Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
net/publication/336135396
CITATIONS READS
0 111
1 author:
SEE PROFILE
Some of the authors of this publication are also working on these related projects:
All content following this page was uploaded by Antonio Dias de Figueiredo on 30 September 2019.
Competências digitais
Quando se parte do domínio das competências de nova geração para o das competências
digitais, a confusão adensa-se. Talvez pela influência predominante do pensamento
cartesiano, existe nas culturas ocidentais uma tendência irresistível para acentuar as
separações em vez de valorizar as conciliações (Nonaka & Takeuchi, 1995). Por isso,
quando se fala do digital, surge de imediato o desejo de excluir o analógico, em vez de
o enriquecer com o digital e tirar partido das propriedades que não existem em nenhum
deles, mas que emergem da sua conciliação sistémica.
Esta separação atinge as raias do ridículo em alguns quadros de referência de
competências digitais, como o DigComp (JRC, 2017), da União Europeia, onde se
recomenda a formação em “comunicação e colaboração digitais”, acentuando o
qualificativo “digitais”, como se fosse possível comunicar e colaborar digitalmente, com
qualidade e rigor, sem cultivar as competências comunicacionais superiores não-digitais
que tornam a comunicação humana tão poderosa e que tanta falta fazem nas gerações
dos nossos dias. Como se fosse possível permanecer acriticamente no digital, ignorando
as funções adaptativas e metacognitivas da comunicação, a construção e clarificação
dos sentidos, a gestão das ambiguidades, a invenção exploratória de heurísticas, os
protocolos de intercâmbio, as reconstruções imprevistas de fluxos!
Esta compartimentação forçada, esta preferência obsessiva pelo digital, com exclusão
de todo o resto, domina várias das definições de competências digitais e vários quadros
de referência de competências digitais. No caso do DigComp, são paradigmáticas
expressões como: “interagir através de tecnologias digitais”, “partilhar usando
tecnologias digitais”, “exercer cidadania através de tecnologias digitais”, “colaborar
através de tecnologias digitais”, “desenvolver conteúdos digitais”, “integrar e reelaborar
conteúdos digitais”, “usar criativamente as tecnologias digitais”. Terá algum sentido
empobrecer essas expressões com o qualificativo “digital”, que as amputa da sua riqueza
e plenitude? Por que não “interagir”, “partilhar”, “exercer cidadania”, “colaborar”,
“desenvolver conteúdos”, “integrar e reelaborar conteúdos”, “usar a criatividade”
recorrendo a todos os meios sociais e tecnológicos, incluindo, bem entendido, os
digitais?
Outra limitação de muitos dos atuais quadros de referência de competências digitais,
incluindo o referencial DigComp, é que privilegiam visões tecnicistas que ignoram as
dimensões humana e social, abordando o digital como uma realidade essencialmente
instrumental. Ora, tal como os nossos antepassados pré-históricos se mantiveram
primitivos enquanto se limitaram a usar as tecnologias como instrumentos para
atingirem fins restritos, sem as interiorizarem culturalmente (o que só aconteceu com a
invenção cultural da agricultura), também os profissionais dos nossos dias se manterão
primitivos enquanto não interiorizarem culturalmente o digital. O digital é hoje um
fenómeno predominantemente cultural, político e ético, muito para além da função
meramente instrumental que muitos dos quadros de referência lhe atribuem.
Nesse sentido, vale a pena prestar atenção ao referencial de competências digitais
proposto por Frau-Meigs (2017), que fala em três culturas da informação – info-media
(competências editoriais e críticas, informação e comunicação), info-doc (competências
organizacionais, documentação) e info-data (competências operatórias, codificação,
programação) – e que, numa perspetiva sistémica, explora as transliteracias que unem
e reforçam essas culturas fazendo-as convergir numa cultura total. Outro referencial
interessante é o proposto por Skov (2017) em ligação com a Digital Competency Wheel
(Skov, n.d.), uma ferramenta online para a avaliação de competências digitais. O modelo
de Skov distingue quatro áreas de intervenção cultural (família e amigos, cidadania
digital, consumo digital, trabalho digital) e quatro áreas que prolongam para o digital as
competências de cada um (informação digital, comunicação digital, produção digital,
segurança digital).
Em síntese
Como síntese do que acima ficou dito, importa realçar alguns aspetos centrais das
competências digitais, que são pouco enfatizados na literatura:
1. Não se devem confundir competências com conhecimentos. Ambos são
necessários, em situações distintas. A atual popularidade da formação para as
competências digitais não reduz em nada a importância da formação para
conhecimentos digitais. Pelo contrário, competências e conhecimentos digitais
fortalecem-se mutuamente.
2. As competências digitais não são separáveis das competências não-digitais:
constroem-se sobre elas, reforçam-nas e são reforçadas por elas.
3. As competências digitais não são meras competências instrumentais para atingir
fins específicos. São competências culturais complexas, transversais e
multidimensionais, essenciais para assegurar uma pertença madura, ativa, crítica
e emancipada aos tempos em que vivemos.
4. O desenvolvimento de competências digitais não se obtém frequentando
disciplinas, como quando se pretende adquirir conhecimentos, mas sim
participando em práticas sociais complexas que permitam fazer emergir e
consolidar essas competências.
5. A identificação e seleção das práticas a usar para o desenvolvimento das
competências digitais obriga à clarificação dos relacionamentos dialéticos entre
pedagogias, modelos de aprendizagem e práticas sociais.
REFERÊNCIAS
Delors, J. (1998). Learning to Be: The treasure within. Paris: UNESCO.
Faure, E., Herrera, F., & Kaddoura, A.-R. (Eds.) (1975). Learning to be: the World of
Education Today and Tomorrow. Paris: UNESCO.
Figueiredo, A. D. (2019). Centralidade da Educação Face aos Desafios do Futuro.
Conferência A Educação e os Desafios do Futuro, Conselho Nacional de Educação.
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa [slides].
https://www.slideshare.net/adfigueiredoPT/centralidade-da-educao-face-aos-
desafios-do-futuro
View publication stats