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CHAGAS, Mario. Memória e espaços de poder museologia social e práticas afins. Youtube.

Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=7KZhEq2sZFU >. Acesso em: 20 de abr. 2021.


1:35:01

Transcrição de vídeo

Memória e espaços de poder museologia social e práticas


afins com Mário Chagas
• Mário Chagas - Poeta e museólogo, Professor da Faculdade de Museologia da UNIRIO, diretor do
Museu da República e Presidente do Movimento Internacional para uma Nova Museologia – MINOM
– Rio de Janeiro/RJ

José Márcio Barros:


Tradicionalmente, a museologia estabeleceu-se como campo de saber dotado de competência para
legislar sobre os modos de narrar o passado, construindo metodologias que representam uma visão
convencional sobre o assunto. Reações a esse panorama clamam por uma maior maleabilidade e
permeabilidade social, sugerindo estratégias criativas e participativas de lidar com a memória. Os dois
vetores se entrecruzam cada vez mais, construindo uma rede de possibilidades para flexibilizar as ações
nesse campo.

Então, brinquei ali com o Chagas, vamos ser dois cabeludos na mesa. Dá para essas personagens.
Então, gente, Mário Chagas é poeta, mestre em Memória Social pela UniRio e doutor em Ciências
Sociais pela UERJ. É um dos responsáveis pela política nacional de museus aqui no Brasil, lançada
em 2003, e um dos criadores do Sistema Brasileiro de Museus.

Relacionado ao programa Pontos de Memória também, do Programa Nacional de Educação Museal,


PNEM, e no Instituto Brasileiro de Museus. Atualmente, é diretor do Museu da República, do Instituto
Brasileiro de Museus, e preside o Movimento Internacional para uma Nova Museologia. Chagas é uma
pessoa que todos que estudamos a questão da memória, do patrimônio, da museologia, certamente
passamos pelas mãos, pelas ideias, pelos textos do Chagas, uma pessoa muito querida, muito
importante, muito… com uma atuação muito importante na formação de todos nós.

Só para introduzir, o tema desta mesa é “Memória e Espaços de Poder: Museologia Social e Práticas
Afins”, e acho muito oportuno que esta fala do Chagas venha logo depois da exposição que nós tivemos
na mesa anterior, no sentido de pensarmos que a questão da memória é sempre configuradora de
espaços, de lugares, de territórios que revelam sempre lutas, disputas e narrativas. Não há como
esvaziarmos essa dimensão quando falamos de memória, de espaços.

Na minha perspectiva… Não sou um museólogo, aliás, minha formação é em Ciências Sociais e
Antropologia, e é curioso; quando fui convidado a ser diretor do Museu Abílio Barreto, que é um
museu histórico da cidade de Belo Horizonte, eu sofri uma resistência muito grande, porque eu não

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era nem historiador e muito menos museólogo; e fui convidado, na época, pelo prefeito Patrus Ananias,
pelo secretário, a assumir o Museu Abílio Barreto. Tive que enfrentar uma certa resistência
corporativa, mas muito compreensível, em relação a isso. E aí, logo que eu assumi, o aniversário de
Belo Horizonte é dia 12 de dezembro, período que chove, e eu falei: “Ai, meu Deus, por que não
deixaram para inaugurar esta cidade depois das chuvas?” Porque você organizar eventos em época de
chuvas é muito difícil. E aí, estávamos em uma gestão do PT, do Partido dos Trabalhadores, a primeira
gestão do PT em Belo Horizonte, e é claro que, na exposição para comemorar o aniversário de Belo
Horizonte, íamos fazer o quê? Uma exposição sobre os trabalhadores que construíram a cidade, e não
os engenheiros que a desenharam e a planejaram.

E aí, para minha surpresa, cadê o acervo? Onde estavam os trabalhadores no acervo do Museu Abílio
Barreto? Eles estavam só desfocados nas fotos, atrás dos engenheiros-chefes da construção. Então
tivemos que fazer uma… convocar a criatividade da museografia para falar da ausência dos
trabalhadores que tinham construído Belo Horizonte, já que nós não tínhamos um acervo.

Por que estou contando essa historinha? Porque acho que tem muito a ver com essa temática da
museologia social, dessas práticas, dessa questão das disputas de poder. No fundo, a museologia social,
no meu entendimento de não-especialista, concebe sujeitos, objetos e processos de produção, de
preservação, de promoção da memória no seu sentido mais plural possível, o mais amplo possível. No
fundo, nós falamos no singular aquilo que é eminentemente plural: são várias as memórias, são vários
os sujeitos, são várias as museografias e museologias. Ou seja, é preciso pensar que a museologia,
reconhecer que a museologia social, enquanto um movimento acadêmico, político, ideológico,
metodológico, busca o reconhecimento das diferenças, mas com a perspectiva - que para quem trabalha
com diversidade cultural é muito importante - que é a perspectiva dessas diferenças nos encaminharem
para o reconhecimento da diversidade e da pluralidade.

Esses são dois termos que dão amplitude e sentido para a questão das diferenças. Não basta apenas
reconhecermos as diferenças; é preciso que, por meio das diferenças, construamos o exercício da
diversidade e o estatuto da pluralidade, que é o estatuto da equidade, do direito de sermos iguais em
nossas diferenças. E me parece que são essas questões que a museologia social traz de uma forma tão
forte, tão grande, e que a produção e o pensamento do Chagas expressam de forma tão brilhante. Então
vou passar a palavra aqui para o Chagas, para que ele desenvolva suas ideias.

Mario Chagas:
Boa tarde a todas e todos.
Agradeço essa introdução tão generosa, inteligente, delicada, mas também quero saudar a presença de
todas e todos aqui e agradecer aos organizadores do seminário, que tem um caráter muito especial
neste momento que estamos vivendo.

É um seminário da maior importância, discutir o direito à memória. E sabemos muito bem que por trás
de cada direito há uma gota de sangue, no mínimo, então é um tema, na verdade, muito importante.

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Mas quero agradecer, portanto, aos organizadores do evento, Flávia, João, Nathan, e todos que atuaram
fortemente, outros eu não conheço pessoalmente, mas, em nome de Flávia, João e Nathan, agradeço a
todos os outros. E desde já, também, agradecemos aos nossos intérpretes de LIBRAS, que fazem esse
trabalho maravilhoso e que nos traduzem para outra língua e portanto ampliam o alcance do que aqui
estamos debatendo.

Eu vou me deslocar para ali, que acho que fico mais à vontade.

Vocês devem acreditar no que vou dizer: eu não combinei a minha fala com Suzenalson. Acreditem
nisso. Não estou fazendo uma piada, não estou fazendo pegadinha. Eu não combinei com ele. Nós não
nos falamos nestes últimos dois meses. Nós não nos falamos, ainda que tenhamos um contato
relativamente assíduo. Já estive com Suzenalson em Tremembé e alguns outros lugares, em Fortaleza,
no Rio de Janeiro e tudo mais. Digo isso porque eu trouxe também algumas falas que de algum modo
repetem o que Suzenalson apresentou.

Quero também pedir desculpas; eventualmente, algumas pessoas que estão presentes podem já ter
assistido a alguma coisa do que vou aqui apresentar, então eu peço desculpas. A minha imaginação
não é tão criativa assim, então acabamos nos repetindo um pouco. Mas para provar que pode haver
inovação na repetição, vou dizer um poema. É assim: “Entre jovens poetas, sou onda, nado e nódoa, e
me repito, e me repito, e me repito e me repinto sempre.” Essa é a ideia, portanto.

Eu trago o tema Memória e Espaços de Poder: Disputas no Campo da Museologia. Eu também, como
Márcio, fiquei bem encantado, impressionado com as ementas, então eu aqui repito as ementas, mas
não vou ler a ementa; vocês as têm com vocês. Mas eu quero dizer que a minha fala aqui deve ser lida
na clave de três princípios.

Primeiro princípio: a museologia que não serve para a vida não serve para nada. Um museu que não
serve para a vida não serve para nada. Esse é o primeiro princípio que deve acompanhar a minha
intervenção.

O segundo princípio é: museologia do afeto. Em tempos precários, o amor e o afeto são


revolucionários. A ênfase no afeto e no amor é fundamental. Podemos, portanto, falar em uma
museologia do afeto.

E o terceiro princípio: é importante ocupar a palavra e o conceito “museu”. Essa é uma palavra… O
conceito “museu”, a categoria “museu” nasce na Europa, mas é importante decolonizar o conceito
“museu”, decolonizar a prática “museu” e, nesse sentido, ocupá-la, a palavra e a prática. Assim como
é importante ocupar a palavra “memória”, importante ocupar a palavra e a prática “universidade”.

Esta fala está dividida em três aspectos, em três partes.

No primeiro eu faço, ou tento fazer, um diagnóstico da crise museal nos anos de 1970, e faço esse
diagnóstico a partir de um intelectual que já apareceu aqui, apresentado pelo Suzenalson, que é Hugues

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de Varine, que esteve no Ceará e visitou pelo menos um dos museus indígenas. A partir de uma
entrevista de Hugues de Varine, eu busco fazer esse diagnóstico da crise museal nos anos de 1970.

Na segunda parte, eu busco tratar de novos agenciamentos, novas práticas e reflexões, e por fim,
desdobramentos contemporâneos.

