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INTRODUÇÃO

Na apostila História das Relações Étnico-raciais no Brasil, nosso


principal objetivo é examinar, criticamente, as relações étnico-raciais em
nosso país. Para tanto, analisaremos o processo histórico das relações
raciais, as práticas de miscigenação e discriminação raciais ao longo da
história brasileira, e as trajetórias de importantes personagens dessa história
que foram silenciados. Além disso, estabeleceremos relações entre a
situação atual das questões étnico-raciais no Brasil e o longo debate
envolvendo tais questões. Sob esse foco, esta apostila foi estruturada em
quatro módulos.
No módulo I, conheceremos aspectos gerais das sociedades
indígenas que existiam no Brasil antes de 1500. Em sequência,
compreenderemos parte dos impactos gerados pelo contato entre
sociedades indígenas e portugueses no período colonial, e analisaremos as
razões e os impactos do estabelecimento da servidão indígena e da
escravidão negra nesse período. Além disso, identificaremos práticas de
miscigenação raciais e compreenderemos sua inserção no contexto mais
amplo da colonização, entendendo, dessa forma, como a miscigenação
racial e a resistência social foram articuladas durante esse período.
No módulo II, examinaremos os debates constitucionais do século
XIX no que diz respeito ao lugar reservado para escravos e indígenas.
Analisaremos também como a problemática da mestiçagem foi tratada
durante a formação do Estado nacional brasileiro, identificando
personagens e movimentos sociais que foram tomados como vilões ou
heróis nacionais à época. Por fim, conheceremos pautas e movimentos
populares que reivindicavam a ampliação do conceito de cidadania, e
mostraremos como os debates e as ações abolicionistas dialogaram com o
fim da escravidão no Brasil Império.
No módulo III, analisaremos como a Primeira República lidou,
juridicamente, com a nova categoria de cidadãos que surgiu por conta de
uma sociedade sem escravidão. Identificaremos, ainda, quais foram os
principais intelectuais brasileiros que articularam a mestiçagem com a nova
conjuntura brasileira da Primeira República, examinando, de maneira
crítica, as formulações intelectuais e sociais que levaram à formação do
mito da democracia racial no Brasil. Para encerrar esse módulo,
conheceremos alguns movimentos sociais e práticas culturais que foram
ressignificados a partir da década de 1920, viabilizando o desenvolvimento
de um novo olhar sobre a questão da mestiçagem e do mestiço no Brasil.
No módulo IV, conheceremos as diferentes políticas econômicas que viabilizaram a
inserção de negros, mestiços e indígenas brasileiros na sociedade de classes. Para tanto,
examinaremos movimentos sociais protagonizados por negros e indígenas que pleiteavam maior
participação política e melhorias sociais no Brasil do século XX. Em sequência, identificaremos
parte das heranças culturais deixadas por negros, mestiços e indígenas, e as articularemos com a
construção de determinada ideia de brasilidade. Por fim, analisaremos como se construiu parte da
memória e da história das relações étnico-raciais no Brasil, privilegiando as falas de lideranças de
movimentos sociais que lutaram pelo fim da desigualdade racial no País.
SUMÁRIO
QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS NO PERÍODO COLONIAL ....................................................................... 7
PRESENÇA INDÍGENA NA TERRA BRASILIS: DIVERSIDADE, HISTÓRIA E SOCIEDADE INDÍGENA ..... 7
A pré-história brasileira ............................................................................................................... 8
Índios de Pindorama .................................................................................................................... 9
Características do grupo tupi-guarani .......................................................................................... 10
Características do grupo tapuia ..................................................................................................... 12
OS “NEGROS DA TERRA” E DE FORA DELA: A MONTAGEM DO SISTEMA COLONIAL .............. 14
Índios: o contato com os portugueses .................................................................................... 14
De bom selvagem a gente bravia: o olhar português sobre o índio...................................... 15
Trocas comerciais: o extrativismo do pau-brasil e a exploração indígena ........................... 16
Papel da Igreja .................................................................................................................................... 17
A opção pelos africanos escravizados ..................................................................................... 18
Escravidão doméstica ....................................................................................................................... 18
Rotas comerciais ................................................................................................................................ 19
Comércio de escravos africanos .................................................................................................... 20
Etapas da travessia de africanos escravizados para o Brasil ................................................... 24
A chegada ao Brasil ........................................................................................................................... 25
SERVIDÃO INDÍGENA E ESCRAVIDÃO AFRICANA: DINÂMICAS DE EXPLORAÇÃO E
RESISTÊNCIA NA AMÉRICA COLONIAL........................................................................................... 26
A servidão indígena .................................................................................................................... 27
Missionários versus bandeirantes .................................................................................................. 28
A escravidão africana e os escravos negros ........................................................................... 30
Produção de açúcar .......................................................................................................................... 30
Demais atividades exercidas por escravos negros .................................................................... 33
Algumas formas de resistências ............................................................................................... 35
Fuga ...................................................................................................................................................... 35
Criação de quilombos ....................................................................................................................... 36
Revoltas................................................................................................................................................ 36
MESTIÇAGEM: O MOSAICO ÉTNICO DA AMÉRICA PORTUGUESA E A CRIAÇÃO DE NOVAS
PRÁTICAS CULTURAIS NAS AMÉRICAS........................................................................................... 37
Índios e Santidade ...................................................................................................................... 39
As irmandades negras: miscigenação e resistência .............................................................. 40

BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................................... 44

PROFESSORA-AUTORA ........................................................................................................................ 51
QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS NO PERÍODO
COLONIAL

Neste módulo, conheceremos aspectos gerais das sociedades indígenas que existiam no
Brasil antes de 1500. Em sequência, compreenderemos parte dos impactos gerados pelo contato
entre sociedades indígenas e portugueses no período colonial, e analisaremos as razões e os
impactos do estabelecimento da servidão indígena e da escravidão negra nesse período. Além
disso, identificaremos práticas de miscigenação raciais e compreenderemos sua inserção no
contexto mais amplo da colonização, entendendo, dessa forma, como a miscigenação racial e a
resistência social foram articuladas durante esse período.

Presença indígena na terra brasilis: diversidade, história e


sociedade indígena
Pindorama foi o primeiro nome dado às terras que hoje chamamos de Brasil. Palavra de
origem tupi-guarani, que significa “terra das palmeiras”, ela era usada pelos povos de origem
ando-peruana para se referir ao extenso território ocupado por diferentes sociedades indígenas
Tupi-Guarani. Tais sociedades indígenas acreditavam viver em uma terra “livre de todos os
males”, até a sua invasão no ano de 1500.
O caráter mítico de Pindorama parece ter sido elaborado já nos séculos XVI e XVII,
quando a colonização e a exploração das populações indígenas eram uma realidade cotidiana para
os povos que viviam entre tantos tipos de palmeiras. No entanto, a história dos povos que
originaram os Ticuna, Karajá, Krahó, Patasó, Krenak, entre outras tantas sociedades indígenas, é
muito mais extensa e complexa do que se possa imaginar. Entender parte dessa história é também
compreender aspectos importantes do país que hoje chamamos de Brasil.
A pré-história brasileira
Durante muitos anos, as histórias e trajetórias das sociedades indígenas já existentes no
Brasil antes da chegada dos portugueses foram relegadas a segundo plano pelos historiadores. A
justificativa dessa omissão era a de que a ausência de escrita em praticamente todas as sociedades
indígenas que habitavam as terras brasileiras parecia inviabilizar uma compreensão sistêmica do
passado indígena. Apesar de essa postura estar mudando atualmente, sabemos que ela está muito
mais relacionada aos debates metodológicos e teóricos da História do que às características
específicas das sociedades indígenas. De qualquer modo, é fato que a ausência da escrita fez com
que, durante muitos anos, o estudo do passado dos povos indígenas fosse uma tarefa
desempenhada apenas por antropólogos, arqueólogos e linguistas. Sem dúvida alguma, os
trabalhos desenvolvidos nessas três áreas de conhecimento foram fundamentais para a
sistematização de boa parte do conhecimento atual que se tem sobre as diferentes histórias dos
índios no Brasil. Para que possamos conhecer parte desse universo, é interessante recuarmos no
tempo e buscarmos as origens mais antigas dos homens e das mulheres que viviam em Pindorama.
De acordo com uma série de estudos arqueológicos, as histórias e a diversidade das
populações indígenas são consequências diretas do processo de povoamento das terras da América
do Sul. Existem duas teorias mais difundidas e comprovadas (por meio de vestígios arqueológicos)
a respeito da chegada da humanidade no continente americano. Vejamos:

a) Teoria do Estreito de Bering:


Proposta, inicialmente, no ano de 1590 d.C., por José Acosta, tal hipótese passou a ser
aceita em 1930, quando foram encontrados, em escavações arqueológicas, nas proximidades da
cidade de Clóvis (Novo México) – EUA, artefatos de mesmo tipo dos anteriormente descobertos
na região da Beríngia.
Segundo os especialistas que defendem essa teoria, durante a última glaciação (entre 50 e 12
mil anos atrás), a concentração de gelo nos continentes fez descer o nível dos oceanos em pelo
menos 120 metros. Essa descida provocou o aparecimento de diversas conexões terrestres entre
vários pontos do planeta, como entre Austrália-Tasmânia e Nova Guiné, e entre Japão e Coreia.
Segundo os vestígios encontrados, essa ocupação ocorreu há 12 mil anos, mas descobertas mais
recentes indicam que a travessia pode ter ocorrido há 40 ou 50 mil anos.

b) Teoria migratória:
A segunda teoria não exclui a primeira, mas defende que diversas tribos da Polinésia teriam
utilizado canoas primitivas e, em uma longa viagem de ilha em ilha, rumo ao leste, teriam
chegado à América do Sul. O principal defensor dessa teoria, apresentada pela primeira vez em
1943, foi o antropólogo francês Paul Rivet. A migração defendida por Rivet seria responsável pela
presença de centenas de artefatos de pedra e restos de alimentos mais antigos que as lascas de

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Clovis na região de Monte Verde (atual Chile). De fato, essa região reúne um vasto tesouro da
arqueologia americana. Lá foram encontrados ossos de animais, fundações de casas de madeira,
plantas comestíveis, além de diferentes plantas medicinais.
Já o antropólogo e arqueólogo brasileiro Walter Neves defende a tese de que as diversas
ondas migratórias para as Américas teriam ocorrido em momentos distintos e sido realizadas por
povos oriundos da Ásia e da Oceania.
No entanto, a polêmica sobre a chegada da humanidade nas Américas aumentou a partir dos
estudos coordenados por Niede Guidon na Serra da Capivara (Piauí, Brasil). Tais estudos apontaram
a presença humana na região há mais de 48 mil anos, o que remeteria a uma onda migratória via
Oceano Pacífico entre 80 e 70 mil anos atrás. De acordo com esses estudos, o Parque da Serra da
Capivara guardaria os vestígios mais antigos da presença humana no Novo Mundo.
Em que pese a polêmica sobre o tema – que aponta para a necessidade de estudos conjuntos
e comparados dos diferentes sítios arqueológicos americanos –, atualmente não restam dúvidas
sobre a origem diversa da presença humana nas Américas.
Em um esforço de sintetizar os aspectos mais relevantes das histórias dos índios no Brasil,
Melatti (2007) faz uso de diferentes estudos arqueológicos para explicar como as primeiras ondas
migratórias desembocaram na ocupação do atual território brasileiro. De acordo com a autora, os
primeiros habitantes teriam chegado às terras brasileiras no Pleistoceno (2,5 milhões a 11,5 mil
anos atrás), como demonstram os vestígios encontrados na Toca do Boqueirão e no Sítio da Pedra
Furada, no sudeste do Piauí. É justamente do final desse período que data o crânio mais antigo
das Américas, que recebeu o nome de Luzia.
Em seguida, no período Holoceno (que data de 11,5 mil anos até o presente), os grupos
humanos que viviam nessa parte da América começaram a desenvolver uma série de técnicas,
como a cerâmica, cujos indícios mais antigos foram encontrados em Taperinha, no atual Pará, e
datam de 5 mil a 4 mil a.C.
Os registros mais antigos da arte rupestre variam de 10 a 4 mil a.C. e estão localizados no
estado do Piauí. A presença dessa arte em diferentes pontos do atual Brasil e suas diferentes
datações apontam para a diversidade da ocupação humana nesse território. Tal diversidade,
constitutiva da forma por meio da qual a humanidade chegou e habitou o continente americano,
teve reflexos nas diversas sociedades indígenas que habitavam as terras de Pindorama.

