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A escuta analítica a pacientes transplantados renais: a experiência de

um caso de rejeição do enxerto

Caio Tavares

O transplante de órgãos sólidos e tecidos é um procedimento que


envolve fatores biológicos, psíquicos e culturais e, gradualmente, vem
incorporando novas nuances técnicas e suscitando debates éticos de alta
complexidade no Brasil e no mundo. No caso do transplante renal, ele é
uma das opções de tratamento para pacientes que sofrem de doença renal
crônica, juntamente com as terapias dialíticas – hemodiálise (HD) e diálise
peritoneal ambulatorial contínua (CAPD) –, conjunto de métodos
denominados de terapia renal substitutiva. Contudo, o transplante ainda se
configura como a mais completa alternativa de substituição da função renal
em doentes em estágio terminal, promovendo uma melhor qualidade de
vida e autonomia ao receptor. Este procedimento é realizado através da
doação do órgão de um familiar ou pessoa próxima (doação intervivo) ou
de uma pessoa falecida por morte encefálica (doador falecido), após
exames de compatibilidade entre o rim enxertado do doador e o organismo
do receptor, por meio de antígenos presentes no sangue.
O termo doença renal terminal (DRT) é, segundo Carvalho et al
(2012, p.50) “utilizado para denominar o estágio mais avançado da
insuficiência renal crônica, com perda de mais de 90% da função renal”. O
Brasil é o segundo país em número de transplante, após os Estados Unidos,
contudo possui o maior sistema público mundial de procedimentos deste
tipo. Atualmente, entre 5 e 10% da população mundial possui problemas
renais. No Brasil, a prevalência da doença renal crônica no Brasil atinge a
marca de 10 milhões de pessoas com algum grau da enfermidade, podendo
a espera por um transplante chegar a mais de 11 anos (ALENCAR ET AL,
2015).
Se com o passar dos anos houve um aumento da sobrevida a curto
prazo do enxerto renal, por conta do aperfeiçoamento das técnicas
cirúrgicas e da imunossupressão, ainda não há mudanças significativas no
que tange a esta sobrevida a longo prazo (PINHEIRO, 2014). Em muitos
casos, há possibilidade de disfunção tardia do enxerto com maior ou menor
risco de perda da funcionalidade deste órgão transplantado, advindo daí
grandes chances de retorno às medidas substitutivas e mesmo um novo
transplante (ou re-transplante).
Este trabalho apresenta um recorte da construção de um caso clínico
com orientação psicanalítica, de uma paciente atendida em uma enfermaria
de um hospital para pacientes transplantados renais, na cidade de São
Paulo, no contexto de uma residência multiprofissional em saúde. Os
atendimentos ocorreram especificamente no setor dedicado aos
transplantados tardios, que porventura apresentam alguma complicação
relacionada ao enxerto.
Em certa ocasião, recebo uma solicitação de atendimento psicológico
para Fernanda, jovem transplantada há 5 anos, a partir de uma demanda da
equipe de que se tratava de uma paciente “poliqueixosa”, que estava
“dando trabalho para a enfermagem”. Ela estaria se queixando de que o
quarto não era adequado pois tinha mal cheiro e que ela não merecia aquele
tratamento, pois era “desumano”. Sente-se “rejeitada e negligenciada”.
Fernanda foi internada no dia 22/05/2018, na instituição mencionada, com
um quadro de pielonefrite, inflamação do parênquima renal que pode afetar
todo o trato urinário. Na internação, constatou-se uma disfunção aguda do
enxerto renal, ou seja, seu rim transplantado estava funcionando apenas
30%, logo havia risco de retorno iminente para a hemodiálise.
Após insistentes reclamações sobre o quarto, a paciente é transferida
para outro andar, para um local que foi do seu agrado. Acato a solicitação
da equipe e acompanho-a a partir desta data por pouco mais de duas
semanas. Fernanda é uma jovem de 28 anos de idade, mora em Guarulhos,
SP, com os pais e uma das irmãs, e está afastada do trabalho como
vendedora em uma drogaria, há 1 ano e meio, após uma lesão no joelho. Os
pais são idosos, o pai aposentado por invalidez e a mãe dona de casa. É a
caçula de cinco filhos, são mais 3 irmãs e um irmão: uma das irmãs, V.,
mora com ela e os pais, junto do seu filho pequeno, as outras duas C. e M.,
moram próximas.
A paciente descobriu a doença renal aos 19 anos, no ano seguinte
iniciou hemodiálise, que durou 3 anos, até necessitar de um transplante
(ocorrido há 5 anos). Logo de partida, um fato chama a atenção: Fernanda
relata que a família, tendo decidido pela doação intervivo, havia se reunido,
na época, sem a sua presença para realização dos exames de
compatibilidade com o seu rim. Ironicamente, o órgão mais compatível era
o de M., a irmã com quem tinha menos convívio e uma relação tensa,
conflituosa. Mesmo assim, transplantou aos 23 anos, através da doação
intervivo, proveniente desta irmã. Teve algumas complicações posteriores,
como infecções do trato urinário recorrentes e, a pior delas, uma
endocardite bacteriana, decorrente de uma infecção no cateter da diálise.
Dentre os variados assuntos que escuto da fala de Fernanda, a doação
pela irmã aparece como questão crucial, ponto que norteará sua narrativa.
Ela a descreve como uma pessoa “folgada e ingrata” e que, no processo do
seu transplante renal, “doou por doar”. Fernanda relata que foi privada de