O diagnóstico museal da crise nos anos de 1970.

Então aqui vai: em 1979, foi publicado, na coleção Grandes Temas da Biblioteca Salvat, o livro
“Museus no Mundo”.

Nesse livro havia um ponto forte, um ponto importantíssimo, que era - e é, porque o livro ainda pode
ser encontrado nos alfarrábios e nos sebos virtuais, nos alfarrábios virtuais você pode encontrar - o
livro tem um ponto forte, entre tantos outros, que é uma entrevista concedida por Hugues de Varine,
na qual ele apresenta novas possibilidades para pensar os museus e a museologia. E esse livro foi uma
referência importante nos Anos 70 para quem, como eu, estudava museologia, buscava se iniciar nesse
campo. Esse livro trazia um conjunto de referências que não estavam dispostas, não estavam
apresentadas, não estavam incluídas nos manuais, nos livros clássicos do campo da museologia. Nada
daquilo se encontrava. E ainda assim, naquele tempo, em 1970, uma bibliografia especializada em
museologia em língua portuguesa, no Brasil, era muito rara.

E esse livro foi publicado em espanhol na Espanha, foi publicado em francês na Suíça, e publicado em
português no Brasil. Foi uma tiragem popular, uma tiragem que estava nas bancas de jornais. Eu fico
imaginando que devia haver 20 mil, 30 mil livros, porque até hoje você pode encontrar livros novos,
esses mesmos livros novos, em boas condições, em um preço muito bom. Com o frete, vai sair a 15
reais, e eu aqui faço uma propaganda, mas não é para mim, é para as ideias que estão contidas nesse
livro. Esse livro impactou historiadores, museólogos, educadores, antropólogos e muito mais.

O que dizia? O que estava presente nessa entrevista, que eu considero um dos pontos fortes do livro?
Por exemplo, Hugues de Varine dizia: “A partir dos princípios do século 19, o desenvolvimento dos
museus no resto do mundo é um fenômeno puramente colonialista. Foram os países europeus que
impuseram aos não-europeus seu método de análise do fenômeno e patrimônio culturais. Obrigaram
as elites e os povos desses países a ver sua própria cultura com olhos europeus. Assim, os museus, na
maioria das nações, são criações da etapa histórica colonialista.” É muito forte isso. Em 1979, você ter
um autor europeu denunciando que os museus são um fenômeno puramente colonialista.

Não se falava, nesse momento, em descolonização, nem em decolonialidade, mas era um autor,
portanto, francês trazendo isso. E ele dizia mais: dizia que se houve uma independência política - que
até hoje, em alguns países, isso pode ser debatido, discutido - não houve uma independência cultural.
Portanto, do ponto de vista cultural, as práticas continuam reproduzindo um pensamento, uma
mentalidade colonial, colonizadora.

Em que contexto essa entrevista se dava? 1970, anos 60 e 70, nós tínhamos uma grande presença dos
movimentos sociais. Movimento estudantil acontecendo, movimento negro, movimento feminista, a

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luta antimanicomial, os movimentos da contracultura, o movimento hippie está por aí, o movimento
pelos direitos humanos e outros tantos movimentos. De outro lado, tínhamos passado pela mesa-
redonda de Santiago do Chile, em 1972, que aconteceu em Santiago do Chile no governo de Salvador
Allende, um governo socialista e eleito democraticamente. Tínhamos passado pela Revolução dos
Cravos em Portugal e estávamos, no momento, com as lutas de libertação nacional pelos povos
africanos, a guerra americana no Vietnã, e, na América Latina, ditaduras militares, torturas,
perseguições políticas e movimentos de luta e de resistência. Esse era o quadro, vamos dizer, o cenário
em que essa entrevista acontecia, portanto, era dentro de um contexto também de luta, de resistência,
de investimento em novas possibilidades de pensamento.

Os desafios que estavam contidos nesse diagnóstico elaborado por Hugues de Varine, a construção de
uma nova ética e de uma nova política museológica. Então ele apontava para a possibilidade, portanto,
de uma nova ética aplicada ao campo dos museus e da museologia, para uma nova forma de pensar e
praticar a política nesse campo dos museus e da museologia, mas também apontava para a produção
de novos saberes, de novos fazeres museais. Ou seja, a entrevista trazia um desafio: é possível pensar
uma museologia fora dos quadros coloniais?

É possível pensar museus fora desses quadros? Se é possível, por onde fazer? Por onde começar? E o
livro também apresentava pistas, trazia as pistas por onde ir. Vocês imaginem, eu era um jovem, não
tinha os cabelos brancos que tenho hoje, tinha barriga de tanquinho, como gosto de dizer… Só para
não esquecer que eu tive barriga de tanquinho! Mas na verdade isso era um impacto, assim, era uma
coisa fortíssima você ler uma entrevista dessas. Ela abria um horizonte. Está entre esses livros
seminais, que traziam novidades. Então, ainda esse mesmo diagnóstico apontava para a possibilidade
de uma nova abordagem historiográfica dos museus.

A história dos museus não precisava necessariamente ser contada a partir da Grécia antiga; você
poderia pensá-la, e deveria pensá-la a partir de outros padrões. Ou seja, uma nova construção
historiográfica também estava ali presente, e uma nova construção teórica. Seria possível outra
museologia, pensar outra museologia, uma nova configuração museográfica também estava em curso.

E por fim, o desafio de não apenas lidar com objetos, mas lidar com pessoas. Estou convencido de que
aquilo que temos no Museu Kanindé é uma nova forma de lidar com os objetos e com as pessoas.
Estão buscando novas formas. Por isso ali também tem os Encantados Presentes. Na verdade, nós nos
iludimos muito quando pensamos que museu é lugar, quando pensamos que nos museus estão
apresentadas coisas. Estão apresentadas ideias, são apresentadas discussões, debates. É isso que está
apresentado ali. Nenhum quadro… nenhuma pintura, nenhuma obra de artes visuais feita, por exemplo,
com base em tintas, é apenas tinta. É outra coisa. Mas isso se revela na relação, porque as obras não
existem por si. Elas existem na relação.

Assim são os museus. Eles não existem em si mesmos; eles existem na relação, e é na relação que se
configura outra possibilidade, que é a experiência que o Márcio trouxe com a filha dele na catedral, na
igreja. E a relação é diferente de pessoa para pessoa, e essa é uma das grandes potências dos museus.

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Então o livro apresentava uma nova forma de lidar com as pessoas e trazia embutida uma questão
forte: é possível romper com a perspectiva museológica colonial? É claro que para um jovem a resposta
era “sim, vamos buscar isso, vamos encontrar esse caminho”. Qual seria? Nessa mesma entrevista, ele
ainda dizia: “A descolonização que se registrou mais tarde foi política”, quando foi, quando aconteceu,
“mas não cultural. Pode-se dizer, por conseguinte, que o mundo dos museus, enquanto instituição e
enquanto método de conservação e de comunicação do patrimônio cultural da humanidade, é um
fenômeno europeu que se difundiu porque a Europa produziu a cultura dominante e os museus são
uma das instituições derivadas dessa cultura.”

Quanto a esse modelo, muitas forças se insurgiram e disseram: “Não. Nós não queremos isso.” Até
que surgiram outras possibilidades de pensar os museus, não apenas naquele modelo europeu. Mas o
próprio Hugues de Varine já trazia algumas respostas possíveis. Em 1979, nessa mesma entrevista, ele
já destacava Paulo Freire como um dos melhores pedagogos do mundo atual, e dizia que é
imprescindível conhecer sua teoria da educação como prática da liberdade. E mais: buscava fazer uma
associação entre a teoria de Paulo Freire e a museologia. Indicava que aí tinham caminhos, que esses
caminhos poderiam ser trilhados. Mas Paulo Freire pode ser compreendido como um intelectual que
pratica uma descolonização. Portanto, as chaves também já estavam dadas ali, e ele dizia que é
particularmente importante observar em Paulo Freire a transformação do homem-objeto da sociedade
de consumo em homem-sujeito. Portanto, aí, uma prática de liberdade.

Outros temas estavam presentes no livro, e vale mesmo a pena, a partir de hoje… Esse livro tem 40
anos hoje, em 2019. Outros temas: museu e sociedade, novas experiências… Novas experiências, a
dimensão pedagógica do museu, a projeção social do museu, tentativa de ruptura formal.

Quando citava a tentativa de rupturas formais, mencionava ainda uma experiência de um museu ligado
à Fundação Smithsonian, que é o Museu de Vizinhança, localizado em Anacostia, que desenvolveu o
famoso Museu da Ratazana, ou o Museu do Rato, que era uma área da cidade infestada por ratos, e
que o diretor desse museu, um negro, um homem negro grande, eu digo que era um grande negão, esse
homem faz a experiência de criar uma exposição sobre o rato, para contribuir com a população no
sentido de que a população pudesse aprender como o rato vive, como o rato se reproduz, o que o rato
come, que doenças o rato transmite, e ali estava dada a possibilidade de se pensar que um museu pode
surgir a partir de um problema da comunidade. Ou seja, o acervo, concretamente, não era um acervo
sobre o rato; o acervo era o problema, o problema da comunidade, e é isso que eles tratam ali. E essa
experiência está narrada nesse mesmo livro.

