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O CULTO DA VIRGEM MARIA NO OCIDENTE E SUA INFLUÊNCIA NA

EMANCIPAÇÃO FEMININA

Prof. Dr. Armindo Trevisan *

I.

Nos seus comentários ao Credo1, pregados aos fiéis de Nápoles em 1273, o grande Doutor
da Igreja, São Tomás de Aquino, declarava: “O cristão não só deve acreditar que Cristo é o Filho de
Deus, mas também que ele se fez homem”.2
O Apóstolo Paulo formulara tal dogma básico na sua Carta aos Gálatas: “Ao chegar à plentude
dos tempos, Deus enviou seu Filho, que nasceu de uma mulher (Gal 4,4).”
Nessa frase reside o núcleo da importância de Maria, a adolescente, nascida em Nazaré,
insignificante aldeia da Galiléia - tão insignificante que nunca foi mencionada num documento
antigo, nem no Antigo Testamento, nem em Flávio Josefo, nem mesmo no Talmud.3
Eis o que Ernest Renan escreveu sobre Nazaré em sua Vida de Jesus:

Nazaré era uma pequena cidade situada em larga concavidade no alto do conjunto de
montanhas que fecha ao norte a planície de Esdrelon. A povoação é agora [em 1863] de
três a quatro mil almas; e pode ser que não tenha variado muito.4

Quem, no entanto, poderia imaginar que essa humilde criatura que, possivelmente na época,
ia diariamente “de bilha ao ombro” à fonte pública, “onde em outro tempo se concentrava a vida e o
contentamento de sua pequena cidade”, iria tornar-se uma das promotoras da emancipação da
mulher no mundo ocidental?
Em vista disso, convém dizer algo sobre os inícios do culto à Virgem Maria.
A primeira referência ao nome de Maria, excetuadas as referências dos Evangelhos e dos
escritos dos Apóstolos, nós a encontramos num Padre Apostólico, isto é, num dos discípulos
imediatos dos Apóstolos. Trata-se do Bispo de Antioquia Santo Inácio, cujo martírio ocorreu entre
107 e 115 d.C.5

* Doutor em Filosofia pela Universidade de Friburgo, na Suíça. Lecionou como Professor Adjunto de História da Arte e
Estética na Universidade Federal do Rio Grande do Sul de 1973 a 1986 bem como no curso de pós-graduação em
Artes Visuais da mesma universidade. Para além de sua carreira acadêmica, atua como poeta, escritor e crítico da
arte. Contato: armindotrevisan@terra.com.br
1 TOMÁS DE AQUINO. O Credo. Tradução, prefácio, introdução e notas de Armindo Trevisan.
2 Ibid., p. 43.
3 LAGRANGE, J. M. El Evangelio de Nuestro Señor Jesucristo, p. 19; cf. também: RICCIOTTI, P. G. Vida de Jesuscristo, p.
242.
4 RENAN, E. Vida de Jesus, p. 23-24.
5 COMUNITÀ DI BOSE (Org.). Maria, p. 45-47; cf. também: HUBER, S. Los Padres Apostólicos, p. 184 e 188.

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O culto à Maria esteve sempre ancorado ao dogma da Encarnação do Verbo. Teve, como uma
de suas consequências positivas na sociedade, a de ser um dos fatores importantes da “revolução”,
que libertou a mulher daquilo que atualmente se conhece como Machismo.
Esse termo, sobretudo nas últimas décadas, adquiriu conotação fortemente negativa de
desrespeito, não só ao sex-appeal da mulher, mas a tudo o que existe na mulher de especificamente
feminino. Podemos considerar o machismo a tendência a aviltar o que se refere à personalidade da
mulher. Talvez seja melhor dizer: o que se refere à pessoa da mulher.
Dito de outra forma, o machismo é a mentalidade que concede aos homens o direito de
explorar o corpo feminino, considerado primordialmente mero objeto de prazer. Tal perversão
chega, por vezes, ao grau extremo de admitir que o corpo feminino possa ser desfrutado até
mesmo mediante a violência.6
No jornal Folha de São Paulo (de 10 de junho de 2017), o oncologista e humanista brasileiro
Drauzio Varella, publicou uma crônica veemente contra semelhante visão. Intitulou-a O Corpo da
Mulher, acrescentando-lhe um subtítulo de alerta ao leitor: De todas as imposições sociais, a mais
odiosa é a apropriação indébita do corpo feminino.
Em rigor, o Cristianismo nunca aderiu à semelhante concepção de vida. Nem poderia fazê-
lo, ainda que os cristãos, do ponto de vista estritamente individual, tenham em algumas ocasiões
deixado, ao longo da história, resquícios de conduta misógina ou machista. Em determinados
casos, tais resquícios insinuaram-se nos documentos eclesiásticos. Tais páginas nem sempre
honram a história do Cristianismo, mas não lhe comprometem a pureza do corpo doutrinal.

II.

Quando o Cristianismo se implantou nas regiões vizinhas à terra natal de Jesus, a


mentalidade dominante em tais regiões era o Helenismo, que englobava um leque de influências
culturais, inclusive de mitos de divindades femininas, como o mito da Grande Mãe, o mito de Cibele
(divindade frigia), o mito de Astarté (divindade palestina), o mito de Ísis (divindade egípcia), o
mito de Diana ou Ártemis (divindade da cidade cosmopolita de Éfeso).
Em certa ocasião, como consta nos Atos dos Apóstolos, os habitantes de Éfeso agrediram o
Apóstolo Paulo por causa de sua oposição ao culto da deusa Diana, a quem – segundo as palavras
do ourives e agitador Demétrio de Éfeso, “a Ásia e o mundo adoravam” (Atos 19,28; ler todo o
capítulo). A multidão amotinada dessa cidade gritou durante horas pelas ruas da cidade: “Grande
é a Diana dos efésios” (ibid.).
Uma das razões porque durante algum tempo, os cristãos não privilegiaram o culto da
Virgem Maria foi que a Mãe de Jesus poderia ser confundida com uma das antigas deusas,
induzindo os gentios a erros sobre o dogma da Encarnação de Cristo.
Sabemos que o próprio Apóstolo Paulo só se referiu à Virgem Maria uma única vez, na
passagem anteriormente citada por nós (Gal 4,4).

