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Quantum Devil Saga:

AVATAR TUNER
VOL. 1
Quantum Devil Saga:
AVATAR TUNER
VOL. 1

Texto: Yu Godai
Capa: Hirotaka Maeda

Tradução:
Mangekyou54

www.nerduai.blogspot.com.br
Os Territórios do Lixão

Muladhara Controlado pela tribo Embriao, liderada por Serph.


Svadhisthana Controlado pela tribo Vanguardas, liderada por Harley Q.
Manipura Controlado pela tribo Maribel, liderada por Jinana.
Anahata Controlado pela tribo Solidos, liderada por Mick, o Lesma.
Vishuddha Controlado pela tribo Lobos, liderada por Canis Volk.
Ajna Controlado pela tribo Brutos, liderada por Varin Omega.
Sahasrara O territorio inviolavel que abriga o Templo,
o quartel-general da Igreja dos Arbitros do Karma.
Parte I

O Lixão
Hora: 05:43:21 HS
Ruído Solar: NÍVEL 8
Coordenadas: 02A7-7B77845
Escaneando.../

Altura: 3567 mm
Comprimento: 2225 mm
Largura: 2225 mm
Peso: Desconhecido
Material: Desconhecido
Objeto: Desconhecido
Reiniciando escaneamento...
Categoria: Erro/
Capítulo 1

Somos filhos do caos, e a estrutura profunda da mudança é a deterioração.


No fundo há apenas corrupção e a maré invencível do caos.