As relações público/museu, a análise de gestão de um museu antropológico, do Museu Antropológico


o México, e outras inovações.

Eu gostaria muito de ver, hoje, se nós pudéssemos repensar, repaginar esses temas, trazê-los para a
atualidade e pensar, hoje, como nós enfrentamos esses temas. Nesse momento, ou a partir dali, dessas
experiências, a partir dos Anos 70, alguns caminhos vão sendo buscados, e eles vão sendo nominados
de modo diferente. Surge a ideia da nova museologia, que é uma tentativa de rompimento com os
museus clássicos, com a museologia tradicional. Essa nova museologia, em alguns outros lugares,
como na Suíça, vai ganhar o nome de museologia de ruptura, muitas vezes no Canadá é chamada de

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museologia ativa, em Cuba é chamada de museologia popular, também recebe em vários lugares o
nome de museologia comunitária, em países de língua hispânica muitas vezes se menciona a ideia de
museologia crítica, ecomuseologia, museologia social ou sociomuseologia.

No Brasil, a expressão “museologia social” se firmou efetivamente já no século 21. Já vinha desde o
final dos Anos 90, mas no século 21, especialmente depois da gestão do ministro Gilberto Gil, em
2003, firma-se essa noção de sociomuseologia, de museologia social, que também, em alguns
momentos, é tratada como sinônimo de sociomuseologia. Em Portugal se fala mais de
sociomuseologia. No Brasil, nós falamos especialmente em museologia social. Hoje, em Portugal, há
uma tendência que não me agrada muito, mas ela existe, de considerar que a sociomuseologia é uma
escola de pensamento e a museologia social seria um conjunto de correntes práticas. Não me agrada
essa distinção entre teoria e prática, mas eu respeito os colegas e digo a eles: “Se vocês querem ficar
com a teoria, eu fico com a prática”, porque para mim não é possível teorizar sem prática,
especialmente no campo das ciências humanas e sociais, então essas coisas acontecem juntas e é
mesmo a origem da praxis, está aí, então museologia social… Se querem considerá-la uma prática,
que seja, e é dessa prática que vão surgindo novas possibilidades de pensamento. Bom, esse quadro
me dá o seguinte: eu não vou debater isso, mas queria deixar com vocês essa possibilidade.

Esse diagnóstico me leva, ou contribui, para que nós possamos encontrar pontos para uma boa
conversa, pontos para um bom diálogo. Primeiro, pensar os museus como territórios do “e” e não do
“é”. Já naquela entrevista, isso está indicado. Algumas experiências vão mostrando que o museu não
é o território do “é”, não é uma coisa que se possa definir com precisão. Disso, compreender que todo
desejo de definir o que é um museu morre no limite da definição; ele sempre poderá ser outra coisa.
Ainda: os museus podem ser isso e aquilo, e ainda outra coisa, e também podem ser metamorfoses
ambulantes e tudo ao contrário do que foi dito antes, para não esquecer do Raulzito. Mas é possível ter
outra coisa, outra forma de compreensão dos museus. Também ali estava claro que os museus são bons
para pensar, mas também são bons para sentir, para intuir, para sensibilizar e para atuar. Os museus
são bons para agir, e é o que nós vimos aqui, com a fala, especialmente, do Suzenalson.

É possível pensar os museus como espaço de relação, e não de acumulação. Já naquela entrevista, isso
estava colocado: os museus não são espaço de acumulação, não são apenas o espaço do
entesouramento. Muitos museus entesouram. Eu não sou contra o entesouramento. Eu não poderia ser
contra um dicionário; os dicionários são importantes, mas o dicionário, em si mesmo, não é poesia. É
preciso que eu seja capaz de acionar o dicionário. Então, o entesouramento, o acúmulo de coisas nos
museus, não produz museologia, não produz relação, não produz poesia.

A poesia vem de outra coisa, da forma como eu aciono esses repertórios. Pensar os museus como
práticas sociais. Aí nós avançamos mesmo. Os museus não são edifícios apenas; são práticas sociais.
Mas também são categorias de pensamento. Imaginar que os museus podem ser conectores de espaço
e tempo e também conectores de pessoas e grupos sociais, conectores de nós outros com o mundo dos
encantamentos, com as encantarias, conectores do visível com o invisível, conectores do ontem com o
hoje, do hoje com o amanhã. São conexões possíveis. Por isso cabem tão bem as metáforas de “ponte”,
“janela”, “portal”, “porta”, elas cabem tão bem nos museus, porque eles são esses elementos de
conexão.

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Pensar os museus como dispositivos e heterotopias e buscar exercer a profanação do dispositivo que
captura o desejo humano. Muitos museus capturam o desejo humano. Muitas práticas no campo da
arte capturam. Aquilo que era sagrado passa a ser objeto de cultura. Aquilo que foi uma obra sagrada
na antiga Grécia, aquilo que foi um oratório para as práticas católicas é capturado e é transformado em
uma obra de arte, como se ela pudesse estar esvaziada do seu sentido espiritual. É preciso aprender
com os povos indígenas, que operam sempre em uma frequência muito curiosa, que é assim: produção
do belo - as coisas têm uma dimensão estética importantíssima. Produção do prático - as coisas também
são de ordem prática. Tem que ter utilidade, tem que ter praticidade. E a relação com o espiritual.
Então tem uma relação com a estética, com o belo, a relação com o pragmático, a vida em movimento,
e uma relação com o espiritual, com o sagrado. Mas então é importante também profanar o que
profanou. Mas eu não vou avançar nisso. Reinventar os museus, descolonizar os museus.

Novos agenciamentos, novas práticas e reflexões.

Bom, o desafio. Hoje estamos diante de alguns desafios. Eu ali fiz o diagnóstico anterior. Primeiro
desafio é avançar na direção de uma museologia “com”, e não de uma museologia “para” apenas. O
que é uma museologia “para”? Uma museologia “para” é a museologia extensionista, aquela que, como
que se utilizando de uma extensão elétrica, vai levar luz até outro lugar qualquer, mantendo a metáfora
da eletricidade que o Márcio já levantou mais cedo. Como se isso fosse… Vou levar a luz até aquele
povo que não tem luz nenhuma, então vou fazer uma museologia para eles. Essa museologia “para” é
feita na terceira pessoa do plural ou do singular. É “ele”. Aí são outras pessoas - antropólogos,
museólogos e historiadores - falando sobre os outros povos.

Eles fazem assim, eles pensam assim, eles fazem assado. Essa é a ideia dessa museologia extensionista,
dessa museologia “para”. Não é necessário fazer uma oposição radical a essa prática. Quem quiser
fazer, que faça. É melhor do que aquela museologia, também, que dá as costas para tudo mais. Vamos
dizer, foi um ponto, foi um passo importante para que se pudesse continuar avançando, mas há outro
desafio, que é uma museologia “com”. Praticar uma museologia “com”, em parceria, onde não há uma
hierarquia, necessariamente; onde não há um protagonismo apenas de um lado - ainda que, do ponto
de vista acadêmico, a academia sempre queira o protagonismo das ações, quer sempre esse
protagonismo. Mas há um terceiro momento, que eu diria que é o que já se pode observar, que é uma
museologia que já não é nem “com”, nem “para”: é “a partir de lá”.

É o que Suzenalson nos apresenta. É uma museologia social, uma museologia indígena, uma
museologia encantada, que é “a partir de lá”. É de lá que ela nos apresenta, que ela vem. Ali está o
protagonismo, aí sim, o protagonismo radical. Então, do meu ponto de vista, é importante
continuarmos avançando na prática de uma museologia “com”, uma museologia de parceria, mas é
importante reconhecer esse movimento que cada vez mais se fortalece, que é fazer uma museologia “a
partir de lá”, a partir dos grupos. Algumas experiências que vou mostrar estão ora em uma prática da
museologia “com”, ora na prática de uma museologia “a partir de lá”.

Essa museologia “com” ou essa museologia “a partir de lá” são museologias que não têm medo de
afetar e ser afetado, e aqui o afeto se coloca de forma clara. São museologias da amizade, são

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museologias do amor, são museologias do encantamento, são museologias do abraço, que não têm
medo de abraçar, não têm medo de estar no mundo. São museologias “em mundo”, no sentido de que
também são museologias imundas, porque não têm medo de se contaminar. Estão na vida, estão “em
mundo”. São indisciplinadas. Não são museologias disciplinares, no sentido acadêmico. Elas seguem
por outros caminhos. E são museologias que revelam, ou que indicam, melhor dizendo, a potência
criativa nos museus e os afetos poéticos, indicam a potência de resistência nos museus e seus afetos
políticos. Dessa combinação de poéticas e políticas surgem coisas. Eu diria que, nos museus de modo
geral, eu me arriscaria a dizer que em todo museu tem uma dimensão poética e uma dimensão política.
A questão, portanto, não é ter ou não ter uma dimensão poética ou uma dimensão política; é o que
fazer com elas. O que fazer com isso? Qual é a ética?