6 Se o leitor deseja obter mais esclarecimentos sobre a condição da mulher nos tempos que precederam o Cristianismo,
leia: TREVISAN, A. Cartas à Minha Neta (Para Ler Quando For Adulta), p. 75-108; p. 234-235.

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No caso do Bispo Inácio de Antioquia, podemos dizer que ele estava preocupado com o
Gnosticismo, heresia que considerava o corpo de Cristo simples aparência. Eis porque o mártir
recordou a seus irmãos que Jesus devia sua vida humana a um seio de mulher: “Jesus – escreveu
Inácio –nasceu verdadeiramente de uma mulher, Maria, e de Deus”.7
Após Inácio, novos textos exaltaram a maternidade divina de Maria, entre eles os de Justino
(falecido cerca de 165 d.C.) o qual, em seu livro: Diálogo com o Judeu Trifão, estabeleceu,
pioneiramente, um paralelo, entre Eva e Maria. Enquanto Eva, desobedecendo a Deus, trouxera a
morte ao gênero humano, Maria, obedecendo-lhe, trouxe-lhe a vida.8
Quarenta anos após esses pioneiros, Santo Irineu, Bispo de Lyon, 177-178; falecido em 202
d.C., retomou, na sua obra Contra os Hereges, o paralelo de Justino, comparando Maria com Eva,
denominando-a “causa de nossa salvação”.9
No tocante à expressão Theotókos, – Mãe de Deus – esta foi usada, pela primeira vez, por
Orígenes, que morreu em 254 d.C.10
Procede do século IV (ou, talvez, do fim do século III) uma célebre oração à Mãe de Deus,
intitulada “Sub tuum praesidium” (Sob a tua proteção), encontrada num papiro egípcio.11

III.

Acentuemos um detalhe: nesses primeiros séculos12 Maria quase não é encarada como uma
criatura real, de carne e osso. Embora o Apóstolo Paulo e o Bispo Inácio de Antioquia tivessem
declarado que Maria era uma mulher, o receio de que os infiéis a confundissem com uma “Deusa”
fez com que a pessoa concreta de Maria ficasse envolvida por uma espécie de nuvem teológica.
Sim, Maria era uma mulher, mas era uma Mulher-Dogma, uma mulher que fugia aos padrões
ordinários, visto que sua gravidez não procedia de uma união sexual comum, mas de uma
intervenção do Espírito Santo.
Os evangelhos apócrifos, relatos considerados pela Igreja “não canônicos”, tentaram
preencher aquilo que parecia faltar à biografia de Maria.
Demos um exemplo disso: nada se dizia nos Evangelhos sobre os pais da Virgem Maria.
Mediante as narrativas apócrifas, desqualificadas por São Jerônimo como “loucuras”, os fiéis foram
informados de que o nome de sua mãe era Ana, e o nome de seu pai, Joaquim. A tradição cristã
conservou esses nomes.13
Lembremos que foi a partir do século IV que surgiram os três primeiros grandes teólogos:
o Bispo de Milão, Santo Ambrósio (340-397 d.C.), o erudito São Jerônimo (350-420 d.C.),
tradutor da Bíblia para o latim, a Vulgata), e o genial Santo Agostinho (354-430 d.C.), Bispo de
Hipona, cidade no norte da África, na atual Argélia.

7 Carta aos Tralianos, 9,11. Sobre o que vimos expondo, ler: GRAEF, H. Maria, p. 41ss.
8 COMUNITÀ DI BOSE (Org.). Maria, p. 48-50; GRAEF, H. Maria, p. 45-46.
9 COMUNITÀ DI BOSE (Org.). Maria, p. 57-58; GRAEF, H. Maria, p. 48.
10 COMUNITÀ DI BOSE (Org.). Maria, p. 77; GRAEF, H. Maria, p. 53.
11 GRAEF, H. Maria, p. 53; cf. MEO, S.; FIORES, S. (Org.). Dicionário de Mariologia.
12 Na página 229, encontram-se dois afrescos dos primeiros séculos do cristianismo relativos a Maria.
13 TIAGO. Proto-Evangelho de Tiago, p. 27-36. O Proto-Evangelho de Tiago é um dos mais antigos e estimados apócrifos
do Novo Testamento. A data provável de sua composição é o final do século II d.C. Foi redigido originalmente em
grego.

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A Santo Ambrósio é atribuído o honroso qualificativo de “Pai da Mariologia Ocidental”. Foi


um dos primeiros a celebrar a realidade corporal da Virgem: “A Virgem, escreveu Ambrósio,
possuía carne, e esta foi transmitida ao fruto de seu ventre”.14 A Ambrósio, igualmente, devem-se as
primeiras referências aos sofrimentos de Maria no Calvário.
A Jerônimo (342-420), que tinha aprofundados conhecimentos da língua hebraica, atribui-
se a refutação de erros de interpretação neo-testamentária, como os referentes aos “irmãos de
Jesus”. De acordo com o linguajar semita, tais irmãos eram “co-sobrinhos”, ou primos do Mestre.15
Coube a Agostinho o mérito de acentuar a fé pessoal como característica da Virgem Maria.
Dizia Agostinho que Maria havia sido mais Mãe de Deus por sua fé do que por sua contribuição
física à natureza humana de Jesus.16

IV.