– P. W. Atkins

Serph congelou. Alguem estava olhando para ele. Ele podia sentir.
Lá. Ele focou o olhar na pequena criatura encolhida numa pilha de escombros. Ela
olhou de volta com olhos brilhantes.
Gotas de chuva molhavam os dois – uma chuva prateada. Pequenas poças se
formavam aos pes de Serph, tao metalicas que a agua parecia mercurio. Por todo lado,
pedaços retorcidos de metal enferrujado brotavam do chao. A chuva lavava o campo de
batalha. Ela nao tinha peso, nem temperatura – apenas estava la, tingindo o ar de prata.
Ao longe, se destacava a torre do Templo. Agora era HS – Hora de Sombra – e o ceu
estava cinza como o chumbo, com um ou outro feixe de luz esverdeada visível as vezes
do canto do olho. As forças de Serph e seus oponentes aguardavam em esconderijos
improvisados feitos de lajes caídas e veículos virados, espalhados por essa desolada
terra de ninguem. Os trajes tribais que eles usavam para combate possuíam controle de
temperatura, mas nao eram feitos para embates de longa duraçao como esse. Serph
estivera esticando as pernas, tentando amenizar a dureza dos seus musculos, mas parou
com a sensaçao de que alguem o estava observando.
Gato.
A palavra surgiu na sua mente, mas ele nao sabia porque. A tela do seu rastreador
brilhava em verde, exibindo as palavras “Categoria: Erro/” repetidamente. Ele nao tinha
certeza se a leitura vinha do objeto a sua frente ou da coisa que o olhava do alto dos
escombros. Provavelmente não é nada demais. Um momento depois, o que quer que fosse,
desapareceu, juntamente com a mensagem.
A chuva ficou um pouco mais forte.
- Senhor – sua atiradora falou com uma voz baixa. Ele olhou para ela – Avistei
Harley Q.
Serph fez que sim com a cabeça e ajustou o campo de visao do seu rastreador,
aumentando o zoom para visualizar as forças inimigas espalhadas pelo caminho.
Edifícios em ruínas formavam um cenario funebre na distancia sombria mais a frente. O
inimigo estava se escondendo atras de uma infinidade de predios decadentes, pedaços
de concreto indiscerníveis e veículos de guerra virados de lado. A chuva de prata
continuava a cair sem fazer um ruído.
Mesmo com o aprimoramento espectral de luz baixa dos seus olhos, era difícil
para Serph detectar as posiçoes inimigas num confronto em campo aberto como esse.
Por outro lado, o adversario estava no mesmo barco. Eles tambem tinham sistemas
nervosos reforçados e sentidos aprimorados, mas o breu do campo de batalha garantia
uma camuflagem eficaz para ambos os lados. Ele mudou para o modo de rastreio termico,
e silhuetas vermelhas e laranjas apareceram em meio ao campo de cinza.
Lá estão eles. Serph contemplou a força que os Vanguardas tinham despachado.
Os dados do líder deles, Harley Q, estavam superimpostos num canto do seu
monitor de dados. Ele mesmo nao tinha visto Harley ainda, mas se a sua atiradora disse
que ele estava la, entao ele estava la. Ela tinha uma habilidade sem igual para visualizar
alvos – ela nem precisava recorrer a tecnologia dos rastreadores.
Harley Q geralmente preferia taticas de guerrilha mais cautelosas. Era peculiar ele
adotar uma estrategia tao abertamente agressiva como essa. E era exatamente isso que
deixava Serph inquieto.
Inquietude.
Isso significava simplesmente que faltava alguma informaçao.
O campo de batalha era uma bacia rasa. A formaçao desigual era repleta de
destroços de concreto e pedaços de plastico de construçao derretido que se juntavam
em angulos estranhos ao longo do perímetro. No centro dela, ficavam os restos de um
viaduto que tinha desabado bem no meio da sua extensao. Sua silhueta escurecida
perfurava o ceu vazio, marcando a fronteira militar entre Svadhisthana e Muladhara. Do
lado de Serph da divisa estava um grupo de quarenta, e do outro, um de cerca de sessenta,
ambos esperando o sinal para começar as hostilidades.
O inimigo tinha descido a inclinaçao e avançado para varios pontos de defesa
oferecidos por caixas de mercadorias, restos deteriorados de estruturas ha muito
abandonadas e outras ruínas. Eles apareciam como manchas indiscerníveis no
rastreador termico; suas vozes eram audíveis na forma de um murmurio baixo. Pelo que
Serph podia ver, cada uma das posiçoes que ele tinha visualizado estava ocupada por
esquadroes de tres a seis soldados de infantaria.
Ele mudou para a visao normal de novo e olhou ao redor. Atras das linhas inimigas,
eram visíveis vislumbres de marcaçoes tribais verdes em movimentos furtivos. Todas as
tribos usavam uniformes marcados com uma cor unica para se diferenciar das demais.
Os Vanguardas usavam trajes acentuados com vívidas marcaçoes verdes, e os seus
oponentes – a tribo de Serph, a Embriao – eram identificados por um forte laranja.
Ambos se destacavam contra a paisagem cinzenta morta.
Os Vanguardas controlavam Svadhisthana, enquanto a Embriao regia sobre
Muladhara.
No total, o Lixao era composto por sete areas. A mais importante de todas era
Sahasrara, o territorio inviolavel, que abrigava o quartel-general da Igreja. Os portoes
para o paraíso do Nirvana se abririam para quem quer que controlasse as outras seis.
Assim dizia a Igreja, entao devia ser verdade; a Igreja do Karma era a autoridade
absoluta.
Muladhara, Svadhisthana, Manipura, Vishuddha, Anahata, Ajna e o inviolavel
Sahasrara. Sahasrara era onde ficava a torre, a colossal edificaçao habitada pelos
sacerdotes de branco da Igreja. No seu topo ficavam os portoes para o paraíso. O topo da
grande torre era longínquo, muito acima da extensao desolada do Lixao, alem da chuva
e da poeira. Do ponto de vista de Serph, ela parecia turva e eterea, como se pintada com
tinta guache.
Diziam que daquela torre era possível ver os confins do mundo. Mas nesse
momento, ali mesmo, naquele campo de batalha coberto de escombros, havia algo que
ninguem jamais havia visto.