Aí as coisas mudam de figura. Qual é a ética? Qual é o sentido? Para onde isso vai? Para onde estamos
apontando? E aí, na perspectiva da museologia social, é indispensável compreender os museus como
espaços de relação, e não de acumulação. Isso é museu. Isso é um museu. Isso é um acontecimento
museal. Aí estão pessoas em um debate museal, estão em uma construção museal, estão em ação. Isso
é museu, concretamente. O que importa aqui, e eu quis mesmo provocar essa…

Oh, Suzenalson, você ali! Eu não combinei com ele, viu? Eu não combinei. Parece que é jogo de
compadres, não é? Não é um compadrio, não tem nada a ver, mas é que eu tinha essa imagem porque
quem me deu foi Firmino. Firmino é do Museu da Rocinha. Essa imagem foi Firmino que me deu.

Mas o que eu quero dizer com esse conjunto de rápidas imagens é que há um mundo em movimento
em termos de experiência, de memória e de museologia social. Há um mundo em movimento, e é
importante que o Sesc esteja atento a isso. É importante que o Sesc esteja com os olhos bem abertos,
e está, para que possa perceber esse mundo em movimento, porque para muitas pessoas ele não está
visível, porque elas não têm olhos para ver isso, não têm olhos para ver o encontro entre o Museu da
Rocinha, entre Firmino e Suzenalson.

Não têm olhos para ver a forma como o Museu da Maré lutou, resistiu, foi às ruas para dizer que fica
lá onde está, e conseguiu ficar. Não têm olhos para ver o Museu do Patrimônio Vivo, em João Pessoa,
que é um museu de território da maior importância. Não têm olhos para ver o Museu das Remoções, a
Rede de Museologia Social de São Paulo, o Ecomuseu de Manguinhos. Esta aqui já não sei mais onde
é. …o Museu Vivo de São Bento, e eu trouxe esta imagem, especialmente, que é de Campinas, que é
a Rede de Museologia Social de Campinas, e eu trouxe porque o símbolo, a logomarca da Rede de
Museologia Social de Campinas é essa grande ciranda.

Então tem aí muita coisa em movimento, muita coisa acontecendo lá… Já lembrei. É o Museu do
Horto, aquele de lá. Aquela pontinha lá é o Museu do Horto.

Então tem muita coisa acontecendo.

Vamos dar uma passada por algumas dessas experiências.

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O Museu do Patrimônio Vivo de João Pessoa: um grupo de jovens que se reuniu para, a partir de
inventares… “A partir de inventares participativos” fica meio gozado. …para, na sequência dos
inventares participativos, produzir mapas e identificar um conjunto de ações como esse, de vários
bairros do entorno de João Pessoa, daí que eles falam “na grande João Pessoa”, e começaram a fazer
circuitos. O que eles compreendem como museu são esses circuitos pelas manifestações culturais de
João Pessoa. Produziram catálogos, isso tudo tem site, tem Facebook, vocês podem procurar que vão
encontrar. Eu não sei se tem alguém aqui da Paraíba. E você conhece essas…?

- Não. (alguém da plateia)

- Então dê uma olhada, vá atrás, procure Moisés Siqueira, que é um rapaz que está à frente disso. Eu
perguntei, não foi para criar constrangimento. Era mesmo para dizer: “Olha, é preciso…” Eu conheço
as práticas, eu não conhecia o circuito. Sim. Então, esse circuito é da maior importância.

Fizeram um catálogo recentemente, enfim. Mas também tem a Rede… E aqui eu já não falo tanto,
porque o Suzenalson apresentou isso com profundidade: a Rede Indígena de Museologia Social. Mas
o que é notável na Rede Indígena de Museologia Social é a sistemática com que eles investem, por
exemplo, na formação. Já estão no quinto encontro de formação de gestores de museus indígenas. Isso
não é pouca coisa. Já vão para o quinto fórum nacional de museus indígenas. Isso não é pouca coisa.
É uma dedicação, um empenho… No quarto encontro de formação de gestores de museus indígenas,
onde estive presente, em Almofala, Tremembé, no Ceará, tinha mais de 15 etnias presentes. É uma
coisa notável. E são todos esses personagens que Suzenalson nos apresentou: Pajé Barbosa, Cacique
João Venâncio, Cacique Sotero, a Pajé Raimunda, a Cacique Pequena. São esses personagens que
estão… É notável - e eu digo isso porque ele não destacou - é notável a articulação entre os mais velhos
e os mais novos. A dedicação com que os mais velhos acolhem os museus e as práticas museais serve
de referência, de inspiração para os mais jovens. Isso é uma coisa notável mesmo. Então o Ceará, hoje,
é de longe o Estado que tem o maior conjunto de experiências de museus comunitários e indígenas.

Aliás, eu cometi uma gafe com o Cacique João Venâncio. Quando falei em comunidade indígena, ele
quase que puxou minha orelha: “Opa! Para! Você não venha para cá falar em comunidade indígena!
Nós somos um povo!” Eu falei: “Desculpe, cacique, está bem, já não erro mais.” Mas é isso. Ali é uma
questão de identidade. Ainda que eu possa olhá-los como comunidade, eles se percebem não como
uma comunidade em si ou apenas; se percebem como um povo. “Nós somos um povo, somos uma
nação.” É outra coisa. Então ele fez questão. Falei: “Está bem” e aprendi.

Mas é notável isso, como essas coisas acontecem. E aí eu trouxe a mesma frase… Estou dizendo que
nós não combinamos, mas eu queria mostrar a potência dessas experiências no Ceará por meio dessa
compreensão, dessa definição que, eu diria, aqui está uma das melhores definições de museu social ou
de museologia social nos últimos tempos que eu conheço, porque está em sintonia com o que eu disse
como um princípio: a museologia que não serve para a vida não serve para nada. E é isso que diz o
Cícero Pereira.

Ele diz: “O museu, pros Kanindé, é bisavô, é avô, é pai e é mãe, porque é a história deles, a história
que tinha lá atrás é o que a gente tem aqui.” Vocês vejam que coisa notável isso. Então o museu está

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ligado à ancestralidade: “é bisavô, é avô, é pai, é mãe”. E tudo isso liga-se com a ancestralidade, com
a memória mais remota, que atravessa gerações.

Não é de uma geração, é de duas, de três, é de mais! Vai mais longe ainda. “O museu, pros Kanindé,
é vida.” Ele não precisou de uma aula de museologia social para compreender que o museu que não
serve para a vida não serve para nada, porque ele compreende que o museu é vida. Está lá, está claro.
“Nós gostamos do museu o tanto que a gente gosta dos pais da gente, porque aí tem um pouco do
retrato, da imagem de tudo. Tem a imagem do ‘peba’”, o tatu peba. “Tem a imagem do pote que foi
feito antigamente. Tudo ali foi um retrato dos nossos antepassados, retrato de quem construiu aquela
história.” Mas ele também tem a compreensão de que, em alguma medida, o museu também é
representação. Mas não é apenas representação. Se nós disséssemos que esse museu é representação
apenas, estaríamos incorrendo em erro, porque ele é potência de vida ativa, e não apenas representação,
ainda que o seja. Museu da Maré, para mostrar outras experiências.

Então, o Museu Kanindé, lá de 1995, o Museu Tikuna já foi apresentado, mas agora um museu que
surgiu em uma favela no Rio de Janeiro como uma experiência diferenciada, porque era um museu
construído por moradores, muitos aqui já conhecem, construído por moradores, os próprios moradores
mantendo a gestão desse espaço. A Maré tem 132 mil habitantes, maior do que muitos municípios na
Europa, e o espaço que eles ocuparam é esse espaço aí. Um galpão de um lado e de outro que pertencia
ao Grupo Libra. O grupo cedeu em 2004 por 10 anos. Em 2014, o grupo pediu de volta, e aí houve
muita resistência do museu para dizer: “Olha, mas agora nós beneficiamos esse espaço, nós ganhamos
um prêmio nacional, prêmio internacional.” Reconheciam que a propriedade concretamente pertencia
ao Grupo Libra, que é um grupo que trabalha com os modais de transporte… De transporte. E aí, houve
uma tensão e uma negociação. Finalmente e felizmente, o Grupo Libra, no ano passado, compreendeu
a importância do museu, reconheceu que deveria doar, e doou esse terreno que, se não fosse o Museu
da Maré, já teria sido ocupado, ocupado pelo tráfico, ocupado para outras funções, e ele presta um
serviço social, presta benefícios sociais.

Eu hoje tenho pensado que muitos museus… Em virtude até da minha experiência concreta na direção
do Museu da República, eu tenho compreendido que muitos museus produzem felicidade. Esse é um
museu que produz felicidade. Ele produz cura. Ele ajuda as pessoas a encontrarem um caminho de
cura pessoal. Mas isso está registrado nos depoimentos no museu. Então o Grupo Libra compreendeu,
se não tudo isso, pelo menos parte disso, compreendeu a dimensão educacional do museu, e no ano
passado sinalizou com uma doação, e o museu conseguiu os recursos para a taxa de transmissão da
doação, que é uma taxa alta, sempre é alta, e finalmente conseguiu e a doação foi efetivada, e no dia
13 de maio, do mês passado, portanto, quando nós iniciamos a Primavera dos Museus, no dia 13 de
maio, mas que também é o dia dos caboclos dentro da tradição da umbanda, nesse dia 13 de maio a
doação foi efetivada e celebrada, fizemos uma festa para isso, e aqui está um dos atos de manifestação
que depois foi à rua.

Algumas imagens do museu.

