alargar o domínio da tonalidade, tomando
por base de discussão a sensação puramente fisiológica da distensão que
ocorre após sucessivos períodos de tensão» [ibld., p. 333]. Proposta interessante,
sem dúvida, porque se trata de uma definição não somente geral, mas
também perceptiva da tonalidade, e juntando-se assim a outras definições
que põem em relevo esta dimensão do fenómeno. Por exemplo, Helmholtz
define a relação com um som predominante como «a relação perceptiva possível
ao ouvido» [1863, ed. 1913 p. 395]. Güldenstein é ainda mais preciso: .A
tonalidade não é um facto acústico, mas um modo de percepção, requerido
por um contexto musical particular» [citado in Beswick 1950, pp. 10-11]. Um
outro participante no congresso de Colónia, Jens Rohwer, propunha uma definição
da tonalidade que excluía a modalidade medieval [cf. Chailley 1958,
p. 333]. Quando Dahlhaus distingue, na música modal medieval, um período
«pré-tonah, em que os modelos melódicos e as fórmulas têm mais importância
do que a nota final de referência, e uma tonic phase, a palavra 'tonalidade'
remete, não para a existência de uma hierarquia funcional, como a dos
modos maior e menor, mas sim para a existência de um centro tonal.p.334
Como conclusão final, o congresso da Sociedade internacional de
musicologia adaptou uma definição geral de tonalidade: «Um modo de
percepção musical, segundo o qual, numa dada escala de observação, todos os
sons são compreendidos em relação a uma final conclusiva única, real ou
virtual. [ibid., p. 334]. Exceptuando a referência à dimensão perceptiva, esta
definição é praticamente igual à de Fétis, proposta cento e trinta anos mais
cedo. Dado que ela foi proposta por ChaiHey, parece razoável perguntarmo-
nos se esta concepção generalizada - por justificada que o possa ser - não
serviria uma qualquer intenção ideológica de integrar as músicas «primitivas»
e a música medieval no seio de uma visão teleológica da história da música, a
qual deveria necessariamente conduzir à música tonal do século XVIII a XIX. p.334

A argumentação do Traité historique d'analyse musicale (1951) e dos


lnterva//es et éche//es (1954-55) já aqui discutida [Nattiez 1977, ed. 1984 pp.
259-61; 1981, § 1] poderia fazê-Ia pensar. O inconveniente da definição
generalizada é que, se por um lado alarga a ideia de organização à volta de
um centro tonal a um bom número de músicas extra-europeias, por outro,
falta-lhe a especijicrdade daquilo que o uso corrente entende precisamente
por 'música tonal', ou seja, a música das eras barroca, clássica e romântica. P.334

1. 3. A tonalidade «restrita»

A primeira aparição do vocábulo 'tonalidade' não está, na realidade,


ligada a uma concepção generalizada da tonalidade, mas sim ao tipo de
música escrita no Ocidente, a partir do século XVI. Durante muito tempo,
atribuiu-se esta invenção a Fétis, cujo tratado de harmonia já citado, publi-
cado em 1844, teria sido terminado em 1816 (isto segundo o autor, sempre
desejoso de deter a primazia). P.335

Fétis defini-Ia-á, com mais precisão,


como «o conjunto das relações necess.árias, sucessivas ou simultâneas dos sons
da escala» (1844, ed. 1875 p. 2lJ, ou, ainda, falando .das afinidades
melódicas e harmónicas dos sons da escala, donde resulta o carácter de
necessidade das suas sucessões e dos seus agregados» [ibid., p. 2481 .p.335