Índios de Pindorama
As sociedades indígenas que habitavam Pindorama eram muito mais diversas do que os
portugueses supunham. Estudos que integram trabalhos etnográficos feitos por antropólogos
brasileiros e pesquisas historiográficas realizadas a partir do exame crítico dos registros deixados
por portugueses e colonos que viveram no Brasil entre os séculos XVI e XVIII permitem traçar

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alguns panoramas sobre os modos de vida dos grupos indígenas do momento que antecedeu a
chegada de Pedro Álvarez Cabral até as primeiras décadas de contato entre índios e europeus.
Os povos indígenas brasileiros estão organizados em dois grandes grupos: 1
 grupo tupi-guarani – assim conhecido graças às semelhanças linguísticas observadas, esse
grupo abarcava uma série de sociedades que vivia na extensa região litorânea entre São
Vicente (no sul) e Maranhão;
 grupo tapuia – esse grupo foi caracterizado pela palavra tupi “tapuia”, que significa os
“fugidos da aldeia” ou “aqueles de língua enrolada”.

Características do grupo tupi-guarani


Tupinaê, tupiniquins, tupinambás e guaranis são exemplos de alguns povos indígenas que
viviam nas terras que hoje chamamos de Brasil. Milhares de povos que viviam na faixa litorânea
entre São Vicente (atual região Sudeste) e Maranhão guardavam semelhanças linguistas (e, por
vezes, culturais) significativas.
Entre essa variada gama de povos e culturas (muitas delas rapidamente dizimadas com a
chegada dos portugueses), os tupinambás compunham a sociedade mais estudada e conhecida,
graças a seu intenso contato com os portugueses durante os séculos XVI e XVII.
Em trabalho sobre a produção de açúcar nos primeiros anos da colonização, Stuart
Schwartz (1992) pontuou alguns aspectos culturais desses índios. A seguir, veremos cada um
desses aspectos:

a) Estrutura familiar:
Segundo Schwartz, os tupinambás viviam em aldeias que possuíam entre quatrocentos e
oitocentos indivíduos. Como acontecia com outros povos de origem tupi, as aldeias tupinambás
estava dividias em unidades familiares. Todavia, a concepção de família desses índios era muito
diferente da concepção conhecida, historicamente, pelo Ocidente.
A família tupinambá era uma família extensa cujos irmãos, filhos, sobrinhos e tios
conviviam intensamente. Dessa forma, era comum que as unidades familiares organizassem sua
morada em um número determinado de malocas (nome dados à estrutura habitacional dos
tupinambás), que, geralmente, variava entre 7 e 8 por família.

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Embora essa taxonomia tenha sido criada a partir do olhar dos primeiros portugueses que estiveram em terras
brasileiras, parte do critério por eles utilizado revela algumas distinções significativas entre as matrizes socioculturais das
sociedades indígenas. Tais distinções foram reforçadas (sem tantos estereótipos) por estudos mais recentes e menos
estigmatizados desses povos.

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b) Divisão social do trabalho:
Organizada pelas relações de parentesco, frequentemente, era a combinação entre a
identidade de gênero e a faixa-etária que determinava a divisão social do trabalho. Dito de outra
forma, as famílias tupinambás, geralmente, organizavam-se por meio da lógica da seguinte divisão
do trabalho:
 às mulheres cabia o cuidado com o mundo doméstico, ou seja, tudo aquilo que estava
atrelado à subsistência básica da família, como o cuidado com os filhos menores e a
atividade da agricultura;
 já aos homens cabia a responsabilidade pelas atividades que ultrapassavam o mundo
doméstico stritu senso, como a caça, a pesca e, principalmente, a guerra.

c) Agricultura:
As sociedades indígenas desenvolveram diferentes técnicas para praticar a agricultura. Os
tupinambás, por exemplo, praticavam a coivara, uma técnica que consistia na abertura de clareiras
em determinadas áreas da floresta por meio de queimadas. As cinzas resultantes desse processo
eram utilizadas como fertilizantes do solo, que, em seguida, era semeado pelas mulheres da aldeia.
Entre os gêneros cultivados destacavam-se o feijão, o milho, a abóbora, algumas frutas e,
principalmente, a mandioca (também conhecida como aipim ou macaxeira), base da alimentação
tupinambá e, mais tarde, de toda a colônia. A mandioca também era a base para a produção de
uma bebida que tinha funções ritualísticas e religiosas para os tupinambás: o cauim.

d) Guerras e rituais:
Ao visitar a região do atual Rio de Janeiro, em meados do século XVI, o missionário francês
Jean de Lery observou que

[...] enquanto dura a cauinagem os nossos brejeiros americanos, para


melhor esquentar o cérebro, cantam, assobiam e se incitam uns aos
outros a portarem-se valentemente e a fazerem muitos prisioneiros na
guerra; enfileiram-se, como grous, e não cessam de dançar, de entrar e
sair da casa em que se reúnem, até que tudo se conclua, isto é, que se
tenha esgotado toda a bebida (LERY, 1961, p. 108).

Embora repleto de preconceitos em relação aos costumes tupinambás, Jean de Lery


conseguiu entender a importância que o cauim exercia em algumas práticas festivas, bem como a
relação existente entre essas festividades e a atividade da guerra – relação essa um tanto estranha ao
olhar do europeu. Essa estranheza atribuída pelo missionário francês só pode ser entendida a
partir de um exame mais cuidadoso da ideia de guerra para os tupinambás. De modo geral, é
possível afirmar que a guerra tinha funções econômicas e simbólicas para esse povo. Em primeiro

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lugar, porque, quando exitosa, a guerra viabilizava a obtenção de prisioneiros (cativos) bem como
a ampliação territorial. Além disso, era comum que os jovens guerreiros tivessem de passar por
uma espécie de iniciação antes de casarem. Tal iniciação consistia, justamente, na captura de um
prisioneiro de guerra, que seria oferecido em sacrifícios.
Os sacrifícios, presentes em diferentes sociedades humanas ao longo da história, também
foram tema de horror e de criação de estereótipos por parte dos europeus. Ao descrever o destino
dado aos prisioneiros de guerra, o francês Jean de Lery notou o seguinte:

Logo depois de chegarem são não somente bem alimentados mas ainda
lhes concedem mulheres (mas não maridos às prisioneiras), não hesitando
os vencedores em oferecer a própria filha ou irmã em casamento. Tratam
bem o prisioneiro e satisfazem-lhe todas as necessidades. Não marcam
antecipadamente o dia do sacrifício; se os reconhecem como bons
caçadores e pescadores e consideram as mulheres boas para tratar das
roças ou apanhar ostras conservam-nos durante certo tempo; depois de os
engordarem matam-nos afinal e os devoram em obediência ao seguinte
cerimonial (LERY, op. cit., p. 154).

O canibalismo indígena chamou a atenção de outros europeus que estiveram em contato com
os índios no começo do século XVI. Ao descrever a prática do canibalismo, Hans Staden (1930, pp.
156-157,) chamou a atenção para o seguinte fato sobre os tupinambás: "Não o fazem por fome,
mas por ódio e inveja, e, quando combatem na guerra, gritam um para o outro: para vingar a morte
de meus amigos, estou aqui; tua carne será hoje, antes que o sol entre, meu assado."
Estudos antropológicos têm mostrado que os significados do canibalismo praticados por
algumas sociedades indígenas passaram ao largo da ideia de barbárie difundida por europeus.
Baseado na cosmogonia tupinambá, o canibalismo era um ritual antropofágico em que o inimigo
prisioneiro de guerra era (depois de uma iniciação) morto pela sociedade vitoriosa e tinha suas
partes distribuídas entre os indivíduos do grupo vencedor. Como sugerido pela leitura crítica da
formulação de Staden, o objetivo dos sacrifícios humanos era o de alimentar-se, simbolicamente,
das características do oponente.

Características do grupo tapuia


Ainda que a maior parte dos documentos encontrados e dos estudos feitos sobre as
sociedades indígenas que entraram em contato com os portugueses (e outros europeus) privilegie
o estudo das dinâmicas dos tupis-guaranis, é possível encontrarmos em estudos alguns aspectos de
índios que pertenciam a outro tronco linguístico: os tapuias.

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Os tapuias foram organizados como grupo indígena muito mais por suas características
discrepantes dos tupis-guaranis do que por características culturais semelhantes. Isso faz com que
seja muito difícil traçar um panorama mais amplo dessa grande variedade de povos indígenas sem
incorrer em generalizações homogeneizantes dessas sociedades.
Ao falar especificamente dos aimorés, também conhecidos como botocudos (que, por não
serem tupis-guaranis, eram classificados como tapuias automaticamente), Gabriel Soares de Souza
(1587), um português que esteve o Brasil no final do século XVI, afirmou o seguinte:

Descendem estes aimorés de outros gentios a que chamam tapuias, dos


quais nos tempos de atrás se ausentaram certos casais, e foram-se para
umas serras mui ásperas, fugindo a um desbarate, em que os puseram
seus contrários, onde residiram muitos anos sem verem outra gente; e os
que destes descenderam, vieram a perder a linguagem e fizeram outra
nova que se não entende de nenhuma outra nação do gentio de todo este
Estado do Brasil (SOUZA, 1587, p.78-79).

Embora seja impossível criar um perfil dos índios tapuias – devido, justamente, ao fato de a
sua pluralidade étnica não ter sido representada pela organização taxonômica implementada pelos
portugueses no século XVI –, é fundamental pontuar que esses povos, assim como aqueles que
compunham as sociedades tupis-guaranis, tiveram seus costumes e histórias radicalmente
alterados a partir do contato com os portugueses e da sistematização da empresa colonial.

O holocausto que assolou a população indígena a partir de


1500 não respeitou as idiossincrasias dos milhares de grupos
étnicos que compunham as terras brasileiras à época.

De acordo com os dados do IBGE, no início do século XVI, as populações indígenas do


Brasil (que ainda não existia como tal) giravam em torno de 2 milhões. Em 1998, esse número
mal chegava a 300 mil. As razões de tamanha mortandade e as diferentes formas que as diversas
sociedades indígenas encontraram para sobreviver nesses últimos quinhentos anos serão algumas
das questões trabalhadas mais adiante.

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Os “negros da terra” e de fora dela: a montagem do
sistema colonial
“Os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho,
porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e
aumentar a fazenda, nem ter engenho corrente” (ANTONIL,
1982, p. 89).

Proferida nos primeiros anos do século XVIII, a frase do Padre Antonil transformou-se em
uma espécie de jargão sobre o uso da mão de obra no período colonial brasileiro. Embora estivesse
tratando, exclusivamente, do universo açucareiro – Antonil versava sobre a relação entre escravo e
senhor de engenho –, a máxima está longe de ter sido um exagero.
Diversos estudos historiográficos demonstram que a América portuguesa se formou a partir
da mão de obra escrava, tornando-se dependente dessas mãos e desses pés para funcionar. Não
seria exagero algum afirmar que a montagem do sistema colonial não pode se dissociar da escolha
dos colonos (com aval e respaldo da Metrópole portuguesa e da Igreja católica) pelo uso sistêmico
de cativos. Exemplo disso está, justamente, nos diferentes usos e atividades executados por esses
homens e mulheres que viveram sob o julgo da escravidão, bem como na diversidade que marcou
a origem dos escravos da América Portuguesa. Compreender quem eram esses escravos e como
eles se transformaram na engrenagem axial do sistema colonial é o objetivo desta unidade.

Índios: o contato com os portugueses


A chegada dos portugueses nas terras que viriam a batizar como Brasil trouxe mudanças
profundas e violentas para a vida de homens e mulheres que ali viviam. A partir de ano de 1500,
milhares de sociedades autóctones – organizadas de formas distintas, com línguas e costumes
próprios – passaram a ser conhecidas apenas como “tribos indígenas”.
Embora os portugueses tenham reconhecido, rapidamente, a diferença entre os grupos que
moravam na região litorânea e os que habitavam os chamados sertões, criando uma falsa
dicotomia entre os tupis (litoral) e os tapuias (interior), o índio transformou-se em uma categoria
jurídica que, definida a partir de aspectos exteriores a sua cultura, foi acionada das mais diferentes
formas com o objetivo de fazer valer os interesses coloniais.