Podemos dizer que a primeira grande difusão da devoção à Virgem Maria ocorreu por
ocasião do Terceiro Concílio Ecumênico do Cristianismo, que se realizou numa cidade na costa
oriental da Turquia atual, às margens do Mar Egeu. O Concílio foi convocado pelo Imperador
Teodósio II, o qual receava que seus súditos se dividissem em facções: uma pró Nestório, Patriarca
de Constantinopla, a outra, contrária a este. Nestório afirmava que Cristo possuía dupla
personalidade: uma pessoa divina, e uma pessoa humana. Maria seria mãe unicamente do homem
Jesus.
A isso opôs-se Cirilo, Patriarca de Alexandria, apoiado pelo Papa Celestino I. Na primavera
do ano 431, os Bispos, reunidos em Concílio Ecumênico em Éfeso (hoje Küçüc Menderes, na
Turquia), rejeitaram a afirmação de Nestório, proclamando que havia em Cristo somente uma
Pessoa, a do Filho Unigênito de Deus, porém duas naturezas, uma divina e outra humana. Dado que
as ações, realizadas por alguém, são atribuídas à pessoa, e não à natureza, Maria era
verdadeiramente, não só geradora de um corpo, mas Mãe concreta de uma Pessoa, a do Verbo
Eterno feito Homem, consubstancial ao Pai e ao Espírito Santo.17
Radiantes com tal decisão, os fiéis de Éfeso – justamente na cidade da grande deusa Diana –
levaram Cirilo e os demais Bispos em triunfo pelas ruas da cidade, clamando, também durante
horas “Louvada seja a Theotókos”, isto é, “Louvada seja a Mãe de Deus”.
A partir de tal data, a devoção à Virgem expandiu-se por toda a Igreja. Surgiram templos
dedicados a ela em todas as grandes cidades do mundo oriental e ocidental.
Outro fato merece ser mencionado: um dos Bispos do citado Concílio, Teodoro de Ancira
(falecido entre 438 e 446), pronunciou, por esse tempo, uma homilia, na qual alinhou uma série
de invocações à Virgem, todas começando pela palavra grega “Chaire”,18 que pode ser traduzida
por “Alegra-te”, ou pela expressão popular “Salve”. E também por “Ave”, em sua fórmula latina.19
Lembremos nossa singela prece, a “Ave, Maria!”

14 De Incarnationis Dominicae Sacramento, 104 apud GRAEF, H. Maria, p. 84.


15 COMUNITÀ DI BOSE (Org.). Maria, p. 189-191; GRAEF, H. Maria, p. 94-98.
16 SANTO AGOSTINHO. A Virgem Maria: p 47-48; 75-76; 136-137.
17 Cf. La Theotokos. In: COMUNITÀ DI BOSE (Org.). Maria, p. 219-220.
18 Cf. imagem 3, na seção de anexos ao final do texto.
19 GRAEF, H. Maria, p. 115-116.

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Na leitura das primeiras antífonas (que traduzimos em nossa coletânea inédita de poemas
à Virgem, intitulada: Bela como a Lua) poder-se-á verificar o quanto tal expressão agradou aos
poetas.
O termo grego Chaire (também grafado como Kaire), “impropriamente traduzido em latim
e em português por Ave – como se lê no Dicionário de Mariologia20, é o mesmo termo que se
encontra no Hino Akáthistos, composto em língua grega, no século VI, provavelmente pelo monge
Romano, o Melodioso (490-560). Na tradução desse hino, muito difundido atualmente no mundo
ocidental, João Batista Camilotto, que lhe consagrou uma monografia em português, utiliza a
saudação: Alegra-te!21
Este, aliás, é o título de um livro de Albert Énard, publicado pelas Edições Loyola em 1987,
no qual o autor se empenhava para que a invocação “Ave” fosse traduzida por “Alegra-te”, como o
propõem alguns grandes especialistas bíblicos.22

V.

Nossa intenção nesta conferência não é traçar um histórico da devoção à Maria. Nossa
intenção é bem mais modesta: tecer comentários ao florilégio de poesia que organizamos sobre a
Virgem Maria. Para facilitar a compreensão de tais poemas, detivemo-nos em alguns
acontecimentos, que influíram sobre a sensibilidade mariana. Acrescentemos outros comentários.
Durante o período inicial do Cristianismo, o contato teológico entre o Oriente e o Ocidente
era mais frequente e intenso. Devido a isso não tardaram a surgir expressões comuns a ambas as
tradições.
Assim, a partir do século V, quando surgiu a figura de Sedúlio, (falecido aprox. em 450 d.C.),
oriundo do sul da Gália, ou talvez nascido na Itália, começou a circular um de seus poemas, que
continua a ser até hoje recitado pelos devotos da Virgem Maria. Referimo-nos à antífona Salve,
Sancta Parens, que vertemos para o português.23
A esse poema, fazem companhia outras composições litúrgicas, entre as quais uma atribuída
ao Bispo de Poitiers, Venâncio Fortunato (530-600), nascido na Itália perto de Treviso. Referimo-
nos à antífona “Quem terra, pontus, sidera”, (que também traduzimos em nossa antologia). Vários
autores atribuem-na a um anônimo.24
Notemos que, no período que precedeu a Alta Idade Média, até por volta dos séculos VIII-IX,
não existia na Cristandade uma tendência a valorizar especialmente o aspecto ternura da Virgem.
Certos autores propõem que nos fixemos em duas imagens condutoras da evolução da
devoção dos fiéis (pelo menos a partir do reinado de Carlos Magno [742-814]): a imagem da
Rainha e Senhora, privilegiada pela Igreja Bizantina; e a imagem materna de Maria, supostamente
de origem “germânica”.

20 MEO, S.; FIORES, S. (Org.). Dicionário de Mariologia, p. 28. Ler todo o verbete.
21 CAMILOTTO, J. B. Hino Acatisto em Honra da Virgem Maria; cf. também “Inno Acatisto”. In: COMUNITÀ DI BOSE (Org.).
Maria, p. 281-291.
22 ÉNARD, A. Alegra-te, Maria, p. 16-18.
23 Cf. TREVISAN, A. Bela como a lua, p. 21 (do manuscrito original inédito).
24 Cf. CAZENAVE, M. Louanges à La Vierge.

