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8º Módulo: A psicologia da religião para Jung

SUICÍDIO E ALMA

O que pensamos quando pensamos em suicídio? Covardia, fraqueza, morte precoce e antinatural, doença
mental? Se colocarmos todos os nossos pensamentos de lado, nossos preconceitos a respeito do tema e de quem
pensa em se matar ou se matou, o que fica?
Para nos livrarmos dos pensamentos usuais, temos que conhecer quais são as principais referências a seu
respeito. Sociologia, teologia, direito, medicina formularam seus princípios e compreensões do suicídio e do
suicida, cada qual ao seu modo, mas tendo sempre como perspectiva o externo e o exterior.
Para a sociologia, não há meio de interpretar a pessoa que se mata, é necessário pensar a sociedade na qual
o suicídio acontece, levando-se em conta fatores como clima, período do ano, laços sociais, sexo, idade, gênero.
A metáfora da sociologia é o social. O indivíduo fica excluído desta análise.
Para a teologia, o dogma alimenta o pensamento de que a vida, dada por Deus (ou pelos deuses), não é do
próprio sujeito. Portanto, retirar a própria vida significa tomar algo alheio. O tempo de vida é determinado antes e
qualquer aproximação da morte, por artifícios, é pecado e conduz aos umbrais do inferno. Novamente, a teologia
também interpreta o tema a partir do exterior. Deus, o Outro, é quem julga o tempo, como Cronos da mitologia, e
dá ou retira de acordo com seu desígnio. O homem, em sua individualidade, não pode a Ele se opor.
Para o direito, até 1961, o suicídio é um crime. Se for bem sucedido, a pessoa perde os seus direitos, por se
opor à sociedade e querer dela se livrar. Em outras palavras, não há direito para provocar a própria morte, fazê-lo
é semelhante a cometer um homicídio, a única diferença é que autor e vítima são idênticos.
Para a medicina, o suicídio é uma morte não natural e como todo o seu esforço visa a manutenção da vida,
este é um ato reprovável. A psiquiatria, área menos nobre da medicina, encontra no suicídio o seu vilão. Por isso,
o suicídio deve ser prevenido, se há tentativa, a internação compulsória e a medicamentalização constituem a
saída.
Todas estas visões são externas. O olhar do psicólogo clínico ou psicoterapeuta, para James Hillman, deve ir
em outra direção: deve entender e compreender o suicídio a partir de dentro, a partir do indivíduo e sua
individualidade. Um suicídio na estatística sociológica é apenas um número em um gráfico. Um suicídio não é
igual a outro, ou seja, os motivos, as razões, o sentido é único, é individual. Encarar o suicídio a partir da alma ou
psique é o objetivo do autor no livro.
James Hillman, para quem não o conhece, é – além de um excelente escritor – o criador da chamada
psicologia arquetípica, uma continuação da psicologia analítica de Jung, com um olhar diferenciado da psicologia
analítica clássica ou psicologia analítica desenvolvimentista.
Um de seus axiomas para a psicologia é de que, na tentativa de fazer-se científica, respeitável, comprovada, a
psicologia havia perdido o seu objeto de estudo, a alma. Psique, como sabemos, em grego quer dizer alma.
Psicologia, portanto, é o estudo, o conhecimento ou discurso sobre a alma. Se a psicologia moderna havia
esquecido o seu próprio objeto, nada mais justo do que retornar a ele, estudando de forma profunda a alma. Foi o
que Hillman fez em seus diversos trabalhos, o mais conhecido é Re-visitando a psicologia, em inglês, Re-
Visioning Psychology.
Outro livro excelente, que utiliza esta abordagem de ver a alma em profundidade, é O Código do Ser, sobre a
escolha profissional ou o encontro do próprio chamado, da própria vocação.