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Saiba mais

A criação da categoria indígena não foi uma particularidade do mundo lusitano nas Américas.
Acreditando ter chegado em uma das ilhas próximas ao Japão, em 12 de outubro de 1492,
Cristóvão Colombo aportou naquilo que ele imaginou ser parte das Índias. Os habitantes,
homens e mulheres nus, de pele encarnada e cabelos lisos, seriam os habitantes das Índias e,
por isso, foram chamados de índios.

Embora o engano de Colombo tenha sido rapidamente descoberto, o nome dado a todos os
habitantes das Américas – independentemente de quem os tenha colonizado – continuou
sendo o mesmo. A manutenção desse erro diz muito sobre como as nações europeias lidaram
com os grupos autóctones do continente, deixando sempre muito evidente que as questões
indígenas faziam parte daquilo que Tzevan Todorov (1982) chamou de “descoberta do outro”.

De bom selvagem a gente bravia: o olhar português sobre o índio


Os relatos deixados pelos primeiros viajantes portugueses que aportaram naquelas que
viriam a ser chamadas de terras brasileiras não deixam dúvidas quanto à estranheza causada pelas
sociedades indígenas aos olhos dos europeus. Exemplo disso é a famosa Carta de Pero Vaz de
Caminha, que muito mais se assemelha a um diário, escrito em 1500, assim que os portugueses
aportaram nas Américas.
Segundo Manuela Carneiro da Cunha (2012), uma análise crítica desse documento
permite-nos compreender a descoberta progressiva que os portugueses fizeram dos grupos
indígenas com que entraram em contato ainda em 1500. A nudez dos índios (sobretudo, das
índias), que chocou Caminha em um primeiro momento, gerou descrições detalhadas, feitas em
relatos que, ao mesmo tempo, tinham forte carga sexual e também expunham aquilo que os
lusitanos consideravam parte da inocência indígena.
Todavia, como alerta Carneiro da Cunha (op.cit), tal inocência indígena atribuída pelo
olhar europeu acabou por se transformar em uma simpatia “cega”, responsável por fazer com que
os primeiros europeus que estiveram nas Américas enxergassem muito mais aquilo que eles
queriam ver do que, necessariamente, a realidade observada.

A dificuldade em compreender o outro foi responsável pela


criação de estereótipos que até hoje pautam as questões e
políticas indígenas no Brasil.

A simpatia descrita por Caminha fez com que o português definisse os índios como gente
montesa, bravia e selvagem, organizada em sociedades que, de acordo com Cristóvão Colombo,
pareciam não ter lei nem rei e, muito menos, fé.

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Em 1501, Américo Vespúcio não viu com bons olhos aquilo que Pero Vaz de Caminha
considerou o “bom selvagem”. Para ele, a nudez indígena era muito mais antropofágica do que
inocente. Desse modo, a “boa selvageria” logo deu lugar à irracionalidade de todos aqueles
homens e mulheres que, segundo Américo Vespúcio, entravam em guerra por motivos banais e
desconheciam o significado da propriedade privada. Os índios passaram então a ser vistos como
uma gente bravia, que parecia pouco afeita ao trabalho e aos desígnios de Deus.

Trocas comerciais: o extrativismo do pau-brasil e a exploração indígena


Como vimos, durante os primeiros cinquenta anos do século XVI, o contato entre
portugueses e sociedades indígenas foi marcado por uma estranheza de múltiplos sentidos e
significados. Nesse período, alguns poucos gentios foram levados à Corte do Bem-Aventurado D.
Manuel I – Rei português que incentivou e patrocinou as viagens responsáveis pela descoberta da
rota para as Índias e pela chegada lusa às Américas – como símbolo das conquistas do monarca
lusitano nesse mundo exótico que se apresentava.
Também nesse período, tiveram início as primeiras trocas comerciais entre portugueses e
autóctones, fazendo do pau-brasil o primeiro produto do Novo Mundo a chegar a terras lusitanas
em grande quantidade.
À medida que a demanda por pau-brasil aumentava, a relação entre portugueses e
sociedades indígenas tornava-se menos amistosa. O olhar quase bucólico de Pero Vaz de Caminha
logo deu lugar à otimização do uso dessa árvore nativa que tinha diversas qualidades. Por conta de
sua abundância na Mata Atlântica, que cobria boa parte do litoral, a resina vermelha do pau-brasil
foi rapidamente empregada na produção têxtil de Portugal e de outros países europeus. Além
disso, a madeira da árvore, que era, ao mesmo tempo, resistente e maleável, passou a ser utilizada
na produção de embarcações.
Essa atividade extrativista foi responsável por uma segunda onda de mortandade indígena. A
primeira ocorreu nos primeiros anos de contato entre os portugueses e os povos de Pindorama,
devido, sobretudo, à falta de imunidade dos povos indígenas a doenças como gripe e febre amarela.
A lucratividade resultante da exportação do pau-brasil acabou por implementar um modo
de exploração violento, obrigando os índios a trabalharem em um sistema que não só era muito
mais exaustivo (muitas horas de trabalho, pouca alimentação, etc.) como também ia de encontro a
suas organizações socioeconômicas e relações com territórios ocupados. Não por acaso, muitos
povos fugiram da região litorânea, embrenhando-se nas matas e nos sertões ainda desconhecidos
pelos portugueses.

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Nesse período, aqueles que não foram abatidos pelas
epidemias acabaram tornando-se os chamados “negros da
terra”, termo que faz alusão direta à escravização já
existente de africanos e que demonstra como os índios
também eram vistos como mão de obra barata pelos
primeiros colonos portugueses.

O uso quase indiscriminado da população indígena nos primeiros anos de colonização


esteve atrelado à forma como os índios passaram a ser vistos e tratados pela grande maioria de
europeus que se aventuraram no Novo Mundo. No entanto, é fundamental ressaltar que os
olhares lançados a esses índios não foram sempre os mesmos.
A chegada nas Américas significou a descoberta de uma “outra humanidade” – ou do outro,
como bem pontuou Todorov (1992) –, o que criou debates filosóficos extremamente profundos
em toda a Europa. Missionários católicos e protestantes que haviam entrado em contato com os
diferentes grupos indígenas nas Américas lideraram discussões acerca da natureza desses homens e
mulheres “recém-descobertos”, marcando o cenário intelectual do século XVI.

Papel da Igreja
Um dos propósitos das grandes navegações – se não o maior deles – era difundir a palavra
de Cristo, nem que para isso fosse necessária uma verdadeira guerra santa. Os milhares de índios
americanos constituíam um aumento potencial e significativo do rebanho da Igreja Católica, que,
à época, estava lidando com uma forte crise dogmática implementada pelo movimento que ficou
consagrado como Reforma. No entanto, inclusive para definir quais seriam os métodos de
conversão e absorção da população indígena na comunidade católica, era fundamental determinar
qual era a natureza desses indígenas.
Um dos momentos mais extremos das discussões sobre a natureza indígena e como a
religiosidade cristã deveria portar-se frente a ela ocorreu entre os anos de 1550 e 1551, na cidade
de Valladolid, na Espanha. No evento, que ficou conhecido como Debate de Valladolid, o frade
dominicano Bartolomeu de Las Casas (conhecido defensor dos indígenas) e o jurista Juan Guinés
de Sepúlveda apresentaram argumentos morais e teleológicos sobre as questões relativas à
colonização da América e à conversão dos índios ao cristianismo. Os juízes de Valladolid,
infelizmente, suspenderam o debate sem uma decisão definitiva acerca da situação indígena, sob o
argumento de que eram necessárias novas investigações sobre a questão. Prometeram, no entanto,
apresentar uma resposta por escrito, o que nunca foi cumprido. Diante do silêncio, Las Casas e
Sepúlveda se declararam vencedores, o que, de certa forma, era verdadeiro.
A favor da vitória de Las Casas é possível citar o fato de que a Coroa espanhola adotou a
doutrina da persuasão racional e pacífica dos índios como método de evangelização (em uma

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tentativa de barrar os horrores vivenciados nas primeiras décadas do século XVI) e aprovou a Lei
Básica de 1573, que incorporou importantes ideias do dominicano, como a proibição da
escravidão e do uso da violência contra os indígenas.
Por outro lado, não se pode deixar de observar que alguns argumentos de Sepúlveda
também foram aceitos pela Coroa. No próprio texto da Lei de 1573, percebe-se que a colonização
continuava a ser vista como algo benéfico aos índios, e como obrigação dos espanhóis (e também
dos portugueses) e da Igreja, que deveriam ensinar-lhes costumes mais civilizados e a religião
Cristã. Ademais, a lei abria exceções quanto à proibição do uso da força contra os índios: caso
esses povos demonstrassem resistência à colonização ou às tentativas de pregação pacífica do
Evangelho, seria permitido o uso da força.
Em consonância com o que a Igreja Católica havia outorgado, impedindo a escravização
dos povos indígenas que se dispusessem a passar pelo processo de evangelização, no ano de 1570,
o Rei português Filipe II promulgou uma lei que proibia a escravização de índios na América
Portuguesa, com exceção daqueles que se recusassem a passar pelo processo de catequização. A
decisão tomada pelo monarca lusitano não só afiançava os ditames do Vaticano como também
marcava uma posição da Metrópole frente ao uso da mão de obra escrava na América portuguesa.
Tal posição ia de encontro ao que muitos missionários defendiam, contrariando interesses de
diversos colonos favoráveis à escravização indígena.

Apesar de os chamados “negros da terra” terem sido


protegidos pela decisão do Monarca, os negros do outro
lado do Atlântico não tiveram a mesma sorte.

A opção pelos africanos escravizados

Escravidão doméstica
Quando os portugueses chegaram às Américas, sua relação comercial com diferentes
sociedades africanas já era uma realidade há mais de cinco décadas. A principal mercadoria
comercializada com essas sociedades era o africano escravizado.
Como pontuado por diferentes autores, como Claude Meillassoux (1995) e Paul Lovejoy
(2002), antes mesmo das relações com os europeus, a escravidão já era uma realidade em
diferentes sociedades africanas, embora, na maior parte dos casos, tais sociedades não
dependessem do trabalho desses escravos para fazer suas respectivas economias funcionarem.
Muitos estudos classificam essa escravidão como doméstica, não porque ela fosse mais amena do
que outras experiências igualmente marcadas pela violência física, psicológica e simbólica; mas sim
pela sua representatividade na economia dessas sociedades.

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Meillassoux e Lovejoy também sugerem que, de modo geral, os povos da África Ocidental e
Centro Ocidental preferiam escravas a escravos. Essa prática, que muito explica alguns
funcionamentos socioculturais das sociedades africanas, viabilizou a existência de certa oferta de
africanos escravizados, o que foi rapidamente aproveitado pelos mercadores portugueses e, mais
tarde, por traficantes de outras nacionalidades.

Rotas comerciais
Como vimos, Portugal foi a primeira nação europeia a explorar a África Ocidental. A partir
do século XV, após a expulsão dos muçulmanos e a formação do Estado nacional moderno de
Portugal, iniciou-se o período conhecido como Grandes Navegações.
A fim de fomentar a economia de um Estado nacional que se formava frente a uma Europa
que passava por profundas crises econômicas e conflitos militares, as elites políticas e econômicas
lusitanas compreenderam que seria fundamental participar do lucrativo e diversificado comércio
feito no Oceano Índico.
Durante muitos anos, as rotas comerciais do Índico eram utilizadas para levar as
mercadorias mais importantes e caras a diversas regiões da Europa, do Oriente Médio, da Ásia e
do Norte da África. São exemplos dos produtos comercializados:
 tecidos luxuosos, como a seda e veludo;
 especiarias, como a canela e a pimenta;
 ouro e prata.