uma escolha neste processo e acabou recebendo o rim da irmã unicamente
em função do teste de compatibilidade. Logo depois descobriu que o rim
tinha fibrose e, na internação em questão, apresentava sinais de rejeição.
Após a doação, segundo a paciente, sua irmã queria que ela lhe
retribuísse de alguma forma e a “colocasse em um pedestal”, gesto que ela
nunca fez. Se pudesse, Fernanda devolveria para ela o rim imediatamente.
Apesar de grata pela doação, ela garante que nunca vai “puxar o saco” da
irmã por ter doado. Aqui cabe ressaltar o que afirma Moretto (2006, p.80):
“o paciente que recebe o órgão passa a ocupar uma posição de quem tem
algo a menos, contrai uma dívida. O que perde parte de seu órgão passa a
ocupar uma posição de quem tem algo a mais, contrai um crédito”. Esta
dívida, por sua vez, é impagável. M. doou por que quis, não foi Fernanda
quem escolheu o rim. Mesmo tendo doado do seu próprio consentimento,
Fernanda assegura que a irmã não queria ter se submetido ao procedimento.
Os outros irmãos não eram compatíveis, mas também não se mostraram
favoráveis a doar.
A partir desta premissa, a paciente retorna à sua história antes do
transplante. Conta que a doença foi um ponto de virada na vida: após
descobrir a insuficiência renal, decidiu “aproveitar mais a vida”. Na época
era a mais nova da turma do colégio, pensava em trabalhar e não fazer uma
faculdade. Conseguiu balancear entre as sessões de hemodiálise (três vezes
na semana) e o trabalho na farmácia, paralelo ao qual fazia curso técnico
para ser radiologista. Além disso, apesar do tratamento, conseguia um
tempo para curtir, namorar, sair com amigos e ir à praia, o que causou
inveja em seus irmãos, que sempre acharam que ela tinha “uma vida boa,
sem preocupações”. No entanto, ela discorda, pois acredita que mesmo
tendo aproveitado de outras formas, desde que descobriu a doença renal,
sua vida girou em torno dos tratamentos diversos. “A doença vem no topo
da pirâmide, depois vem as outras coisas”, diz. Com as diversas
intercorrências de saúde, sofreu discriminações no trabalho e frustrou-se
por não ter ascendido no seu posto, acontecimento que atribui à sua
condição de doente.
Diante da contextualização das queixas da paciente, frente a sua
história, utilizei do recurso da escuta para fazer funcionar o dispositivo
analítico, apostando que poderia me colocar no lugar de agente como causa
do desejo de saber daquela que dirigia a palavra a mim. Pude, assim, nos
poucos encontros com a paciente, escutar do ponto de partida de um corpo
adoecido, narrado inicialmente pelo discurso médico – transplantada,
pielonefrite, rejeição do enxerto - favorecendo que dali um sujeito pudesse
advir, com suas elucubrações inconscientes, seus sintomas, seu desejo e seu
gozo. Com a psicanálise, damos lugar a um sujeito, na medida em que,
segundo Sarno e Fernandes (2004, p. 1), ele “está fora do alcance dos
cuidados médicos uma vez que a medicina tendo sua promessa de cura
abalada a ele nada pode oferecer”.
Fernanda, durante os atendimentos denuncia em sua fala sua divisão
subjetiva, podendo atentar para os lugares que ocupava: por um lado, se
coloca como a enferma, privada de muitas coisas na vida, como ter
construído uma carreira sólida. Por outro, orgulha-se de ter feito, antes
mesmo de descobrir a doença renal, uma escolha pelo trabalho e pela
“liberdade” (para sair, curtir e namorar), diferentemente de suas irmãs, que
“casaram para segurar homem”. Dentre as irmãs, ela insiste em marcar a
história de M., de quem recebeu o rim. Esta vive um casamento frustrado,
engravidou aos 17 anos, “dando golpe da barriga para prender o
namorado”, e hoje não tem condições de criar o filho sozinha, necessitando
do auxílio dos pais. Já Fernanda pôde conquistar a sua liberdade de
escolher seus parceiros, teve dois namorados, tem a opção de casar ou não,
ter filhos ou não. Exceto ter escolhido pelo rim. Neste sentido, Fernanda
rejeitava as escolhas das irmãs e sentia-se à deriva na família, pelo fato de
marcar uma diferença em relação a elas, sobretudo M. Diferença esta que
Fernanda lutou para sustentar.
Em vez de ratificar para Fernanda a melhor adesão aos tratamentos
médicos e convencê-la sobre a pertinência do transplante, demanda que me
foi feita pela equipe, achei prudente pedi-la unicamente que me falasse o
que pensava sobre todo o processo, ato que deixei clara à equipe sua
relevância. Fernanda então se questiona o porquê do transplante e o porquê
de M. ter doado para ela, já que, em suas palavras, “foi pior para ela do
que para mim”.
A partir do momento em que M. perde o rim na doação, ela não só se
arrepende como ainda rejeita Fernanda, culpando-a por esta perda ao
mesmo tempo que velava o fato de não aceitar sua independência e
ausência de filhos. No discurso de Fernanda, durante os atendimentos, a
consequência disto foi o rim, anos depois, também ser rejeitado. Ou seja,
uma hora Fernanda também acaba perdendo. A partir da psicanálise
escutamos ai a clara dissociação entre organismo e corpo, entre o
funcionamento renal e a dinâmica psíquica em torno da simbolização dos
órgãos.
Na época do transplante, Fernanda diz ter pensado em passar com
um psicólogo para entender o que estava acontecendo. Diz ela: “Eu me
perguntava: será que o problema era meu? Foi ela que fez escolhas
