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Universidade de Brasília

Departamento de Matemática

Geometria Diferencial
Posgrado em Matemática

José Luis Teruel Carretero


Sumário

1 Curvas no Espaço. 1
1.1 Curvas parametrizadas regulares. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2
1.2 Parâmetro arco de uma curva regular. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4
1.3 Teoria Local de Curvas no Espaço. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
1.4 Teorema fundamental da teoria local de curvas. . . . . . . . . . . . . . . . . 13
1.5 Exercícios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

2 Superfícies Regulares. 21
2.1 Definição e exemplos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
2.2 Exercícios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
2.3 Funções diferenciáveis sobre superfícies. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
2.4 Exercícios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
2.5 O plano tangente. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
2.6 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
2.7 A primeira forma fundamental. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
2.8 Exercícios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
2.9 Orientação em superfícies. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74
2.10 Exercícios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82

3 A segunda forma fundamental. 83


3.1 A aplicação de Gauss. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84
3.2 Exercícios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
3.3 O sinal da curvatura Gaussiana. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
3.4 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110
3.5 Continuidade das curvaturas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
3.6 Exercícios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132

3
3.7 Propriedades de separação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
3.8 Exercícios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
3.9 Superfícies mínimas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150
3.10 Exercícios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 158

4 Geometria intrínseca das superfícies. 159


4.1 Congruências, isometrias e aplicações conformes. . . . . . . . . . . . . . . . . 160
4.2 Exercícios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171
4.3 O teorema Egregium de Gauss. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 172
4.4 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182
4.5 Curvas geodésicas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183

Referências Bibliográficas 198

Lista de Figuras 200

Índice Remissivo 203


Introdução.

A presente obra foi pensada como apostila para ser usada pelos estudantes da disciplina
Geometria Diferencial II, do programa de pós-graduação em Matemática da UnB. Vamos
apresentar um estudo detalhado da geometria das curvas e das superfícies de R3 , usando o
cálculo diferencial como principal ferramenta a fins de entender as principais propriedades
geométricas das mesmas. Ao longo da obra vamos entender que uma aplicação diferenciável
é uma aplicação com regularidade C ∞ .
Capítulo 1

Curvas no Espaço.

1
2 CAPÍTULO 1. CURVAS NO ESPAÇO.

1.1 Curvas parametrizadas regulares.


Definição 1.1.1. Dado um intervalo aberto I de R, se define uma curva parametrizada
como uma aplicação α : I −→ R3 dada por

α(t) = (x(t), y(t), z(t)) ,

para cada t ∈ I e para certas funções x, y, z : I −→ R. A variável t é dita parâmetro da


curva α.
A curva α é diferenciável desde que as funções reais de variável real x, y e z são diferenciáveis.
A reunião dos pontos α(t), para t variando no intervalo I, isto é, o conjunto imagem da
aplicação α, cuja definição é a seguinte

α(I) = {α(t) : t ∈ I} ⊂ R3 ,

é chamado de traço da curva α.

Exemplo 1.1.1. Dados a, b ∈ R3 de modo que a e b não sejam nulos simultaneamente, a


aplicação α(t) = at + b é a parametrização de uma reta do espaço.
Exemplo 1.1.2. Dados a, b ∈ R∗ , considere a aplicação α(t) = (aCos(t), aSin(t), bt), para
cada t ∈ R. Tal aplicação é uma curva parametrizada diferenciável cujo traço é uma hélice
circular de passo 2πb. Observe que

x2 (t) + y 2 (t) = a2 , ∀t ∈ R,

o que implica que o traço α(R) está contido em um cilindro de base circular com raio a;
além disso, os pontos {α(t + 2kπ) : k ∈ Z} estão contidos em uma reta vertical para cada
t ∈ R, Figura 1.1.

Definição 1.1.2. Dada uma curva parametrizada diferenciável α(t) = (x(t), y(t), z(t)), t ∈
I, definimos o vetor tangente de α em t ∈ I como

α0 (t) = (x0 (t), y 0 (t), z 0 (t)) .

Se α0 (t0 ) 6= 0, dizemos que t0 é um ponto regular da curva e se define a reta tangente à curva
α em t ∈ I como a reta que passa pelo ponto α(t) na direção do vetor α0 (t).
Em caso contrário, ou seja, se α0 (t0 ) = 0, dizemos que t0 é um ponto singular (ou uma
singularidade) da curva.
Dizemos que a curva α é regular se não possui pontos singulares.
1.1. CURVAS PARAMETRIZADAS REGULARES. 3

Figura 1.1: Hélice circular, para a = 1 e b = 3.

Observação 1.1.1. Da definição anterior, podemos afirmar que uma curva é regular se α0 (t) 6=
0, ∀t ∈ I. Além disso, observe que a existência de pontos singulares em uma curva implica
que certos pontos da mesma não possuem uma direção tangente sobre a qual representar
uma reta tangente.

Exemplo 1.1.3. A hélice circular do Exemplo 1.1.2, é um exemplo de curva regular. Observe
que z 0 (t) = b 6= 0, ∀t ∈ R

Exemplo 1.1.4. Considere a curva α(t) = (t3 , t2 , 0), t ∈ R. Claramente, α é uma curva
diferenciável e
α0 (t) = (3t2 , 2t, 0) = (0, 0, 0)

se, e somente se t = 0, e portanto α não é uma curva regular.


Observando o traço da curva, representado na Figura 1.2, veja que α(R) está totalmente
contido no plano horizontal OXY e que possui uma singularidade na origem e que os restantes
pontos do traço são regulares. Assim, o conceito de regularidade de uma curva pode-se
entender como a possibilidade de definir uma única reta tangente que passa por cada ponto
do traço e que está na direção do vetor tangente. Em diante, e fazendo um abuso de notação,
vamos denotar o traço de α também por α, a menos que tal identificação possa ser causa de
engano no desenvolvimento de algum resultado particular.
4 CAPÍTULO 1. CURVAS NO ESPAÇO.

Figura 1.2: Curva diferenciável com um ponto singular.

1.2 Parâmetro arco de uma curva regular.


Em diante vamos considerar apenas curvas parametrizadas regulares e diferenciáveis.

Definição 1.2.1. Dadas uma curva α : I ⊂ R −→ R3 e t0 ∈ I, definimos o comprimento de


arco da curva α como uma função s : I −→ R de maneira que
Z t
s(t) = |α0 (r)| dr. (1.1)
t0

Dizemos que uma curva α : I ⊂ R −→ R3 está parametrizada pelo comprimento de arco,


ou que a curva é PCA, se Z t
|α0 (r)| dr = t − t0 , ∀t > t0 . (1.2)
t0

Nesse caso dizemos que s(t) é o parâmetro arco da curva α.

Se uma curva é PCA, podemos observar da definição anterior que o parâmetro arco
tem um significado métrico além de um significado posicional, ou seja, supondo que α(t)
determina a posição de uma partícula que percorre o traço da curva em cada instante t,
o próprio parâmetro fornece a medida do comprimento percorrido pela partícula desde um
certo instante inicial t0 até o instante t.

Proposição 1.2.1. Uma curva α : I ⊂ R −→ R3 é PCA se, e somente se |α0 (t)| = 1, para
todo t ∈ I.

Demonstração. Supondo que α é PCA, derivando a igualdade (1.2) em relação a t, obtemos


o resultado em virtude do Teorema Fundamental do Cálculo (TFC).
Supondo agora que |α0 (t)| = 1, ∀t ∈ I, é simples obter que s(t) = t − t0 a partir da fórmula
(1.1) na Definição 1.2.1.
1.2. PARÂMETRO ARCO DE UMA CURVA REGULAR. 5

Em diante vamos denotar por s o parâmetro arco de uma dada curva α. Dados I e J
dois intervalos abertos de R, um difeomorfismo φ : J −→ I e uma curva α : I ⊂ R −→ R3 ,
podemos construir uma nova curva β : J −→ R3 definida por

β = α ◦ φ.

Dizemos que β é uma reparametrização de α. Dado [a, b] ⊂ J, tal que φ([a, b]) = [c, d], é
simples provar que Z b Z d
0
|β (r)|dr = |α0 (w)|dw, (1.3)
a c
o que significa que o comprimento de arco é um conceito intrínseco, pois apenas depende do
traço da curva e não da parametrização que esteja sendo usada.
Exercício 1.2.1. Dar uma prova rigorosa da afirmação feita acima.
Vemos no seguinte resultado que toda curva parametrizada regular pode ser reparame-
trizada pelo comprimento de arco.

Proposição 1.2.2. Dada uma curva α : I ⊂ R −→ R3 , existe uma curva regular β : J ⊂


R −→ R3 que é PCA e cujo traço é igual que o traço de α.

Demonstração. Derivando a igualdade (1.1) em relação à variável t, em virtude do TFC e


da regularidade de α tem-se que
d
s(t) = |α0 (t)| =
6 0, ∀t ∈ I,
dt
assim, pelo Teorema da Função Inversa, temos que s(t) é um difeomorfismo de I em s(I) e
existe uma função r(s) tal que r0 (s) = 1/|α0 (r(s))|.
Definimos J = α(I) e β(s) = α ◦ r(s), para cada s ∈ J, então β é uma reparametrização de
α e satisfaz que
α0 (r(s))
β 0 (s) = ,
|α0 (r(s))|
o que implica que β é PCA. A igualdade dos traços vem de (1.3).

Observação 1.2.1. A demonstração do resultado anterior fornece um jeito para calcular uma
parametrização pelo comprimento de arco de uma curva regular, ou seja, para reparametrizar
uma curva pelo arco. Como indica a prova acima, em primeiro lugar devemos calcular a
função s ≡ s(t) segundo a Definição 1.1; observe que tal função é um difeomorfismo de I em
J. Logo após devemos calcular t em função de s e substituímos em α. Assim obtemos

α(s) = α(t(s)),

que já é uma reparametrização pelo arco da curva.


6 CAPÍTULO 1. CURVAS NO ESPAÇO.

Exemplo 1.2.1. Sejam p0 ∈ R3 e r ∈ R∗ . Defina a curva α : R −→ R3 por

α(t) = p0 + r (Cos(t), Sin(t), 0) .

A curva α satisfaz α0 (t) = r (−Sin(t), Cos(t), 0) 6= 0, para todo t ∈ R, logo é regular e


|α0 (t)| = |r|, o que implica que α é PCA se, e somente se |r| = 1.
Se |r| =
6 1, podemos calcular uma reparametrização de α pelo arco seguindo as indicações
da observação acima. Para t0 = 0, calculamos
Z t Z t
0
s(t) = |α (u)|du = |r|du = |r|t.
0 0

Tomamos t = s/|r| e substituímos na curva, assim


     
s s
α(s) = p0 + r Cos , Sin ,0
|r| |r|

é PCA. Com efeito


|r|
|α0 (s)| = = 1, ∀s ∈ R.
|r|
Exemplo 1.2.2. Dados a, b ∈ R3 de modo que |a| = 1, a reta α(s) = as + b é uma parametri-
zação pelo comprimento de arco de uma reta do espaço.

Exemplo 1.2.3. Mudança de orientação em uma curva regular PCA. Dada uma curva α :
(a, b) −→ R3 , para certos valores reais a < b, defina β : (−b, −a) −→ R3 tal que β(s) =
α(−s). Pode-se conferir que β tem o mesmo traço que α, mas percorrido no sentido contrário.
1.3. TEORIA LOCAL DE CURVAS NO ESPAÇO. 7

1.3 Teoria Local de Curvas no Espaço.


Nesta seção, e em diante, podemos supor que toda curva regular é PCA, pois em caso
contrário podemos reparametrizar pelo comprimento de arco pela proposição 1.2.2. Só se for
necessário, serão dados explicitamente os detalhes relativamente á regularidade da curva e
ao seu parâmetro. Denotaremos por t(s) ao vetor tangente à curva α no ponto s.
Seja α : I ⊂ R −→ R3 uma curva, então derivando em relação ao parâmetro arco tem-se que
d 0 d
|α (s)|2 = 1 =⇒ 2hα00 (s), t(s)i = 0,
ds ds
o que implica que α00 (s) ⊥ t(s), para cada s ∈ I.

Figura 1.3: α0 (s) e α00 (s) são perpendiculares.

Geometricamente, pode-se interpretar o número |α00 (s)| como uma medida de quanto a
curva α localmente se afasta de ser uma reta, ou seja, é uma medida da variação na direção
do vetor velocidade em cada ponto, ver Figura 1.3.

Definição 1.3.1. Dada uma curva α : I ⊂ R −→ R3 , se define a curvatura de α em s como


a função κ : I −→ R tal que
κ(s) = |α00 (s)|, ∀s ∈ I. (1.4)

Teorema 1.3.1. Seja dada uma curva α : I ⊂ R −→ R3 , então α é uma porção de reta se,
e somente se, κ é identicamente nula em I.

Demonstração. Supondo que α é uma porção de reta, existem m, n ∈ R3 tais que m é


unitário e α(s) = ms + n é uma parametrização PCA de α. Assim, α0 (s) = m e portanto
8 CAPÍTULO 1. CURVAS NO ESPAÇO.

α00 (s) = 0, o que implica o resultado esperado.


Supondo que κ(s) = 0, para todo s ∈ I, tem-se que |α00 (s)| = 0, o que implica que o vetor
α00 (s) = 0 para todo s ∈ I. Integrando duas vezes a igualdade anterior, tem-se que existem
m, n ∈ R3 tais que α(s) = ms + n para cada s ∈ I.

Definição 1.3.2. Seja dada α : I ⊂ R −→ R3 uma curva. Nos pontos s ∈ I onde κ(s) 6= 0
pode-se definir o vetor
α00 (s)
n(s) = . (1.5)
κ(s)

Como α00 ⊥ α0 , nos pontos onde faz sentido definir o vetor n(s) pode-se deduzir facilmente
que n ⊥ α0 . Assim que vamos a chamar ao vetor n(s) de vetor normal à curva α em s, pois
é unitário e perpendicular ao vetor tangente em cada ponto.
Chamamos de plano osculador, ao plano gerado pelos vetores t e n em cada s ∈ I onde faz
sentido definir o vetor normal. Dizemos que a curva α é uma curva plana se seu traço está
totalmente contido no plano osculador, isto é, se o plano osculador é constante para todo
s ∈ I.

Observação 1.3.1. Em relação às retas do espaço, como t é constante, então t0 é identicamente


nulo e por tanto as funções n e κ não estão, a priori, bem definidas nos seus pontos. Se
α parametriza uma dada reta, o fato da segunda derivada ser 0 diz-nos que n não vem
determinado pela forma da curva, pois, em termos físicos, podemos entender α00 como um
vetor aceleração centrípeta associado ao movimento de uma partícula pelo traço da curva, o
qual tem comprimento positivo desde que a partícula muda sua direção e tal comprimento
cresce na mesma medida que a variação do movimento da partícula. Sabemos que toda reta
do espaço possui um complemento ortogonal associado à direção da mesma, e é aí onde pode-
se escolher e fixar um certo vetor unitário arbitrário, o qual pode representar o papel de vetor
normal à reta em cada ponto e, assim, poder encaixar às retas dentro do estudo da teoria
local de curvas, verificando que todas as igualdades de estrutura que vamos construindo no
caminho são satisfeitas.

Definição 1.3.3. Seja dada α : I ⊂ R −→ R3 uma curva tal que κ(s) 6= 0, ∀s ∈ I. Para
cada s ∈ I se define o vetor
b(s) = t(s) ∧ n(s). (1.6)

Por definição, b é unitário e perpendicular a t e n simultaneamente em cada s ∈ I,


portanto o número |b0 (s)| pode ser entendido como uma medida da variação dos planos
1.3. TEORIA LOCAL DE CURVAS NO ESPAÇO. 9

osculadores em uma vizinhança de s, para cada s ∈ I; isto é, o módulo do vetor b fornece uma
medida de quanto a curva α localmente se afasta do plano osculador ou, equivalentemente,
quanto se afasta a curva α de ser uma curva plana. Tal vetor b recebe o nome de vetor
binormal da curva α em cada s ∈ I.
Chamamos de plano retificante ao plano gerado pelos vetores t e b, e de plano normal ao
plano gerado pelos vetores n e b. Ver figura 1.4.
Para cada s ∈ I, chamamos também de reta tangente à reta que passa pelo ponto α(s) na
direção de t(s), de reta normal principal à reta que passa pelo ponto α(s) na direção de n(s)
e de reta binormal à reta que passa pelo ponto α(s) na direção de b(s).
O conjunto de vetores {t(s), n(s), b(s)} formam uma base ortonormal do espaço R3 em cada
s ∈ I chamada de triedro de Frenet.

Figura 1.4: O triedro de Frenet em cada ponto s ∈ I.

Se calculamos a derivada do vetor binormal em relação ao parâmetro s, obtemos que

b0 (s) = t0 (s) ∧ n(s) + t(s) ∧ n0 (s) = κ(s) · n(s) ∧ n(s) + t(s) ∧ n0 (s) = t(s) ∧ n0 (s),

o que implica que b0 ⊥ t. Aliás, como b é unitário para cada s, então pode-se deduzir
facilmente que b0 ⊥ b, portanto b0 está na direção de n em todo ponto do seu domínio.

Definição 1.3.4. Seja dada α : I ⊂ R −→ R3 uma curva tal que κ(s) 6= 0, ∀s ∈ I. Se define
a torção de α em s como a função τ : I −→ R tal que

b0 (s) = τ (s)n(s), ∀s ∈ I. (1.7)

Teorema 1.3.2. Seja dada α : I ⊂ R −→ R3 uma curva tal que α00 (s) 6= 0, ∀s ∈ I. A curva
α é plana se, e somente se, τ ≡ 0 em I.
10 CAPÍTULO 1. CURVAS NO ESPAÇO.

Demonstração. Supondo que α é plana, por definição α(I) está contida no plano osculador.
Assim, o vetor binormal b é constante e segue que τ ≡ 0 em I pela definição 1.3.4.
Supondo que τ (s) = 0 para todo s ∈ I, tem-se da definição 1.3.4 que hb0 (s), n(s)i = 0, ∀s ∈ I
e portanto b0 ≡ 0. Integrando o anterior tem-se que b(s) = b0 é constante para todo s em I.
Usando o fato de b0 ser constante, como b0 ⊥ t em todo I, pode-se deduzir facilmente que
hα(s), b0 i é constante em I. Assim, tomando pontos u, v ∈ I arbitrários, tem-se que

hα(u) − α(v), b0 i = 0,

o que implica que α(I) está totalmente contido no plano osculador.

Temos visto que cada ponto de uma curva α : I ⊂ R −→ R3 regular e PCA com α00 (s) 6= 0
possui associada uma base ortonormal de vetores {t, n, b} positivamente orientada, chamada
de triedro de Frenet, de maneira que as derivadas de t e b fornecem as entidades geométricas
κ e τ , as quais foram definidas como curvatura e torção da curva, as quais fornecem uma
medida da variação das retas normais e dos planos osculadores, respectivamente. Fixado
s ∈ I, podemos derivar o vetor normal n(s) = b(s) ∧ t(s), temos que

n0 (s) = b0 (s)∧t(s)+b(s)∧t0 (s) = τ (s) (n(s) ∧ t(s))+κ(s) (b(s) ∧ n(s)) = −τ (s)b(s)−κ(s)t(s).

Definição 1.3.5. Dada uma curva α : I ⊂ R −→ R3 , as seguintes relações são satisfeitas


em cada ponto s ∈ I:

t0 (s) = κ(s)n(s),
n0 (s) = −κ(s)t(s) − τ (s)b(s), (1.8)
b0 (s) = τ (s)n(s),

onde {t(s), n(s), b(s)} é o triedro de Frenet associado ao ponto α(s) e κ e τ são as funções
curvatura e torção, respectivamente. Tais relações são conhecidas pelo nome Fórmulas de
Frenet.

Observação 1.3.2. Se fixamos uma direção unitária perpendicular aos pontos de uma dada
reta, parametrizada por uma curva α, e chamamos ela de vetor normal como na observação
1.3.1, então a definição 1.3.3 determina com unicidade o correspondente vetor binormal
associado a cada um dos da reta. Podemos, assim, construir um triedro de Frenet também
sobre cada ponto de uma reta, formado por três vetores constantes, o qual verifica de maneira
1.3. TEORIA LOCAL DE CURVAS NO ESPAÇO. 11

trivial as equações de estrutura (1.8) apresentadas na definição acima, pois qualquer reta é
uma curva plana e, nas condições descritas acima, possui torção identicamente nula pela
definição 1.3.4.

Proposição 1.3.1. Seja dada α : I ⊂ R −→ R3 uma curva. Então, o traço de α é um arco


de circunferência se, e somente se κ é constante e τ é identicamente nula.

Demonstração. Se o traço da curva está contida em uma circunferência, então é plana e


portanto τ ≡ 0 pelo teorema 1.3.2. Vemos a seguir que a curvatura é constante, com efeito,
seja r ∈ R+ o raio da circunferência e O seu centro, então a seguinte relação é satisfeita

|α(s) − O|2 = r2 , ∀s ∈ I.

Derivando a igualdade acima para cada s ∈ I, tem-se que ht(s), α(s) − Oi = 0, o que implica
que α(s) − O está na direção do vetor normal em virtude da definição 1.3.2; observe também
−−−→
que os vetores n(s) e Oα(s) possuem sentidos opostos, pois n aponta para o interior da
circunferência em cada s. Seja λ : I −→ R− uma função tal que α(s)−O = λ(s)n(s), ∀s ∈ I,
e tomando módulos na igualdade anterior temos que |λ(s)| = r, para todo s. Assim,
1
n(s) = − (α(s) − O) ;
r
se derivamos a igualdade acima e usamos que a curva é plana temos que
1
n0 (s) = − t(s),
r
o que implica que
1
κ(s) ≡ ,
r
pelas fórmulas (1.8) de Frenet, como queriamos demonstrar.
Supondo agora que κ é constante e τ ≡ 0, podemos supor sem perda de generalidade (s.p.g.)
que κ(s) = 1/r, para algúm r ∈ R+ . Considere a função que descreve o centro do círculo
osculador à curva em cada s ∈ I, ver figura 1.5, cuja definição é a seguinte
1
p(s) = α(s) + n(s). (1.9)
κ(s)
Se derivamos a igualdade 1.9, usando as fórmulas 1.8 de Frenet tem-se que

p0 (s) = t(s) + rn0 (s) = t(s) − rκ(s)t(s) = 0,

portanto existe O ∈ R3 tal que p(s) = O para todo s, o que implica que

|α(s) − O| = r, ∀s ∈ I,

pela definição (1.9) e podemos concluir a prova.


12 CAPÍTULO 1. CURVAS NO ESPAÇO.

Figura 1.5: O círculo osculador.

No exercício 8 da seção 1.5, vemos que o círculo osculador é aquele que melhor aproxima
à curva em uma vizinhança de s0 . O raio do círculo osculador é chamado de raio de curvatura
e o seu centro é dito centro de curvatura.
1
Se κ(s) > 0 para todo s ∈ I, a curva β(s) = α(s) + κ(s) n(s) formada pelos centros de curva-
tura de α é chamada de evoluta de α. É fácil conferir que a evoluta de uma circunferência
de centro p0 e raio r é uma circunferência concêntrica à primeira de raio r ± 1, segundo a
orientação fixada na dada circunferência.

Figura 1.7: O astroide é a evoluta de uma


Figura 1.6: A evoluta de uma hélice circular. elipse.
1.4. TEOREMA FUNDAMENTAL DA TEORIA LOCAL DE CURVAS. 13

1.4 Teorema fundamental da teoria local de curvas.


Para começar, vamos nos lembrar de alguns conceitos e resultados importantes da álgebra
linear que são necessários para o correto seguimento da demonstração do resultado principal
do capítulo.
Dizemos que uma isometria do espaço é uma aplicação F : R3 −→ R3 que preserva as
distâncias entre pontos, isto é, tal que

|F (p) − F (q)| = |p − q|, ∀p, q ∈ R3 .

Uma transformação ortogonal é uma aplicação linear cuja matriz associada A é tal que
A−1 = At e segue daí que det(A) = ±1. Denotamos o conjunto das transformações ortogonais
do espaço por O(3). Dizemos que uma aplicação ortogonal preserva a orientação do espaço
se det(A) = 1 e inverte a orientação em outro caso; denotamos por O+ (3) ao conjunto das
aplicações ortogonais que preservam a orientação. Podemos afirmar que toda transformação
ortogonal é uma isometria, pois hAv, Avi = (Av)t Av = v t (At A)v = v t v = hv, vi.
Pode-se provar que, se F é uma isometria de R3 , então existem uma translação do espaço
com vetor de translação v e uma matriz A ∈ O(3) tais que F (p) = Ap + v. Diz-se que a
isometria F preserva a orientação se A ∈ O+ (3) e que inverte a orientação em outro caso.
Dizemos que um movimento rígido do espaço é uma isometria do espaço que preserva a
orientação e é sabido que dadas duas bases do espaço igualmente orientadas, existe um
movimento rígido que transforma uma na outra.

Observação 1.4.1. Considere o espaço vetorial R3 munido do produto escalar usual h·, ·i.
Observe que as transformações ortogonais do espaço preservam o módulo e os ângulos entre
vetores. Com efeito, se A ∈ O(3) e considere u, v vetores arbitrários de R3 , θ o ângulo
formado por u e v e θA o ângulo formado por Au e Av. Então

|Av|2 = hAv, Avi = hv, vi = |v|2 ,

hAu, Avi hu, vi


Cos(θA ) = = = Cos(θ),
|Au||Av| |u||v|
o que implica que θA = θ, como queríamos provar.

Observação 1.4.2. Observe também que, se A ∈ O+ (3), então Au ∧ Av = A(u ∧ v) para todo
u, v ∈ R3 . Com efeito, hA(u ∧ v), Aui = hu ∧ v, ui = 0 e hA(u ∧ v), Avi = hu ∧ v, vi = 0 o que
implica que A(u ∧ v) ⊥ Au e A(u ∧ v) ⊥ Av e portanto A(u ∧ v) está na direção de Au ∧ Av,
14 CAPÍTULO 1. CURVAS NO ESPAÇO.

e como A preserva a orientação, tem-se que ∃λ > 0 tal que A(u ∧ v) = λ(Au ∧ Av). Acima
já provamos que as transformações ortogonais preservam ângulos, logo

|Au ∧ Av| = |Au||Av|SinθA = |u||v|Sinθ = |u ∧ v| = |A(u ∧ v)| = λ|Au ∧ Av|,

o que implica que λ ≡ 1.

Usando as observações anteriores é imediato provar que todo movimento rígido do espaço
transforma qualquer curva regular em outra curva regular. Além disso, podemos provar que
a geometria das curvas no espaço fica invariante frente a movimentos rígidos do espaço.

Lema 1.4.1. Seja dada α : I ⊂ R −→ R3 uma curva regular e PCA. Então as funções
associadas comprimento de arco, curvatura e torção são invariantes frente a movimentos
rígidos do espaço.

Demonstração. Considere A ∈ O+ (3), v ∈ R3 e F (x) = Ax + v o correspondente movimento


rígido do espaço; chame de β à curva F (α). Em primeiro lugar vamos conferir que o compri-
mento de arco é preservado para qualquer parametrização de α; com efeito, pela definição
1.2.1 tem-se que
Z t Z t Z t
0 0
sα (t) = |α (r)|dr = |Aα (r)|dr = |β 0 (r)|dr = sβ (t),
t0 t0 t0

para cada t ∈ I.
Supondo agora que α é PCA, segue do anterior que β é também PCA. Vemos a seguir que
as funções curvatura e torção são preservadas pelos movimentos rígidos do espaço. Assim

κα (s) = |α00 (s)| = |Aα00 (s)| = |β 00 (s)| = κβ (s),

para todo s ∈ I. Daí segue que


Aα00 β 00
Anα = = = nβ
κα κβ

e também que
Abα = A(tα ∧ nα ) = Atα ∧ Anα = tβ ∧ nβ = bβ ,

e finalmente que

τα (s) = hb0α (s), nα (s)i = hAb0α (s), Anα (s)i = hb0β (s), nβ (s)i = τβ (s), ∀s ∈ I.
1.4. TEOREMA FUNDAMENTAL DA TEORIA LOCAL DE CURVAS. 15

O resultado principal da seção diz-nos que toda curva regular do espaço fica totalmente
determinada por duas funções diferenciáveis; com efeito, como já vimos na seção anterior,
toda curva possui associadas duas funções diferenciáveis κ e τ , que chamamos de curvatura
e torção, respectivamente. Vamos provar que podemos recuperar uma curva regular a partir
de duas dadas funções diferenciáveis, as quais vão coincidir com as correspondentes funções
curvatura e torção da curva. Antes de enunciar o resultado, vamos dar uma expressão
matricial das equações (1.8) para uma curva α regular e PCA.
Se {t(s), n(s), b(s)} é o triedro de Frenet da curva α : I ⊂ R −→ R3 regular, PCA e tal
que κ(s) > 0 para cada s ∈ I, definimos uma aplicação de I em R9 de maneira que
 
t(s)
 
s −→  n(s) ,

b(s)

para cada s ∈ I, onde t, n e b são vetores coluna de R3 . Então, de (1.8) tem-se que
       
t0 (s) κ(s)n(s) 03 κ(s)I3 03 t(s)
       
n0 (s) = −κ(s)t(s) − τ (s)b(s) = −κ(s)I3 03  · n(s) ,
−τ (s)I3   
    
b0 (s) τ (s)n(s) 03 τ (s)I3 03 b(s)

sendo 03 a matriz nula e I3 a matriz identidade, ambas de ordem 3 × 3. Assim, a aplicação


 
t(s)
 
s −→   n(s) ,

b(s)

é solução de uma equação diferencial linear de primeira ordem.

Teorema 1.4.1 (Teorema fundamental da teoria local de curvas.). Sejam κ, τ : I ⊂ R −→ R


funções diferenciáveis de maneira que κ > 0. Então, a menos de um movimento rígido do
espaço, existe uma única curva α : I ⊂ R −→ R3 regular e PCA tal que κα ≡ κ e τα ≡ τ ,
sendo κα e τα as correspondentes funções curvatura e torção de α. Isto é, se β é uma outra
curva tal que κβ ≡ κ e τβ ≡ τ , então existe um movimento rígido do espaço que transforma
β em α.

Demonstração. A existência decorre do Teorema de existência e unicidade de solução para


EDO’s lineares de primeira ordem. Com efeito, considere uma equação diferencial linear de
primeira ordem
x0 (s) = A0 (s)x(s), (1.10)
16 CAPÍTULO 1. CURVAS NO ESPAÇO.

onde  
03 κ(s)I3 03
 
A0 (s) = −κ(s)I3
 03 −τ (s)I3 

03 τ (s)I3 03
Tomamos a ∈ R9 tal que os vetores T0 = (a1 , a2 , a3 ), N0 = (a4 , a5 , a6 ) e B0 = (a7 , a8 , a9 )
formam uma base ortonormal positivamente orientada do espaço. Seja F : I −→ R9 uma
solução de (1.10) com valor inicial f (s0 ) = a. Então, se definimos as funções

T, N, B : I −→ R3

dadas por T (s) = (f1 (s), f2 (s), f3 (s)), N (s) = (f4 (s), f5 (s), f6 (s)) e B(s) = (f7 (s), f8 (s), f9 (s))
para cada s ∈ I, tem-se que T 0 , N 0 e B 0 satisfazem as equações

T 0 (s) = κ(s)N (s),


N 0 (s) = −κ(s)T (s) − τ (s)B(s), (1.11)
B 0 (s) = τ (s)N (s).

Seja M (s) a matriz formada pelos produtos escalares das funções T , N e B, isto é
 
|T (s)|2 hT (s), N (s)i hT (s), B(s)i
 
M (s) =  2 ,
 hN (s), T (s)i |N (s)| hN (s), B(s)i 
2
hB(s), T (s)i hB(s), N (s)i |B(s)|

Derivando a matriz M em relação à variável s, é um cálculo simples conferir que, a partir


do anterior, a matriz M (s) satisfaz a equação diferencial

2M 0 (s) = A(s)M (s) − M (s)A(s), (1.12)

onde  
0 κ(s) 0
 
A(s) = 
−κ(s) 0 −τ (s)

0 τ (s) 0
e satisfaz o valor inicial M (s0 ) = I3 , pois f (s0 ) = (T0 ; N0 ; B0 ) vetores que formam uma base
ortonormal positivamente orientada do espaço. Por outro lado, a função matricial constante
I3 também satisfaz a equação (1.12) e o mesmo valor inicial que M (s) para todo s ∈ I,
portanto, pelo teorema de existência e unicidade de solução mencionado acima, tem-se que
M (s) = I3 e podemos concluir que {T, N, B} é uma base ortonormal de R3 para cada s ∈ I,
1.4. TEOREMA FUNDAMENTAL DA TEORIA LOCAL DE CURVAS. 17

logo det(T (s); N (s); B(s)) = ±1, para todo s ∈ I. Porém, como det(T (s0 ); N (s0 ); B(s0 )) =
±1 pela condição sobre a orientação dessa base do espaço, temos que a base {T, N, B} é
também positivamente orientada para cada s ∈ I.
Definimos α : I −→ R3 por Z s
α(s) = T (u)du, ∀s ∈ I.
s0

Assim, tem-se que α é diferenciável e que α0 (s) = T (s) para todo s pelo TFC, o que implica
que α é PCA.
Uma vez construída a curva, vamos conferir que as correspondentes funções curvatura e
torção, que vamos denotar por κα e τα , coincidem com as funções κ e τ da hipótese. Com
efeito, se chamamos de tα , nα e bα aos vetores do triedro de Frenet de α, por definição temos
que tα ≡ T , e por (1.11) e (1.8) tem-se para cada s que

κα (s) = |t0α (s)| = |T 0 (s)| = κ(s),

e que nα ≡ N pela definição 1.3.2. Segue que bα ≡ B pela definição 1.3.3, o que implica que
τα ≡ τ pela definição 1.3.4.
Para demonstrar a unicidade, devemos provar que a curva α construída na primeira
parte da prova é única a menos de um movimento rígido do espaço. Seja β : I −→ R3 outra
curva regular e PCA de maneira que κβ ≡ κ e τβ ≡ τ . Fixamos s0 ∈ I e consideramos
os correspondentes triedros de Frenet Bα0 = {t0α , n0α , b0α } e Bβ0 = {t0β , n0β , b0β } associados aos
pontos α(s0 ) e β(s0 ), respectivamente. Podemos supor, s.p.g., que as bases Bα0 e Bβ0 são
igualmente orientadas, pois sempre podemos trocar a orientação de β como no Exemplo
1.2.3. Assim, existe um movimento rígido F que transforma o ponto β(s0 ) em α(s0 ) e a base
Bβ0 na base Bα0 .
Denotamos por γ = F (β), vamos provar que γ ≡ α. Com efeito, pelo lema 1.4.1 temos
que γ é regular, PCA e que κγ ≡ κ ≡ κβ e τγ ≡ τ ≡ τβ . Assim, podemos apresentar as
correspondentes fórmulas de Frenet das curvas γ e α, a saber
 
0 0

 γ
 t = κn γ ,  tα

 = κnα ,
n0γ = −κtγ − τ bγ , e n0α = −κtα − τ bα ,
 
 b0 = τ n ,
  b0

= τ nα .
γ γ α

Considere a função auxiliar f (s) = |tγ − tα |2 + |nγ − nα |2 + |bγ − bα |2 , para cada s ∈ I. Se


derivamos a função f e usamos os triedros de Frenet acima temos que

f 0 (s) = 2ht0γ − t0α , tγ − tα i + 2hn0γ − n0α , nγ − nα i + 2hb0γ − b0α , bγ − bα i = 0,


18 CAPÍTULO 1. CURVAS NO ESPAÇO.

o que implica que f (s) é constante, e como

f (s0 ) = |t0γ − t0α |2 + |n0γ − n0α |2 + |b0γ − b0α |2 = 0,

então f ≡ 0 o que implica, em particular, que se verifica a igualdade

tγ (s) = tα (s), ∀s ∈ I.

Integrando a igualdade acima temos que γ(s) e α(s) são iguais a menos de uma constante
para qualquer s ∈ I; tomando s = s0 , temos que γ(s0 ) = F (β(s0 )) = α(s0 ), logo tal constante
deve ser zero e podemos concluir a demonstração.
1.5. EXERCÍCIOS. 19

1.5 Exercícios.
1. Seja α : I −→ R3 uma curva e [a, b] ⊂ I. Prove que |α(a) − α(b)| ≤ Lba (α), sendo
Lba (α) o comprimento de arco de α no intervalo [a, b]. Ou seja, mostre que as retas são
as curvas mais curtas ligando dois dados pontos do espaço.

2. Considere a espiral logarítmica α : R −→ R3 dada por α(t) = aebt Cos(t), aebt Sin(t), c
sendo a > 0, b < 0 e c ∈ R. Calcule a função comprimento de arco s(t) no intervalo
[t0 , t], sendo t0 ∈ R fixo. Dê uma reparametrização da curva PCA e estude seu traço.

3. Calcule uma parametrização pelo comprimento de arco da hélice circular dada no exem-
plo 1.1.2. Para cada s, calcule o triedro de Frenet no ponto α(s) e as correspondentes
funções curvatura e torção. Em seguida, dê as fórmulas de Frenet dessa curva.

4. Seja α : I −→ R3 uma curva regular PCA e F : R3 −→ R3 uma isometria. Considere


β = F ◦ α, prove que

i. κβ (s) = κα (s), ∀s ∈ I.
(
τα (s) , para todo s em I se F preserva a orientação
ii. τβ (s) =
−τα (s) , para todo s em I se F inverte a orientação

5. Seja α : I −→ R3 uma curva regular PCA tal que κ > 0. Prove que α é um arco
de circunferência se, e somente se, κ é constante e o traço de α está contido em uma
esfera.
(Indicação: o traço de α está contido em uma esfera se existem r > 0 e
p0 ∈ R3 tais que |α(s) − p0 |2 = r2 , para todo s ∈ I.)

6. Seja α : I −→ R3 uma curva regular PCA tal que κ > 0. Prove que as seguintes
afirmações são equivalentes:

i. Todos os planos osculadores de α são concorrentes.

ii. A curva α é plana.

7. Seja α : I ⊂ R −→ R2 ⊂ R3 uma curva plana PCA. Se define a distância orientada do


ponto α(s) à reta tangente a α no ponto s0 ∈ I como a função f : I −→ R dada por

f (t) = hα(s) − α(s0 ), n(s0 )i, ∀s ∈ I.

(a) Prove que f (s0 ) = 0, f 0 (s0 ) = 0 e f 00 (s0 ) = κ(s0 ).


20 CAPÍTULO 1. CURVAS NO ESPAÇO.

(b) Use o item (a) para provar que, se κ(s0 ) > 0, existe uma vizinhança J de s0 em I
de maneira que α(J) está contida no semi-plano determinado pela reta tangente
a α em s0 ao qual aponta o vetor n(s0 ).

(c) Use o item (a) para provar que, se existe uma vizinhança J de s0 em I de maneira
que α(J) está contida no semi-plano determinado pela reta tangente a α em s0
ao qual aponta o vetor n(s0 ), então κ(s0 ) ≥ 0.

8. Seja α : I ⊂ R −→ R2 ⊂ R3 uma curva plana PCA tal que κ(s0 ) > 0 para algum
s0 ∈ I. Para λ ∈ R∗ , considere um ponto aλ = α(s0 ) + λn(s0 ) sobre a reta normal a
α em s0 . Se define a distância ao quadrado do ponto α(s) ao ponto aλ como a função
fλ : I −→ R dada por
fλ (s) = |α(s) − aλ |2 , ∀s ∈ I.

(a) Prove que fλ (s0 ) = λ2 , fλ0 (s0 ) = 0 e fλ00 (s0 ) = 2(1 − λκ(s0 )).

(b) Use o item (a) para provar que, se λ < 1/κ(s0 ), existe uma vizinhança J de s0
em I de maneira que α(J) fica do lado de fora de uma circunferência de centro
aλ e raio |λ|.

(c) Use o item (a) para provar que, se λ > 1/κ(s0 ), existe uma vizinhança J de s0
em I de maneira que α(J) fica dentro de uma circunferência de centro aλ e raio
λ.

Livro do Manfredo, página 6 exercícios 1, 2, 3 e 5; página 12 exercício 8; página 13


exercício 10; páginas 26-31 exercícios 1, 2, 4, 5, 6, 12 (só a, b e c), 13, 15, 16 e 17.
Capítulo 2

Superfícies Regulares.

21
22 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

2.1 Definição e exemplos.


A questão mais importante que devemos enfrentar no momento em que queremos mexer
com superfícies é mesmo discernir qual definição de superfície vamos considerar a mais
apropriada para o o nosso fim. Existem diferentes definições, algumas que permitem uma
família bem extensa e variada e outras que são mais restritivas, e isso vai depender das
ferramentas usadas para o desenvolvimento do estudo das propriedades geométricas dos
elementos dessas famílias. Nós vamos dar uma definição de superfície acorde às limitações
do cálculo diferencial, que será a principal ferramenta que usaremos para o nosso propósito.
Assim, excluiremos do nosso estudo subconjuntos que apresentem arestas, singularidades
isoladas e/ou outras falhas na diferenciabilidade do objeto, como por exemplo a extensa e
importante família dos poliedros, os cones e os subconjuntos do espaço que possuem auto-
intersecções, como por exemplo a garrafa de Klein.
Diremos que uma superfície é um subconjunto S de R3 de maneira que cada um dos seus
pontos possui uma vizinhança igual a um pedaço de plano deformado suavemente e sem auto-
intersecções. Desde o ponto de vista da teoria de sub-variedades, uma superfície do espaço
pode-se entender como um sub-espaço topológico 2-dimensional de R3 munido da topologia
induzida pela topologia usual de R3 , a bem conhecida topologia das bolas abertas. Para
maiores detalhes sobre sub-espaços topológicos, pode consultar [8, sec. 1.5], [11, Sec. 2.5]
ou [12, Ch. 2, Sec. 16]. Veremos que poderemos munir esse sub-espaço topológico de uma
estrutura diferenciável composta por difeomorfismos de abertos do plano com abertos de S,
que permite-nós estudar as propriedades geométricas locais das superfícies usando o cálculo
diferencial como a nossa principal ferramenta. Esse tratamento das superfícies, entendendo
elas como sub-espaços topológicos, afasta-nos sensivelmente do ponto de vista usado no capí-
tulo de curvas, as quais são definidas como aplicações. Precisamos dar uma definição rigorosa
do que significa ser um "pedaço de plano deformado suavemente e sem auto-intersecções".
Denotamos por C ∞ (U ) = {f : U −→ R : f é diferenciável no aberto U }.

Definição 2.1.1. Um subconjunto S de R3 é dito uma superfície regular se para cada ponto
p ∈ S existe uma vizinhança aberta V de p em S e uma aplicação X : U −→ V , onde
U ⊂ R2 é um aberto do plano, satisfazendo as seguintes propriedades:

i. X é diferenciável em U .

ii. X é um homeomorfismo de U em V .
2.1. DEFINIÇÃO E EXEMPLOS. 23

iii. A função dXq : R2 −→ R2 é injetiva, para todo q ∈ U .

A aplicação X é chamada de parametrização local de S, ou de sistema local de coordenadas


em p ∈ S, ou de carta local em p. O conjunto Vp ∩ S é chamada de vizinhança coordenada
de p em S. Ver figura 2.1.
Fixando um ponto q = (u0 , v0 ) ∈ U , a imagem das curvas X(u0 , v) e X(u, v0 ) são chamadas
de curvas coordenadas.

Figura 2.1: Parametrização de uma superfície regular.

Em relação à definição de superfície regular, podemos comentar os seguintes aspectos da


mesma:

• É natural pedir que a aplicação X seja diferenciável, pois queremos usar o cálculo dife-
rencial como ferramenta para entender a geometria das superfícies do espaço. Podemos
escrever X como X(u, v) = (x(u, v), y(u, v), z(u, v)); assim, dizer que X é diferenciá-
vel em U é equivalente a dizer que as funções x, y, z ∈ C ∞ (U ). Chamamos u e v de
coordenadas locais de S em p.

• Se X é diferenciável e satisfaz o item i., então X : U −→ V é contínua e sobrejetiva.


Assim, a fins de provar o item ii., basta conferir que X é injetiva e que X −1 é contínua.

• Pedir a X ser um homeomorfismo é uma maneira de evitar auto-intersecções na super-


fície, ou seja, obriga a X ser injetiva.

• O fato de dXq ser injetiva para todo q ∈ U é equivalente a que os vetores Xu e


Xv sejam linearmente independentes. Com efeito, considere {e1 , e2 } a base canônica
24 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

de R2 com origem no ponto q = (u0 , v0 ) ∈ U , então o vetor e1 é tangente à curva


coordenada X(u, v0 ) e o vetor e2 é tangente à curva coordenada X(u0 , v). Se calculamos
as derivadas parciais da aplicação X temos que

Figura 2.2: A diferencial de X em q é injetiva.

∂X ∂x ∂y ∂z

dXq (e1 ) = ∂u
= ∂u
, ∂u
, ∂u
,
∂X ∂x ∂y ∂z

dXq (e2 ) = ∂v
= ∂v
, ∂v
, ∂v
,
e portanto, a matriz da aplicação diferencial de X em q é
 
∂x ∂x
 ∂u
∂y
∂v

∂y 
dXq = 
 ∂u ∂v 
.
∂z ∂z
∂u ∂v

Logo, a terceira condição da definição 2.1.1 é equivalente a exigir que a matriz dXq
tenha posto igual a 2, o que significa que a igualdade

Xu ∧ Xv 6= 0,

é satisfeita, a qual é condição suficiente para esses dois vetores poderem gerar um plano
que passa pelo ponto p da superfície. Mais adiante daremos uma definição formal desse
plano e exprimiremos toda a informação que ele fornece da superfície.
2.1. DEFINIÇÃO E EXEMPLOS. 25

Exemplo 2.1.1. O Plano Π.


Considere o conjunto Π = {(x, y, z) ∈ R3 : ax + by + cz = d}, onde (a, b, c) 6= (0, 0, 0). Se
c 6= 0, podemos re-escrever a equação do plano como z = Ax + By + C, para certos valores
reais A, B e C.
Definimos a aplicação diferenciável X : R2 −→ R3 dada por

Figura 2.3: O plano de equação z + 2y = 2.

X(u, v) = (u, v, Au + Bv + C).

Assim, X(R2 ) = Π, X é um homeomorfismo com inversa X −1 : Π −→ R2 dada por


X −1 (x, y, z) = (x, y) e as derivadas parciais Xu (u, v) = (1, 0, A) e Xv (u, v) = (0, 1, B) são
linearmente independentes em todo ponto de R2 .
Exemplo 2.1.2. Os gráficos de funções reais diferenciáveis.
Seja U ⊂ R2 um aberto e f : U −→ R uma função diferenciável. Se define o Gráfico de f
como o conjunto S = {(x, y, z) ∈ R3 : (x, y) ∈ U, z = f (x, y)}. No caso, X : U −→ R3 dada
por
X(u, v) = (u, v, f (u, v)),

é uma parametrização de S tal que X(U ) = S. Pode conferir que as outras condições são
também satisfeitas; portanto, S é uma superfície.
Observe que, nos exemplos acima, um plano e o gráfico de uma função diferenciável
podem sempre ser cobertos com apenas uma única parametrização. Isso, em geral, não
acontece; no caso geral, vamos precisar de mais do que uma parametrização a fins de cobrir
totalmente a superfície.
Exemplo 2.1.3. Subconjuntos abertos de Superfícies.
Se S é uma superfície e S1 ⊂ S é um subconjunto aberto distinto de vazio, então S1 é
26 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

Figura 2.4: O gráfico de f .

uma superfície. Basta observar que, se X : U −→ S é uma parametrização de S tal que


X(S) ∩ S1 6= ∅, então a restrição X : X −1 (S1 ) ⊂ U −→ S1 é uma parametrização de S1 .
Uma consequência imediata é que cada componente conexa de uma superfície é também
uma superfície, pois as componentes conexas de um espaço localmente conexo são conjuntos
abertos, consultar [8, Sec. 6.5].
Exemplo 2.1.4. A esfera unitária S2 .
Considere o conjunto S2 = {(x, y, z) ∈ R3 : x2 + y 2 + z 2 = 1}. Queremos cobrir comple-
tamente o conjunto S2 com uma quantidade finita de parametrizações locais. Repetindo a
técnica usada no exemplo 2.1.1, isolamos z da fórmula que define o conjunto S2 . Considere
o aberto U = {(u, v) ∈ R2 : u2 + v 2 < 1} e defina a aplicação

X1 (u, v) = (u, v, 1 − u2 − v 2 ), ∀(u, v) ∈ U.

Figura 2.5: X1 (U ) cobre a semi-esfera onde z > 0.


2.1. DEFINIÇÃO E EXEMPLOS. 27

• Claramente, X1 é diferenciável no aberto U .

• X1 é contínua e X1−1 é a restrição da projeção Π(x, y, z) = (x, y) sobre o conjunto


X1 (U ), que é também uma aplicação contínua. Portanto, X1 é um homeomorfismo de
U na semiesfera aberta superior.