No entanto, para participar desse lucrativo comércio, os portugueses precisavam vencer um


obstáculo: à época, o acesso do continente europeu a essas rotas dependia dos principais portos do
Mar Mediterrâneo, que eram controlados por mercadores oriundos de cidades da Península itálica
bem como por negociantes muçulmanos – considerados inimigos religiosos dos católicos e,
consequentemente, dos portugueses. Existia ainda a expectativa de ter acesso direto às minas de
ouro do continente africano, cuja existência era frequentemente relatava pelos viajantes
muçulmanos que estavam vinculados ao comércio transaariano, ou seja, aquele que usava o Saara
como rota.
Como o Mediterrâneo, caminho mais fácil para chegar às Índias, estava sob o controle dos
muçulmanos, e os recentes debates filosófico-científicos defendiam a teoria de que a terra era redonda,
os portugueses resolveram contornar todo o continente africano para chegar à Ásia. Se, por um lado, o
trajeto era muito maior e mais perigoso do que a opção mediterrânica – pois não se tinha notícia de
nenhum outro povo que tivesse tentado realizar tal façanha –, por outro lado, caso tivessem êxito
nessas viagens, os portugueses passariam a controlar uma nova rota comercial marítima.

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O Rei português e os principais comerciantes do país passaram então a investir muito
dinheiro nessa empreitada. A construção de navios, os gastos com tripulações e o desenvolvimento
de novos instrumentos de navegação que facilitassem a orientação dos marinheiros quando
estivessem no meio do mar são exemplos de realizações a que foram direcionados esses
investimentos.
A conquista de Ceuta, em 1415, foi o primeiro feito resultante dos novos investimentos e
encorajou os portugueses a seguirem em frente. Quatro anos depois, eles chegaram às Ilhas da
Madeira. Já em 1430, chegaram ao Arquipélago dos Açores. Contudo, o feito de maior
importância das navegações aconteceu no ano de 1434 os portugueses conseguiram ultrapassar o
Cabo do Bojador, chegando à desconhecida África Subsaariana. A partir de então, o
estabelecimento de relações com as sociedades africanas somou-se às intenções dos mercadores e
navegadores portugueses, fazendo com que viagens às regiões africanas que ficavam ao sul do
Saara se tornassem frequentes.
No ano de 1446, as expedições portuguesas aportaram em Guiné, região que era habitada
por diferentes sociedades (organizadas de formas politicamente distintas). Quarenta e oito anos
depois, os portugueses chegaram às margens do rio Congo, na África Centro-Ocidental. A partir
do contato com as diferentes sociedades africanas do reino que já ali existia, os portugueses
inauguraram o estabelecimento de importantes redes comerciais.
Nesse contexto, é necessário entendermos o seguinte: ao contrário do que foi difundido
durante muitos anos por estudos que pouco analisaram a organização e a história da África, grosso
modo, as sociedades africanas que entraram em contato com portugueses e europeus durante
desenvolvimento do tráfico transatlântico de africanos escravizados eram soberanas e mantiveram
tal situação, impedindo invasões em seus territórios e a possível perda de sua autonomia política.

Comércio de escravos africanos


Ao contrário do que se pode imaginar, a chegada dos portugueses à África ao Sul do Saara
não significou a dominação dos grupos africanos que viviam naquela região. As primeiras
tentativas portuguesas de ultrapassar a região litorânea da costa ocidental africana foram
impedidas tanto por doenças, que assolaram sua tripulação (como a malária e a febre amarela),
quanto por batalhas travadas entre africanos e europeus. Munidos de arcos e flechas, pequenas
espadas e ágeis pirogas, os africanos venceram as armas de fogo europeias.

Como a tentativa de dominação não teve êxito, a principal


relação estabelecida entre portugueses e africanos foi o
comércio.

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Também é importante pontuarmos que a soberania das sociedades africanas impediu que os
portugueses tivessem acesso às minas de ouro que haviam sido descritas pelos viajantes árabes. A
quantidade de ouro que os portugueses conseguiram comprar no continente africano foi muito
menor do que eles haviam sonhado. Dessa forma, os lusitanos transferiram, rapidamente, seus
interesses comerciais para outra mercadoria: o escravo africano.
Nos primeiros anos de relação, os africanos escravizados eram comercializados como outra
mercadoria qualquer. As elites das sociedades africanas que habitavam as regiões próximas ao
litoral começaram a trocar os escravos que já possuíam (geralmente, oriundos de outras sociedades
africanas subjugadas pelo grupo dominador) por produtos europeus que lhes interessavam, tais
como miçangas, veludo e armas de fogo.
Durante o século XV, os negociantes portugueses compraram um grande número de
africanos. Esses escravos eram vendidos a outras sociedades europeias ou utilizados como mão de
obra na produção de cana-de-açúcar, nas regiões recém-colonizadas do Atlântico Norte.
Com o objetivo de facilitar o transporte desses escravos, os portugueses construíram o forte
de São Jorge da Mina, em 1482. Durante a construção, Portugal teve de pagar altos impostos ao
povo acan, que controlava a região. No entanto, a construção desse forte viabilizou o aumento
vertiginoso dos lucros lusitanos nas trocas comerciais. O forte funcionava como um depósito,
capaz de armazenar um grande número de mercadorias (sobretudo escravos), enquanto os
portugueses esperavam que suas embarcações voltassem das viagens feitas ao continente europeu.

Saiba mais

Mesmo antes da chegada dos europeus às Américas, os africanos escravizados eram enviados a
diferentes localidades da Europa, chegando a compor 10% da população das cidades de Sevilha
e Lisboa nos primeiros anos do século XVI.

Como se não bastassem as razões econômicas, os lusitanos encontraram uma forte aliada
para justificar a escravização de diferentes povos africanos: a Igreja Católica. Esse apoio de devia
ao fato de a Igreja entender o processo de escravização dessas sociedades como mais uma forma de
lutar contra os infiéis e ampliar seu rebanho. No ano 1454, o Papa Nicolau V publicou uma bula
papal a esse respeito. Vejamos:

Guinéus e negros tomados pela força, outros legitimamente adquiridos


foram trazidos ao reino, o que esperamos progrida até a conversão do
povo ou ao menos de muitos mais. Por isso nós, tudo pensando com
devida ponderação concedemos ao dito rei Afonso [de Portugal] a plena e
livre faculdade, entre outras, de invadir, conquistar, subjugar a quaisquer
sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir
à servidão e tudo praticar em utilidade própria e dos seus aos mesmos D.
Afonso e seus sucessores, e ao infante.

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Embora os portugueses e os demais europeus não tenham empreendido nenhum tipo de
Cruzada no continente africano, a autorização conferida pela Igreja liberava-os de qualquer
comprometimento moral com o fato de comercializarem africanos escravizados.
A leitura específica de determinadas passagens bíblicas determinou, por exemplo, que os
guinéus (como eram chamados os africanos naquela época) eram os descendentes de Can e ou de
Cain. A cor negra de sua pele passou a ser entendida, portanto, como um defeito, uma marca do
pecado de seus antepassados.

Como ocorreu em outros momentos da história, interesses


religiosos e econômicos pareciam ter o mesmo fim.

Estudos pioneiros, como o de Philip Curtin (1969), demonstram que a chegada dos
europeus às Américas causou um verdadeiro redimensionamento do tráfico de africanos no
atlântico, fazendo desse comércio um dos mais lucrativos do chamado Mundo Atlântico.
A implementação do sistema colonial, que visava à produção, em larga escala, de gêneros
tropicais com grande demanda na Europa, só poderia ser realizada caso a mão de obra utilizada
fosse abundante e barata, ou seja, escrava.

A dizimação de grande parte da população ameríndia e a


proibição da escravização indígena no começo do século XVI
transformaram o africano escravizado em uma alternativa
viável e lucrativa.

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A cronologia do tráfico de africanos escravizados para o Brasil pode ser sistematizada da
seguinte forma:

As primeiras grandes levas de africanos escravizados saíram da região que hoje corresponde aos
países de Congo e Angola, na África Centro Ocidental. Como demonstrado pela historiografia, a
volumosa compra de escravos nessa região estava intimamente relacionada com a conversão do Rei
Séc. XV do Congo ao catolicismo e com a íntima ligação o que este reino passou a ter com os portugueses.

Nos dois séculos seguintes, XVI e XVII, portugueses e outras nações europeias como os holandeses
franceses, e ingleses começaram a comprar africanos escravizados da região que ficou conhecida
Séc. XVI e como Costa do Ouro (no atual país de Gana) habitada pelos acans, fantis e mandingas.
XVII

A partir do século XVII e, sobretudo, no século XVIII, o tráfico atlântico ampliou sua área de atuação
para a região do Golfo do Benin, que foi cruelmente batizada pelos traficantes como Costa dos
Séc. XVII e Escravos, devido ao grande número de africanos escravizados que saíram de lá.
XVIII

Séc. XVIII e O tráfico para o Brasil alcançou seu ápice em volume de exportação e lucratividade entre o final do
XIX século XVIII e início do XIX.

Entre o final do século XVIII e o início do século XIX, uma série de rotas comerciais já
estavam estabelecidas com diferentes regiões da América Portuguesa, como demonstram os
trabalhos de Pierre Verger (1985) e de Luis Felipe de Alencastro (2000). Vale ressaltar que,
nesse período, boa parte dessas rotas eram controladas por traficantes já nascidos em terras
brasileiras, responsáveis por criar uma elite colonial que não só estava envolvida na produção de
gêneros tropicais de exportação mas também controlava o fluxo da principal mão de obra
empregada na colônia.
Sendo assim, a partir de 1580, africanos de diversas localidades do continente passaram a
desembarcar, em peso, na América portuguesa para trabalhar como escravos em diferentes
atividades econômicas.

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Etapas da travessia de africanos escravizados para o Brasil
Como já vimos, os africanos que vieram escravizados para a América portuguesa tinham
diversas origens e etnias. Embora essa diversidade fosse minimamente conhecida pelos traficantes
e futuros senhores desses escravos, a partir de seu aprisionamento, ainda no continente africano,
esses homens e mulheres passavam a ser homogeneizados pela instituição escravista.
A tenebrosa experiência da travessia atlântica foi mais uma das violentas etapas que marcaram
a escravidão nas Américas (de forma geral) e na América portuguesa (de forma particular).
O volume de almas e riquezas que o tráfico mobilizou em seus quase 400 anos de existência
legal permitiu uma série de estudos sobre o tema, demonstrando a complexidade desse mercado.
Em trabalhos como os de Maurício Goulart (1949) e Pierre Verger (op.cit), Luis Felipe de
Alencastro (op.cit), Manolo Florentino (1995), Jaime Rodrigues (2000) e Beatriz Mamigoniani
(2009) – para citar apenas alguns autores –, o infame comércio de escravos para o Brasil foi e vem
sendo desnudado.
Podemos resumir a travessia dos escravos africanos para o Brasil da seguinte maneira:

a) Etapa 1 – dos sertões da África à Costa Atlântica:


Nesta etapa, independentemente da distância a ser percorrida, o escravo viajava a pé, ligado
a outros companheiros de cativeiro pelo pescoço. Mal alimentados e feridos, muitos não resistiam
a essa primeira viagem e morriam. Os demais continuavam a jornada.

b) Etapa 2 – da Costa Atlântica aos Navios Negreiros:


Nas cidades costeiras, os escravos eram alocados em barracões próximos às feitorias
europeias e lá eram comprados por negociantes europeus e brasileiros.
Muitas vezes, os africanos escravizados esperavam até três meses antes de embarcarem.
Nesse período de espera, viviam presos e eram vigiados constantemente. Chegada a hora da
viagem, eram colocados nos porões das embarcações de médio porte que ficaram conhecidas
como navios negreiros ou tumbeiros.

c) Etapa 3 – travessia da Calunga Grande:


A duração da travessia Atlântica variava de acordo com o ponto de partida e o ponto de
chegada. Nos séculos XVI e XVIII, os navios que saíam da Costa Ocidental africana demoravam
cerca de 25 dias para chegar a Pernambuco, 30 dias para chegar à Bahia e 40 para aportar no Rio
de Janeiro. Já a travessia entre a Costa Índica da África (principalmente, a região de Moçambique)
e o Rio de Janeiro poderia durar de dois a três meses.
Por conta desse longo tempo de viagem e do desejo de obter o maior lucro possível, os
traficantes empilhavam cerca de quinhentos escravos nos porões de cada navio. Como não havia

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espaço suficiente, os escravos ficavam sentados durante boa parte da viagem ou revezavam as
poucas esteiras que existiam no navio.
Em pequenos grupos, às vezes, os escravos saíam da total clausura e subiam até a proa da
embarcação para tomar sol. Essa medida foi tomada pelos traficantes para diminuir o índice de
doenças tanto físicas quanto mentais dos escravos, mas também era um dos momentos mais
tensos da viagem, pois havia a possibilidade de revolta. Dessa forma, a tripulação vigiava,
atentamente, os africanos.