A psicologia da religião para Jung

A forma como os fenômenos religiosos eram considerados também era diferente para um e para outro teórico.
Como escreve Phillipe Julien, no livro A Psicanálise e o Religioso: Freud, Jung, Lacan: “Se Jung se separou de
Freud a partir de 1913, não foi somente devido ao lugar que Freud concede à sexualidade. Sua oposição
concerne, sobretudo, à função religiosa no psiquismo, função que Jung considera positiva se soubermos definir
melhor o religioso” (JULIEN, 2010, p. 25).
Após o rompimento entre os dois teóricos, para Freud, Jung seria um profeta fundador de uma nova religião.
Mas o curioso é que, durante sua carreira, Jung teve que se defender frequentemente da acusação de ser místico
pelos cientistas, e de ser ateu ou agnóstico, por religiosos.
A temática da religião é realmente central dentro da Psicologia Analítica de Jung, encontrando-se presente ao
longo de suas Obras Completas. Apenas para citar algumas obras do autor que abordam diretamente a relação
entre psicologia e religião há: Resposta à Jó, Psicologia da Religião Oriental e Ocidental, Símbolo da
transformação na missa, sem contar as outras obras como Aion, estudos sobre o simbolismo do Si-Mesmo, e o
prefácio de I Ching, de Richard Wilhelm.
A definição dada por Jung para o que é religião – e para o que é numinoso – pode ser encontrada na obra
Psicologia e Religião. Esta obra é a transcrição de três conferências sobre o tema da psicologia da religião dadas
na Universidade de Yale, as Terry Lectures. No que diz respeito ao termo religião, Jung utiliza-se da etimologia
proposta por Cícero, a religião como oriunda da palavra latina relegere: “Antes de falar de religião, devo explicar o
que entendo por este termo. Religião é – como diz o vocábulo latino relegere – uma acurada e conscienciosa
observação daquilo que Rudolf Otto acertadamente chamou de numinoso, isto é, uma existência ou um efeito
dinâmico, não causados por um ato arbitrário. Pelo contrário, o efeito se apodera e domina o sujeito humano, mais
vítima do que seu criador” (JUNG, 1995, p. 9).
E na continuação: “Encaro a religião como uma atitude do espírito humano, atitude que de acordo com o
emprego ordinário do termo: ‘religio’, poderíamos qualificar a modo de uma consideração e observação cuidadosa
de certos fatores dinâmicos concebidos como “potências”: espíritos, demônios, deuses, leis, ideias, ideais, ou
qualquer outra denominação dada pelo homem a tais fatores; dentro de seu mundo próprio a experiência ter-lhe-ia
mostrado suficientemente poderosos, perigosos ou mesmo úteis, para merecerem respeitosa consideração, ou
suficientemente grandes, belos e racionais, para serem piedosamente adorados e amados” (JUNG, 1991, p. 10).
De modo que o religioso, desde que seja definido de forma correta, é uma questão que não pode ser ignorada
por uma teoria psicológica. Como as culturas são muito variadas e, neste sentido, cada cultura apresenta sua
forma de lidar com o religioso de forma particular, faz-se necessário um amplo estudo. Com o conceito de
inconsciente coletivo, este estudo passa a ser importante não apenas para a antropologia, história da religião ou