• A matriz d(X1 )q tem posto 2. Com efeito, os vetores coluna da matriz são (X1 )u (u, v) =
√ √
(1, 0, ( 1 − u2 − v 2 )u ) e (X1 )v (u, v) = (0, 1, ( 1 − u2 − v 2 )v ) e podemos observar que
a matriz identidade I2 de ordem 2 × 2, a qual possui determinante distinto de zero, é
uma submatriz da mesma.

Assim, temos provado que X1 é uma parametrização local da esfera, mas só cobre a semiesfera
aberta {z > 0}, ver figura 2.5. Defina a aplicação

X2 (u, v) = (u, v, − 1 − u2 − v 2 ), ∀(u, v) ∈ U.
S
Observe que X1 (U ) X2 (U ) não cobre totalmente a esfera, pois ainda falta cobrir os pontos

Figura 2.6: A união das semi-esferas cobre S2 .

do ecuador de S2 , ou seja, aqueles pontos onde z = 0. Para isso considere as seguintes


aplicações

X3 (u, v) = (u, 1 − u2 − v 2 , v), ∀(u, v) ∈ U,

X4 (u, v) = (u, − 1 − u2 − v 2 , v), ∀(u, v) ∈ U,

X5 (u, v) = ( 1 − u2 − v 2 , u, v), ∀(u, v) ∈ U,

X6 (u, v) = (− 1 − u2 − v 2 , u, v), ∀(u, v) ∈ U.
28 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

De maneira análoga, pode-se provar que Xi é uma parametrização local da esfera, para cada
i = 2, . . . , 6. Como pode-se apreciar na figura 2.6, a união das imagens das parametrizações
cobrem totalmente a esfera, ou seja
6
[
Xi (U ) = S2 ,
i=1

temos provado que a esfera unitária é uma superfície regular do espaço. Observe que, tro-
cando 1 por r2 nas aplicações Xi , 1 ≤ i ≤ 6, o processo mostrado acima serve também para
parametrizar a esfera de raio r, que denotamos por S2 (r).
A parametrização da esfera apresentada acima precisa de seis cartas. Vemos a seguir
que, mudando para outro tipo de coordenadas, podemos cobrir totalmente uma esfera de
raio arbitrário usando uma quantidade menor de cartas. Para um dado r > 0, defina para
cada 0 < θ < π e 0 < ϕ < 2π a aplicação

X(θ, ϕ) = (rSin(θ)Cos(ϕ), rSin(θ)Sin(ϕ), rCos(θ)) , (θ, ϕ) ∈ (0, π) × (0, 2π).

As coordenadas apresentadas acima são chamadas de coordenadas esféricas ou sistema

Figura 2.7: Coordenadas esféricas na esfera.

esférico de coordenadas e cobrem a esfera a menos de um semicírculo que contem os dois polos.
O raio r representa o comprimento do segmento que liga cada ponto da esfera com o centro
da mesma; os nomes dos ângulos θ e ϕ são colatitude e azimute, respectivamente. Observe
que pode-se cobrir totalmente a esfera usando apenas três cartas locais em coordenadas
esféricas. É tarefa do leitor provar que as coordenadas esféricas são uma parametrização
local da esfera.
2.1. DEFINIÇÃO E EXEMPLOS. 29

Lembramos que, na teoria do cálculo vetorial, as funções reais de várias variáveis, f :


Rn −→ R para n ≥ 2, são chamadas de campos escalares e que as funções vetoriais de uma
ou várias variáveis, F : Rn −→ Rm para m ≥ 2, são chamadas de campos vetoriais.

Definição 2.1.2. Dado um aberto U ⊂ Rn , n ≥ 2, e um campo diferenciável F : U −→ Rm ,


m ≥ 1, dizemos que p ∈ U é um ponto crítico de F se dFp : Rn −→ Rm não é sobrejetiva.
Se p é um ponto crítico de F , então F (p) ∈ Rm é um valor crítico de F .
Todo valor de F , ou seja, todo ponto q ∈ F (U ) que não é um valor crítico de F , é dito um
valor regular de F .

Observação 2.1.1. É claro da definição acima, que se n < m, então todo ponto p ∈ U é
crítico. Assim, só faz sentido falar de valores regulares de F quando n ≥ m. Em particular,
podemos dar uma caracterização tanto dos pontos críticos quanto dos pontos regulares de
um campo escalar.
Dado um aberto U ⊂ Rn e um campo escalar f : U −→ R, tem-se para todo p ∈ U que a
correspondente aplicação diferencial dfp : Rn −→ R está dada por

dfp (u) = h∇f (p), ui, ∀u ∈ Rn ,


 

sendo ∇f (p) = ∂x1
f (p), ∂x∂ 2 f (p), . . . , ∂x∂n f (p) o vetor gradiente de f no ponto p. Em
diante vamos usar a seguinte notação


f (p) ≡ fx (p).
∂x
Para cada p ∈ U , a diferencial de f em p é uma aplicação linear e sua imagem dfp (Rn ) é
um subespaço vetorial de R, o que implica que dim(Im(dfp )) ≤ 1. Assim, se o ponto p ∈ U
é crítico de f , então a diferencial dfp não é sobrejetiva pela definição e isso implica que
Im(dfp ) = {0}, logo ∇f (p) = 0 pela fórmula das dimensões e pela regularidade de f .
Temos provado a seguinte afirmação:

«Dado um aberto U ∈ Rn e um campo escalar f : U −→ R, tem-se que a ∈ f (U )


é um valor regular de f se, e somente se ∇f (p) 6= 0, para todo p no conjunto
f −1 (a) = {p ∈ U : f (p) = a}.»

Proposição 2.1.1. Dado um aberto U ∈ R3 e um campo escalar diferenciável f : U −→ R.


Se a ∈ f (U ) é um valor regular de f , então o conjunto f −1 ({a}) é uma superfície regular de
R3 .
30 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

Demonstração. Seja p = (x0 , y0 , z0 ) ∈ f −1 ({a}), então ∇f (p) 6= 0 pela definição 2.1.2. Po-
demos supor, s.p.g., que fz (p) 6= 0. Nesse caso, pelo Teorema da função implícita (TFI),
existem uma vizinhança aberta W ⊂ R2 de (x0 , y0 ), um número positivo  > 0 suficiente-
mente pequeno e uma função diferenciável φ : W −→ (z0 − , z0 + ) tal que z = φ(x, y),
para todo (x, y) ∈ W . Isto é, o ponto p possui uma vizinhança tal que

f (x, y, φ(x, y)) = a,

o que significa que tal vizinhança é o gráfico de uma certa função diferenciável, que já
sabemos é uma superfície regular pelo exemplo 2.1.2.

Observação 2.1.2. Observe que a proposição 2.1.1 é consequência do exemplo 2.1.2. Veremos
na lista de exercícios desse capítulo, que pode-se usar a proposição 2.1.1 para provar que os
gráficos de funções reais diferenciáveis definidas em abertos de R2 são superfícies regulares.
A proposição acima fornece um critério pelo qual é muito simples provar que alguns dos
exemplos anteriores são superfícies regulares. Por exemplo, pode-se definir um plano a través
da igualdade ax + by + cz = d, conhecida como a equação geral do plano, ver exemplo 2.1.1.
Se definimos a função f : R3 −→ R por

f (x, y, z) = ax + by + cz − d,

é evidente que f é uma função diferenciável e que Π = f −1 ({0}). Como

∇f (x, y, z) = (a, b, c) 6= (0, 0, 0),

temos que Π é uma superfície regular pela proposição 2.1.1.


Podemos repetir o argumento anterior na esfera. No exemplo 2.1.4, se define S2 como o
conjunto dos pontos de R3 que satisfazem a fórmula x2 + y 2 + z 2 = 1. Se definimos a função
f : R3 −→ R por
g(x, y, z) = x2 + y 2 + z 2 ,

é claro que g é uma função diferenciável e que S2 = g −1 ({1}). Como

|∇g(p)| = |2p| = 2 6= 0, ∀p ∈ S2

o que implica que o vetor gradiente de g em p é não nulo para todo ponto da esfera, e
portanto S2 é uma superfície regular pela proposição 2.1.1.
Usando a proposição 2.1.1 podemos encontrar facilmente novos exemplos de superfícies regu-
lares, pois poderemos saber quando um conjunto definido implicitamente por uma equação
constitui uma superfície regular.
2.1. DEFINIÇÃO E EXEMPLOS. 31

Exemplo 2.1.5. O elipsóide.


Dados a, b, c ∈ R∗ , considere o conjunto
x2 y 2 z 2
S = {(x, y, z) ∈ R3 : + 2 + 2 = 1}.
a2 b c
Se definimos a função
x2 y 2 z 2
f (x, y, z) =+ 2 + 2 − 1,
a2 b c
−1
vemos que f é claramente diferenciável e que S = f ({0}). Além disso, o vetor gradiente
 
2x 2y 2z
∇f (x, y, z) = , ,
a2 b 2 c 2
é diferente de 0 para todo ponto de S, pois a origem, igual que na esfera, o conjunto S não
contem o ponto (0, 0, 0).Assim, o elipsoide S é uma superfície regular pela proposição 2.1.1.
A esfera pertence à família dos elipsóides, pois se a = b = c = 1, então S é uma esfera.

Figura 2.8: O elipsóide.

Exemplo 2.1.6. Os hiperbolóides.


Dados a, b, c ∈ R∗ , considere os conjuntos
x2 y 2 z 2 x2 y 2 z 2
H1 = {(x, y, z) ∈ R3 : + − = 1} e H2 = {(x, y, z) ∈ R3 : + − = −1}.
a2 b 2 c 2 a2 b 2 c 2
O conjunto H1 é conhecido como hiperbolóide de uma folha e o conjunto H2 é chamado de
hiperbolóide de duas folhas. Se definimos as funções
x2 y 2 z 2 x2 y 2 z 2
f1 (x, y, z) = + 2 − 2 −1 e f2 (x, y, z) = + 2 − 2 + 1,
a2 b c a2 b c
observamos que as funções fi são diferenciáveis e que Hi = fi−1 ({0}), para i = 1, 2. Como
os vetores gradiente
 
2x 2y 2z
∇f1 (x, y, z) = , ,− 2 = ∇f2 (x, y, z)
a2 b 2 c
32 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

são diferentes de 0, pois os conjuntos H1 e H2 não contêm a origem de coordenadas, temos


que os hiperbolóides H1 e H2 são superfícies regulares pela proposição 2.1.1.
Observe que H2 é uma superfície não conexa. Cada uma das folhas de H2 é uma componente
conexa da superfície.

Figura 2.9: Os hiperbolóides de uma e duas folhas, respectivamente.

Exemplo 2.1.7. O toro.


p
Dados 0 < r < R, considere o conjunto T = {(x, y, z) ∈ R3 : z 2 + ( x2 + y 2 − r)2 = R2 }.
Se definimos a função
p
f (x, y, z) = z 2 + ( x2 + y 2 − r)2 − R2 ,

vemos que T = f −1 ({0}) e que f é diferenciável em todo p ∈ / {x = y = 0}. Por outro lado
p p !
2x( x2 + y 2 − r) 2y( x2 + y 2 − r)
∇f (x, y, z) = p , p , 2z = (0, 0, 0),
x2 + y 2 x2 + y 2
p
se x = y = z = 0, ponto que não pertence a T , ou quando x2 + y 2 = r e z = 0, mas se
esse ponto estivesse em T , implicaria que R = 0, que é absurdo. Portanto 0 é valor regular
de f e T é uma superfície regular pela proposição 2.1.1.
A superfície T é chamada de toro de revolução, ou simplesmente toro, e é a superfície
resultado da rotação de uma circunferência de raio r, cujo centro fica a distância R da
origem de coordenadas, em torno do eixo Oz.

Exemplo 2.1.8. Os parabolóides.


Se define o parabolóide hiperbólico como o conjunto S1 = {(x, y, z) ∈ R3 : z = x2 − y 2 }.
2.1. DEFINIÇÃO E EXEMPLOS. 33

Figura 2.10: O toro de revolução.

Observe que S está definido explícitamente como o gráfico de uma função diferenciável, então
S é superfície regular pelo exemplo 2.1.2 e pode-se parametrizar por

X1 (u, v) = (u, v, u2 − v 2 ), ∀(u, v) ∈ R2 ,

a qual cobre totalmente a superfície.


Se define o parabolóide elíptico como o conjunto S2 = {(x, y, z) ∈ R3 : z = x2 + y 2 }, que é
superfície regular pelo mesmo motivo acima e pode-se parametrizar por

X2 (u, v) = (u, v, u2 + v 2 ), ∀(u, v) ∈ R2 ,

a qual cobre totalmente a superfície.

Proposição 2.1.2. Toda superfície regular S ⊂ R3 é, localmente, o gráfico de um campo


escalar diferenciável.

Demonstração. Seja p ∈ S e X : U ⊂ R2 −→ S uma parametrização local em p de maneira


que X(u, v) = (x(u, v), y(u, v), z(u, v)), para cada (u, v) ∈ U . Como
dXq é injetiva para cada
∂x ∂x
q ∈ U pela definição 2.1.1, podemos supor, s.p.g., que ∂u ∂v
6= 0.

∂y ∂y
∂u ∂v
Considere a função projeção vertical Π : R3 −→ R2 dada por Π(x, y, z) = (x, y). A composta
Π ◦ X : U −→ R2 tal que Π ◦ X(u, v) = (x(u, v), y(u, v)), é diferenciável e | xyuu xv
yv | 6= 0; logo,
pelo Teorema da função inversa (TFI), podemos afirmar que existe uma vizinhança V1 de q
34 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

Figura 2.11: O parabolóide hiperbólico. Figura 2.12: O parabolóide elíptico.

em U e existe uma vizinhança V2 de Π ◦ X(q) em R2 de maneira que Π ◦ X : V1 −→ V2 é


um difeomorfismo e, como X é um homeomorfismo, V = X(V1 ) é uma vizinhança de p em
S (figura 2.13). Se consideramos a função f : V2 −→ R definida por

Figura 2.13: Toda superfície regular é localmente um gráfico.

f (x, y) = z ◦ (Π ◦ X)−1 (x, y) = z(u(x, y), v(x, y)),

observe que ela é diferenciável e que V é o gráfico de f em V2 , o que conclui a prova do


resultado.

Como consequência do resultado anterior, podemos provar que toda função diferenciável
de um aberto do plano em uma superfície regular cuja diferencial seja injetiva em todo ponto
2.1. DEFINIÇÃO E EXEMPLOS. 35

do aberto e que seja injetiva é, automaticamente, um homeomorfismo sobre sua imagem na


superfície. Assim, uma função nessas condições satisfaz a definição 2.1.1 e é, portanto, uma
parametrização local da superfície.

Proposição 2.1.3. Seja S uma superfície regular, p ∈ S e uma função vetorial X : U ⊂


R2 −→ R3 tal que p ∈ X(U ) ⊂ S, X ∈ C ∞ (U ) e dXq é injetiva para cada q ∈ U . Se X é
injetiva então X −1 é contínua.

Demonstração. Considere q ∈ U tal que q = X −1 (p). Pela proposição 2.1.2, podemos afirmar
que existe W ⊂ S tal que p ∈ W e W é o gráfico de uma função diferenciável sobre um certo
aberto V ⊂ R2 . Chamamos de N = X −1 (W ) ⊂ U e definimos a função h = Π◦ X : N −→ V
tal que
h(u, v) = (x(u, v), y(u, v)),

sendo Π a projeção vertical. Das hipóteses sobre X, tem-se que h é diferenciável e que
dhq = Π ◦ dXq 6= 0, logo existe uma vizinhança Ω ⊂ N de q tal que h é um difeomorfismo
sobre sua imagem pelo TFI, e portanto um homeomorfismo.
Como X é injetiva, X é uma bijeção de Ω em X(Ω). Assim, restrito ao conjunto X(Ω),
temos que X −1 está bem definida e que pode-se escrever como

X −1 = (Π ◦ X)−1 ◦ Π = h−1 ◦ Π,

o que implica que X −1 é uma função contínua em p por ser composição de funções contínuas
em p.

Observação 2.1.3. Observe que, da proposição acima podemos concluir que toda parame-
trização local de qualquer superfície regular é um difeomorfismo com um aberto do plano.
Assim, podemos afirmar que toda superfície regular é localmente difeomorfa ao plano.

Exemplo 2.1.9. Dados os números reais 0 < r < R, defina sobre o Toro (ver exemplo 2.1.7)
a função X : U = (0, 2π) × (0, 2π) −→ T dada por

X(u, v) = ((rCos(u) + R)Cos(v), (rCos(u) + R)Sin(v), rSin(u)) .

É claro que X é diferenciável em U . Derivando obtemos que

Xu (u, v) = (−rSin(u)Cos(v), −rSin(u)Sin(v), rCos(u)) ,


Xv (u, v) = (−(rCos(u) + R)Sin(v), (rCos(u) + R)Cos(v), 0) .
36 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

É simples conferir que dXq é injetiva para cada q ∈ U , o cálculo é deixado para o leitor.
Vamos provar que X é injetiva. Com efeito, considere um ponto (x, y, z) ∈ X(U ) ⊂ T , então

z = rSin(u) (2.1)
p
x2 + y 2 = rCos(u) + R (2.2)

Conhecendo x, y e z, podemos determinar com unicidade u entre 0 e 2π pelas igualdades


(2.1) e (2.2); em consequência podemos conhecer Cos(v) e Sin(v) da definição de X, e
portanto determinarmos v com unicidade entre 0 e 2π, o que implica que X é injetiva.
Usando a proposição 2.1.3, podemos concluir que X é uma parametrização local do Toro
pela definição 2.1.1.
2.2. EXERCÍCIOS. 37

2.2 Exercícios.
1. Seja S ⊂ R3 tal que S =
S
i∈I Si onde cada Si é um aberto de S. Se Si é uma superfície
para cada i ∈ I, prove que S é uma superfície.

2. Mostre que o gráfico de uma função diferenciável, como definido no exemplo 2.1.2, é
uma superfície regular.

3. Seja S uma superfície regular e p ∈ S. Prove que existe um aberto O ⊂ R3 que contem
o ponto p e uma função diferenciável f : O −→ R de maneira que 0 é valor regular de
f e S ∩ O = f −1 ({0}). Ou seja, toda superfície regular é, localmente, a pre-imagem de
um valor regular de uma certa função real diferenciável com domínio em um aberto de
R3 .

4. Dê uma demonstração rigorosa da afirmação feita no exemplo 2.1.3.

5. Sejam O1 e O2 dois abertos de R3 e f : O1 −→ O2 um difeomorfismo. Se S1 ⊂ O1 é


uma superfície, prove que S2 = f (S1 ) é uma superfície.

6. Prove que o Cone C = {(x, y, z) ∈ R3 : z 2 = x2 + y 2 } não é uma superfície regular.

7. Prove que toda superfície compacta só pode possuir uma quantidade finita de compo-
nentes conexas.

Livro do Manfredo, páginas 76-81, exercícios 1, 3, 4, 6, 7, 8, 12 e 16.


38 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

2.3 Funções diferenciáveis sobre superfícies.


Em torno a cada ponto de uma superfície regular, podemos definir um sistema local de
coordenadas, também chamados de parâmetros locais, por meio de um homeomorfismo de
uma porção do plano com uma vizinhança aberta do ponto na superfície. Fixamos parâ-
metros locais ao redor de cada ponto da superfície a fins de usar as técnicas do cálculo
diferencial sobre ela e poder, assim, quantificar as principais características geométricas da
superfície. Mas essa percepção das superfícies como uma reunião de porções deformadas
do plano, como já vimos nos exemplos da seção anterior, como na esfera unitária (exemplo
2.1.4), leva consigo um problema associado e é que seus pontos podem estar em vários des-
ses sistemas locais de coordenadas simultaneamente, ou seja, tais vizinhanças na superfície
não são, em geral, disjuntas; assim, se um ponto de uma superfície está coberto por duas
parametrizações distintas, acontece que existe uma vizinhança desse ponto onde temos de-
finido dois sistemas locais de coordenadas diferentes, e a pergunta natural que surge desse
fato é a seguinte: como são as mudanças de coordenadas? o seguinte passo que devemos
seguir é o estudo das propriedades da aplicação que transforma coordenadas associadas a
uma parametrização nas coordenadas associadas na outra, que definimos a seguir.
Consideremos a seguinte situação. Seja S uma superfície e Xi : Ui −→ S e Vi = Xi (Ui ),
i = 1, 2, duas parametrizações de S de maneira que O = V1 ∩ V2 6= ∅. A aplicação

h = X2−1 ◦ X1 : X1−1 (O) −→ X2−1 (O),

é um homeomorfismo que leva as coordenadas (U1 , X1 ) nas coordenadas (U2 , X2 ). Dizemos


que h é uma mudança de parâmetros, ou mudança de coordenadas (figura 2.14).

Figura 2.14: Mudança de parâmetros.


2.3. FUNÇÕES DIFERENCIÁVEIS SOBRE SUPERFÍCIES. 39

Teorema 2.3.1. As mudanças de parâmetros são difeomorfismos.

Demonstração. Nas condições acima, considere os pontos qi ∈ Xi−1 (O) tais que Xi (qi ) =
p ∈ S, para i = 1, 2. Da prova da proposição 2.1.2, existem um aberto V ⊂ X2−1 (O)
e uma projeção vertical Π de maneira que a aplicação Π ◦ X2 : V −→ (Π ◦ X2 )(V ) é um
difeomorfismo. Então, h−1 (V ) é uma vizinhança aberta de q1 em X1−1 (O) e, nessa vizinhança,
podemos escrever
h = (Π ◦ X2 )−1 ◦ (Π ◦ X1 ),

que é diferenciável por ser composição de funções diferenciáveis.


Assim, como h é bijetiva e sua inversa é também uma mudança de parâmetros, podemos
repetir o argumento anterior para h−1 e concluir a demonstração.

A fins de transladar o cálculo diferencial sobre abertos dos espaços euclidianos às super-
fícies, precisamos entender a regularidade das funções definidas sobre elas. Nosso próximo
objetivo é definirmos um conceito de diferenciabilidade para funções definidas em superfícies.
Vemos que, a través das parametrizações, podemos reduzir a diferenciabilidade sobre uma
superfície à diferenciabilidade de funções sobre R2 .

Definição 2.3.1. Dados uma superfície regular S e um ponto p ∈ S, dizemos que a função
f : S −→ R é diferenciável no ponto p se existe uma parametrização local X : U ⊂ R2 −→ S
em torno de p tal que a função
f ◦ X : U −→ R

é diferenciável em q = X −1 (p) ∈ U no sentido clássico do análise, isto é, como função entre


abertos de espaços euclidianos.
A função f é dita diferenciável se f é diferenciável para todo p ∈ S.

Observação 2.3.1. A definição anterior pode-se generalizar a Rm , para m ∈ N arbitrário no


co-domínio de f só substituindo R por Rm na definição anterior.
Vemos a seguir que a diferenciabilidade de uma função real definida sobre uma superfície está
bem definida, ou seja, que independe da parametrização X ao redor de p escolhida. Com
efeito, considere Y : V ⊂ R2 −→ S outra parametrização de S em torno de p, então existem
vizinhanças de q = X −1 (p) ⊂ U e de t = Y −1 (p) ⊂ V tais que a mudança de coordenadas
h = X −1 ◦ Y é um difeomorfismo quando restrito nessas vizinhanças pelo teorema 2.3.1.
Assim,
f ◦ Y = f ◦ (X ◦ h) = (f ◦ X) ◦ h,
40 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

é diferenciável por ser composição de funções diferenciáveis.


Logo podemos modificar a definição 2.3.1, onde diz «existe uma parametrização», podemos
dizer «para toda parametrização».

O seguinte resultado é uma condição suficiente para a diferenciabilidade de uma função


real definida sobre uma superfície, bem útil na resolução de exercícios.

Proposição 2.3.1. Seja S uma superfície regular e O ∈ R3 um aberto tal que S ⊂ O. Se


f : O ⊂ R3 −→ R é uma função diferenciável no sentido do análise, então f |S : S −→ R é
diferenciável sobre S.

Demonstração. Seja p ∈ S e X : U ⊂ R2 −→ S uma parametrização local de S em p.


Tem-se que X(U ) ⊂ S e, portanto, a composição f ◦ X é diferenciável em U pela hipótese
sobre f . Como f |S ◦ X = (f ◦ X)|U , vemos que a função f |S satisfaz a definição 2.3.1, o que
conclui a prova.

Observe que o resultado acima ainda está certo para funções f : O ⊂ R3 −→ Rm , para
m ∈ N arbitrário. A prova é idêntica, usando a definição 2.3.1 generalizada.

Exemplo 2.3.1. A função constante.


Sejam S uma superfície regular e um dado vetor a ∈ Rm , se define a função constante como
uma aplicação f : S −→ Rm dada por

f (p) = a, ∀p ∈ S.

Considerando o aberto O = R3 , podemos afirmar que f é diferenciável pela versão generali-


zada da proposição 2.3.1.

Exemplo 2.3.2. A função inclusão.


Se S é uma superfície regular, se define a função inclusão como uma aplicação i : S −→ R3
dada por
i(p) = p, ∀p ∈ S.

Podemos afirmar que i é diferenciável pelo mesmo motivo do exemplo anterior.

Exemplo 2.3.3. A função altura.


Se S é uma superfície regular, Π é um plano do espaço tal que v é seu normal e p0 ∈ Π, se
define a função altura como uma função h : S −→ R dada por

h(p) = hp − p0 , vi, ∀p ∈ S.
2.3. FUNÇÕES DIFERENCIÁVEIS SOBRE SUPERFÍCIES. 41

Figura 2.15: A função altura para v = e3 e p0 = 0.

Tal função é diferenciável em virtude da proposição 2.3.1, pois a correspondente função


H : R3 −→ R tal que H|S = h é claramente diferenciável. Observe que a função altura
definida acima fornece o valor da altura de qualquer ponto p ∈ S relativamente ao plano Π
(figura 2.15).
Exemplo 2.3.4. A função quadrado da distância a um dado ponto p0 ∈ R3 .
Se S é uma superfície regular, se define a função quadrado da distância de S a p0 como uma
função g : S −→ R dada por

g(p) = hp − p0 , p − p0 i, ∀p ∈ S.

Pelo mesmo motivo do exemplo anterior, a função quadrado da distância de S a p0 é dife-


renciável.
É sabido que a função distância a um dado ponto p0 ∈ R3 não é diferenciável em p0 .
Porém, se consideramos p0 ∈
/ S, podemos definir a função distância da superfície S ao ponto
externo p0 como a função d : S −→ R+ definida por

d(p) = |p − p0 |, ∀p ∈ S,

a qual é diferenciável, de novo, pelo mesmo motivo do exemplo anterior.

Definição 2.3.2. Dada uma superfície regular S e um aberto O ∈ Rn , uma função f :


O −→ S é dita diferenciável se a aplicação i ◦ f : O −→ R3 é diferenciável no sentido do
análise, sendo i : S ,→ R3 a inclusão de S em R3 .
42 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

Exemplo 2.3.5. A aplicação constante sobre uma superfície.


Seja p0 é um ponto de uma superfície regular S, se define a aplicação constante sobre S como
uma aplicação F : O −→ S, sendo O um aberto de Rn , dada por

F (p) = p0 , ∀p ∈ O.

As funções constantes sobre uma superfície são claramente diferenciáveis pela definição 2.3.2.
Exemplo 2.3.6. Curva diferenciável sobre uma superfície.
Se α : I ⊂ R −→ R3 é uma curva diferenciável no espaço cujo traço está contido em uma
superfície regular S, então a aplicação α : I −→ S é automaticamente diferenciável pelas
definições 1.1.1 e 2.3.2. A curva α : I −→ S é chamada de curva diferenciável sobre S.
Por exemplo, considere a esfera unitária S2 parametrizada em coordenadas esféricas igual

Figura 2.16: Curva diferenciável sobre uma esfera.

que no exemplo 2.1.4 X(u, v) = (Sin(u)Cos(v), Sin(u)Sin(v), Cos(u)), para cada (u, v) ∈
(0, π) × (0, 2π). Se fixamos 0 < u0 < π, considere a curva α : (0, 2π) −→ R3 dada por
 
s s
α(s) = Sin(u0 )Cos( ), Sin(u0 )Sin( ), Cos(u0 ) , ∀s ∈ (0, 2π).
Sin(u0 ) Sin(u0 )
É imediato conferir que a curva α está PCA e que |α(s)| = 1, para todo s ∈ (0, 2π), pelo
qual α está totalmente contida na esfera unitária. A curva α definida assim é chamada de
paralelo de S2 de colatitude s/Sin(u0 ). Se derivamos duas vezes temos que
 
00 −1 v −1 v
α (s) = Cos( ), Sin( ), 0 ,
Sin(u0 ) Sin(u0 ) Sin(u0 ) Sin(u0 )
pelo qual κ(s) = 1/Sin(u0 ), para todo s ∈ (0, 2π), pela definição 1.3.1. Logo, os paralelos
da esfera são curvas regulares de curvatura constante em S2 .
2.3. FUNÇÕES DIFERENCIÁVEIS SOBRE SUPERFÍCIES. 43

Sejam S1 e S2 duas superfícies regulares, V1 ⊂ S1 um aberto e Φ : V1 ⊂ S1 −→ S2 uma


aplicação contínua. Considere p ∈ V1 e as parametrizações X1 : U1 −→ S1 em torno de p e
X2 : U2 −→ S2 em torno de Φ(p), respectivamente. Definimos a função

Ψ : U1 −→ U2 , dada por Ψ = X2−1 ◦ Φ ◦ X1 .

Definição 2.3.3. Nas condições acima, dizemos que a aplicação Φ : S1 −→ S2 é diferenciável


em p se a função Ψ é diferenciável em q = X1−1 (p) no sentido clássico do análise.
Dizemos que Φ é diferenciável em V1 se Φ é diferenciável para todo p ∈ V1 .
Se Φ : S1 −→ S2 é diferenciável com inversa Φ−1 também diferenciável, dizemos que Φ é um
difeomorfismo e dizemos que S1 e S2 são superfícies difeomorfas.

Figura 2.17: Função diferenciável entre superfícies.

Dois espaços topológicos homeomorfos são topologicamente equivalentes, ou seja, indistin-


guíveis desde o ponto de vista da topologia. Duas superfícies difeomorfas, além de topologi-
camente iguais, são também indistinguíveis desde o ponto de vista da geometria diferencial,
pois são equivalentes em relação à estrutura diferenciável.
Observação 2.3.2. Pode-se provar que a definição acima independe das parametrizações X1
e X2 escolhidas. A prova é deixada como exercício para o leitor.
Exemplo 2.3.7. A aplicação constante entre superfícies.
Sejam S1 e S2 superfícies regulares e p0 ∈ S2 , se define a aplicação constante entre as
superfícies S1 e S2 como uma aplicação f : S1 −→ S2 dada por

f (p) = p0 , ∀p ∈ S1 .

As funções constantes entre superfícies são claramente diferenciáveis pela definição 2.3.3,
pois têm associada uma função constante entre abertos de R2 .
44 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

Exemplo 2.3.8. A função identidade.


Se S é uma superfície regular, se define a função identidade como a aplicação id : S −→ S,
dada por
id(p) = p, ∀p ∈ S.

Considere p ∈ S arbitrário e X : U −→ S uma parametrização local em torno de p. Assim,


a função
Ψ = X −1 ◦ id ◦ X = X 1 ◦ X = Id,

sendo Id : U −→ U a função identidade entre abertos de R2 , que sabemos é diferenciável


pelo análise. Logo a identidade entre superfícies é diferenciável pela definição 2.3.3.
Exemplo 2.3.9. Da definição 2.3.3, é claro que a composição de aplicações diferenciáveis entre
superfícies é uma aplicação diferenciável entre superfícies.
Parece natural pensar que, se o conjunto das parametrizações locais de uma dada su-
perfície regular S fornece ao conjunto S de uma estrutura diferenciável de maneira que as
mudanças de cartas locais são difeomorfismos (teorema 2.3.1), as próprias parametrizações
devem ser também difeomorfismos. Assim, poderemos identificar o aberto U de R2 com
sua imagem X(U ) contida na superfície, dado que serão iguais desde o ponto de vista da
geometria diferencial, cobrando sentido a afirmação feita no início, que uma superfície é a
união suave de porções deformadas do plano. Vemos que essa afirmação é verdadeira, logo
após a qual poderemos afirmar que as superfícies são localmente difeomorfas ao plano.

Definição 2.3.4. Uma aplicação diferenciável entre duas superfícies regulares ϕ : V ⊂


S1 −→ S2 , sendo V um aberto de S1 , é dita um difeomorfismo local se para cada p ∈ V
existem vizinhanças A de p em V e B de ϕ(p) em S2 tal que a restrição ϕ : A −→ B é um
difeomorfismo entre superfícies.

Observação 2.3.3. Dadas duas superfícies regulares S1 e S2 , note que a aplicação diferenciável
ϕ : S1 −→ S2 é um difeomorfismo se, e somente se, ϕ é um difeomorfismo local bijetivo. Com
efeito, é claro que se ϕ é um difeomorfismo, então é bijetivo e satisfaz a definição 2.3.4.
Reciprocamente, ϕ é diferenciável e existe ϕ−1 : S2 −→ S1 , basta portanto provar que ϕ−1 é
também diferenciável. Mas isso está certo, pois pode-se usar uma propriedade das funções
diferenciáveis deixada como exercício na seção 2.4, exercício 5.
Observe que a bijetividade de ϕ é fundamental para a veracidade da afirmação acima, pois
a função ϕ : R2 −→ R2 dada por

F (x, y) = (ex Cos(y), ex Sin(y)),


2.3. FUNÇÕES DIFERENCIÁVEIS SOBRE SUPERFÍCIES. 45

é difeomorfismo local, mas não é injetiva (e cabe comentar que também não é sobrejetiva),
portanto não é difeomorfismo.

Proposição 2.3.2. Se X : U ⊂ R2 −→ S é uma parametrização local de uma superfície


regular S, então X −1 : X(U ) ⊂ S −→ U é diferenciável.

Demonstração. Sejam p ∈ X(U ) ⊂ S e Y : V −→ S outra parametrização de S em torno de


p. Pelo teorema 2.3.1, a aplicação h = X −1 ◦ Y é um difeomorfismo de Y −1 (W ) em X −1 (W ),
sendo W = X(U ) ∩ Y (V ).
Se consideramos a aplicação id : U −→ U , temos que a função

Φ : Y −1 (W ) ⊂ V −→ X −1 (W ) ⊂ U , dada por Φ = id ◦ (X −1 ◦ Y ) = id ◦ h

é diferenciável, por ser composição de funções diferenciáveis entre abertos de R2 , o que


implica que a aplicação X −1 : W ⊂ S −→ U ⊂ R2 é diferenciável pela definição 2.3.3.

Proposição 2.3.3. Sejam S1 e S2 superfícies regulares, A um aberto de R3 tal que S1 ⊂ A


e F : A −→ R3 uma função diferenciável. Se F (S1 ) ⊂ S2 , então F |S1 : S1 −→ S2 é
diferenciável.

Demonstração. Sejam p ∈ S1 , X : U −→ S1 uma parametrização local de S1 em trono de p e


Y : V −→ S2 uma parametrização local de S2 em trono de F (p). Assim, a função Y −1 ◦F ◦X
é diferenciável em U .
Por outro lado, usando as condições sobre S1 e S2 , tem-se que Y −1 ◦ F |S1 ◦ X = Y −1 ◦ F ◦ X
em U , portanto segue o resultado da definição 2.3.3.

Exemplo 2.3.10. Considere a função Rotação de ângulo θ ao redor do eixo vertical Rz,θ :
R3 −→ R3 dada por

Rz,θ (x, y, z) = (xCos(θ) − ySin(θ), xSin(θ) + yCos(θ), z), ∀(x, y, z) ∈ R3 .

Uma superfície S é dita invariante pela rotação Rz,θ desde que Rz,θ (p) ∈ S, para todo p ∈ S.
A função Rz,θ é uma aplicação linear com matriz
 
Cos(θ) −Sin(θ) 0
 
 Sin(θ) Cos(θ) 0 ,
 
0 0 1
a qual pertence ao conjunto de matrizes ortogonais de ordem 3×3 que preservam a orientação,
que denotamos pelo conjunto O+ (3). A função Rz,θ é claramente diferenciável e segue da
proposição 2.3.3 que a restrição Rz,θ : S −→ S é diferenciável.
46 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

Definição 2.3.5. Uma superfície de rotação ou de revolução é um conjunto S ⊂ R3 obtido


pela rotação do traço de uma curva plana, regular, conexa e simples α em torno de um eixo
de rotação r contido no plano osculador de α. A curva α é dita curva geratriz de S e a reta
r é chamada de eixo de rotação de S.

Figura 2.18: Superfície de revolução com eixo vertical.

Exemplo 2.3.11. Considere uma curva regular α : I ⊂ R −→ R3 contida no plano Oxz. Uma
parametrização da curva vem dada pela função

α(t) = (f (t), 0, g(t)), ∀t ∈ I

e duas funções f, g : I −→ R diferenciáveis, com f (t) > 0, para todo t ∈ I. Denotamos por
u ∈ (0, 2π) o ângulo de rotação e definimos

X(t, u) = (f (t)Cos(u), f (t)Sin(u), g(t)), ∀(t, u) ∈ U = I × (0, 2π).

É tarefa do leitor conferir que a função X é uma parametrização local da correspondente


superfície de rotação gerada pelo traço da curva α que a cobre totalmente exceto uma curva.
Se S é a superfície de revolução parametrizada por X, observe que a curva α = X(t, 0), t ∈ I
é a curva geratriz de S e o eixo z é o correspondente eixo de rotação.

São exemplos de superfície de revolução o plano (com respeito de qualquer reta perpen-
dicular ao mesmo), a esfera (com respeito de qualquer reta que passa pelo seu centro), o
cilindro circular reto, os hiperbolóides de uma e de duas folhas, o toro e o parabolóide elíptico.
A família das superfícies de revolução é mesmo extensa e muito importante.
2.3. FUNÇÕES DIFERENCIÁVEIS SOBRE SUPERFÍCIES. 47

Em geral, dados u0 ∈ (0, 2π) e t0 ∈ I, as correspondentes curvas coordenadas X(t, u0 ) e


X(t0 , u) são chamadas de meridianos e de paralelos, respectivamente. Pode observar na fi-
gura 2.18, onde vem representada uma superfície de revolução cujo eixo de rotação é o eixo
vertical, que cada meridiano é uma cópia do traço de α ao longo da superfície, e que cada
paralelo é um círculo contido na interseção de S com um plano paralelo ao plano ortogonal
ao eixo de rotação, nesse caso um plano paralelo ao plano horizontal Oxy.
Naturalmente, as superfícies de revolução são invariantes pela rotação Rr,θ , sendo r o
correspondente eixo de rotação. Fazendo um cálculo simples, pode conferir que, se p é um
ponto da superfície S definida no exemplo 2.3.11, então Rr,θ (p) ∈ S.
48 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

2.4 Exercícios.
1. Prove que toda aplicação diferenciável sobre uma superfície é contínua.

2. Dadas f, g : S −→ R duas funções diferenciáveis, prove que

i. As funções f + g, f − g, λf, f · g : S −→ R são diferenciáveis, para um dado


λ ∈ R.
f
ii. Se g(p) 6= 0, ∀p ∈ S, então g
: S −→ R é diferenciável.

3. Provar a afirmação da observação 2.3.2.


Sn
4. Suponha que S é uma superfície tal que S = i=1 Si , onde cada Si é um aberto de S.
Se f : S −→ R é uma aplicação tal que cada f |Si : Si −→ R é diferenciável, prove que
f é diferenciável.

5. Prove que as aplicações entre duas superfícies regulares S1 e S2 satisfazem a mesma


propriedade enunciada no exercício anterior para S1 igual a uma união arbitrária de
abertos.

6. Sejam S1 e S2 superfícies regulares e α : I −→ S1 uma curva diferenciável contida em


S1 . Se f : S1 −→ S2 é uma aplicação diferenciável, prove que f ◦ α : I −→ S2 é uma
curva diferenciável em S2 .

7. Sejam Si , i = 1, 2, 3 superfícies regulares e as aplicações f : S1 −→ S2 e g : S2 −→ S3 .


Prove que, se f e g são difeomorfismos, então g ◦ f é um difeomorfismo.

8. Sejam O1 , O2 ⊂ R3 dois abertos e ϕ : O1 −→ O2 um difeomorfismo. Se S1 ⊂ O1 é


uma superfície, sabemos que S2 = ϕ(S1 ) é uma superfície pelo exercício 5 da seção 2.2.
Prove que ϕ : S −→ ϕ(S) é um difeomorfismo.

Livro do Manfredo, páginas 94-97, exercícios 1, 2, 3, 5, 11, 13 e 15.


2.5. O PLANO TANGENTE. 49

2.5 O plano tangente.


Nesse capítulo, vamos construir sobre cada ponto de uma dada superfície, o objeto linear
que melhor aproxima a superfície em uma vizinhança desse ponto. Vamos construir esse
objeto em base ao conceito de vetor tangente. Como já foi observado após a definição 2.1.1,
em base à condição terceira da mesma, poderemos provar que o conjunto de vetores tangentes
a curvas parametrizadas, cujos traços estão contidos na superfície, constituem, de fato, um
plano.

Definição 2.5.1. Seja S uma superfície regular e p ∈ S. Diremos que v ∈ R3 é um vetor


tangente a S em p se existem  > 0 e uma curva diferenciável α : (−, ) −→ S de maneira
que α(0) = p e α0 (0) = v.
Denotamos ao conjunto dos vetores tangentes a S em p por Tp S.

Figura 2.19: Vetor tangente a S em p.

Proposição 2.5.1. Seja X : U ⊂ R2 −→ S uma parametrização local de uma dada superfície


regular S, q ∈ U e p = X(q) ∈ S. Então o subespaço vetorial dXq (R2 ) coincide com Tp S.

Demonstração. Seja w ∈ Tp S tal que w = α0 (0) para certa curva α em S. Sabemos pela
proposição 2.3.2 que X −1 é diferenciável em X(U ) ⊂ S, logo β = X −1 ◦ α é uma curva
diferenciável em U tal que β(0) = q. Temos que α = X ◦ β e, se chamamos de v = β 0 (0),
então
d
w = α0 (0) = α(t) = dXq (β 0 (0)) = dXq (v),
dt |t=0
50 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

o que implica que w ∈ dXq (R2 ).


Por outro lado, seja w ∈ dXq (R2 ) para algum v ∈ R2 e defina a curva diferenciável γ(t) =
q + tv, t ∈ (−, ) para certo  > 0 tal que γ(t) ∈ U , para todo t ∈ (−, ). Considere a curva
diferenciável α : (−, ) −→ S dada por

α(t) = X ◦ γ(t), para cada t ∈ (−, ).

Tem-se que α0 (0) = dXq (γ 0 (0)) = dXq (v) = w, logo w ∈ Tp S.

Observação 2.5.1. Como dXq é injetiva, o subespaço vetorial dXq (R2 ) = Tp S é um plano.
Além disso, a proposição acima mostra que Tp S independe da parametrização X e que, para
cada parametrização X em torno de p, a dupla de vetores B = {Xu , Xv } forma uma base de
Tp S, pois são um conjunto linearmente independente de vetores em um subespaço vetorial
2-dimensional de R3 . Logo, da prova da proposição acima, podemos dar uma expressão local
em coordenadas dos vetores tangentes a S no ponto p. Com efeito, dada a curva diferenciável
β : (−, ) −→ U tal que a cada t associa o ponto β(t) = (u(t), v(t)) ∈ U , considere a curva
diferenciável α : (−, ) −→ S dada por α(t) = X ◦ β(t) = X(u(t), v(t)), para cada t ∈
(−, ). Assim,
d
w = α0 (0) = |t=0 X(u(t), v(t)) = u0 (0)Xu (q) + v 0 (0)Xv (q). (2.3)
dt
Logo, as coordenadas do vetor w são u0 (0) e v 0 (0) na base B, que denotamos assim

w = (u0 (0), v 0 (0))B .

Definição 2.5.2. Dizemos que o conjunto Tp S é o plano tangente à superfície regular S no


ponto p ∈ S.

Exemplo 2.5.1. Se O ⊂ R3 é um aberto, f : O −→ R é uma função diferenciável e a é um


valor regular de f , sabemos que S = f −1 ({a}) é uma superfície regular pela proposição 2.1.1.
Se v ∈ Tp S, existe uma curva diferenciável α : (−, ) −→ S tal que α(0) = p e α0 (0) = v,
logo f ◦ α(t) = a para todo t ∈ (−, ). Derivando a igualdade anterior em t = 0 tem-se que

dfp (v) = (f ◦ α)0 (0) = 0,

o que implica que dfp (Xu ) = 0 e dfp (Xv ) = 0 pela regra da cadeia do cálculo e pela igualdade
(2.3). Assim, o vetor v está no kernel da aplicação dfp : R3 −→ R, que vamos denotar por
ker(dfp ). Por outro lado, nas condições acima dfp 6= 0 pelo exemplo 2.1.1, logo ker(dfp ) e
Tp S são dois planos vetoriais tais que ker(dfp ) ⊂ Tp S, então

Tp S = ker(dfp ).
2.5. O PLANO TANGENTE. 51

Usando o exemplo anterior podemos dar explicitamente novos exemplos de planos tan-
gentes a superfícies em seus pontos.
Exemplo 2.5.2. Dados v ∈ R3 um vetor unitário arbitrário e p0 ∈ R3 um ponto arbitrário,
podemos definir um plano que passa pelo ponto p0 como o complemento ortogonal do dado
vetor v, ou seja
Π = {p ∈ R3 : hp − p0 , vi = 0}.

Se definimos a função f : R3 −→ R como f (p) = hp − p0 , vi, tem-se que, para cada p ∈ Π, o


plano tangente
Tp Π = ker(dfp ) = {w ∈ R3 : hw, vi = 0} = Π.

Exemplo 2.5.3. Dados p0 ∈ R3 um ponto arbitrário e um número real r > 0, podemos definir
a esfera de centro p0 e raio r pelo conjunto

S2 (r) = {p ∈ R3 : |p − p0 |2 = r2 }.

Se definimos a função f : R3 −→ R como f (p) = |p − p0 |2 , tem-se que, para cada p ∈ S2 (r),


o plano tangente

Tp S2 (r) = ker(dfp ) = {w ∈ R3 : hp − p0 , wi = 0}.

Assim, para cada ponto p ∈ S2 (r), o correspondente plano tangente é o complemento orto-
gonal ao vetor que liga o centro da mesma com o próprio ponto p.

Figura 2.20: Plano tangente à esfera.

Chamamos de reta normal a S em p à reta que passa por p e é ortogonal ao plano Tp S.


Assim, dos exemplos anteriores podemos concluir que todas as retas normais ao plano são
paralelas e que todas as retas normais à esfera passam pelo seu centro.
52 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

Considere duas superfícies regulares S1 e S2 , Um aberto V1 ⊂ S1 e uma aplicação dife-


renciável ϕ : S1 −→ S2 . Dado um ponto p ∈ S1 e um vetor tangente w ∈ Tp S1 , considere
uma certa curva diferenciável α : (−, ) −→ S1 tal que α(0) = p e α0 (0) = w. Defina a
função β : (−, ) −→ S2 dada por

β(t) = (ϕ ◦ α)(t),

então tem-se que β é uma curva diferenciável sobre S2 e que β(0) = ϕ(α(0)) = ϕ(p), portanto
β 0 (0) é um vetor do plano tangente a S2 no ponto ϕ(p).
Vemos que β 0 (0) independe da eleição da curva α. Com efeito, sejam X : U ⊂ R2 −→ S1
tal que X = X(u, v) e Y : V ⊂ R2 −→ S2 tal que Y = Y (ξ, η), duas parametrizações
locais em torno de p e de ϕ(p), respectivamente. Seja q ∈ U tal que X(q) = p e  > 0
suficientemente pequeno para que a curva γ(t) = (u(t), v(t)), t ∈ (−, ) esteja contida
em U e tal que γ(0) = q. Defina a curva α(t) = X ◦ γ(t) = X(u(t), v(t)), para cada
t ∈ (−, ). Como ϕ é diferenciável, então a função h : U −→ V , dada por h = Y −1 ◦ ϕ ◦ X
é diferenciável em U e h ◦ γ(t) = h(u(t), v(t)) = (h1 (u(t), v(t)), h2 (u(t), v(t))). Considere a
curva β(t) = Y ◦ h ◦ γ(t) = Y (h1 (u(t), v(t)), h2 (u(t), v(t))), pela regra da cadeia tem-se que
   
0 ∂h1 0 ∂h1 0 ∂h2 0 ∂h2 0
β (0) = Yξ (h(q)) (q)u (0) + (q)v (0) + Yη (h(q)) (q)u (0) + (q)v (0)
∂u ∂v ∂u ∂v
o que implica que o vetor β 0 (0) pode-se expressar em coordenadas na base {Yξ , Yη } de Tϕ(p) S2
 
0 ∂h1 0 ∂h1 0 ∂h2 0 ∂h2 0
β (0) = (q)u (0) + (q)v (0), (q)u (0) + (q)v (0)
∂u ∂v ∂u ∂v
! !
∂h1
∂u
(q) ∂h ∂v
1
(q) u0 (0)
= ∂h2
· ∈ Tϕ(p) S2 ,
∂u
(q) ∂h ∂v
2
(q) v 0 (0)
que independe de α como queríamos demonstrar.
O raciocínio anterior justifica a definição de aplicação diferencial associada uma dada função
diferenciável entre superfícies e mostra como o conceito de aplicação diferencial entre abertos
de Rn estende-se de maneira natural a funções diferenciáveis entre superfícies regulares, e
que ainda vai satisfazer as mesmas propriedades nesse novo contexto.