Decorrerá, portanto, quase um século até que a tonalidade temperada


ilustrada por Bach no seu Cravo bem temperado (Das woh/tempenÚte
C/avier) e teorizada por Rameau no seu Traité de /'harmonre - ambos
datados de 1722 - seja tematizada com um termo específico da
metalinguagem da musicologia. Mas, na verdade, a ideia de tonalidade, ou
seja, da organização hierarqurZadaem rdação a um centro tonal, constituía já
um pilar do Traité de Rameau, como se vê nesta passagem histórica: .0
princípio da harmonia não subsiste apenas no acorde perfeito, a partir do qual
se origina o de sétima, mas ainda, m:ris precisamente, no som mais grave
desses dois acordes, que é, por assim dizer, o centro harmónico ao qual todos
os outros sons se devem reportar ... Não é suficiente aperceber-se de que todos
os acordes e as suas diferentes propriedades tiram a sua origem do acorde
perfeito e do de sétima; é preciso, para além disso, notar que todas as
propriedades destes dependem absolut:mIente desse centro harmónico e da
sua progressão: os intervalos que os formam s6 o são em relação a esse centro,
que se apropria em seguida desses mesmos intervalos para formar a sua
progressão; sobre a qual, e apenas sobre ela, se determinam a ordem e a
progressão desses acordes primeiros ... que princípio maravilhoso na sua
simplicidade!. [1722, pp. 127-281. Aqui a expressão «centro harmónico»
designa o mesmo que «centro tonal», ou seja, a nota em relação à qual todos
os outros sons estão organizados num siJtema, com a particularidade, no caso
de Rameau, de que o termo 'harmónico' põe em relevo o facto de se tratar de
um sistema polifónico complexo.p.335

Donde a nuance apontada por Rosen no seu


livro sobre Schoenberg, que é, sem dúvnda, uma das obras mais notáveis que
já se escreveram sobre a tonalidade, a despeito (ou devido) à sua concisão: .A
tonalidade não é, como por vezes se pretende, um sistema organizado em
torno de uma nota central, mas um sistema organizado em torno de um
acorde perftito central; todos os oum.lsa:cordes perfeitos - maiores e menores
- distribuem-se hierarquicamente i sua volta; chamado tónica, ele
determina o tom de cada trecho» [197~, pp. 27-28].p.335

Que o centro de atracção seja uma nota ou um acorde, não modifica o


facto de nos encontrarmos aqui em pFesença do paradigma das definições
correntes de tonalidade. Daremos em seguida três exemplos, entre muitos,
retirados de autores conhecidos. Riemann diz, no seu Musik-Lexicon (1882):
a tonalidade é «a significação particular que os acordes adquirem através da
sua relação com um acorde principal: a tónica. [citado in Beswick 1950, p. 5].
Para Schoenberg é «a arte de combinar os sons, mediante sucessões e
harmonias - ou sucessões de harmonias -, tais que a relação de todos os
acontecimentos com um som fundamental seja possível- libid., p. 7]. E, por
fim, Bukofzer: «A tonalidade é um sistema de relações de acordes baseado na
atracção exercida por um centro tonal_ [1947, p. 12]. O importante em todas
estas abordagens é o facto de a relação com um centro implicar uma
Hierarquia.p.335

Tendo o conceito de «tonalidade generalizada- prevalecido no congresso


de Colónia, em 1958, o relatório de Chailley dá conta de uma «definição
complementar., proposta para a «tonalidade clássica-: «Concepção limitativa
da tonalidade, na qual as relações dos sons com a tónica são exclusivamente
definidas pelas funções que ocupam nos dois modos maior e menor,
analisáveis relativamente ao baixo fundamental e aos acordes constituídos
sobre cada grau_ [1958, p. 334].p,336

Kfenek: «Tonalidade
(tona/it.'!) significa simplesmente o tom (key) no qual uma composição está
esnita_ [ritado in Ikswick 1950, pp. 8-9). Piston: «Tonalidade é sinónimo de
tom_ [1941, p. 291. A estreiteza destas concepções confina com a confusão, já
que a tonalidade, enquanto traço característico de todo um período da história
da linguagem musical, é uma abstracfão: é o conjunto das propriedades da
música, habitualmente classificada de tonal, onde se encontram tons
(intervalos), tónicas e tonalidades. Numa palavra, a tonalidade, distinta da
música modal que a precedeu, por vezes qualificada de pré-tonal, é um estilo
[Molino, citado in Nattiez 1975, p. 83]. Para descrevermos a sua especificidade,
é necessário ultrapassarmos o estreito âmbito de uma qualquer definição,
e inventariarmos os seus traços característicos.p.336

