Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Marilena Chauí UFBA 2016
Marilena Chauí UFBA 2016
Abertura
Quando eu fiz 10 anos, minha mãe me deu este livro de presente, dizendo-me
que era um livro para quem é feito de peroba e não se dobra aos ventos e
tempestades. Deste livro, quero ler algumas estrofes de O navio negreiro.
Existe um povo que a bandeira empresta
P1ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Art.7 Nenhum homem pode ser acusado, preso, nem detido senão nos casos
determinados pela Lei e segundo as formas por ela prescritas. Os que solicitam,
expedem, executam ou fazem executar ordens arbitrárias devem ser punidos...
Art. 9 Todo homem é considerado inocente até que seja provado culpado;
caso se julgue indispensável prendê-lo, todo rigor que não seja necessário para a
vigilância de sua pessoa, deve ser severamente reprimido pela Lei.
2
1
A oposição entre instituição social e organização social como definição da universidade é proposta por
Michel Freitag, que acompanha várias das idéias da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, em Le
naufage de l’université. Aqui trabalharemos a partir dessa oposição feita por esse autor.
3
2
Nesses dois governos, foi ampliada a rede universidades públicas federais (programa REUNI), foi criado
o programa de bolsas de estudo universitário para jovens de famílias de baixa renda (PROUNI), e o
programas de cotas universitárias para estudantes negros e aqueles vindos das escolas públicas do
ensino secundário (ENEM), mudando a composição de classe social das universidades.
5
2. A universidade operacional
Como opera a universidade operacional?
Regida por contratos de gestão, avaliada por índices de produtividade,
calculada para ser flexível, a universidade operacional está estruturada por estratégias
e programas de eficácia organizacional e, portanto, pela particularidade e instabilidade
dos meios e dos objetivos. Definida e estruturada por normas e padrões
administrativos inteiramente alheios ao conhecimento e à formação intelectual, está
pulverizada em micro organizações que ininterruptamente ocupam seus docentes e
curvam seus estudantes a exigências exteriores ao trabalho do conhecimento. A
heteronímia da universidade é visível a olho nu: o aumento insano de horas-aula, a
diminuição do tempo para mestrados e doutorados, a avaliação pela quantidade de
publicações, colóquios e congressos, a multiplicação de comissões e relatórios, etc.
Voltada para seu próprio umbigo, mas sem saber onde este se encontra, a
universidade operacional opera e por isso mesmo não age. Não surpreende, então,
que esse operar co-opere para sua contínua desmoralização pública e degradação
interna.
Que se entende por docência e pesquisa, na universidade operacional,
produtiva e flexível?
A docência é entendida como transmissão rápida de conhecimentos,
consignados em manuais de fácil leitura para os estudantes, de preferência, ricos em
ilustrações e com duplicata em CDs ou diretamente virtuais, graças às tecnologias
eletrônicas. O recrutamento de professores é feito sem levar em consideração se
dominam ou não o campo de conhecimentos de sua disciplina e as relações entre ela e
outras afins -- o professor é contratado ou por ser um pesquisador promissor que se
dedica a algo muito especializado, ou porque, não tendo vocação para a pesquisa,
aceita ser escorchado e arrochado por contratos de trabalho temporários e precários,
ou melhor, “flexíveis”. A docência é pensada, em primeiro ligar, como habilitação rápida
para graduados, que precisam entrar rapidamente num mercado de trabalho do qual
6
serão expulsos em poucos anos, pois se tornam, em pouco tempo, jovens obsoletos e
descartáveis; e, em segundo lugar, como correia de transmissão entre pesquisadores e
o treinamento para novos de pesquisadores. A docência se reduz a transmissão e
adestramento. Desapareceu, portanto, sua marca essencial: a formação.
A desvalorização da docência teria significado a valorização excessiva da
pesquisa? Ora, o que é a pesquisa na universidade operacional?