Definição 2.5.3. Seja ϕ : S1 −→ S2 uma aplicação diferenciável entre duas superfícies


regulares S1 e S2 , se define a aplicação diferencial de ϕ em p como a aplicação linear dϕp :
Tp S1 −→ Tϕ(p) S2 dada por dϕp (w) = β 0 (0). Usaremos a seguinte notação para a função
diferencial ! !
∂ϕ1 ∂ϕ1
d ∂u
(p) ∂v
(p) w1
dϕp (w1 , w2 ) = (ϕ ◦ α)(t) = ∂ϕ2 ∂ϕ2
·
dt |t=0 (p) (p) w2
∂u ∂v
2.5. O PLANO TANGENTE. 53

Sabemos, pelo exemplo 2.3.9, que a composição de aplicações diferenciáveis entre super-
fícies é uma aplicação diferenciável entre superfícies. Vemos no seguinte resultado que uma
das propriedades clássicas mais importantes das funções diferenciáveis pode-se estender ao
contexto das superfícies.

Teorema 2.5.1 (Regra da cadeia.). Sejam f : S1 −→ S2 e g : S2 −→ S3 duas aplicações


diferenciáveis entre as superfícies regulares S1 , S2 e S3 . Dado p ∈ S1 , tem-se que

d(g ◦ f )p = dgf (p) ◦ dfp .

Demonstração. Se v ∈ Tp S1 , seja α : I −→ S1 uma curva diferenciável tal que α(0) = p e


α0 (0) = v, então f ◦ α é uma curva em S2 tal que f ◦ α(0) = f (p) e (f ◦ α)0 (0) = dfp (v).
Portanto
d(g ◦ f )p (v) = ((g ◦ f ) ◦ α)0 (0) = (g ◦ (f ◦ α))0 (0) = dgf (p) ◦ dfp .

Observação 2.5.2. Observe que, se ϕ : S1 −→ S2 é um difeomorfismo entre superfícies


regulares, é simples mostrar que a aplicação diferencial dϕp é um isomorfismo de Tp S1 em
Tϕ(p) S2 e que
dϕ−1 −1
ϕ(p) = (dϕp ) , ∀p ∈ S1

.
Aliás, se f : V ⊂ S −→ R, então sua aplicação diferencial pode-se definir, segundo a definição
acima, como uma função dfp : Tp S −→ R dada por

dfp (w) = h∇f (p), wi,

para cada w ∈ Tp S.

Exemplo 2.5.4. Sejam S uma superfície regular e O ⊂ R3 um conjunto aberto tal que S ⊂ O
e F : O −→ R uma função diferenciável. Seja f : S −→ R a restrição f = F |S . Dados p ∈ S
e w ∈ Tp S, para cada curva α : I −→ S tal que α(0) = p e α0 (0) = w tem-se que

d d
dfp (w) = (f ◦ α)(t) = (F ◦ α)(t) = dFp (w).
dt |t=0 dt |t=0

Portanto, dfp é a restrição de dFp : R3 −→ R ao plano tangente Tp S. Observe que essa


afirmação ainda está certa se o co-domínio de F fosse Rm para m ∈ N arbitrário.
54 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

Exemplo 2.5.5. A diferencial de uma aplicação constante envolvendo superfícies, veja os


exemplos 2.3.1, 2.3.5 e 2.3.7, é a aplicação nula em todo ponto do seu domínio. A prova é
deixada como exercício para o leitor.
Exemplo 2.5.6. A diferencial da função altura.
No exemplo 2.3.3, definíamos a função altura como h(p) = hp−p0 , vi para todo p na superfície
regular S, p0 um ponto de um certo plano Π e v ∈ R3 um dado vetor fixo ortogonal a Π.
Dados p ∈ S e w ∈ Tp S, considere uma curva diferenciável α : (−, ) −→ S tal que α(0) = p
e α0 (0) = w, então
d d
dhp (w) = (h ◦ α)(t) = hα(t) − p0 , vi = hα0 (0), vi = hw, vi.
dt |t=0 dt |t=0
Exemplo 2.5.7. A diferencial da função quadrado da distância.
No exemplo 2.3.4, definíamos a função quadrado da distância como g(p) = hp − p0 , p − p0 i
para todo p na superfície regular S e p0 ∈ R3 arbitrário.
Dados p ∈ S e w ∈ Tp S, considere uma curva diferenciável α : (−, ) −→ S tal que α(0) = p
e α0 (0) = w, então
d d
dgp (w) = (g ◦ α)(t) = hα(t) − p0 , α(t) − p0 i = 2hα0 (0), α(0) − p0 i = 2hw, p − p0 i.
dt |t=0 dt |t=0
Exemplo 2.5.8. A diferencial da rotação de ângulo θ da esfera unidade relativamente ao eixo
vertical.
Dada a matriz  
Cos(θ) −Sin(θ) 0
 
A= Sin(θ) Cos(θ) 0  ∈ O+ (3),
 
0 0 1
como a esfera unidade é invariante pela função, podemos definir a rotação como a aplicação
Rz,θ : S2 −→ S2 dada por Rz,θ (p) = A · p.
Dados p ∈ S2 e w ∈ Tp S2 , considere uma curva diferenciável α : (−, ) −→ S2 tal que
α(0) = p e α0 (0) = w, então
d d
d(Rz,θ )p (w) = (Rz,θ ◦ α)(t) = A · α(t) = A · α0 (0) = A · w = Rz,θ (w).
dt |t=0 dt |t=0
Observe que a aplicação diferencial neste caso não é outra que a rotação de ângulo θ do
próprio vetor tangente ao redor do eixo vertical.
Exemplo 2.5.9. Se S é uma superfície regular e i : S −→ R3 é a aplicação inclusão, então

dip (v) = v, ∀v ∈ Tp S.

Ou seja, dip é a inclusão de Tp S em R3 .


2.5. O PLANO TANGENTE. 55

Dizemos que uma função diferenciável f : S −→ R possui um extremo local em um ponto


p ∈ S se a função (f ◦ α) : (−, ) −→ R possui um extremo local do mesmo tipo em t = 0,
sendo α : (−, ) −→ S uma curva em S tal que α(0) = p. É deixado como exercício para
o leitor que a definição de extremo local acima independe da curva α. Vemos no seguinte
resultado algumas propriedades importantes das funções diferenciáveis do cálculo que são
compartilhadas por funções reais definidas sobre uma superfície S.

Lema 2.5.1. Seja S uma superfície. Então se verificam as seguintes duas afirmações:

1. Se f : S −→ Rm é diferenciável, S é conexa e dfp é identicamente nula, então f é


constante.

2. Se f : S :−→ R é diferenciável e possui um extremo local em p ∈ S, então p é um


ponto crítico de f .

Demonstração. Provamos a primeira afirmação. Com efeito, seja a ∈ f (S) ⊂ Rm e definimos


o conjunto A = {p ∈ S : f (p) = a}. É claro, da própria definição de A que é um conjunto
fechado e não vazio. Para ver que A é também um conjunto aberto, considere p ∈ A e
X : U −→ S uma parametrização local de S em torno de p tal que U é conexo. Pelo teorema
2.5.1 temos que d(f ◦ X)q = dfX(q) ◦ dXq = 0 para todo q ∈ U , logo f ◦ X é constante,
pois é uma função de U ⊂ R2 em R. Assim, a função f = (f ◦ X) ◦ X −1 é constante em
X(U ), o que implica que X(U ) ⊂ A. Como A é um subconjunto não vazio do conexo S que
é simultaneamente aberto e fechado, então A = S.
Para provar a segunda afirmação, tomamos um vetor tangente v ∈ Tp S arbitrário e α :
(−, ) −→ S uma curva em S tal que α(0) = p e α0 (0) = v. Assim, a função diferenciável
(f ◦ α) : (−, ) −→ R possui um extremo local em t = 0, logo

dfp (v) = (f ◦ α)0 (0) = 0,

pela observação 2.1.1.

O primeiro item do lema anterior junto ao exemplo 2.5.5, caracterizam as funções cons-
tantes sobre superfícies em termos de sua aplicação diferencial associada. Observe que o
mencionado item é ainda verdadeiro quando S não é conexo, pois pode-se aplicar a cada
componente conexa de S, mas não está garantida a diferenciabilidade da função nesse caso.
Vimos na proposição 2.3.2 que toda superfície regular é localmente difeomorfa ao plano.
O seguinte resultado mostra que o conhecido teorema da função inversa do cálculo é ainda
válido no contexto de aplicações diferenciáveis entre superfícies regulares.
56 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

Teorema 2.5.2 (Teorema da função inversa). Sejam S1 e S2 superfícies regulares, V ⊂ S1


um aberto e ϕ : V ⊂ S1 −→ S2 uma aplicação diferenciável. Então ϕ é um difeomorfismo
local se e somente se dϕp é um isomorfismo em cada p ∈ S1 .

Demonstração. A primeira implicação é sabido pela observação 2.5.2. Vemos que a implica-
ção contrária é consequência do teorema da função inversa (TFInv) do análise.
Sejam X : U ⊂ R2 −→ S1 e Y : W ⊂ R2 −→ S2 parametrizações locais ao redor de p ∈ S1
e de ϕ(p) ∈ S2 , respectivamente, de maneira que X(U ) ⊂ V e ϕ(X(U )) ⊂ Y (W ). Sabemos
que a função h = Y −1 ◦ ϕ ◦ X é diferenciável em q ∈ U , tal que p = X(q) pela definição
2.3.3. Assim, pela regra da cadeia e a observação 2.5.2, tem-se que a função

dhq = d(Y −1 ◦ ϕ ◦ X)q = (dY −1 )ϕ(p) · (dϕ)p · (dX)q ,

é um isomorfismo por ser composição de isomorfismos, pois X e Y são difeomorfismos locais


pela proposição 2.3.2. Podemos usar o TFInv em R2 na função h e concluir que existem
vizinhanças abertas U1 ⊂ U e W1 ⊂ W dos pontos q e h(q), respectivamente, de maneira
que h : U1 −→ W1 é um difeomorfismo. Para concluir a demonstração, basta considerar a
restrição ϕ|X(U1 ) , que é um difeomorfismo entre os abertos X(U1 ) ⊂ S1 e Y (W1 ) ⊂ S2 pela
definição 2.3.3.

Lembramos que, em topologia, uma aplicação aberta entre espaços topológicos é uma
aplicação que leva abertos do domínio em abertos do co-domínio.

Proposição 2.5.2. Se f : S1 −→ S2 é um difeomorfismo local, então f é uma aplicação


aberta.

Demonstração. Seja V ⊂ S1 um aberto e p ∈ V arbitrário. Com efeito, pela definição 2.3.4,


existem abertos V1 ⊂ S1 e V2 ⊂ S2 tais que p ∈ V1 , f (p) ∈ V2 e f : V1 −→ V2 é um
difeomorfismo, que em particular é um homeomorfismo. Assim, f (V1 ∩ V ) é uma vizinhança
aberta de f (p) em S2 contida em f (V ), logo f (V ) é uma vizinhança de f (p) em S2 e portanto
f é uma aplicação aberta (ver [8, Teorema 4.3.7]).

Note que a aplicação inclusão é um difeomorfismo local, ver exemplo 2.5.9, portanto é
uma aplicação aberta pela proposição acima. Temos provado o seguinte resultado.

Corolário 2.5.1. Se S1 e S2 são superfícies regulares tais que S1 ⊂ S2 , então S1 é um aberto


de S2 .
2.5. O PLANO TANGENTE. 57

Exemplo 2.5.10. A aplicação projeção central.


/ S. Considere a função diferenciável f : S −→ S2 dada
Seja S uma superfície regular e p0 ∈
por
p − p0
f (p) = , ∀p ∈ S.
|p − p0 |
Tal aplicação é dita projeção central e vamos provar que dfp tem núcleo não trivial se e
somente se p − p0 ∈ Tp S.
Com efeito, para cada v ∈ Tp S, seja α : I −→ S uma curva diferenciável tal que α(0) = p e
α0 (0) = v. Assim, é um cálculo simples verificar que

1 hp − p0 , vi
dfp (v) = v− (p − p0 ). (2.4)
|p − p0 | |p − p0 |3

Se p − p0 ∈ Tp S, por (2.4) temos que

1 |p − p0 |2
dfp (v) = (p − p0 ) − (p − p0 ) = 0,
|p − p0 | |p − p0 |3

logo p − p0 ∈ ker(dfp ) o que implica que ker(dfp ) é não trivial.


Por outro lado, se existe v ∈ Tp S é tal que v 6= 0 e dfp (v) = 0, por (2.4) temos que

|p − p0 |2
p − p0 = v,
hp − p0 , vi
e portanto p − p0 ∈ Tp S.
É agora uma consequência imediata do teorema 2.5.2 concluir que a aplicação f definida
acima é um difeomorfismo local da superfície S na esfera se e somente se não pode-se traçar
uma reta tangente à superfície desde p0 .
58 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

2.6 Exercícios
1. Se S1 é um aberto da superfície S e p ∈ S1 , prove que Tp S1 = Tp S.

2. Se define o cilindro circular reto de raio r > 0 pelo conjunto

C = {p ∈ R3 : |p|2 − hp, ai2 = r2 },

para um certo vetor unitário a ∈ R3 , o qual é a direção do seu eixo. Demonstrar que

Tp C = {w ∈ R3 : hp, wi − hp, aiha, wi = 0}.

3. Prove que a diferencial de uma função constante entre superfícies regulares é identica-
mente nula.

4. Prove que, se S1 é um aberto de uma superfície regular S e f : S −→ Rm é uma


aplicação diferenciável, então

d(f |S1 )p = dfp , ∀p ∈ S1 .

5. Seja f : S1 −→ S2 uma aplicação diferenciável entre superfícies. Se p ∈ S1 e {e1 , e2 } é


uma base ortonormal de Tp S1 , se define o módulo do determinante Jacobiano de f em
p como uma função |Jacf | : S1 −→ R dada por

|Jacf |(p) = |dfp (e1 ) ∧ dfp (e2 )|.

(a) Prove que a aplicação |Jacf | está bem definida, ou seja, que independe da base.

(b) Prove que |Jacf |(p) 6= 0 se e somente se dfp é um isomorfismo.

Livro do Manfredo, páginas 104-109, exercícios 1, 3, 4, 6, 7, 13, 18.


2.7. A PRIMEIRA FORMA FUNDAMENTAL. 59

2.7 A primeira forma fundamental.


Depois ter definido o conceito de superfície regular e ter desenvolvido o correspondente
cálculo diferencial sobre esse objeto, vamos começar o estudo local da geometria das super-
fícies. Trata-se de definir funções ou algum outro tipo de objeto a fins de ter controle sobre
a forma das superfícies, de maneira análoga a como já foi feito nas curvas do espaço do
capítulo 1 com o estudo da curvatura e da torção.
Como já vimos no exemplo 2.5.9, o plano tangente à superfície em cada ponto é um
elemento do espaço, o qual herda importantes características do mesmo. Por exemplo, dadas
uma superfície S e um ponto p ∈ S, o produto interno usual do espaço R3 induz sobre o
plano tangente Tp S um produto interno que denotamos por h , ip de maneira que, se v, w ∈
Tp S ⊂ R3 , então hv, wip coincide com o produto usual de v e w como vetores de R3 . Antes
de começar o estudo da geometria das superfícies, vamos nos lembrar de alguns conceitos
da álgebra linear que são necessários para uma ótima compreensão do desenvolvimento do
capítulo.
Seja V um espaço vetorial real bi-dimensional. Dizemos que a função b : V × V −→ R é
uma forma bilinear se é linear em cada uma das suas componentes. Aliás, se b(x, y) = b(y, x),
a aplicação bilinear b é também simétrica. Tal aplicação tem associada uma matriz de ordem
2 × 2 que pode-se calcular em termos de uma base {e1 , e2 } de V
!
b(e1 , e1 ) b(e1 , e2 )
Mb = ,
b(e2 , e1 ) b(e2 , e2 )
a qual será simétrica se b é simétrica e que nos permite denotar b a través da sua matriz
associada b(u, v) = ut · Mb · v. Como exemplo, o produto interno usual de R3 é uma forma
bilinear e simétrica com matriz associada I3 .
Dada uma forma bilinear e simétrica b, se define sua forma quadrática associada como a
aplicação Q : V −→ R dada por

Q(v) = b(v, v), ∀v ∈ V.

Podemos também dar uma representação matrizial para a forma quadrática Q(v) = v t ·Mb ·v,
de maneira que Mb é a matriz simétrica associada a b.
Observação 2.7.1. Observe que podemos reverter o caminho mencionado acima, Se M é uma
matriz simétrica de ordem 2 e definimos a função Q : V −→ R tal que Q(v) = v t · M · v,
então pode-se provar facilmente que a aplicação b : V × V −→ R dada por
1
b(v, w) = (Q(v + w) − Q(v) − Q(w)) , ∀v, w ∈ V,
2
60 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

é uma forma bilinear e simétrica.

Em cada ponto p de uma superfície regular S, se tomamos um sistema local de coorde-


nadas X : U −→ S ao redor de p, sabemos que {Xu , Xv } forma uma base do plano tangente
Tp S pela proposição 2.5.1. Assim, podemos calcular a matriz associada ao produto interno
h , ip na base {Xu , Xv } de Tp S operando os vetores da base por médio do produto interno

!
hXu , Xu ip hXu , Xv ip
Mh , ip =
hXv , Xu ip hXv , Xv ip

e a correspondente forma quadrática é Ip : Tp S −→ R dada por

Ip (w) = hw, wip .

Observe que Mh , ip é uma matriz simétrica. Além disso, como |Xu ∧Xv | =
6 0, podemos definir
uma função N X : U ⊂ R2 −→ S2 dada por

Xu ∧ Xv
N X (q) = (q), ∀q ∈ U. (2.5)
|Xu ∧ Xv |

Observe que o vetor N X (q) é unitário e ortogonal a Tp S pela própria definição.

Figura 2.21: Plano tangente e reta normal.

Veremos posteriormente como essa função N X está relacionado com o conceito de ori-
entação da superfície S, desde que pode-se estender a todo S de maneira diferenciável.
Infelizmente não sempre será possível dar uma definição global da função N de maneira dife-
renciável. Estudaremos a orientabilidade de superfícies com detalhe na seção 2.9 e veremos
exemplos de superfícies nos quais N X pode se estendido globalmente a todo ponto de S de
maneira contínua, mesmo diferenciável, e outros onde não, como se mostra nas Figuras 2.22
e 2.23.
2.7. A PRIMEIRA FORMA FUNDAMENTAL. 61

Figura 2.22: N bem definido em S. Figura 2.23: N não extensível em S.

Pelo visto acima, o espaço R3 pode-se decompor na soma ortogonal de dois subespaços
vetoriais, a saber, o plano tangente Tp S e seu correspondente complemento ortogonal (Tp S)⊥ ,
representado pela reta que passa por p na direção do vetor N X (q), que chamaremos de reta
normal a S em p.

Definição 2.7.1. Chamamos de primeira forma fundamental da superfície regular S no


ponto p ∈ S à forma quadrática Ip associada ao produto interno h , ip induzido por R3 sobre
o plano tangente Tp S.

Considere coordenadas locais em S ao redor do ponto p ∈ S, vamos calcular os coeficientes


da forma quadrática Ip em relação à base de Tp S dada pela parametrização local X : U −→
S. Se consideramos um vetor tangente w ∈ Tp S, seja α : (−, ) −→ S uma curva em
S tal que α(0) = p e α0 (0) = w e  suficientemente pequeno, então existe uma curva
β : (−, ) −→ U tal que α(t) = (X ◦ β)(t) = X(u(t), v(t)) para cada t ∈ (−, ), o que
implica que p = X(u(0), v(0)), e o vetor w, como já vimos na observação 2.5.1, possui
coordenadas w = (u0 (0), v 0 (0)) na base {Xu , Xv } de Tp S. Assim, em t = 0 tem-se que

Ip (w) = hw, wip = hu0 (0)Xu + v 0 (0)Xv , u0 (0)Xu + v 0 (0)Xv ip


= (u0 (0))2 hXu , Xu ip + 2u0 (0)v 0 (0)hXu , Xv ip + (v 0 (0))2 hXv , Xv ip
= (u0 (0))2 E + 2u0 (0)v 0 (0)F + (v 0 (0))2 G,

onde E ≡ E(u(0), v(0)) = hXu (q), Xu (q)ip , F ≡ F (u(0), v(0)) = hXu (q), Xv (q)ip e G ≡
G(u(0), v(0)) = hXv (q), Xv (q)ip são os coeficientes da primeira forma fundamental na base
{Xu , Xv } de Tp S.
62 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

Variando p na vizinhança coordenada X(U ) ⊂ S, podemos definir as funções reais

E(u, v) = hXu (u, v), Xu (u, v)ip


F (u, v) = hXu (u, v), Xv (u, v)ip (2.6)
G(u, v) = hXv (u, v), Xv (u, v)ip ,

as quais são diferenciáveis em U . Dessa maneira e em coordenadas locais, a matriz da forma


quadrática Ip pode-se escrever como
!
E(u, v) F (u, v)
Mh , ip = ,
F (u, v) G(u, v)

e as funções E, F e G determinam totalmente o produto interno em Tp S e a correspondente


primeira forma fundamental. Daqui em diante, por motivos de conforto, denotaremos por
E ≡ E(u, v), F ≡ F (u, v) e G ≡ G(u, v).

Exemplo 2.7.1. O plano.


Considere p0 ∈ R3 um ponto arbitrário e o conjunto {ξ, η} de vetores linearmente indepen-
dentes do espaço. O conjunto S = {(x, y, z) ∈ R3 : (x, y, z) = p0 + λξ + νη} representa
o plano gerado por ξ e η que passa por p0 por médio de suas equações paramétricas. Só

Figura 2.24: O plano.

precisamos da parametrização X : U = R2 −→ S dada por

X(u, v) = p0 + uξ + vη

para cobrir o plano totalmente. Vamos agora calcular os coeficientes da primeira forma
2.7. A PRIMEIRA FORMA FUNDAMENTAL. 63

fundamental. Observe que Xu (u, v) = ξ e que Xv (u, v) = η, logo

E = |ξ|2 ,
F = hξ, ηi,
G = |η|2 .

Observe que, se além de linearmente independentes, os vetores {ξ, η} fossem ortogonais e


unitários, então teríamos E = 1, F = 0 e G = 1, ou seja, coeficientes da primeira forma
fundamental constantes.

Observe que, o fato de F ser idénticamente nula significa, geometricamente, que as curvas
coordenadas são ortogonais em cada ponto da superfície S. Uma parametrização de S que
satisfaz F ≡ 0 é dita uma parametrização ortogonal de S, e os parâmetros (u, v) são chamados
de parâmetros ortogonais.

Exemplo 2.7.2. O cilindro circular reto.


O conjunto S = {(x, y, z) ∈ R3 : x2 + y 2 = r2 } representa o cilindro cuja base é o círculo
centrado na origem de coordenadas e raio r > 0, cujo eixo é o eixo de coordenadas vertical
Oz. Podemos parametrizar o cilindro a través da função X : U = (0, 2π) × R −→ S dada

Figura 2.25: O cilindro.

por
X(u, v) = (rCos(u), rSin(u), v) ,

a qual cobre o cilindro todo exceto a reta vertical que passa pelo ponto (r, 0, 0). Queremos
calcular os coeficientes da primeira forma fundamental dessa parametrização do cilindro,
64 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

assim Xu (u, v) = (−rSin(u), rCos(u), 0) e Xv (u, v) = (0, 0, 1), logo

E = r2 Sin2 (u) + Cos2 (u) = r2 ,




F =0
G = 1.

Observe que, quando r = 1, ambas as parametrizações consideradas do plano e do cilindro


possuem os mesmos coeficientes da primeira forma fundamental.

O cilindro pertence à família das superfícies de revolução definidas na seção 2.3. Calcula-
mos no seguinte exemplo os coeficientes da primeira forma fundamental da família completa.

Exemplo 2.7.3. Superfícies de revolução.


Dada S uma superfície de revolução (ver definição 2.3.5), podemos dar uma parametrização
de S como no exemplo 2.3.11. Para isso, considere um intervalo aberto I ⊂ R e duas funções
diferenciáveis f, g : I −→ R de maneira que f (t) > 0 para todo t ∈ I; então, a função
X : U = I × (0, 2π) −→ X(U ) dada por

X(t, u) = (f (t)Cos(u), f (t)Sin(u), g(t)),

é uma parametrização de S, a qual fica coberta totalmente exceto pela curva α(t) =
(f (t), 0, g(t)), ∀t ∈ I.
Queremos calcular os coeficientes da primeira forma fundamental para essa família de su-
perfícies. Igual que em exemplos anteriores, precisamos de calcular as derivadas parciais da
parametrização, assim

Xt (t, u) = (f 0 (t)Cos(u), f 0 (t)Sin(u), g 0 (t))


Xu (t, u) = (−f (t)Sin(u), f (t)Cos(u), 0) .

Portanto os coeficientes da primeira forma fundamental têm a seguinte expressão

E = (f 0 (t))2 + (g 0 (t))2 ,
F = −f (t)f 0 (t)Sin(u)Cos(u) + f (t)f 0 (t)Sin(u)Cos(u) = 0,
G = (f (t))2 ,

os quais independem de u.

Exemplo 2.7.4. O helicóide.


Seja a hélice circular C parametrizada pela curva α(t) = (Cos(t), Sin(t), t), para cada t ∈ R,
ver exemplo 1.1.2. Se define o helicoide H como a união das retas que passam pelos pontos
2.7. A PRIMEIRA FORMA FUNDAMENTAL. 65

Figura 2.26: O helicoide.

(0, 0, t) e α(t), para todo t ∈ R. Observe que, a reta para t = 0 está contida no plano
horizontal e as restantes são paralelas a esse plano. Assim, lembrando o exemplo 1.1.1, o
helicoide pode-se parametrizar pela função X : R2 −→ H dada por

X(u, v) = (0, 0, u) + v (Cos(u), Sin(u), 0) = (vCos(u), vSin(u), u) .

Se derivamos parcialmente a função X temos que

Xu (u, v) = (−vSin(u), vCos(u), 1) ,


Xv (u, v) = (Cos(u), Sin(u), 0) ,

logo os coeficientes da primeira forma fundamental do helicoide são as funções

E = 1 + v2
F = −vSin(u)Cos(u) + vSin(u)Cos(u) = 0
G = 1.

O estudo da geometria intrínseca das superfícies, ou em geral das variedades, é o estudo


das propriedades geométricas que são próprias às superfícies, ou seja, aquelas que independem
do espaço onde tais objetos estão imersos e que são mesuráveis e podem ser quantificadas na
própria superfície, desconsiderando qualquer elemento externo à mesma, como é a direção
normal em cada ponto. Em termos da geometria diferencial, esse estudo intrínseco se traduz
no estudo das propriedades geométricas das superfícies que só dependem dos coeficientes da
primeira forma fundamental.
66 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

A primeira das questões da geometria intrínseca das superfícies que vamos estudar nessa
seção é o conceito da medida do ângulo formado por duas curvas concorrentes e contidas em
uma superfície S. Tal conceito se define como o ângulo formado pelos correspondentes vetores
tangentes a duas curvas concorrentes α e β no seu ponto de concorrência. Se chamamos de
wα e de wβ tais vetores, o ângulo pode-se calcular por médio da fórmula:

hwα , wβ i
Cos(θ) = . (2.7)
|wα ||wβ |

O ângulo definido acima é um conceito intrínseco de S (a prova é deixada como exercício).

Exemplo 2.7.5. A esfera unidade S2 .


Como já vimos no exemplo 2.1.4, a aplicação X : U = (0, π) × (0, 2π) −→ S2 dada por

X(θ, ϕ) = (Sin(θ)Cos(ϕ), Sin(θ)Sin(ϕ), Cos(ϕ)) ,

fornece parâmetros locais sobre a esfera unitária chamados de coordenadas esféricas, os quais
cobrem totalmente a esfera a menos de um grande círculo, o qual é um subconjunto de medida
zero da esfera.

Xθ (θ, ϕ) = (Cos(θ)Cos(ϕ), Cos(θ)Sin(ϕ), −Sin(ϕ)) ,


Xϕ (θ, ϕ) = (−Sin(θ)Sin(ϕ), Sin(θ)Cos(ϕ), 0) ,

logo podemos determinar os coeficientes da primeira forma fundamental de S2

E = 1,
F = 0,
G = Sin2 (θ).

As loxódromas da esfera são curvas que formam um ângulo constante γ0 com os meridi-
anos de S2 . Seja α(t) = X(θ(t), ϕ(t)) uma curva parametrizada loxódroma na esfera, então
as loxódromas satisfazem

hα0 (t), Xθ i θ0 (t)


Cos(γ0 ) = = ,
|α0 (t)||Xθ |
p
(θ0 (t))2 + (ϕ0 (t))2 Sin2 (θ(t))

que é uma equação diferencial para as funções θ e ϕ. Manipulando a equação acima tem-se
2.7. A PRIMEIRA FORMA FUNDAMENTAL. 67

que

θ0 (t)
p = Cos(γ0 ),
(θ0 (t))2 + (ϕ0 (t))2 Sin2 (θ(t))
Cos2 (γ0 ) (θ0 (t))2 + (ϕ0 (t))2 Sin2 (θ(t)) = (θ0 (t))2


Cos2 (γ0 )(θ0 (t))2 + (ϕ0 (t))2 Cos2 (γ0 )Sin2 (θ(t)) = (θ0 (t))2
(ϕ0 (t))2 Cos2 (γ0 )Sin2 (θ(t)) = Sin2 (γ0 )(θ0 (t))2
(ϕ0 (t))2 Sin2 (θ(t)) = T an2 (γ0 )(θ0 (t))2

Figura 2.27: Uma loxódroma na esfera.

Assim, a equação diferencial das loxódromas é uma equação diferencial em variáveis


separadas

(θ0 (t))2 T an2 (γ0 ) − (ϕ0 (t))2 Sin2 (θ(t)) = 0,

a qual pode ser resolvida fazendo a seguinte conta

(θ0 (t))2 (ϕ0 (t))2


=
Sin2 (θ) T an2 (γ0 )
0
θ (t) ±ϕ0 (t)
= .
Sin(θ) T an(γ0 )
68 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

Integrando a igualdade acima tem-se por um lado que


θ0 (t) θ0 (t)
Z Z
dt = dt
Sin(θ(t)) 2Sin(θ(t)/2)Cos(θ(t)/2)
θ0 (t)
Z
= dt
2T an(θ(t)/2)Cos2 (θ(t)/2)
Z    0
θ(t)
= Log T an dt
2
  
θ(t)
= Log T an + K.
2
Assim, as loxódromas devem satisfazer a seguinte equação
  
θ(t) ±(ϕ(t) + C)
Log T an = ,
2 T an(γ0 )
para C constante.
Uma outra questão métrica que pode ser tratada com a primeira forma fundamental é a
medida da área de uma região limitada de uma dada superfície regular S. Dizemos que um
subconjunto D ⊂ S e um domínio regular da superfície se D é aberto e conexo na topologia
da superfície, de maneira que existe um homeomorfismo diferenciável entre a fronteira de D,
que denotamos por ∂D, e um círculo do plano exceto, eventualmente, em um subconjunto
finito de pontos. Uma região R de S é a união de um domínio com a sua fronteira. Dizemos
que uma região de S é limitada, se existe uma bola B ⊂ R3 que a contem.

Figura 2.28: R = D ∪ ∂D é uma região limitada de S.

Seja X : U ⊂ R2 −→ S uma parametrização local da superfície, nas coordenadas (u, v),


e considere Q ⊂ U uma região compacta de R2 . Assim X(Q) = R é uma região limitada de
2.7. A PRIMEIRA FORMA FUNDAMENTAL. 69

S pela definição acima. Antes de definirmos o conceito de área de uma região, vamos provar
que a integral Z
|Xu ∧ Xv | dudv,
Q

independe da parametrização. Com efeito, tomamos Y : V ⊂ R2 −→ S uma outra parame-


trização local de S, nas coordenadas (r, s), tal que R ⊂ Y (V ) e portanto W = Y −1 (R) ⊂ V
é compacto, então a mudança de parâmetros h = X −1 ◦ Y é um difeomorfismo de W em Q
pelo teorema 2.3.1. Em primeiro lugar vamos calcular uma expressão dos vetores tangentes
Yr e Ys como combinação linear dos vetores da base {Xu , Xv } de Tp S. Usando a mudança
de parâmetros acima, vemos que Y (r, s) = (X ◦ h)(r, s) = X(u(r, s), v(r, s)), logo

∂u ∂v
Yr = Xu + Xv ,
∂r ∂r
∂u ∂v
Ys = Xu + Xv .
∂s ∂s
Agora podemos usar essas igualdades e ver que
   
∂u ∂v ∂u ∂v
Yr ∧ Ys = Xu + Xv ∧ Xu + Xv
∂r ∂r ∂s ∂s
   
∂u ∂v ∂v ∂u
= (Xu ∧ Xv ) + (Xv ∧ Xu )
∂r ∂s ∂r ∂s

∂u ∂v ∂v ∂u
 (2.8)
= − (Xu ∧ Xv )
∂r ∂s ∂r ∂s

∂u ∂u
∂r ∂s
= ∂v ∂v (Xu ∧ Xv )

∂r ∂s

onde
∂u ∂u
∂r ∂s
∂v
∂v

∂r ∂s

é o determinante Jacobiano da transformação h o qual, na literatura, pode-se encontrar


denotado tanto por det(Jach (r(u, v), s(u, v))), quanto por |∂(u, v)/∂(r, s)|. Em segundo
lugar e para concluir, podemos usar o conhecido teorema de mudança de variáveis da teoria
de integrais múltiplas e a igualdade (2.8) para ver que
Z Z Z
|Yr ∧ Ys | drds = |Xu ∧ Xv ||det(Jach (r(u, v), s(u, v)))| drds = |Xu ∧ Xv | dudv,
W h−1 (Q) Q

o que demonstra nossa afirmação anterior. Portanto podemos enunciar a seguinte definição.
70 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

Definição 2.7.2. Seja uma superfície regular S e X : U ⊂ R2 −→ S uma parametrização


local de S. Se R é uma região limitada de S tal que R ⊂ X(U ), então se define a área de R
em S como a integral
Z
A(R) = |Xu ∧ Xv | dudv,
Q

onde Q = X −1 (R) ⊂ U .

Observação 2.7.2. Observe que, em muitos exemplos podem-se dar parametrizações das
superfícies que a cobrem totalmente a menos de pontos ou curvas, elementos que têm medida
nula no espaço e que, portanto, não influem no valor da integral.
O número |Xu ∧ Xv | representa a área de um paralelogramo em U de lados Xu e Xv .

Figura 2.29: Diferencial de área de S.

Denotamos por
dS = |Xu ∧ Xv | dudv,

que, na literatura, é chamado de diferencial de área da superfície S. Assim, e tendo em conta


a primeira observação feita acima, usualmente encontraremos que a área de uma superfície
regular está definida pela integral
Z Z
A(S) = dS = |Xu ∧ Xv | dudv,
S U

sendo X : U ⊂ R2 −→ S uma parametrização local de S que a cobre totalmente a menos de


algum subconjunto de medida nula de R3 .
Por outro lado, usando a igualdade |a ∧ b|2 = |a|2 |b|2 − ha, bi2 , podemos ver que o conceito
de área de uma região de uma superfície é um conceito intrínseco a S, pois o diferencial de
2.7. A PRIMEIRA FORMA FUNDAMENTAL. 71

área satisfaz que


p
dS = |Xu ∧ Xv | dudv = |Xu |2 |Xv |2 − hXu , Xv i2 dudv
v ! v !
u u
u hX u , Xu i hX u , Xv i u E F
= tdet dudv = tdet dudv
hXu , Xv i hXu , Xv i F G

= EG − F 2 dudv,

só depende dos coeficientes da primeira forma fundamental.


Exemplo 2.7.6. Área de uma seção de um cilindro circular reto C.
Para os dados números reais r > 0 e a < b, consideramos a parametrização X(u, v) =
(rCos(u), rSin(u), v), para (u, v) ∈ U = (0, 2π) × (a, b). Então E = r2 , F = 0 e G = 1 pelo

exemplo 2.7.2 e portanto |Xu ∧ Xv | = EG − F 2 = r.
Z Z Z b Z 2π 
A(C) = dS = r dudv = r du dv = 2πr(b − a).
C U a 0

Exemplo 2.7.7. Área de uma esfera.


Para um dado número real r > 0, consideramos coordenadas esféricas sobre a esfera

X(θ, ϕ) = (rSin(θ)Cos(ϕ), rSin(θ)Sin(ϕ), rCos(θ)) , 0 < θ < π, 0 < ϕ < 2π.

Em primeiro lugar vamos calcular os coeficientes da primeira forma fundamental da esfera.

Xθ (θ, ϕ) = (rCos(θ)Cos(ϕ), rCos(θ)Sin(ϕ), −rSin(θ))


Xϕ (θ, ϕ) = (−rSin(θ)Sin(ϕ), rSin(θ)Cos(ϕ), 0) .

Assim

E = r2 ,
F = 0,
G = r2 Sin2 (θ).

Usando isso temos que EG − F 2 = r2 Sin(θ) e portanto
Z π Z 2π 
2
A(S (r)) = r Sin(θ) dϕ dθ = 4πr2 .
2
0 0

Exemplo 2.7.8. Área de um toro T .


Para os dados números reais 0 < r < R, consideramos a parametrização

X(u, v) = ((rCos(u) + R)Cos(v), (rCos(u) + R)Sin(v), rSin(u)) , 0 < u < 2π, 0 < v < 2π,
72 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

como no exemplo 2.1.9. Calcular os coeficientes da primeira forma fundamental do toro.

Xu (u, v) = (−rSin(u)Cos(v), −rSin(u)Sin(v), rCos(u)) ,


Xv (u, v) = (−(rCos(u) + R)Sin(v), (rCos(u) + R)Cos(v), 0) .

Assim

E = r2 ,
F = 0,
G = (rCos(u) + R)2 .

Usando isso temos que EG − F 2 = r(rCos(u) + R) e portanto
Z 2π Z 2π 
A(T ) = r(rCos(u) + R) dv du = 4π 2 Rr.
0 0

Exemplo 2.7.9. Área de uma superfície de revolução S.


Voltando ao exemplo 2.7.3, temos que os coeficientes da primeira forma fundamental de S
são

E = (f 0 (t))2 + (g 0 (t))2 ,
F = 0,
G = (f (t))2 ,

Se tomamos uma curva geratriz α(s) = (f (s), 0, g(s)), s ∈ I que seja PCA, então os
coeficientes são

E = 1,
F = 0,
G = (f (s))2 ,

e portanto EG − F 2 = f (s), para todo s ∈ I. Se limitamos o intervalo I = (a, b), pra
certos números reais a < b, então
Z b Z 2π  Z b
A(S) = f (s) du ds = 2π f (s) ds.
a 0 a

Se F é uma primitiva de f em I, então temos pelo TFC que

A(S) = 2π(F (b) − F (a)).


2.8. EXERCÍCIOS. 73

2.8 Exercícios.
1. Dadas S uma superfície regular e α : I −→ S uma curva parametrizada contida em S.
Se (a, b) ⊂ I, prove que o comprimento de arco de α no intervalo (a, b) é um conceito
intrínseco da superfície.

2. Dadas S uma superfície regular e α, β : I −→ S duas curvas parametrizadas contidas


em S. Se α e β são concorrentes em S, prove que o ângulo formado pelas curvas é um
conceito intrínseco da superfície.

3. Calcule a área de uma helicoide para 0 < u < 2π e 0 < v < 1 (ver exemplo 2.7.4).

4. Verifique que X(u, v) = (Cosh(u)Cos(v), Cosh(u)Sin(v), Sinh(u)), para u ∈ R e v ∈


(0, 2π) é uma parametrização local do hiperboloide de uma folha (ver exemplo 2.1.6).
Em seguida, calcule os coeficientes da primeira forma fundamental e sua área para
0 < u < 1.

Livro do Manfredo, páginas 105-106, exercícios 10, 11, 13, 15; páginas 117-121, exercícios
1, 3, 5, 7, 8, 10, 14, 15.
74 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

2.9 Orientação em superfícies.


Da mesma forma que a variação do vetor tangente e do plano osculador nos levou aos
conceitos de curvatura e torção, e posteriormente ao estudo da geometria local das curvas,
pretendemos agora estudar a variação do plano tangente, definido na seção 2.5, sobre cada
ponto de uma superfície regular quando passamos de um ponto para outro. A fins de
obtermos maior facilidade, estudaremos as variações das direções normais a esses planos
tangentes em cada ponto de uma superfície regular S.

Definição 2.9.1. Um campo diferenciável de vetores sobre S é uma aplicação diferenciável


V : S −→ R3 .
Em particular, se V (p) ∈ Tp S para cada p ∈ S, o campo é um campo de vetores tangentes
ou campo tangente a S, e se V (p) é perpendicular ao plano tangente Tp S para cada p ∈ S,
então V é um campo de vetores normais ou campo normal à superfície.
Se V satisfaz que |V (p)| = 1 para todo p ∈ S, então V é um campo unitário definido sobre
a superfície.

O objeto de estudo desse capítulo serão os campos diferenciáveis de vetores normais e


unitários definidos sobre a superfície S, que serão denotados por N .

Figura 2.30: Campo tangente. Figura 2.31: Campo normal.

Como já foi adiantado na seção 2.7, tomando coordenadas locais X : U −→ S na super-


2.9. ORIENTAÇÃO EM SUPERFÍCIES. 75

fície, sempre pode-se definir uma função N X : U ⊂ R2 −→ R3 dada por


Xu ∧ Xv
N X (q) = (q), ∀q ∈ U,
|Xu ∧ Xv |

a qual é diferenciável, N X (q) ⊥ TX(q) S e |N X (q)| = 1, para todo q ∈ U . Podemos definir a


aplicação N : X(U ) ⊂ S −→ S2 ⊂ R3 dada por

N (p) = (N X ◦ X −1 )(p), ∀p ∈ X(U ),

a qual é um campo normal unitário em todo X(U ) ⊂ S. Acabamos de provar o seguinte


resultado:

Lema 2.9.1. Se S é uma superfície regular e X : U −→ S é uma parametrização local de


S, então existe um campo de vetores normal e unitário definido no aberto V = X(U ) ⊂ S.

Figura 2.32: Campo normal unitário sobre S.

É intuitivo pensar que o plano tangente a uma superfície regular em cada ponto p possui
uma única direção normal, a qual determina apenas dois vetores normais unitários possíveis,
um para cada sentido de percurso saindo de p na correspondente reta normal associada a essa
direção. Se V ⊂ S é um aberto coordenado de S, sabemos que V é difeomorfo a um aberto
do plano pela observação 2.1.3 e é sabido que todo plano separa o espaço em exatamente dois
semi-espaços com fronteira comum nesse plano, e que portanto ambos semi-espaços ficam
totalmente determinados pelo plano. Assim, podemos dizer que um vetor normal unitário
ao plano aponta para um desses semi-espaços e o outro normal unitário aponto para o outro.
Podemos assim chamar de lado do plano a cada um dos semi-espaços em que o plano divide
o espaço, ou equivalentemente, um lado do plano é o semi-espaço para o qual aponta o
correspondente vetor normal ao plano. Dessa maneira, todo plano contido no espaço tem
76 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

apenas dois lados. Na seção 3.7 provaremos que podemos transladar essa propriedade do
plano localmente a qualquer superfície regular e garantir que todo ponto da superfície possui
uma vizinhança coordenada que separa um certo aberto O de R3 em exatamente dois lados,
pois são localmente difeomorfos ao plano.

Lema 2.9.2. Se S é uma superfície conexa e N1 , N2 : S −→ R3 são dois campos diferenciá-


veis normais e unitários, então N1 = N2 ou N1 = −N2 .

Demonstração. Em cada p ∈ S, temos que N1 (p) e N2 (p) são vetores unitários e perpendi-
culares ao mesmo plano Tp S ⊂ R3 , então, ponto a ponto, esses vetores são iguais ou opostos.
Vemos a seguir como a conexão de S nos permite concluir a prova do lema.
Com efeito, se definimos os subconjuntos de S

A = {p ∈ S : N1 (p) = N2 (p)},
B = {p ∈ S : N1 (p) = −N2 (p)},

então é claro que S = A ∪ B, que A ∩ B = ∅ e que A e B são fechados na topologia de S


pela continuidade dos campos N1 e N2 . Como S é conexa, então não admite uma partição
não trivial por conjuntos fechados, logo S = A ou S = B.

Definição 2.9.2. Dizemos que uma superfície regular S é orientável, se sobre ela pode-se
definir um campo normal e unitário. Em caso contrário, S é dita não-orientável.
Cada campo normal e unitário sobre uma superfície orientável S é chamado de orientação
de S e, se escolhemos uma orientação em uma superfície orientável S, então a superfície é
dita orientada.

Observação 2.9.1. Os lemas 2.9.1 e 2.9.2 dizem-nos que toda superfície regular é localmente
orientável e que existem apenas duas orientações para cada superfície conexa e orientável.
O lema 2.9.1 diz-nos ainda mais, pois se uma superfície regular pode ser coberta totalmente
com uma única parametrização X : U −→ S, então
Xu ∧ Xv
N (p) = (N X ◦ X −1 )(p) = , ∀p ∈ S,
|Xu ∧ Xv |p
é um campo normal e unitário globalmente definidi sobre S, portanto S é orientável.
Exemplo 2.9.1. Os planos são orientáveis.
No exemplo 2.5.2 se provou que o plano tangente a Π em cada ponto é o próprio Π, que pela
definição é o complemento ortogonal de um certo vetor unitário v ∈ R3 , ou seja

Tp Π = ker(dfp ) = {w ∈ R3 : hw, vi = 0} = {v}⊥ ,


2.9. ORIENTAÇÃO EM SUPERFÍCIES. 77

é constante. Logo a aplicação N : Π −→ S2 dada por

N (p) = v, ∀p ∈ Π,

é um campo normal unitário sobre o plano.


Outra maneira de provar que o plano é orientável é observar que pode ser totalmente coberto
pela parametrização dada no exemplo 2.7.1 e em seguida usar a observação 2.9.1.

Exemplo 2.9.2. As esferas são orientáveis.


No exemplo 2.5.3 se provou que o plano tangente à esfera S2 (r) centrada no ponto p0 ∈ R3
é o complemento ortogonal ao vetor de possição, para cada um dos seus pontos. Assim, a
aplicação N : S2 (r) −→ S2 dada por
p − p0
N (p) = , ∀p ∈ S2 (r),
|p − p0 |
é um campo normal unitário sobre a esfera. Em particular, se tomamos r = 1 e p0 igual à
origem de coordenadas, temos que N : S2 −→ S2 e

N (p) = p, ∀p ∈ S2 ,

ou seja, que N é a identidade restrita à esfera unitária.

Exemplo 2.9.3. Os gráficos de funções diferenciáveis são orientáveis.


Vimos no exemplo 2.1.2 que, dada uma função diferenciável f : U −→ R em um subconjunto
aberto U de R2 , a aplicação X(u, v) = (u, v, f (u, v)) para cada (u, v) ∈ U é uma parame-
trização global da superfície regular S = X(U ). Logo é automaticamente orientável pela
observação 2.9.1.

Exemplo 2.9.4. A imagem inversa de um valor regular de uma função diferenciável é orien-
tável.
Vimos no exemplo 2.5.1, que se f : O −→ R é uma função diferenciável em um aberto
O ⊂ R3 e a ∈ R é um valor regular de f , então

Tp S = ker(dfp ) = {w ∈ R3 : h∇f (p), wi = 0}

em cada ponto p da superfície S = f −1 ({a}). Logo a restrição de ∇f a S é um campo normal


sobre a superfície e portanto
1
N (p) = ∇f (p) ∀p ∈ S,
|∇f (p)|
78 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

é um campo normal unitário sobre S.


Em particular, tome O = R3 e a função f (x, y, z) = x2 + y 2 − r2 para certo número real
r > 0. Então S = f −1 ({0}) é um cilindro circular reto de raio r, ∇f (x, y, z) = (2x, 2y, 0) e
1 1 1
N (p) = ∇f (p) = p (2x, 2y, 0) = (x, y, 0),
|∇f (p)| 4x2 + 4y 2 r

é um campo normal unitário sobre o cilindro.