2. O estilo tonal
Se as definições bastassem para caracterizar a tonalidade, ao escutar uma
peça ter-se-ia o «sentimento da tonalidade", em virtude simplesmente do
sistema de relações e hierarquias definido pelos diferentes graus de uma escala
maior ou menor. Mas a tonalidade é um estrIa, ou seja, não apenas um
conjunto de características idemificáveis e de combinações na substância
sonora de um trerho, mas também um conjunto de fenómenos, que são
perrepcionados ou não, segundo o grau de cultura musical e de acuidade
auditiva dos indivíduos. Isto significa que a tonalidade não se refere a este
sistema hierarquizado, mas ao conjunto dos parâmetros - harmónicos,
melódicos, rítmicos, ete. - regidos pelo sistema.p.336

Tonalidade harmónica. O estilo tonal é o conjunto dos acordes e das


relações entre acordes, atestados na música considerada tonal. Escreve Réti:
«O esquema I-x-V-I simboliza, ainda que duma forma muito sumária, o
percurso harmónico de uma qualquer' composição do período clássico. Este x,
aparecendo normalmente sob a forma de uma progressão de acordes (uma
série completa, por exemplo), constitui a música presente no interior do
esquema que, através da fórmula V·I, se torna uma unidade, um grupo, ou
mesmo uma peça inteira. [1958, pp.10-11], Sendo uma súmula, à proposição
de Réti é particularmente interessante: tenta apreender, englobar, a essência
harmónica da tonalidade, segundo uma fórmula não muito afastada do I-V-I
do Hintergrund de Schenker [1935, ed. 1956 p. 27]. P.37

Réti traduz, em termos


de graus harmónicos funcionais, o que Fétis exprime em termos de estruturas
do acorde, quando sustentava que toda a música tonal podia ser derivada do
acorde consonante perfeito e do acorde dissonante de sétima.p.337

Tonalidade melódica. Se isso é assim, é necessário admitir que possam


existir características de tonalidade presentes num parâmetro, mas
ausentes - ou parcialmente ausentes, como neste último exemplo noutros.
Esta situação é absolutamente conforme à tendência para a
autonomização dos parâmetros, que nos parece necessário tornar em linha de
conta, tanto para a análise semântica da linguagem musicológica, corno para a
análise da estrutura e da evolução da linguagem musical.p.337

Fétis, ao fazer alusão às teorias de Reicha [das quais se trata in Nattiez


1979, ed. 1984 p. 280], propunha definir uma «lei da tonalidade~ que se
aplicaria por igual à harmonia e à melodia. Não voltaremos a este ponto.
Lembramo-Io apenas para sublinhar que é normal que um parâmetro (neste
caso, uma melodia sem acompanhamento harm6nico), susceptível de se
destacar fisicamente do seu ambiente, adquira regras próprias de
Funcionamento. P.40

Qualificam-se por vezes de atonais as últimas obras de Liszt, escritas em


1880 e 1886. A expressão de «pancromatismo atonal~ [Alain 1965, p. 92].
utilizada a propósito de NuageJ gns [Alain 1965, p. 92] é excessiva; e
preferiríamos falar de uma surpreendente modernidade. Mais precisamente,
estas obras interessam-nos na medida em que nos obrigam a definir o
sentimento da tonalidade que experimentamos quando as ouvimos.p.40
Formas tonais. A tonalidade não é apenas um sistema de organização
das alturas, é um princício de organização das obras. Por outras palavras, é
lícito procurar um vínculo entre a tonalidade e as formas características do
período tonal, em particular, a forma-sonata. Escreve Rosen: «A maior parte
das nossas concepções da forma musical derivam da tonalidade. A função de
"moldura" assumida pelo acorde de tónica (dentro da qual cada nota adquire
um sentido definido) implica uma simetria formal, à qual obedecem todos os
elementos musicais. A forma da capo, ternária ou, mais simplesmente, ABA,
é o meio mais simples possível de patentear essa simetria; mais sofisticada é a
"forma-sonata", onde a exigência de simetria por vezes obriga a que a
música, tendente desde o início a afastar-se da tónica em direcção a uma nova
tonalidade, seja interpretada no fim, e para restabelecer o equilíbrio, na
"região" da tónica» (1975, p. 31].p.342