ciências da religião, mas igualmente importante para a psicologia. Pois conteúdos simbólicos, que foram
elaborados ou expressos em culturas totalmente diferentes, aparecem em sonhos e sintomas dos pacientes na
clínica.
Deste modo, desde o rompimento com Freud, Jung passa a desenvolver uma concepção totalmente diferente
da psique e da energia psíquica. As diferenças individuais são estudadas a partir do conceito de tipos
psicológicos. Determinados conteúdos não podem ser entendidos ou explicados tendo-se em vista os conceitos de
Freud ou Adler, ainda que estes conceitos possam ajudar na medida em que dizem respeito ao inconsciente
pessoal. Para outros conteúdos, deve-se ter em mente o conceito de inconsciente coletivo e arquétipo e, também,
uma outra forma de interpretação que não reduza tais conteúdos à história de vida de cada um, mas relacione-os
com a história da humanidade, já que fazem parte do inconsciente coletivo.
Jung escreveu em diversos textos sobre a personalidade de Freud, como sendo um autor genial, que com o
seu conceito de inconsciente influenciou toda a cultura ocidental. A partir de suas descobertas clínicas, Freud se
aventurou a analisar outros aspectos da cultura, além da psicopatologia. Tais descobertas, foram, portanto,
extremamente influentes e, tendo uma personalidade forte, Freud centrou todo o desenvolvimento da psicanálise
ao seu redor. Teóricos como Adler, Jung e (alguns anos após Wilhelm Reich) que discordaram de seu ponto de
vista, não puderem continuar contribuindo com as elaborações psicanalíticas e tiverem que criar, à parte, suas
próprias teorias e abordagens.
Assim, Jung discordava da ênfase excessiva na sexualidade, que foi central na psicanálise até 1920, quando
Freud reformula totalmente seus conceitos, passando a pensar no psiquismo sob nova dinâmica, a pulsão de vida
versus a pulsão de morte. Mas até a época do rompimento de Adler e Jung, a sexualidade era um princípio central
e embora tenham sido feitas reelaborações, ela continuou tendo relevância na psicanálise.
Com o texto de 1912, Jung passa a pensar a libido não como uma “força” psíquica apenas sexual. Para ele, a
libido deveria ser pensada como uma energia em geral, que poderia ser transformada ou reutilizada em outros
âmbitos e áreas. A partir de experiências pessoais e também a partir do contato com pacientes, ele começa a
desenvolver o conceito de inconsciente coletivo, bem como a notar as diferenças entre os pacientes – e as
diferenças nas teorias filosóficas, psicológicas, artísticas – através da ideia de tipos psicológicos.
Conclui-se que Jung não se transforma no herdeiro de Freud. Em seu ponto de vista, ele continuou dando a
importância devida à sexualidade, (e ao princípio de poder de Adler), porém buscou entender como determinados
símbolos psíquicos não são sexuais ou relacionados ao poder, mas devem ser compreendidos por sua relação
com os símbolos religiosos ou sagrados não apenas de nossa cultura como também de todos as demais. Uma
dada concepção do que transcende o cotidiano e as experiências do dia a dia está e estará sempre presente e
deve ser objeto da psicologia.