Exemplo 2.9.5. As superfícies de revolução são orientáveis.


Seja α : I −→ R3 uma curva diferenciável PCA dada por

α(s) = (f (s), 0, g(s)),

para certas funções diferenciáveis f, g : I −→ R de maneira que f (s) > 0, para todo s ∈ I.
Vimos no exemplo 2.3.11 que

X(s, u) = (f (s)Cos(u), f (s)Sin(u), g(s)), ∀(s, u) ∈ I × (0, 2π)

parametriza localmente a superfície de revolução gerada pelo traço C da curva α e portanto

Xs (s, u) = (f 0 (s)Cos(u), f 0 (s)Sin(u), g 0 (s)) ,


Xu (s, u) = (−f (s)Sin(u), f (s)Cos(u), 0) .

Logo
X s ∧ Xu
N (p) =
|Xs ∧ Xu |p
 0
−g (s)f (s)Cos(u) −g 0 (s)f (s)Sin(u) f 0 (s)f (s)

= , ,
f (s) f (s) f (s)
= (−g 0 (s)Cos(u), −g 0 (s)Sin(u), f 0 (s)).

Dado que a parametrização é local, a conta acima é insuficiente para poder concluir que S
é orientável, mas podemos fazer a seguinte observação. Considere a rotação Rz,u (exemplo
2.3.10) em torno do eixo vertical e a função J : R3 −→ R3 dada por
   
0 0 −1 x
    3
0 1 0  · y  = (−z, y, x), ∀p = (x, y, z) ∈ R .
J(x, y, z) =    
1 0 0 z

Assim, a função F : R3 −→ R3 dada por F (w) = (Rz,u ◦ J)(w) é uma isometria do espaço
e está bem definida em todo ponto de R3 . Se restringimos F ao conjunto de vetores C
e=
2.9. ORIENTAÇÃO EM SUPERFÍCIES. 79

{α0 (s) : s ∈ I}, então

(F |Ce )(α0 (s)) = (Rz,u ◦ J)(α0 )(s)


    
0
Cos(u) −Sin(u) 0 0 0 −1 f (s)
    
=  Sin(u) Cos(u) 0 · 0 1 0   0 
    

0
0 0 1 1 0 0 g (s)
= (−g 0 (s)Cos(u), −g 0 (s)Sin(u), f 0 (s)),

coincide com N (p) em cada p ∈ S. Note que J é a rotação de ângulo 90o em torno

Figura 2.33: As superfícies de revolução são orientáveis.

ao eixo y, o que implica que esse vetor é perpendicular a α0 (s) no plano Oxz para cada
s. Quando aplicamos em seguida a rotação de ângulo u em torno do eixo z, obtemos um
vetor normal exterior à superfície de rotação S em cada um dos seus pontos, como indica a
figura 2.33. Assim, pela observação acima e pelo lema 2.9.1, podemos concluir que o campo
normal unitário N está globalmente definido em S e portanto as superfícies de rotação são
orientáveis.

A pesar de ter provado que toda superfície regular é localmente orientável, a família de
superfícies não-orientáveis não e vazio. Vamos ver que tais superfícies existem no seguinte
exemplo.
80 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

Exemplo 2.9.6. A faixa de Möbius não é orientável.


Considere a circunferência C de centro a origem e raio igual a 2 contida no plano horizontal
e o segmento L de comprimento igual a 2 cujo ponto médio é o ponto (0, 2, 0) ∈ C e cuja
direção está dada pelo vetor e3 = (0, 0, 1) da base canônica do espaço. Se define a faixa de
Möbius como o conjunto S dos pontos do espaço que vai ocupando o segmento L quando
seu ponto médio gira uniformemente sobre C e, ao mesmo tempo, o segmento L vai girando
uniformemente em torno do seu ponto médio no plano determinado pelo correspondente
vetor de posição e o eixo vertical Oz, de forma que, quando o ponto médio de L completa
uma volta, o segmento completou só média volta.

Figura 2.34: A faixa de Möbius.

Pela definição acima, pode-se provar que a função F : R2 −→ R3 dada por


  u    u   u 
F (u, v) = 2 − vSin Sin(u), 2 − vSin Cos(u), vCos
2 2 2
é diferenciável e tal que
S = F (R × (−1, 1))

é uma superfície regular. Considere o aberto U = (0, 2π) × (−1, 1) ⊂ R2 e a função X = F |U ,


então X é uma parametrização local da faixa de Möebius, a qual fica totalmente coberta por
X a menos do segmento L. Para maiores detalhes, consulte [4, Sec. 2.6, Ex. 3] ou [10, págs.
80-84].
Derivando temos que
  u  1 u
Xu (u, v) = 2 − vSin Cos(u) − vSin(u)Cos ,
2 2 2
  u  1 u 1  u 
− 2 − vSin Sin(u) − vCos(u)Cos , − vSin ,
2 2 2 2 2
 u u  u 
Xv (u, v) = −Sin(u)Sin , −Cos(u)Sin , Cos .
2 2 2
2.9. ORIENTAÇÃO EM SUPERFÍCIES. 81

Para os nossos objetivos, é suficiente considerar só a linha central da faixa, isto é a curva
X(u, 0). Portanto

Xu (u, 0) = (2Cos(u), −2Sin(u), 0) ,


 u u  u 
Xv (u, 0) = −Sin(u)Sin , −Cos(u)Sin , Cos .
2 2 2
o que implica que
 u u  u 
(Xu ∧ Xv )(u, 0) = −2Sin(u)Cos , −2Cos(u)Cos , −2Sin .
2 2 2
Suponha que existe um campo normal unitário N globalmente definido em S, então os
vetores Xu ∧ Xv e N (p) devem estar na mesma direção e no mesmo sentido, para cada p ∈ S,
em particular na linha central da faixa. Porém

lim (Xu ∧ Xv )(u, 0) = (1, 0, 0) 6= (−1, 0, 0) = lim− (Xu ∧ Xv )(u, 0),


u→0+ u→0

o que é uma contradição.

Para finalizar a seção, vemos o seguinte resultado que é uma condição suficiente de
orientabilidade de superfícies.

Proposição 2.9.1. Seja P uma propriedade dos vetores unitários normais a uma superfície
S tal que, para cada vetor unitário υ normal a S em p, ou υ satisfaz P ou −υ satisfaz P,
e não podem ocorrer as duas simultaneamente. Se para cada υ que satisfaz P existe uma
vizinhança aberta de p em S e um campo normal unitário diferenciável N definido em V tal
que N (q) satisfaz P para todo q ∈ V , então S é orientável.

Demonstração. Basta definir uma aplicação G : S −→ S2 de maneira que cada ponto p ∈ S


é associado com o único vetor normal unitário N (p) ⊥ Tp S que satisfaz a propriedade
P. A aplicação G está bem definida pela primeira hipótese e é diferenciável porque, pela
segunda hipótese, G coincide localmente com um campo diferenciável. Segue o resultado
pela definição 2.9.2.
82 CAPÍTULO 2. SUPERFÍCIES REGULARES.

2.10 Exercícios.
1. Suponha que uma superfície S é tal que S = S1 ∪ S2 , onde S1 e S2 são superfícies
orientáveis tais que S1 ∩ S2 é conexa. Prove que S é também orientável.

2. Seja f : S1 −→ S2 um difeomorfismo local entre duas superfícies S1 e S2 das quais a


segunda é orientável. Seja N2 um campo normal unitário sobre S2 . Definimos uma
aplicação N1 : S1 −→ S2 ⊂ R3 como
a∧b
N1 (p) = ,
|a ∧ b|

onde {a, b} é uma base de Tp S1 , de maneira que

det(dfp (a), dfp (b), N2 (f (p))) > 0.

Prove que N1 é um campo normal unitário sobre S1 e que, portanto, S1 é também


orientável.

Livro do Manfredo, págs 129-130, exercícios 1, 5 e 7.


Capítulo 3

A segunda forma fundamental.

83
84 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

3.1 A aplicação de Gauss.


Em diante, vamos supor que as superfícies são orientáveis. De qualquer forma, em virtude
do lema 2.9.1, toda a teoria que será desenvolvida no capítulo pode-se aplicar localmente a
qualquer superfície.
Seja S uma superfície e N um campo normal unitário sobre a superfície. Cada campo
normal unitário sobre a superfície pode ser vista como uma aplicação diferenciável de S na
esfera S2 . Essa aplicação que leva cada ponto de S em um vetor perpendicular ao corres-
pondente plano tangente, e portanto à própria superfície será chamado de uma aplicação de
Gauss sobre S. Em analogia às curvas do espaço, a variação dessa aplicação de Gauss sobre
S quando passamos de um ponto um outro, fornece informações importantes relativamente
à forma da superfície, em outras palavras, relativamente à maneira na qual a superfície S se
dobra no espaço.
A variação dos correspondentes planos tangentes, ou equivalentemente, dos correspon-
dentes vetores normais ao percorrermos a superfície é controlada pela diferencial da aplicação
de Gauss N , ou seja pela aplicação linear

dNp : Tp S −→ TN (p) S2 .

Observe que N (p) ⊥ Tp S em cada ponto p ∈ S e, por outro lado, temos que N (p) é unitário
e portanto pode ser visto como um vetor da esfera unitária. Como já foi provado nos
exemplos 2.5.3 e 2.9.2, o vetor de posição na esfera unitária é o complemento ortogonal do
correspondente plano tangente à esfera. Logo N (p) ⊥ TN (p) S2 , se vemos N (p) como um vetor
da esfera unitária. Assim, podemos afirmar que Tp S = TN (p) S2 ,o que implica que

dNp : Tp S −→ Tp S

é um endomorfismo do plano tangente em cada ponto da superfície, e sabemos que os endo-


morfismos têm associados dois invariantes, isto é, duas grandezas que independem da base
do espaço vetorial considerado; tais invariantes são o determinante e o traço. Assim podemos
definir as seguintes duas funções sobre a superfície
1
K(p) = det(dNp ) e H(p) = − tr(dNp ), em cada p ∈ S,
2
onde tr(·) é o traço da matriz, as quais são chamadas de curvatura de Gauss ou Gaussiana e
de curvatura média no ponto p ∈ S, respectivamente. Observe que K e H estão definidas em
função do campo normal N , o qual já vimos que define uma orientação em S; veremos na
3.1. A APLICAÇÃO DE GAUSS. 85

observção 3.1.2 que a curvatura Gaussiana K não depende da orientação e que a curvatura
média H muda seu sinal quando a orientação mudar. Lembre que, do álgebra linear, o
determinante de uma matriz é igual ao produto dos seus autovalores e o traço é a soma dos
mesmos.

Exemplo 3.1.1. O plano.


Considere o conjunto Π = {(x, y, z) ∈ R3 : ax + by + cz = d}, para certos números reais
a, b, c e d, de maneira que o vetor (a, b, c) 6= 0 ∈ R3 é unitário. Então Π = f −1 ({0}) para
a função diferenciável f (x, y, z) = ax + by + cz − d. Usando a fórmula obtida no exemplo
2.9.4, tem-se que

1 1
N (p) = ∇f (p) = √ (a, b, c) = (a, b, c),
|∇f (p)| a + b2 + c 2
2

que é constante para todo p ∈ Π. Portanto, sua diferencial é identicamente nula, ou seja
dNp independe de p e tem associada a matriz nula de ordem 2, que tem autovalores nulos e
portanto K(p) = 0 e H(p) = 0 para todo p ∈ Π.
O provado no exemplo concorda com o que foi anunciado no início da seção, isto é, se dNp
fornece uma medida da variação dos planos tangentes à superfície quando passamos de um
ponto para outro, no sentido que se o plano tangente não varia (exemplo 2.5.2), então dNp
deve ser nula.

Exemplo 3.1.2. A esfera unitária.


De acordo com os exemplos 2.5.3 e 2.9.2, a aplicação de Gauss na esfera unitária é a identi-
dade restrita à própria esfera, ou seja

N = id|S2 : S2 −→ S2 .

Se p é um ponto da esfera e v ∈ Tp S2 é um vetor tangente arbitrário, existe uma curva


α : I −→ S2 de maneira que α(0) = p e α0 (0) = v. Assim

d d
dNp (v) = (N ◦ α)(t) = α(t) = α0 (0) = v,
dt |t=0 dt |t=0

portanto dNp = id|Tp S2 , cuja matriz associada é I2 , que tem autovalores µ1 (p) = 1 e µ2 (p) =
1, para todo p ∈ S2 . Portanto, na orientação dada pelo vetor normal exterior à esfera,
K(p) = 1 > 0 e H(p) = −1 em todo ponto da esfera unitária.
Em geral, do exemplo 2.9.2 podemos concluir que K(p) = 1/r2 e H(p) = −1/r, para todo
p ∈ S2 (r), sendo r > 0 um raio arbitrário.
86 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

Exemplo 3.1.3. O helicóide.


Como já foi dito no exemplo 2.7.4, para cada p fixado no helicoide H, a aplicação X : R2 −→
H dada por
X(u, v) = (vCos(u), vSin(u), u) , ∀(u, v) ∈ R2
o parametriza ao redor de p. Observe que X(R2 ) = H, portanto o helicóide é orientável pela
observação 2.9.1 e podemos afirmar que existe uma aplicação de Gauss globalmente definida
sobre a superfície. Para calcular N , precisamos das correspondentes derivadas parciais, as
quais são
Xu (u, v) = (−vSin(u), vCos(u), 1) ,
Xv (u, v) = (Cos(u), Sin(u), 0) ,
e os correspondentes coeficientes da primeira forma fundamental são as funções
E = 1 + v2
F =0
G = 1.

Portanto Xu ∧ Xv = (−Sin(u), Cos(u), −v), |Xu ∧ Xv | = 1 + v 2 e N : H −→ S2 é dada
por  
−Sin(u) Cos(u) −v
N (p) = √ ,√ ,√ .
1 + v2 1 + v2 1 + v2
Sejam p ∈ H e w ∈ Tp H arbitrários, existe uma curva α : I −→ H tal que α(0) = p e
α0 (0) = w. Assim tem-se que
d
dNp (w) = (N ◦ α)(t)
dt |t=0
!
d −Sin(u(t)) Cos(u(t)) −v(t)
= p ,p ,p
dt |t=0 2
1 + v (t) 2
1 + v (t) 1 + v 2 (t)
−u0 (0)(1 + v 2 (0))Cos(u(0)) + v 0 (0)v(0)Sin(u(0))
= 3 ,
(1 + v 2 (0)) 2
!
−u0 (0)(1 + v 2 (0))Sin(u(0)) − v 0 (0)v(0)Cos(u(0)) −v 0 (0)
3 , 3 .
(1 + v 2 (0)) 2 (1 + v 2 (0)) 2
Chamamos de Bp à base {Xu , Xv } de Tp S em cada p ∈ S e analisamos, em particular, a
diferencial da aplicação de Gauss no ponto p0 = X(0, 0) = (0, 0, 0) ∈ S. Em primeiro lugar
Bp0 = {(0, 0, 1), (1, 0, 0)} e w0 = (u0 (0), v 0 (0))Bp0 ∈ Tp0 S. Em segundo lugar
! !
0 −1 u0 (0)
dNp0 (w0 ) = (−u0 (0), 0, −v 0 (0)) = −v 0 (0)Xu (0, 0) − u0 (0)Xv (0, 0) = .
−1 0 v 0 (0)
Bp0
3.1. A APLICAÇÃO DE GAUSS. 87

Os autovalores da matriz dNp0 são µ1 (p0 ) = −1 e µ2 (p0 ) = 1, portanto K(p0 ) = −1 < 0 e


H(p0 ) = 0.

Exemplo 3.1.4. O cilindro circular reto.


No exemplo 2.9.4, vimos que
1
N (p) = (x, y, 0),
r
para cada p = (x, y, z) no cilindro C definido implicitamente pela fórmula x2 + y 2 = r2 , para
certo número real r > 0. Se w = (w1 , w2 , w3 ) ∈ Tp C, tem-se que

1
dNp (w) = (w1 , w2 , 0).
r

Considere uma parametrização do cilindro dada por X(u, v) = (rCos(u), rSin(u), v) para
cada (u, v) ∈ (0, 2π) × R, então

Xu (u, v) = (−rSin(u), rCos(u), 0),


Xv (u, v) = (0, 0, 1),
Xu (u, v) ∧ Xv (u, v) = (rCos(u), rSin(u), 0).

logo N (p) = (Cos(u), Sin(u), 0). Para cada w ∈ Tp C, temos que

dNp (w) = (−u0 (t)Sin(u(t)), u0 (t)Cos(u(t)), 0)


! !
u0 (t) 1 1
0 u0 (t)
= Xu + 0Xv = (u0 (t), 0) = r
.
r r 0 0 v 0 (t)

Os autovalores da matriz dNp são µ1 (p) = 1/r e µ2 (p) = 0, portanto K(p) = 0 e H(p) =
−1/2r para cada p ∈ C.

Exemplo 3.1.5. O parabolóide hiperbólico.


Como já vimos no exemplo 2.1.8, a parametrização X(u, v) = (u, v, u2 −v 2 ) cobre totalmente
o parabolóide hiperbólico, então é uma superfície orientável pela observação 2.9.1. Observe
que pode-se fazer um raciocínio análogo e concluir que o parabolóide elíptico é também
orientável.
Vamos calcular a aplicação de Gauss do parabolóide hiperbólico.

Xu (u, v) = (1, 0, 2u),


Xv (u, v) = (0, 1, −2v),
Xu ∧ Xv = (−2u, 2v, 1).
88 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

Assim  
−2u 2v 1
N (u, v) = √ ,√ ,√
2
1 + 4u + 4v 2 2
1 + 4u + 4v 2 1 + 4u2 + 4v 2
e para cada w ∈ Tp S tem-se que
d
dNp (w) = (N ◦ α)(t)
dt |t=0
!
d −2u(t) 2v(t) 1
= p ,p ,p
dt |t=0 1 + 4u2 (t) + 4v 2 (t) 1 + 4u2 (t) + 4v 2 (t) 1 + 4u2 (t) + 4v 2 (t)
−2u0 (0) − 8u0 (0)v 2 (0) + 8u(0)v(0)v 0 (0)
= 3 ,
(1 + 4u2 (0) + 4v 2 (0)) 2
!
2v 0 (0) − 8u2 (0)v 0 (0) − 8u(0)v(0)u0 (0) 4u(0)u0 (0) + 4v(0)v 0 (0)
3 , 3 .
(1 + 4u2 (0) + 4v 2 (0)) 2 (1 + 4u2 (0) + 4v 2 (0)) 2

Se nos focamos no ponto p0 = X(0, 0) = (0, 0, 0), o vetor tangente à curva X(u(t), v(t)) tem

Figura 3.1: A diferencial de N na origem.

coordenadas w = (u0 (0), v 0 (0))B ∈ Tp0 S, e portanto

dNp0 (w) = (−2u0 (0), 2v 0 (0), 0) = −2u0 (0)Xu (0, 0) + 2v 0 (0)Xv (0, 0)
! !
0
−2 0 u (0)
= (−2u0 (0), 2v 0 (0))B = .
0 2 v 0 (0)

Segue que os autovalores da matriz dNp0 são µ1 (p) = −2 e µ2 (p) = 2, respectivamente, e


portanto K(p0 ) = −4 < 0 e H(p0 ) = 0.
Sejam U ⊂ R2 um aberto, X : U −→ S uma parametrização local de uma superfície
regular S em torno de um ponto p e q ∈ U tal que p = X(q). Considere N um campo
normal unitário sobre X(U ) ⊂ S.
3.1. A APLICAÇÃO DE GAUSS. 89

Proposição 3.1.1. A diferencial da aplicação de Gauss dNp : Tp S −→ Tp S é uma aplicação


linear auto-adjunta.

Demonstração. Como dNp é linear, devemos provar que hdNp (w1 ), w2 i = hw1 , dNp (w2 )i para
wi ∈ Tp S, i = 1, 2 arbitrários. Observe que basta provar a igualdade anterior na base
{Xu , Xv } de Tp S. Vamos trabalhar nas coordenadas dadas pela parametrização X.
Seja α(t) = X(u(t), v(t)) uma curva em S tal que α(0) = p, então

d
dNp (α0 (0)) = (N X ◦ X −1 )(α(t))
dt |t=0
d
= N X (u(t), v(t))
dt |t=0
= d(N X )q (e1 )u0 (0) + d(N X )q (e2 )v 0 (0)
= NuX u0 (0) + NvX v 0 (0),

onde {e1 , e2 } é a base canônica de R2 . No ponto q, sabemos que N X (q) é perpendicular aos
vetores Xu e Xv , logo se derivamos as igualdades hN X , Xu i = 0 em relação a v e hN X , Xv i = 0
em relação a u, pelo teorema de Schwarz temos que

hNvX , Xu i = hNuX , Xv i. (3.1)

Por outro lado, usando a regra da cadeia (teorema 2.5.1), temos que

NuX = d(N X )q (e1 ) = d(N ◦ X)q (e1 ) = dNX(q) ◦ dXq (e1 ) = dNp (Xu ),
(3.2)
NvX = d(N X )q (e2 ) = d(N ◦ X)q (e2 ) = dNX(q) ◦ dXq (e2 ) = dNp (Xv ).

Juntando (3.1) e (3.2) temos o que queríamos provar.

Observação 3.1.1. É sabido da teoria da álgebra linear que existe um isomorfismo entre
o conjunto dos endomorfismos auto-adjuntos de V n e o conjunto das matrizes simétricas
de ordem n, sendo n ∈ N a dimensão do espaço vetorial V , pode consultar [9, pág. 216]
para maiores informações. Por conveniência, em diante usaremos as seguintes notações:
Nu ≡ dNp (Xu ) e Nv ≡ dNp (Xv ).

O resultado acima diz-nos que, em cada ponto de uma superfície regular orientável,
o campo normal unitário N tem associado uma aplicação linear auto-adjunta, a própria
aplicação diferencial de N no ponto. A aplicação

−dNp : Tp S −→ Tp S
90 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

é chamada na literatura de endomorfismo de Weingarten. É um resultado clássico da teoria


da álgebra linear que todo endomorfismo auto-adjunto é diagonalizável, [9, págs. 216-217].
Assim, −dNp tem dois autovalores reais κ1 (p) e κ2 (p) que chamaremos de curvaturas prin-
cipais de S em p e, pelo já visto no início da seção, satisfazem as seguintes igualdades

K(p) = κ1 (p)κ2 (p),


κ1 (p) + κ2 (p) (3.3)
H(p) = .
2
Observação 3.1.2. Suponha que S é uma superfície orientável e N é uma aplicação de Gauss
em S. É claro que −N é também um campo normal unitário sobre S que define a orientação
oposta a N . Seja p ∈ S arbitrário, existe uma base ortonormal de autovetores {e1 , e2 } em
Tp S. Se denotamos por AN
p = −dNp ao endomorfismo de Weingarten, então

A−N
p = −d(−N )p = dNp = −AN
p ,

o que implica que, se κi (p), i = 1, 2, são os autovalores de AN


p , então µi (p) = −κi (p),

i = 1, 2, são os autovalores de A−N


p e ambas as diferenciais de N e −N em p compartilham
os mesmos autovetores. Assim, a curvatura de Gauss K(p) fica invariante por uma eventual
mudança na orientação da superfície e a curvatura média H(p) só muda seu sinal. Em diante,
denotaremos por Ap ao endomorfismo de Weingarten em cada ponto p da superfície regular
S.
Os autovetores associados às curvaturas principais são chamados de direções principais.
Em cada ponto p ∈ S, as curvaturas principais são, pela definição, as raízes da correspondente
equação característica associada a −dNp . É um cálculo simples conferir que as curvaturas
principais satisfazem as seguintes igualdades, que são uma relação explícita das mesmas com
as curvaturas de Gauss e média

κi (p)2 − 2H(p)κi (p) + K(p) = 0, i = 1, 2

e portanto
p
κi (p) = H(p) ± H 2 (p) − K(p), i = 1, 2, ∀p ∈ S. (3.4)

Observe em primeiro lugar que podemos supor, s.p.g., que κ1 (p) ≤ κ2 (p). Em segundo lugar,
como a equação característica acima mencionada possui duas raízes reais, o correspondente
discriminante associado deve ser não-negativo, e portanto a desigualdade

H 2 (p) ≥ K(p)

é satisfeita em todo ponto de uma superfície regular.


3.1. A APLICAÇÃO DE GAUSS. 91

Definição 3.1.1. Uma curva regular α : I −→ S contida em uma superfície regular S é dita
uma linha de curvatura se α0 (t) é uma direção principal para todo t ∈ I.

Equivalentemente, podemos dizer que α é linha de curvatura se e somente se existe uma


função diferenciável λ : I −→ R tal que

Aα(t) (α0 (t)) = λ(t)α0 (t), ∀t ∈ I. (3.5)

Com efeito, se α é direção principal, α0 (t) é autovetor de Aα(t) em cada t e existe uma
função λ : I −→ R que satisfaz a igualdade (3.5) e é claro que λ(t) = hAα(t) α0 (t), α0 (t)i
é diferenciável em cada t ∈ I. Reciprocamente, a afirmação é verdadeira pela aplicação
direta da definição 3.1.1. A observação prévia prova o seguinte importante resultado, que
caracteriza as linhas de curvatura de qualquer superfície regular:

Teorema 3.1.1 (Olinde Rodrigues). Uma condição necessária e suficiente para que uma
curva conexa e regular C em S seja linha de curvatura de S é que

−dNα(t) (α0 (t)) = λ(t)α0 (t), ∀t ∈ I,

para uma certa função diferenciável λ : I −→ R. Nesse caso, o valor λ(t) é o valor da
curvatura principal ao longo da curva α na direção de α0 (t) para cada t ∈ I.

Exemplo 3.1.6. O plano.


No exemplo 3.1.1, vimos que a diferencial da aplicação de Gauss dNp é identicamente nula.
Logo κ1 (p) = κ2 (p) = 0, para cada ponto p do plano Π. Observe que todas as direções
tangentes em cada ponto do plano são direções principais, e portanto toda curva regular
contida no plano é linha de curvatura pelo teorema 3.1.1 de Olinde Rodrigues.
Exemplo 3.1.7. A esfera unitária.
No exemplo 3.1.2, vimos também que a diferencial da aplicação de Gauss dNp é igual à
aplicação identidade da esfera S2 . Portanto o correspondente endomorfismo de Weingarten
leva cada vetor tangente no seu oposto e temos que κ1 (p) = κ2 (p) = −1, para cada ponto p
de S2 . Assim, a esfera unitária também satisfaz a propriedade que toda direção tangente é
direção principal em cada um dos seus pontos e toda curva regular contida em S2 é linha de
curvatura pelo mesmo motivo do exemplo prévio.
Considere uma superfície regular S e p ∈ S arbitrário. Se tomamos qualquer vetor
tangente v ∈ Tp S, tendo em conta o isomorfismo mencionado na observação 3.1.1 e que a
matriz associada ao produto interno de R3 é a matriz identidade de ordem 3, vemos que

h−dNp (v), vi = (Ap · v)t · v = v t · Atp · v = v t · Ap · v,


92 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

pela simetria da matriz Ap , logo a aplicação h−dNp (·), ·i de Tp S em R é uma forma quadrática
pelo já visto no início da seção 2.7.

Definição 3.1.2. Em cada ponto p de uma superfície regular orientável, a forma quadrática
IIp , definida em Tp S por

IIp (v) = h−dNp (v), vi, ∀v ∈ Tp S,

é chamada de segunda forma fundamental de S em p.

Vemos no seguinte resultado, a forte relação da segunda forma fundamental IIp com a
geometria das curvas contidas na superfície que passam pelo ponto p ∈ S na direção de um
certo vetor tangente unitário v ∈ Tp S.

Proposição 3.1.2. Seja S uma superfície orientável, N uma aplicação de Gauss e IIp a
segunda forma fundamental associada ao ponto p ∈ S. Seja v ∈ Tp S é um vetor unitário e
α : (−, ) −→ S uma curva PCA tal que α(0) = p e α0 (0) = v, então

IIp (v) = κα hn, N (p)i,

sendo κα a curvatura de α em p e n o vetor normal à curva em p.

Demonstração. Sabemos que hα0 (s), (N ◦ α)(s)i = 0 para cada s ∈ (−, ). Derivando essa
igualdade em relação a s no instante s = 0 temos que
d
0= hα0 (s), (N ◦ α)(s)i
ds |s=0
= hα00 (0), (N ◦ α)(0)i + hα0 (0), dNα(0) (α0 (0))i
= hα00 (0), N (p)i + hv, dNp (v)i,

o que implica que


hα00 (0), N (p)i = −hv, dNp (v)i = IIp (v),

pela definição 3.1.2. Para concluir a demonstração, basta usar as equações (1.8) de Frenet
na igualdade acima.

Definição 3.1.3. Seja α uma curva regular PCA sobre uma superfície S que passa por um
ponto p ∈ S. Se κα é a curvatura de α em p, se define a curvatura normal de α em p como

κn (p) = κα hn, N (p)i,

onde n é o vetor normal à curva α em p.


3.1. A APLICAÇÃO DE GAUSS. 93

Figura 3.2: A curvatura normal de γ em p ∈ S.

Se consideramos um vetor tangente unitário v ∈ Tp S e α : (−, ) −→ S uma curva


parametrizada PCA contida na superfície e tal que α(0) = p e α0 (0) = v, então tem-se que

IIp (v) = κn (p),

pela proposição 3.1.2 e a definição 3.1.3, o que significa que o valor da segunda forma fun-
damental em um vetor tangente unitário v é igual à curvatura normal de uma curva regular
em S passando por p e tangente a v em p. Em outras palavras, desde um ponto de vista
geométrico, a curvatura normal de uma curva α contida na superfície S é o comprimento da
projeção do vetor α00 (0) na direção do vetor normal unitário em p com um sinal que vem
dado pela orientação escolhida na superfície S. Dado que a segunda forma fundamental
independe da escolha da curva α sobre S, acabamos de provar o seguinte resultado.

Teorema 3.1.2 (Meusnier). Todas as curvas de uma superfície S que têm, em um ponto
p ∈ S, a mesma reta tangente têm, neste ponto, a mesma curvatura normal.

Assim podemos já falar só de curvatura normal em um ponto, independentemente da


curva usada no seu cálculo. Sejam v ∈ Tp S um vetor tangente unitário à superfície S no
ponto p e {e1 , e2 } uma base ortonormal de direções principais de Tp S. Se chamamos de θ ao
ângulo formado por v e e1 , então v = Cos(θ)e1 + Sin(θ)e2 e

κn (p) = IIp (v) = h−dNp (v), vi


= h−dNp (Cos(θ)e1 + Sin(θ)e2 ), Cos(θ)e1 + Sin(θ)e2 i
(3.6)
= hCos(θ)κ1 (p)e1 + Sin(θ)κ2 (p)e2 , Cos(θ)e1 + Sin(θ)e2 i
= κ1 (p)Cos2 (θ) + κ2 (p)Sin2 (θ).
94 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

A igualdade (3.6) é conhecida como fórmula de Euler e é só uma maneira de expressar a


segunda forma fundamental em coordenadas polares, relativamente a uma base ortonormal
de direções principais.
Observação 3.1.3. Assumindo que κ1 (p) ≤ κ2 (p) em p ∈ S, então

κ1 (p)Cos2 (θ) + κ2 (p)Sin2 (θ) = (κ1 (p) − κ2 (p))Cos2 (θ) + κ2 (p),

e portanto
κ1 (p) ≤ κn (p) ≤ κ2 (p).

Assim, as curvaturas principais representam os valores máximo e mínimo da segunda forma


fundamental em p, ou equivalentemente, o maior e o menor valor atingidos pelas curvaturas
normais das curvas de S que passam pelo ponto p.
Cabe observar que a afirmação provada acima é verdadeira em geral, pois é um resultado
clássico do álgebra linear que os autovalores de todo endomorfismo auto-adjunto são reais e
fornecem os valores máximo e mínimo da forma quadrática associada ao mesmo.

Definição 3.1.4. Seja p um ponto de uma superfície regular S. Uma direção assintótica de
S em p é um vetor v ∈ Tp S tal que κn (p) = 0. Dizemos que uma curva conexa α : I −→ S
contida em S é uma linha assintótica, ou curva assintótica, de S se α0 (t) é uma direção
assintótica de S em α(t) para cada t ∈ I.

Observe que, da proposição 3.1.2 e da definição 3.1.3, podemos dizer que uma curva
conexa em S é curva assintótica se e somente se κn (α(t)) = 0 para todo t ∈ I. Considere
{e1 , e2 } uma base ortonormal de direções principais de Tp S e w ∈ Tp S tal que w = w1 e1 +
w2 e2 . Tomamos coordenadas polares no vetor w, isto é, ρ = |w| e θ igual ao ângulo formado
por w e e1 ; assim w1 = ρCos(θ) e w2 = ρSin(θ). Podemos então re-escrever a fórmula de
Euler para qualquer vetor tangente a S em p em coordenadas relativamente a uma base
ortonormal de direções principais

κn (p) = κ1 (p)w12 + κ2 (p)w22 . (3.7)

Visando a igualdade (3.7) e a definição 3.1.4, toda direção assintótica w ∈ Tp S de uma


superfície S em um ponto p satisfaz a equação

κ1 (p)w12 + κ2 (p)w22 = 0. (3.8)

Se K(p) > 0, então o sinal das correspondentes curvaturas principais são iguais, o que implica
que a equação (3.8) não tem solução. Assim, podemos afirmar que não existem direções
3.1. A APLICAÇÃO DE GAUSS. 95

assintóticas em pontos de S onde a curvatura Gaussiana é positiva como, por exemplo, na


esfera unitária (exemplo 3.1.2).
Se K(p) < 0, então as correspondentes curvaturas principais satisfazem κ1 (p) < 0 < κ2 (p),
o que implica que s
−κ2 (p)
T an(θ) = ± ,
κ1 (p)
e portanto a equação (3.8) tem duas soluções linearmente independentes. Podemos então
afirmar que existem duas direções assintóticas linearmente independentes em pontos de S
onde a curvatura Gaussiana é negativa.
Se K(p) = 0 e H(p) 6= 0, então uma das curvaturas principais em p é zero e a outra é distinta
de zero, portanto
|Cos(θ)| = 0 ou |Sin(θ)| = 0,

logo a equação (3.8) possui duas soluções linearmente dependentes. Podemos portanto afir-
mar que só existe uma direção assintótica em pontos de S onde a curvatura Gaussiana é
zero e a curvatura média é distinta de zero.
Finalmente, se K(p) = 0 e H(p) = 0, então κ1 (p) = 0 = κ2 (p) e portanto a equação (3.8) é
trivialmente satisfeita por toda direção w ∈ Tp S. Assim, podemos afirmar que toda direção
tangente a pontos onde as curvaturas Gaussiana e média são nulas é assintótica, como por
exemplo no plano (exemplo 3.1.1).
Dada uma superfície regular S e uma aplicação de Gauss em torno de um ponto p ∈ S, se
define a indicatriz de Dupin em p, que denotamos por IndDp , como o conjunto dos vetores
w ∈ Tp S tais que IIp (w) = ±1. Logo, os vetores do plano tangente que formam parte da
indicatriz de Dupin devem satisfazer a seguinte equação

κ1 (p)w12 + κ2 (p)w22 = ±1, w ∈ IndDp . (3.9)

Sejam p ∈ S e w ∈ IndDp , vamos calcular a indicatriz de Dupin em p em relação ao sinal


da curvatura Gaussiana do ponto p em S. Distinguimos os seguintes casos:

1. Se K(p) > 0, então κ1 (p) e κ2 (p) têm o mesmo sinal pelas fórmulas (3.3). Podem
ocorrer duas possibilidades:

(a) Se κi (p) > 0, para i = 1, 2., então κ1 (p)w12 + κ2 (p)w22 = 1, ou equivalentemente


w12 w22
 2 +  2 = 1,
√1 √1
κ1 (p) κ2 (p)
96 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

o que implica que o conjunto IndDp é uma elipse com semi-eixo maior a =
p p
1/ κ1 (p) e semi-eixo menor b = 1/ κ2 (p).

(b) Se κi (p) < 0, para i = 1, 2., então κ1 (p)w12 + κ2 (p)w22 = −1, ou equivalentemente
w12 w22
 2 +  2 = 1,
√ 1 √ 1
−κ1 (p) −κ2 (p)

o que implica que o conjunto IndDp é de novo uma elipse, mas agora com semi-
p p
eixo maior a = 1/ −κ2 (p) e semi-eixo menor b = 1/ −κ1 (p).

2. Se K(p) < 0, então κ1 (p) e κ2 (p) têm sinais distintos pelas fórmulas (3.3) e portanto
κ1 (p) < 0 < κ2 (p). Logo a condição de Dupin κ1 (p)w12 + κ2 (p)w22 = ±1 é equivalente a
w22 w12
κ2 (p)w22 − (−κ1 (p))w12 = ±1 ⇐⇒  2 −  2 = ±1,
√1 √ 1
κ2 (p) −κ1 (p)

o que implica que o conjunto IndDp está formado por duas hipérbolas com equações

w22 w12 w12 w22


 2 −  2 = 1 e  2 −  2 = 1.
√1 √1 √ 1 √1
κ2 (p) −κ1 (p) −κ1 (p) κ2 (p)

Vemos que as direções das assíntotas às duas hipérbolas que formam o conjunto IndDp
em Tp S são direções assintóticas de S em p, ver figura 3.3. Com efeito, é tarefa simples
provar que as equações dessas retas, em termos das coordenadas do vetor w são
p
−κ1 (p)
w2 = ± p w1 . (3.10)
κ2 (p)

Se substituímos (3.10) na expressão da segunda forma fundamental em p de w nas


coordenadas relativas à base {e1 , e2 } temos que
p !2
−κ 1 (p)
IIp (w) = κ1 (p)w12 + κ2 (p)w22 = κ1 (p)w12 + κ2 (p) ± p w1 = 0.
κ2 (p)

Só resta usar a definição 3.1.4 e o estudo prévio das soluções da equação 3.8 para con-
cluir que nos pontos onde a curvatura Gaussiana é negativa, as direções das assíntotas
das hipérbolas IndDp são as únicas direções assintóticas que admite Tp S.

3. Se K(p) = 0, então existe i ∈ {1, 2} tal que κi (p) = 0, o qual da lugar a duas
possibilidades essencialmente distintas:
3.1. A APLICAÇÃO DE GAUSS. 97

Figura 3.3: Duas direções assintóticas.

(a) κj (p) 6= 0, j 6= i ∈ {1, 2}. Suponha que κ1 (p) = 0 e κ2 (p) > 0, então w1 ∈ R e
κ2 (p)w22 = ±1, ou equivalentemente
!2
1
w2 = ± p ,
κ2 (p)

que é constante em p, o que implica que o conjunto IndDp é um par de retas pa-
ralelas na direção e1 , ou seja, são duas retas horizontais na base {e1 , e2 }. Observe
que tal direção é uma direção assintótica de S em p. Com efeito, se v ∈ Tp S é uma
direção assintótica nesse contexto, se v = (v1 , v2 ) relativamente à base {e1 , e2 },
então 0 = IIp (v) = κ2 (p)v22 , o que implica que v2 = 0 é também constante em p
e paralela às retas que formam IndDp . O caso κ1 (p) < 0 e κ2 (p) = 0 é análogo e

Figura 3.4: Direções assintóticas na base de Tp S.

prova-se que IndDp está formado por duas retas paralelas na direção e2 , ou seja,
por duas retas verticais na base {e1 , e2 }. Em conclussão, nesse contexto podemos
afirmar que uma, e só uma, das direções principais da base {e1 , e2 } será direção
98 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

assintótica de S em p, e isso vai depender de qual das curvaturas principais é igual


a zero em p e pelo estudo prévio sobre as soluções de (3.8), essa é a única direção
assintótica que admite Tp S.

(b) Se κj (p) = 0, j 6= i ∈ {1, 2}, então a equação de Dupin não tem solução, o que
implica que o conjunto IndDp é vazio.
3.2. EXERCÍCIOS. 99

3.2 Exercícios.
1. Considere o parabolóide elíptico S = {(x, y, z) ∈ R3 : z = x2 + y 2 }. Estudar a segunda
forma fundamental no ponto p0 = (0, 0, 0) e calcular a curvatura de Gauss, a curvatura
média e as curvaturas principais de S em p0 .

2. Provar que uma superfície regular conexa e orientável cujas curvaturas de Gauss e
média são identicamente nulas deve ser um aberto de um plano.

3. Dados a matriz B simétrica não nula de ordem 3, o vetor b ∈ R3 e o número c ∈ R, se


define a quádrica regular S pelo conjunto

S = {p ∈ R3 : hBp, pi + 2hb, pi + c = 0}.

(a) Prove que a aplicação


Bp + b
N (p) = , ∀p ∈ S
|Bp + b|
é uma aplicação de Gauss definida em S.
(b) Prove que a segunda forma fundamental está dada por
hBv, vi
IIp (v) = − , ∀p ∈ S, ∀v ∈ Tp S.
|Bp + b|

(c) Use o anterior para deduzir que o elipsóide tem curvatura de Gauss positiva em
cada ponto.

4. Seja S uma superfície regular orientável e F : R3 −→ R3 dada por F (p) = Ap + b, para


cada p ∈ R3 , onde A ∈ O(3) e b ∈ R3 .

(a) Se NS é uma aplicação de Gauss para S, provar que

NF (S) = A ◦ NS ◦ F −1 ,

é uma aplicação de Gauss para a superfície F (S).


(b) Prove que
d(NF (S) )F (p) = A ◦ d(NS )p ◦ A−1

e que
II
fF (p) (dFp (v)) = IIp (v),

para cada p ∈ S e cada v ∈ Tp S, onde IIp é a segunda forma fundamental de S


em p, e II
fF (p) é a segunda forma fundamental de F (S) em F (p).
100 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

(c) Expresse explicitamente a relação entre as curvaturas principais e a curvatura de


Gauss de ambas superfícies.

(d) Justifique a seguinte afirmação «A segunda forma fundamental de uma superfície


regular é invariante por movimentos rígidos do espaço».
3.3. O SINAL DA CURVATURA GAUSSIANA. 101

3.3 O sinal da curvatura Gaussiana.


O teorema 3.1.2 de Meusnier permite escolher, de entre todas as curvas em uma superfície
S que passam por um ponto p com igual vetor tangente, aquelas cujo vetor normal associado
está na direção do vetor normal unitário à superfície nesse ponto, ou seja, que está contido
na correspondente reta normal.
Considere S uma superfície regular orientada, p ∈ S e N : S −→ S2 a aplicação de
Gauss. Para um dado vetor tangente unitário v ∈ Tp S, consideramos o plano Pv gerado
pelos vetores v e N (p). Observe que, como p ∈ S ∩ Pv , se para algum v ∈ Tp S ocorresse a
igualdade Pv = Tp S, isso implicaria que N (p) ∈ Tp S, o que é absurdo. Assim, o conjunto
{Pv : v ∈ Tp S} é um feixe de planos os quais cortam transversalmente à superfície e cujo
eixo é a reta normal a S em p. É claro então que cada plano Pv do feixe corta à superfície
seguindo uma certa curva regular que passa pelo ponto p. Tal curva é chamada de seção
normal à superfície no ponto p na direção de v.

Figura 3.5: Secções normais a S em p.

A proposição 3.1.2 e o teorema 3.1.2 fornecem uma interessante interpretação dos valores
da segunda forma fundamental em termos da curvatura de uma seção normal em cada ponto
de uma superfície. Observe que uma seção normal Pv ∩ S é uma curva plana e que o
correspondente vetor normal no ponto p está contido no plano Pv . Como N (p) está também
nesse plano e N (p) ⊥ v, dado que n ⊥ v temos que n e N (p) estão na mesma direção, logo n
está contido na reta normal a S que passa pelo ponto p. Assim, e trocando a orientação de S
se fosse necessário, a proposição 3.1.2 nos permite afirmar que a segunda forma fundamental
102 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

de S em p coincide com a curvatura da seção normal em p, grandeza que coincide com a


curvatura normal no ponto p pelo teorema 3.1.2 de Meusnier. Aplicando esses resultados
em alguns dos exemplos tratados nas secções anteriores, vemos que as secções normais do
plano são sempre retas, logo as curvaturas normais são todas nulas e portanto IIp ≡ 0 em
todo ponto p do plano. Na esfera unitária convenientemente orientada, as secções normais
são grandes círculos cuja curvatura normal é constantemente igual a 1, logo IIp ≡ 1 para
todo ponto p da esfera.
Em segundo lugar, e tendo em conta o resultado de comparação provado no exercício 8 da
seção 1.5, podemos dar uma interpretação geométrica ao sinal da segunda forma fundamental
em uma dada direção. De fato, se IIp (v) > 0 para uma direção v ∈ Tp S, então a seção normal
correspondente S ∩ Pv está, localmente, do lado do plano tangente ao qual aponta o vetor
normal N (p). Reciprocamente, se a seção normal S ∩ Pv correspondente a uma certa direção
v ∈ Tp S está, localmente, do lado do plano tangente ao qual aponta o vetor normal N (p),
então IIp (v) ≥ 0. Certamente, também são verdade as afirmações análogas que podem-se
formular para o sinal negativo.
Em cada ponto de uma superfície, o determinante da segunda forma fundamental é a

Figura 3.6: Sinal da segunda forma fundamental em um ponto.

curvatura Gaussiana no ponto e o sinal de IIp está controlado pelo determinante da sua
matriz associada. Assim, quando a curvatura de Gauss é positiva em um ponto p ∈ S,
então IIp deve ser positiva ou negativa definida, e provaremos neste capítulo que existe uma
vizinhança em S de um ponto p nessas condições cujos pontos encontram-se de um mesmo
lado do correspondente plano tangente (teorema 3.3.2), igual que acontece nos elipsóides
(exemplo 2.1.5). É por causa disso que os pontos de uma superfície cuja curvatura de Gauss
é positiva são chamados de pontos elípticos. Em resumo, podemos afirmar que:

«Em um ponto elíptico de uma superfície, todas as secções normais ficam, local-
3.3. O SINAL DA CURVATURA GAUSSIANA. 103

mente, ao mesmo lado do correspondente plano tangente.»

Figura 3.7: Um ponto elíptico. Figura 3.8: Um ponto hiperbólico.

Quando a curvatura Gaussiana é negativa em um ponto p ∈ S, a segunda forma fundamen-


tal é não-semidefinida ou indefinida. Nesses pontos, as curvaturas principais possuem sinais
distintos e portanto as secções normais correspondentes às direções principais estão local-
mente de ambos lados do plano tangente Tp S, igual que acontece no parabolóide hiperbólico
(exemplo 2.1.8). Chamamos aos pontos de S cuja curvatura de Gauss é negativa de pontos
hiperbólicos. Podemos afirmar que (teorema 3.3.2):

«Em cada vizinhança de um ponto hiperbólico de uma superfície, existem pontos


em ambos semi-espaços abertos determinados pelo correspondente plano tan-
gente.»

Os pontos de S onde a curvatura de Gauss é nula são chamados de pontos parabólicos se


IIp não é identicamente nula, ou de pontos planares se IIp ≡ 0. Na seção 3.1 estudamos as
soluções da equação das direções assintóticas (3.8) em relação ao sinal das curvaturas de S
em p, chegando à seguinte conclusão:

1. Se p é um ponto elíptico de S, então não existem direções assintóticas em Tp S.

2. Se p é um ponto hiperbólico de S, então admite duas direções assintóticas linearmente


independentes em Tp S, que são as direções das assíntotas da indicatriz de Dupin.

3. Se p é um ponto parabólico de S, então admite uma única direção assintótica em Tp S,


que coincide com uma das direções principais do plano tangente.

4. Se p é um ponto plano de S, então toda direção em Tp S é assintótica.


104 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

Pelo visto na observação 3.1.3, as curvaturas principais de S em p são o maior e o menor


autovalor do endomorfismo de Weingarten em p e fornecem os valores máximo e mínimo da
segunda forma fundamental de S em p. Logo, as curvaturas principais e as direções principais
de uma superfície em um ponto podem-se caracterizar assim:

«Se as curvaturas principais são iguais em um ponto p ∈ S, todas as secções


normais de S em p possuem a mesma curvatura. Se não fosse assim, as direções
principais de S em p correspondem-se às duas secções normais de maior e menor
curvatura.»

É por causa disso que um ponto de S tal que κ1 (p) = κ2 (p) é chamado de ponto umbílico.
A superfície pode-se enxergar igualmente curvada em qualquer direção desde um ponto
umbílico. Observe que em cada ponto umbílico de S, existe uma base de direções principais
de maneira que a diferencial da aplicação de Gauss é uma homotetia do plano tangente Tp S,
ou seja, que
dNp (w) = κp w, ∀w ∈ Tp S,

sendo κp = κ1 (p) = κ2 (p), o que implica que, nesses pontos, a segunda forma fundamental é
proporcional à primeira forma fundamental. É claro da definição que os pontos hiperbólicos
e os pontos parabólicos não podem ser umbílicos.
Uma superfície é dita totalmente umbílica se todo ponto dela é um ponto umbílico. Se todo
ponto de uma superfície é umbílico, então existe uma função λ : U −→ R tal que

dNX(u,v) = λ(u, v) · idTX(u,v) S ,

pelo observado acima.