Peso: Desconhecido
Material: Desconhecido
Objeto: Desconhecido

Categoria: Erro/

Nao importava quantas vezes ele escaneasse, o resultado era sempre o mesmo.
O objeto tinha cerca de tres metros e meio de altura e dois metros de diametro.
Sua forma era a de uma esfera deformada, pontuda no topo. Sua superfície consistia de
pratos de metal elípticos – tambem pontudos, semelhantes ao objeto em si – que se
entrelaçavam como escamas. Um padrao de luz verde brilhava as vezes entre os pratos
profundamente negros, fazendo parecer que o objeto estava envolvido em algum tipo de
rede brilhante. Varios tubos grossos conectavam a coisa ao solo; parecia que eles a
alimentavam com algum tipo de nutriente.
Uma luz corria pelos tubos, e toda vez que isso acontecia, o objeto pulsava na
nebulosa chuva de prata. Parecia algum tipo de broto, Serph pensou, mas num instante
a ideia sumiu da sua mente.
Gato. Broto.
A interferencia estava muito forte hoje.
- Aviso para a Embriao. – uma voz grossa ecoou de um megafone – Remova o
objeto nao-identificado nas coordenadas 02A7-7B77845 imediatamente. Caso nao o
faça, consideraremos como um ato de guerra e responderemos com força.
- Aviso para os Vanguardas. – uma voz parecida respondeu com o mesmo tom de
voz seco e uniforme – Removam o objeto nao-identificado nas coordenadas 02A7-
7B77845 imediatamente. Caso nao o façam, consideraremos como um ato de guerra e
responderemos com força.
Uma chamada ressoou no ouvido de Serph. O bispo, posicionado um pouco mais
para tras, transmitiu a sua analise dos dados. Uma serie de informaçoes começou a rolar
na frente dos olhos de Serph, mas a conclusao foi a mesma. Nem mesmo o bispo podia
desvendar o misterio desse objeto desconhecido.
Serph deu uma resposta curta e encerrou a chamada. Sem tirar os olhos das
posiçoes inimigas, emitiu ordens rapidas para suas tropas atraves de sinais com a mao.
Ouviam-se passos para todos os lados atras dele. A atiradora, em posiçao de ataque,
direcionou um olhar rapido para ele. Seu cabelo era rosa e ia ate a altura do ombro, o
que a fazia se destacar em meio as luzes cinzentas.
- Soldados sempre podem ser substituídos, senhor, mas nao podemos substituir o
nosso líder.
Ele nao respondeu. A essa altura, isso era mais do que obvio. Num conflito entre
tribos, se um lado derrotasse o líder inimigo, era o fim da batalha. Mesmo que uma tribo
estivesse emergindo como a vencedora indisputavel do embate, se o seu líder caísse, ela
seria declarada derrotada na hora.
Numa tribo grande com forças suficientes, como os Solidos de Anahata, e claro
que o líder nao se posicionaria nas linhas de frente. Mas para uma tribo emergente como
a Embriao, que tinha muito menos membros, o líder era uma presença valiosa no campo
de batalha.
Era inedito uma tribo pequena como a Embriao tomar o controle de toda a
Muladhara, e teria sido impossível se nao fosse pelas habilidades excepcionais do seu
líder e dos talentos consideraveis dos seus quatro membros-chave.
Argilla, a mulher com o rifle, era uma desses quatro. Ela tinha uma capacidade
incrível de escanear o inimigo sem precisar usar dispositivo algum, e derrubava
qualquer alvo com um unico disparo. Dois dos outros tenentes de Serph estavam
naquele momento liderando os seus proprios esquadroes, posicionados um de cada lado
da formaçao principal. O quarto membro era o bispo, que provavelmente assumiria a
retaguarda quando terminasse a sua analise de dados.
O fato de a Embriao precisar levar o seu líder e os seus quatro membros-chave
para o combate corpo-a-corpo era uma fraqueza, mas ao mesmo tempo uma vantagem.
A tribo tinha apenas cerca de cinquenta membros quando tomou o controle de
Muladhara, com esse grupo central de cinco pessoas sendo responsavel por
praticamente todas as lutas. Provavelmente nao havia muitas outras tribos que
concentravam tanto potencial em apenas cinco combatentes.