o estilo tonal é, portanto, o conjunto das características que cada um dos


parâmetros da substância musical deve à tonalidade. Mas, à medida que nos
afastamos da eta histórica da tonalidade, ela torna-se, como o diz
acertadamente Costere, uma «maneira de ser» [1961, p. 802], e sentimo-nos
tentados a reportar os seus traços diferenciados a um princípio único, que
tornaria, ao mesmo tempo, a sua essência clara. Para n6s, essa «essência» é
apenas a maneira como uma época percebe uma outra, mas esta percepção é
neste caso capital porque, na passagem da tonalidade à atonalidade, é
precisamente em função de uma concepção global da tonalidade que se
desenham novas linguagens musicais. Qual é ela, essa percepção global? Com
cambiantes conforme os autores, ela parece-nos passível de ser -descrita em três
pontos, aliás estreitamente relacionados: a dialéctica da consonância e da
dissonância, a alternância tensão I distensão e a busca da totalidade.p.344

Consonância Idissonância. Indo ao encontro da proposição inicial e


fundamental de Fétis, Rosen afirma: «A distância que separa qualquer acorde
do acorde de tónica é uma relação de dissonância: a sua situação na hierarquia
indica quanto está afastado da resolução definitiva. Uma obra tonal deve-se
iniciar designando o papel central atribuído à tõnica. de tal maneira que tudo
o que se segue ao começo e precede o acorde final possa ser considerado como
dissonante em relação ao acorde perfeito da tónica, que é a única consonância
perfeita» [1975, p. 28J. Aqui, o autor estende à organização de uma peça a
distinção entre intervalos (ou acordes) consonantes e dissonantes: mais uma
vez, passagem da micro-estrutura à macro-estrutura.p.344

Tensão / distensão. É a contrapartida psicológica da distinção precedente,


já que, se os fenómenos consonantes e dissonantes podem ser descritos
acusticamente, o juízo de consonância ou dissonância permanece eminentemente
perceptivo. «A consonância é um som musical que não exige
resolução., diz Rosen [ibid., p. 24]. Mursell, um dos primeiros grandes
psicólogos da música. propõe: «O sistema da expectativa tonal, eis aquilo a
que chamamos tonalidade. [1937, p. 122J. Um musicólogo canadiano,
Graham George, baseou toda uma teoria da tonalidade na oposição
claro I escuro em relação ao centro tonal, desenvolvendo implicitamente o
quarto dos sentidos da palavra 'tom', inventariados no início deste artigo.p.344

A busca da totalidade. Seja a obra tonal baseada na consonância e dissonância,


ou na tensão e distensão, nos dois casos é a totalidade do universo
sonoro possível que, de cada vez, articula os contrários num todo homogéneo.
É precisamente no momento em que a harmonia tonal atinge o seu ponto de
ruptura, mas em que os outros parâmetros conservam a sua lógica tonal e asseguram
ao antigo edifício a sua coerência, que Schoenberg empreende a construção
de um novo sistema sobre as «ruínas» do antig~: a aventura dodecafónica
consistirá, portanto, em reencontrar, com novos meios, os princípios que,
aos olhos dos compositores seriais, tinham permitido o sucesso da tonalidade
clássica. Neste sentido, não é exagerado dizer que as pesquisas
atonais - numa acepção larga (seria melhor dizer «não tonais») - constituem
a última manifestação, sempre inacabada, da crise da tonalidade.p.345