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A primeira imagem seria relativa ao poder de intercessão da Virgem, e teria dado origem às
imagens da Virgem em Majestade,25 das quais derivaram posteriormente as famosas Maestàs
italianas, como as de Cimabue, Giotto e Duccio. Tais imagens expressariam a “Onipotência
Suplicante” de Maria.
A segunda imagem, que veio a tornar-se popular no mundo ocidental, a da Madonna,
representaria a misericórdia da Mãe de Deus,26 principalmente, quando Maria é figurada cobrindo
com um manto seus devotos, como se pode ver na maravilhosa pintura de Piero della Francesca,
o Políptico da Misericórdia (1444-1464),27 atualmente no Museu Cívico de Sansepolcro, na Itália.
É tradição que foi um Abade do Mosteiro de Cluny, Odão (morto no ano de 942), quem cunhou a
expressão: “Mãe de Misericórdia”, imortalizada em muitas preces, principalmente na Salve
Rainha.28
Tais imagens tiveram uma de suas origens remotas na Legenda do Monge Teófilo, um clérigo
que teria vendido sua alma ao diabo, mediante um documento assinado com o próprio sangue, em
troca de um posto hierárquico na Igreja. Mais tarde, arrependido de sua apostasia, o monge
recorreu à Virgem, que forçou o demônio a entregar-lhe o documento assinado. Tal legenda foi
imortalizada pelos artistas em portais e vitrais de templos românicos e góticos, inclusive na
Catedral de Notre-Dame de Paris.29 A peça de Ariano Suassuna “O Auto da Compadecida” é uma
recriação original (e genial, no estilo nordestino) da Legenda do Monge Teófilo.30

VI.

Ao longo dos séculos IX, X e XI, o culto à Virgem Maria obteve relevância singular. Mas é nos
séculos XII-XIII-XIV, na época das grandes Catedrais do centro da Europa, quando esse culto
atingiu seu clímax.
Recordemos que, já no ano 800 d.C., um monge, de nome Epifânio, escrevera uma Vida de
Maria, na qual, pela primeira vez se fazia alusão à beleza física da Mãe de Deus. Nesse texto o
monge seguia o modelo bizantino de beleza. De acordo com tal modelo, a Virgem seria dotada de
tez clara, cabelo louro, olhos azuis, sobrancelhas negras, rosto ovalado, mãos e dedos longos.31
Nos séculos seguintes, a Virgem começou a ser visualizada como uma criatura cada vez mais
próxima das mulheres que habitavam o mundo na época.
A culminância da celebração litúrgica de Maria, que se desenvolveu então, ocorreu na época
de Anselmo de Canterbury (falecido em 1109), o “Pai da Escolástica”. Ele, e Bernardo de Claraval

25 Cf. as imagens 4 e 5, p. 231.


26 Cf. imagem 6, na seção de anexos ao final do texto
27 Cf. imagem 8, na seção de anexos ao final do texto
28 GRAEF, H. Maria, p. 201.
29 Cf. TEVISAN, A. O Rosto de Cristo, p. 136. Cf. imagem 7, na seção de anexos ao final do texto.
30 Cf. SUASSUNA, A. O Auto da Compadecida. Sobre a legenda do monge Teófilo, ler o que Gustave Cohen escreveu sobre
Rutebeuf, o poeta que no século XIII a recriou em seu auto “O Milagre de Teófilo”. No ano de 1933, o próprio Cohen
fez representar essa peça num teatro da Sorbonne. Cf. COHEN, G. La vida literaria en la Edad Media, p. 180-186; ver,
também, MEO, S.; FIORES, S. (Org.). Dicionário de Mariologia, p. 730.
31 GRAEF, H. Maria, p. 181-182.

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( falecido em 1153), são considerados os verdadeiros propulsores da Idade de Ouro da Mariologia


Medieval.32
Aqui convém perguntar-nos: o que aconteceu de especialmente sugestivo nesse período? A
resposta é: o surgimento do Amor Cortês.
Tal denominação, proposta em 1883 por Gaston Paris, caracteriza o nascimento e a difusão
das canções dos trovadores do século XI-XII, no sul da França, mais precisamente no Languedoc,
região suroeste da França, cuja capital é Toulouse. Tratava-se de poetas ambulantes, que se
deslocavam de um castelo a outro, oferecendo suas composições às damas da nobreza. Alguns
desses andarilhos talvez pertencessem à nobreza. A maioria deles, na realidade, provinha das
camadas mais baixas da população. Tais trovadores podem ser considerados artistas e
intelectuais, que viviam das benesses de seus protetores. Suas canções exaltavam a Dama Ideal, a
quem ofereciam, à primeira vista, um amor platônico. Suas canções diferiam das Canções Épicas
do Norte da França. As canções dos trovadores do Amor Cortês não exaltavam as façanhas varonis
e belicosas de seus monarcas e cavaleiros, como ocorria, por exemplo, na famosa Canção de
Rolando; tais trovadores privilegiavam o ambiente palaciano dos castelos, onde, devido às
primeiras Cruzadas, as damas foram obrigadas a assumir o papel de seus maridos ausentes. Com
isso, tais damas tornaram-se objeto de uma atenção particular de seus súditos. Com o tempo, essa
atenção converteu-se numa espécie de código idealizado de vassalagem, que acabou se
transformando num culto à mulher.33
Os historiadores advertem que houve “pouquíssimos casos em que a dama era
explicitamente mulher casada”. Quase sempre ela era representada como inatingível “em virtude
de sua alta posição ou distância física, e também por medo da censura social. Paradoxalmente, a
própria distância da mulher agregava valor ao sofrimento do amante: [...] O fin’amors (isto é, o
amor cortês) passou gradualmente a ser cristianizado, principalmente em fins do século XII,
quando a imagem do amante foi assimilada a uma busca religiosa de Deus, na qual as virtudes
cristãs eram adquiridas através do serviço à Maria.”34
Não há unanimidade entre os especialistas na análise desse fenômeno. Alguns julgam que
teria ocorrido, exatamente, o contrário. Ou seja: o amor cortês poderia ter derivado do culto a
Maria.
Preferimos ater-nos às análises do fenômeno de um dos maiores medievalistas do século
XX, Georges Duby. Em nossa opinião, este especialista apresenta a visão mais clara, embora
também a mais complexa, da temática do Amor Cortês.
Um texto memorável de Duby encontra-se no segundo volume da História das Mulheres no
Ocidente, Idade Média.35 Eis uma síntese desse capítulo intitulado “O Modelo Cortês”.