Ele foi dividido em tempos, eu não vou me alongar com isso. Tem a coragem de enfrentar o tempo do
medo. Também trata do tempo da criança, do tempo do trabalho. A museografia, para quem conhece,

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é extraordinária. O tempo da fé. Muitas fés estão aí representadas, muitas manifestações religiosas
estão aí, e é um museu que tem um trabalho muito forte com os jovens da comunidade, e tem um
projeto belíssimo que chama-se Jovens Talentos, que são meninos e meninas que recebem uma bolsa
da Fundação de Amparo à Pesquisa no Rio de Janeiro em parceria com as universidades. Eu mesmo,
pela UniRio, sou orientador de alguns jovens, e esses jovens recebem bolsas, e muitos deles hoje já
estão na universidade. Uma coisa bacana. E aqui é o projeto de manifestação na defesa do museu, que
deu certo.

O Museu Vivo de São Bento. Essa marca é maravilhosa, não? Essa marca eu acho genial. Porque,
como é um museu de percurso, eles fizeram pegadas, então é uma marca genial. E aí, um museu que
descobriu um sambaqui, tem uma história belíssima, eu já contei isso em textos, mas aí está a
apresentação de um sambaqui, as aulas que ocorrem no sambaqui. Sambaqui, para quem não conhece,
é um concheiro. Esse concheiro tem mais de cinco mil anos e foi descoberto, aí se encontrou a ossada
de um adulto e a ossada de uma criança com pelo menos cinco mil anos, e o mais interessante é o
processo como esse sambaqui foi redescoberto e como ele foi apropriado pelo museu. Na verdade
morava aqui um senhor - essa historinha vale a pena contar - morava um senhor em uma ocupação
ilegal no sambaqui, e esse senhor resolveu lotear o sambaqui. Ia fazer um grande loteamento, portanto,
na direção de uma favela. Essa é uma área de milícia. E daí que os professores desse Museu Vivo de
São Bento, que é conduzido por professores, se reuniram e fizeram um financiamento coletivo,
buscaram dinheiro, daí foram coletando, coletando, coletando, sem nenhuma plataforma virtual: foi
uma coleta física mesmo, coletaram o dinheiro, e com 11 mil reais compraram todo o terreno.

Mas aí vem a questão: ninguém pode comprar um sítio arqueológico. Um sítio arqueológico pertence
à União. Logo, a compra foi simbólica. Mas eles ainda tiveram a inteligência de deixar o senhor aí
como um guardião do sambaqui até que eles conseguissem fazer uma pesquisa arqueológica. A
pesquisa foi feita, e hoje é um sítio-escola, parte do Museu Vivo de São Bento. É um museu que não
leva a palavra “negro” nem “negra” no nome, mas é um dos museus que têm mais atuação com a
cultura negra, com o centenário da Mãe Regina de Bamboxê, seminário sobre estudos da escravidão e
seminários variados. Fazem seminários dessa ordem, com muita gente participando. Eles lutam por
esse patrimônio edificado, que é a sede da antiga Fazenda de São Bento, que dá nome à região, e aqui,
a Igreja da Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Essa é uma área de muitos quilombos.

O Museu de Favela, em 2008, criado em 2008. O Museu de Favela tem um percurso que atravessa
todo este morro aqui com 20 casas pintadas em um projeto chamado Casa Tela. O Museu de Favela
está aqui, no encontro entre Copacabana, Ipanema e Lagoa Rodrigo de Freitas. Vocês imaginem, ele
está no coração da Zona Sul do Rio de Janeiro. E essa foi a primeira exposição, que chamava-se “O
Despertar de Almas e Sonhos”. Era uma exposição sobre os mais velhos da comunidade, feita com
registros jornalísticos… com textos e imagens. As Casas Telas são coisas como essas, são casas,
fachadas de casas que são pintadas contando a história da favela, contando a história da ocupação da
favela. E produz… fruição estética. Aqui está uma fruição estética da maior importância. Tem um
projeto chamado Mulheres Guerreiras, que todo ano fazem, e criaram três Arcos do Triunfo. Eles
dizem: “Se Paris tem um, nós temos três.” Resolveram fazer três de uma vez, então tem três arcos que
marcam as entradas para os circuitos do museu. Muita criatividade. E essa é a Casa Tela número 1, e
as casas são importantes porque, como elas têm janelas, a obra se movimenta: tem hora que a janela

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está fechada, hora que a janela está aberta, então tem um certo movimento na obra. E eles dizem
claramente, aqui: o patrimônio não é o que está pintado, o patrimônio é o que está acontecendo.
Entende? Isso aí é o patrimônio. É esse acontecimento. Olha, a janela aberta e a janela fechada, e a
obra se movimenta. E tudo isso aí é parte do museu. O jogo de bola faz parte. E as pipas são como que
estandartes. As pipas como um voo poético, as pipas como uma resistência política, celebração da vida
nas vielas de uma das favelas do MUF. Porque ali tem oficinas de pipas, é uma coisa bacana.

Em São Paulo se fala “pipas” também? Não? Como fala? Pipas? Ah, está bem. Não, é que tem lugares
que é “papagaio”… Lá no Rio de Janeiro, de uma cidade para outra, muda. Em Niterói é “papagaio”
ou “raia”, “arraia”, “cometa”.

O Museu Sankofa, que nós já falamos aí com Firmino. Sankofa é esse pássaro mítico de um povo da
África, que é um pássaro que tem a cabeça voltada para trás, mas os pés vão para a frente, e ele
representa uma articulação entre o passado, o presente e o futuro. Esse é o pássaro mítico Sankofa.
Quando dois Sankofas se encontram, formam um coração. Eu não tenho aqui a imagem, mas vocês
podem procurar na Internet que vão achar. Muitos corações estão em muitas grades de muita serralheria
de casas construídas por negros, onde eles reproduziram os pássaros Sankofas, e muita gente não sabe.

Cinco minutinhos? Está certinho.

Aí está um projeto da Rocinha. O chá de museu no Museu Sankofa é uma das coisas mais lindas.
Assim como tem chá de bebê e chá de noiva, eles fazem chá de museu. Então, se reúnem, levam objetos
e comemoram fazendo um chá de museu, buscando identidades e referências. Poderíamos falar de
outras tantas experiências: Manguinhos, Horto, Remoções, Bumba Meu Boi, Artes Cênicas…

Eu só quero dizer que são muitas, esse que é meu interesse, dizer que são muitas. Nós precisamos olhar
para o que está acontecendo neste país. Tem muito trabalho de memória, muito trabalho de patrimônio
sendo feito por outros caminhos. São novas práticas. Ecomuseu Manguinhos: eles buscaram
reconstruir, para dizer como Suzenalson, buscaram reconstruir a fala histórica, uma nova fala histórica
sob a perspectiva dos moradores. Buscar o ressignificar, o sentido do complexo Manguinhos. Como?
Com rádio web, com Bando Editorial Favelofágico. Isso é genial. A favelofagia, eu acho isso de uma
genialidade. Já não bastava a antropofagia; agora existe a favelofagia. Então está aí. Com coletivo de
editores. Fazem também varais. Olha, Camila. Fazem varais também, varais fotográficos, porque a rua
é espaço de exposição.

Museu do Horto. O Museu do Horto é o uso sem nenhum pudor do museu como uma ferramenta de
luta. Aqui é o uso despudorado do museu. Eles dizem: “Este museu vai servir para uma coisa: lutar
para provar que nós estamos aqui há mais de cem anos. Nós não somos invasores.” Eles provam como?
Fazendo exposições com documentos dos mais velhos, mostrando casas antigas. Vocês podem entrar
nos sites, procurar. Para dizer isso que está aí: “Não somos invasores! Os nossos avós, pais, estão aqui
há cerca de 80 anos.” Porque eles são acusados de estarem invadindo aquela área, uma área que eu não
vou contar a história agora senão eu perco o restinho do tempo. Mas está aí, fazem caminhadas, fazem
rodas de conversa… o que sabemos fazer.

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Museu das Remoções: esse é um caso emblemático, que em um ano em que o Icon comemorava o
tema Museu e Paisagem Cultural, o Museu das Remoções nasceu para dizer: quem mais destrói a
paisagem cultural é o poder público e os grandes empreendimentos, e eles fizeram um museu para
lutar contra as remoções, e foram vitoriosos nessa luta. E o que estava ameaçando? Os Jogos
Olímpicos, mais a construção de coisas como essa, de um hotel como esse. O espaço ficou terra
arrasada, mas eles se reuniram e começaram a mapear a região, ponto por ponto, as casas destruídas:
casa do Altair, a associação de moradores, e fizeram uma exposição que marcava esses pontos,
inicialmente uma exposição com esculturas feitas de escombros, dos escombros das casas, e esse foi o
processo de destruição e remoção, mas nem todos têm preço, está ali claramente, inventaram uma
ideia, que é: Memória Não Se Remove, e se reuniram para trabalhar no plano que está aqui apresentado,
o plano de construção das esculturas, que foi a primeira experiência do museu, e eles hoje têm o circuito
marcado, já avançaram um pouco mais, já estão bem mais organizados, com o apoio de muitas
universidades, artistas, e esse foi o processo de luta. Moraram em contêineres durante um tempo, até
que hoje têm as suas casas.