Em algumas ocasiões, os escravos utilizavam o momento do


banho de sol para fazer motins. O mais conhecido deles
aconteceu no navio Amistad, cuja história foi parar nas telas
do cinema, em 1997.

Na maior parte do tempo de travessia, os escravos ficavam dentro dos porões. Ali,
normalmente, consumiam água quase salgada e, geralmente, alimentavam-se de farinha de
mandioca, peixe, ou carne seca e feijão, pois esses eram os alimentados que não estragavam
durante a longa viagem.
A mortandade nessas viagens era alta. Muitos africanos já embarcavam doentes e, com as
péssimas condições materiais e de higiene, cerca de 30% deles morriam na travessia. A frequência
de mortes era tamanha que, para evitar epidemias dentro dos navios, os traficantes jogavam os
corpos dos mortos no mar.

A chegada ao Brasil
Após essa longa travessia, os africanos, finalmente, desembarcavam nos portos da América
portuguesa. No entanto, como era de se esperar, a situação de boa parte deles era deplorável. Os
que conseguiram sobreviver à viagem, passavam por um breve exame médico e eram rapidamente
vendidos. Já os mais adoentados, sobretudo os que haviam contraído escorbuto, passavam por um
processo de quarentena em galpões localizados na região portuária. A função dessa quarentena era
a de oferecer alimentação e cuidados médicos especiais, com a finalidade de recuperar a saúde de
tais africanos. Quando minimamente recuperados, eles eram levados aos mercados, onde seriam
vendidos. A partir de então, o destino desses africanos estava atrelado ao de seu senhor e, em
muitos casos, envolvia mais uma viagem, só que agora, pelo interior do Brasil.
Nem todos os africanos recém-chegados resistiam ao período de quarentena. Desse modo,
era comum se encontrarem cemitérios nas proximidades do porto. Além dos maus tratos e das
doenças adquiridas durante a travessia, muitos escravos boçais (termo utilizado para designar os
africanos recém-chegados) sofriam de uma doença que parecia atacar suas almas: o banzo.
Tomados de uma tristeza profunda, esses africanos morriam. Para muitos deles, era preferível

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morrer a trabalhar como escravo, pois acreditavam que a morte significava o retorno a sua terra
natal, junto a seus ancestrais.
Todavia, aproximadamente dois terços dos africanos que saiam do continente como
escravos sobreviviam à travessia do Atlântico.
O escravo boçal era introduzido, rapidamente, em sua nova condição. Geralmente, no
momento da compra, era batizado e recebia um nome cristão. Também recebia um novo
sobrenome, que se referia ao porto africano de onde havia embarcado; por isso, existiram Pedro
Mina, João Angola, Maria Congo, Ana Benguela.
Após o batismo cristão (que nem sempre ocorria respeitando todos os rituais determinados
pela Igreja Católica), os africanos escravizados recebiam ensinamentos básicos sobre o catolicismo
e sobre como deveriam portar-se perante seu senhor. Além disso, aprendiam algumas palavras-
chave em português. A partir de então o escravo boçal se juntava ao ladino (africano aclimatado) e
ao crioulo (escravo nascido nas Américas) na execução das mais variadas tarefas.
As tarefas desempenhadas por africanos escravizados e seus descendentes foram diversas
durante os quase 400 anos em que a instituição escravista perdurou no Brasil, tanto no período
colonial quanto no Império soberano.

O uso indiscriminado de negros (africanos e crioulos) e


indígenas como mão de obra explorada – quer como
escravos, quer como servos –, e as diferentes situações a
que foram subjugados foram determinantes na construção
das relações étnico-raciais brasileiras.

Servidão indígena e escravidão africana: dinâmicas de


exploração e resistência na América colonial
A grande extensão dos domínios portugueses em terras americanas fez com que a
colonização da América portuguesa fosse um mosaico de diferentes práticas e culturas. Todavia, se
é possível apontar um denominador comum em todo território que outrora fora chamado de
Pindorama, esse denominador seria a exploração do trabalho indígena e a escravidão negra.
Conforme vimos, a escolha pelo uso de africanos escravizados não estava relacionada com a
sua pretensa superioridade física frente à incapacidade de adaptação cultural dos grupos indígenas.
Essa perspectiva, que, durante muitos anos, foi difundida nos bancos escolares do Brasil, não só
reforça uma série de estigmas e preconceitos raciais, como também demonstra um profundo
desconhecimento sobre a história do Brasil.

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A escolha pela escravização massiva de africanos estava, na verdade, relacionada com:
 as dinâmicas comerciais do Império Ultramarino Português desde meados do século XV;
 a elevada margem de lucro que o tráfico transatlântico passou a representar para todas as
nações que participaram desse infame comércio (como traficantes de escravos) entre os
séculos XVI e XIX.

Apesar da preferência por escravos africanos, diferentes estudos apontam a coexistência da


escravidão africana e da exploração da mão de obra indígena nas terras brasileiras, sem que isso
representasse qualquer tipo de contradição no funcionamento da vida em colônia.
Parte dos processos de exploração da mão de obra indígena e africana, e as resistências que
esses grupos impuseram ao mundo colonial são o tema desta unidade.

A servidão indígena
Ao analisar a relação entre índios e bandeirantes na origem de São Paulo, o historiador John
Monteiro (1994), um dos maiores especialistas em história indígena no Brasil, pontuou que a
colonização foi um processo plural e que deve ser analisada a partir desse princípio.
Ainda que boa parte da América portuguesa tenha vivenciado experiências comuns advindas
do encontro entre colonos e índios – encontro esse que foi marcado pela desintegração de muitas
sociedades indígenas e pelo processo de catequização daquelas que conseguiram sobreviver –, a
partir de meados do século XVI, essa relação tomou rumos distintos.
Monteiro (1994, p. 57) afirma que, nas capitanias do Sul da América Portuguesa, a Lei de
Liberdade do Gentio (sancionada em 1570) foi “letra morta”. Segundo as pesquisas do autor, o
número de expedições que assaltavam as aldeais indígenas, transformando seus habitantes em
servos (praticamente, escravos) era elevado entre os séculos XVI e XVII. As razões para isso
residem nas diferentes e múltiplas dinâmicas econômicas desenvolvidas no período colonial.
Por um lado, sem conseguir se inserir no circuito comercial Atlântico, que, à época, estava
monopolizado pela produção e exportação açucareira, os colonos da capitania de São Paulo
preferiram se embrenhar sertão adentro em suas bandeiras do que se lançar ao mar.
Por outro lado, as ações dos paulistas também estavam atreladas a um sonho antigo dos
primeiros colonos portugueses: a busca do El dorado.
A descoberta das minas de prata na região de Potosí (atual Bolívia e que, à época, estava sob
domínio espanhol) acendeu as esperanças de outras gerações de colonos. Sem perder tempo, entre
1591 e 1601, o governador geral D. Francisco de Souza armou uma série de expedições em busca
de metais preciosos. Dessa forma, não seria exagero afirmar que fora justamente a busca por ouro
e prata que fomentou as primeiras expedições para as regiões interioranas da colônia portuguesa.

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Chefiada por João Pereira Botafogo, a vertente paulista dessas expedições conseguiu
encontrar algumas minas próximas à cidade de São Paulo, reacendendo o sonho português.
Todavia, as expedições subsequentes não corresponderam às expectativas criadas pelos colonos.

O insucesso das primeiras expedições em busca de ouro e


prata acabou por revelar aos colonos a potência econômica
de outra mercadoria, encontrada em abundância nos
sertões da região sudeste: o escravo indígena.

Não por caso, ao terminar seu mandato como governador, D. Francisco retornou a
Portugal com o objetivo de apresentar um projeto que visasse fomentar a economia das capitanias
do Sul da colônia, que estavam fora das grandes transações comerciais do Atlântico. Como
salienta Monteiro (1994), o ex-governador pretendia utilizar a mão de obra indígena para
articular setores econômicos da mineração e agricultura na região, baseado no modelo
desenvolvido na América hispânica.
Sem grande êxito na metrópole, a proposta do antigo governador acabou redimensionando
os objetivos das expedições ao interior. Em outras palavras, a busca por ouro deu lugar ao
aprisionamento de índios.
Apesar das inúmeras e constantes proibições da Coroa no que diz respeito à escravização
indígena, as expedições (ou as bandeiras, como ficaram conhecidas) continuaram sendo
organizadas pelos colonos de São Paulo, e milhares de povos indígenas padeceram frente à
empreitada escravizadora dos séculos XVII.
A razão para o grande número de investidas nos sertões da colônia residia na rentabilidade
da venda dos indígenas escravizados. Os lucros eram tamanhos que pagavam os custos e riscos das
expedições, cada vez mais interioranas. Dessa forma, rapidamente, criou-se uma intricada rede de
negociações nas capitanias do sul e centro-oeste (pouco explorado), e praticamente toda a mão de
obra dessas localidades da América portuguesa era formada por índios escravizados.

Missionários versus bandeirantes


Como era de se esperar, muitas sociedades indígenas se opuseram à prática sistêmica de
escravização de seus habitantes. Outro segmento social que se colocou ferrenhamente contrário às
bandeiras foi o de religiosos ligados a missões, ou seja, aqueles envolvidos no processo de
evangelização indígena.
Como vimos, o grande debate filosófico-religioso que acontecera no século XVI havia
consagrado que, salvo os povos que se negassem a participar do processo de catequese
pacificamente, todos os habitantes autóctones das Américas (em suas múltiplas diversidades)
tinham o direito à liberdade cristã, assegurada pela Igreja e afiançada pelas Coroas Ibéricas.

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Dessa forma, as expedições dos colonos de São Paulo eram não só uma afronta às leis
promulgadas pelos órgãos máximos do mundo colonial mas também uma prática que colocava
em risco a missão maior da presença europeia no Novo Mundo: a evangelização.
Ainda que os aldeamentos criados pelos missionários estivessem pautados pela ideologia
cristã, que estabelecia um determinado modus vivendis, o cotidiano dos índios que viviam nessas
organizações bem como o sistema de trabalho a que estavam sujeitos não poderiam ser
comparados com a situação de escravidão imposta pelas expedições e bandeiras.

Na perspectiva evangelizadora, todas as atividades


realizadas pelos índios em aldeamentos e missões, inclusive
o trabalho físico, faziam parte do processo de catequese.

Os índios recebiam instruções religiosas para que se convertessem ao cristianismo e


passassem a seguir um padrão europeu de vida e relação com o trabalho. Essas preocupações
passaram ao largo da organização das expedições nos séculos XVII e XVIII. Exemplo disso pode
ser atestado pelo testemunho deixado por alguns dos clérigos da época. De acordo com o padre
Montoya, por exemplo, as expedições haviam destruído 11 missões, o que significava o
apresamento de, praticamente, 50 mil índios. Já o padre Lourenço de Mendonça, ao descrever as
expedições no Rio de Janeiro, afirmou que 60 mil guaranis foram escravizados e levados a São
Paulo. Baseado nessas informações, Monteiro (1994) frisou que centenas de aldeias foram
destruídas, e milhares de índios foram presos em cativeiro. O destino final da maior parte dessa
mão de obra indígena era a reposição da força de trabalho na região sudeste da colônia.
Organizados por diferentes colonos, as expedições eram identificadas por bandeiras, o que
acabou por nomear o movimento dos paulistas em busca de índios como Movimento
Bandeirante. O auge desse movimento ocorreu na segunda metade do século XVII, momento em
que bandeirantes como Antonio Raposo Tavares e Domingos Jorge Velho ganharam notoriedade
em toda a América portuguesa.