32 A respeito da evolução da iconografia românica e gótica, sugiro a leitura do capítulo IV do meu livro O Rosto de Cristo,
p. 105-148.
33 A respeito dessa temática, ler – além da bibliografia citada – CAMPOS, A. Verso Reverso Controverso, p. 9-105; LE
GOFF, J.; TRUONG, N. Uma história do Corpo na Idade Média, p. 49ss; 96ss; BACKÈS, J.-L. A literatura europeia, p. 139-
156; 163-176; PERNOUD, R. Luz sobre a Idade Média, p. 111-145; ZUMTHOR, P. A letra e a Voz, p. 35-54; 55-57-74;
LE GOFF, J.; SCHMITT, J.-C. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, p. 47-55.
34 LOYN, H. R. (Org.). Dicionário da Idade Média, p. 21.
35 Essa obra foi publicada sob a direção do mesmo Georges Duby e de Michelle Perrot, cuja tradução portuguesa tem
revisão científica de Maria Helena da Cruz Coelho, Irene Vaquinhas, Leontina Ventura e Guilhermina Mota,
professoras da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. A edição é da Editora Afrontamento, Porto, 1983.

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Para podermos, porém, situar-nos mais corretamente na época da Alta Idade Média,
julgamos oportuno antepor ao texto de Duby um texto de Dieudonné Dufrasle, cuja obra “Donne
Moderne del Medioevo” traz-nos detalhes sobre a concepção que os medievais tinham sobre o
casamento:

[...] o matrimônio – escreve Dufrasle – fundava-se numa relação não paritética entre
homem e mulher. A desigualdade jurídica concedia ao homem a posse total da mulher [...],
que muitas vezes não passava de uma adolescente; esta devia votar obediência e respeito
absoluto ao marido, e dar-lhe filhos, de preferência machos, já que havia a preocupação
de que a propriedade e os bens herdados ficassem com a família. A mulher não esperava
que o marido lhe demonstrasse amor. Tanto ele, como ela, podiam permitir-se aventuras
amorosas. Apesar disso, se é verdade que a esposa tinha a obrigação de fechar os olhos às
escapadas do marido, a ela não lhe acontecia o mesmo, visto que era punida severamente
por ousar subtrair-se ao poder absoluto do marido.36

Fixemo-nos, agora, na análise de Georges Duby sobre o Amor Cortês. Sua análise tem o
mérito de não absolutizar nenhuma das várias interpretações sobre tal temática. O historiador
empenha-se, sobretudo, em desvendar-lhe o núcleo ideológico. Noutras palavras, preocupa-se em
mostrar a ambiguidade da presumida dimensão revolucionária do amor cortês. Demonstra que
esse pressupunha, desde o início, uma desigualdade entre os dois personagens do relacionamento
amoroso, isto é, entre a Dama, objeto de culto, e o jovem “ferido pela flecha de sua paixão”.
O grande medievalista denuncia explicitamente o equívoco dos que interpretam o “fino
amor” (era assim então denominado o que se entende hoje por amor cortês) sob a forma de um
amor idealizado.
Ora, escreve Duby, na época da Alta Idade Média, nos séculos XI-XII, o amor era identificado
com “o apetite sexual”. Duby é categórico: “O prazer era, antes de mais, prazer do homem”.
Acrescenta:

O homem nunca tinha mais do que uma esposa. Devia tomá-la como ela era, fria no
pagamento do “debitum”, sendo-lhe proibido tentar aquecê-la.37

Segundo Duby, devemos ter cuidado em considerar tal atitude como amor platônico. Seria
melhor considerar esse tipo de amor uma espécie de jogo. Tal jogo, na imaginação dos parceiros
masculinos, estava impregnado de rituais agressivos do ponto de vista do imaginário sexual. O
código amoroso prescrevia que a mulher – a Dama – aceitasse primeiro ser abraçada, depois
beijada; enfim, que se abandonasse a ternuras cada vez mais explícitas:

Um dos temas da lírica cortês informa-nos Duby - descreve o que o “ensaio” por excelência,
o assaig como diziam os trovadores, teria podido ser: prova definitiva à qual o amante
sonhava ser finalmente submetido, e cuja imagem o obcecava e o mantinha na expectativa.
Via-se estendido nu ao lado da dama nua, autorizado a tirar partido de tal proximidade
carnal.

É verdade que o amante cortês só podia fazer isso até um certo ponto:

[...] pois, em última instância, a regra do jogo impunha-lhe que se contivesse, que não
desistisse – se queria mostrar-se valente - do pleno controle de seu corpo. O que cantavam
os poetas, portanto, atrasava indefinidamente para o futuro o momento em que a amada
cairia, em que o seu servidor alcançaria nela o seu prazer. Este, o prazer do homem,

36 DUFRASLE, D. Donne Moderne del Medioevo, p. 48.


37 DUBY, G.; PERROT, M. História das Mulheres no Ocidente: Idade Média, p. 85.

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encontrava-se deslocado. Já não residia na satisfação, mas na espera. [...] O amor cortês –
prossegue Duby – concedia à mulher um certo poder. Mas mantinha este poder confinado
no seio de um campo bem definido, o do imaginário e do jogo.38

O historiador conclui seu capítulo concordando com Daniel Rocher, para quem esse tipo de
amor, e a poesia derivada dele, tiveram efeitos positivos e importantíssimos na evolução da
emancipação da mulher no Ocidente:

O progresso geral, que atinge a sua maior intensidade em França na viragem dos séculos
XII e XIII, libertava a pessoa dos entraves coletivos que a freavam. 39

Declara ainda:

Estou plenamente de acordo com Daniel Rocher quando ele lembra que os exercícios do
amor cortês despojaram rapidamente de uma boa parte da sua grosseria o
comportamento dos machos, bem como a política matrimonial das linhagens. Escutando
as canções e os romances, os homens que se queriam civilizados tiveram que reconhecer
que a mulher não era apenas um corpo de que alguém se apoderava para dele gozar um
instante, ou no qual se semeava para que ele produzisse descendentes e prolongasse a
duração de uma linhagem. Eles aprenderam que importava também conquistar o coração
das mulheres, quer dizer, assegurar-se do seu bem-querer, e que para isso era preciso ter em
conta a inteligência, a sensibilidade, e as virtudes singulares do ser feminino. Pelo fino amor,
a cultura cavaleiresca afirmava certamente sua autonomia face à cultura dos padres. No
entanto, os preceitos do código amoroso concordavam com o ensino da Igreja quando esta
se esforçava por fazer admitir que as mulheres dispunham de um direito igual ao dos
homens, não apenas no leito conjugal, mas também na troca dos sentimentos pela qual se
selava a união do casal.40

Resumindo: foi nessa época que a mentalidade cavaleiresca da Idade Média, de natureza
machista, se metamorfoseou em mentalidade cavalheiresca, adquirindo uma fisionomia
imaginária pré-romântica, que acabaria sendo assumida pelo Ocidente no futuro, na época
propriamente dita do Romantismo.
Em nossa opinião, o texto de Georges Duby precisa ser complementado com as reflexões do
filósofo e historiador Jean Guitton, que destaca outros contributos da civilização cristã da época.