Serph sacou sua pistola do coldre e liberou a trava de segurança, preparando o
primeiro tiro.
O plano era ele liderar o ataque contra o líder dos Vanguardas caso ele aparecesse
no campo de batalha. Com movimentos ageis e precisos, Serph atrairia o fogo inimigo na
sua propria direçao, no intuito de fazer o proprio Harley Q se revelar. Nessa hora, suas
forças atacariam em massa. Se eles derrotassem Harley, a batalha estaria acabada.
Normalmente, ficar cara-a-cara com o inimigo so com uma pistola seria suicídio.
Mas nesse caso, ele queria evitar armas de fogo mais pesadas. Uma arma maior e mais
longa como um rifle ou metralhadora seria pesada demais, prejudicando a sua
capacidade de evadir o fogo inimigo.
Para essa estrategia funcionar, a pessoa que agia como isca precisava possuir uma
concentraçao excepcional, habilidade física e a capacidade de se defender sozinho no
campo de batalha usando a menor arma possível. A unica pessoa que atendia a todos os
criterios era o proprio líder da Embriao. Obviamente, era clara a regra de que a morte
de um líder significava a derrota imediata de uma tribo. Era por isso que Argilla o tinha
advertido.
Mas tambem havia outra regra a se considerar.
No caso da morte do líder, os membros restantes eram obrigados a se render na
hora e jurar aliança a tribo vencedora. Foi assim que a Embriao expandiu as suas
proprias fileiras. A mesma mulher que o advertiu momentos atras provavelmente
acabaria servindo a outra tribo sem hesitar caso ele morresse.
Ele levantou a mao para sinalizar o início da operaçao.
Tinha olhos prateados, ele pensou de repente.
O gato. Era negro, tinha uma cauda comprida, grandes orelhas triangulares e
bigodes finos como agulhas.
Isso não importa agora.
Ele abaixou a mao. Os primeiros disparos ecoaram.
Pulando de tras da parede de concreto que estava usando para se esconder, ele
correu adiante a toda velocidade, desviando erraticamente pelo caminho. Balas furavam
o chao aos seus pes. O cheiro e o calor da polvora passavam ao lado do seu rosto. Como
seu objetivo era ficar o mais agil possível, Serph nao estava usando nada para proteger
a cabeça. Ele protegeu os olhos com uma mao e rolou pelo chao.
A arma escolhida pelos Vanguardas eram bestas automaticas. Seus projeteis nao
possuíam muita força de penetraçao, mas eram carregados com explosivos que
ativariam uma vasta explosao apos o impacto. Essas explosoes podiam agitar a areia e o
cascalho com força suficiente para mutilar ou matar.
Ele rolou pelo chao ate um abrigo, mas outro ataque veio antes que pudesse
recuperar o folego. Flechas choveram em cima dele. Mesmo que nao o atingissem
diretamente, os explosivos fariam o trabalho. Rapidamente ele disparou uma se rie de
balas precisas com a sua pistola, detonando as flechas de longe. Chamas deslumbrantes
engoliram o seu campo de visao.
Enquanto ele rolava novamente para fora do esconderijo para evitar a explosao,
fragmentos ardentes de metal voaram para todos os lados, e uma assustadora rajada de
calor soprou sobre o seu rosto, quente o bastante para abrir bolhas na pele exposta,
apesar do creme anti-queimadura que tinha aplicado. Se ele tivesse levado aquela
explosao de perto, agora seria apenas um corpo torrado. O cheiro de cabelo queimado
tomou conta das suas narinas.
Ele destruiu outra saraivada de flechas que estavam vindo na sua direçao,
atirando as ultimas balas do pente e saltando para tras de um grande pedaço de
escombros no qual estava de olho. Um instante depois, chamas floresceram acima dele,
com uma flecha explosiva engolindo toda a area no seu ataque. Houve uma explosao
enorme, seguida de um vendaval cortante que carregava consigo o fedor de asfalto
chamuscado e carne queimada. Provavelmente um bom numero de pessoas tinha
morrido.
Ele colocou um pente novo na pistola e escaneou a area, escolhendo o seu proximo
destino. Do canto do olho, viu soldados inimigos correndo de tras de alguns escombros,