erradas no casamento. Ela não tem porque me odiar”. Daí reflete sobre as
complicações ocorridas no enxerto renal: “Depois que eu recebi, tudo isso
que aconteceu com o rim, pode ser uma ligação emocional. Dizem que
quando a pessoa transplanta, ela sente alguma coisa, você fica interligada
com a pessoa. Não sei se ela ainda está com rancor. O que aconteceu com
este rim não é normal”.
O transplante aqui aparece não apenas com um procedimento
médico, envolvendo doação e enxertia de órgão, mas como um evento
psíquico, que não é sem consequências para este sujeito. Consequências
estas que só adquirem corpo, só ganham um sentido no a posteriori da
narrativa de Fernanda. Ao relembrá-lo, ela conclui que desde o início ele
estava fadado a um fracasso. Como afirma Moretto (2006, p.77), “do ponto
de vista psíquico, perder o próprio órgão doente parece não ser tão
complexo quanto receber o enxerto, presentificando e materializando
assim, o “outro em si””. Assim, ela paga o preço de receber o pedaço de
um outro.
Fernanda entende que M. não apenas fez escolhas erradas na vida
como também fez a escolha errada em doar. Ela, por outro lado, parece não
ter escolhido receber, deixando a critério da família o processo do
transplante. A rejeição caso evoluísse para uma perda efetiva do enxerto,
tornaria a volta para hemodiálise um “retrocesso” e ainda mais delicado um
novo transplante. Fernanda, agora já próxima dos 30 anos, teme não ter a
mesma força de antes para aguentar novamente a diálise ou eventualmente
uma nova cirurgia. Ela que sempre trabalhara na área da saúde – “como
espectadora”, em suas palavras – ao adoecer torna-se protagonista.
Aqui devemos guardar as devidas proporções sobre a instalação de
um dispositivo clínico de escuta analítica em uma instituição de saúde, que
impõe, segundo Christian Dunker (2017) uma série de obstáculos à
instalação do discurso analítico e, portanto, da própria transferência.
Contudo, se apostamos na possibilidade de dar lugar à escuta de um sujeito,
emprestando-nos às suas associações significantes, partimos de um
pressuposto básico de convidá-lo à falar, sem um roteiro pré-estabelecido
como as anamneses rotineiras nas práticas hegemônicas no hospital. Da
demanda da equipe sobre a paciente, dita “poliqueixosa”, o primeiro passo
em fazer operar o dispositivo analítico foi o acolhimento e trabalho sobre
estas queixas: claramente, não se tratava apenas de reclamações objetivas
sobre seu quarto, mas de sentir-se rejeitada no contexto familiar e
negligenciada, ao ser privada de escolher o que era o melhor para si. Da
nossa parte, como praticantes da psicanálise, não temos garantia do que é o
melhor para o sujeito, por isso o convidamos a bem dizer o seu sintoma,
orientados pela ética do bem dizer, não do bem estar.
Ofertar um lugar às inquietações de Fernanda significava ratificar a
possibilidade de questionar e se implicar como sujeito, questionamentos os
quais certamente não faria à equipe médica: se não pôde escolher, por que
transplantou? Por que se submeteu a um procedimento tão delicado e além
disso advindo de uma doação “mal feita”? Não há resposta a priori, nem
tampouco um saber a priori sobre o que a paciente se queixava. A doação
do rim talvez apontasse para a possibilidade de livrar-se da condição de
doente crônica e do procedimento exaustivo da diálise. Porém, a rejeição
do rim reedita a rejeição pela própria irmã – e que de certa forma ela
própria também rejeitava as escolhas de M. Assim, expõe a relação já
conflituosa entre elas, desde o início. “Estou tentando trabalhar isso, que
não vou ficar com o rim por muito tempo”, afirma Fernanda. Caso precise
de um novo rim, não pensará mais em doador vivo, só falecido, nem que
tenha que aguardar 5 a 7 anos.
O meu convite a Fernanda para contar-me retroativamente um pouco
de sua história, prévia ao transplante, evento que marcou definitivamente
sua vida, possibilitou que ela então pela primeira vez questionasse a própria
pertinência de suas escolhas (ou mesmo a falta delas) e qual a implicação
ética disto. Após duas semanas, Fernanda consegue recuperar a função
renal e tem alta, mantendo acompanhamento médico ambulatorial.
A escuta analítica no hospital permite a um sujeito, ao falar, também
escutar a si próprio e se posicionar frente a seus ditos, às suas (poli)
queixas. Escutar um sofrimento que extrapola os limites do corpo
biológico, nesse caso, os tecidos renais e a função renal, mensurada pelos
parâmetros de ureia e creatinina. Entendo que este posicionamento como
profissional, mais do que técnico, ético, aponta para uma direção bem clara
do tratamento, que possa talvez divergir de outras abordagens. Como
observa Maria Lívia Moretto (2006, p.30) em sua tese de doutorado, ao se
referir a um levantamento na literatura mundial sobre o trabalho de
psicanalistas e psicólogos em equipes de transplante (no caso, de fígado),
há uma
predominância significativa de intervenções calcadas numa
referência humanista, educativa e comportamental, valorizando
sempre a questão de adaptar o doente à sua nova realidade de
transplantado por meio do reforço e do fortalecimento egóico,
do ensino de formas de aceitação à nova realidade, muitas delas
valorizando o poder do pensamento positivo no enfrentamento
de situações difíceis.