Os Antigos – escreve Guitton – haviam conhecido a amizade, a sensualidade, o êxtase


místico, o casamento, a paternidade, a filiação, mas muito raramente aquilo a que
chamamos amor. O amor exigia uma certa religião da mulher, concebida como inacessível,
e isto não podiam fornecer os antigos cultos, pois os mistérios pagãos dirigiam-se à
sexualidade, e a religião judaica era uma religião máscula, sem classe alta, sem imagens e
sem sacerdotisas. As mulheres judias não participavam no culto, conforme se fazia nas
outras religiões da Antiguidade. O próprio Jesus era servido por discípulas, mas não incluiu
nenhuma mulher entre os doze. Vemos, todavia, as mulheres tomarem parte no
apostolado de Paulo, que cita os nomes de Maria, Trifena, Trifosa, Pérside, Febe, a mãe de
Rufo, e outras (cf. 1 Cor XI, 8, 11; Rom 16, 1-16).

Guitton recorda, ainda, que na Igreja Primitiva, toda a afetividade do amor estava voltada
unicamente para o serviço divino. O sentimento poderia ter nascido nela, mas faltava-lhe um meio
propício.
É aqui que esse filósofo e historiado nos aponta um elemento explicativo de valor histórico
incontestável– para a compreensão do que realmente aconteceu no Amor Cortês:

38 Ibid., p. 332-333.
39 Ibid., p. 349.
40 Ibid., p. 349-350.

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Isto implicava – diz Guitton – uma civilização bastante complexa, em que a mulher
ocupasse um cume hierárquico, como numa corte bizantina. [...] A descentralização do
poder multiplicou na Idade Média as rainhas, e com elas, as cortes e os cortesãos. Criou
assim condições favoráveis a esse amor cortês que se desenvolvia muitas vezes à margem
do amor conjugal e podia tornar-se um grave perigo para a moral, e mesmo para a unidade
interior. O amor era então amado por si mesmo, como uma paixão que se saboreava
mesmo nos sofrimentos que trazia. A devoção do povo cristão para com a Virgem, a
Senhora (a Notre-Dame) foi firmada nessa altura nos países do Ocidente, e é esse o
carácter que ainda conserva, pois os sentimentos são também invenções que se podem
datar e que se mantêm com as tonalidades da origem.

Nesta altura, Guitton insere uma reflexão importantíssima: lembra que nessa época a
Virgem Maria foi imaginada também como uma “Rainha de majestade ao lado do Senhor de
Justiça”.
Lembra que o primeiro portal ocidental – ou seja, o portal de ingresso de uma catedral – na
França no qual se representou a Coroação da Virgem é o da Catedral de Senlis.41 No tímpano desse
portal, no ano de 1180, um escultor talentoso deu a esse tema, que foi uma criação de São
Bernardo, uma expressão inesquecível. A coroação de Maria acabou convertendo-se num dos
temas góticos por excelência, o único (em termos de iconografia mariana) absolutamente original,
sem precedentes bizantinos.42
Leiamos, ainda, este surpreendente esclarecimento de Jean Guitton:

Não se pode dizer que Maria dispensava da lei, (o que seria absurdo, e ninguém o pensa)
mas ela intercedia com um poder que parecia ilimitado, em favor daqueles que violavam
a lei.

Noutras palavras, Maria era considerada “o refúgio dos pecadores”:

Não libertava do preceito divino, mas permitia esperar a hora em que a alma atingia o
nível desse preceito. [...] O momento do arrependimento é o momento da iniciação. Mais
do que isso, é o meio pela qual se modifica o passado. Os Gregos julgavam isto impossível.
Muitas vezes diziam nos seus aforismos gnômicos: “Nem os deuses poderiam alterar o
passado”.

Ora, a intervenção misericordiosa da Virgem, cuja “onipotência” residia em seu poder de


intercessão a favor dos pecadores, modificava semelhante estado de condenação. Em vista disso,
“só havia Inferno onde a Virgem Maria não entrava”.
Na Idade Média até se imaginou que, em certas ocasiões a Virgem Maria libertava algumas
almas do inferno no dia de sua Assunção ao Céus ou, pelo menos, obtinha nesse dia minoração das
penas infernais para os condenados.43
Recordemos que o amor cortês não demorou em transferir-se da França à Itália. Neste país,
influenciou o dolce stil nuovo de Dante, levando-o a criar a mais bela jóia mariológica de todos os
tempos, isto é, a prece que ele colocou nos lábios de Bernardo de Claraval no final da terceira parte
da Divina Comédia, no Canto XXXIII do Paraíso.

41 Cf. imagem 9, na seção de anexos ao final do texto.


42 Cf. TREVISAN, A. O Rosto de Cristo.
43 Esta citação assim como as precedentes são extraídas de GUITTON, J. A Virgem Maria Nossa Senhora, p.
164-169.

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VII.