Nos exemplos 3.1.1 e 3.1.2, já vimos que os planos e as esferas são exemplos totalmente
umbílicos, além de que os pontos do plano são todos planares e os pontos da esfera são todos
elípticos. Os pontos do cilindro circular reto são todos parabólicos, ver exemplo 3.1.4. Nos
exemplos 3.1.3 e 3.1.5 vemos que o ponto (0, 0, 0) é hiperbólico no helicóide e no parabolóide
hiperbólico, respectivamente. Os seguintes dois resultados provam que o plano e a esfera são
os únicos exemplos conexos possíveis.

Lema 3.3.1. Seja S uma superfície conexa tal que cada um dos seus pontos tem uma vizi-
nhança aberta contida em um plano ou em uma esfera, então S está contida em um plano
ou em uma esfera.
3.3. O SINAL DA CURVATURA GAUSSIANA. 105

Demonstração. Da hipótese, temos que se p ∈ S, existem um aberto Vp ⊂ S e um plano ou


uma esfera Sp tais que p ∈ Vp e Vp ⊂ Sp . Se para dados p, q ∈ S as vizinhanças Vp e Vq se
cortam, temos que
∅=
6 Vp ∩ Vq ⊂ Sp ∩ Sq ∩ S.

Argumentamos por absurdo: suponha que Sp 6= Sq , então Sp ∩ Sq só pode ser igual ao


conjunto vazio, ou a um ponto, ou a uma reta ou a uma circunferência pela hipótese. Como
Vp ∩ Vq é um aberto não vazio de S, existem uma bola aberta U ⊂ R2 , um aberto V ⊂ Vp ∩ Vq
e um homeomorfismo X|U : U −→ V . Tal homeomorfismo pode-se obter restringindo uma
parametrização local X de S em torno de algum ponto de p̃ ∈ Vp ∩ Vq a uma bola do plano U
tal que X −1 (p̃) ⊂ U . Porém, isso é um absurdo, pois o conjunto V só pode encaixar dentro
de alguma das seguintes quatro possibilidades: V = ∅, ou V = {q̃} para certo q̃ ∈ S, ou V é
uma porção de reta ou V é uma porção de circunferência, que não podem ser homeomorfos
a uma bola aberta de R2 . Logo, se Vp ∩ Vq 6= ∅, então Sp = Sq .
Dado a ∈ S fixado, definimos o conjunto A = {p ∈ S : Sp = Sa }. Vamos demonstrar
que A = S, o qual é suficiente para poder concluir, pois de ser assim, a superfíce S estaria
contida no plano ou na esfera Sa . Com efeito, A 6= ∅ pois a ∈ A. Se tomamos p ∈ A,
então existe um aberto Vp de S tal que Vp ⊂ Sp e se q ∈ Vp é um ponto arbitrário, então
Vp ∩ Vq 6= ∅, o que implica que Sq = Sp = Sa , logo Vp ⊂ A e, portanto, A é aberto em S.
Por outro lado, tome uma sequência {pn } ⊂ A convergente a um ponto p ∈ S, então existe
N ∈ N tal que pn ∈ Vp , ∀n ≥ N . Em particular pN ∈ VpN ∩ Vp , o que implica que SpN = Sp
e como pN ∈ A, temos que Sp = Sa , logo p ∈ A e portanto A é fechado em S. Como S é
conexo, então A = S como queríamos provar, ver [8, prop. 6.1.3].

Teorema 3.3.1 (Classificação das superfícies conexas totalmente umbílicas.). As únicas


superfícies conexas de R3 que são totalmente umbílicas são abertos de esferas e de planos.

Demonstração. Seja U ⊂ R2 um aberto conexo, X : U −→ S uma parametrização local de


S e N um campo normal unitário sobre X(U ) ⊂ S. Considere a função λ(u, v) definida em
U como acima, pelas igualdades (3.2) temos que

(N ◦ X)u = λXu ,
(3.11)
(N ◦ X)v = λXv ,

em U . Multiplicando escalarmente a primeira igualdade acima por Xu , temos que


1
λ= h(N ◦ X)u , Xu i,
E
106 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

que é uma função diferenciável, pois E nunca se anula em U . Assim, podemos derivar as
igualdades (3.11) e temos que

(N ◦ X)uv = λv Xu + λXuv ,
(N ◦ X)vu = λu Xv + λXvu ,

o que implica que λv Xu = λu Xv pelo teorema de Schwarz. Temos então uma combinação
linear dos vetores linearmente independentes Xu e Xv igualada a zero, o que significa que
λu ≡ 0 e λv ≡ 0 e portanto, dado que U é conexo, a função λ é constante pelo teorema
fundamental do cálculo e
dNX(u,v) = λ · idTX(u,v) S ,

para todo (u, v) ∈ U .


Se λ = 0, então N é constante em U . Tendo em conta a observação 3.1.1, para cada
(u, v) ∈ U temos que

(hX(u, v), N i)u = hXu (u, v), N i + hX(u, v), Nu i = 0,


(hX(u, v), N i)v = hXv (u, v), N i + hX(u, v), Nv i = 0,

pelas igualdades (3.11). Logo a função hX(u, v), N i é constante em U . Observando o exemplo
2.1.1, se X(u, v) = (x(u, v), y(u, v), z(u, v)) e N = (A, B, C), então existe um número real D
tal quehX(u, v), N i = Ax(u, v) + By(u, v) + Cz(u, v) = D para todo (u, v) ∈ U . Portanto,
X(U ) está totalmente contido no plano N ⊥ e como S é conexa, então S está contida em um
plano pelo lema 3.3.1, como queríamos provar.
Se λ 6= 0, de novo pelas igualdades (3.11) temos que
1 1
Xu − (N ◦ X)u = (X − (N ◦ X))u = 0,
λ λ (3.12)
1 1
Xv − (N ◦ X)v = (X − (N ◦ X))v = 0,
λ λ
o que implica que existe um vetor constante p0 ∈ R3 tal que X − λ1 (N ◦ X) = p0 em U , por
tanto
1 1
|X − p0 | = | (N ◦ X)| = ,
λ λ
em U , por tanto X(U ) está totalmente contido na esfera de centro p0 e raio 1/λ. Como S é
conexa, então S está contida em uma esfera pelo lema 3.3.1, o que conclui a demonstração.

Observação 3.3.1. Observe que, se S fosse não conexa, então o teorema acima pode-se aplicar
a cada uma das componentes conexas de S.
3.3. O SINAL DA CURVATURA GAUSSIANA. 107

A seguir apresentamos uma interessante interpretação geométrica da segunda forma fun-


damental em relação à função altura descrita no exemplo 2.3.3. Suponha S uma superfície e
f : S −→ R uma aplicação diferenciável.

Definição 3.3.1. Seja f : S −→ R uma aplicação diferenciável e p ∈ S um ponto crítico de


f . Se define o hessiano de f em p como uma aplicação d2 fp : Tp S −→ R dada por

d2
d2 fp (w) = (f ◦ αw )(t), ∀w ∈ Tp S,
dt2 |t=0
onde αw : (−, ) −→ S é uma curva sobre a superfície tal que α(0) = p e α0 (0) = w para
cada w ∈ Tp S.

Lema 3.3.2. A aplicação d2 fp : Tp S −→ R está bem definida em cada ponto crítico p ∈ S


de f , isto é, a definição acima independe da escolha da curva αw . Além disso possui as
seguintes propriedades:

1. d2 fp é uma forma quadrática sobre o plano tangente Tp S.

2. Se p é um máximo local de f (resp. um mínimo local), então a forma quadrática d2 fp


é negativa semi-definida (resp. positiva semi-definida).

3. Se a forma quadrática d2 fp é negativa definida (resp. positiva definida), então p é um


máximo local isolado (resp. um mínimo local isolado) de f .

Demonstração. Seja X : U ⊂ R2 −→ S uma parametrização local de S em torno do ponto


crítico p e q ∈ U tal que X(q) = p. Tomando  > 0 suficientemente pequeno, podemos supor
que αw (−, ) ⊂ X(U ). Considere a curva β(t) = (X −1 ◦ αw )(t) = (u(t), v(t)), então

(f ◦ αw )(t) = (f ◦ X) ◦ (X −1 ◦ αw )(t) = (f ◦ X)(u(t), v(t)).

Se derivamos duas vezes em relação a t em t = 0, pela regra da cadeia tem-se que


0
(f ◦ αw )00 (0) = ((f ◦ X)u (q)u0 (0) + (f ◦ X)v (q)v 0 (0))
= (f ◦ X)uu (q)(u0 (0))2 + (f ◦ X)vu (q)u0 (0)v 0 (0) + (f ◦ X)u (q)u00 (0)
+ (f ◦ X)uv (q)u0 (0)v 0 (0) + (f ◦ X)vv (q)(v 0 (0))2 + (f ◦ X)v (q)v 00 (0).

Por outro lado, pela regra da cadeia (teorema 2.5.1) podemos afirmar que

(f ◦ X)u (q) = d(f ◦ X)q (e1 ) = dfX(q) (dXq (e1 )) = dfp (Xu ) = 0,
(f ◦ X)v (q) = d(f ◦ X)q (e2 ) = dfX(q) (dXq (e2 )) = dfp (Xv ) = 0,
108 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

pois p é crítico de f , ver observação 2.1.1. Portanto, usando o teorema de Schwarz podemos
afirmar que

(f ◦ αw )00 (0) = (f ◦ X)uu (q)(u0 (0))2 + 2(f ◦ X)uv (q)u0 (0)v 0 (0) + (f ◦ X)vv (q)(v 0 (0))2 , (3.13)

o que implica que a definição de d2 fp é uma boa definição, pois basta observar que (u0 (0), v 0 (0)) =
β 0 (0) = dXp−1 (w) independe da curva αw .
O item 1 está provado, pois (3.13) corresponde-se a uma forma quadrática de Tp S em R com
matriz associada !
2 (f ◦ X)uu (q) (f ◦ X)uv (q)
d fX(q) = .
(f ◦ X)uv (q) (f ◦ X)vv (q)
Para provar o item 2, se p é um extremo de f , então a função (f ◦ α) possui um extremo
em t = 0 (ver definição na seção 2.5). Logo d2 fp (w) = (f ◦ α)00 (0) ≤ 0 se p é um máximo ou
d2 fp (w) = (f ◦ α)00 (0) ≥ 0 se p é um mínimo, o que implica que a matriz d2 fp é semi-definida.
Para provar o item 3, basta olhar para os cálculos feitos no início da demonstração. Se d2 fp é
negativa definida (resp. positiva definida) no ponto crítico p, então q é ponto crítico da função
f ◦ X : U ⊂ R2 −→ R cuja matriz hessiana associada é negativa definida (resp. positiva
definida). Podemos concluir a prova usando o correspondente resultado para funções do
cálculo e, de novo, a definição de extremo em uma função real definida sobre uma superfície
regular.

Seja h : S −→ R a função altura, ver exemplo 2.3.3 respeito de um plano que passa por
um ponto p0 que tem campo normal unitário constante a ∈ R3 . Se p é um ponto crítico de
h, pelo exemplo 2.5.6 temos que a ⊥ Tp S e portanto podemos supor que N (p) = a para uma
certa aplicação de Gauss local N . Se w ∈ Tp S e α é uma curva em S tal que α(0) = p e
α0 (0) = w, então
d2
d2 hp (w) = (h ◦ α)00 (0) = hα(t) − p0 , ai = hα00 (0), N (p)i.
dt2 |t=0
Logo d2 hp (w) = IIp (w) pela proposição 3.1.2. Note que todo ponto p ∈ S é crítico para a
função altura respeito do correspondente plano tangente. Acabamos de provar o seguinte
resultado.

Proposição 3.3.1. A segunda forma fundamental IIp de uma superfície S em um dado


ponto p relativamente a uma eleição do vetor normal N (p) não é outra coisa que o hessiano
d2 hp da função altura h(p̃) = hp̃ − p0 , N (p)i, p̃ ∈ S, p0 ∈ R3 , relativamente ao plano paralelo
ao plano tangente Tp S que passa por p0 , para qualquer p0 ∈ R3 .
3.3. O SINAL DA CURVATURA GAUSSIANA. 109

Combinando o lema 3.3.2 e a proposição 3.3.1, podemos enunciar formalmente a seguinte


propriedade dos pontos elípticos e hiperbólicos de uma superfície regular S.

Teorema 3.3.2. Seja p um ponto de uma superfície regular S e K a correspondente função


curvatura de Gauss. Então:

1. Se p é elíptico (K(p) > 0), existe uma vizinhança de p em S que fica de um mesmo
lado do plano tangente Tp S. Além disso, p é o único ponto de contato dessa vizinhança
com Tp S.

2. Se p é hiperbólico (K(p) < 0), toda vizinhança de p em S existem pontos de S de


ambos lados do plano tangente Tp S.

Exemplo 3.3.1. A função distância ao quadrado de uma superfície S a um ponto p0 ∈ R3


já foi definida no exemplo 2.3.4 como a aplicação g(p) = hp − p0 , p − p0 i, para cada p ∈ S.
Podemos deduzir facilmente a partir do exemplo 2.5.7, que um ponto p é crítico para g se e
somente se p0 está na reta normal a S que passa por p, isto é, se existe λ ∈ R tal que

p0 = p + λN (p).

Usando isto, para w ∈ Tp S e α uma curva em S representativa de p e w, temos que

d2 d
d2 gp (w) = 2
|α(t) − p 0 |2
= (2hα0 (t), α(t) − p0 i)
dt |t=0 dt |t=0
= 2 (hα00 (0), α(0) − p0 i) + 2 (hα0 (0), α0 (0)i)
= −2λ (hα00 (0), N (p)i) + 2|w|2

Usando de novo a proposição 3.1.2 temos a seguinte expressão para a diferencial da função
distância ao quadrado em termos da segunda forma fundamental da superfície em um ponto
crítico p da mesma
d2 gp (w) = 2 |w|2 − λIIp (w) .


Na lista de exercícios podemos encontrar algumas aplicações dos resultados vistos na


seção que envolvem as funções altura e distância ao quadrado e a topologia da superfície.
110 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

3.4 Exercícios
1. Suponha que uma superfície S e um plano Π são tangentes ao longo de uma curva
regular. Prove que todos os pontos de S ∩ Π são parabólicos ou planares.

2. Se uma superfície S contem uma reta, prove que todos os pontos dessa reta possuem
curvatura Gaussiana não-positiva.

3. Prove que não existem superfícies compactas com curvatura de Gauss negativa em
todo ponto.

4. Seja S uma superfície e p ∈ S. Prove que p é um ponto elíptico se e somente se existe


p0 ∈ R3 tal que p é um máximo local para a função distância ao quadrado.

5. Prove que não existem superfícies compactas com curvatura de Gauss não positiva em
todo ponto.
3.5. CONTINUIDADE DAS CURVATURAS. 111

3.5 Continuidade das curvaturas.


Temos definido uma forma quadrática sobre o plano tangente em cada ponto de uma
superfície regular, a segunda forma fundamental, a qual fornece informações importantes
relativamente à geometria da superfície em uma vizinhança de cada ponto. Associadas à
segunda forma fundamental aparecem as funções curvatura de Gauss K e curvatura média H,
as quais jogam um papel análogo à curvatura κ e a torção τ da teoria local de curvas no espaço
e aparecem naturalmente como funções diferenciáveis dos pontos da curva. Estudaremos
nessa seção a regularidade da segunda forma fundamental e, em consequência, das funções
K e H quando passamos de um ponto para outro na superfície. A fins de simplificar a
notação e facilitar a leitura, vamos pensar que todas as funções que aparecem daqui em
diante indicam seus valores em p, a menos que seja dito o contrário.
Considere coordenadas locais X : U ⊂ R2 −→ S em torno de um dado ponto p ∈ S
arbitrário e α(t) = X(u(t), v(t)), com t em um aberto I ⊂ R, uma curva em S tal que
α(0) = p. Como já vimos em secções anteriores, α0 (t) ∈ Tα(t) S e α0 (t) = u0 (t)Xu + v 0 (t)Xv ,
∀t ∈ I, e portanto

dNα(t) (α0 (t)) = (N ◦ α)0 (t) = u0 (t)Nu + v 0 (t)Nv , ∀t ∈ I.

Em particular, se v ∈ Tp S é tal que α0 (0) = v, então v = u0 (0)Xu + v 0 (0)Xv = u0 Xu + v 0 Xv e

dNp (v) = (N ◦ α)0 (0) = u0 Nu + v 0 Nv . (3.14)

Vimos na seção 3.1 que os vetores Nu e Nv são tangentes à superfície em cada ponto, logo
existem funções diferenciáveis aij : U −→ R, i, j = 1, 2, tais que

Nu = a11 Xu + a12 Xv ,
(3.15)
Nv = a21 Xu + a22 Xv .

Então
dNp (v) = (a11 u0 + a21 v 0 )Xu + (a12 u0 + a22 v 0 )Xv . (3.16)

Logo a aplicação dNp em coordenadas relativamente à base {Xu , Xv } pode-se expressar como
! !
0 0 a11 a21 u0
dNp (u , v ) = · .
a12 a22 v0

Pela igualdade (3.14), é um simples cálculo conferir que a segunda forma fundamental de S
em p pode ser representada em coordenadas na base {Xu , Xv }. Com efeito, pela definição
112 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

3.1.2 tem-se que

IIp (α0 ) = h−dNp (α0 ), α0 i = −hu0 Nu + v 0 Nv , u0 Xu + v 0 Xv i


= −hNu , Xu i(u0 )2 − hNu , Xv iu0 v 0 − hNv , Xu iu0 v 0 − hNv , Xv i(v 0 )2 .

Como hN, Xu i = 0 e hN, Xv i = 0 pela própria definição de N , se derivamos parcialmente


ambas igualdades vemos que

0 = hNu , Xu i + hN, Xuu i,


0 = hNv , Xu i + hN, Xuv i,
0 = hNu , Xv i + hN, Xvu i,
0 = hNv , Xv i + hN, Xvv i,

e portanto

−hNu , Xu i = hN, Xuu i,


−hNv , Xu i = hN, Xuv i = hN, Xvu i = −hNu , Xv i,
−hNv , Xv i = hN, Xvv i,

onde foi usado o teorema de schwarz na segunda igualdade. Se denotamos por e = IIp (Xu ) =
hN, Xuu i, f = hN, Xuv i e g = IIp (Xv ) = hN, Xvv i, é immediato que as funções e, f e g são
diferenciáveis e tais que

IIp (α0 ) = e(u0 )2 + 2f u0 v 0 + g(v 0 )2 . (3.17)

Vemos que podemos expressar as funções e, f e g em termos da base {Xu , Xv }:

1 1
e = hN, Xuu i = hXu ∧ Xv , Xuu i = det(Xu ; Xv ; Xuu ),
|Xu ∧ Xv | |Xu ∧ Xv |
1 1
f = hN, Xuv i = hXu ∧ Xv , Xuv i = det(Xu ; Xv ; Xuv ), (3.18)
|Xu ∧ Xv | |Xu ∧ Xv |
1 1
g = hN, Xvv i = hXu ∧ Xv , Xvv i = det(Xu ; Xv ; Xvv ),
|Xu ∧ Xv | |Xu ∧ Xv |

onde det(a; b; c) denota o produto mixto ha ∧ b, ci, que pode-se calcular como o determinante
da matriz quadrada formada pelos vetores coluna a, b e c de R3 .
Usando as igualdades (3.15), podemos expressar os coeficientes e, f e g, que são chamados
de coeficientes da segunda forma fundamental de S em p, em função dos coeficientes da
3.5. CONTINUIDADE DAS CURVATURAS. 113

primeira forma fundamental. Isto é

−e = hNu , Xu i = a11 E + a12 F,


−f = hNv , Xu i = a21 E + a22 F,
(3.19)
−f = hNu , Xv i = a11 F + a12 G,
−g = hNv , Xv i = a21 F + a22 G,

onde E, F e G são os coeficientes da primeira forma fundamental de S em p na base {Xu , Xv },


que sabemos são diferenciáveis. As relações (3.19) em forma matricial ficam assim
! ! !
e f a11 a12 E F
− = · , (3.20)
f g a21 a22 F G

o que implica que


! ! !−1 ! !
a11 a12 e f E F −1 e f G −F
=− · = · ,
a21 a22 f g F G EG − F 2 f g −F E

onde foi usado que EG − F 2 = |Xu ∧ Xv |2 6= 0. Daí decorrem as expressões dos coeficientes
de dNp na base {Xu , Xv }:
f F − eG eF − f E gF − f G f F − gE
a11 = 2
, a12 = 2
, a21 = 2
, a22 = , (3.21)
EG − F EG − F EG − F EG − F 2
chamadas de equações de Weingarten. Se substituímos essas equações nas correspondentes
expressões em termos dos coeficientes da primeira e da segunda formas fundamentais, após
um cálculo simples é possível dar uma expressão das curvaturas K e H no ponto p em um
sistema de coordenadas locais
eg − f 2 1 1 eG − 2f F + gE
K(p) = det(−dNp ) = e H(p) = tr(−dNp ) = , (3.22)
EG − F 2 2 2 EG − F 2
donde podemos concluir que K e H são funções diferenciáveis de U ⊂ R2 em X(U ) ⊂ S, para
cada parametrização local X : U −→ R3 de S. Logo podemos concluir que as curvaturas de
Gauss e média são funções diferenciáveis na superfície e, mesmo seja um abuso de notação,
em diante as denotaremos assim:

K(p) = K(X(u, v)) ≡ K(u, v),


H(p) = H(X(u, v)) ≡ H(u, v).

As expressões acima fornecem um método de cálculo da diferencial da aplicação de Gauss


em cada ponto em termos de coordenadas locais e das correspondentes curvaturas associadas,
114 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

o qual facilita em grande medida o estudo das funções geométricas associadas às superfícies.
Na seção 3.1, vimos que as curvaturas principais podem-se representar em termos de K e H
p
pela igualdade (3.4), isto é κi (p) = H(p) ± H 2 (p) − K(p), para i = 1, 2, pois são as raízes
reias da equação característica
0 = dNp − λI2 , (3.23)

associada à diferencial da aplicação de Gauss em cada ponto p, a qual é uma aplicação


linear auto-adjunta cuja matriz simétrica associada é diagonalizável. A regularidade da
superfície garante que a equação (3.23) possui duas soluções reais, então podemos concluir
que H 2 (p) ≥ K(p) em cada ponto p de qualquer superfície regular e a igualdade se consegue
só nos pontos umbílicos da mesma. Assim, em relação à regularidade das duas curvaturas
principais, pode-se garantir que as funções κ1 e κ2 são contínuas em S e diferenciáveis no
aberto de S formado pelos pontos não umbílicos de S. De igual maneira que nas funções
K e H, usualmente cometeremos o mesmo abuso de notação com as funções curvaturas
principais:
κi (p) = κi (X(u, v)) ≡ κi (u, v), i = 1, 2.

As fórmulas desenvolvidas acima nos permitem calcular as curvaturas de Gauss e média,


assim como as curvaturas principais, em um aberto de S coberto por uma parametrização
local em termos de funções simples obtidas a partir da própria parametrização. Ocorre com
frequência que uma superfície pode ser coberta por uma única parametrização, por exemplo
o plano, os gráficos de funções diferenciáveis, etc. Quando não é assim, existe uma grande
quantidade de exemplos onde cada superfície pode ser coberta totalmente por uma única
parametrização a menos de um subconjunto de medida nula, como por exemplo a família dos
elipsóides, das superfícies de revolução, etc. Assim, pela continuidade das funções curvatura
K, H, κ1 e κ2 , a expressão explícita obtida em coordenadas locais é ainda válida globalmente
em esse tipo de superfícies.

Exemplo 3.5.1. O parabolóide elíptico.


Seja S = {(x, y, z) ∈ R3 : 2z = x2 + y 2 )}. A superfície S é o gráfico da função f (x, y) =
(1/2)(x2 + y 2 ), para todo (x, y) ∈ R2 . Assim, a função X : R2 −→ S dada por
 
1 2
X(u, v) = u, v, (u + v ) , ∀(u, v) ∈ R2 ,
2
2

cobre totalmente o parabolóide elíptico S, ver exemplo 2.1.8. Em primeiro lugar, calculamos
3.5. CONTINUIDADE DAS CURVATURAS. 115

as derivadas parciais primeiras e segundas de X:

Xu (u, v) = (1, 0, u) ,
Xv (u, v) = (0, 1, v) ,
Xuu (u, v) = (0, 0, 1) ,
Xuv (u, v) = (0, 0, 0) ,
Xvv (u, v) = (0, 0, 1) ,
Xu ∧ Xv = (−u, −v, 1).

Assim, usando as fórmulas (2.6) e (3.18), podemos expressar explicitamente as funções coe-
ficientes da primeira e da segunda formas fundamentais de S em cada ponto p = X(u, v):

E(u, v) = 1 + u2 ; F (u, v) = uv; G(u, v) = 1 + v 2 ;


1 1
e(u, v) = √ ; f (u, v) = 0; g(u, v) = √ ;
1 + u2 + v 2 1 + u2 + v 2
O que implica que
1 2 + u2 + v 2
K(u, v) = e H(u, v) = .
(1 + u2 + v 2 )2 2(1 + u2 + v 2 )3/2

Observe que todo ponto do parabolóide elíptico é mesmo um ponto elíptico, pois K(p) > 0
para todo p ∈ S.

Exemplo 3.5.2. O helicóide.


A superfície S = X(R2 ), onde X : R2 −→ R3 é a aplicação dada por

X(u, v) = (vCos(u), vSin(u), au), ∀(u, v) ∈ R2 ,

e para um dado a ∈ R∗ é um helicóide o qual fica totalmente coberto pela parametrização


X, ver exemplo 2.7.4. Igual que no exemplo anterior, podemos calcular suas curvaturas de
Gauss e média em função dos parâmetros u e v:

Xu (u, v) = (−vSin(u), vCos(u), a) ,


Xv (u, v) = (Cos(u), Sin(u), 0) ,
Xuu (u, v) = (−vCos(u), −vSin(u), 0) ,
Xuv (u, v) = (−Sin(u), Cos(u), 0) ,
Xvv (u, v) = (0, 0, 0) ,
Xu ∧ Xv = (−aSin(u), aCos(u), −v),
116 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

logo

E(u, v) = a2 + v 2 ; F (u, v) = 0; G(u, v) = 1;


a
e(u, v) = 0; f (u, v) = √ ; g(u, v) = 0;
a2 + v 2
O que implica que  2
a
K(u, v) = − e H(u, v) = 0.
a2 + v 2
Observe que a curvatura média do helicóide é identicamente nula e que todos os seus pontos
são hiperbólicos, pois K(p) < 0 para todo p ∈ S.
Exemplo 3.5.3. O toro.
Para os dados números reais 0 < r < R, considere a parametrização

X(u, v) = ((rCos(u) + R)Cos(v), (rCos(u) + R)Sin(v), rSin(u)) , 0 < u < 2π, 0 < v < 2π,

que cobre o toro T em quase todo ponto como já vimos no exemplo 2.1.9. No exemplo 2.7.8
já foram calculamos os coeficientes da primeira forma fundamental:

E = r2 ,
F = 0,
G = (rCos(u) + R)2 .

Calculamos agora os coeficientes da segunda forma fundamental. Para isso precisamos das
derivadas parciais de X primeiras e segundas:

Xu (u, v) = (−rSin(u)Cos(v), −rSin(u)Sin(v), rCos(u)) ,


Xv (u, v) = (−(rCos(u) + R)Sin(v), (rCos(u) + R)Cos(v), 0) ,
Xuu (u, v) = (−rCos(u)Cos(v), −rCos(u)Sin(v), −rSin(u)) ,
Xuv (u, v) = (rSin(u)Sin(v), −rSin(u)Cos(v), 0) ,
Xvv (u, v) = (−(rCos(u) + R)Cos(v), −(rCos(u) + R)Sin(v), 0) ,
Xu ∧ Xv = (−rCos(u)Cos(v)(rCos(u) + R), −rCos(u)Sin(v)(rCos(u) + R),
−rSin(u)(rCos(u) + R)) .

logo
e(u, v) = r; f (u, v) = 0; g(u, v) = Cos(u)(rCos(u) + R);

e portanto
Cos(u) R
K(u, v) = e H(u, v) = Cos(u) + .
r(rCos(u) + R) 2r
3.5. CONTINUIDADE DAS CURVATURAS. 117

Observe que o sinal de K(p) depende só do sinal de Cos(u), pois rCos(u) + R ≥ −r + R > 0,
logo podemos classificar os pontos do toro segundo o sinal da curvatura Gaussiana em cada
um deles. Nos paralelos X(π/2, v) e X(3π/2, v), para todo 0 < v < π/2, tem-se que K(p) = 0
e que H(p) = R/2r 6= 0, logo os pontos desses paralelos são todos parabólicos. Além disso, se
π/2 < u < 3π/2, os pontos p = X(u, v) são tais que K(p) < 0, logo são pontos hiperbólicos.
Finalmente, se 0 < u < π/2 ou 3π/2 < u < 2π, então os pontos p = X(u, v) são elípticos,
pois K(p) > 0 neles.

Figura 3.9: Curvatura Gaussiana dos pontos do toro.

Para qualquer superfície S, já provamos no teorema 3.3.2 que existe uma vizinhança em
S em torno de cada ponto elíptico p de uma superfície de maneira que a vizinhança fica
totalmente de um único lado do correspondente plano tangente sendo p o único ponto de
contacto entre a vizinhança e o plano; também provamos que toda vizinhança em S em
torno de um ponto hiperbólico possui pontos de ambos lados do mencionado plano. Em geral
não podemos dar uma afirmação desse estilo para vizinhanças de pontos parabólicos nem
planares como veremos nos seguintes exemplos.
Em primeiro lugar, se visamos para os pontos parabólicos de uma superfície, no exemplo
anterior provamos que os pontos dos paralelos u = π/2 e u = 3π/2 do toro são todos
parabólicos e pode-se apreciar que T fica totalmente de um lado do correspondente plano
tangente, o qual é comum a todos esses pontos, figura 3.9. Observe que o plano tangente aos
pontos do meridiano superior, compartilha todo o mencionado meridiano com a superfície.
Mais outro exemplo parecido com o toro é o caso do cilindro; no exemplo 3.1.4 vemos que
todo ponto do cilindro circular reto é parabólico e a superfície sempre vai ficar de um mesmo
118 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

lado do plano tangente a cada ponto, os quais compartilham a reta vertical que passa pelo
ponto.
Vemos no seguinte exemplo que existem superfícies que possuem pontos parabólicos cujas

Figura 3.10: Pontos parabólicos no cilindro.

vizinhanças ficam de ambos lados do correspondente plano tangente.


Exemplo 3.5.4. Considere a superfície de revolução S obtida pela rotação da curva z = y 3 ,
para −1 < y < 1, em torno da reta z = 1 contida no plano Oyz. Seja U = (−1, 1) × (0, 2π)
um aberto de R2 e X : U −→ R3 uma parametrização da superfície S dada por

X(u, v) = ((1 − u3 )Cos(v), u, 1 + (1 − u3 )Sin(v)), ∀(u, v) ∈ U.

Então
Xu (u, v) = −3u2 Cos(v), 1, −3u2 Sin(v) ,


Xv (u, v) = −(1 − u3 )Sin(v), 0, (1 − u3 )Cos(v) ,




Xuu (u, v) = (−6uCos(v), 0, −6uSin(v)) ,


Xuv (u, v) = 3u2 Sin(v), 0, −3u2 Cos(v) ,


Xvv (u, v) = −(1 − u3 )Cos(v), 0, −(1 − u3 )Sin(v) ,




Xu ∧ Xv = (1 − u3 )Cos(v), 3u2 (1 − u3 ), (1 − u3 )Sin(v) .




logo

E(u, v) = 1 + 9u4 ; F (u, v) = 0; G(u, v) = (1 − u3 )2 ;


−6u −(1 − u3 )
e(u, v) = √ ; f (u, v) = 0; g(u, v) = √ ;
1 + 9u4 1 + 9u4
3.5. CONTINUIDADE DAS CURVATURAS. 119

O que implica que

6u −6u(1 − u3 ) − (1 + 9u4 )
K(u, v) = , e H(u, v) = , ∀p ∈ S.
(1 − u )(1 + 9u4 )2
3 2(1 − u3 )(1 + 9u4 )3/2

Considere o meridiano M = {X(0, v) ∈ S : 0 < v < 2π}, então K(p) = 0 e H(p) = −1/2 6=
0, para cada p ∈ M , logo o conjunto M está formado totalmente por pontos parabólicos e
pode-se apreciar que, em cada vizinhança de cada p ∈ M , existem pontos da superfície de
ambos lados do correspondente plano tangente (figura 3.11).

Figura 3.11: A faixa preta são pontos parabólicos.

Em segundo lugar nos focamos nos pontos planares das superfícies. No exemplo 3.1.1
podemos ver que todos os pontos do plano são planares, e sabemos pelo exemplo 2.5.2 que
todo plano coincide com o seu plano tangente em todo ponto. Logo, no caso do plano, todos
os pontos planares estão contidos no próprio plano tangente à superfície em cada ponto.
No seguintes exemplos, vemos que existem superfícies que possuem pontos planares para os
quais existem vizinhanças nas outras duas situações possíveis.

Exemplo 3.5.5. Considere a superfície de revolução S obtida pela rotação em torno do eixo
vertical da curva z = y 4 contida no plano Oyz. Seja U = R+ × (0, 2π) um aberto de R2 e
X : U −→ R3 uma parametrização local da superfície S dada por

X(u, v) = (uCos(v), uSin(v), u4 ), ∀(u, v) ∈ U.


120 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

Observe que S = X(U ) ∪ {(0, 0, 0)}. Calculamos as derivadas parciais primeiras e segundas
de X e temos que

Xu (u, v) = Cos(v), Sin(v), 4u3 ,




Xv (u, v) = (−uSin(v), uCos(v), 0) ,


Xuu (u, v) = 0, 0, 12u2 ,


Xuv (u, v) = (−Sin(v), Cos(v), 0) ,


Xvv (u, v) = (−uCos(v), −uSin(v), 0) ,
Xu ∧ Xv = −4u4 Cos(v), −4u4 Sin(v), u .


logo

E(u, v) = 1 + 16u6 ; F (u, v) = 0; G(u, v) = u2 ;


12u3 4u5
e(u, v) = √ ; f (u, v) = 0; g(u, v) = √ ;
|u| 1 + 16u6 |u| 1 + 16u6

o que implica, pela continuidade das funções K e H, que

48u4 2u3 (4 + 16u6 )


K(u, v) = ≥ 0, e H(u, v) = , ∀p ∈ S.
(1 + 16u6 )2 |u|(1 + 16u6 )3/2

Considere o ponto p0 = (0, 0, 0) ∈ S, então K(p0 ) = 0 e H(p0 ) = 0, o que implica que p0


é um ponto planar e pode-se apreciar que existe uma vizinhança de p0 em S cujos pontos
ficam de um mesmo lado do correspondente plano tangente (figura 3.12).

Figura 3.12: A origem é um ponto planar.


3.5. CONTINUIDADE DAS CURVATURAS. 121

Exemplo 3.5.6. A superfície S chamada de sela de macaco é o gráfico da função diferenciável


f (x, y) = x3 − 3xy 2 , para cada (x, y) ∈ U = R2 . Considere a parametrização X : U −→ R3
tal que
X(u, v) = (u, v, u3 − 3uv 2 ), ∀(u, v) ∈ U,

então

Xu (u, v) = 1, 0, 3(u2 − v 2 ) ,


Xv (u, v) = (0, 1, −6uv) ,


Xuu (u, v) = (0, 0, 6u) ,
Xuv (u, v) = (0, 0, −6v) ,
Xvv (u, v) = (0, 0, −6u) ,
Xu ∧ Xv = −3(u2 − v 2 ), 6uv, 1 .


logo

E(u, v) = 1 + 9(u2 − v 2 ); F (u, v) = −18uv(u2 − v 2 ); G(u, v) = 1 + 36u2 v 2 ;


6u −6v
e(u, v) = p ; f (u, v) = p ;
1 + 36u2 v 2 + 9u2 v 2 (u− v 2 )2 1 + 36u2 v 2 + 9u2 v 2 (u− v 2 )2
−6u
g(u, v) = p ;
1 + 36u v + 9u2 v 2 (u− v 2 )2
2 2

considere o ponto p0 = X(0, 0) = (0, 0, 0) ∈ S, então e(p0 ) = 0, f (p0 ) = 0 e g(p0 ) = 0, o que


implica que K(p0 ) = 0 e H(p0 ) = 0. Logo p0 é um ponto planar e pode-se apreciar que os
pontos de qualquer vizinhança de p0 em S ficam de ambos lados do correspondente plano
tangente (figura 3.13).

É mesmo interessante ter uma expressão em coordenadas locais da segunda forma fun-
damental de uma superfície regular em um ponto, pois permite aplicar o cálculo diferencial
ao estudo dos conceitos geométricos relacionados com a diferencial da aplicação de Gauss, a
qual sempre pode-se definir localmente em S e globalmente quando a superfície é orientável.
Vamos aplicar a igualdade (3.17) no estudo das equações diferenciais associadas às linhas de
curvatura e às linhas assintóticas de uma superfície em cada um dos seus pontos, pois elas
fornecem importantes informações geométricas de S.
A definição 3.1.1 diz-nos que uma curva regular α : I −→ S em S é uma linha de
curvatura se cada direção tangente α0 (t) é uma direção principal no ponto α(t), ∀t ∈ I. O
teorema 3.1.1 de Olinde-Rodrigues caracteriza esse fato pela existência de uma função real
122 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

Figura 3.13: A sela de macaco possui um ponto planar.

diferenciável λ : I −→ R de maneira que

−dNα(t) (α0 (t)) = λ(t)α0 (t), ∀t ∈ I.

Considere uma parametrização local X : U −→ S de S e uma curva α(t) = X(u(t), v(t)) em


X(U ) ⊂ S. Como α0 (t) = Xu u0 (t) + Xv v 0 (t), para cada t ∈ I, então pela igualdade (3.16) e
pelo comentado acima tem-se que α é linha de curvatura se e somente se
! ! !
a11 a21 u0 (t) u0 (t)
· =λ , ∀t ∈ I.
a12 a22 v 0 (t) v 0 (t)

Se substituímos as equações de Weingarten na igualdade acima, chegamos a que α deve


satisfazer a seguinte equação diferencial

((f E − eF )(u0 )2 + (gE − eG)u0 v 0 + (gF − f G)(v 0 )2 )(t) = 0, ∀t ∈ I, (3.24)

a qual é conhecida como a equação diferencial das linhas de curvatura de S. A fins de facilitar
sua aprendizagem, a equação (3.24) pode-se expressar em forma de matriz e desconsiderando
a dependência da variável t, ou seja

(v 0 )2 −u0 v 0 (u0 )2


E F G = 0. (3.25)


e f g
3.5. CONTINUIDADE DAS CURVATURAS. 123

Observação 3.5.1. Se X é uma parametrização local em torno de um ponto p ∈ S tal que


F = f = 0, então κ1 = g/G e κ2 = e/E. Com efeito, basta substituir as fórmulas (3.22) nas
igualdades (3.4). Nessas condições, p ∈ S é umbílico em S se e somente se

eG − gE = 0.

Os parâmetros tais que F = f = 0 são chamados de parâmetros duplamente ortogonais, e sua


existência está garantida no subconjunto Se ⊂ S formado pela união do interior do conjunto
de pontos umbílicos de S e o conjunto de pontos não-umbílicos de S, o qual pode-se provar
que é denso em S. Esse fato torna às coordenadas duplamente ortogonais uma ferramenta
apropriada para o estudo da geometria das superfícies em muitos casos, pois facilita o cál-
culo das curvaturas, e os resultados obtidos para Se são extensíveis S pela continuidade das
mesmas.
Na seção 3.3 nos referíamos aos pontos umbílicos como aqueles onde uma superfície
pode-se enxergar igualmente curvada em toda direção. Essa afirmação vem da igualdade
entre as correspondentes curvaturas principais no ponto, as quais foram definidas como os
autovalores do endomorfismo de Weingarten associado ao campo normal unitário à superfície
no ponto e que, geometricamente, representam os valores máximo e mínimo da curvatura
de secções normais à superfície que passam pelo ponto. Assim, dados os parâmetros locais
X : U ⊂ R2 −→ S em torno de um ponto umbílico p de uma superfície S, qualquer direção
de Tp S será direção principal. O seguinte resultado estabelece as condições necessárias e
suficientes para que as curvas coordenadas em um ponto não-umbílico p sejam linhas de
curvatura da superfície.

Proposição 3.5.1. As curvas coordenadas de uma parametrização local X : U ⊂ R2 −→ S


em torno de um ponto não-umbílico p de uma superfície regular S são linhas de curvatura
de S em p se, e somente se, F = f = 0 em U .

Demonstração. Se as curvas coordenadas α(t) = X(u(t), v) e β(t) = X(u, v(t)) são linhas
de curvatura, então Xu e Xv são direções principais de S em p, o que implica que F = 0,
pois é sabido da teoria do álgebra linear, que autovetores associados a autovalores distintos
de um endomorfismo auto-adjunto são sempre ortogonais ([9, pág.217]). Aliás,

−f = hNu , Xv i = λhXu , Xv i = 0,

onde foi usado o teorema 3.1.1 de Olinde-Rodrigues.


Reciprocamente, substituindo f = F = 0 na equação (3.25), tem-se que toda linha de
124 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

curvatura de S em p deve satisfazer a igualdade u0 v 0 (eG − gE) = 0 a qual é satisfeita pelas


curvas coordenadas α e β definidas acima.

Exemplo 3.5.7. Superfícies de revolução.


Seja uma curva diferenciável PCA α : I ⊂ R −→ R3 contida no plano Oxz dada por
α(s) = (ϕ(s), 0, ψ(s)), tal que ϕ(s) > 0, ∀s ∈ I. Considere a superfície de revolução S
gerada pela rotação do traço de α em torno do eixo vertical, parametrizada localmente por

X(u, v) = (ϕ(u)Cos(v), ϕ(u)Sin(v), ψ(u)), ∀(u, v) ∈ U = I × (0, 2π),

ver exemplo 2.3.11. Então


Xu (u, v) = (ϕ0 (u)Cos(v), ϕ0 (u)Sin(v), ψ 0 (u)) ,
Xv (u, v) = (−ϕ(u)Sin(v), ϕ(u)Cos(v), 0) ,
Xuu (u, v) = (ϕ00 (u)Cos(v), ϕ00 (u)Sin(v), ψ 00 (u)) ,
Xuv (u, v) = (−ϕ0 (u)Sin(v), ϕ0 (u)Cos(v), 0) ,
Xvv (u, v) = (−ϕ(u)Cos(v), −ϕ(u)Sin(v), 0) ,
Xu ∧ Xv = (−ϕ(u)ψ 0 (u)Cos(v), −ϕ(u)ψ 0 (u)Sin(v), ϕ(u)ϕ0 (u)) .
Como α está PCA, então |α0 (s)|2 = (ϕ0 (s))2 + (ψ 0 (s))2 = 1 para todo s ∈ I. Portanto:

E(u, v) = 1; F (u, v) = 0; G(u, v) = ϕ2 (u);


e(u, v) = ϕ0 (u)ψ 00 (u) − ψ 0 (u)ϕ00 (u); f (u, v) = 0; g(u, v) = ϕ(u)ψ 0 (u);
Observe que F = f = 0, logo κ1 (p) = g/G e κ2 (p) = e/E pela observação 3.5.1. Aliás, S
está coberta por X a menos de um subconjunto de medida nula, logo
ψ 0 (u)(ϕ0 (u)ψ 00 (u) − ψ 0 (u)ϕ00 (u))
K(p) = κ1 (p)κ2 (p) = ,
ϕ(u)
κ1 (p) + κ2 (p) gE + eG ψ 0 (u) + ϕ(u)(ϕ0 (u)ψ 00 (u) − ψ 0 (u)ϕ00 (u))
H(p) = = = , ∀p ∈ S,
2 2EG 2ϕ(u)
pela continuidade das curvaturas em S. Ainda podemos dar uma expressão mais simples de
K usando de novo que α está PCA, pois derivando a igualdade (ϕ0 (u))2 + (ψ 0 (u))2 = 1 temos
que ϕ0 (u)ϕ00 (u) = −ψ 0 (u)ψ 00 (u), ∀u ∈ I, portanto
−(ϕ0 (u))2 ϕ00 (u) − (ψ 0 (u))2 ϕ00 (u) −ϕ00 (u)
K(p) = = , ∀p ∈ S,
ϕ(u) ϕ(u)
expressão muito conveniente na hora de resolver problemas de classificação de superfícies
de rotação com curvatura Gaussiana pre-determinada. Além disso, pela proposição 3.5.1,
podemos afirmar que os meridianos os paralelos das superfícies de revolução são linhas de
curvatura de S em cada um dos seus pontos.
3.5. CONTINUIDADE DAS CURVATURAS. 125

Considere parâmetros locais X : U −→ S em torno de um ponto p ∈ S, e w ∈ Tp S uma


direção tangente. Se α : I −→ S é uma curva representativa de p e w, então, pela igualdade
(3.17), uma curva conexa α : I −→ S em uma superfície S é uma curva assintótica de S se
satisfaz a equação diferencial

e(u0 )2 + 2f u0 v 0 + g(v 0 )2 = 0. (3.26)

A equação 3.26 é chamada de equação diferencial das linhas assintóticas. Como já vimos na
seção 3.3, são os pontos hiperbólicos de uma superfície os únicos que admitem duas direções
assintóticas. Podemos dar uma condição necessária e suficiente para que as curvas coorde-
nadas de uma parametrização em torno de um ponto hiperbólico sejam linhas assintóticas
do correspondente plano tangente.

Proposição 3.5.2. As curvas coordenadas de uma parametrização local X : U ⊂ R2 −→ S


em torno de um ponto hiperbólico p de uma superfície regular S são linhas assintóticas de S
em p se, e somente se, e = g = 0 em U .

Demonstração. Dada a curva coordenada α(t) = X(u(t), v), então v 0 = 0 em todo t e


portanto u0 6= 0 para todo t pela definição 1.1.2, pois α é uma curva regular. Se α é linha
assintótica, então e(u0 )2 = 0 para todo t pela equação (3.26), o que implica que e = 0.
Repetindo esse argumento na curva coordenada β(t) = X(u, v(t)), obtemos que g = 0 pela
equação (3.26).
Reciprocamente, se e = g = 0, então 2f u0 v 0 = 0 para todo t pela equação (3.26). Vemos
que, nas condições acima, f não pode-se anular em ponto nenhum. Com efeito, como p é
hiperbólico, temos que eg − f 2 < 0, o que implica que |f | > 0 em U . Assim, u0 = 0 ou v 0 = 0
para todo t, cujas soluções são as curvas coordenadas de X em p.

As curvas coordenadas do helicóide, ver exemplo 3.5.2, são linhas assintóticas pela pro-
posição 3.5.2. Na seção 3.3 foi provada uma propriedade muito interessante da segunda
forma fundamental, que a relaciona com o hessiano de uma função altura e tem interessantes
consequências sobre a geometria e a topologia das superfícies, algumas das quais ja foram
estudadas no teroema 3.3.2. Em particular, provamos na proposição 3.3.1 que a segunda
forma fundamental de uma superfície em um ponto é igual ao hessiano da função altura
relativamente a um plano paralelo ao plano tangente à superfície no ponto.

Exemplo 3.5.8. Gráficos de funções diferenciáveis.


Seja U ⊂ R2 um aberto e h : U −→ R uma função diferenciável. Considere a superfície S
126 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

parametrizada por
X(u, v) = (u, v, h(u, v)), ∀(u, v) ∈ U,

ver exemplo 2.1.2. Então:

Xu (u, v) = (1, 0, hu ) ,
Xv (u, v) = (0, 1, hv ) ,
Xuu (u, v) = (0, 0, huu ) ,
Xuv (u, v) = (0, 0, huv ) ,
Xvv (u, v) = (0, 0, hvv ) ,
Xu ∧ Xv = (−hu , −hv , 1) .

Portanto:

E(u, v) = 1 + h2u ; F (u, v) = hu hv ; G(u, v) = 1 + h2v ;


huu huv hvv
e(u, v) = p ; f (u, v) = p ; g(u, v) = p ;
2 2
1 + hu + hv 2 2
1 + hu + hv 1 + h2u + h2v

logo

huu hvv − h2uv


K(p) = ,
(1 + h2u + h2v )2
(1 + h2u )hvv − 2hu hv huv + (1 + h2v )huu
H(p) = , ∀p ∈ S.
2(1 + h2u + h2v )3/2

Na proposição 2.1.1 provamos que as superfícies são localmente gráficos de funções di-
ferenciáveis e na proposição 3.3.1, que a segunda forma fundamental de S em p é igual ao
hessiano da função altura h de S ao plano tangente Tp S. Usamos essas informações para
dar uma interpretação geométrica da indicatriz de Dupin em p ∈ S. Dado um ponto p de
uma superfície S, considere um aberto U ⊂ R2 e parâmetros locais X : U −→ S dupla-
mente ortogonais em p de maneira que X(U ) é o gráfico de uma certa função diferenciável
h : U −→ R, ou seja
X(u, v) = (u, v, h(u, v)), ∀(u, v) ∈ U.