Embora considerado tão ou mais bárbaro que os índios


selvagens ou os africanos escravizados, Jorge Velho foi
convocado pela Coroa portuguesa para “sufocar” a rebelião
indígena chefiada por Canindé (no Rio Grande), além de ter
sido um dos responsáveis pela desarticulação do Quilombo
dos Palmares.

Na virada do século XVII, o movimento das bandeiras começou a diminuir. Um dos fatores
foi o aumento das distâncias. Com o aprisionamento de boa parte da população indígena na
região sul/sudeste, aquilo que os bandeirantes chamavam de sertão começou a ficar cada vez mais

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longe, o que encarecia as expedições (que necessitavam de pólvora, chumbo, correntes e índios
escravizados) e as tornava mais perigosas.
Outro fator a ser destacado foi a crescente oposição dos missionários frente às bandeiras.
Amparados pela letra da lei, esses religiosos recorreram, diversas vezes, ao Rei português a fim de
denunciarem os abusos cometidos pelos colonos paulistas, que eram mal vistos por boa parte da
sociedade colonial, inclusive por seus pares: colonos (escravocratas) de outras regiões.
A significativa diminuição das bandeiras a partir das primeiras décadas do século XVIII –
que, não por acaso, coincidiu com a euforia gerada pela descoberta de ouro na região das Minas –
não significou o fim da exploração da mão de obra indígena. Muitas sociedades continuaram
subjugadas aos interesses de colonos em diferentes regiões da América portuguesa; em muitos
casos, ainda trabalhando em condições de servidão ou escravidão, inclusive em aldeamentos e
missões evangelizadoras. Oficialmente, a escravidão indígena só foi proibida, em 1757, pelo
Marquês de Pombal, o que também não representou, necessariamente, o direito a melhorias
efetivas nas condições de vida dos povos indígenas.

A escravidão africana e os escravos negros

Produção de açúcar
O açúcar foi o primeiro gênero alimentício produzido, em larga escala, na América
Portuguesa. A importância que esse alimento ganhou no mercado mundial foi rápida e volumosa,
representando o que Sidney Mintz (2003) classificou como “uma verdadeira revolução” não
apenas nas relações comerciais travadas no espaço Atlântico que se construía, mas também nos
usos e costumes alimentares.
Para os portugueses, a escolha pela produção de açúcar em larga escala tinha duas razões
principais:
1. a demanda pelo produto no mercado europeu;
2. o know-how, ou seja, a habilidade já adquirida no fabrico do açúcar de cana, devido a
experiências nas ilhas Canárias, da Madeira, de Açores e de Cabo Verde, todas
localizadas no Atlântico Norte.

Como o sonho do El dorado não foi concretizado nos


primeiros anos da colonização, o açúcar transformou-se,
rapidamente, no ouro branco do Império Português.

Conforme já pontuado, os interesses pelo território americano entraram na pauta da Coroa


portuguesa depois dos insucessos comerciais no Índico. Todavia, já no século XVI, os primeiros
trapiches e engenhos foram construídos em diferentes locais da colônia.

30
As capitanias localizadas no nordeste da colônia acabaram tornando-se as principais
produtoras de açúcar. Sua maior proximidade em relação à metrópole garantia que o produto
chegasse mais rapidamente (e com maior controle) ao mercado europeu. Além disso, tais
capitanias pareciam ter as condições naturais ideais para a produção: abundância de rios e árvores
da Mata Atlântica, que eram ideais para a construção das moendas e da estrutura arquitetônica de
engenhos e trapiches. Ademais, a extensão vasta do território colonial (que permitiu a criação de
propriedades latifundiárias), o clima quente, as chuvas constantes e o solo fértil garantiam que a
produção de gêneros tropicais tivesse êxito.
Como demonstram os diferentes relatos deixados por colonos e as análises de muitos
historiadores, no que tange à produção açucareira, o engenho era a unidade produtiva por
excelência, composta de diferentes partes:
 o extenso canavial – onde a cana era cultivada;
 a casa de moenda e a casa de purgar – onde se transformavam a cana em caldo, o caldo
em melado e o melado em açúcar;
 a residência do senhor – no Brasil, conhecida como Casa-Grande;
 as moradas dos trabalhadores – onde se abrigavam trabalhadores escravos ou livres.

Existe uma constatação, quase unânime na historiografia, de que a escravidão foi a


instituição que ordenou boa parte das dinâmicas sociais na América portuguesa. Na já citada obra
Cultura e opulência do Brasil, Padre André Antonil (1649-1716) apontou a imprescindível
relevância que a escravidão tinha no funcionamento dos engenhos açucareiros. Segundo Antonil:

Os escravos são as mãos e os pés do senhor do engenho, porque sem eles


no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter
engenho corrente. E do modo como se há com eles, depende tê-los bons
ou maus para o serviço. Por isso, é necessário comprar cada ano algumas
peças e reparti-las pelos partidos, roças, serrarias e barcas (ANTONIL,
1982, p. 36).

Durante muitos anos, a escravidão foi vista de forma sistêmica no Brasil:

Do outro, os africanos escravizados e seus


De um lado, os índios escravizados, que
descendentes, que eram utilizados nas
eram utilizados, majoritariamente, em
atividades envolvidas com o mercado
pequenas e médias produções, quase todas
externo, como a produção de açúcar e a
voltadas à subsistência da colônia.
mineração.

31
Ainda que essa sistematização estivesse pautada em uma série de análises qualitativas da
economia colonial, é importante ressaltar que tal assertiva não se aplica a todo o período de
fabrico de açúcar.
Em seu trabalho basilar sobre a história do Brasil, chamado Segredos internos: engenhos e
escravos na sociedade colonial (1988), o brasilianista Stuart Schwartz lançou luz sobre um
fenômeno até então pouco estudado: o uso massivo de indígenas escravizados nos engenhos de
açúcar, sobretudo nos séculos XVI e XVII. Grande parte desses índios tinha origem tupi, embora
relatos sobre alguns povos tapuias tenham sido encontrados em documentos sobre os engenhos da
província da Bahia, trabalhados pelo autor.
Examinando registros paroquiais e inventários, o autor apontou que a lógica que regeu a
escravidão indígena na produção açucareira foi muito semelhante àquela que ditaria o ritmo de
trabalho de africanos escravizados anos mais tarde. Graças à preferência senhorial, 60% dos
escravos eram homens adultos e jovens. No entanto, as práticas católicas incentivaram o
casamento de muitos desses homens, fazendo com que famílias escravas tivessem significativa
presença nesses engenhos, já que suas esposas e seus filhos foram incorporados na massa de
trabalhadores explorados. Obrigados a se adaptar às condições de trabalho impostas pelos colonos,
os índios escravizados deveriam realizar o cultivo extensivo da cana e depois processar seu caldo, a
fim de se obter o açúcar.
A partir do último quartel do século XVI, a escravidão indígena passou a ser, em parte,
substituída pelos africanos escravizados. Conforme visto anteriormente, essa substituição tinha
duas motivações principais:
1. a relativa fragilidade dos grupos indígenas em relação às inúmeras epidemias que
assolaram os engenhos açucareiros;
2. a grande circulação de dinheiro promovida pelo tráfico transatlântico de africanos
escravizados – tráfico esse que, em muitos casos, era comandado por familiares dos
senhores de engenho da América portuguesa.

A partir de 1580, africanos de diversas localidades do continente passaram a desembarcar, em


peso, na América portuguesa para trabalhar como escravos em diferentes atividades econômicas.
Como vimos, os africanos que vieram escravizados para o Brasil tinham identidades étnicas
diversas. Após a longa travessia, quando finalmente desembarcavam nos portos da América
portuguesa, a situação de boa parte dos africanos era péssima. No entanto, a maior parte dos
africanos sobrevivia à travessia do Atlântico.
Para conseguir cumprir a demanda da produção em larga escala, os escravos enfrentavam
jornadas de trabalho que variavam de doze a dezoito horas e eram vigiados, constantemente, por
feitores e capatazes, que tinham como função “otimizar” o trabalho.
No ápice da produção do açúcar (século XVI) e do café (século XIX), e no auge do período
aurífero (século XVIII), a exploração do escravo era tamanha que a média de vida ativa do cativo

32
variava entre sete e dez anos. Realidade semelhante era encontrada em fazendas produtoras de
charque (tanto na Região Sul quanto na Região Nordeste), nas principais cidades coloniais e nas
pequenas propriedades rurais. Contudo, estimativas apontam que, mesmo nesse curto tempo de
vida ativa, o escravo “pagava” a seu proprietário a quantia que havia sido desembolsada no
momento de sua compra e ainda gerava benesses. Esse retorno financeiro relativamente rápido
(podendo variar de um a três anos) fez com que o escravo fosse visto como uma boa forma de
investimento, o que excitou o tráfico intercontinental de africanos por três séculos.

Demais atividades exercidas por escravos negros


A equação entre investimento feito e retorno obtido fez com que a escravidão fosse
difundida também entre a população menos abastada da sociedade. Dessa forma, a quantidade de
atividades exercidas pelos escravos não se limitava apenas àquelas relacionadas à produção e
exportação de gêneros para o mercado mundial.
Toda uma ampla variedade de trabalhos executados reforça o caráter escravista do período
colonial no Brasil. Vejamos:
 abertura de estradas;
 produção de pequenas hortas;
 criação de gado extensivo;
 construção de ruas e casas;
 carregamento de mercadoria na região portuária;
 trabalho desempenhado nas casas e fazendas pelos escravos domésticos.

A lógica da exploração total do trabalho escravo intensificou ainda mais a violência inerente à
escravidão. Além de terem a obrigação de labutar horas a fio, debaixo de sol quente, chuva forte ou
frio intenso, os cativos não recebiam cuidados de seus proprietários, devido ao constante
reabastecimento de africanos escravizados nos portos do Brasil. Em outras palavras, muitas vezes, era
mais fácil e mais barato comprar um novo escravo do que cuidar de algum que estivesse adoentado.
O tratamento dado aos escravos não era oriundo de certo desleixo dos proprietários
(embora muitos deles estivessem, efetivamente, pouco preocupados com as condições de vida
material dos cativos). Como demonstrado na análise de Rafael Marquese (2004), muitos senhores
– principalmente, aqueles que eram donos de grandes plantéis de escravos – seguiam as indicações
formuladas em manuais específicos sobre o assunto. Em Economia cristã dos senhores no governo
dos escravos, publicado em 1700, o jesuíta Jorge Benci apresentava uma pedagogia para o
tratamento despendido aos cativos. Essa forma de tratamento era resumida em três palavras pelo
jesuíta: trabalho, sustento e castigo. Benci afirmava ainda que essas três palavras-ações eram
“igualmente necessárias, para que plena e perfeitamente satisfaça ao que como senhor deve ao
servo. Porque sustentar ao servo sem lhe dar ocupação e castigo, quando o merece, é querê-lo

33
contumaz e rebelde; e mandá-lo trabalhar e castigar, faltando-lhe com o sustento; é coisa violenta
e tirana” (BENCI, 1977 p. 49).
Benci justificava a pedagogia desenvolvida por meio da seguinte argumentação:

Tomei por assunto, e por empresa dar à luz esta obra, a que chamo
‘Economia Cristã: isto é, regra, norma, modelo, por onde se devem
governar os senhores Cristãos para satisfazerem às obrigações de
verdadeiros senhores [...] Estas mesmas obrigações, que achou nos
senhores o Eclesiástico por instinto do Espírito Santo, alcançou
Aristóteles com a luz da razão natural. Porque, dando as instruções
necessárias aos pais de famílias para a boa administração de suas casas,
chegando ao ponto de como se há de haver o senhor com os servos, diz
que lhes deve três coisas, que são o trabalho, o sustento e o castigo
(BENCI, 1977 p. 49).

A metodologia de tratamento de Jorge Benci ficou


conhecida, vulgarmente, como “a pedagogia dos três Ps”:
pão, pano e pau. Era essa a tríade que deveria embasar as
ações dos senhores frente a seus escravos.