Nos tempos que seguiram a Idade Média, o processo de biografização – genericamente, de


feminização – da Virgem continuou a acentuar-se. Maria deixou de ser uma “Fada Mística”.
Começou a ser vista com os traços realistas de uma verdadeira mulher da época.
Precedendo os autores que desenvolveriam semelhante atitude, o franciscano São
Boaventura (1221-1274), hoje Doutor da Igreja, não receou, no seu tempo, compor os seguintes
versos que nos surpreendem por sua dimensão biológica:

Que doces são as entranhas


que se tornaram leito do Senhor!
Ó santíssimos mamilos
Nos quais o Senhor sugou
suave leite
do qual se nutriu.44

No Renascimento e do Barroco, os artistas avançaram na mesma direção. Chegaram a


exagerar os atributos corporais da Virgem. Um pintor, Jean Fouquet (1420-1481), o artista mais
célebre do Renascimento Francês, pintou o famoso Díptico de Melun (1450) para uma igreja
particular de um príncipe.45 O painel da direita conserva-se no Museu Real de Antuérpia. Nessa
pintura vê-se Maria sentada num trono como Rainha dos Céus, com um dos seios à mostra, cercada
por um grupo de Anjos azuis e vermelhos, com o Menino Jesus à sua frente. Os historiadores
informam-nos que o pintor, para pintar tal tela, inspirou-se numa amante de Carlos VII, Agnès
Sorel (1422-1450), de quem Étienne Chevalier, secretário e tesoureiro do rei, que encomendou o
Díptico ao pintor, estava enamorado.46
Nos séculos seguintes, poetas e artistas continuaram a celebrar Maria, não apenas como
modelo de beleza intrínseca – a de um “Jardim Fechado” – mas também como modelo de beleza
corporal. Nesse tipo de celebração encontravam um precursor gótico, Ailredo de Rielvaux
(falecido em 1160), que foi um dos primeiros a transferir à Virgem o código amatório feudal, o do
cavaleiro que rendia serviço à sua castelã.47
A humanização, com a consequente feminização completa de Maria, deu nascimento a um
novo tema para os poetas e artistas: o de suas Sete Dores. Foi a época dos Prantos da Virgem, que
começaram a aparecer no final do século XIV.

VIII.

Concluamos: o culto à Virgem, ainda que se admita não ter sido o deflagrador principal do
processo que promoveu a emancipação feminina, foi importantíssimo para seu desenvolvimento.
A celebração da Virgem ajudou a valorizar a mulher, considerada como ser humano.
Favoreceu a elevação da mulher à mesma dignidade do homem. Promoveu o surgimento daquilo
que veio a chamar-se a imaginação romântica.

44 Poema incluído na minha coletânea inédita Bela como a Lua.


45 Cf. imagem 10, na seção de anexos ao final do texto.
46 FARTHING, S. (Org.). 1001 Pinturas que hay que ver antes de morir, p. 90.
47 GRAEF, H. Maria, p. 244-245.

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Por sua vez, o Romantismo produziu uma idealização ainda mais intensa do feminino. De
certo modo consumou a valorização da dimensão pessoal da mulher.
Não pretendemos que tal processo tenha sido meramente obra do imaginário literário, ou
do imaginário artístico. De acordo com os princípios da “História Total”, a emancipação feminina
só foi possível porque a mulher, simultaneamente, conquistou outros espaços, entre eles o espaço
profissional. Em termos mais precisos: as mulheres consolidaram sua independência econômica.
Não resta dúvida de que a imagem da Virgem Maria, tanto na Poesia como nas Artes,
pressionou a sociedade a passar, de uma imagem um tanto abstrata de Mulher, a uma imagem
concreta e realista de seu valor pessoal e social. Tal fenômeno teve, como consequência indireta,
uma progressiva revalorização ética e estética de suas características sexuais e emocionais. Numa
palavra, o culto à Virgem inspirou e promoveu a reabilitação completa da mulher.

IX.

Os poemas, que reunimos em nossa coletânea Bela como a Lua fornecem uma amostra de
como a temática mariana inspirou os poetas. A Mãe de Deus nunca deixou de ser tema privilegiado
para os artistas. A expressão de tal tema, obviamente, sofreu modificações no decurso dos séculos,
de acordo com as mudanças de estilo nas diferentes artes, e nos sucessivos tempos.
Um fato, porém, merece ser ressaltado: o lirismo dos textos, bem como a expressão estética
das mais variadas artes que homenageiam a mãe de Deus, são quase sempre de grande valor
estético.
Nossa conclusão é a seguinte:

Em seu Magnificat
proferido dois mil anos atrás
numa pequena cidade da Judéia,
uma adolescente reivindicou para si
uma realidade que ainda hoje nos deixa aturdidos:
a adolescente declarou
que todas as gerações a chamariam ditosa.
Em expressão mais tradicional,
ela reivindicou para si,
inspirada pelo Espírito Santo,
a inaudita realidade de que seria
considerada pela humanidade
para sempre: Feliz!
Em linguagem rigorosamente evangélica
declarou que seria, por todas as gerações,
a Bem-Aventurada.

Permitam-me, na minha condição de poeta,


embora eu seja apenas uma voz poética
entre milhares de outras,
que eu acrescente:

com sua afirmação humilde


de uma humildade jubilosa e terna,

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embora inteligível unicamente à luz da Fé,


a adolescente de Nazaré
antecipou – esta é a realidade –
a bem-aventurança futura
de toda a Humanidade!

Referências

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BETTENCOURT, Estêvão. Para entender o Antigo Testamento. 4. ed. São Paulo: Santuário, 1990.
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COHEN, Gustave. La vida literaria en la Edad Media. Tradução para o espanhol de Margarita Nelken. México:
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DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História das Mulheres no Ocidente: Idade Média. Tradução portuguesa e
revisão científica de Maria Helena da Cruz Coelho, Irene Vaquinhas, Leontina Ventura e Guilhermina
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DUFRASLE, Dieudonné. Donne Moderne del Medioevo. Traduzione di Davide Riserbato. Milano: Jaka Book,
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ÉNARD, Albert. Alegra-te, Maria: Introdução à Prece Marial. São Paulo: Loyola, 1987.
FARTHING, Stephen (Org.). 1001 Pinturas que hay que ver antes de morir. 2. ed. Barcelona: Randon House
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GRAEF, Hilda. Maria: La Mariología y el Culto Mariano a través de la Historia. Barcelona: Herder, 1968.
GUITTON, Jean. A Virgem Maria Nossa Senhora. Tradução de Cruz Pontes. Porto: Livraria Tavares Martins,
1959.
HUBER, Sigfrido. Los Padres Apostólicos. Buenos Aires: Desclée de Brouwer, 1949.
LAGRANGE, J. M. El Evangelio de Nuestro Señor Jesucristo. Traducción de Elías G. Fierro. 2. Ed. Barcelona:
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LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Tradução coordenada
por Hilário Franco Júnior. Vol. 1. São Paulo: EDUSC, 2002.
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LOYN, Hanry R. (Org.). Dicionário da Idade Média. Tradução de Álvaro Cabral e Revisão Técnica de Hilário
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TREVISAN, Armindo. Cartas à Minha Neta (Para Ler Quando For Adulta). Porto Alegre: AGE, 2007.
TREVISAN, Armindo. O Rosto de Cristo: A Formação do Imaginário e da Arte Cristã. Porto Alegre: AGE, 2003.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a Voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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ANEXOS*