Se {e1 , e2 } é uma base ortonormal de direções principais de Tp S, então Xu = e1 e Xv = e2


pela proposição 3.5.1. Considere U suficientemente pequeno para poder definir uma aplicação
de Gauss N : U −→ S2 de S em X(U ), podemos então fixar um sistema de coordenadas
de maneira que Tp S coincide com o correspondente plano horizontal e h é a função altura
3.5. CONTINUIDADE DAS CURVATURAS. 127

dos pontos X(U ) ⊂ S em relação a esse plano tangente, ver figura 3.14. Isso implica que
p = (0, 0, 0) relativamente à base {e1 , e2 , N (p)} de R3 e que

h(0, 0) = 0, hu (0, 0) = 0 e hv (0, 0) = 0.

Por outro lado E(0, 0) = 1, G(0, 0) = 1, huv (0, 0) = 0, e(0, 0) = huu (0, 0), g(0, 0) = hvv (0, 0),

Figura 3.14: Sistema de coordenadas centrado em p.

pelo exemplo 3.5.8, o que implica que κ1 (p) = huu (0, 0) e κ2 (p) = hvv (0, 0) pela observação
3.5.1. Podemos agora dar uma expressão do desenvolvimento de Taylor de h(u, v) em (0, 0)
em termos das curvaturas principais de S em p:
1 1
h(u, v) = κ1 (p)u2 + κ2 (p)v 2 + R(u, v), ∀(u, v) ∈ U,
2 2
onde  
R(u, v)
lim = 0.
(u,v)→(0,0) u2 + v 2
Seja  > 0 suficientemente pequeno de maneira que a curva

C = {(u, v) ∈ U ⊂ Tp S : h(u, v) = }

esteja contida em X(U ). Portanto a curva C está dada pela expressão

κ1 (p)u2 + κ2 (p)v 2 + 2R = 2.

e ≡ {κ1 (p)u2 +κ2 (p)v 2 = 2} como


Se p não é um ponto planar de S, podemos tomar a curva C
uma aproximação de primeira ordem de C na vizinhança X(U ) de p, e se transformamos C e
√ √
pela homotetia ũ = u 2 e ṽ = v 2, temos

κ1 (p)ũ2 + κ2 (p)ṽ 2 = 1,
128 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

que é a indicatriz de Dupin de S em p. Assim, temos provado que:

«Se p é um ponto não planar de S, a interseção de S com um plano paralelo a Tp S


suficientemente próximo a p é igual a uma curva em S semelhante na primeira
ordem à indicatriz de Dupin de S em p.»

Figura 3.15: Aproximando a indicatriz de Dupin.

Dois problemas amplamente estudados no análise geométrico são problemas relacionados


à classificação de superfícies com curvatura de Gauss ou curvatura média pre-determinada.
Em particular, os gráficos de curvatura de Gauss constante K satisfazem a equação

(1 + h2x + h2y )K = hxx hyy − h2xy ,

chamada de equação clássica de Monge-Ampere. Por outro lado, os gráficos de curvatura


média constante H satisfazem a equação

(1 + h2x + h2y )3/2 2H = (1 + h2x )hyy − 2hx hy hxy + (1 + h2y )hxx ,

chamada de equação clássica de Lagrange, e no caso particular H ≡ 0, a equação acima


recebe o nome de equação de Lagrange para gráficos minimais. A dependência contínua
nas curvaturas principais dos pontos de uma superfície são condição suficiente para provar
dois interessantes resultados da geometria global de superfícies de Jellett e de Liebmann, os
quais conseguem classificar às esferas como as únicas superfícies compactas cujas curvaturas
satisfazem certas propriedades na linha de trabalho mencionada acima.
3.5. CONTINUIDADE DAS CURVATURAS. 129

Lema 3.5.1 (Hilbert, 1945). Seja S uma superfície orientada, p ∈ S e κi : S −→ R, i = 1, 2


as funções curvaturas principais e assumimos que κ1 (p) ≤ κ2 (p). Se p é tal que K(p) > 0,
κ1 possui um mínimo local em p e κ2 possui um máximo local em p, então p é um ponto
umbílico de S.

Demonstração. Fixamos um sistema de coordenadas de R3 centrado em p e coordenadas


locais X : U −→ S de S em p tal que X(U ) é o gráfico de uma função diferenciável h,
{e1 , e2 } é uma base ortonormal de direções principais de Tp S, o qual coincide com o plano
horizontal de referência, ver figura 3.14.
Sejam as curvas coordenadas α(u) = X(u, 0) e β(v) = X(0, v) em X(U ) ⊂ S, e as curvas de
R3 dadas por
1 1
Eα (u) = Xv (u, 0) e Eβ (v) = Xu (0, v).
|Xv (u, 0)| |Xu (0, v)|
Assim, Eα (u) ∈ Tα(u) S e Eβ (v) ∈ Tβ(v) S e portanto podem-se definir as seguintes funções
reais de variável real:
h
ϕα (u) = IIα(u) (Eα (u)) = p vv (u, 0),
(1 + h2v )
1 + h2u + h2v
h
ϕβ (v) = IIβ(v) (Eβ (v)) = p uu (0, v).
(1 + h2u ) 1 + h2u + h2v
Logo, usando as condições sobre as curvaturas principais em p e as observações 3.5.1 e 3.1.3,
tem-se que

ϕα (0) = κ2 (p) ≥ κ2 (α(u)) ≥ ϕα (u),


ϕβ (0) = κ1 (p) ≤ κ1 (β(v)) ≤ ϕβ (v),

o que significa que a função ϕα tem um máximo em t = 0 e a função ϕβ tem um mínimo


também em t = 0. Portanto
ϕ00α (0) ≤ 0 ≤ ϕ00β (0). (3.27)

Podemos calcular explicitamente os valores ϕ00α (0) e ϕ00β (0) derivando duas vezes a partir das
correspondentes definições, chegando às seguintes igualdades:

ϕ00α (0) = −h2uu (0, 0)hvv (0, 0) + hvvuu (0, 0),


ϕ00β (0) = −h2vv (0, 0)huu (0, 0) + huuvv (0, 0).

Usando a relação (3.27) e o teorema se Schwarz temos que

huu (0, 0)hvv (0, 0)(hvv (0, 0) − huu (0, 0)) ≤ 0,


130 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

o que implica que


K(p)(κ2 (p) − κ1 (p)) ≤ 0,

e portanto p é umbílico pela condição sobre K em p.

Para finalizar, provaremos os teoremas de Jellett e de Liebmann como consequências do


lema de Hilbert, dando uma demonstração simples desses dois espectaculares resultados da
geometria global de superfícies. Nas respectivas demonstrações admitimos a veracidade do
teorema 3.7.4 de Brower e Samelson, o qual será provado na próxima seção.

Teorema 3.5.1 (Jellett, 1853). Uma superfície compacta e conexa com curvatura de Gauss
positiva em cada ponto e com curvatura média constante é uma esfera.

Demonstração. Seja c ∈ R tal que H(p) = c, para todo p ∈ S, então c 6= 0. Com efeito, se
c = 0, então as curvaturas principais têm distinto sinal, o que contradiz a hipótese sobre K.
A orientabilidade de S está garantida pelo teorema 3.7.4. Considere então uma orientação
sobre S e as correspondentes funções κ1 ≤ κ2 , as quais são contínuas no compacto S e
portanto atingem seus extremos globais em S. Assim, existe p0 ∈ S tal que κ1 atinge seu
mínimo global nele e pela definição de H, temos que κ2 (p) = 2H(p) − κ1 (p) para cada p ∈ S,
em particular
κ2 (p0 ) = 2c − κ1 (p0 ) ≥ 2c − κ1 (p) = κ2 (p), ∀p ∈ S,

logo κ2 atinge seu máximo global no mesmo ponto p0 . Como K(p0 ) > 0 pela hipótese, então
p0 é um ponto umbílico pelo lema 3.5.1 de Hilbert. Para finalizar, usando que p0 é umbílico,
temos que
κ2 (p) ≤ κ2 (p0 ) = κ1 (p0 ) ≤ κ1 (p),

para todo p ∈ S, o que implica que S é totalmente umbílica e de curvatura Gaussiana


positiva, logo é uma esfera pelo teorema 3.3.1.

Teorema 3.5.2 (Liebmann, 1899). As únicas superfícies compactas e conexas com curvatura
de Gauss constante são as esferas.

Demonstração. Seja c ∈ R tal que K(p) = c para todo p ∈ S. Dado p ∈ S, pela continuidade
da função distância ao quadrado a S e a compacidade de S, existe q ∈ R3 tal que p é seu
máximo local, logo p é elíptico pelo exercício 4 da seção 3.4, o que implica que K(p) = c > 0.
De novo, S é orientável pelo teorema de 3.7.4. Fixamos uma orientação em S e temos que
3.5. CONTINUIDADE DAS CURVATURAS. 131

as funções κ1 ≤ κ2 são contínuas no compacto S. O argumento agora é similar ao usado na


prova do teorema de Jellett; seja p0 ∈ S o ponto mínimo de κ1 , então
c c
κ2 (p0 ) = ≥ = κ2 (p), ∀p ∈ S,
κ1 (p0 ) κ1 (p)

logo κ2 atinge seu valor máximo em p0 . Como K(p0 ) = c > 0, então p0 é um ponto umbílico
pelo lema 3.5.1 de Hilbert e
c c c
κ2 (p) = ≤ = = κ1 (p0 ) ≤ κ1 (p),
κ1 (p) κ1 (p0 ) κ2 (p0 )
para todo p ∈ S, o que implica que S é totalmente umbílica e de curvatura Gaussiana
positiva, logo é uma esfera pelo teorema 3.3.1.
132 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

3.6 Exercícios.
1. Prove que toda superfície compacta e conexa com curvatura Gaussiana positiva e tal
que H/K é constante é uma esfera.

2. Prove que si uma superfície compacta e conexa tem curvatura Gaussiana positiva e
uma das suas curvaturas principais é constante, então é uma esfera.

3. Estudar as superfícies de revolução de curvatura de Gauss constante.

4. Seja S uma superfície conexa orientável com curvaturas principais constantes. Se S


possui algum ponto elíptico, prove que S é um aberto de uma esfera.

5. Considere uma superfície S e uma homotetia Φ : R3 −→ R3 de centro p0 ∈ R3 e razão


λ ∈ R∗ dada por
Φ(p) = p0 + λ(p − p0 ),

para cada p ∈ R3 . Calcule uma expressão que relacione as segundas formas fundamen-
tais e as curvaturas de S e da superfície Φ(S).

6. Repetir o exercício anterior supondo agora que Φ : R3 \ {0} −→ R3 \ {0} é a função


inversão dada por
p
Φ(p) = .
|p|2
7. Prove que, se S é uma superfície orientável cujas curvaturas principais são constantes,
então é totalmente umbilical ou K(p) ≤ 0 para todo p ∈ S.
3.7. PROPRIEDADES DE SEPARAÇÃO. 133

3.7 Propriedades de separação.


Uma curva simples do espaço é um objeto 1-dimensional de R3 (ou de R2 ) que se define de
maneira análoga as superfícies, ver seção 2.1; ou seja, uma curva simples é um subconjunto
C =
6 ∅ do espaço tal que para cada p ∈ C existe uma vizinhança aberta V ⊂ C de p e
uma curva parametrizada regular α : I −→ R3 , para I ⊂ R sendo um intervalo aberto, de
maneira que α é um homeomorfismo de I em α(I) = V . Observe que tal parametrização
local α de C em p sempre pode ser PCA em virtude da proposição 1.2.2. O nosso objetivo
nessa seção é provar que as superfícies fechadas e/ou compactas separam o espaço em duas
componentes conexas cuja fronteira comum é a própria superfície, e para esse fim devemos
fazer um estudo detalhado das posições relativas entre curvas e superfícies e entre planos e
superfícies do espaço, em particular estudaremos como são os cortes transversais entre pares
de objetos geométricos. Para o nosso fim, precisamos provar a veracidade do teorema da
função implícita no contexto de superfícies regulares.

Teorema 3.7.1 (Teorema da Função Implícita). Sejam uma superfície S e uma função
diferenciável f : S −→ R, p ∈ S e a ∈ R. Suponha que p não é ponto crítico de f e que
f (p) = a. Então, existe uma vizinhança aberta V de p em S, um número real  > 0 e uma
curva diferenciável regular e injetiva α : (−, ) −→ R3 , a qual é um homeomorfismo sobre
sua imagem, tal que α(0) = p e f −1 ({a}) ∩ V = α(−, ).

Demonstração. Considere um subconjunto aberto U de R2 tal que (0, 0) ∈ U e parâmetros


locais X : U −→ S de maneira que X(0, 0) = p. Definimos a função g : U −→ R por

g(u, v) = (f ◦ X)(u, v), ∀(u, v) ∈ U.

É claro que g é diferenciável e que g(0, 0) = f (p) = a. Pela regra da cadeia, ver teorema
2.5.1, temos que
dg(0,0) = dfp ◦ dX(0,0) 6= 0,

pela injetividade de dX(0,0) e por que p não é crítico de f . Assim, podemos supor s.p.g. que
gv (0, 0) 6= 0 e usar sobre g o teorema da função implícita do cálculo para, assim, garantir a
existência de dois números reais positivos  e δ e de uma função diferenciável h : (−, ) −→
(−δ, δ) tais que (−, ) × (−δ, δ) ⊂ U , h(0) = 0 e que

{(u, v) ∈ (−, ) × (−δ, δ) : g(u, v) = a} = {(u, h(u)) ∈ R2 : u ∈ (−, )}. (3.28)


134 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

Tome V = X ((−, ) × (−δ, δ)), que é uma vizinhança de p em S, e α : (−, ) −→ S dada


por
α(t) = X(t, h(t)), ∀t ∈ (−, ),

que é um homeomorfismo sobre sua imagem. Logo α(0) = p e

α0 (t) = dX(t,h(t)) (1, h0 (t)) 6= 0, ∀t ∈ (−, )

pela injetividade de dX(t,h(t)) . Aliás, pela igualdade (3.28) tem-se que

{p ∈ V : f (p) = a} = {α(t) : t ∈ (−, )}.

Definição 3.7.1. Dadas duas superfícies S1 e S2 com interseção não vazia e p ∈ S1 ∩ S2 ,


dizemos que as superfícies são tangentes em p se Tp S1 = Tp S2 . Em caso contrário dizemos
que S1 e S2 cortam-se transversalmente em p ou são transversas em p. Dizemos que S1 e
S2 cortam-se transversalmente ou são transversas se são transversas em cada um dos seus
pontos comuns.

O teorema da função implícita para superfícies regulares ajuda-nós a entender como são,
localmente, os cortes transversais entre duas superfícies do espaço. Como consequência pode-
se provar que, em torno de cada um dos seus pontos, existe uma vizinhança dessa interseção
que é igual ao traço de uma curva regular sobre a superfície.

Corolário 3.7.1. Se duas superfícies cortam-se transversalmente em um ponto p, existe uma


vizinhança aberta V de p em R3 , um intervalo aberto I ⊂ R e uma curva regular α : I −→ R3
que é um homeomorfismo sobre sua imagem tais que α(I) = V ∩ (S1 ∩ S2 ).

Demonstração. Pelo exercício 3 da seção 2.2, existe um aberto O ⊂ R3 tal que p ∈ O e


uma função diferenciável g : O −→ R tal que 0 é valor regular de g e O ∩ S2 = g −1 ({0}).
Definimos a aplicação f : O ∩ S1 −→ R como f = g|O∩S1 , a qual é diferenciável no seu
domínio e satisfaz que f (p) = g(p) = 0 e que dfp = (dgp )|Tp S1 . Se p fosse crítico para f , pelo
exemplo 2.5.1 teríamos que Tp S1 ⊂ ker(dgp ) = Tp S2 , que não é possível pois o corte de S1 e
S2 é transversal em p. Para concluir, basta usar o teorema 3.7.1 da função implícita.

Usando as definições e os resultados prévios podemos concluir que:

Corolário 3.7.2. A interseção entre duas superfícies transversas é igual a uma curva sim-
ples, a qual poderia possuir, eventualmente, distintas componentes conexas.
3.7. PROPRIEDADES DE SEPARAÇÃO. 135

Figura 3.16: A interseção de duas superfícies transversas é uma curva simples.

Em segundo lugar, vemos a seguir que toda superfície satisfaz localmente a propriedade
de separação do espaço mencionada na introdução dessa seção.

Lema 3.7.1. Seja S uma superfície e p ∈ S um ponto arbitrário. Então, existe uma bola
aberta Bp ⊂ R3 com centro p tal que Bp ∩ S é conexo e Bp \ S tem exatamente duas
componentes conexas, cuja fronteira comum em Bp é o conjunto Bp ∩ S.

Demonstração. Pelo exercício 3 da seção 2.2, existe um aberto O ⊂ R3 tal que p ∈ O e uma
função diferenciável f : O −→ R tal que 0 é valor regular de f e O ∩ S = f −1 ({0}), o que
implica que dfp não é identicamente nula pela observação 2.1.1 e podemos supor s.p.g. que
fz (p) 6= 0. Considere a a função diferenciável G : O −→ R3 dada por

G(x, y, z) = (x, y, f (x, y, z)), ∀(x, y, z) ∈ O.

Se p = (p1 , p2 , p3 ), é claro que G(p) = (p1 , p2 , 0) e que dGp : R3 −→ R3 é não nula, podemos
usar o teorema da função inversa de R3 em G e afirmar que existe uma bola aberta Bp ⊂ O
de centro p e outra bola aberta B ⊂ R3 tal que a restrição G : Bp −→ B é um difeomorfismo.
Logo, Bp ∩S é uma vizinhança aberta de p em S difeomorfa a B∩Π, sendo Π o plano {z = 0},
ver figura 3.17. Em particular, a restrição de G é um homeomorfismo, por tanto preserva
a propriedade de separação que qualquer plano satisfaz no espaço Euclidiano e segue daí o
resultado.
136 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

Figura 3.17: Separação local de S.

Observação 3.7.1. Exprimindo o resultado prévio, podemos concluir que toda superfície
separa localmente o espaço em duas componentes conexas distintas e podemos assim falar
de um lado ou de outro lado de uma superfície nas proximidades de um dos seus pontos.

Definição 3.7.2. Sejam uma curva regular α : I −→ R3 com interseção não vazia com
uma superfície S, p ∈ α(I) ∩ S e s0 ∈ I tal que α(s0 ) = p. Dizemos que a curva α é
tangente a superfície S em p se α0 (s0 ) ∈ Tp S. Em caso contrário diz-se que α e S cortam-se
transversalmente em p.
Dizemos que uma curva simples C corta transversalmente uma superfície S se elas se cortam
transversalmente em cada ponto p ∈ S ∩ C.

Note que qualquer difeomorfismo de R3 preserva trivialmente as noções de transversali-


dade definidas acima, tanto entre duas superfícies, quanto entre uma curva e uma superfície.
Tendo isso em conta, o problema do estudo da interseção do traço de uma curva regular
com uma superfície reduz-se ao caso em que a superfície S seja igual ao plano coordenado
Π = {z = 0}. Nesse caso, se α : (−, ) −→ R3 é uma curva regular transversa a Π em p
de modo que α(t) = (x(t), y(t), z(t)) para cada t ∈ (−, ) e α(0) = p, então z 0 (0) 6= 0 pela
definição 3.7.2, o que implica que t = 0 é uma raiz isolada de z(t) pela continuidade dessa
função e existe 0 < δ <  tal que z(t)z(−t) < 0, para todo t ∈ (−δ, δ). Aliás, as raízes
de z(t) não podem-se acumular pela regularidade de α, logo acabamos de provar o seguinte
resultado:
3.7. PROPRIEDADES DE SEPARAÇÃO. 137

Figura 3.18: A curva α corta S transversalmente em p e q, mas não em t.

Lema 3.7.2. Se uma superfície S e uma curva simples C se cortam transversalmente, então
S ∩ C é um subconjunto discreto (ou enumerável) de pontos de R3 . Aliás, existem pontos de
C de ambos lados de S em torno de cada p ∈ S ∩ C.

Observação 3.7.2. O resultado acima aplica-se naturalmente às retas de R3 , as quais perten-


cem à família das curvas simples do espaço. Assim, podemos afirmar que:

«As retas do espaço que cortam transversalmente a uma superfície regular, o


fazem em um conjunto discreto de pontos e cada um desses pontos possui na
reta uma vizinhança aberta com pontos da reta de ambos lados da superfície.»

Note que, se uma reta C corta transversalmente a uma superfície compacta S, então o
conjunto S ∩ C é finito.

Conjectura: Se uma curva simples corta transversalmente a uma superfície compacta,


então o conjunto de pontos comuns é um conjunto finito.

Proposição 3.7.1. Se S é uma superfície fechada e conexa, então R3 \ S tem, no máximo,


duas componentes conexas cuja fronteira é igual a S em cada caso.

Demonstração. Como S é fechada, então R3 \ S é aberto, e como também é localmente


conexo, isto é que cada ponto de R3 \ S possui uma base de vizinhanças conexas, e isso
implica que cada componente conexa de R3 \ S é aberta em R3 , ver [8, Prop. 6.5.3]. Seja C
uma componente conexa de R3 \ S, então ∂C 6= ∅. Com efeito, em caso contrário

C = int(C) ∪ ∂C = int(C),
138 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

o que implicaria, pela conexão do espaço, que C seria igual a R3 e isso não é possível, pois
S 6= ∅. Se chamamos de C 0 à união das restantes componentes conexas de R3 \ S distintas
de C, temos que R3 \ S = C ∪ C 0 . Como C 0 é um aberto de R3 , então C ∪ S = R3 \ C 0 é um
fechado de R3 , logo C ⊂ C ∪ S e portanto o conjunto

∂C = C \ C ⊂ S

é um fechado não vazio de S.


Por outro lado, se p ∈ ∂C ⊂ S, pelo lema 3.7.1 existe uma bola aberta Bp de R3 tal que
Bp \ S tem exatamente duas componentes conexas C1 e C2 , cuja fronteira comum em Bp é
igual a Bp ∩ S. Suponha que Ci ∩ C = ∅ para i = 1, 2, então C ∩ Bp = ∅ e portanto p ∈
/ C, o
que contradiz que p ∈ ∂C ⊂ C. Podemos supor s.p.g. que C1 ⊂ C, então

Bp ∩ S = ∂C1 ⊂ C1 ⊂ C,

o que implica que o aberto Bp ∩ S de S está contido em ∂C e portanto ∂C é também um


aberto de S.
Como S é conexa, do anterior podemos deduzir que ∂C = S e que o número de componentes
conexas de R3 \ S é dois no máximo, pois C é uma componente conexa de R3 \ S e note que
ela contem C1 ou C2 , as quais são as componentes conexas de Bp \ S, que são disjuntas pela
definição.

Sejam R uma reta do espaço e {Rn }n∈N uma sequência de retas do espaço. Dizemos
que {Rn } converge a R se existem parametrizações afins αn , α : R −→ R3 de Rn e R,
respectivamente, tais que
lim αn (t) = α(t), ∀t ∈ R.
n→+∞

Naturalmente, podemos estender a definição acima a conjuntos de semi-retas e de segmentos


do espaço. Vemos no seguinte resultado algumas propriedades básicas da convergência de
retas no espaço, a prova é deixada como exercício para o leitor.

Proposição 3.7.2. Considere no espaço uma reta R e uma sequência de retas {Rn }n∈N .
Então:

1. Considere, para cada n ∈ N, um ponto pn ∈ Rn e um vetor vn versor de Rn . Considere


também um ponto p ∈ R e um vetor v versor de R. Então {Rn } converge a R se

lim pn = p e lim vn = v.
n→+∞ n→+∞
3.7. PROPRIEDADES DE SEPARAÇÃO. 139

2. Suponha que {Rn } converge a R e considere os pontos pn ∈ Rn e os vetores vn ∈ R3


versores das retas Rn para cada n ∈ N. Se existem p e v 6= 0 tais que {pn } converge a
p e {vn } converge a v, então p ∈ R e v é versor de R.

3. Se {Rn } é uma sequência de retas do espaço que cortam transversalmente a um con-


junto compacto de R3 , então {Rn } converge a uma certa reta R do espaço.

4. Seja {pn } uma sequência de pontos de uma superfície S que converge a um ponto p ∈ S
e {Rn } uma sequência de retas que converge a uma reta R. Se cada Rn é tangente a
S em pn , então R é tangente a S em p.

Sejam uma superfície S e uma reta R de R3 com interseção não vazia. Dizemos que um
ponto p ∈ S ∩ R é um ponto de primeiro contato entre S e R se existe uma vizinhança V
de p em S e uma sequência de retas {Rn } convergente a R tais que V ∩ Rn = ∅, para todo
n ∈ N. Também dizemos que um ponto q ∈ S ∩ R é um ponto de interseção dupla de S e
R se existem duas sequências {pn }n∈N e {qn }n∈N em S convergentes a q tais que pn 6= qn ,
∀n ∈ N e a sequência de retas {Rn } que passam por pn e qn para cada n ∈ N converge a R.
No seguinte resultado damos uma condição suficiente de tangência entre uma reta R e uma

Figura 3.19: Ponto de primeiro contato. Figura 3.20: Ponto de interseção dupla.

superfície S em um ponto usando o lema de separação local:


140 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

Proposição 3.7.3. Se p ∈ S ∩ R é um ponto de primeiro contato ou um ponto de interseção


dupla, então R é tangente a S em p.

Demonstração. Suponha que p é um ponto de primeiro contato de S e R. Se Bp é a bola


dada pelo lema 3.7.1, podemos supor s.p.g. que Bp ∩ S = V . Se chamamos de Ci , i = 1, 2 as
duas componentes conexas de Bp \ S, como Rn ∩ V = ∅ temos que Rn não pode intersectar
C1 e C2 simultaneamente pela conexão de Rn ∩ Bp . Suponha s.p.g. que Rn ∩ C1 6= ∅, então o
limite R não pode interceptar C2 , o que implica que R é tangente a S em p pela observação
3.7.2.
Suponha agora que p é um ponto de interseção dupla de S e R. Nesse caso podemos
supor, a menos de movimentos rígidos do espaço, que p é a origem de coordenadas e que R
é igual ao eixo vertical de R3 . Suponha que R não é tangente a S em p e vamos argumentar
por absurdo. Pela proposição 2.1.2, existe uma vizinhança coordenada V de p em S tal que
V é o gráfico de uma certa função diferenciável f : D −→ R3 , sendo D um disco aberto de
R2 e tal que f (0, 0) = 0 e 0 é um valor regular de f . Chame de p0n e qn0 as projeções verticais
dos pontos pn e qn em D, então {p0n } e {qn0 } convergem à origem de coordenadas e
 0
qn − p0n f (qn0 ) − f (p0n )

qn − pn
vn = = ,
|qn − pn | |qn0 − p0n | |qn0 − p0n |

é o versor da reta Rn para cada n ∈ N. Se chamamos de {vn0 } a sequência das primeiras


duas coordenadas dos vetores vn , temos que está contida em D, que é limitado, logo existe
uma sub-sequência convergente a um certo vetor unitário v 0 . Por outro lado, as terceiras
coordenadas dos vetores vn convergem, pelo teorema do valor médio, a df(0,0) (v 0 ) e o vetor
(v 0 , df(0,0) (v 0 )) é o versor da reta R = Oz pelo item 2 da proposição 3.7.2, o que é uma
contradição.

Se f : S1 −→ S2 é uma aplicação diferenciável entre duas superfícies de R3 , dizemos


que um ponto q ∈ S2 é um valor regular de f se, para cada p ∈ f −1 ({q}) ⊂ S1 tem-se que
dfp : Tp S1 −→ Tq S2 é um isomorfismo, ou seja, se

|Jacf |(p) 6= 0, ∀p ∈ f −1 ({q}),

segundo o exercício 5b da seção 2.6.

Teorema 3.7.2 (Sard, 1942). Seja f : S1 −→ S2 uma aplicação diferenciável entre duas
superfícies. Então, o conjunto dos valores regulares de f é um subconjunto distinto do vazio
e denso na superfície S2 .
3.7. PROPRIEDADES DE SEPARAÇÃO. 141

Para ver uma prova desse resultado, pode consultar [10, Apend. 4.8]. É conveniente
observar que o teorema de Sard acima continua sendo válido se consideramos uma família
de aplicações diferenciáveis entre superfícies FN = {fn : Sn −→ S, n ∈ N }, para N um
subconjunto finito de N ou mesmo N = N, ou seja, o conjunto dos pontos de S que são
valores regulares simultaneamente a todas as funções da família FN é distinto do vazio e
denso em S.
Vemos a seguir algumas interessantes consequências do teorema 3.7.2 de Sard enunci-
ado acima relativamente a geometria das superfícies fechadas e compactas do espaço. Em
primeiro lugar estudamos as interseções transversas entre superfícies e retas. No exemplo
2.5.10, estudamos a diferencial da aplicação projeção central f : S −→ S2 dada por

p − p0
f (p) = ,
|p − p0 |

/ S. Daí podemos concluir que um vetor unitário v ∈ S2 é


sendo S uma superfície e p0 ∈
um valor regular de f se a reta que passa por p0 na direção de v corta transversalmente à
superfície S. Assim, pelo teorema 3.7.2 de Sard e a observação 3.7.2 temos provado que:

Proposição 3.7.4. Dada uma superfície S, desde todo ponto de R3 \ S pode-se traçar uma
semi-reta R+ que corta transversalmente à superfície S com direção arbitrariamente próxima
de uma dada direção. Aliás, R+ ∩ S é um subconjunto discreto de R3 ou finito se S é
compacta.

Naturalmente, se uma superfície S é compacta e {Rn+ } é uma sequência de semi-retas que


converge a uma semi-reta R+ que corta transversalmente a S em m pontos, então todas as
semi-retas da sequência, a menos de uma quantidade finita, vão cortar transversalmente a S.
Vemos no seguinte resultado que as superfícies compactas têm a propriedade de preservação
do número de cortes transversais com retas, quando as retas estão suficientemente próximas
umas de outras no sentido da proximidade dos correspondentes versores.

Proposição 3.7.5. Seja S uma superfície compacta e seja R+ uma semi-reta que sai de
algum ponto de R3 \ S e tal que corta transversalmente a S nos pontos {p1 , . . . , pk }. Então,
para toda sequência de semi-retas {Rn+ }n∈N com origem em pontos de R3 \ S que converge a
R+ existe N + ∈ N tal que Rn+ ∩ S = {pn1 , . . . , pnk }, para todo n ≥ N + .

Demonstração. Procedemos por absurdo. Suponha que existe N ∈ N e uma sequência


{Rn+ }n∈N nas condições acima tal que satisfaz alguma das seguintes propriedades:
142 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

Figura 3.21: Duas retas próximas cortam um compacto na mesma quantidade de pontos.

1. Rn+ é tangente a S para todo n ≥ N .

2. O cardinal do conjunto Rn+ ∩ S é maior do que o cardinal do conjunto R+ ∩ S.

3. O cardinal do conjunto Rn+ ∩ S é menor do que o cardinal do conjunto R+ ∩ S.

Se {Rn+ } satisfaz (1), considere a sequência {pn } formado pelos correspondentes pontos
de tangência das semi-retas {Rn+ } com S. Pela compacidade de S, existe uma sub-sequência
convergente de {pn } a um ponto p ∈ S. Pela propriedade 2 da proposição 3.7.2, temos que
p ∈ R+ e que R+ é tangente a S pela propriedade 4 da proposição 3.7.2, o que é absurdo.
Se {Rn+ } satisfaz (2), então toda sequência de pontos {pn : pn ∈ S ∩ R+ }n∈N tem uma
subsequência convergente a algum dos pontos p1 , . . . , pk de S ∩ R+ pela compacidade de S.
Se ](Rn+ ∩ S) > ](R+ ∩ S), então existem duas sequências distintas que convergem ao mesmo
ponto pi ∈ S ∩ R+ , i ∈ {1, . . . , k} pela propriedade 2 da proposição 3.7.2, o que implica que
pi é um ponto de interseção dupla e a semi-reta R+ é tangente a S pela proposição 3.7.3 e
isso contradiz de novo que R+ corta transversalmente a S.
Em terceiro lugar, se {Rn+ } satisfaz (3), como ](Rn+ ∩ S) < ](R+ ∩ S) deve existir um
ponto pj ∈ S ∩ R+ , j ∈ {1, . . . , k} que não é limite de nenhuma sequência de pontos
{pn : pn ∈ S ∩ R+ }n∈N , o que implica que pj é um ponto de primeiro contato entre S e R+ ,
logo a semi-reta R+ é tangente a S de novo pela proposição 3.7.3, levando a contradição.

Olhando para a definição 3.7.1 e para o exemplo 2.5.2, podemos dizer que um plano Π
corta transversalmente a uma superfície S em um ponto comum p se Π 6= Tp S, nesse caso
podemos dizer que Π e S são transversas em p. Dizemos que um plano e uma superfície
3.7. PROPRIEDADES DE SEPARAÇÃO. 143

com interseção não vazia cortam-se transversalmente se são transversas em cada um dos
seus pontos comuns. O seguinte resultado mostra como o teorema 3.7.2 de Sard ajuda-nós
a entender como são as interseções transversas entre superfícies e planos.
É sabido que o espaço R3 munido da topologia métrica usual é localmente conexo e satisfaz
o chamado segundo axioma de enumerabilidade, também chamado de ANII, isto é, que
a mencionada topologia do espaço possui uma base enumerável (consultar [8, Sec. 7.6]).
Como já foi comentado na seção 2.1, uma superfície S é um subespaço topológico de R3 , pois
os abertos de S são interseções de abertos de R3 com S, o que se conhece como topologia
induzida ou relativa em S.

Proposição 3.7.6. Dadas uma superfície S e um plano Π, existe um plano Π0 arbitraria-


mente próximo de Π que corta transversalmente a S.

Figura 3.22: O plano Π0 corta S transversalmente.

Demonstração. Considerando o fato de R3 ser localmente conexo e ANII quando munido da


topologia usual, a definição 2.1.1 e o lema 2.9.1, podemos então afirmar que toda superfície
pode ser coberta por uma quantidade enumerável de vizinhanças coordenadas conexas e
orientáveis, que podemos denotar por Sm ⊂ S para cada m ∈ N, e sobre as quais podem
ser definidas duas possíveis aplicações de Gauss pelo lema 2.9.2. Dito isso, considere uma
superfície S, um vetor unitário v ∈ R3 e o plano Π = {v}⊥ . Sobre S podemos considerar
uma família enumerável de aplicações diferenciáveis {Nm : Sm −→ S2 }m∈N e, pelo comentário
que segue ao teorema 3.7.2 de Sard, existe um vetor w ∈ S2 arbitrariamente próximo de v
144 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

que é valor regular de Nm , para todo m ∈ N. Assim, todo ponto de S cujo plano tangente
associado é perpendicular a w é ponto regular da correspondente aplicação de Gauss local,
e tais pontos formam um conjunto discreto de S, enumerável no máximo, pelo teorema da
função inversa. Em consequência, do conjunto dos planos perpendiculares ao vetor w, os
quais são arbitrariamente próximo de Π no sentido da proximidade dos correspondentes
vetores normais unitários, podemos escolher um plano Π0 que corta transversalmente a S,
ver figura 3.22.

Considere duas semi-retas L1 e L2 do espaço com origem comum em um ponto p ∈ R3


e chame de L ao correspondente ângulo formado por elas. Tais semi-retas determinam um
único plano que as contém e que vamos denotar por Π, o qual fica dividido em exatamente
duas componentes conexas, que chamamos de O1 e O2 , as quais correspondem-se às regiões
interna e externa do ângulo L. Contida nesse mesmo plano vamos considerar uma curva C
que seja simples e compacta, de maneira que p ∈
/ C e as semi-retas L1 e L2 a cortam trans-
versalmente, ver figura 3.23. É um fato que existe um homeomorfismo de cada componente

Figura 3.23: O número de cortes é par.

conexa da curva C em uma circunferência sob essas condições; tal circunferência é igual ao
traço de uma curva parametrizada regular periódica que vai determinar um sentido de per-
curso nela, ou seja, uma orientação em cada componente conexa de C (é possível consultar
uma prova dessa afirmação em [10, Sec. 9.2]).

Lema 3.7.3. Nas condições acima, L corta C em um número par de pontos.

Demonstração. Supomha, em primeiro lugar, que a curva C é conexa. Assim, pela trans-
versalidade temos que C e L possuem uma quantidade finita de pontos comuns e, em cada
um deles, a curva C passa de uma componente conexa Oi , i ∈ {1, 2} de Π na outra. Se
3.7. PROPRIEDADES DE SEPARAÇÃO. 145

percorremos C desde um ponto arbitrário em O1 , cada vez que C retornar a O1 estaremos


atravessando L um número par de vezes.
No caso geral, isso mesmo é aplicável no percurso completo de cada componente conexa de
C e podemos concluir daí a veracidade da nossa afirmação.

Como consequência podemos provar o seguinte resultado:

Proposição 3.7.7. O complemento R3 \ S de uma superfície compacta S não é conexo.

Demonstração. Pela compacidade de S e a proposição 3.7.4, cada ponto de R3 \ S é a origem


de uma semi-reta R+ que corta transversalmente a S em uma quantidade finita n ∈ N de
pontos. Se definem os seguintes subconjuntos do complemento de S no espaço em relação à
paridade de n:

Ω = {p ∈ R3 \ S : n é um número impar}
(3.29)
Ω0 = {p ∈ R3 \ S : n é um número par}

Pela própria definição dos subconjuntos (3.29), é claro que R3 \ S = Ω ∪ Ω0 e que são abertos
de R3 \ S pelas proposições 3.7.4 e 3.7.5. Para concluir a demonstração, basta provar que Ω
e Ω0 são uma separação não trivial de R3 \ S. Com efeito:

1. Ω e Ω0 são distintos do vazio. Com efeito, como S é compacta existe uma bola B de
R3 tal que S ⊂ B e existem semi-retas que não cortam B e portanto não cortam S,
logo Ω0 6= ∅. Além disso e também pela compacidade de S, se p ∈ S é ponto crítico
para alguma função altura relativamente a um certo plano Π, então é fácil encontrar
uma semi-reta R+ saindo de algum ponto p0 ∈ R3 \ S que corta S apenas em p, ver
figuras 3.24 e 3.25.

2. Ω e Ω0 são disjuntos. Suponha que existe p0 ∈ R3 \ S e duas semi-retas L1 e L2 com


origem em p0 e tais que L1 ∩ S contém um número impar de pontos e L2 ∩ S contém
um número par. Seja Π o plano determinado por L1 e L2 , podemos usar a proposição
3.7.6 e o corolário 3.7.2 e afirmar que existe um plano Π0 arbitráriamente próximo de
Π que corta transversalmente a S em uma curva simples C, a qual é compacta por
ser um subconjunto fechado do compacto S. Pela proximidade, podemos afirmar pela
proposição 3.7.4 que existem um ponto p00 e duas semi-retas L01 e L02 com origem em p00
no plano Π0 tais que cortam S em um número impar e par de pontos, respectivamente.
Mas isso contradiz o lema 3.7.3, pois (L01 ∪ L02 ) ∩ S = (L01 ∪ L02 ) ∩ C.
146 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

Figura 3.24: Ω0 não é vazio. Figura 3.25: Ω não é vazio.

Teorema 3.7.3 (Jordan-Brower). Seja S uma superfície compacta e conexa de R3 . Então,


R3 \ S tem exatamente duas componentes conexas com fronteira comum igual a S.

Demonstração. Sabemos que R3 \ S tem no máximo duas componentes conexas pela propo-
sição 3.7.1. Aliás, R3 \ S não é conexo pela proposição 3.7.7. Segue daí o resultado.

O teorema acima afirma que toda superfície compacta determina exatamente duas com-
ponentes conexas no seu complemento em R3 e tais subconjuntos abertos não triviais são os
conjuntos Ω e Ω0 definidos na demonstração da proposição 3.7.7. Desde o ponto de vista
topológico, já comentamos que toda superfície do espaço é um sub-espaço topológico de R3
munido da topologia métrica usual, o qual implica que toda superfície compacta do espaço
é um subconjunto limitado de R3 , ver [8, Cap. 8]. Assim, pela construção, temos que o do-
mínio Ω é limitado e o domínio Ω0 não é limitado, os quais podem ser chamados de domínio
interior e domínio exterior delimitado pela superfície compacta, respectivamente.
Visando a demonstração da proposição 3.7.7 e o teorema 3.7.3 de Jordan-Brower, é pos-
sível estabelecer um critério geométrico pelo qual determinar qual domínio determinado por
uma superfície compacta S contem um dado ponto de R3 \ S. Tal discussão pode ser resol-
vida só contando o número de pontos comuns entre uma semi-reta que sai do ponto e corta
S transversalmente: se esse número é impar, o ponto está no domínio interior determinado
por S; em caso contrário, esse ponto está no domínio exterior determinado por S.
3.7. PROPRIEDADES DE SEPARAÇÃO. 147

Observação 3.7.3. O teorema 3.7.3 de Jordan-Brower pode ser generalizado a superfícies


fechadas e conexas.

Uma consequência interessante do estudo prévio em relação às propriedades de separação


das superfícies é que pode-se relacionar a topologia de uma superfície com a orientabilidade
da mesma, no sentido que a compacidade é condição suficiente para garantir a existência de
uma aplicação de Gauss diferenciável e globalmente definida sobre a superfície.

Teorema 3.7.4 (Brower-Samelson). Toda superfície compacta de R3 é orientável.

Demonstração. Basta provar o teorema para cada componente conexa de S, logo podemos
supor s.p.g. que S é compacta e conexa.
Estamos nas condições do teorema 3.7.3 de Jordan-Brower, então R3 \ S possui exa-
tamente duas componentes conexas com fronteira comum S e podemos denotar por Ω ao
domínio interior delimitado por S. Sejam p ∈ S e v ∈ R3 um vetor unitário e normal a S em
p, dizemos que o vetor v aponta ao interior de S se existe uma vizinhança V de p contida na
semi-reta com origem em p na direção de v tal que V ⊂ Ω. Se chamamos de P à propriedade
«apontar ao interior de S», basta provar que P está nas condições da proposição 2.9.1 para
poder concluir que S é orientável.
Vamos então considerar uma aplicação α : I −→ R3 que parametriza a reta que passa
pelo ponto p na direção do vetor v. Tal reta pode ser expressada explicitamente da seguinte
maneira
α(t) = p + tv, ∀t ∈ I.

Como α0 (0) = v ∈
/ Tp S, então o traço de α corta transversalmente à superfície S pela
definição 3.7.2, assim que pode-se aplicar o lema 3.7.2 e garantir que existe  > 0 tal que
α(−, ) ∩ S = {p} e α(−, ) possui pontos de ambos lados de S. Afirmamos então que
α(−, 0) ⊂ Ω ou que α(0, ) ⊂ Ω, o que implica que v ou −v satisfazem a propriedade P e
que não pode ser satisfeita simultaneamente por esses dois vetores. Além disso, pelo lema
2.9.1 existe uma vizinhança coordenada de p em S sobre a qual pode-se definir um campo
diferenciável de vetores normais N tal que N (p) = v.
Para finalizar a prova, tome uma vizinhança W de p em S contida no aberto Bp ∩ S, sendo
Bp a vizinhança de p em R3 dada pelo lema 3.7.1. Se consideramos sobre W uma orientação
apropriada de entre as duas possíveis, ver lema 2.9.2, podemos afirmar pelo visto acima que
os vetores N (q) satisfazem a propriedade P, para todo q ∈ W , então S é orientável.
148 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

Exemplo 3.7.1. Do teorema acima e do exemplo 2.9.6, podemos deduzir facilmente que a
faixa de Möbius não é uma superfície compacta.
3.8. EXERCÍCIOS. 149

3.8 Exercícios.
1. Dê uma prova rigorosa da proposição 3.7.2.
150 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

3.9 Superfícies mínimas.


Existem famílias de superfícies que merecem um estudo particular e mais detalhado
pelo grande número de exemplos que contém e pelas interessantes propriedades geométricas
que são compartilhadas por elas. Uma dessas famílias são, por exemplo, as superfícies de
revolução, as quais possuem grande interesse e algumas das suas propriedades geométricas já
foram estudadas nos exemplos em secções prévias. Além das superfícies de rotação, existem
outras famílias que também podem ser consideradas especiais pelo mesmo motivo, como por
exemplo as superfícies paralelas na direção do normal, as superfícies regradas, as superfícies
mínimas, etc. Nessa seção daremos uma breve introdução ao estudo das superfícies mínimas,
família que foi amplamente estudada desde alguns séculos atrás e que, ainda hoje, é um
tópico que está no foco de um grande número de pesquisadores e pesquisadoras em geometria
1
diferencial. Nas palavras do professor da UGR Joaquín Pérez, editor geral da RSME no
ano 2021 e diretor geral do IEMath desde 2015, ver [14]:

«As superfícies mínimas, junto ao problema isoperimétrico, estão entre os pro-


blemas geométricos mais antigos e estudados na Matemática, e o seu interesse
através dos séculos foi a causa do desenvolvimento de distintas áreas de trabalho
nesta ciência. No início, o cálculo variacional desenvolvido por Euler e Lagrange
no século XVIII permitiu uma formulação satisfatória para o problema de encon-
trar a superfície de área mínima com uma dada fronteira, embora que com pouca
profusão de exemplos. Um século depois, grandes matemáticos como Enneper,
Scherk, Schwarz, Riemmann e Weierstrass produziram importantes avanços na
teoria das superfícies mínimas mediante a aplicação do recém criado Análise
Complexo.»

Dizemos que uma superfície parametrizada é uma aplicação diferenciável X : U ⊂ R2 −→


R3 tal que dXq é injetiva para todo q ∈ U . O conjunto X(U ) é chamado de traço de X. Seja
D ⊂ U um domínio limitado de R2 , a correspondente região limitada R = D ∪ ∂D e uma
função diferenciável h : R −→ R. Se define a variação normal de X(R) determinada por h
à aplicação ϕ : R × (−, ) −→ R3 dada por

ϕ(u, v, t) = X(u, v) + th(u, v)N (u, v), ∀(u, v) ∈ R, t ∈ (−, ),

onde N é o campo normal unitário dado por (2.5) e o número  > 0 é suficientemente
pequeno de maneira que X t (u, v) = ϕ(u, v, t) seja uma superfície parametrizada para cada
1
Tradução na língua portuguesa pelo autor.
3.9. SUPERFÍCIES MÍNIMAS. 151

t ∈ (−, ). Queremos analisar a função A(t) que mede a àrea da superfície X t em cada t
e, a fins de simplificar a notação, desconsideramos a dependência dos parâmetros u e v de
todas as aplicações envolvidas nos cálculos.

Xut = Xu + thu N + thNu ,


Xvt = Xv + thv N + thNv .

A partir das igualdades acima, podemos expressar os coeficientes da primeira forma funda-
mental de X t em termos dos coeficientes da primeira e da segunda formas fundamentais de
X:

E t = E − 2the + t2 h2u + t2 h2 hNu , Nu i,


F t = F − 2thf + t2 hu hv + t2 h2 hNu , Nv i,
Gt = G − 2thg + t2 h2v + t2 h2 hNv , Nv i.

Assim, fazendo alguns cálculos pode-se chegar à seguinte fórmula

E t Gt − (F t )2 = (EG − F 2 ) − 2th(eG + gE − 2f F ) + P (t) = (EG − F 2 )(1 − 4thH) + P (t),

onde H é a curvatura média de X, ver fórmula (3.22), e P (t) é a reunião de todos os somandos
que aparecem acima multiplicados por t2 e por t4 , o que implica que

P (t)
lim = 0.
t→0 t

Pela definição 2.7.2, a área da superfície X t pode ser calculada pela expressão
Z p Z √ q
A(t) = t t t 2
E G − (F ) dudv = EG − F 2 1 − 4thH + Pe(t)dudv,
R R

onde
P (t)
Pe(t) = .
EG − F 2
Se derivamos a função área, usando a regra de Leibniz de derivação sobe o sinal integral
tem-se que
Z √
0 −4hH + Pe0 (t)
A (t) = EG − F 2 q dudv.
R
2 1 − 4thH + P (t)
e

Observe que Pe(0) = 0 e Pe0 (0) = 0, logo

0
Z √
A (0) = −2hH EG − F 2 dudv. (3.30)
R
152 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

Definição 3.9.1. Uma superfície parametrizada regular é dita mínima se a sua curvatura
média é identicamente nula. Dizemos que uma superfície regular é mínima se cada uma das
suas parametrizações locais é uma superfície parametrizada mínima.