Com a oferta da escuta analítica, ainda que sejamos demandados a


tal, não respondemos do lugar de saber sobre aquilo de que o paciente
sofre. Ofertar a escuta não é o mesmo que ofertar uma solução para o
sofrimento através do pensamento positivo, do tipo “vai dar tudo certo”.
Disso não temos garantia. A escuta já consiste em si o próprio tratamento,
engendrado pelas diversas circunstâncias da história de vida do paciente,
que ele próprio irá localizar em sua fala. No caso em questão, a iminência
da perda do órgão de Fernanda, caso a rejeição aguda permanecesse,
reeditava outras perdas, para além órgão em si, que remetiam a sua própria
condição de sujeito faltante.
Concluímos que a escuta analítica no hospital é manejada no sentido
de permitir a apropriação de uma narrativa sobre o corpo biológico,
pertencente originalmente ao saber biomédico, favorecendo uma
investigação do próprio sujeito, compartilhada com quem o escuta, sobre
sua posição subjetiva diante de um corpo passível de simbolização, corpo
epistêmico, nas palavras de Jacques Allain-Miller, bem como à experiência
do adoecer. Assim, como pudemos expor no presente caso, o desenrolar de
elaborações simbólicas de uma paciente internada, acerca de um
procedimento médico (o transplante), caminharam em direção à
subjetivação singular de um evento posterior (a rejeição do enxerto).
Fernanda com precisão discorre minuciosamente sobre os detalhes da
sua doença, ainda que em poucos atendimentos; tempo possível dentro de
uma internação curta. Ao ser escutada, tece, com o emaranhado dos
glomérulos renais – aqueles vasos minúsculos que exercem a função de
filtração nos rins – os fios de sua própria história, juntando-os em um
novelo e escrevendo sua própria novela. Obrigado.

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