mirando nele. Respondeu instintivamente com um unico tiro – nao no inimigo, mas em
outra flecha explosiva que vinha na sua direçao. Defletido e girando fora de controle, o
projetil voou direto na direçao do inimigo.
Golpe certeiro.
Gritos encheram o ar. Varios soldados inimigos saíram correndo de tras do
concreto estilhaçado; fumaça subia dos seus corpos enquanto eles corriam.
Um momento depois, porem, eles pararam. Sangue jorrou e eles caíram ao chao.
O som de tiros pode ser ouvido. Argilla, ainda abaixada no seu ponto de ataque, trocou o
pente com uma facilidade invejavel e continuou a atirar sem demora. No intervalo de
uma unica respiraçao, todos os membros do esquadrao inimigo estavam mortos no chao.
O som de novos tiros ecoou a direita de Serph. Um soldado Embriao de baixa
estatura e cabelo azul trançado desceu escorregando o aterro no limite do campo de
batalha, atirando com a metralhadora na sua cintura em curtos intervalos. O esquadrao
que ele liderava o seguia de perto.
Ao mesmo tempo, outro grupo veio correndo de uma posiçao no lado oposto. Eles
eram liderados por um soldado de choque, um homem grande de cabelos ruivos que se
destacavam claramente contra a paisagem seca. Sobre um dos largos ombros, ele
carregava um lança-granadas, que descarregou enquanto corria, arrotando uma bola de
chamas; na explosao subsequente, varios soldados inimigos se tornaram cinzas,
deixando um buraco negro e ardente no chao.
Por toda a bacia, combatentes marcados de verde e laranja colidiam num frenesi
sem lei. O homem ruivo parou rapidamente, mantendo o inimigo sob controle com outra
granada, seguida de uma cortina de balas de metralhadora.
Serph ativou a funçao de rastreio de situaçao da sua visao aprimorada e examinou
a batalha. O inimigo tinha atualmente trinta e duas tropas. O seu lado tinha vinte e duas.
As coisas estavam indo melhor que o esperado, mas dada a disparidade entre as forças,
aquilo estava demorando demais. Enquanto ele checava, outro dos seus foi abatido.
Vinte e um.
Mas ainda nao havia sinal de Harley Q.
Havia um pequeno lag quando ele saía do modo de rastreio. Quando fez isso,
avistou um soldado inimigo escalando os escombros pouco mais de um metro acima de
si. Serph começou a levantar sua arma para atirar, sabendo que seria tarde demais. De
repente, se encontrou cara-a-cara com um par de grandes olhos abertos. Serph viu o seu
proprio reflexo neles, um jovem de cabelos prateados cujos proprios olhos estavam tao
arregalados quanto.
Um instante depois, houve um tiro atras dele, e o inimigo desapareceu da sua
frente num chafariz de sangue e massa cinzenta. Serph se recompos, atirou em outros
dois atacantes bem no meio dos olhos e seguiu para o seu proximo esconderijo. Ruídos
estalavam no comunicador na sua orelha.
Do alto de uma elevaçao atras das linhas da Embriao, um homem ergueu o rosto
de tras da mira do seu rifle de assalto. Seus olhos eram de um verde muito claro, a mesma
cor do cabelo debaixo do capuz. O bispo.
- Pude confirmar que Harley Q esta presente. Tenha cuidado, senhor. – a
transmissao foi seguida de um pacote de coordenadas. Serph ajustou seu radar,
mudando para o modo de zoom para escanear as linhas inimigas. Um homem de cabelo
vermelho apareceu brevemente, correndo para tras de uma carreta. O radar capturou
uma imagem, ampliou e filtrou. As linhas borradas foram limpas, revelando a silhueta de
um homem magro de aparencia inconfundível. Havia marcaçoes verdes nos seus ombros
e abaixo dos olhos. Era o suficiente para confirmar que era a mesma pessoa do arquivo.
Harley Q em pessoa.
Serph tinha localizado o seu alvo. Agora era apenas uma questao de encontrar o
jeito certo de atrai-lo para campo aberto. Ele esperou uma abertura no ataque inimigo,
tentando determinar a melhor rota a seguir.
Entao, de repente o campo de batalha foi banhado por uma luz branca ofuscante.