Visando as contas prévias, o seguinte resultado justifica a denominação mínima nas


superfícies que satisfazem a definição 3.9.1.

Proposição 3.9.1. Seja X : U ⊂ R2 −→ R3 uma superfície parametrizada regular. Então,


X é mínima se, e somente se, A0 (0) = 0 para todo domínio D em U e para toda variação
normal ϕ.

Demonstração. Se X é mínima, então A0 (0) = 0 trivialmente da igualdade (3.30) para


qualquer região R e para qualquer função h, a qual determina qualquer variação normal ϕ.
Por outro lado, se A0 (0) = 0, ∀D e ∀ϕ, em particular pode-se tomar h = H e portanto
Z √
0= −2H 2 EG − F 2 dudv,
R

o que implica que H ≡ 0.

Assim, da proposição acima segue que qualquer região R de uma superfície mínima é
um ponto crítico do funcional de área A(t) definido na introdução do capítulo para qualquer
variação normal de X(R). Pode-se provar que, por considerações físicas, a película de sabão
resultante de introduzir e retirar com cuidado uma estrutura de arame em uma solução de
sabão é localmente uma superfície mínima em torno de cada ponto regular. Essa relação
entre as películas de sabão e as superfícies mínimas motivou, como disse o professor Pérez,
o conhecido problema de Plateau, que é formulado assim:

«Para cada curva fechada C do espaço existe uma superfície S de área mínima
cuja fronteira é a curva C.»

Na figura 3.26 podemos observar o catenóide de revolução, o qual é a solução do problema de


Plateau quando C é a união de duas circunferências de igual raio contidas em planos paralelos.
Definiremos o catenóide e outros exemplos de superfícies mínimas na seguinte parte dessa
seção, e estudaremos algumas propriedades geométricas interessantes das mesmas.
Note que o fato de ser um ponto crítico do funcional área não implica que tal ponto
seja necessariamente um mínimo desse funcional para qualquer variação normal. Sejam
X : U ⊂ R2 −→ R3 uma superfície parametrizada regular e R uma região limitada de U tal
que H(p) 6= 0 para cada p ∈ X(R), sendo H : U −→ R a função curvatura média em cada
3.9. SUPERFÍCIES MÍNIMAS. 153

Figura 3.26: Resolvendo o problema de Plateau.

ponto de X(U ). Considere também o campo N : U −→ S2 de vetores normais a X(U ) e


unitários, dado como em (2.5). Se define o vetor curvatura média em X(U ) como o vetor

H(p) = H(p)N (p), ∀p ∈ X(U ).

Se consideramos a variação normal de X(R) determinada por h = H, pela igualdade (3.9)


tem-se que
0
Z
2
√ Z √
A (0) = −2H EG − F 2 dudv = −2 hH, Hi EG − F 2 dudv < 0,
R R

o que implica que as deformações normais de X(R) na direção do vetor curvatura média,
quando essa direção é não-degenerada, têm área inicialmente decrescente.
Observação 3.9.1. Uma superfície parametrizada regular X : U ⊂ R2 −→ R3 é dita isotér-
mica se E = G > 0 e F = 0 em U . Nesse caso, os parâmetros (u, v) são ditos parâmetros
isotérmicos. É sabido que tais parâmetros sempre existem localmente e que pode-se cobrir
qualquer superfície regular S por esse tipo de vizinhanças coordenadas, pode-se consultar
uma prova detalhada em [2].

Proposição 3.9.2. Se X é uma superfície parametrizada isotérmica, então para cada q ∈ U


tem-se que
Xuu (q) + Xvv (q) = 2E(q)H(q) (3.31)

Demonstração. Supondo que F = 0 e E = G, se derivamos parcialmente essas igualdades


temos por um lado que

hXuu , Xv i = −hXuv , Xu i,
(3.32)
hXuv , Xv i = −hXvv , Xu i,
154 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

e pelo outro lado que

hXuu , Xu i = −hXvv , Xu i,
hXvv , Xv i = −hXuu , Xv i,

onde foram usadas as igualdades (3.32). Portanto

hXuu + Xvv , Xu i = 0,
hXuu + Xvv , Xv i = 0,

o que implica que o vetor Xuu + Xvv está na direção de N em U , isto é, existe uma função
µ : U −→ R tal que Xuu (q) + Xvv (q) = µ(q)N (q), para cada q ∈ U . Assim, podemos isolar
µ da igualdade anterior fazendo o produto interno da mesma por N (q) e temos que

µ(q) = e(q) + g(q) = 2E(q)H(q)

pela fórmula (3.22). Segue daí o resultado.

A notação usual da função fxx +fyy associada a um dado campo escalar f : U ⊂ R2 −→ R


é ∆f . O operador ∆ é chamado de operador laplaciano e o campo escalar f é dito harmônico
se satisfaz a equação
∆f (x, y) = 0, ∀(x, y) ∈ U,

a qual recebe o nome de equação de Laplace. É imediato provar, usando a proposição 3.9.2,
o seguinte resultado:

Corolário 3.9.1. Uma superfície parametrizada X é mínima se, e somente se, as funções
coordenadas de X são harmônicas.

O corolário acima é uma caracterização das superfícies parametrizadas mínimas em ter-


mos das correspondentes funções coordenadas de parametrizações locais das mesmas, o que
permite construir exemplos de maneira simples.

Exemplo 3.9.1. O catenóide de revolução.


Se define o catenóide de revolução, ver figura 3.27, como a superfície parametrizada pela
aplicação X : (0, 2π) × R −→ R3 dada por

X(u, v) = (Cosh(v)Cos(u), Cosh(v)Sin(u), v) , 0 < u < 2π, −∞ < v < ∞.

É imediato provar que Xuu + Xvv ≡ 0, o que implica que X é mínima pelo corolário 3.9.1.
3.9. SUPERFÍCIES MÍNIMAS. 155

Figura 3.27: O catenóide de revolução.

Observação 3.9.2. O catenóide é a única superfície de revolução que é mínima. Para uma
prova mais detalhada dessa afirmação pode consultar [4, Sec. 3.5].

Exemplo 3.9.2. A superfície mínima de Enneper.


Se define a superfície de Enneper, ver figura 3.28, como a superfície parametrizada pela
aplicação X : R2 −→ R3 dada por

u3 v3
 
2
X(u, v) = u − + uv , v − 2 2 2
+ vu , u − v , (u, v) ∈ R2 .
3 3

É de novo imediato provar que Xuu + Xvv ≡ 0, o que implica que X é mínima pelo corolário
3.9.1. Note que, a superfície minima de Enneper possui auto-interseções, o qual pode ser
facilmente provado transformando (u, v) em coordenadas polares de R2 , ou seja u = ρCos(θ)
e v = ρSin(θ) para ρ > 0 e 0 < θ < 2π, o que implica que não é uma superfície regular.
Para mais detalhes consulte [4].

Exemplo 3.9.3. O helicóide.


Considere a superfície parametrizada X : (0, 2π) × R −→ R3 dada por

X(u, v) = (Sinh(v)Cos(u), Sinh(v)Sin(u), u) ,

pode-se provar que o traço de X é um helicóide (ver figura 2.26) e que Xuu + Xvv ≡ 0, pelo
qual o helicóide é uma superfície mínima pelo mesmo motivo que os exemplos anteriores.

O helicóide encaixa também dentro de outra importante família de superfícies da geome-


tria diferencial, a família das superfícies regradas. A seguir vamos dar uma definição dessa
156 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

Figura 3.28: A superfície mínima de Enneper.

família de superfícies e trabalharemos com elas fundamentalmente na seguinte seção de exer-


cícios. Considere um intervalo aberto I ⊂ R, uma curva regular parametrizada α : I −→ R3
e uma aplicação ω : I −→ R3 tal que ω(t) 6= 0 para cada t ∈ I. Se define uma superfície
regrada como a reunião da família de retas que, para cada t ∈ I, passam pelo ponto α(t)
na direção do vetor ω(t). Toda superfície regrada pode-se parametrizar por médio de uma
aplicação X : I × R ⊂ R2 −→ R3 dada por

X(t, v) = α(t) + vω(t), ∀(t, v) ∈ I × R.

Note que o helicóide, pela sua definição no exemplo 2.7.4, pertence também à família das
superfícies regradas de R3 para ω(t) = z(t) − α(t), sendo α uma parametrização da hélice e
a curva z : R −→ R3 dada por

z(t) = (0, 0, t), ∀t ∈ R.

Porém, as superfícies regradas não sempre serão superfícies regulares como o helicóide, pois
podem apresentar singularidades, como por exemplo o cone elíptico, o qual se define como o
conjunto
x2 y 2 z 2
C = {(x, y, z) ∈ R3 : + 2 − 2 = 0, a, b, c ∈ R∗ },
a2 b c
o qual apresenta um ponto singular no seu vértice. Ver figura 3.29.
Observação 3.9.3. O helicóide é a única superfície regrada não plana que é mínima. Para
maiores detalhes, consulte os comentários na página 18 de [13], logo após a prova do Lemma
3.9. SUPERFÍCIES MÍNIMAS. 157

Figura 3.29: Superfície regrada com um ponto singular.

2.2. É esse um resultado clássico de classificação de superfícies mínimas conhecido como


teorema de Catalan, ver [3].
158 CAPÍTULO 3. A SEGUNDA FORMA FUNDAMENTAL.

3.10 Exercícios.
Livro do Manfredo, págs 249-255, exercícios 1, 2, 5, 9, 11, 12, 13 e 14.
Capítulo 4

Geometria intrínseca das superfícies.

159
160 CAPÍTULO 4. GEOMETRIA INTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES.

4.1 Congruências, isometrias e aplicações conformes.


No estudo da geometria diferencial das curvas e das superfícies do espaço euclidiano, em
capítulos anteriores temos distinguimos dois pontos de vista em relação à natureza das pro-
priedades geométricas as quais têm sido objeto do nosso estudo. Distinguimos entre aquelas
características das curvas e das superfícies que pertencem ao estudo da sua geometria local
e aquelas que estão no contexto da sua geometria global, e que os difeomorfismos preservam
as estruturas topológica e diferenciável induzidas por R3 nos objetos geométricos que cabem
nele. Introduziremos nesse capítulo dois novos pontos de vista em quanto ao estudo da ge-
ometria diferencial das superfícies. A grosso modo, chamaremos de geometria extrínseca da
superfície a todos aqueles conceitos geométricos que dependem fundamentalmente da segunda
forma fundamental e de geometria intrínseca a aqueles que dependem fundamentalmente da
primeira forma fundamental associada a cada um dos seus pontos regulares.
Pode ser confuso falar sobre a geometria intrínseca das superfícies, dado que todas elas
compartilham uma propriedade essencial, e é que todas elas estão dentro de R3 . O estudo
da geometria das superfícies é o estudo de como elas podem-se dobrar e/ou estender no
espaço, e esse estudo é essencialmente extrínseco. Nesse sentido, entenderemos que o estudo
da geometria intrínseca das superfícies é o estudo de aquelas propriedades geométricas das
superfícies que são invariantes por aplicações que preservam a primeira forma fundamental.
Dado que estamos estudando geometria diferencial sobre as superfícies, é natural fazer um
estudo detalhado daquelas propriedades geométricas que são preservadas pelos movimentos
rígidos de R3 , que são as isometrias do espaço euclidiano. Sejam uma superfície S e um
movimento rígido F : R3 −→ R3 . Pelo já comentado na introdução da seção 1.4, podemos
considerar uma matriz A ∈ O(3) e um vetor b ∈ R3 de maneira que F (x) = Ax + b, para
cada x ∈ R3 . É claro da definição de O(3) que F é um difeomorfismo do espaço e portanto
S 0 = F (S) é uma superfície em virtude do exercício 5 da seção 2.2. Aliás, pela proposição
2.3.3, temos que a restrição f = F |S : S −→ S 0 de F na superfície S é um difeomorfismo de
superfícies. Acabamos de provar o seguinte resultado:

Lema 4.1.1. Sejam uma superfície S e um movimento rígido F : R3 −→ R3 . Considere


S 0 = F (S) e f = F |S : S −→ R3 . Então, S 0 é uma superfície e f : S −→ S 0 é um
difeomorfismo.

Dizemos que uma congruência de superfícies é um difeomorfismo entre duas superfícies


obtido como a restrição de um movimento rígido de R3 . Se existe uma congruência en-
4.1. CONGRUÊNCIAS, ISOMETRIAS E APLICAÇÕES CONFORMES. 161

tre duas superfícies, diremos que tais superfícies são congruentes. Logo, podemos afirmar
que as superfícies congruentes possuem a mesma estrutura topológica e a mesma estrutura
diferenciável.

Lema 4.1.2. Sejam uma superfície S e um movimento rígido F : R3 −→ R3 . Considere


S 0 = F (S) e f = F |S : S −→ R3 . Então, para cada p ∈ S e para cada u, v ∈ Tp S tem-se que

hdfp (u), dfp (v)i = hu, vi. (4.1)

Demonstração. Em primeiro lugar, vemos que

dfp (u) = d(F |S )p (u) = dFp (u) = Au, ∀p ∈ S, ∀u ∈ Tp S,

e como A ∈ O(3), então A preserva o produto interno usual de R3 como já foi observado no
início da seção 1.4.

Assim, pelo resultado acima, segue que a diferencial em cada ponto de uma congruência
f entre duas superfícies é uma isometria linear entre os correspondentes planos tangentes, ou
seja, uma aplicação linear que preserva o produto escalar de R3 e, em consequência, preserva
a primeira forma fundamental.

Lema 4.1.3. Sejam uma superfície S e um movimento rígido F : R3 −→ R3 . Considere


S 0 = F (S) e f = F |S : S −→ R3 . Então

IIf0 (p) (dfp (v)) = IIp (v), ∀p ∈ S, ∀v ∈ Tp S, (4.2)

onde IIp e IIf0 (p) são as segundas formas fundamentais de S em p e de S 0 em f (p), respec-
tivamente.

Demonstração. Tome coordenadas locais em S em torno de um ponto p e considere uma


aplicação de Gauss local N : V −→ S2 , sendo V uma vizinhança aberta de p em S. Como
f é um difeomorfismo pelo lema 4.1.1, podemos definir uma aplicação N 0 : V 0 −→ R3 dada
por
N 0 = A ◦ N ◦ f −1 ,
sendo V 0 = f (V ) uma vizinhança aberta de f (p) em S 0 . A aplicação N 0 é claramente
diferenciável em V 0 e, usando o lema 4.1.2, é fácil ver que |N 0 (q)| = 1 para todo q ∈ V 0 , logo
N 0 é uma aplicação de Gauss local em S 0 . Usando a regra da cadeia temos que
IIf0 (p) (dfp (v)) = hdNf0 (p) (dfp (v)), dfp (v)i = h(A ◦ dNp ◦ A−1 ◦ A)(v), Avi
= h(A ◦ dNp )(v), Avi = hdNp (v), vi = IIp (v),
para cada v ∈ Tp S, como queríamos provar.
162 CAPÍTULO 4. GEOMETRIA INTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES.

Note que, como consequência do lema 4.1.3, a diferencial em cada ponto p de uma con-
gruência de superfícies preserva a segunda forma fundamental, e portanto preserva também
as funções curvatura Gaussiana K e curvatura média H de S. Logo, se K 0 e H 0 são as
correspondentes funções curvaturas de Gauss e média em S 0 , então K 0 ◦ f = K e H 0 ◦ f = H.
Assim, pode-se afirmar que duas superfícies congruentes possuem, além das mesmas estru-
turas topológica e diferenciável, as mesmas primeiras e segundas formas fundamentais, e
portanto a mesma geometria.
Em geral, diz-se que um difeomorfismo f : S −→ S 0 entre as superfícies S e S 0 preserva
a primeira forma fundamental se satisfaz a igualdade (4.1) e que preserva a segunda forma
fundamental se satisfaz a igualdade (4.2).

Definição 4.1.1. Dadas duas superfícies S e S 0 , dizemos que uma aplicação diferenciável
f : S −→ S 0 é uma isometria local se em cada ponto p ∈ S, a correspondente diferencial
dfp satisfaz a igualdade (4.1). Nesse caso, diz-se que as superfícies S e S 0 são localmente
isométricas.

Observação 4.1.1. As isometria locais podem-se caracterizar como aquelas aplicações dife-
renciáveis entre superfícies que preservam o comprimento de curvas. A prova é deixada para
o leitor, exercício 1 da seção 4.2.

Note que a família das congruências contêm à família das isometrias locais, basta aplicar
o lema 4.1.2. O passo natural a seguir, logo após essa afirmação, é determinar quais são as
condições que devem ser satisfeitas por uma isometria local para ela ser uma congruência de
superfícies. Em primeiro lugar vemos o seguinte exemplo:

Exemplo 4.1.1. O plano e o cilindro circular reto são localmente isométricos.


Sejam Π = {z = 0} o plano horizontal e C = {x2 + y 2 = 1, z ∈ R} o cilindro circular
reto de raio 1 na base e cujo eixo é o eixo vertical de coordenadas. Vemos que a aplicação
f : Π −→ C dada por

f (x, y, 0) = (cos(x), sin(x), y), x, y ∈ R,

é uma isometria local de Π em C.


Com efeito, f é claramente diferenciável, logo basta provar que também preserva a primeira
forma fundamental. Sejam p = (x, y, 0) ∈ Π, w = (w1 , w2 , 0) ∈ Tp Π = Π e α : I −→ Π uma
4.1. CONGRUÊNCIAS, ISOMETRIAS E APLICAÇÕES CONFORMES. 163

curva representativa de p e w dada por α(t) = (x(t), y(t), 0). Pela definição 2.7.1, temos que:
d d
dfp (w) = (f ◦ α)(t) = (cos(x(t)), sin(x(t)), y(t))
dt |t=0 dt |t=0
= (x0 (0)cos(x(0)), x0 (0)sin(x(0)), y 0 (0)) = (w1 cos(x), w1 sin(x), w2 ).

Tomando módulos, temos que

Ip (dfp (w)) = |dfp (w)|2 = w12 + w22 = |w|2 = Ip (w),

logo f preserva a primeira forma fundamental e portanto é uma isometria local pela definição
4.1.1. Porém, f não é injetiva, pois

f (x, y, 0) = f (x + 2π, y + 2π, 0),

logo f não é um difeomorfismo e portanto não é uma congruência.

Figura 4.1: A isometria local não é global.

Observe que, do exemplo acima, podemos concluir que a família das isometrias locais
entre superfícies é uma sub-família própria da família das congruências, mas o fato de que a
aplicação f definida no exemplo acima não seja uma congruência não é suficiente para poder
concluir que o plano e o cilindro não são congruentes, pois é só um exemplo.
Existem várias maneiras de argumentar que um plano e um cilindro circular reto não
são congruentes. Por exemplo, nos exemplos 3.1.1 e 3.1.4 podemos observar que a segunda
forma fundamental não pode ser preservada, pois o cilindro tem curvatura média constante
distinta de 0 em todos seus pontos, e a curvatura média é um invariante da diferencial
da aplicação de Gauss local (sec. 3.1), pelo qual entraríamos em contradição com o lema
164 CAPÍTULO 4. GEOMETRIA INTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES.

4.1.3. Podemos dar também um argumento topológico, pois a existência de uma congruência
entre o plano e o cilindro implicaria a existência de um homeomorfismo entre essas duas
superfícies, o qual não pode ocorrer, pois o plano é simplesmente conexo e o cilindro não é,
portanto estaríamos contradizendo o fato de que a propriedade ser simplesmente conexo é
um invariante topológico.
O seguinte resultado fornece uma resposta à pergunta apresentada antes do exemplo
4.1.1 e estabelece as condições suficientes para uma isometria local ser a restrição de um
movimento rígido do espaço. Assumiremos esse resultado como verdadeiro, mas se o leitor
precisar de uma demonstração, pode-se consultar uma prova detalhada em [10, Sec. 7.2].

Teorema 4.1.1 (fundamental da teoria de superfícies.). Sejam duas superfícies orientáveis


S e S 0 de maneira que S é conexa e chame de N e N 0 as correspondentes aplicações de
Gauss. Se f : S −→ S 0 é uma isometria local que preserva a segunda forma fundamental,
então f é uma congruência.

Observação 4.1.2. Note que, se f é uma isometria local, então f é um difeomorfismo local.
Com efeito, se v ∈ Tp S é tal que dfp (v) = 0, então

0 = |dfp (v)| = |v|,

o que implica que v = 0 e portanto dfp é um isomorfismo pela proposição 2.5.1 e pela fórmula
das dimensões. Basta usar o teorema 2.5.2 da função inversa para poder concluir. Esse fato
e a observação 2.3.3 justificam a seguinte definição.

Definição 4.1.2. Dadas duas superfícies S e S 0 , dizemos que uma aplicação f : S −→ S 0 é


uma isometria se f é um difeomorfismo e uma isometria local.

Naturalmente, toda isometria é uma isometria local e o exemplo 4.1.1 mostra que o recí-
proco é falso. Pode-se deduzir que toda congruência de superfícies é também uma isometria
em virtude dos lemas 4.1.1 e 4.1.2. Porém, o recíproco não é verdadeiro. De novo, o exemplo
4.1.1 deixa claro que não existe isometria que possa levar uma porção de plano em uma
porção de cilindro circular reto. Assim, podemos afirmar que a família das isometrias é uma
sub-família própria da família das congruências e que a família das isometrias locais é uma
sub-família própria da família das isometrias.

Observação 4.1.3. A propriedade de preservação que define uma isometria entre superfí-
cies do espaço implica imediatamente que também preserva a primeira forma fundamental.
4.1. CONGRUÊNCIAS, ISOMETRIAS E APLICAÇÕES CONFORMES. 165

Reciprocamente, qualquer difeomorfismo entre superfícies que preserva a primeira forma


fundamental é uma isometria. Com efeito, considere um ponto p ∈ S arbitrário, um difeo-
morfismo f : S −→ S 0 que preserva a forma quadrática Ip e dois vetores u, v ∈ Tp S também
arbitrários, pela observação 2.7.1 e a definição 2.7.1 tem-se que
1
hu, vi = (Ip (u + v) − Ip (u) − Ip (v))
2
1 
= If (p) (dfp (u + v)) − If (p) (u) − If (p) (v) = hdfp (u), dfp (v)i,
2
e portanto f é uma isometria.
As isometrias estão caracterizadas pela preservação da primeira forma fundamental, isto
é, da geometria intrínseca das superfícies. Em particular, entre todas as propriedades de
preservação das isometrias, elas preservam os conceitos intrínsecos a S já estudados na seção
2.7. Se f : S −→ S 0 é uma isometria entre superfícies, então:

• f preserva o comprimento dos vectores tangentes e os ângulos que eles formam no


correspondente plano tangente.

• f preserva o comprimento de arco de qualquer curva regular contida em S.

• f preserva a área de regiões limitadas da superfície.

Dadas duas superfícies S e S 0 , se tomamos coordenadas locais nas superfícies, podemos


juntar os resultados desenvolvidos acima e caracterizar a existência de uma isometria local
ϕ : S −→ S 0 em termos dos correspondentes coeficientes da primeira forma fundamental
associados.

Proposição 4.1.1. Sejam duas superfícies S e S 0 . Então existe uma isometria local entre
elas se, e somente se, para cada p ∈ S existem parametrizações locais X : U −→ V ⊂ S e
Y : U −→ V 0 ⊂ S 0 tais que E = E, e F = Fe e G = G, e sendo E, F e G os coeficientes da
primeira forma fundamental de S e E,e Fe e G
e os coeficientes da primeira forma fundamental
de S 0 .

Demonstração. Se existe tal isometria local, é claro da igualdade (4.1) que f preserva a
primeira forma fundamental.
Vemos a seguir que a afirmação recíproca é também satisfeita. Sejam p ∈ X(U ) ⊂ S, w ∈
Tp S e α : (−, ) −→ S uma curva representativa de p e w de maneira que α((−, )) ⊂ X(U ).
Chamamos de ϕ = Y ◦ X −1 : X(U ) ⊂ S −→ Y (U ) ⊂ S 0 , a qual é diferenciável.
166 CAPÍTULO 4. GEOMETRIA INTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES.

Por um lado, temos w = u0 Xu + v 0 Xv expressado em coordenadas na base B = {Xu , Xv } de


Tp S pela observação 2.5.1. Por outro lado:
d d
dϕp (w) = (ϕ ◦ α)(t) = (Y ◦ X −1 ◦ X)(u(t), v(t))
dt |t=0 dt |t=0
d
= Y (u(t), v(t)) = u0 Yu + v 0 Yv ,
dt |t=0
logo, dϕp preserva as coordenadas dos vetores tangentes a S e S 0 nas correspondentes bases
dadas pelas parametrizações X e Y .
Sejam w, t ∈ Tp S arbitrários com coordenadas w = (w1 , w2 )B e t = (t1 , t2 )B . Então, usando
o provado acima tem-se que

hdϕp (w), dϕp (t)iϕ(p) = hw1 Yu + w2 Yv , t1 Yu + t2 Yv iϕ(p)


= w1 t1 E
e + (w1 t2 + w2 t1 )Fe + w2 t2 G
e

= w1 t1 E + (w1 t2 + w2 t1 )F + w2 t2 G
= hw1 Xu + w2 Xv , t1 Xu + t2 Xv ip
= hw, tip .

Donde podemos concluir o resultado.

A definição 4.1.1 e a observação 4.1.3 estabelecem um critério para saber se uma dada
aplicação diferenciável entre duas superfícies é uma isometria local. O resultado anterior
permite justificar facilmente a existência de uma isometria local entre duas dadas superfí-
cies, embora que não fornece um método para obtermos explicitamente tal isometria local.
Voltando ao exemplo 4.1.1, podemos provar que o plano e o cilindro circular reto de raio
r = 1 são localmente isométricos sem necessidade de definir uma isometria local, apenas
tomando duas parametrizações como aquelas dadas nos exemplos 2.7.1 e 2.7.2, pois tem-se
que:

E = 1 = E,
e

F = 0 = Fe,
G = 1 = G.
e

Exemplo 4.1.2. Dois planos são congruentes.


Basta tomar parâmetros locais neles de maneira que os vetores da base do plano tangente
associado a cada um dos seus pontos seja a base canônica de R2 e aplicar a corolário 4.1.1.
Por outro lado, se f é uma isometria local entre os dois planos, como a segunda forma
4.1. CONGRUÊNCIAS, ISOMETRIAS E APLICAÇÕES CONFORMES. 167

fundamental é identicamente nula em ambos casos, ver exemplo 3.1.1, então f a preserva e
pode-se aplicar o teorema 4.1.1 fundamental da teoria de superfícies.
Exemplo 4.1.3. Duas esferas de igual raio r > 0 são congruentes.
Basta tomar coordenadas esféricas nas esferas Sr e Sr0 igual que no exemplo 2.1.4 e, repetindo
os cálculos realizados no exemplo 2.7.5, tem-se que

E = r2 = E,
e

F = 0 = Fe,
G = r2 Sin2 (θ) = G.
e

Concluímos que Sr e Sr0 são localmente isométricas usando o corolário 4.1.1.


Por outro lado, se fixamos a orientação nas esferas dadas pelo normal exterior temos que a
segunda forma fundamental tem matriz associada igual a −(1/r)I3 em ambos casos, sendo I3
a matriz identidade de ordem 3 em virtude do exemplo 3.1.2. Se consideramos uma isometria
local f : Sr −→ Sr0 , então
1 1
IIf0 (p) (dfp (v)) = − hdfp (v), dfp (v)i = − hv, vi = IIp (v), ∀p ∈ Sr , ∀v ∈ Tp Sr ,
r r
e pode-se concluir pelo teorema 4.1.1 fundamental da teoria de superfícies.
Exemplo 4.1.4. O catenóide C e o helicóide H são localmente isométricos e não-congruentes.
Considere o aberto U = (0, 2π) × (0, 2π) de R2 e as parametrizações locais X : U −→ C e
Y : U −→ H do catenóide e do helicóide, respectivamente, dadas nos exemplos 3.9.1 e 3.9.3.
Então:
E = cosh2 (v) = E,
e

F = 0 = Fe,
G = cosh2 (v) = G.
e

Podemos deduzir que C e H são localmente isométricos pelo corolário 4.1.1. Por outro lado,
H é homeomorfo ao plano e C é homeomorfo ao cilindro, portanto não pode existir um
homeomorfismo entre C e H pelos comentários posteriores ao exemplo 4.1.1, o que implica
que não existe um difeomorfismo entre as duas superfícies nem, em particular, uma isometria.

Definição 4.1.3. Considere duas superfícies S e S 0 e uma aplicação diferenciável f : S −→


S 0 . Dizemos que f é uma aplicação conforme local se para cada p ∈ S existe uma vizinhança
aberta V de p em S e uma aplicação diferenciável λ : V −→ R+ tais que

hdfq (u), dfq (v)i = λ(q)hu, vi, ∀q ∈ V, ∀u, v ∈ Tp S. (4.3)


168 CAPÍTULO 4. GEOMETRIA INTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES.

Nesse caso diz-se que as superfícies S e S 0 são localmente conformes e λ é chamada de


aplicação conforme local ou de fator conforme local associado a f .

A família das aplicações conformes locais contêm a família das isometrias locais, basta
tomar o fator conforme local λ ≡ 1 em cada vizinhança aberta de S. Naturalmente o
recíproco não é verdadeiro e portanto a família das aplicações conformes locais são uma
sub-família própria da família das isometrias locais. Apesar disso, algumas das propriedades
provadas antes para isometrias locais ainda são satisfeitas como veremos a seguir.

Observação 4.1.4. Por exemplo, se f é uma aplicação conforme local, então, repetindo o
cálculo feito na observação 4.1.2 e usando que o fator conforme local é distinto de zero ao
redor de cada ponto p ∈ S, pode-se provar que f é um difeomorfismo local em virtude da
proposição 2.5.1, da fórmula das dimensões e do teorema 2.5.2 da função inversa.
Aliás, as aplicações conformes locais podem-se caracterizar como aquelas aplicações dife-
renciáveis entre superfícies cuja diferencial associada em cada ponto preserva a medida dos
ângulos formado entre quaisquer dois vetores do correspondente plano tangente à superfície.
A prova é deixada para o leitor, exercício 14 da seção 4.2 de [4].

Proposição 4.1.2. Sejam duas superfícies S e S 0 . Então existe uma aplicação conforme
local entre elas se, e somente se, existem parametrizações locais X : U −→ V ⊂ S e
Y : U −→ V 0 ⊂ S 0 e existe uma aplicação diferenciável λ : V 0 −→ R+ tais que E
e = λ(q)E,
e = λ(q)G, para cada q ∈ V 0 , sendo E, F e G os coeficientes da primeira
Fe = λ(q)F e G
forma fundamental de S em V e E,
e Fe e G
e os coeficientes da primeira forma fundamental
de S 0 em V 0 .

Demonstração. Se existe tal aplicação conforme local, é claro de (4.3) que os coeficientes
das correspondentes primeiras formas fundamentais de S e S 0 satisfazem as igualdades do
enunciado.
A demonstração do recíproco é análoga à demonstração do recíproco na proposição 4.1.1.
Se consideramos a aplicação ϕ = Y ◦ X −1 : X(U ), temos que dϕp preserva as coordenadas
dos vetores tangentes S e S 0 nas correspondentes bases dadas pelas parametrizações X e Y .
Tomando vetores w, t ∈ Tp S arbitrários com coordenadas w = (w1 , w2 )B e t = (t1 , t2 )B .
4.1. CONGRUÊNCIAS, ISOMETRIAS E APLICAÇÕES CONFORMES. 169

Então, usando o provado acima tem-se que

hdϕp (w), dϕp (t)iϕ(p) = hw1 Yu + w2 Yv , t1 Yu + t2 Yv iϕ(p)


= w1 t1 E
e + (w1 t2 + w2 t1 )Fe + w2 t2 G
e

= λ(p)w1 t1 E + λ(p)(w1 t2 + w2 t1 )F + λ(p)w2 t2 G


= λ(p)hw1 Xu + w2 Xv , t1 Xu + t2 Xv ip
= λ(p)hw, tip .

Donde podemos concluir o resultado.

Note que a propriedade ser localmente conforme é mesmo uma propriedade transitiva no
conjunto das superfícies regulares. Sejam S1 , S2 e S3 três superfícies regulares de maneira
que existem duas aplicações conformes locais ϕ12 : S1 −→ S2 e ϕ23 : S2 −→ S3 , vemos que
S1 é também localmente conforme a S3 . Com efeito, considere a aplicação ϕ13 : S1 −→ S3
dada por ϕ13 = ϕ23 ◦ ϕ12 , a qual é diferenciável. Aliás, dados p ∈ S1 e u, v ∈ Tp S1 arbitrários,
usando a regra da cadeia (teorema 2.5.1) tem-se que

hd(ϕ13 )p (u), d(ϕ13 )p (v)iϕ13 (p) = hd(ϕ23 ◦ ϕ12 )p (u), d(ϕ23 ◦ ϕ12 )p (v)i(ϕ23 ◦ϕ12 )(p)
= hd(ϕ23 )ϕ12 (p) (d(ϕ12 )p (u)), d(ϕ23 )ϕ12 (p) (d(ϕ12 )p (v))iϕ23 (ϕ12 (p))
= λ23 hd(ϕ12 )p (u), d(ϕ12 )p (v)iϕ12 (p)
= λ23 λ12 hu, vip .

Além disso, se S é uma superfície regular e consideramos parâmetros locais isotérmicos


X : U −→ S garantidos pela observação 3.9.2, então existe uma função diferenciável λ :
U −→ R+ tal que ES = λ = GS e FS = 0. Se consideramos agora um plano Π arbitrário,
sabemos pelo exemplo 2.7.1 que é possível encontrar uma parametrização do mesmo de
maneira que os coeficientes da primeira forma fundamental sejam EΠ = 1 = GΠ e FΠ = 0.
Assim,

ES = λ = λ · 1 = λEΠ ,
FS = 0 = λ · 0 = λFΠ ,
GS = λ = λ · 1 = λGΠ ,

o que implica que S e Π são localmente conformes. Esses fatos podem-se juntar e constituem
uma prova do seguinte resultado:

Teorema 4.1.2. Duas superfícies regulares quaisquer são localmente conformes.


170 CAPÍTULO 4. GEOMETRIA INTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES.

Definição 4.1.4. Dadas duas superfícies S e S 0 , dizemos que uma aplicação f : S −→ S 0


é uma aplicação conforme se f é um difeomorfismo e existe uma aplicação diferenciável
λ : S −→ R+ tal que dfp satisfaz a igualdade (4.3) para todo p ∈ S e para quaisquer
u, v ∈ Tp S.

É fácil deduzir da definição acima que toda aplicação conforme é uma aplicação conforme
local e portanto preserva ângulos. A afirmação recíproca é falsa, pois não existe um difeo-
morfismo entre o plano e o cilindro circular reto, como já foi comentado antes do teorema
4.1.1.
4.2. EXERCÍCIOS. 171

4.2 Exercícios.
1. Seja f : S −→ S 0 uma aplicação diferenciável entre duas superfícies S e S 0 . Prove que
f é uma isometria local se, e somente se, f preserva o comprimento das curvas em S.

2. Se f : S −→ S 0 é uma isometria entre superfícies, prove que o módulo do |Jacf |(p) é


igual a 1, para todo p ∈ S.

3. Se f : S −→ S 0 é uma isometria entre superfícies compactas, prove que Area(S) =


Area(S 0 ).

4. Prove que a composição de isometrias locais entre superfícies é uma isometria local e
que a inversa de uma isometria é também uma isometria. Conclua que o conjunto

Isom(S) = {f : S −→ S : f é uma isometria }

munido da composição de aplicações tem estrutura algébrica de grupo. O par (Isom(S), ◦)


é chamado de grupo de isometrias de S.

5. Dê uma demonstração rigorosa de cada uma das propriedades de preservação das iso-
metrias listadas na observação 4.1.3.

6. Prove que o plano horizontal R2 × {0} e o semi-cone superior C + = {(x, y, z) ∈ R3 :


x2 + y 2 = k 2 z 2 , z > 0 e k = const. > 0} são localmente isométricas. Existe uma
isometria entre essas duas superfícies? justifique sua resposta.
Indicação: para provar a existência de uma isometria local, tente encontrar
parametrizações apropriadas tanto do plano quanto do cone e use o corolário
4.1.1.

7. Seja F : O −→ O0 um difeomorfismo entre dois abertos conexos de R3 tal que dFp


é uma isometria linear do espaço em cada p ∈ O. Prove que F é a restrição de um
movimento rígido de R3 no aberto O.

Livro do Manfredo, págs 272-277, exercícios 2, 3, 5, 9, 10, 11, 14 e 18.


172 CAPÍTULO 4. GEOMETRIA INTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES.

4.3 O teorema Egregium de Gauss.


Como já foi dito na introdução da seção anterior, a geometria intrínseca das superfícies é
o estudo das propriedades geométricas que são preservadas por isometria locais. A curvatura
Gaussiana de uma superfície foi definida na seção 3.1 em termos da segunda forma funda-
mental, a qual é um elemento extrínseco à superfície. Resulta surpreendente que a curvatura
de Gauss seja o principal invariante da geometria intrínseca.
Seja S uma superfície regular e orientada e N : S −→ S2 a aplicação de Gauss associada à
orientação pre-fixada em S. Sobre cada ponto p ∈ S pode-se considerar uma base de R3 dada
pelos vetores Bp = {Xu , Xv , N }, a qual está associada a uma determinada parametrização
local X : U −→ S de S em torno desse ponto. Usando os vetores da base Bp para dar uma
expressão das derivadas parciais dos vetores Xu , Xv e N em coordenadas, existem funções
Γijk : U −→ R, para i, j, k = 1, 2, Li : U −→ R, para i = 1, 2, 3, 4 e ai j : U −→ R, para
i, j = 1, 2 de maneira que:

Xuu = Γ111 Xu + Γ211 Xv + L1 N,


Xuv = Γ112 Xu + Γ212 Xv + L2 N,
Xvu = Γ121 Xu + Γ221 Xv + L3 N,
(4.4)
Xvv = Γ122 Xu + Γ222 Xv + L4 N,
Nu = a11 Xu + a12 Xv ,
Nv = a21 Xu + a22 Xv .

As igualdades (4.4) são ditas equações de estrutura e as funções Γijk , i, j, k = 1, 2 são chamados
de símbolos de Christoffel. O seguinte passo é obtermos uma expressão de todas e cada uma
dessas funções em termos dos coeficientes da primeira e da segunda formas fundamentais.
Em primeiro lugar, as funções aij , i, j = 1, 2, já foram determinadas na seção 3.5, e seu
valor é dado pelas igualdades (3.21), chamadas de equações de Weingarten. Devemos por-
tanto determinar os coeficientes restantes. Em segundo lugar, usando o teorema de Schwarz
tem-se que

Γ112 = Γ121 ,
Γ212 = Γ221 (4.5)
L2 = L3 ,

logo podemos desconsiderar a terceira igualdade de (4.4) por causa dessa simetria. Em
terceiro lugar, multiplicando escalarmente por N as derivadas parciais segundas de X, ou
4.3. O TEOREMA EGREGIUM DE GAUSS. 173

seja, as igualdades primeira, segunda e quarta, obtemos

L1 = e
L2 = f (4.6)
L4 = g.

Em quarto lugar, derivamos parcialmente os coeficientes da primeira forma fundamental a


respeito dos parâmetros temos que:

Eu = 2hXuu , Xu i
Ev = 2hXuv , Xu i
Fu = hXuu , Xv i + hXuv , Xu i
(4.7)
Gu = 2hXuv , Xv i
Gv = 2hXvv , Xv i
Fv = hXuv , Xv i + hXvv , Xu i

Para finalizar, a fins de calcular os símbolos de Christoffel, multiplicamos escalarmente pelos


vetores Xu e Xv as igualdades primeira, segunda e quarta de (4.4). Usando as igualdades
(4.7) obtemos que

1
Eu = Γ111 E + Γ211 F
2
1
Fu − Ev = Γ111 F + Γ211 G
2
1
Ev = Γ112 E + Γ212 F
2 (4.8)
1
Gu = Γ112 F + Γ212 G
2
1
Fv − Gu = Γ122 E + Γ222 F
2
1
Gv = Γ122 F + Γ222 G.
2

Se agrupamos as igualdades (4.8) em pares e usando notação matricial, obtemos as seguintes


expressões dos símbolos de Christoffel em termos dos coeficientes da primeira forma funda-
174 CAPÍTULO 4. GEOMETRIA INTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES.

mental:
 
1 1 1
Γ111 = GEu − F Fu + F Ev
EG − F 2 2 2
 
1 1 1
Γ211 = − F Eu + EFu − EEv
EG − F 2 2 2
 
1 1 1
Γ112 = GEv − F Gu
EG − F 2 2 2
  (4.9)
1 1 1
Γ212 = − F Ev + EGu
EG − F 2 2 2
 
1 1 1
Γ122 = GFv − GGu − F Gv
EG − F 2 2 2
 
1 1 1
Γ222 = −F Fv + F Gu + EGv .
EG − F 2 2 2

Exemplo 4.3.1. O Plano.


Dado um plano Π, vimos no exemplo 2.7.1 que pode ser parametrizado de maneira que os
coeficientes da primeira forma fundamental são

E(u, v) = 1; F (u, v) = 0; G(u, v) = 1.

Substituindo essas funções em (4.9), temos que os símbolos de Christoffel associados a Π são
Γijk = 0, para cada i, j, k = 1, 2.

Exemplo 4.3.2. Superfícies de revolução.


Seja uma curva diferenciável PCA α : I ⊂ R −→ R3 contida no plano Oxz dada por
α(s) = (ϕ(s), 0, ψ(s)), tal que ϕ(s) > 0, ∀s ∈ I. Considere a superfície de revolução S
gerada pela rotação do traço de α em torno do eixo vertical, parametrizada localmente por

X(u, v) = (ϕ(u)Cos(v), ϕ(u)Sin(v), ψ(u)), ∀(u, v) ∈ U = I × (0, 2π).

No exemplo 3.5.7 foram calculados os coeficientes da primeira forma fundamental de S,


obtendo

E(u, v) = 1; F (u, v) = 0; G(u, v) = ϕ2 (u).

Queremos calcular os símbolos de Christoffel associados a superfície de revolução S. Para


4.3. O TEOREMA EGREGIUM DE GAUSS. 175

isso, substituimos as funções acima em (4.9) e fazendo alguns cálculos pode-se provar que

Γ111 = 0,
Γ211 = 0,
Γ112 = 0,
ϕ0
Γ212 = ,
ϕ
Γ122 = −ϕ · ϕ0 ,
Γ222 = 0.

Observação 4.3.1. Observamos das igualdades (4.9) que qualquer característica geométrica
das superfícies que possa ser expressada em coordenadas locais como uma função dos símbolos
de Christoffel, será invariante por isometrias locais em virtude do corolário 4.1.1. Essa
observação é mesmo importante para entender o teorema demonstrado por Gauss no seu
livro titulado Disquisitiones Arithmeticae do ano 1798.

Teorema 4.3.1 (Egregium de Gauss). A curvatura Gaussiana de qualquer superfície regular


do espaço é invariante por isometrias locais.

Demonstração. Pelo teorema de Schwarz, temos que Xuuv = Xuvu . Das equações de estrutura
(4.4), tomamos a componente na direção do vetor Xv dos vetores Xuuv e Xuvu e temos que

Γ111 Γ212 + (Γ211 )v + Γ211 Γ222 + ea22 = Γ112 Γ211 + (Γ212 )u + (Γ212 )2 + f a21 .

Usando as equações de Weingarten (3.21) na fórmula acima, logo após um simples cálculo
obtemos
EK = Γ111 Γ212 − Γ112 Γ211 + (Γ211 )v − (Γ212 )u + Γ211 Γ222 − (Γ212 )2 , (4.10)

sendo K a curvatura Gaussiana de S no ponto p, o que implica que K é invariante por


isometrias locais em virtude da observação 4.3.1.

Observação 4.3.2. Vemos que o recíproco do teorema egregium de Gauss não é verdadeiro.
Com efeito, considere uma superfície S dada pela união diferenciável de duas semi-esferas de
igual raio e um cilindro circular reto de igual raio que a semi-esfera. Definimos uma aplicação
f : S −→ S 0 como na figura 4.2, de maneira que f transforma S em S 0 apenas reduzindo a
distância entre as bases do cilindro. É evidente que f é um difeomorfismo e que preserva a
curvatura gaussiana em todo ponto de S, porém não é uma isometria local, pois não preserva
176 CAPÍTULO 4. GEOMETRIA INTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES.

Figura 4.2: Difeomorfismo que preserva a curvatura.

o comprimento de todas as curvas de S. Surpreendentemente, a resposta negativa dada ao


recíproco do teorema egregium para superfícies, as quais são variedades diferenciáveis de
dimensão igual a dois, não é mantida em variedades de dimensões superiores. Em 1970, o
professor R. Kulkarni provou o seguinte resultado, ver [6] e [7]:

«Se um difeomorfismo de variedades preserva a curvatura, então é uma isometria


se S n e S̃ n são variedades analíticas de curvatura não constante e dimensão
n ≥ 4.»

Para o casso n = 3, foi o professor S.T. Yau em 1974 quem encontrou um contra-exemplo ao
teorema de Kulkarni e provou um teorema análogo para dimensão n ≥ 3 para difeomorfismos
que preservam a curvatura entre variedades compactas de curvatura não constante, ver [16]
ou [5, Cap.VIII, Sec.2].

A igualdade (4.10) é chamada de equação de Gauss. Uma pergunta surge de maneira


natural por conta da demonstração do teorema egregium de Gauss. Tendo em conta que
encontramos informações muito importantes relativamente à curvatura de Gauss das super-
fícies de R3 comparando apenas os coeficientes na direção de Xv dos vetores Xuuv e Xuvu na
base Bp , pode-se pensar que novas informações estão ainda aguardando a serem descobertas
se comparamos as coordenadas restantes desses vetores, ou mesmo se comparamos as coor-
denadas de outras derivadas parciais múltiplas, sejam ou não mistas, de terceira ordem de
X ou de ordens superiores.
4.3. O TEOREMA EGREGIUM DE GAUSS. 177

Por enquanto, se igualamos as coordenadas de Xuuv e Xuvu na direção de Xu , fazendo


cálculos similares pode-se obter uma nova versão da equação de Gauss em outros termos, a
saber:
F K = (Γ112 )u − (Γ111 )v + Γ212 Γ121 − Γ211 Γ122 ,

a qual não fornece novas informações. Porém, igualando as coordenadas na direção de N dos
vetores Xuuv e Xuvu temos as seguintes igualdades que relacionam os símbolos de Christoffel
com os coeficientes da segunda forma fundamental e suas derivadas parciais:

ev − fu = eΓ112 + f (Γ212 − Γ111 ) − gΓ211


(4.11)
fv − gu = eΓ122 + f (Γ222 − Γ112 ) − gΓ212

As igualdades acima são conhecidas na literatura como as equações de Mainardi-Codazzi. As


equações (4.10) de Gauss e (4.11) de Mainardi-Codazzi são ditas as equações de compatibi-
lidade da teoria de superfícies.
Exemplo 4.3.3. Dada uma superfície regular S e X : U −→ S uma parametrização ortogonal
de S, isto é que X satisfaz F ≡ 0, ver os comentários depois do exemplo 2.7.1. Então pode-se
dar a seguinte expressão para a curvatura de Gauss em cada ponto p ∈ X(U )
    
−1 Ev Gu
K= √ √ + √ . (4.12)
2 EG EG v EG u
Se X : U −→ S é uma parametrização duplamente ortogonal de S, isto é que X satisfaz
F ≡ 0 e f ≡ 0, ver observação 3.5.1. Além de que a fórmula para a curvatura gaussiana é
ainda válida, podemos também dar a seguinte expressão das equações de Mainardi-Codazzi
em cada p ∈ X(U )
Ev  e g
ev = + ,
2 E G (4.13)
Gu  e g
gu = + .
2 E G
Note que, no contexto dos parâmetros duplamente ortogonais, se verifica
e g
+ = 2H,
E G
sendo H a função curvatura média.
A prova das fórmulas (4.12) e (4.13) são deixadas como exercícios para o leitor.
Se continuássemos derivando parcialmente as equações (4.4) de estrutura e comparando os
correspondentes coeficientes na base Bp , veríamos que só encontraríamos relações de compa-
tibilidade que não fornecem maiores informações que as equações (4.10) e (4.11) já descritas
178 CAPÍTULO 4. GEOMETRIA INTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES.

acima. O seguinte resultado confirma a veracidade dessa afirmação, pois mostra que o co-
nhecimento das primeira e segunda formas fundamentais e das equações de compatibilidade
que elas satisfazem determinam localmente as superfícies a menos de um movimento rígido
do espaço.