De tal modo, não era de se estranhar que a alimentação recebida pelos escravos costumava
ser composta apenas de farinha de mandioca ou de milho, uma porção de carne salgada e, por
vezes, um pouco de feijão: o básico para o sustento humano. Nas grandes propriedades, as roupas
desses cativos eram feitas de panos de algodão grosseiro e, geralmente, deveriam durar ao menos
um ano.
Apesar de os cuidados com alimentação, moradia e vestimenta serem de responsabilidade
senhorial, a fácil reposição dos escravos ajuda a explicar as péssimas condições de vida que os
proprietários ofereciam a seus cativos.
Somado à rígida e pesada disciplina de trabalho no eito e às chibatas recebidas quando não
trabalhavam o quanto lhes era exigido, os escravos e escravas ainda enfrentavam outros dois
grandes problemas: os acidentes e as condições insalubres de trabalho. Os acidentes foram comuns
nos engenhos de açúcar, mais especificamente na casa da moenda (onde era extraído o caldo da
cana) e na casa de purgar (onde o caldo era transformado em melaço), locais onde os escravos
podiam perder membros de seu corpo, chegando a correr risco de vida. Nas regiões mineradoras,
também eram comuns os acidentes de trabalho: em diversas ocasiões, as minas subterrâneas que
haviam sido cavadas desabavam, matando dezenas de cativos.
Desse modo, não é de se estranhar que os números mais conservadores apontem que,
aproximadamente, seis milhões de africanos escravizados aportaram no Brasil durante os mais de

34
trezentos anos de vigência do escravismo. Importante ressaltar que boa parte dos descendentes
desses africanos também conheceu a experiência do cativeiro. Entretanto, africanos, crioulos e
indígenas não sucumbiram incólumes tal experiência. De diferentes formas, todos eles
encontraram diferentes formas de resistir.

Algumas formas de resistências


A resistência foi uma constante nas relações estabelecidas entre grupos indígenas e escravos
africanos (e seus descendentes) ao longo da história da América portuguesa. Os modos de
resistência eram, por vezes, implementados no cotidiano desses homens e mulheres por meio de
diferentes formas de burlar a exploração que sofriam, ou então eram formas de resistência “mais
ativas” que, em última instância, colocavam em cheque a escravidão ou a servidão.
Estudos feitos no âmbito da História Social e da História Cultural têm mostrado como a
capacidade e as formas de resistir foram diversas ao longo dos quase quatrocentos anos de vigência
da escravidão negra e da servidão indígena. Como esse é um tema de grandes debates, neste
tópico, vamos focar, de forma esquemática, somente alguns de tipos de resistência à exploração do
trabalho escravo.

Fuga
A forma mais comum e frequente de resistência foi a fuga, estratégia realizada tanto por
africanos escravizados e seus descendentes crioulos, quanto por povos indígenas.
No caso de grande parte dos índios que viviam nas regiões litorâneas da América
portuguesa, a construção do sistema colonial e a implementação da escravidão (mesmo que ilegal)
resultaram em fugas massivas para regiões mais interioranas, pouco conhecidas dos colonos. Esse
movimento pode ser observado tanto no nordeste da colônia, voltado para a produção açucareira,
como no sul e sudeste, locais para onde muitas sociedades indígenas fugiam da obrigatoriedade da
evangelização das missões ou então da feracidade das bandeiras paulistas.
No caso da escravidão negra, para tentar contornar o problema das fugas nas regiões rurais, os
senhores, geralmente, contratavam os chamados capitães-do-mato, homens especializados em recapturar
escravos fugidos. Já nas principais cidades, a captura de escravos era responsabilidade dos órgãos
administrativos. Quando a imprensa foi permitida no Brasil (no início do século XIX), os jornais das vilas
e cidades eram repletos de anúncios feitos pelos senhores, que não só denunciavam as escapadas dos
escravos como também ofereciam a descrição física do fugitivo e, muitas vezes, algum tipo de recompensa
para quem o encontrasse. Quando os escravos foragidos eram capturados, os proprietários costumavam
aplicar castigos físicos violentos, como as chibatadas (que poderiam passar de mil), o tronco ou então o uso
de gargalheiras. Todavia, independentemente das punições, a fuga foi uma estratégia amplamente
praticada por aqueles que viviam no cativeiro.

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Criação de quilombos
Muitas fugas, realizadas tanto em regiões rurais como em grandes cidades, acabaram
resultando na formação de mocambos e quilombos, que, muitas vezes, recebiam não só escravos
negros como também indígenas que fugiam da servidão.
Pesquisas mais recentes têm mostrado que, em grande parte dos casos, os quilombos não se
transformaram em sociedades isoladas, que se colocavam totalmente à parte do mundo colonial.
Embora os foragidos conseguissem, em muitos casos, transformar os quilombos em espaços onde
pudessem refazer suas vidas em meio a uma liberdade específica, grande parte dos quilombolas
mantinham relações com o mundo que tinham deixado para trás, pois, muitas vezes, nesse
mundo ainda estavam diversos de seus entes queridos.
Grande parte dos quilombos identificados pela historiografia estava localizada próxima a
regiões com grande concentração de escravos. Um dos exemplos mais emblemáticos é o caso de
Palmares. O mais conhecido quilombo da história brasileira foi formado ao longo do século XVII,
nas adjacências da Zona da Mata pernambucana, local onde, à época, havia intensa produção de
açúcar e, consequentemente, significativa concentração de cativos.
A região das minas, que possuía a maior concentração de escravos no século XVIII, também foi
palco da formação de muitos mocambos. Os quilombos mineiros não só expunham a fragilidade do
controle de escravos na região mas também causavam grandes transtornos às vilas e cidades.

Revoltas
Junto às fugas, as revoltas também foram estratégias de luta utilizadas pelos índios e escravos.
Embora muitas delas tenham sido descobertas quando ainda estavam em fase de conspiração, a
possibilidade de revoltas indígenas e negras era muito temida pelos senhores e pelas autoridades da
América portuguesa, já que muitas delas almejavam o fim total da escravidão na colônia.
Como as revoltas estavam atreladas a contextos e regiões específicas da América colonial,
seria impossível discorrermos sobre todas elas. No entanto, vale destacarmos alguns dos episódios
que mais marcaram o período colonial.
No caso dos levantes indígenas, podemos apontar a Guerra dos Aimorés (1555-1673), a
Guerra dos Potiguares (1586-1599), o Levante dos Tupinambás (1617-1621) e a Confederação
dos Cariris (1686-1692).
Embora a maior revolta escrava do Brasil (a Rebelião dos Malês) tenha acontecido apenas
em 1835, africanos escravizados e crioulos participaram de alguns movimentos insurretos que
defendiam o fim da escravidão. A Conjuração Baiana, também conhecida como a Revolta dos
Búzios, na Bahia, em 1798, é um dos mais importantes (e perigosos) exemplos.

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O quadro a seguir resume as revoltas citadas.

Quadro 1 – Algumas revoltas que marcaram o período colonial

revolta período

Guerra dos Aimorés 1555-1673

Guerra dos Potiguares 1586-1599


revoltas indígenas
Levante dos Tupinambás 1617-1621

Confederação dos Cariris 1686-1692

Conjuração Baiana 1798


revoltas de africanos
Rebelião dos Malês 1835

Mestiçagem: o mosaico étnico da América portuguesa e a


criação de novas práticas culturais nas Américas
Vejamos um trecho da obra de Serge Gruzinski, um dos mais importantes estudiosos do
processo de miscigenação engendrado no Novo Mundo, a partir de 1492:

As mestiçagens desencadeadas pela conquista do Novo Mundo parecem


indissociáveis de dois outros fenômenos maiores na América do século
XVI: de um lado o que costuma se chamar “o choque da Conquista”, e,
de outro, o que chamei de ocidentalização, essa empreitada multiforme
que levou a Europa ocidental, no rastro de Castela, a fazer a conquista
das almas, dos corpos e dos territórios do Novo Mundo. O fato de as
mestiçagens americanas terem se inscrito numa fase de expansão da
Europa e num contexto de colonização impede que sejam reduzidas a um
fenômeno cultural. Se queremos compreendê-las, não podemos abstrair
seus laços com a Conquista e a ocidentalização que as acompanharam
(GRUZINSKI, 22, p. 63).

Embora as áreas de pesquisa de Gruzinski sejam a conquista da Nova Espanha e sua


colonização, a forma como esse autor trabalha com o conceito de “mestiçagem” é interessante
para pensar também o caso brasileiro. Assim como ocorreu no mundo espanhol, a mestiçagem

37
ultrapassou as fronteiras daquilo que se pode considerar um “fenômeno cultural”, caminhando
lado a lado com a violência que marcou o processo de conquista europeia nas Américas.
Em muitos casos, a miscigenação aconteceu de forma consentida em solo americano, como
no caso do casamento entre a índia Bartira e o colono português João Ramalho, na capitania de
São Paulo, no início do século XVI. No entanto, o estabelecimento das relações sexuais que
geraram os mestiços no contexto da América portuguesa foi marcado pela violência extrema,
sobretudo contra as mulheres índias, negras e, mais tarde, as caboclas e mestiças. Sua condição de
mulheres e o fato de se encontrarem em situações efetivas de subjugação (como a servidão e a
escravidão) fizeram com que a maior parte dessas mulheres não brancas estivessem “disponíveis”
para seus senhores e colonos, independentemente de suas vontades.
Não bastasse tal subjugação, essa relação de extrema violência (sobretudo sexual) era
travestida por discursos racializados a respeito da pretensa natureza sexual mais libertária de
índias, negras e mulatas, que, parafraseando Pero Vaz de Caminha “não cobriam suas vergonhas”,
andando com seus corpos nus e, muitas vezes, insinuando-se para os colonos brancos.
Feita essa ressalva, é fundamental pontuarmos que a mestiçagem foi um dos pilares da
formação social da América portuguesa, pilar esse referente não só à composição étnica da
população mas também a práticas, costumes e ritos que caracterizaram essa sociedade. Dessa
forma, existem diferentes tópicos para se focar quando se trata da mestiçagem no período
colonial: o estabelecimento de relações sexuais (consentidas ou não), a forma por meio da qual
casamentos e relações de afeto foram constituídos, entre outros aspectos. Nesta unidade, iremos
trabalhar com alguns exemplos de mestiçagem a partir de manifestações e práticas religiosas da
América portuguesa que, em tese, faziam parte do “catolicismo mestiço dos trópicos.”
Para tanto, é importante frisarmos que a Igreja Católica foi uma das mais importantes
instituições da história do Brasil. Como pontuado por Charles Boxer (2002), é possível
afirmarmos que a Igreja Católica foi uma das responsáveis pela chegada dos portugueses no Novo
Mundo bem como por parte das políticas coloniais adotadas pela metrópole.

Não restam dúvidas de que a colonização das Américas


também era um movimento de conversão e catequese dos
autóctones do continente e, mais tarde, dos africanos
escravizados que aqui chegavam.

Os habitantes da América portuguesa – índios, africanos, portugueses, escravos e livres –


deveriam ser todos católicos. Dessa forma, para garantir que o catolicismo fosse amplamente
praticado, a Santa Inquisição também chegou ao Novo Mundo, demonstrando que a Igreja levava
muito a sério a obrigação de cuidar de seu “rebanho” e assegurando-se de que ninguém desviaria
dos propósitos divinos.

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No entanto, africanos e indígenas souberam ler as entrelinhas das mensagens que eram
pregadas, ressignificando práticas religiosas como forma de resistência. Em alguns casos, como nas
irmandades negras, tais práticas pareciam conviver com o sistema escravista, mas, em outros, a
escolha religiosa não só criou um “catolicismo mestiço” – que, até hoje, pode ser visto em uma
série de manifestações culturais brasileiras – mas também transformou-se em ferramenta efetiva de
luta e resistência dos mestiços da América portuguesa.