3. A atona/idade enquanto crise da tonalidade

3.1. Princípios da tonalidade no seio da atonalidade

Precisamente porque tinham como modelo a tonalidade clássica, os


compositores da escola de Viena parecem tudo fazer para não cortar as suas
ligações com ela. Schoenberg e Berg tecllsaram, inclusive, o termo
'atonalidade', o qUlll nunca tinha sido proposto por eles, mas sim pelos seus
detractores. «O termo "atonal", - diz Berg, - chegou a designar,
colectivamente, a música da qual não somente se afirmava que não possuía
centro harmónico (a tonalidade na acepção de Rameau), mas, igualmente,
aquela privada de todos os outros atributos musicais como o melos, o ritmo, a
forma parcial ou geral; tanto que o termo refere-se, hoje em dia, a uma
música que é uma não-música» [1930, ed. 1971 p. 1311J. P.345

Berg não quer,


portanto, insistir numa ruptura entre os parâmetros tradicionais da música
tonal e o novo estilo; ao contrário, deixa bem claro que, à parte os modos
maior e menor, «todas as características que esperamos de uma música
verdadeira e autêntica estão presentes ... Nesta música, como em qualquer
outra, a melodia, a voz principal, o tema são fundamentais, porque, num
certo sentido, o desenrolar da música é determinado por eles» (ibid.', p.
1312J. p.345

Schoenberg não era menos ardente ao recusar o termo. Utilizando a


palavra 'tonal' no sentido mais genérico, assinalado no princípio (relação
entre os sons), ele escreve: «Um trecho de música é sempre nitidamente tonal,
pelo facto de que existe sempre um parentesco entre um som e outro e que,
em consequência disso, dois sons, dispostos um ao lado do outro, ou um por
cima do outro, se encontram em condições de associação perceptíveis ... existe
somente uma diferença de grau entre a tonalidade de ontem e a de hoje»
[1927J.p.345

Donde o conceito de «pantonalidade» proposto por Schoenberg no


seu Tratado de harmonia (Harmonielehre, 1911): «Com este termo queremo-
nos referir às relações recíprocas dos doze sons entre si» [ibid. J. «É fácil
imaginar que o conceito de tonalidade possa ser alargado até englobar todas
as combinações sonoras» libido J. p.345

A musica atonal dos primciros Vienenses visa, portanto, recriar, numa


nova linguagem a  tolalidade inerente à tonalidade. Porquê e como?
encontramos, primeiro que tudo, uma justificação de ordem ontológica:
Schoenberg crê nos fundamentos naturais e acústicos da tonalidade .• Na
Verdade eu  creio que esta relação entre todas as notas existe, não apenas por
Causa  da sua derivação dos primeiros treze harmónicos dos três sons
Fundamentais . A tonalidade não é um postulado imposto por um contexto
Natural mas  sim a exploração particular de condições naturais. libido J. p.346

Em Webern encontramos uma argumentação sensivelmente idêntica: .A


Dissonancia  é apenas um escalão ulterior», que se atinge quando continuamos
a percorter a série dos harmónicos [1932-33J. Aliás, a ligação com a natureza
soa corno um verdadeiro Leitmotif. ao longo do seu Caminhos para a nova
musica : «A composição com doze sons é o resultado natural da evolução da música
ao longo dos séculos. [ibid.]. Tratando-se de conferências pronunciadas em 1932 e
1933, sentiria Webern a necessidade de justificar, frente aos seus auditores, o novo
estilo como a continuação de uma tradição? De facto, ele parece ter, de uma maneira
sincera, o sentimento de um desenvolvimento inelutável. P.346

Em resumo: «É assim que concebo os dois papéis


essenciais da tonalidade. Por um lado, ela reúne, une, por outro, ela articula,
separa, individualiza. As vantagens que disso resultam para o compositor e
para os seus auditores são as seguintes: através da unidade que se estabelece
por via das afinidades entre os sons, o auditor dotado de uma
cerra inteligência musical não pode deixar de sentir que a obra foi concebida
como um todo. Por outro lado, a sua memória é ajudada pela função de
articulação, que aclara a maneira como os elementos estão ligados entre eles e
ao todo, facilitando assim a compreensão de certos momentos fugitivos»
[ibid.].p.346