À fragmentação econômica, social e política, imposta pela nova forma do
capitalismo, corresponde uma ideologia autonomeada pós-moderna. Essa
nomenclatura pretende marcar a ruptura com as idéias clássicas e ilustradas, que
fizeram a modernidade. Para essa ideologia, a razão, a verdade e a história são mitos
totalitários; o espaço e o tempo são sucessão efêmera e volátil de imagens velozes – o
espaço se reduz à compressão dos lugares e o tempo, à compressão de instantes sem
passado e sem futuro – ou seja, estamos imersos na irrealidade virtual, que apaga todo
contacto com o espaço-tempo enquanto estrutura do mundo; a subjetividade não é a
reflexão, mas a intimidade narcísica, e a objetividade não é o conhecimento do que é
exterior e diverso do sujeito, e sim um conjunto de estratégias montadas sobre jogos
de linguagem, que representam jogos de pensamento. A história do saber aparece
como troca periódica de jogos de linguagem e de pensamento, isto é, como invenção e
abandono de “paradigmas”, sem que o conhecimento jamais toque a própria realidade.
O que pode ser a pesquisa numa universidade operacional sob a ideologia pós-
moderna? O que há de ser a pesquisa quando razão, verdade, história são tidas por
mitos, espaço e tempo se tornaram a superfície achatada de sucessão de imagens,
pensamento e linguagem se tornaram jogos, constructos contingentes cujo valor é
apenas estratégico?
Numa organização, uma “pesquisa” é uma estratégia de intervenção e de
controle de meios ou instrumentos para a consecução de um objetivo delimitado. Em
outras palavras, uma “pesquisa” é um survey de problemas, dificuldades e obstáculos
para a realização do objetivo, e um cálculo de meios para soluções parciais e locais
para problemas e obstáculos locais. Pesquisa, ali, não é conhecimento de alguma
coisa, mas posse de instrumentos para intervir e controlar alguma coisa. Por isso
mesmo, numa organização não há tempo para a reflexão, a crítica, o exame de
conhecimentos instituídos, sua mudança ou sua superação. Numa organização, a
atividade cognitiva não tem como nem por que realizar-se. Em contrapartida, no jogo
estratégico da competição no mercado, a organização se mantém e se firma se for
7
relatórios obtidos não se distinguem de listas telefônicas e com menos utilidade do que
estas.
2. Com relação à especificidade da ação universitária: Qual é a especificidade
e o bem mais precioso da universidade? Ser uma instituição social constituída por
diferenças internas que correspondem às diferenças dos seus objetos de trabalho,
cada qual com uma lógica própria de docência e de pesquisa, ao contrário das
empresas que, por força da lógica do mercado, operam como entidades homogêneas
para as quais os mesmos padrões de avaliação podem ser empregados em toda a
parte: custo/benefício, quantidade e qualidade, velocidade da produção, velocidade da
informação, eficiência na distribuição de tarefas, organização da planta industrial,
modernização dos recursos de informação e conexão com o sistema mundial de
comunicação etc. No caso da universidade, além de os critérios não poderem ser os
mesmos da produção industrial e da prestação de serviços pós-industrial, a
peculiaridade e a riqueza da instituição estão justamente na ausência de
homogeneidade, pois os seus objetos de trabalho são diferentes e regidos por lógicas,
práticas e finalidades diferentes. As avaliações em curso abandonam essa
especificidade e, em lugar de valorizar a diferença e a heterogeneidade, as avaliações
as consideram um obstáculo e se propõem a produzir, de qualquer maneira, a
homogeneidade.
sociedade pode decidir seja pela continuidade seja pela descontinuidade das políticas,
isto é, de um projeto político ou de um conjunto de políticas públicas. A dimensão
humanística e científica da universidade, porém, só pode realizar-se se houver
continuidade dos projetos e programas de formação e pesquisa. A tensão entre as
duas dimensões pode ser superada na medida em que a universidade se engaje em
políticas de longo prazo que não estejam submetidas ao tempo descontínuo da política
estatal.
organizados).. Ela procura compensar essa falta de lugar exercendo um poder muito
preciso: o poder ideológico. Como sabemos, a classe média tem um sonho e um
pesadelo: sonha em se tornar burguesia e tem medo pânico de se proletarizar. Por
isso, atualmente, ela se torna o suporte social e político da ideologia neoliberal,
individualista e competitiva, que produz o encolhimento do espaço público dos direitos
e o alargamento do espaço privado dos interesses. A adoção e defesa dessa ideologia
leva a classe média a afirmar que se deve deixar por conta do mercado a definição das
prioridades de formação acadêmica e pesquisa. Essa posição anti-democrática
significa a defesa da universidade operacional e da privatização do saber, que entra
em choque com uma política de abertura e expansão da universidade como um espaço
social de criação e afirmação de direitos e de inclusão.