Índios e Santidade
No caso das sociedades indígenas, o fenômeno da Santidade pode ser tomado como uma
releitura da mestiçagem étnico-racial e cultural ocorrida no período colonial. Segundo Schwartz
(1992) e Vainfas (2010), a Santidade (nome dado pelos portugueses) foi um fenômeno
desenvolvido no contexto de conquista espiritual dos índios, que criaram um culto sincrético e
messiânico, em que questionavam o Deus católico e posicionavam-se contra os senhores brancos.
Esse movimento era uma combinação de crenças dos tupinambás no paraíso terrestre com a
hierarquia e os símbolos do cristianismo. Havia o culto a ídolos com poderes sagrados feitos de
cabaça e pedra que, segundo os seguidores, dotariam os fiéis de força para lutar contra os brancos.
Do sincretismo dos dizeres e propósitos cristãos com as crenças e práticas religiosas indígenas
originaram-se os “santos”, que teriam o poder de vitalizar os idosos ou fazer as enxadas
trabalharem sozinhas. No entanto, para contatá-los, era necessário entoar cantos e realizar
cerimônias que podiam durar dias seguidos (regados de bebidas alcóolicas e infusões de tabaco),
muitas vezes, levando os fiéis ao estado de transe.
Como pontuado pelos historiadores que analisaram esse fenômeno, o mais interessante era
reconhecer as contribuições católicas desse movimento. Além dos ídolos receberem o nome de
santos, os líderes do movimento se proclamavam “papas”, e chegavam a nomear bispos e
organizar os “missionários”, que tinham a incumbência de difundir o culto em outras localidades.
Schwarctz conta que houve até mesmo um caso em que os seguidores da Santidade criaram uma
igreja destinada ao culto de Maria.
O movimento da Santidade foi muito comum durante o século XVI, o que demonstra
como os índios que entraram em contato com os portugueses souberam enxergar as crenças cristãs
sob uma nova ótica, uma visão que lhes favorecia e que questionava as bases do sistema colonial
que estava sendo montado.
Com o passar dos anos, a morte crescente de adeptos, devido a epidemias, e a entrada cada
vez mais volumosa de africanos escravizados, a “Santidade” foi perdendo parte de seus seguidores
e deu lugar a outras manifestações sincréticas, oriundas da miscigenação de determinadas práticas
indígenas e portuguesas.

39
As irmandades negras: miscigenação e resistência

Compromisso da Irmandade de N. Senhora do Rosário dos Pretos, denominada do Alto da Cruz,


da Freguesia de N. Senhora da Conceição de Antônio Dias de Villa Rica de Ouro Preto.

Este compromisso é Lei inviolável, a que se sujeitam àqueles Católicos, que se querem alistar
nos Livros desta Irmandade, ficando desde o dia, em q. se assentam sujeitos a os encargos
possam subsistir com os cultos B mesma Senhora, de quem fomos filhos. [...]

Capítulo 2

Terá o irmão Juiz diante de si hum papel, no qual estar no lançados para Juízes três Irmãos, para
Escrivão três, para tesoureiro três, para Procuradores três, a saber os Juízes Pretos, os Escrivães
Brancos, ou alguns irmos, ainda que pretos, Que tenham cabal inteligência para o dito
emprego, e para Tesoureiro três brancos, e para Procuradores três irmãos Pretos, que sejam de
boa nota e de conhecida verdade, zelo e inteligência; e depois mandará separar para uma parte
todos os Adjuntos e chamará a cada um de por si, e lhe perguntará, em qual daqueles três vota
para juiz, e na margem do mesmo irá o Escrivão fazendo riscos naqueles em que forem os
votos e findo todos, se contar os ditos votos, e os que tiverem mais esses ser os Eleitos; e os
doze irmãos de Mesa ser na mesma ocasião eleitos pela mesma forma, sem que huns e outros
depois de eleitos canonicamente se possam eximir, salvo com justificada razão.

O trecho que acabamos de apresentar faz parte do Compromisso da Irmandade de Nossa


Senhora do Rosário dos Pretos, denominada do Alto da Cruz, da Freguesia de Nossa Senhora da
Conceição de Antonio Dias de Villa Rica (atual Ouro Preto), do ano de 1785. O Compromisso foi
um documento que não só marcou o “nascimento das irmandades” mas também definiu o
funcionamento padrão dessas associações de ajuda mútua.
Graças à forte presença da Igreja Católica no Mundo Ibérico, tais irmandades existiram aos
montes na América Colonial, podendo, como no caso apresentado, ser organizadas e lideradas por
homens e mulheres de cor. De forma geral, A história das Irmandades Religiosas remonta à Idade
Média, período em que devotos de determinados santos criaram, com o aval da Igreja Católica,
organizações cujo principal objetivo era fazer caridade e ampliar a fé cristã.
As irmandades negras criadas desde o período colonial seguiam os mesmos preceitos
religiosos das demais: todos os membros deveriam efetuar o pagamento de uma taxa anual,
dinheiro esse que seria revertido em festas, rituais fúnebres e missas das igrejas. A grande diferença
dessas Irmandades estava na condição de seus membros (a maioria era escrava ou liberta) e no fato
de elas adorarem santos negros, como Nossa Senhora do Rosário, Santos Elesbão, Santa Ifigênia e
São Benedito.

40
Além de um espaço de socialização e recriação de laços familiares, as Irmandades Negras
também foram a alternativa encontrada por muitos escravos não só para construir suas famílias
extensas mas também para lutar pela liberdade. Por meio da filiação a associações que eram bem
vistas pelas autoridades coloniais, os membros de uma mesma irmandade criavam laços de
amizade, parentesco e, sobretudo, solidariedade.
Em muitos casos, o padrinho de um recém-nascido era escolhido dentro da irmandade de
que os pais da criança faziam parte. Casamentos entre escravos ou entre cativos e libertos também
ocorriam dentro dessas organizações. As irmandades negras garantiam ainda um enterro e um
cortejo fúnebre digno a todos os seus membros.
Dessa forma, tais associações exerceram um papel fundamental na vida religiosa de muitos
homens e mulheres que vieram escravizados da África. Essas irmandades negras garantiam que a morte
de seus membros fosse ritualizada de maneira adequada, respeitando assim diversos preceitos
encontrados em muitas sociedades africanas. Não por acaso, existem diversos documentos que
descrevem toda a liturgia que acompanhava o cortejo fúnebre desses irmãos negros que, caso não
pertencessem a essas associações, provavelmente teriam seus corpos jogados em uma vala comum, sem
nenhum tipo de ritual que marcasse sua entrada no mundo dos mortos.
A Igreja Católica e muitos proprietários de escravos enxergavam com bons olhos a
formação das irmandades negras, pois acreditavam que essa era mais uma forma de controlar a
população de cor, já que esses homens e mulheres estavam comungando dos mesmos preceitos
religiosos defendidos por seus senhores, preceitos esses que defendiam a escravização de negros
crioulos ou escravos.
Sem dúvida alguma, as Irmandades Negras funcionaram como um importante elemento de
sincretismo religioso e racial ao longo da história do Brasil, já que grande parte delas aceitava, de
bom grado, a presença de homens brancos (de preferência, ilustres) que ocupassem cargos de
destaque e chefia.
No entanto, ainda que professassem a mesma fé religiosa que seus senhores, autores como
Julita Scarano (1976) e Mariza Soares (2002) apontam que as irmandades negras foram
importantes espaços de sociabilidade para negros africanos e crioulos, escravizados e alforriados.
Em alguns casos, as irmandades negras ou irmandades de “homens pretos” eram formadas por
africanos escravizados de mesma origem. Escravos e libertos de Angola ou Congo se reuniam e
formavam uma irmandade, reforçando assim identidades oriundas do outro lado do Atlântico.
Desse modo, em determinadas situações, esses escravos também cultuavam entidades religiosas
africanas ou atribuíam as mesmas características dos deuses de sua terra de origem a santos
católicos, como a forte relação estabelecida entre São Jorge e o orixá Ogum.

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Ao analisar a Irmandade de Santa Efigênia, no Rio de Janeiro, Mariza Soares sublinhou
importantes características dessa associação. Vejamos:

[...] constituída basicamente por africanos de língua gbe, vindos da Costa


dos Escravos. No ano de 1740 esses santos já são venerados por um
grupo de aproximadamente trinta pessoas numa casa particular na
Freguesia da Candelária quando seus devotos decidem transferir as
imagens para a capela de São Domingos, localizada na mesma freguesia.
Existe nessa igreja outra devoção de pretos minas onde estão reunidos
povos de outras áreas que não a Costa dos Escravos. Por motivos
desconhecidos, os dois grupos ditos minas se reúnem no interior da
mesma capela mas permanecem separados em suas devoções. Por outro
lado os devotos de Santo Elesbão partilham sua irmandade com africanos
procedentes de Moçambique, Cabo Verde e São Tomé, também sem
qualquer proximidade linguística ou cultural em relação aos povos de
língua gbe (SOARES, 2002, p. 59-83).

Podemos observar, portanto, que as irmandades funcionaram como importante veículo de


recriação de laços indenitários que, embora relidos sob a égide da miscigenação colonial, estavam
calcados em pertenças e identidades de origem africana.
Desse modo, mais do que facilitar a formação de famílias negras e mestiças de acordo com
os padrões europeus (ou a família nuclear, composta do casal e de seus filhos), os africanos e
crioulos escravizados conseguiram desenvolver, por meio do apadrinhamento, uma ideia de
família muito próxima daquela encontrada em regiões africanas: a família extensa. Já que os laços
de parentesco originais haviam sido rompidos pelo processo de escravização, muitos cativos, forros
e livres encontraram nas irmandades não só uma forma de recuperar identidades africanas
ressignificadas no Novo Mundo, mas também uma oportunidade de fazer do apadrinhamento
uma ferramenta eficaz e legítima (frente aos olhos dos senhores, da Igreja Católica e do Estado) de
reconstruírem suas redes de parentesco.

Era comum que escravos e libertos batizassem os filhos de


seus companheiros sob o juramento de se
responsabilizarem pela criança caso algum incidente
ocorresse com seus pais. Em outras palavras, era um modo
de a comunidade se colocar à disposição para ajudar uma
criança que fazia parte dos seus.

42
O compadrio também foi utilizado como uma estratégia de luta pela liberdade dos
membros das Irmandades Negras que se encontravam na condição de escravos. Não eram raros
casos em que a escolha de padrinhos e madrinhas era guiada pelo fato de esses homens e mulheres
serem livres ou alforriados, o que aumentava muito as chances de eles intercederem pela liberdade
de seus afilhados. Em casos pontuais, alguns escravos chegavam a escolher como padrinho de seus
filhos seus próprios senhores, com a esperança de que, em um ato de benevolência cristã, eles
libertassem seus filhos na pia batismal.
Mas não foi apenas por meio do apadrinhamento que as irmandades negras exerceram o
importante papel de luta pela liberdade de seus membros que ainda viviam em cativeiro. Diversos
escravos africanos e crioulos conseguiram obter sua liberdade graças a poupanças feitas por seus
“irmãos” de credo. Essas poupanças tinham o objetivo de comprar a alforria de um membro e,
assim que esse objetivo era alcançado, a irmandade começava uma nova poupança para ajudar
outra pessoa.
A fim de conseguir juntar o montante necessário para a compra de alforrias, cada
irmandade fazia uma festa anual para seu santo padroeiro. Esse era o momento mais importante
para essas instituições. Tal comemoração contava com uma longa procissão, uma missa solene e
uma grande festa com muita música, dança e batuque. Também era nessa festa que a irmandade
coroava seu rei e sua rainha. Para os escolhidos, esse era um momento de grande prestígio frente a
seus companheiros.
A devoção de escravos e libertos fez com que algumas irmandades negras ganhassem muito
prestígio, transformando-se em organizações com diversos terrenos e propriedades. Boa parte dessas
irmandades continuou existindo durante todo o período do Império do Brasil (embora tenham
perdido parte de suas riquezas), e algumas delas mantêm suas atividades até os dias de hoje.

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PROFESSORA-AUTORA
Ynaê Santos Lopes é doutora e mestre em História Social pela
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo. Tem experiência na área de História Social, com ênfase em
História Atlântica e Ensino de História, atuando principalmente nos
seguintes temas: escravidão, América Ibérica, formação dos estados
Nacional, cidades escravistas, e ensino de História e Memória da
escravidão. No âmbito do Programa de Formação de Quadros Profissionais do CPDOC,
desenvolveu a pesquisa “À beira do Rio. Escravidão urbana no Rio de Janeiro como ferramenta
para o estudo da História, memória e do Ensino de História”. É, ainda, autora dos livros: “Além
da Senzala. Arranjos escravos de moradia no Rio de Janeiro (1808-1850)”, pela HUCITEC
Editora, e “Licenciatura em História da África”, pela editora PUC-Rio.

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