Não vou apresentar, mas fica o PowerPoint, aqui tem um convite para o primeiro dia da exposição.

Mas o museu é isso. O museu é um espaço de encontro, é um espaço de festa, um espaço de celebração
da vida. Museu Casa Bumba Meu Boi: esse eu vim a conhecer muito recentemente. Eu não conhecia
também. Fica em Bangu. Um trabalho como esse. Quer dizer, fica a questão… Pronto, fechando, agora.

Os exemplos de museus apresentados não pedem permissão para ser museus; eles se assumem, se
afirmam como museus. Não estão pedindo permissão à academia, não estão pedindo permissão ao
Sesc, não pedem permissão a nenhum de nós. Eles se afirmam como museus: “somos museus”.
Praticam uma museologia decolonizadora, como nós vimos na apresentação de Suzenalson. Esses
museus praticam uma museologia e uma museografia que se desenvolve na primeira pessoa. É o que
Suzenalson destacou: “nós”. Eles falam em “nós”, “nós somos assim”. Ou então falam em “eu”, mas
são pessoas, são grupos, comunidades que falam por si mesmas e nos auxiliam a identificar a
importância de uma museologia compreensiva e libertária. Esses museus nos ajudam a perceber os
limites da museologia normativa, que dá mais valor às regras e normas do que à própria dinâmica da
vida. Esses museus são uma indicação clara de que a museologia social está em movimento e continua
celebrando o poder da memória e a potência da vida. Tudo isso firma, afirma e confirma: os museus
resultam de projetos políticos e poéticos, e inspiram tantos outros projetos políticos e poéticos. Todas
essas experiências desafiam a nossa imaginação criativa. Ancoram-se em uma nova imaginação
museal. Estamos diante de museus que produzem novos agenciamentos, novas linhas de ação; são
inovadores, fazem rizoma com o mundo. Estão no mundo, estão “em mundo”. São museus que, com
memória e criatividade, produzem transformações sociais.

Tudo está em disputa. O tempo, o espaço, a palavra. Tudo está em disputa. A notícia, a piada, o humor.
Tudo está em disputa. A arte, a poesia, a política. O museu, a memória, o patrimônio. Tudo está em
disputa. Esse não é um terreno onde as coisas estão organizadas, dadas e pacificadas, mas é a partir
daí que se constrói alguma coisa diferente.

Memória e espaços de poder: disputas no campo da museologia. Gratidão!

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José Márcio Barros:
“Qual a gota de sangue da museologia do Brasil na atualidade e o que nos esperam, esses novos e
tempestivos tempos da política?”

-Quer ir uma por uma?

Mário Chagas:
-Sim.

José Márcio Barros:


Então vamos.

Mário Chagas:
Mário de Andrade, de boa memória, escreveu, ainda com o pseudônimo de Mário Sobral, em 1917,
durante a Primeira Guerra Mundial, escreveu o livro “Há uma Gota de Sangue em Cada Poema”, e
quando eu li esse livro, e quando vi a primeira edição, a edição príncipe - que é maravilhoso, ele tem
uma gotinha de sangue em cada página - eu me perguntei: “Haverá uma gota de sangue em cada
museu?” Fiz uma paráfrase imediata e disso surgiu um projeto de pesquisa com esse nome, que depois
recebeu o subtítulo, que foi “Há uma Gota de Sangue em Cada Museu: a Ótica Museológica…”
Horrível esse “Ótica Museológica”, mas foi publicado assim: “A Ótica Museológica de Mário de
Andrade”. Eu hoje colocaria: “A Imaginação Museal de Mário de Andrade”, mas na época eu ainda
não tinha chegado na imaginação museal.

Esse livro foi publicado, e a ideia dessa pesquisa e desse livro foi identificar a gota de sangue presente
nos museus. Há uma gota de sangue nos museus. Que gota de sangue é essa? É a gota de humanidade,
é o germe de vida, é a potência da vida que está ali. Cada um dos objetos lá do Museu Kanindé, ali
tem humanidade. Naquela pele de caça, aquilo não é apenas pele de caça. Aquilo é pele de caça, é
cultura, é um conjunto de coisas. Aquilo é um modo de viver, é um modo de estar no mundo. Aquilo
é um conjunto de coisas. Mas também no mobiliário da casa daqui de São Paulo, da… como é que
chama? O Museu da Casa Brasileira. No mobiliário do Museu da Casa Brasileira, também ali tem
trabalho coagulado, ali tem energia humana condensada. Tudo isso está ali, mas também nos museus
em São Paulo, onde se apresentam objetos relativos a 1932, ali também está a gota de sangue presente.
Em vários outros lugares essa gota de sangue está presente, essa gota de humanidade, essa gota de
vida. É preciso que ela seja explicitada. Eu acho que nosso trabalho é esse. Nosso trabalho é contribuir
para isso. Eu lembro de Saramago falando sobre a gargalheira do escravo Agostinho de Lafetá, que ela
seria mais importante que Lisboa inteira, porque ela teria a gota de sangue do escravo Agostinho de
Lafetá. Lá estaria a humanidade representada. É claro que ele está aí, porque em Lisboa tudo isso
também existe, mas é claro que ele dramatiza, ele tensiona, mas é compreensível o que ele está dizendo:
nesses objetos está a gota de sangue.

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O que isso tem a ver com a política atual?

Na verdade, acho que tem dois níveis de política: aquilo que eu posso fazer na esfera em que eu estou,
e faço, e outras coisas que me atingem. Tem coisas que eu não controlo. Tem coisas que eu não
controlo, de fora de mim. Eu controlo aquilo que posso fazer. Isso é um pensamento estóico do… do…
Deixa para lá, agora fugiu o nome do sujeito, mas ele é bem conhecido. Mas é o que ele diz: muitas
coisas existem no mundo e não dependem de mim, mas tem coisas que dependem de mim. A minha
felicidade depende de mim, apenas de mim e de mais ninguém. Agora, se eu serei afetado por uma
doença, isso já não depende de mim. O mosquito da chikungunya me picou e eu fiquei ferrado desde
dezembro até hoje, com dores da chikungunya, e isso não dependeu de mim. Mas eu ficar infeliz por
isso depende de mim. Tem potências de criação, tem formas de estar no mundo de modo político e
poético que só dependem de mim. Então, é claro que estamos em um cenário que não sabemos para
onde vai. Qualquer tentativa… Eu posso produzir cenários, mas não tenho uma única direção. Nós
temos inteligência suficiente para visualizar alguns cenários, mas eles podem ir para um lado, ir para
outro, se desdobrar, mas o que eu penso que seja mais importante é o que nós estamos fazendo aqui,
agora: mobilizando afetos, mobilizando energias de criação, mobilizando pensamentos. Isso é
transformador. Isso nós podemos fazer. Estar juntos, sair um pouquinho do WhatsApp, sair um
pouquinho do Facebook, estar juntos. Eu não estou com isso negando o WhatsApp e o Facebook, não.
Acho que são ferramentas que estão aí para ser usadas. Mas estar juntos, fazer juntos, fazer mais,
dançar a ciranda juntos, movimentar a ciranda da vida, isso nós podemos fazer juntos. E isso é política.

José Márcio Barros:


Legal.
Outra questão: “Se tudo pode ser um museu, o que diferencia esse dispositivo de outros mecanismos
para preservar e promover as memórias?”

Mário Chagas:
Eu nunca digo que tudo pode ser museu. Aliás, poder, pode. Vamos lá. Tudo é museável do ponto de
vista teórico. Uma fala teórica. Tudo é museável, tudo tem possibilidade de vir a ser musealizado, mas
nem tudo será musealizado, felizmente. Porque se tudo fosse musealizado, nós teríamos que inventar
outra coisa. Então, o “Museu de Tudo”, que é o título do livro do João Cabral de Melo Neto… que ele
escreveu dois livros: “Museu de Tudo” e “Museu de Tudo e Depois”. O Museu de Tudo é uma
impossibilidade prática. O museu é um recorte, sempre será um recorte em um dado momento, mas o
que diferencia fundamentalmente, é que o museu é um código partilhado. Não é que tudo seja museu,
isso não; mas o museu é um código partilhado. É preciso que alguém compartilhe aquelas ideias. Se
Suzenalson, ele sozinho, dissesse que isso é museu e a aldeia, o povo, entendessem que não, aquilo
não seria. Aquilo seria uma coisa dele. Mas quando o povo diz “é”, é. Passou a ser. Agora, o que é o
museu? O museu é uma prática social que vai envolver preservação, vai envolver pesquisa, vai
envolver comunicação, e vai ter uma função social política. Mas essas três funções estão presentes lá:
preservação ou conservação, pesquisa ou investigação, e comunicação. Isso está presente. Mas eu sou
capaz de perceber essas ações lá em Kanindé. Sou capaz de perceber essas ações lá no Museu das
Remoções. Isso está presente. O que está acontecendo é outra forma de pensar e praticar museu. O

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nosso pensamento está dentro de uma caixinha, de uma casinha, que é… Nós ainda estamos
aprisionados ao cubo branco e ao cubo preto. O museu ocorre no cubo branco ou no cubo preto, está
lá dentro daquela exposição. Mas há tempos o museu foi para a rua. Em São Paulo tem uma experiência
belíssima, que é o Museu de Rua. E em outros lugares tem essas experiências. Há tempos o museu foi
para a rua. Há tempos surgiram os ecomuseus. E hoje, experiências mais radicalizadas. Também, todo
museu é político. O Museu do Louvre nasce de uma ação política. O Museu Britânico nasce de uma
ação política. Eles são políticos. E também são poéticos, ao seu modo. São políticos. O Museu Kanindé
é tão político quanto o Museu do Louvre. Ele tem uma dimensão política forte. Tanto que foi dito: ele
aqui contribuiu inclusive para a defesa das… para a identidade, especialmente isso, e para a presença,
a continuidade no território. Então não se trata de que tudo é museu. Tudo pode vir a ser; nem tudo
será. Mas aquilo que é… ou passa a ser quando o código é compartilhado. Mas o código não é
compartilhado por todos. Pode ser por alguns, até que alcance um número maior. Não sei se fui claro.