* As imagens exibidas nas páginas subsequentes foram apresentadas pelo Prof. Armindo Trevisan durante a sua
conferência no Congresso de Mariologia. Os comentários que as seguem são um testemunho do profundo
conhecimento bem como da ampla pesquisa do Prof. Armindo nessa temática.

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Imagem 1
Afresco do Anunciação do Anjo Gabriel à Virgem Maria.
Século II. Catacumba de Santa Priscila, em Roma. (Fonte:
Ravasi, Gianfranco. Os rostos de Maria na Bíblia. São Paulo:
Paulus, 2008, p. 157)

Imagem 2
Afresco da Catacumba de Santa Priscila: A Virgem Maria,
um Profeta e uma estrela. Aproximadamente 230-240 d.C.
(Fonte: Ravasi, Gianfranco. Os rostos de Maria na Bíblia. São
Paulo: Paulus, 2008, p. 137)

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Imagem 3
Inscrição encontrada na Sinagoga Judaico-Cristã de Nazaré. Estava gravada na base
de uma coluna. XE (XAIRE) MARIA. É a mais antiga invocação à Mãe de Deus que se
encontrou numa escavação arqueológica, na casa onde ainda hoje se vencera a cena
da Anunciação. (Fonte: VVAA. Jesus: Livro-álbum em três volumes com obras de arte
e fotos jornalísticassobre os lugares mencionados pelos evangelhos. Rio de Janeiro:
Jornal do Brasil, 1983. Vol. 1, p. 40)

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Imagem 4
Uma imagem de Deus em Majestade. Reproduzimos a Procissão dos Mártires, no alto
da nave central da Igreja de Santo Apolinário Novo em Ravena. A Procissão termina
perante o trono de Jesus, o Pantocrátor (o Senhor do Cosmos).

Imagem 5
No outro lado, no lado esquerdo da nave central, em direção ao altar, vê-se a
Procissão das Virgens, encabeçada pelos Três Reis Magos, que termina junto à
Virgem, que está num trono semelhante ao de Jesus. É do Século VI. (Fonte: Paolucci,
Antonio: Ravenna. Firenze: Scala, Istituto Fotografico Editoriale, 1982, p.60-61; 75)

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Imagem 6
A imagem de Maria como Mãe parece ter nascido entre os monges
egípcios, que se inspiraram para isso numa imagem da deusa Ísis
amamentando Hórus. A imagem inferior é do século III. (um afresco).
A imagem superior é de uma lápide sepulcral de um cristão do século
V ou VI. (Fonte: Atlas Histórico do Cristianismo, p. 72)

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Imagem 7
Ícone de Vladimir, aproximadamente ano 1130, Moscou, Galeria
Tetriakov. Uma das imagens da Mãe de Deus que inspirou as Maestàs
de Chimabue, Duccio, Giotto e Simone Martini. Nesse Ícone a imagem
da Virgem apresenta, pela primeira vez, um toque de ternura. É A
Virgem da Ternura ou também “Aquela que beija com doçura”. De
imagens desse tipo procedem as de Notre-Dames das Catedrais
Góticas, e as Madonnas dos pintores do Século XIII-XIV na Itália:
Duccio, Cimabue, Giotto e Simone Martini. (Fonte: Álbum sobre Siena:
Maestà de Duccio, p. 60-61; 81)

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Imagem 8
Poliptico da Misericórdia de Piero della Francesca. Museu de
Borgo San Sepulcro. Os pintores italianos acentuaram o aspecto
maternal da Mãe de Deus. Nos primeiros pintores, esse aspecto
é mais discreto. Com o tempo, as Madonnas italianas
representaram, cada vez, a misericórdia de Maria. As imagens
de Rafael são encantadoras como “imagens de mães”, mas o
Poliptico da Misercórdia, de Pietro della Francesca (1444-1464),
ilustra a condição de Maria como a Mãe Misericordiosa de
todos os homens. (Fonte: Busignani, Alberto. Piero dela
Francesca: 80 Colour Plates. Thames and Hudson, 1967,
ilustração 3)

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Imagem 9
Tímpano da Fachada Ocidental da Catedral de Senlis: “A Coroação da
Virgem Maria”, 1180. (Fonte: Duby, Georges. L’Europe des Cathédrales
(1140-1280). Genève: Éditions d’Art Albert Skira, 1966, p. 154)

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Imagem 10
No Renascimento ocorreram alguns abusos em relação as imagens da
Mãe de Deus. O pintor francês Jean Fouquet, considerado um dos
artistas mais importantes do Renascimento Francês, pintou o Díptico
de Melun (aprox. 1450) cujo painel da direita se conserva hoje no
Museu Real de Antuérpia. Nessa pintura vê-se Maria, cm um dos seios
a mostra, cercada por Anjos num trono, com o Menino Jesus. O pintor,
para realizar essa tela inspirou-se Agnês Sorel, amante do rei Charles
VII. Étienne Chevalier, Tesoureiro do Rei, que encomendou a tela,
estava enamorado de Agnês. (Fonte: Suckale, Robert; Weniger,
Mathias; Wundram, Manfred. Gótico. Köln: Taschen, sd., p. 78)

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