As consequências, no que se refere à música pós-tonal, são evidentes:


«Apenas se pode pensar em abandonar a tonalidade se se encontrarem outros
meios satisfatórios de assegurar a coerência e a articulação» [ibid.]. «É apenas
necessário servir-se de uma nova razão lógica, suficientemente forte para
assegurar a unidade do conjunto sob um denominador comum. [1925].
Consciente de que as leis da harmonia permitiam ao ouvido apreender a
articulação da forma, Schoenberg busca então um novo princípio que
,'~ permitirá criar uma nova forma de inteligibilidade e de tonalidade.p.346
3.2. Os fantasmas da mnalidade
Para Schoenberg, este princípio é, evidentemente, a série. Mas
encontramo-nos perante rrês dificuldades: a) a ambiguidade da noção de
série; b) o facto de a série só organizar as alturas; c) a diferença radical das
concepções de Schoenberg e Berg, por um lado, e Webern, por outrO, quanto
ao estatuto da série, em relação à economia de conjunto da obra.p.347

Em Schoenberg, a noção de série é ambígua, porque se propõe, por si só,


substituir dois componentes de uma obra tonal: a escala de referência e o
material temático. Assim, escreve Schoenberg: .[A sérieJ não ... deve ser
considerada uma escala, se bem que ela tenh~ sido inventada como um
substituto, que conserva algumas das vantagens lógicas e construtivas da
escala e da tonalidade. [1945]. Mas pode-se ler mais abaixo: .A série
fundamental funciona à maneira de um motivo. Eis o que explica porque há
que inventar uma série nova para cada peça, série essa que constitui o
primeiro pensamento criativo. É indiferente o facto de a série aparecer desde
logo na composição, como um tema ou uma melodia, ou de ser caracterizada
por particularidades salientes a nível de ritmo, fraseado, construção, carácter,
ete.. [ibzd. J. 347
Schoenberg atribui à série as funções de articulação e de unidade que ele
reconhecia à tonalidade, mas pede-lhe também que desempenhe as funções
do tema tonal, do qual dizia: .Todas as evoluções possíveis de um trecho
musical estão em germe no seu tema: previstas, preditas, encaradas, dirigidas,
prefiguradas. [1931, p. 290]. O problema é que o tema era, evidentemente,
uma configuração melódica, mas com todos os componentes harmónicos,
rítmicos, métricos que deve à tonalidade, enquanto que a série apenas
organiza as alturas: as suas características rítmicas, fraseológicas, dinâmicas só
podem provir do estilo tonal.p.347

1) A melodia. Vimos mais acima que Berg não reinvindicava uma


particular originalidade para a música «atonal •. No que respeita à melodia,
não pode ser mais claro: «Pergunta: Existe evidentemente qualquer coisa [na
música atonal] que nunca se ouviu antes ... Berg: Só no que diz respeito à
harmonia. Mas é errado considerar a nova linha melódica, como tendente
para uma direcção radicalmente nova» [1930, ed. 1971 pp. 1312-13J p.347

2) O ritmo: bastará observar este exemplo retirado do Quarto Quarteto


para cordas de Schoenberg:
Podemos divertir-nos a substituir as alturas da série por uma melodia e uma
harmonia tonais, sem mudar o ritmo:

3) A fraseologia. Não disse o próprio Webern que «um tema de


Schoenberg repousa sobre as formas do período e da frase de oito compassos"
[1932-33]?