José Márcio Barros:


Claríssimo.

Muito bacana. Uma pergunta que tem a ver com isso também:

“Você acredita que o momento atual mostra uma grave crise de imaginação e criação? Pois os museus
apresentados apontam caminhos possíveis para uma movimentação.”

Mário Chagas:
Eu acredito no contrário. Eu acho que nós estamos em um dos momentos mais férteis de exercício da
imaginação, e talvez esse seja o maior incômodo. Nós temos uma capacidade imaginativa
extraordinária, mas querem nos fazer crer que isso não é assim. Então esse é um momento fundamental
para alimentação da esperança, mas não da esperança no sentido da espera vã; da espera ativa, da
fotografia ativa, da espera ativa, ou da esperança ativa, essa esperança que, sendo ativa, também é
criativa. Hoje, nós estamos em um momento, na minha compreensão, estamos em um momento de um
grande exercício de imaginação, de novas imaginações. Esses museus mostram isso, mas isso é visível
no campo da fotografia. Fiquei superdialogando com ela. Ela falava, eu dizia: “Puxa, nós fazemos
igual, só que é com outro nome. Fazemos isso, mas tem outro nome.” Isso está acontecendo no Brasil
inteiro. Mas na verdade, essas coisas não ganham a visibilidade midiática. Elas seguem por outros
caminhos. Mas isso acontece na música. Há uma explosão musical em vários lugares. Você vai nas
periferias… Zona Oeste do Rio de Janeiro. É impressionante! Há uma vida própria. Se alimentam, se
retroalimentam, são zines, são poetas. A poesia está acontecendo, tem slam para tudo que é corpo. São
Paulo inventou o Slam do Corpo. Que coisa extraordinária, o Slam do Corpo! Eu conheci Leonardo,
daqui de São Paulo, um menino extraordinário. É surdo, mas faz poesia, faz o Slam do Corpo. Então
tem coisas assim… Elas precisam de visibilidade, precisam ganhar dimensão. O Slam das Minas é um
negócio impressionante. A produção poética e musical das mulheres é extraordinária! Mas precisamos
acreditar que isso está acontecendo, porque querem nos dizer que isso não existe. Existe, isso está
existindo! Vamos olhar para isso.

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José Márcio Barros:
“Qual o espaço da oralidade na museologia social?”

Mário Chagas:
Sim, é total. O MUF, vou partir do exemplo do MUF, Museu de Favela. Aliás, eles gostam de brincar
muito com a palavra MUF, porque ela é para ser dita, não é para ser lida apenas. M-U-F é diferente de
MUF, porque o MUF tem um ventinho, tem uma coisa no MUF, tem um sopro na palavra MUF, então
esse sopro, para eles, é importante, que é o despertar de almas e vidas, é um sopro que desperta. O
MUF, você pode visitar o MUF sozinho, silenciosamente. Todos nós temos esse direito. Aliás, o MUF
defende o direito de ir e vir no asfalto e no morro. Eles querem ir e vir com liberdade no asfalto e
querem que os moradores do asfalto tenham o direito de ir e vir com liberdade no morro. Você pode
fazer a visita, mas ela será uma visita museal; poderá ser, e deverá ser, será uma experiência museal.
Mas o MUF se revela intenso, inteiro, quando um dos moradores guia, porque aí ele narra. Então ele
é um museu que tem uma sustentação na oralidade muito forte. As narrativas estão pintadas, mas elas
ganham vida quando eles vão narrando aquela história, contando, falando, e cada um vai contar a partir
de um ponto de vista. Não é uma visita mediada, como nós estamos acostumados. É uma visita que
tem relação com experiências vividas, experiências vivenciadas. Então a oralidade tem um lugar…
Estou falando desse caso do MUF, mas eu poderia falar sobre o Museu das Artes Lúdicas, que não é
uma apresentação de bonecos, de teatro de bonecos. O museu também tem sentido quando os bonecos
estão em ação. Porque do ponto de vista da museologia social, a separabilidade entre material e
imaterial é falsa, isso é uma falsidade. Não é possível separar… A pergunta que fizeram a Suzenalson.
Não é possível separar essas coisas de um modo radical. Nós separamos para falar sobre elas, mas a
vida mostra que elas estão unidas. A materialidade, o material e o espiritual acontecem juntos.
Frequentemente, nós nos esquecemos que “patrimônio” é um substantivo abstrato. Não é um
substantivo concreto. “Copo” é um substantivo concreto, a palavra “copo”. Eu posso visualizar um
copo diferente deste aqui, mas sempre posso visualizar um copo. Eu não tenho uma visualização para
a palavra “patrimônio”. A palavra “patrimônio” é da mesma ordem da palavra “amor”, é da mesma
ordem da palavra “alegria”. São substantivos abstratos, o que já serviria para nos indicar a
inseparabilidade entre material e espiritual. Mas o que eu gostaria é aproveitar essa pergunta só para
dizer isto: eu acho que nós estamos vivendo um momento onde é indispensável reanimar as esperanças,
buscar os otimismos, buscar as energias mais positivas e olhar para a frente, olhar para longe. Então,
por mais estranho que possa parecer, a frase do Jorge Mautner acaba tendo alguma importância. Ele
diz: “O Brasil é grande demais para qualquer abismo.” Não se trata de você não olhar a realidade. É
importante olhar a realidade concretamente, mas é importante observar mais longe ainda, olhar para
mais distante. A seta do tempo aponta para a frente, como diz Gilberto Gil. A seta do tempo não aponta
para trás, ela aponta para a frente. Então tem coisas mais adiante, e é preciso buscar essa energia e
jogar para diante. É hora de alimentar esperanças, alimentar novas possibilidades, visualizar o que está
acontecendo de extraordinário. Tem coisas extraordinárias acontecendo entre nós, e nós não estamos
olhando para elas.

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José Márcio Barros:
Chagas, eu vou fazer um brevíssimo comentário e queria que você reagisse a ele, e depois uma
pergunta a você. Primeiro: quando falamos de museologia social - e a sua apresentação foi
extremamente didática, clara - nasce como um movimento de desconstrução de uma prática
museológica. Mas se olharmos hoje, a museologia social não cabe dentro dos museus. Ela é um
movimento político, social, ideológico. Ela é algo decorrente de um movimento contemporâneo que
se liga com a questão da identidade, das narrativas, enfim. E, à medida que você foi falando, eu me
lembrei de experiências que temos lá em Minas Gerais, umas até parecidas com…
Lá nós temos o MUQUIFU, que é o Museu dos Quilombos e Favelas Urbanas, que também é uma
experiência muito interessante. Nós temos, com os atingidos do crime ambiental lá de Mariana, um
jornal que - no processo de construção do Marco Referencial de Memória e Patrimônio, que o Sesc
realizou, e que eu tive a honra de participar desse processo - um jornal chamado “A Sirene”, que é
lançado todos os meses, no mesmo dia em que a barragem de Mariana estourou, e que é uma iniciativa
poética, política, identitária, que reúne jovens jornalistas, que acabaram de se formar na universidade,
com moradores atingidos. Foi emocionante. Quem do Sesc estava lá, foi um… Terminamos esse
encontro, um bando de marmanjos chorando de emoção. Eles pela nossa visita, e nós por descobrirmos
a potência daquela coisa. E o mais incrível: esse jornal, chamado “A Sirene”, que vocês podem
conhecer pela Internet, quem dirige esse jornal é um atingido que é mudo. Olha que coisa potente, e
que tem uma força comunicacional, uma liderança, uma energia, sem uma palavra dita, oral. É incrível
essa experiência, então estou me lembrando disso porque acho que isso dialoga com essa expansão,
com esse transbordamento da ideia da museologia social. Mas aí, a minha pergunta para você. Você
hoje dirige uma instituição formal.
Eu, recentemente, fui finalmente visitar o Museu do Amanhã no Rio de Janeiro, e fui depois de ler
tantas coisas…
Mas fui para conhecer um museu que não tem acervo, ou seja, um museu que é um museu de interação
de informações, um museu que atende essa lógica contemporânea da gameficação, nós jogamos,
interagimos o tempo todo.

O prédio é maravilhoso, a paisagem é maravilhosa, é ótimo, então eu queria saber de você: o que você
acha dessa tendência, esse tipo de organização que o Museu do Amanhã representa, de informações e
interação? Como isso dialoga com a questão da museologia social? Segunda pergunta: basta as
instituições museais tradicionais inovarem o seu educativo para que possamos reconhecer ali uma
adesão sincera e radical à museologia social, na sua percepção?