Psicologia da religião ocidental e oriental

Certa vez, estava engajado em pesquisar a compreensão de religião nas obras de Jung quando me deparei
com esta afirmativa: “O homem ocidental é cristão, independentemente da religião à qual pertença.” (C. G. Jung).
Coloquei-me a pensar – “Como pode este ousado autor ter o disparate de concluir tal coisa?” Entretanto, atirar
a primeira pedra de nada vai me servir se não conhecer antes, o que estou criticando, e qual é o contexto a que se
remete esta afirmativa. Portanto, vamos pesquisar.
A princípio, devemos desconsiderar o cristianismo aqui como uma profissão de Fé, Jung não está se referindo
a um credo religioso, mas antes, a um modo de pensar tipicamente cristão ocidentalizado.
Como homens ocidentais, sempre estaremos à sombra das figuras de Cristo e de um Deus uno.
Querendo ou não, Cristo é um marco na nossa história, ele é o mito ainda vivo de nossa civilização, é por
causa dele que nosso calendário é organizado. Ele é o herói de nossa cultura, o qual, sem detrimento de sua
existência histórica, encarna o mito do homem primordial.
Cristo vem para reatar o vínculo entre Deus e o Homem, ele é a figura central de mediação que pode
restabelecer o contato do indivíduo com Deus.
Tomemos agora como base, o Budismo. Temos na figura de Sidarta Gautama a imagem de um homem que,
não possui divindade, e que abre mão de um privilegiado status social a fim de dedicar sua vida na árdua busca
por respostas, atingindo o estado Budico de iluminação através da prática espiritual da meditação.
“Buda é um de nós, que pela capacidade (egóica) de julgamento e discernimento, seu próprio esforço,
concentração, paciência, persistência, compaixão e pela meditação, chega ao conhecimento pleno de si mesmo
(Iluminação) e de todas as coisas”. (Joel Salles Giglio, s/d, s/p).
Mas, em que esses dois símbolos influenciam na forma como nosso pensamento é estruturado?
Para Jung (2011, p. 18) “O Ocidente cristão considera o homem inteiramente dependente da graça de Deus ou
da Igreja na sua qualidade de instrumento terreno, exclusivo da obra de redenção sancionada por Deus”.
Aqui encontramos um ponto interessante. Na visão de Jung, a figura de um Deus que é um ente separado do
homem, do qual é considerado o absoluto, dotado de perfeição, fez com que o homem ocidental voltasse seu
olhar para o que é exterior a si próprio.
Decorrente disto surge em nós um ideal, ou seja, de que o homem só se realiza com aquilo que for exterior a
ele, como no caso: conquistas profissionais; ser bem sucedido; arrecadar mais e mais dinheiro. Está impregnada
em nós a ideia de que: tudo que é bom vem de fora.
Por outro lado, o Ocidente “sublinha o fato de que o homem é a única causa eficiente de sua própria evolução
superior; o Oriente, com efeito, acredita na ‘autoredenção’”. Os métodos contemplativos e meditativos se
preocupam e despertar no homem oriental que: tudo que é bom vem de dentro.
A introspecção e a contemplação do interior do homem são amplamente desvalorizadas nos costumes
ocidentais, o que torna qualquer prática que exerça este método contraditório ao pensamento ocidental e muito
mais difícil de ser aplicado.
Assim, o comportamento ocidental é sempre modelado para impulsos de realização plena no mundo exterior.
Essa meta, que está enraizada em todo povo ocidental, fere completamente os ideais de uma cultura oriental,
onde: “É a partir de dentro que devemos atingir os valores orientais e procurá-los dentro de nós mesmos, e não a
partir de fora.” (JUNG 2011, p. 21).
“A introversão é, se assim podemos nos exprimir, o estilo Oriental, ou seja, uma atitude habitual e coletiva, ao
passo que a extroversão é o estilo Ocidental.” (JUNG, 2011, p. 17-18).
Esta diferença de tipo marca profundamente tanto as práticas religiosas, quanto a forma de se conceber a
organização em sociedade. Enquanto uma se preocupa com uma divindade exterior, de extrema grandeza e
poder, na outra, esta grandeza está dentro do próprio homem, e precisa ser liberada com a anulação do eu,
permitindo o surgimento de um estado superior de consciência.
Talvez ai esteja o ponto central que torna tão complicado a adoção de uma filosofia oriental de vida, ou seja,
ideia da consciência. Para o oriental, o estado superior de consciência é atingido com a perda do eu, essa ideia é
completamente inconcebível para uma estrutura de pensamento ocidental, hora, pois, se não existe um eu para se
tornar consciente, não há como se vivenciar algo.
Portanto, o eu é imprescindível em todo e qualquer processo de conscientização para o pensamento ocidental.
“O fato do Oriente colocar de lado o eu com tanta facilidade parece indicar a existência de um pensamento que
não podemos identificar como o nosso “espirito”. No oriente, o eu desempenha certamente um papel menos
egocêntrico que entre nós”. (JUNG 2011, p. 22).
Certamente, o espirito oriental só pode ser copiado quando este se adapta ao estilo ocidental, deste modo,
qualquer prática filosófica vindo do oriente só pode se adequar em partes ao modo de vida ocidental, pois em
outras, ele nunca será plenamente alcançado.
Os valores vindos do oriente sempre serão visto a partir de uma perspectiva e um modo de vida ocidentalizado.
“Se nos apropriarmos diretamente dessas coisas do Oriente, teremos de ceder nossa capacidade ocidental de
conquista”.
Jung complementa a frase acima com a seguinte crítica, “[…] com isso estaríamos confirmando, mais uma vez,
que ‘tudo que é bom vem de fora’, onde devemos busca-lo para nossas almas estéreis”. (JUNG 2011, p. 20)

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