Eis porque acredito que nossa ação universitária como ação do saber e da
política deve ser o combate em todas as frentes contra a universidade operacional e a
ideologia conservadora que a sustenta. Esse combate é o que chamo de luta contra a
servidão voluntária.
Um jovem de 18 anos, chamado Etienne de La Boétie, escreveu no século
XVI um ensaio conhecido como Discurso sobre a servidão voluntária. A servidão
voluntária, escreve La Boétie, é um enigma, pois submeter-se é algo que não pode
realizar por um ato voluntário de liberdade. Como seres livres podem voluntariamente
desejar servir? Por que nos submetemos voluntariamente à tirania?
Responde La Boétie: consentimos em servir porque esperamos ser servidos.
Servimos aos tiranos porque somos tiranetes: cada um serve ao poder tirânico porque
deseja ser servido pelos demais que lhe estão abaixo; cada um dá os bens e a vida
pelo poder tirânico porque deseja apossar-se dos bens e das vidas dos que lhe estão
abaixo. A servidão é voluntária porque há desejo de servir, há desejo de servir porque
há desejo de poder e há desejo de poder porque a tirania habita cada um de nós e
institui uma sociedade tirânica. Haver tirano significa que há sociedade tirânica. Nada
mais verdadeiro do que a adesão ideológica da classe dominante e da classe média à
universidade operacional.
No entanto, La Boétie prossegue e indaga, onde, afinal, se encontra a força do
tirano? E responde: a força do tirano não está onde imaginamos encontrá-la: não está
nas fortalezas que o cercam nem nas armas que o protegem. Pelo contrário, se precisa
de fortalezas e armas, se teme a rua e o palácio, é porque se sente ameaçado e
precisa exibir signos de força que ocultem os signos verdadeiros do poder.
15
Fisicamente, um tirano é um homem como outro qualquer – tem dois olhos, duas
mãos, uma boca, dois pés, dois ouvidos; moralmente, é um covarde, prova disso
estando na exibição dos signos de força. Se assim é, de onde vem seu poder, tão
grande que ninguém pensa em dar fim à tirania? Seu poder vem da ampliação colossal
de seu corpo físico por seu corpo político, provido de mil olhos e mil ouvidos para
espionar, mil mãos para espoliar e esganar, mil pés para esmagar e pisotear. O corpo
físico não é ampliado apenas pelo corpo político como corpo de um colosso, também
sua alma ou sua moral são ampliadas pelo corpo político, que lhe dá as leis com as
quais distribui favores e privilégios, seduz os incautos para que vivam à sua volta para
satisfazê-lo a todo instante e a qualquer custo. A pergunta que nos cabe fazer é: quem
lhe dá esse corpo político gigantesco, ubíquo, sedutor e malévolo? A resposta é
imediata: somos nós quem lhe damos nossas mãos, nossos pés, nossos ouvidos,
nossas bocas, nossos bens e nossos filhos, nossas almas, nossa honra, nosso sangue
e nossas vidas para alimentá-lo, para aumentar-lhe o poder com que nos destrói.
Indaga La Boétie: se, por algum infortúnio, um tirano galgou o poder e ali se
mantém, como derrubá-lo e reconquistar a liberdade? E responde: não lhe dando o
que nos pede. Se não lhe dermos nossos corpos e nossas almas, ele cairá. Basta não
querer servi-lo, e ele tombará.
Por isso, neste 14 de julho, em nossa luta contra a servidão voluntária à tirania
da universidade operacional quero concluir com os versos de Castro de Alves:
Por isso na impaciência
Desta sede de saber,
Como as aves do deserto
As almas buscam beber...
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia
E manda o povo pensar!
O livro caindo n’alma
É germe – que faz a palma
É chuva – que faz o mar.