Mário Chagas:
OK. Ótimos pontos para a reflexão. Eu concordo inteiramente com o que você disse em relação ao
transbordamento da museologia social. Nós temos museus que praticam museologia social, mas há
mesmo um transbordamento, há uma apropriação; então, claro que eu estou pessoalmente muito
implicado com a museologia social há bastante tempo, mas ela não tem uma única voz. A minha voz
é mais uma voz. São várias outras pessoas que assumiram e que puxam isso, e que tocam, e eu penso
que isso é importante, especialmente na compreensão de que a museologia social não tem pai, não tem

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dono, não tem mãe, ela é uma forma de estar no mundo, em certa medida, e daí a potência do diálogo
possível com fotografia, com arte contemporânea, com o jornalismo cidadão. As práticas de jornalismo
cidadão têm tudo a ver com a museologia social, e outras tantas possibilidades por aí. Porque tem
coisas, que nós muitas vezes imaginamos que elas têm um ponto de nascimento, mas elas estão
dialogando com o espírito do tempo. É o espírito do tempo que está… O que acontece na fotografia
está sendo provocado pelo espírito do tempo. Esse é o diálogo possível entre Paulo Freire, Augusto
Boal, Hugues de Varine.

É o espírito do tempo que vai mobilizando pessoas e mexendo com energias. O poeta Murilo Mendes
dizia uma coisa que eu não vou saber reproduzir, mas ele dizia da dificuldade de sermos
contemporâneos, de vivermos o nosso tempo. Mas que é necessário que cada um de nós possa viver o
tempo, estar presente no tempo em que vive. Que são desafios que são impostos, e nós precisamos
responder do nosso modo a eles.

No que se refere à questão do Museu do Amanhã, o próprio Hugues de Varine, em uma entrevista que
eu fiz com ele já nos Anos 90, final dos Anos 90… Eu tive oportunidade de estar com ele e fiz uma
entrevista, e na verdade ele me pediu que ela fosse escrita. Eu escrevi as questões e ele respondeu por
escrito. O que significa que ele teve tempo de pensar. Não foi ali, à queima-roupa. Ele pensou. E o que
ele pensou, ele quis que ficasse para adiante, porque ele me respondeu com atenção, com delicadeza.
Essa entrevista foi publicada no “Cadernos do CEOM” chamado “Museologia Social”. Então, se
procurar “Cadernos do CEOM”, C-E-O-M, “Museologia Social”, vai bater lá, vai encontrar a
entrevista do Hugues de Varine. Mas, em um dado momento, ele estabeleceu uma espécie de
classificação das tendências museais contemporâneas. Ele diz assim, que… Dos Anos 90, ele está
olhando para diante. Ele diz: “Nós vamos ter museus-coleções, museus-espetáculos, museus-
laboratórios e museus comunitários.” Aí ele diz o que é cada um desses museus. E ele diz: “Os museus-
coleções serão afeitos, serão especiais do ponto de vista de reunir coleções, reunir repertórios,
produzirão pesquisa, etc., e cada um com a sua singularidade.

Os museus-laboratórios estarão muito focados no campo da pesquisa, mas trabalham com


experimentos, e cada um também com suas especificidades.” Ele diz: “Os museus-espetáculos…” E a
descrição que ele faz, se encaixam claramente o Museu do Amanhã e alguns outros. Ele diz: “Cada
vez mais, eles ficarão parecidos. Cada vez mais, eles atenderão o mesmo público. E cada vez mais,
terão menos novidades.” E é isso que eu vejo no Museu do Amanhã. Eu não vejo amanhã no Museu
do Amanhã. Ali não tem amanhã. Ali tem ecrã, para usar uma palavra bem portuguesa. Ali tem ecrã,
tem telas de TV! Quer dizer, tem espaço para tudo isso? Tem espaço para essas experiências também.
Agora, a questão é quando querem transformar isso em política pública. Aí fica grave. Se isso for o
exercício de uma possibilidade museal, está bem, é o exercício de uma possibilidade museal. Assim
mesmo, nós deveríamos verificar a que custo, quanto significa isso, quanto custa isso, quanto custa
essa experiência, quanto custa esse exercício. Que benefícios sociais concretos está alcançando, está
realizando? Porque acaba que…

Eu resisti muito a ir ao Museu do Amanhã. Eu até criei uma piadinha: quando me perguntavam… Eu
hoje já não posso dizer isso, porque já fui duas vezes, senão eu repetiria a minha piadinha. Quando me
perguntavam de público, eu dizia: “Ainda não fui, eu vou amanhã.” Minha resposta preparada era essa.

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“Eu vou amanhã. Eu ainda não fui no Museu do Amanhã, eu vou amanhã.” Mas eu fui. O meu amigo
português, Mário Moutinho, quando veio ao Brasil no ano passado, em agosto, disse: Não, vamos lá,
eu quero ir com você”, aí fomos juntos, aí pronto, perdi a virgindade. Então tive que ir lá. Mas eu vejo
ele como um museu de ecrã, e com uma tendência à obsolescência muito grande, porque a novidade
NUNCA, mas é um “nunca” com ênfase, NUNCA está na tecnologia. a novidade está na relação.

Eu finalizo isso para dizer o seguinte: eu assisti, uma ocasião, a um professor do Ceará, também nos
Anos 90. Foi ao Rio de Janeiro fazer uma palestra sobre a importância da Internet. Ainda tinha ali uma
coisa entre a França e os Estados Unidos, CD-ROM e a Internet chegando, e tal, e ele fez um relato,
esse professor, um belo relato sobre a Internet, o uso da Internet. Ele dizia: “Um pai com o filho visitam
na Internet um museu de História Natural, e filho diz ao pai: “Pai, vamos lá visitar o museu?” E ele
diz: “Veja como a Internet atrai público para o museu. O pai e o filho vão ao museu; visitaram o museu;
e aí o filho diz: ‘Pai, vamos voltar para casa para ver na Internet? Porque aqui nós não podemos ir na
reserva técnica.’” Diz o professor: “Vejam lá que a Internet ainda apresenta aquilo que nem mesmo o
museu apresenta.” Aí diz: “Isso é uma grande novidade.” Estava na plateia simplesmente Sílvio
Tendler, cineasta famoso. Sílvio pediu para falar. Eu olhei para trás e falei: “Ih… complicou.” Mas o
Sílvio levantou uma questão simples. Ele disse: “Ótimo, sua fala é maravilhosa”, ele disse, “mas a
novidade mesmo é o pai e o filho terem tempo para estabelecer essa relação.” Isso que é novidade.

Eu penso isso. A novidade não é a Internet. A novidade é o pai e filho terem relação, uma relação
afetuosa, uma relação de amor. O amor que é a novidade, o afeto que é a novidade. Estou me repetindo
totalmente, mas isso que é novidade. Então, se o museu propiciar relações, a novidade vai se instalar.
Porque é isso. Não há possibilidade do novo sem memória. Não existe essa possibilidade. a única
possibilidade de eu perceber se a coisa é nova ou não é nova é com base na memória. Porque se eu não
tenho memória, eu repito, repito. Eu não repinto. Então a coisa fica repetitiva sem a consciência da
repetição. Porque uma coisa é a consciência da repetição. Assim é a música, assim é a poesia, é uma
repetição consciente. Do contrário, é outra coisa.

Bom, acho que é isso. Só queria, mas nós temos… nós temos que encerrar, mas a outra pergunta.

-…educação.

-Do educativo, é.

Não, claro. De forma nenhuma, Márcio. Eu não acredito que basta uma ação educacional, com escola,
com uma mediação no museu, para que o museu X, Y ou Z possa se dizer em sintonia ou praticante
de uma museologia social. Há que avançar mais. Existem outros desafios colocados. No meu
entendimento, é possível, sim, que mesmo um museu… E há quem discorde de mim nisso, mas na
minha avaliação, é possível, sim, que museus tradicionais, que museus clássicos se aproximem e
desenvolvam práticas de museologia social. Mas é preciso um pouco mais de coragem, é preciso
avançar um pouco mais. É preciso olhar para o mundo contemporâneo, é preciso lidar com as questões
de outra forma, de outra natureza. Agora, simplesmente… Que o educativo seja uma ponte importante
para a museologia social, não temos dúvida, mas um educativo que no mínimo tem que pensar a
pedagogia da liberdade. No mínimo, ele tem que levar em conta isso para poder chegar mais longe, ter

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outras possibilidades de ação. Mas é um desafio. e também penso que, se nós estamos comprometidos
com o nosso tempo, a museologia social se impõe. Não tem muita… É uma questão do tempo em que
nós vivemos, porque são desafios colocados pela sociedade. Agora, é claro que sempre tem - isso
sempre teve em outras tantas situações - sempre tem caroneiros, pessoas que vão se dizer da
museologia social, mas estão comprometidos com outras ações, com outras orientações. Mas isso
aconteceu com o que chamamos de nova museologia, aconteceu do mesmo jeito. É uma tentativa de
captura, de… Mas sempre é possível um drible também.

Obrigada, Zé Márcio, obrigada, Prof. Mário Chagas.

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