4) A harmonia. É evidentemente em relação à harmonia clássica que a


atonalidade se permitiu libertar mais radicalmente. Mas estaríamos errados se
pensássemos que os Vienenses a esqueceram, de propósito ou por acaso. De
propósito: assinala-se muitas vezes que Berg, fazendo do dodecafonismo um
princípio pantanal, procurou englobar a tonalidade na música serial, e em
função disso organiza as suas séries de base, de maneira a engendrarem
combinações harmónicas tonais.p.348

5) A forma. Lembrámos que a forma-sonata tinha estado particularmente


ligada ao jogo das tonalidades e das funções harmónicas, mas é
também verdade que, sobretudo no século XIX, a estrutura temática
representa uma componente essencial, Uma vez totalmente destruída a
componente harmônica tonal, pode restar um quadro formal no qual é
vertida a substância musical não-tonal. Os exemplos de forma-sonata não
faltam entre os Vienenses: basta pensar no op. 16, n. o 1 de Schoenberg ou na
sonata da Lulu de Berg,p.349

Assim, existem em
Schoenberg dois tipos de forma: 1) a forma temática: «Seguimos a peça
guiando-nos quase exclusivamente pela identificação dos motivos e das suas
transformações" [Rosen 1975, p. 38]; 2) a forma como resultado desse
desenvolvimento. O problema dos compositores não-tonais foi o «de
encontrar um método de organização formal e de progressão no tempo, que
pudesse substituir o temático" [Samson 1977, p. 197].p.348

Dahlhaus, como
musicólogo atento aos desenvolvimentos da música contemporânea, insistiu
na necessidade de não reencontrar o antigo conceito de forma através das
novas manifestações musicais [ibid., pp. 71-75]. As .-formas» da música pós-
tonal são sobretudo processos: a «forma» muda de uma obra para outra,
resulta do material de base; já não é possível identificar regularidades estruturais
ao nível das grandes secções que atravessam um período razoavelmente
longo da história da música p.348

3.3. Em busca da totalidade perdida

A pesquisa atonal é essencialmente a manifestação da crise da


tonalidade, dissemos mais acima. Mostrámos também quanto os Vienenses
tinham sido sensíveis ao princípio de unidade presente na tonalidade. Mesmo
se, em muitos pontos, Berg ainda é tributário dos gestos tonais, a sua
insistência em construir uma obra a partir de uma célula mínima é típica
dessa busca da totalidade.p.350

4. O fim da música?
Mas O advento do novo sistema total não se deu. Sem dúvida porque o
grau de abstracção que devia garantir a coerência da obra a todos os níveis era
tal, que o sistema de relações instaurado já não era funcionalmente
Perceptível.p.353

A música moderna buscou várias soluções para a crise da tonalidade. É de


notar que ela sempre o fez dando uma importância nova a um parâmetro
anteriormente negligenciado. A música concreta, que rapidamente se tornou
«e1ectro-acústica» e, hoje em dia, «acusmática», deslocou a fronteira entre som
e ruído e integrou - retomando a expresssão de Schaeffer _ uma parte
considerável do sonoro no musical, mas sem estabelecer um sistema de
Composição.p.353

teatro musical, ilustrado principalmente por Kagel, joga com


as variáveis da peiformance musical - concertista e instrumento _
tomando, com frequência, como tema, o esgotamento da música, o que é,
diz-se, um sinal de decadência. A new tonality dos compositores americanos
adopta a simplicidade como princípio, reinvindica o hedonismo como valor e
utiliza a repetição tonal de uma maneira que nem mesmo a tonalidade tinha
ousado; não podemos deixar de pensar numa regressão. A politonalidade dos
anos 30 era demasiado simplista para oferecer um substituto para a
tonalidade; e não são propriamente geniais os compositores que exploraram o
domínio dos micro-intervalos ...p.353

E se fosse o fim? Se a música, enquanto arte ocidental, tivesse esgotado


as possibilidades contidas nos seus princípios de partida? Intelectualmente, a
ideia é escandalosa: não existe povo sem música, sempre houve e sempre
haverá música. Correcto, enquanto facto antropológico. Mas enquanto forma
renovada de expressão? Os géneros musicais não são eternos, e quase todos
sabem, mesmo que não o ousem declarar alto e bom som, que Lulu foi a
última ópera. Ao fim e ao cabo, não seria a primeira vez que uma forma de
arte, no Ocidente, vive e morre. A arte do mosaico, em Itália, floresceu entre
os séculos IX e XII e depois, mais nada. Quatro séculos! Mais ou menos o
espaço de tempo que separa Monteverdi de Boulez … p.354

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