Teorema 4.3.2 (fundamental da teoria local de superfícies, Bonnet.). Sejam as funções


diferenciáveis E, F , G, e, f e g, definidas todas elas no mesmo aberto V ⊂ R2 e tais
que E > 0 e G > 0. Suponha que EG − F 2 > 0 e que são satisfeitas as equações de
compatibilidade. Então, para todo q ∈ V , existe uma vizinhança aberta U de q em V e existe
um difeomorfismo X : U −→ X(U ) ⊂ R3 tal que X(U ) é uma superfície regular, cujos
coeficientes da primeira e segunda formas fundamentais são iguais às funções E, F , G, e, f
e g, respectivamente. Além disso, se U é conexo, então a superfície X(U ) é única a menos
de um movimento rígido do espaço.

Demonstração. Daremos só uma idéia da prova, não uma prova rigorosa.


Pode-se provar esse resultado fazendo um raciocínio análogo ao já realizado na demonstração
do teorema 1.4.1 fundamental da teoria local de curvas. A idéia é a seguinte, procuramos
funções vetoriais ξ = (ξ1 , ξ2 , ξ3 ), ϕ = (ξ4 , ξ5 , ξ6 ), e η = (ξ7 , ξ8 , ξ9 ), definidas em um aberto
U ⊂ R2 de maneira que a família de triedros {ξ, ϕ, η} associada em cada ponto (u, v) ∈ U
satisfaça um sistema de equações de compatibilidade igual que (4.4), onde os coeficientes
Γijk e aij são definidos em função das funções E, F , G, e, f , e g como em (4.8) e em (3.21),
respectivamente. O resultado é o seguinte sistema de equações diferencias parciais em U ×R9 ,

(ξ1 )u = f01 (u, v, ξ1 , . . . , ξ9 ), (ξ1 )v = f02 (u, v, ξ1 , . . . , ξ9 ),


(ξ2 )u = f03 (u, v, ξ1 , . . . , ξ9 ), (ξ2 )v = f04 (u, v, ξ1 , . . . , ξ9 ),
(ξ3 )u = f05 (u, v, ξ1 , . . . , ξ9 ), (ξ3 )v = f06 (u, v, ξ1 , . . . , ξ9 ),
(ϕ1 )v = f07 (u, v, ξ1 , . . . , ξ9 ),
(ϕ2 )v = f08 (u, v, ξ1 , . . . , ξ9 ), (4.14)
(ϕ3 )v = f09 (u, v, ξ1 , . . . , ξ9 ),
(η1 )u = f10 (u, v, ξ1 , . . . , ξ9 ), (η1 )v = f11 (u, v, ξ1 , . . . , ξ9 ),
(η2 )u = f12 (u, v, ξ1 , . . . , ξ9 ), (η2 )v = f13 (u, v, ξ1 , . . . , ξ9 ),
(η3 )u = f14 (u, v, ξ1 , . . . , ξ9 ), (η3 )v = f15 (u, v, ξ1 , . . . , ξ9 ).
Para condições iniciais dadas, as condições que garantem existência e unicidade de so-
lução do sistema (4.14) são ξuv = ξvu , ϕuv = ϕvu e ηuv = ηvu . Pode-se encontrar uma prova
4.3. O TEOREMA EGREGIUM DE GAUSS. 179

dessa afirmação em [15, Ap.B, Th.V]. Para finalizar, basta tomar uma solução (ξ, ϕ, η) de
(4.14) e definir o novo sistema

Xu = ξ,
(4.15)
Xv = ϕ,

o qual é integrável, pois ξv = ϕu pela maneira como essas funções foram definidas no início
da prova. Assim, para uma dada condição inicial X(u0 , v0 ) = p0 ∈ R3 , tomamos uma solução
X : V −→ R3 do sistema (4.15) em uma vizinhança V de (u0 , v0 ). Basta provar que X(V )
é uma superfície regular, ver [4, Ap.4.7].

Segue dos exemplos 2.7.1, 2.7.5 e do teorema 4.3.1 egregium de Gauss, que um aberto
da esfera unitária não pode ser isométrico a um aberto do plano, exprimindo portanto uma
nova propriedade da esfera chamada de rigidez. A grosso modo, diz-se que uma superfície
de R3 é rígida se ela fica totalmente determinada, a menos de movimentos rígidos do espaço,
pela primeira forma fundamental.

Teorema 4.3.3 (rigidez das esferas.). Sejam S2 (r) uma esfera de raio r > 0 e S uma
superfície conexa. Se f : S2 (r) −→ S é uma isometria local, então f é uma congruência.
Em particular, S é uma esfera de igual raio r > 0.

Demonstração. Como f é isometria local, então é difeomorfismo local pela observação 4.1.2
e é, portanto, uma aplicação aberta por 2.5.2. Logo f (S2 (r)) é um aberto de S. Por outro
lado, pela continuidade de f temos que f (S2 (r)) é um compacto de S, em particular é um
subconjunto fechado de S, logo f (S2 (r)) = S por ser S conexa, o que implica que f é
sobrejetiva.
Pelo exemplo 3.1.2 e o teorema 4.3.1 egregium de Gauss, temos que KS ≡ 1/r2 > 0, logo S
é uma esfera de raio r > 0 pelo teorema 3.5.2 de Liebmann. Assim, f é uma isometria local
entre esferas de igual raio, portanto é uma congruência pelo teorema 4.1.1.

A propriedade da rigidez da esfera é uma justificativa matemática para um fenómeno


físico, o qual faz referência à impossibilidade de deformar uma esfera construída com um
material que seja ao mesmo tempo flexível e não-elástico, ou seja, com um material que
permite ser dobrado preservando o comprimento das curvas representadas nele. Assim, se
tentamos deformar uma esfera feita de papelão, ela vai quebrar. Note que a propriedade de
rigidez das esferas não é extensível a todas as superfícies compactas, pois existem exemplos de
180 CAPÍTULO 4. GEOMETRIA INTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES.

superfícies compactas, dentro da família das superfícies de revolução, as quais são isométricas,
mas não são congruentes.
A aplicação f mostrada na figura 4.3 deixa fixos todos os pontos de S sob o plano Π, o
qual é tangente à superfície em uma circunferência formada por pontos planares de S, e é
igual à reflexão de todos os pontos de S acima desse plano, é portanto uma isometria de S
em S 0 , pois tanto a identidade quanto a reflexão preservam as distâncias. O fato de deixar
fixo um conjunto de pontos que não pode ser contido em um plano diz-nos que f não pode
ser a restrição de um movimento rígido de R3 , portanto essas duas superfícies não podem
ser congruentes mas sim isométricas. Observamos que a superfície de rotação S mostrada na
figura 4.3 apresenta pontos planares representados por uma circunferência na cor vermelha e
também uma outra circunferência composta de pontos hiperbólicos, cuja existência pode ser
provada em virtude do teorema 3.3.2, a qual está representada na figura na cor verde e está
contida no semi-espaço superior delimitado por Π.

Figura 4.3: S e S 0 são isométricas mas não congruentes.

Se uma superfície é compacta, então deve conter pelo menos um ponto elíptico, como
foi provado no exercício 3 da seção 3.4. Dizemos que uma superfície é um ovalóide se é
compacta, conexa e todos seus pontos são elípticos. Alguns exemplos de ovalóides já foram
apresentados previamente, por exemplo esferas e elipsóides. A propriedade da rigidez não é
satisfeita pela superfície S da figura acima por causa da existência de pontos não elípticos.
O seguinte resultado, que apresentamos sem prova, mostra que propriedade de rigidez da
esfera pode ser estendida à família dos ovalóides. Pode-se encontrar uma demonstração bem
detalhada desse resultado em [10, Sec.7.4].
4.3. O TEOREMA EGREGIUM DE GAUSS. 181

Teorema 4.3.4 (Rigidez dos ovaloides, Cohn-Vossen.). Toda isometria entre dois ovalóides
é uma congruência.
182 CAPÍTULO 4. GEOMETRIA INTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES.

4.4 Exercícios
Livro do Manfredo, págs 283-284, exercícios: todos.
4.5. CURVAS GEODÉSICAS. 183

4.5 Curvas geodésicas.


Seja S uma superfície regular e um aberto W ⊂ S. Um campo de vetores tangentes em
W é uma aplicação ω : W −→ R3 tal que ω(p) ∈ Tp S para cada ponto p ∈ W . Diz-se que
ω é diferenciável em p se existe uma parametrização local X : U −→ S de S em p tal que
X(U ) ⊂ W e existem funções a, b : U −→ R diferenciáveis em p tais que

ω(p) = aXu + bXv .

O campo ω é diferenciável em W se é diferenciável em cada p ∈ W . É fácil ver que a


definição de campo de vetores diferenciável independe da parametrização X pelo teorema de
mudança de variáveis.
Considere p e q dois pontos distintos na superfície S. Uma curva em S que liga os pontos
p e q é uma curva parametrizada α : [0, l] −→ S tal que α(0) = p, α(l) = q e α é a restrição
no intervalo [0, l] de uma aplicação diferenciável Λ : (−, l + ) −→ S, para certo  > 0. A
curva α é regular em [0, l] se a curva Λ é regular em (−, l + ). No que segue, usaremos a
notação I = [0, l] entendendo que ela é regular nesse intervalo como se I fosse um intervalo
aberto, em concordância com a definição 1.1.1.

Figura 4.4: Derivada covariante de ω em p na direção de w.

Dado um campo de vetores tangentes ω e uma curva α : I −→ S sobre a superfície S,


então a restrição ω|α(I) é chamado de campo de vetores tangentes ao longo de α e, nesse caso,
tem-se que cada ω(t) está em Tα(t) S para cada t ∈ I. A regularidade do campo, quando
184 CAPÍTULO 4. GEOMETRIA INTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES.

ele é restrito ao traço de uma curva α, está em função da regularidade das correspondentes
funções coordenadas, que no caso podem ser consideradas funções de t. Assim, o campo
ω(t) = a(t)Xu + b(t)Xv ao longo de uma curva é diferenciável em t se as funções a(t) e b(t)
são diferenciáveis em t e o campo é dito diferenciável se ele é diferenciável para cada t ∈ I.
Seja ω um campo de vetores tangentes diferenciável de uma superfície regular S. Con-
sidere p ∈ S, v ∈ Tp S, α : I −→ S uma curva representativa de p e v e ω(t) a restrição
do campo ao longo de α. Se define a derivada covariante de ω em p na direção de v à
projeção tangente da derivada natural em t = 0 do vetor ω(t), isto é, a projeção do vetor
(dω/dt)(0) ∈ R3 sobre o plano tangente Tp S. Denotaremos essa derivada covariante por

(0) ou por Dωv (p).
dt
Exemplo 4.5.1. O semi-cone circular superior.
Se define o semi-cone circular superior como C + = {(x, y, z) ∈ R3 : x+ y 2 − z 2 = 0, z > 0}.
É claro que C + = f −1 ({0}) para a função diferenciável f (x, y, z) = x2 + y 2 − z 2 e 0 é um

Figura 4.5: Campo tangente sobre o semi-cone superior.

valor regular de f . Tomamos p0 = (x0 , y0 , z0 ) ∈ C + , w0 = (w1 , w2 , w3 ) ∈ Tp0 C + e α uma


curva representativa de p0 e w0 , assim
d
dfp0 (w0 ) = x(t)2 + y(t)2 − z(t)2 = 2x0 w1 + 2y0 w2 − 2z0 w3 .
dt |t=0
Como Tp0 C + = ker(dfp0 ) e z0 > 0, então
 
x0 w1 + y0 w2
w0 = w1 , w2 , .
z0
Note que, se w1 = x0 e w2 = y0 , então w0 = (x0 , y0 , z0 ) = p0 , logo o vetor de posição
é tangente a C + em cada ponto do semi-cone superior. Considere o campo de vetores
4.5. CURVAS GEODÉSICAS. 185

tangentes ω(p) = p, para cada p ∈ C + . Se p ∈ C + , v ∈ Tp C + e β é uma curva representativa


de p e v, então
d
(ω ◦ β)(t) = β 0 (0) = v ∈ Tp C + .
dt |t=0
Como a derivada natural do campo ω não possui componente na direção normal a p em C + ,
temos que

(0) = v, ∀v ∈ Tp C + .
dt
Exemplo 4.5.2. O parabolóide elíptico.
Considere o parabolóide elíptico S definido no exemplo 3.5.1, como o gráfico da função
diferenciável f (x, y) = (1/2)(x2 +y 2 ), para cada (x, y) ∈ R2 , logo S = g −1 ({0}) para a função
diferenciável g(x, y, z) = f (x, y)−z e 0 é um valor regular de g.Tomamos p0 = (x0 , y0 , z0 ) ∈ S,
w0 = (w1 , w2 , w3 ) ∈ Tp0 S e α uma curva representativa de p0 e w0 , assim

d 1
dgp0 (w0 ) = (x(t)2 + y(t)2 ) − z(t) = x0 w1 + y0 w2 − w3 .
dt |t=0 2

Como Tp0 S = ker(dgp0 ), então

w0 = (w1 , w2 , x0 w1 + y0 w2 ) .

Note que, se w1 = x0 e w2 = y0 , então w0 = (x0 , y0 , x20 + y02 ). Considere o campo de


vetores tangentes ω(x, y, z) = (x, y, x2 + y 2 ), para cada p ∈ S. Se p = (x, y, z) ∈ S,
v = (v1 , v2 v3 ) ∈ Tp S e β é uma curva representativa de p e v, então

d
(ω ◦ β)(t) = (v1 , v2 , 2xv1 + 2yv2 ).
dt |t=0

Considere o ponto p0 = (1, 1, 1) ∈ S e v0 = (1, 2, 3) ∈ Tp0 S, queremos calcular a derivada


covariante do campo ω em p0 na direção de v0 . Em primeiro lugar, substituimos p0 e v0 na
expressão anterior e temos que

(0) = (1, 2, 6).
dt
Em segundo lugar devemos calcular o normal a S em p0 ,

∇g(p0 ) 1 1
N (p0 ) = =p (x 0 , y0 , −1) = √ (1, 1, −1).
|∇g(p0 )| 1 + x20 + y02 3

Para finalizar, usamos a fórmula (4.19) e temos que

Dω 1 1
(0) = (1, 2, 6) − h(1, 2, 6), √ (1, 1, −1)i √ (1, 1, −1) = (1, 2, 6) − (−1, −1, 1) = (2, 3, 5).
dt 3 3
186 CAPÍTULO 4. GEOMETRIA INTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES.

Para provar que a derivada covariante de um campo de vetores ω está bem definido,
precisamos ver que sua definição independe da curva representativa α. Com efeito, se to-
mamos coordenadas locais X(u, v), temos que w = (u0 , v 0 )B e ω(t) = (a(t), b(t))B , sendo
B = {Xu , Xv } base de Tp S. Note que vamos desconsiderar escrever a dependência dos
parâmetros a fins de economizar na escrita. Derivando em relação à variavel t obtemos

= a(u0 Xuu + v 0 Xuv ) + b(u0 Xuv + v 0 Xvv ) + a0 Xu + b0 Xv . (4.16)
dt
Substituindo as expressões das derivadas parciais segundas de X nas equações de estrutura
(4.4) e desconsiderando a componente na direção do normal N (p), temos que

= (a0 + Γ111 au0 + Γ112 av 0 + Γ112 bu0 + Γ122 bv 0 )Xu
dt (4.17)
+ (b0 + Γ211 au0 + Γ212 av 0 + Γ212 bu0 + Γ222 bv 0 )Xv
Note que a expressão acima está em termos do símbolos de Christoffel e depende só de
(u0 , v 0 ); isso implica duas coisas simultaneamente, a primeira é que o conceito de derivada
covariante encaixa dentro do estudo da geometria intrínseca das superfícies e portanto as
geodésicas são invariantes por isometrias locais; e a segunda é que esse conceito está bem
definido, pois independe da escolha da curva α pelo provado na seção 2.5. Logo já podemos
juntar todo o anterior na seguinte definição:

Definição 4.5.1. Seja ω um campo diferenciável de vetores tangentes ao longo de uma curva
α : I −→ S. Se define a derivada covariante de ω em t ∈ I como o campo tangente dado
pela igualdade 4.17. Usaremos a notação

(t), ∀t ∈ I.
dt
Em concordância com a definição dada acima e tendo em conta que a derivada covariante
de uma campo ω ao longo de uma curva α : I −→ S se define como a projeção sobre o
plano tangente Tα(t) S da correspondente derivada natural do campo em t, podemos dar uma
expressão mais simples a fins de facilitar o seu cálculo explícito nos exemplos:
 >  ⊥
Dω dω dω dω
(t) = (t) = (t) − (t) , ∀t ∈ I, (4.18)
dt dt dt dt
> ⊥
sendo dωdt
(t) a componente tangencial e dω dt
(t) a componente ortogonal do vetor dω
dt
(t) ∈
R3 à superfície S no ponto α(t), isto é, as respectivas projeções do vetor no plano tan-
gente Tα(t) S e na direção do vetor normal N (α(t)). A fórmula acima pode ser finalmente
representada por:
Dω dω dω
(t) = (t) − h (t), N (α(t))iN (α(t)), ∀t ∈ I. (4.19)
dt dt dt
4.5. CURVAS GEODÉSICAS. 187

Observação 4.5.1. Segue da definição 4.5.1 que, se duas superfícies fossem tangentes ao longo
de uma curva parametrizada α, veja a definição 3.7.1, então a derivada covariante de ω ao
longo dessa curva é a mesma para ambas superfícies.
Além disso, se a superfície S fosse um plano, pelo exemplo 4.3.1 temos que Γijk = 0, para
todo i, j, k = 1, 2. Aliás, e = f = g = 0 pois a segunda forma fundamental é identicamente
nula. Substituindo todos esses valores em (4.16) e em (4.17), temos que
Dω dω
(t) = a0 Xu + b0 Xv = (t), ∀t ∈ I.
dt dt
Assim, a derivada covariante é uma generalização da derivada usual de vetores do plano
euclidiano, ou seja, uma maneira de derivar vetores tangentes a planos curvados.

Exemplo 4.5.3. Dada α : I −→ S uma curva diferenciável sobre uma superfície S, o campo
ω(t) = α0 (t), para cada t ∈ I é trivialmente um campo de vetores tangentes ao longo da
curva α, o qual pode ser chamado de campo velocidade ao longo de α. Assim, (Dα0 /dt)(t) é
a componente tangencial do vetor aceleração α00 (t) em cada t ∈ I, ou seja, a aceleração de
α(t) como apercebida dentro da superfície S.

Definição 4.5.2. Um campo de vetores ω ao longo de uma curva parametrizada α : I −→ S


é dito um campo paralelo se é identicamente nulo em I, ou seja,

(t) = 0, ∀t ∈ I. (4.20)
dt
Segue da observação 4.5.1 que, se a superfície fosse um plano, então a condição (4.20)
implica que o campo ω é um vetor constante do plano ao longo de uma curva plana, re-
sultando em que os vetores ω(t) são todos paralelos a essa direção fixa, de acordo com a
nossa intuição de paralelismo. Porém, tentar relacionarmos a idéia intuitiva de paralelismo
com campos paralelos ao longo de uma curva arbitrária em uma superfície distinta do plano
pode ser mesmo difícil. Por exemplo, considere α uma parametrização PCA de um meri-
diano da esfera unitária S2 e ω(s) = α0 (s), para todo s ∈ I. Vimos no exemplo 2.9.2 que
α(s) = N (α(s)), logo ω(s) ⊥ α(s) em todo s ∈ I; e como α é um grande círculo, então
para cada s tem-se que (dω/ds)(s) = α00 (s) = ±α(s), logo dω/ds ⊥ ω e, portanto, é um
campo paralelo ao longo do meridiano por (4.18), o qual choca com a nossa percepção de
paralelismo, ver figura 4.6.

Proposição 4.5.1. Se ω1 e ω2 dois campos de vetores tangentes a uma superfície S ao longo


de uma curva α : I −→ S, então hω1 (t), ω2 (t)i.
188 CAPÍTULO 4. GEOMETRIA INTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES.

Figura 4.6: Campo paralelo sobre a esfera unitária.

Demonstração. Se ωi é paralelo, então segue de (4.18) que


 ⊥
dωi dωi
(t) = (t) , i = 1, 2,
dt dt

e os vetores (dωi /dt) (t), i = 1, 2, são paralelos a N (α(t)) para cada t ∈ I. Portanto
d dω1 dω2
hω1 (t), ω2 (t)i = h (t), ω2 (t)i + hω1 (t), (t)i = 0, ∀t ∈ I,
dt dt dt
e segue daí o resultado.

Corolário 4.5.1. Se ω1 e ω2 são campos paralelos ao longo da mesma curva α : I −→ S,


então os módulos |ωi (t)|, i = 1, 2, e o ângulo que forma cada um dos vetores ω1 (t) e ω2 (t)
no ponto α(t) são funções constantes de t.

Demonstração. Podemos usar a proposição 4.5.1 para os campos ω1 = ω e ω2 = ω e concluir


que o módulo de ω é constante em t. Por outro lado, se chamamos de θ(t) : I −→ (0, π/2)
o ângulo formado pelas retas suporte dos vetores ω1 (t) e ω2 (t) em cada t ∈ I, então existe
uma constante c ∈ R tal que
hω1 (t), ω2 (t)i
Cos(θ(t)) = = c,
|ω1 (t)||ω2 (t)|

o que implica que θ(t) é constante para todo t ∈ I e pela continuidade da função Cos, os
ângulos formados pelos vetores ω1 (t) e ω2 (t) também são constantes em t.
4.5. CURVAS GEODÉSICAS. 189

Teorema 4.5.1 (Existência e unicidade de campo paralelo ao longo de uma curva.). Sejam
α : I −→ S uma curva parametrizada sobre uma superfície regular S, t0 ∈ I e ω0 ∈ Tα(t0 ) S.
Então, existe um único campo paralelo ω(t) ao longo de α tal que ω(t0 ) = ω0 .

Demonstração. Podemos supor s.p.g. que t0 = 0 e que I = [0, l]. Seja X : U −→ S uma
parametrização local de S em torno de α(0) e X(U ) = V ⊂ S. Se existisse um campo
paralelo ω ao longo de α, então existiriam funções diferenciáveis a, b : I −→ R tais que
ω(t) = a(t)Xu + b(t)Xv e satisfazendo o sistema

a0 + Γ111 au0 + Γ112 av 0 + Γ112 bu0 + Γ122 bv 0 = 0,


(4.21)
b0 + Γ211 au0 + Γ212 av 0 + Γ212 bu0 + Γ222 bv 0 = 0,

por (4.17) e pela definição 4.5.2. Um tal sistema sería equivalente ao sistema de equações
diferenciais ordinárias
! ! !
a0 a Γ111 u0 + Γ112 v 0 Γ112 u0 + Γ122 v 0
= M (t) · , sendo M (t) = ,
b0 b Γ211 u0 + Γ212 v 0 Γ212 u0 + Γ222 v 0

o qual, junto à condição inicial ω(0) = ω0 , possui solução única pelo teorema de existência
e unicidade de solução de EDO’s. Aliás, da teoria geral dos sistemas de EDO’s lineares,
podemos afirmar que tal solução pode ser estendida de maneira diferenciável até α(l) = q,
ver [1, Sec.7.21].

Considere uma curva parametrizada α em uma superfície S definida em um intervalo


I = [0, l] que liga os pontos p e q, e o único campo de vetores paralelo ω ao longo de α em S
tal que ω0 = ω0 ∈ Tα(0) S, então ω está bem definido em todo [0, l] pela proposição acima.
Além disso, se existe um difeomorfismo t : J = [0, r] −→ I = [0, l] que leva biunivocamente
cada s ∈ J em t(s) ∈ I, e β : J −→ S é a correspondente reparametrização de α, então segue
de (4.17) que
Dω Dω dt
= , t ∈ I, s ∈ J,
ds dt ds
o que implica que os campos paralelos ao longo de uma curva independem da parametriza-
ção da mesma, pelo qual sempre poderemos supor que a curva α está parametrizada pelo
comprimento de arco. Esses fatos justificam a seguinte definição.

Definição 4.5.3. Seja α : I −→ S uma curva parametrizada em uma superfície S e ω o


único campo de vetores paralelo tal que ω(0) = ω0 ∈ Tα(0) S. O vetor ω(t) é chamado de
transporte paralelo de ω(0) ao longo de α no ponto α(t), para cada t ∈ I = [0, l].
190 CAPÍTULO 4. GEOMETRIA INTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES.

Observe que, da igualdade 4.19, podemos deduzir que o transporte paralelo independe da
orientação de S. Aliás, nas condições da definição de transporte paralelo, podemos definir
uma aplicação Pα : Tp S −→ Tq S de maneira que leva cada vetor tangente v em p no seu
correspondente transporte paralelo ṽ em q. Se tomamos dois vetores tangentes distintos e
arbitrários u e v em Tp S, é fácil deduzir, a partir das propriedades de preservação dos campos
paralelos provadas no corolário 4.5.1, que

hũ, ṽi = hu, vi.

Pelo qual segue o seguinte resultado.

Corolário 4.5.2. Nas condições acima, a aplicação Pα : Tp S −→ Tq S é uma isometria.

Figura 4.7: O transporte paralelo é uma isometria.

O conceito de transporte paralelo pode ser estendido a curvas mais gerais, curvas onde
são admitidos uma quantidade finita de pontos singulares. Dizemos que uma curva para-
metrizada α : I = [0, l] −→ S é regular por partes se é contínua e existe uma partição
0 = t0 < t1 < · · · < tk < tk+1 = l do intervalo I de maneira que a restrição α|[ti ,ti+1 ] ,
para cada i = 0, . . . , k, é uma curva parametrizada regular que liga os pontos pi = α(ti ) e
pi+1 = α(ti+1 ), que chamamos de arco regular de α. Assim, se ω0 é o valor inicial do campo
paralelo em α(t) e t ∈ [ti , ti+1 ] para algum i ∈ {0, 1, 2, . . . , k}, podemos transportar parale-
lamente ω0 no correspondente arco regular e tomarmos ωti+1 como valor inicial e continuar
o transporte paralelo do mesmo ao longo do arco regular seguinte.
4.5. CURVAS GEODÉSICAS. 191

Definição 4.5.4. Uma curva parametrizada e não constante γ : I −→ S em uma superfície


S é uma geodésica em t ∈ I se o campo γ 0 (t) é paralelo ao longo de γ em t, isto é
Dγ 0
(t) = 0.
dt
A curva γ é uma geodésica parametrizada de S se é geodésica para todo t ∈ I.
Note que, pelas propriedades de preservação dos campos paralelos provadas no corolário
4.5.1, temos que as curvas geodésicas parametrizadas satisfazem que γ 0 (t) = const 6= 0, para
todo t ∈ I, pelo qual são regulares e podem ser reparametrizadas pelo comprimento de arco
pela proposição 1.2.2. Em diante consideraremos as geodésicas PCA a menos que seja dito
o contrário.
Uma curva simples, regular e conexa C em uma superfície S é uma geodésica de S se é
localmente uma geodésica parametrizada, isto é, se a parametrização γ : I −→ S de C em
torno de cada p ∈ C é uma geodésica parametrizada de S.

Note que o conceito de geodésica independe também da orientação em S.


Observação 4.5.2. Dada uma curva simples C e p ∈ C é claro de (4.18), que se uma parame-
trização local PCA γ de p não tem componente tangente à superfície em cada s ∈ I, então
o campo ω(s) = γ 0 (s) é paralelo e, portanto C é uma geodésica de S. Reciprocamente, se C
é uma geodésica, pelas equações (1.8) de Frenet e pela igualdade (4.18), em cada parametri-
zação local γ : I −→ S de C verifica-se que γ 00 (s) é paralelo ao vetor normal a superfície em
cada ponto γ(s), s ∈ I. Assim, podemos afirmar que C é uma geodésica de S se, e somente
se, cada parametrização local γ verifica que

γ 00 (s) = ±κ(s)N (γ(s)), ∀s ∈ I, (4.22)

sendo κ a curvatura de γ em cada s ∈ I. Como consequência podemos concluir que uma


curva simples regular C é uma geodésica de S se, e somente se, em cada parametrização de
C tem-se que o correspondente vetor normal a curva n e o correspondente vetor normal a
superfície N são paralelos em cada ponto γ(s) ∈ C ∩ S, s ∈ I.
Exemplo 4.5.4. As retas são as geodésicas do plano.
É claro de (4.22), que as retas do plano são geodésicas, pois γ 00 ≡ 0 e κ ≡ 0. Reciprocamente,
suponha que γ é uma geodésica do plano. Como γ 0 está no plano em todo I e N é constante,
temos que
hγ 00 (s), N i = 0, ∀s ∈ I,

o que implica que κ ≡ 0 por (4.22) e portanto γ é uma reta pelo teorema 1.3.1.
192 CAPÍTULO 4. GEOMETRIA INTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES.

Exemplo 4.5.5. Os círculos máximos são geodésicas da esfera.


É imediato a partir da observação 4.5.2 e dos comentários feitos logo após a definição 4.5.2.

Exemplo 4.5.6. As retas contidas em superfícies são geodésicas.


Seja S uma superfície e C uma reta contida em S. Então, pelo exemplo 1.1.1, existe b ∈ R
tal que γ(s) = s + b, s ∈ R é uma parametrização PCA global de C, o que implica que
γ 00 ≡ 0, logo
Dγ 0 dγ 0 dγ 0
(s) = (s)−h (s), N (γ(s))iN (γ(s)) = γ 00 (s)−hγ 00 (s), N (γ(s))iN (γ(s)) = 0, ∀s ∈ R.
ds ds ds
Exemplo 4.5.7. As geodésicas do cilindro circular reto.
Note que um cilindro circular reto C e um plano Π são localmente isométricos pelo exemplo
4.1.1, e que a parametrização local X(u, v) = (rCos(u), rSin(u), v), para cada (u, v) ∈ U =
(0, 2π) × R e algum r > 0, é mesmo uma isometria local entre essas duas superfícies. Con-
sidere γ : I −→ Π uma curva parametrizada dada por α(s) = (u(s), v(s)), para cada s ∈ I.
Podemos usar a classificação das geodésicas do plano dada no exemplo 4.5.4 e a isometria

Figura 4.8: As geodésicas do cilindro circular reto.

local X para, assim, dar também uma classificação exaustiva de todas as geodésicas do cilin-
dro. Com efeito, se fixamos um referencial no plano Π, podemos considerar essencialmente
três tipos distintos de retas em relação à base canônica {e1 , e2 } de R2 :

1. As retas horizontais do plano podem-se parametrizar como α(s) = (u(s), v0 ), ∀s ∈ I e


v0 ∈ R fixado, logo γ(s) = X(u(s), v0 ) é um paralelo do cilindro C, o qual sabemos é
uma geodésica de C.

2. As retas verticais do plano podem-se parametrizar como α(s) = (u0 , v(s)), ∀s ∈ I e


u0 ∈ R fixado, logo γ(s) = X(u0 , v(s)) é um meridiano do cilindro C, o qual sabemos
é uma geodésica de C.
4.5. CURVAS GEODÉSICAS. 193

3. As retas oblíquas do plano podem-se parametrizar como α(s) = (as, bs), ∀s ∈ I e certos
a, b ∈ R tais que a2 + b2 = 1, logo γ(s) = X(as, bs) é uma hélice circular do cilindro C
pelo exemplo 1.1.2, a qual é uma geodésica de C por ser X uma isometria local.

Considere um campo de vetores tangentes e unitários ω ao longo de uma curva parame-


trizada α : I −→ S sobre uma superfície orientada S, e seja N : S −→ S2 uma aplicação de
Gauss sobre S. Derivando a condição |ω(s)|2 = 1 temos que:

dω dω Dω
(t) ⊥ ω(t) ∀t ∈ I =⇒ ( (t))> ⊥ ω(t) ∀t ∈ I =⇒ (t) ⊥ ω(t) ∀t ∈ I,
dt dt dt

e como a derivada covariante de ω(t) é também perpendicular a N (α(t)) para cada t ∈ I


pela definição, então existe uma função λ : I −→ R tal que


(t) = λ(t)(N (α(t)) ∧ ω(t)), ∀t ∈ I. (4.23)
dt

Definição 4.5.5. O número real λ(t) associado a cada t ∈ I nas condições acima é dito de
valor algébrico da derivada covariante de ω em t. Denotamos esse valor algébrico por
 

λ(t) = (t) .
dt

Observação 4.5.3. Como |N (α(t)) ∧ ω(t)| = 1em cada t ∈ I, então

Dω dω
λ(t) = h (t), N (α(t)) ∧ ω(t)i = h (t), N (α(t)) ∧ ω(t)i, ∀t ∈ I,
dt dt

pela igualdade 4.19. Aliás, é imediato da definição que o sinal do valor algébrico da derivada
covariante de um campo tangente unitário ao longo de uma curva em uma superfície orientada
muda se a orientação em S mudar.

Definição 4.5.6. Sejam C uma curva simples regular orientada contida em uma superfície
orientada S e α : I −→ S uma parametrização PCA de C em torno de p = α(s0 ), para
certo s0 ∈ I. Se define a curvatura geodésica de C em p como o valor algébrico da derivada
covariante do campo ω(s) = α0 (s) em s = s0 . Usamos a notação

Dα0
 
κg (p) = (s0 )
ds

Da observação 4.5.3, podemos expressar a curvatura geodésica em cada s ∈ I como

κg (s) = hα00 (s), N (α(s)) ∧ α0 (s)i, ∀s ∈ I.


194 CAPÍTULO 4. GEOMETRIA INTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES.

Portanto, a curvatura geodésica pode ser entendida como o comprimento da projeção do vetor
α00 (s) sobre o vetor tangente N (α(s)) ∧ α0 (s) em cada s ∈ I. Nas condições da definição
acima, o triedro B = {α0 (s), N (α(s)), N (α(s)) ∧ α0 (s)} é uma base ortonormal de R3 em
cada ponto α(s) ∈ S, chamada na literatura de triedro de Darboux. O triedro de Darboux
é análogo ao triedro de Frenet, enquanto que as coordenadas nessa base das derivadas dos
seus elementos, conhecidas como equações de Darboux, fornecem informações geométricas da
superfície que contém à curva, como por exemplo as curvaturas geodésica e normal. Assim,
κg (s) e κn (s) são as coordenadas do vetor α00 (s) na base B, ver definição 3.1.3. Aliás, como
α00 (s) = κ(s)n(s), sendo κ a função curvatura de α e n o vetor normal na base de Frenet no
ponto α(s), então as curvaturas da curva α verificam a seguinte relação:

κ2 (s) = κ2g (s) + κ2n (s), ∀s ∈ I. (4.24)

Figura 4.9: As curvaturas normal e geodésica de γ em p ∈ S.

Agora é imediato calcular a curvatura geodésica de um paralelo C de colatitude ϕ da


esfera unitária usando a fórmula acima. Pelo exemplo 2.3.6 e a definição 3.1.3 temos que
1
2
= 1 + κ2g (s),
Sin (ϕ)
logo κ2g (s) = Cotan2 (ϕ), que é constante para todo s ∈ I. Usando as definições 4.5.4 e 4.5.6,
é imediato caracterizar as geodésicas de uma superfície S como aquelas curvas regulares
contidas nela cuja curvatura geodésica é identicamente nula, ou seja:

Corolário 4.5.3. Uma curva parametrizada regular α : I −→ S é uma geodésica em S se,


e somente se, kg ≡ 0.
4.5. CURVAS GEODÉSICAS. 195

Como consequência, se uma geodésica sobre uma superfície é uma curva plana, então
é uma seção normal à superfície no ponto α(s) na direção de α0 (s) em cada s ∈ I, ver a
introdução da seção 3.3.
Considere γ : I −→ S uma curva parametrizada contida em uma superfície S, t0 ∈ I e
X : U −→ S uma parametrização local de S em torno do ponto α(t0 ). Seja também J ⊂ I
tal que γ(J) ⊂ X(U ) e tome o campo de vetores tangentes ω(t) = γ 0 (t), para cada t ∈ J.
Assim, podemos expressar o campo em coordenadas relativamente a base Bt = {Xut , Xvt } do
plano tangente Tγ(t) S para cada t ∈ J como

ω(t) = u0 (t)Xut + v 0 (t)Xvt .

Desconsideramos em diante a dependência da variável t a fins de melhorar a clareza dos


cálculos a seguir. Por um lado, pelas equações de estrutura (4.4) tem-se que

dω d 0
= (u Xu + v 0 Xv )
dt dt
= u00 + (u0 )2 Γ111 + 2u0 v 0 Γ112 + (v 0 )2 Γ122 Xu + v 00 + (u0 )2 Γ211 + 2u0 v 0 Γ212 + (v 0 )2 Γ222 Xv .
 

Assim, o campo ω é paralelo se, e somente se são satisfeitas as seguintes equações

u00 + (u0 )2 Γ111 + 2u0 v 0 Γ112 + (v 0 )2 Γ122 = 0,


(4.25)
v 00 + (u0 )2 Γ211 + 2u0 v 0 Γ212 + (v 0 )2 Γ222 = 0,

as quais são chamadas de equações das geodésicas de S, que confirmam que as geodésicas são
um conceito intrínseco das superfícies como já foi afirmado antes e, portanto, são invariantes
por isometrias locais. O sistema de equações definido pelas geodésicas de uma superfície é
um sistema homogêneo e semi-linear de equações diferenciais ordinárias, para o qual existe
solução única para as condições iniciais γ(t0 ) = p0 ∈ S e ω(t0 ) = ω0 ∈ Tp S pela teoria geral
de EDOs.
Assim, temos provado o seguinte resultado.

Teorema 4.5.2 (Existência e unicidade de geodésicas em superfícies.). Seja S uma superfície


e p ∈ S. Para cada ω0 ∈ Tp S existe uma única geodésica γ : (−, ) −→ S tal que γ(0) = p
e γ 0 (0) = ω0 .

Como consequência do teorema acima, podemos dar uma nova justificativa para a clas-
sificação das geodésicas dada nos exemplos 4.5.4 e 4.5.7. Com efeito, se fixamos um ponto
p ∈ S, sendo S um plano ou um cilindro circular reto, para cada direção tangente v ∈ Tp S
196 CAPÍTULO 4. GEOMETRIA INTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES.

é sabido que existe uma reta no caso da reta, e no caso do cilindro existe uma reta vertical
se v = e3 , ou um paralelo se v = ae1 + be2 para certos a, b ∈ R tais que a2 + b2 = 1, ou uma
hélice circular se v = ae1 + be2 + ce3 para certos a, b, c ∈ R tais que a2 + b2 + c2 = 1, sendo
{e1 , e2 , e3 } a base canônica de R3 .
Exemplo 4.5.8. Os grandes círculos são as únicas geodésicas da esfera.
Pelo visto no exemplo 4.5.5, sabemos que os grandes círculos são geodésicas da esfera S2 (r)
de raio r > 0. Além disso, para cada p na esfera, podemos encontrar um círculo máximo
tangente a cada direção do plano tangente Tp S2 (r), portanto essas são as únicas geodésicas
da esfera em virtude do teorema 4.5.2 de existência e unicidade.
Exemplo 4.5.9. Estudo das geodésicas das superfícies de revolução.
Considere a superfície de revolução S gerada pela rotação do traço da curva PCA α(s) =
(ϕ(s), 0, ψ(s)), tal que ϕ(s) > 0, ∀s ∈ I, em torno do eixo vertical, parametrizada localmente
por
X(u, v) = (ϕ(u)Cos(v), ϕ(u)Sin(v), ψ(u)), ∀(u, v) ∈ U = I × (0, 2π).

Os coeficientes da primeira forma fundamental de S são as seguintes funções (ver o exemplo


3.5.7):
E(u, v) = 1, F (u, v) = 0, G(u, v) = ϕ2 (u).

Substituindo os coeficientes acima nas equações 4.9 temos que

Γ111 = 0, Γ211 = 0,
ϕ0
Γ112 = 0, Γ212 = ,
ϕ
Γ122 = −ϕ0 ϕ, Γ222 = 0.

Logo, as equações das geodésicas (4.25) de S ficam assim

u00 − (v 0 )2 ϕ0 ϕ = 0,
ϕ0 (4.26)
v 00 + 2u0 v 0 = 0.
ϕ
Vemos que os meridianos são geodésicas de S. Com efeito, considere um meridiano PCA
γ(s) = X(u(s), v0 ) = (ϕ(u(s))Cos(v0 ), ϕ(u(s))Sin(v0 ), ψ(u(s))). Em primeiro lugar, u0 6= 0,
pois v 0 = 0 e γ é regular. Note que a segunda equação do sistema (4.26) é trivialmente sa-
tisfeita, vemos que a segunda também. Temos que γ 0 (s) = ( dϕ
du
u0 Cos(v0 ), dϕ
du
u0 Sin(v0 ), dψ
du
u0 ),
logo
1 = |γ 0 (s)| = (u0 )2 ,
4.5. CURVAS GEODÉSICAS. 197

por ser α PCA na variável u. Se derivamos a igualdade acima e usando que γ é regular
temos que u00 = 0, que coincide com a primeira equação do sistema (4.26).
Estudamos agora os paralelos de S. Considere um paralelo PCA γ(s) = X(u0 , v(s)) =
(ϕ(u0 )Cos(v(s)), ϕ(u0 )Sin(v(s)), ψ(u0 )). Analogamente tem-se que u0 = 0 implica que v 0 6=
0. A condição de γ ser PCA traduz-se na igualdade

1 = |γ 0 (s)| = ϕ2 (v 0 )2 .

Se derivamos ela temos que 0 = ϕ2 v 0 v 00 , de modo que a os paralelos satisfazem a segunda


equação do sistema (4.26). A primeira equação de (4.26) fica (v 0 )2 ϕϕ0 = 0, que é equi-
valente a (v 0 )2 (ϕ)2 ϕ0 = 0 por ser ϕ > 0. Como foi provado acima, os paralelos satis-
fazem que 1 = ϕ2 (v 0 )2 , logo γ será geodésica de S se, e somente se ϕ0 = 0. No exem-
plo 3.5.7 vimos que o vetor normal em cada p ∈ S é igual ao vetor unitário na direção
(−ϕ(u)ψ 0 (u)Cos(v), −ϕ(u)ψ 0 (u)Sin(v), ϕ(u)ϕ0 (u)), o que implica que, para um paralelo ser
geodésica de S, o correspondente vetor normal deve ser paralelo ao plano horizontal.

Figura 4.10: Os meridianos e os paralelos com normal horizontal são geodésicas de S.

Observe que a segunda equação de (4.26) é equivalente à equação

ϕ2 v 0 = c, (4.27)

para certa constante c ∈ R, pois


ϕ0
v 00 + 2u0 v 0 = 0 ⇔ ϕ2 v 00 + 2u0 v 0 ϕ0 ϕ = 0 ⇔ (ϕ2 v 0 )0 = 0.
ϕ
198 CAPÍTULO 4. GEOMETRIA INTRÍNSECA DAS SUPERFÍCIES.

Vamos estudar a existência de geodésicas de S distintas de meridianos e paralelos. Suponha


que γ : I −→ S é uma curva geodésica PCA. Note que a primeira forma fundamental nos
pontos γ(s) ∈ S junto à igualdade (4.27) equivalem à primeira equação de (4.26). Com
efeito,
1 = (u0 )2 E + 2F u0 v 0 + (v 0 )2 G = (u0 )2 + (v 0 )2 ϕ2 , (4.28)
c2
por ser γ PCA, logo 1 = (u0 )2 + ϕ2
pela relação (4.27). Se derivamos a igualdade anterior e
usamos de novo a relação (4.27) temos que

2c2 ϕϕ0 u0
0 = 2u0 u00 − = 2u0 u00 − (v 0 )2 ϕ0 ϕ ,

ϕ 4

que implica a equação primeira de (4.26) desde que γ não é um paralelo, como queríamos
provar. Como γ não é um meridiano, então c 6= 0 por (4.27), o que implica que v 0 é não
nula em todo s ∈ I e portanto pode-se invertir, isto é, podemos expressar s = s(v) como
uma função de v pelo teorema da função inversa do cálculo, logo u = u(s) = u(s(v)). Se
multiplicamos a equação 4.28 por (ds/dv)2 , obtemos
 2  2  2  2  2  2  2
ds du ds dv ds 2 du ds 2 du
= + ϕ = +ϕ = + ϕ2 ,
dv ds dv ds dv ds dv dv

onde foi usado de novo o teorema da função inversa e a regra da cadeia do cálculo. Por outro
lado 2
ϕ4

ds
=
dv c2
pela relação 4.27, logo
 2  2
ϕ4 2 du 2 2 c2 du du 1 p 2 1
2
= ϕ + ⇔ ϕ = c + 2
⇔ = ϕ ϕ − c2 ⇔ dv = c p du.
c dv ϕ dv dv c ϕ ϕ2 − c2

Finalmente, usando o teorema fundamental do cálculo podemos integrar a igualdade acima


e obtemos Z !
1
v=c p du + const,
ϕ ϕ2 − c2
equação que prova a existência de geodésicas nas superfícies de revolução que não são para-
lelos nem meridianos.
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199
200 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Lista de Figuras

1.1 Hélice circular, para a = 1 e b = 3. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3


1.2 Curva diferenciável com um ponto singular. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4
0 00
1.3 α (s) e α (s) são perpendiculares. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
1.4 O triedro de Frenet em cada ponto s ∈ I. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
1.5 O círculo osculador. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
1.6 A evoluta de uma hélice circular. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
1.7 O astroide é a evoluta de uma elipse. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12

2.1 Parametrização de uma superfície regular. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23


2.2 A diferencial de X em q é injetiva. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24
2.3 O plano de equação z + 2y = 2. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
2.4 O gráfico de f . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
2.5 X1 (U ) cobre a semi-esfera onde z > 0. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
2.6 A união das semi-esferas cobre S2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
2.7 Coordenadas esféricas na esfera. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28
2.8 O elipsóide. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
2.9 Os hiperbolóides de uma e duas folhas, respectivamente. . . . . . . . . . . . 32
2.10 O toro de revolução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
2.11 O parabolóide hiperbólico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34
2.12 O parabolóide elíptico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34
2.13 Toda superfície regular é localmente um gráfico. . . . . . . . . . . . . . . . . 34
2.14 Mudança de parâmetros. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
2.15 A função altura para v = e3 e p0 = 0. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
2.16 Curva diferenciável sobre uma esfera. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
2.17 Função diferenciável entre superfícies. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
2.18 Superfície de revolução com eixo vertical. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46

201
202 LISTA DE FIGURAS

2.19 Vetor tangente a S em p. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49


2.20 Plano tangente à esfera. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
2.21 Plano tangente e reta normal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
2.22 N bem definido em S. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
2.23 N não extensível em S. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
2.24 O plano. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62
2.25 O cilindro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
2.26 O helicoide. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
2.27 Uma loxódroma na esfera. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
2.28 R = D ∪ ∂D é uma região limitada de S. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
2.29 Diferencial de área de S. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70
2.30 Campo tangente. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74
2.31 Campo normal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74
2.32 Campo normal unitário sobre S. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
2.33 As superfícies de revolução são orientáveis. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
2.34 A faixa de Möbius. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80

3.1 A diferencial de N na origem. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88


3.2 A curvatura normal de γ em p ∈ S. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
3.3 Duas direções assintóticas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
3.4 Direções assintóticas na base de Tp S. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
3.5 Secções normais a S em p. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
3.6 Sinal da segunda forma fundamental em um ponto. . . . . . . . . . . . . . . 102
3.7 Um ponto elíptico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
3.8 Um ponto hiperbólico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
3.9 Curvatura Gaussiana dos pontos do toro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
3.10 Pontos parabólicos no cilindro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118
3.11 A faixa preta são pontos parabólicos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119
3.12 A origem é um ponto planar. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120
3.13 A sela de macaco possui um ponto planar. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122
3.14 Sistema de coordenadas centrado em p. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127
3.15 Aproximando a indicatriz de Dupin. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128
3.16 A interseção de duas superfícies transversas é uma curva simples. . . . . . . 135
3.17 Separação local de S. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136
LISTA DE FIGURAS 203

3.18 A curva α corta S transversalmente em p e q, mas não em t. . . . . . . . . . 137


3.19 Ponto de primeiro contato. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
3.20 Ponto de interseção dupla. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
3.21 Duas retas próximas cortam um compacto na mesma quantidade de pontos. 142
3.22 O plano Π0 corta S transversalmente. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
3.23 O número de cortes é par. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144
3.24 Ω0 não é vazio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146
3.25 Ω não é vazio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146
3.26 Resolvendo o problema de Plateau. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153
3.27 O catenóide de revolução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155
3.28 A superfície mínima de Enneper. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156
3.29 Superfície regrada com um ponto singular. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157

4.1 A isometria local não é global. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163


4.2 Difeomorfismo que preserva a curvatura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176
4.3 S e S 0 são isométricas mas não congruentes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 180
4.4 Derivada covariante de ω em p na direção de w. . . . . . . . . . . . . . . . . 183
4.5 Campo tangente sobre o semi-cone superior. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 184
4.6 Campo paralelo sobre a esfera unitária. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 188
4.7 O transporte paralelo é uma isometria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 190
4.8 As geodésicas do cilindro circular reto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 192
4.9 As curvaturas normal e geodésica de γ em p ∈ S. . . . . . . . . . . . . . . . 194
4.10 Os meridianos e os paralelos com normal horizontal são geodésicas de S. . . 197

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