A princípio, Serph achou que a luz tinha vindo de uma explosao, mas um momento
depois, ouviu um guincho horrível no seu comunicador, seguido imediatamente de
silencio total. Seu radar oscilava de interferencia, e o fluxo de dados tinha sido
totalmente cortado.
Ele podia ver Harley. Nao havia som de nenhum tiro, apenas um chiado incessante.
Harley saiu cambaleando de tras do seu esconderijo, entao arqueou as costas e esticou
os braços. Chiado. Mais chiado.
Serph pode ouvir a exclamaçao desesperada de Harley:
- O que esta acontecendo comigo?!
A voz de Harley tambem parecia estar misturada com o chiado. Suas palavras
pareciam um grunhido borbulhante. Seus joelhos fraquejaram e ele caiu ao chao,
curvado como se fosse vomitar. Um movimento de pulsaçao subia e descia pelas suas
costas, como se houvesse algo vivo ali. O som molhado de carne sendo rasgada
preencheu o ar.
E no meio de tudo, o chiado.
Harley gritou. A parte de tras da sua jaqueta se levantou, e entao rasgou de dentro
para fora. Uma forma negra saltou quase que depressa demais para ser vista; os gritos
de um dos soldados dos Vanguardas que estava por perto pararam de repente, ja que
tudo dos seus ombros para cima desapareceu sem deixar vestígio. O homem morto
cambaleou para tras e, um momento depois, sangue começou a jorrar do seu corpo,
formando uma viscosa poça vermelha.
Serph apenas olhou, perplexo. O inimigo tinha desenvolvido alguma nova forma
de ataque? Mas isso nao explicava o corpo mutilado de Harley, ou por que ele atacaria os
proprios homens. Um novo oponente tinha aparecido?
Varias possibilidades vieram a mente, mas Serph dispensou todas elas. O líder da
Embriao continuou escondido enquanto pesava suas opçoes. Ele tentou chamar a
retaguarda pelo comunicador, mas nao houve resposta. Alguns tiros esporadicos eram
audíveis de novo, mas longe de no mesmo nível de antes. Com grande cautela, Serph
colocou a cabeça para fora do esconderijo e olhou ao redor.
O “broto” tinha se aberto.
O estranho objeto tinha ficado parado la durante toda a batalha, e como nenhum
dos lados o considerou uma ameaça, foi essencialmente ignorado. Mas agora, parecia
que ele podia ser algum tipo de arma laser bizarra ou bomba de fragmentaçao. A luz la
dentro pulsava em rajadas rapidas e aleatorias.
As escamas negras agora mais pareciam petalas, e tinham se aberto num calice
circular, acima do qual dançava um aglomerado de incontaveis luzes azuis claras. As
luzes giravam em torno de um vortice central, deixando trilhas brilhantes no seu trajeto
hipnotizante. Era impossível acompanhar qualquer uma delas individualmente. Vez ou
outra, uma das luzes azuis se separava do resto, como se simplesmente nao conseguisse
continuar girando com as outras, e voava em alguma direçao aleatoria – ou entao ia atras
de um dos indivíduos encolhidos que foram lentos demais para fugir. Qualquer um infeliz
o bastante para ser perfurado por uma dessas luzes logo tombava, tomado de violentos
espasmos. Os grossos tubos no chao pulsavam grotescamente, brilhando a cada pulso, a
fluorescencia tingida de verde pintando a area como sangue alienígena.
Luzes girando e chiado.
Serph tentou dar a ordem para suas forças recuarem, mas o comunicador na sua
orelha so emitiu um rangido em protesto. Percebendo o perigo, as forças da Embriao
começaram a se afastar por conta propria, mas a coisa era mais rapida que qualquer um.
Alguns sofreram o mesmo destino da primeira vítima, tendo a cabeça ou membros
decepados, enquanto outras, como Harley, foram perfuradas pelos feixes de luz azulada
e tombaram violentamente ao chao. O tiroteio cessou, substituído por um zumbido
quase inaudível enquanto a area era engolida pela luz do objeto. Serph sentiu uma dor
intensa, como se algum tentaculo rastejante tivesse entrado pelo seu ouvido e estivesse
cortando seu cerebro em pedaços com uma pequena faca. A arma caiu da sua mao.
Algo – algum tipo de transformaçao – tinha começado. Harley estava agonizando.
Um par de membros deformados brotou das suas costas curvadas, balançando
selvagemente como se controlados por alguma outra mente. Por todo o campo de
batalha, corpos se contorciam e dilatavam enquanto asas se abriam, chifres nasciam,
temíveis garras cresciam, pele era substituída por escamas ou pelo. A carne
convulsionava enquanto os combatentes caídos começavam a se transformar em alguma
coisa que nao era humana. Havia uma especie assustadora de beleza artística na amostra
grotesca de corpos deformados.
De repente, o chiado no comunicador parou e um grito ecoou nele.
- Senhor, abaixe!
So entao Serph percebeu que tinha se levantado. Sentiu um poderoso impacto no
seu peito.
Ele tinha sido baleado. Ele podia sentir. Era isso, pura e simplesmente. Bem no
coraçao. Um ferimento certamente fatal. Ele nao sabia se tinha sido amigo ou inimigo,
mas uma bala perdida o acertou em cheio, penetrando ate o seu traje de combate. A força
lentamente se esvaiu das suas pernas, e ele tombou de joelhos. Olhou para baixo, vendo
o proprio sangue escorrer e se espalhar pelo chao.

Um longo tempo se passou, ou pelo menos foi o que pareceu para a sua percepçao
aguçada. Mas, de acordo com o relogio que ainda continuava aceso no radar quase que
totalmente escurecido, tinha sido apenas um segundo. Dentro de mais um segundo, ele
sabia, estaria morto. Ele viu os numeros vermelhos como uma contagem regressiva da
propria vida.
Chiado.
Uma esfera de luz branca desceu sobre ele. Ele precisava desviar, pensou, mas nao
tinha forças. Seu tempo tinha acabado. Um instante antes de a sua consciencia se esvair,
a luz branca envolveu seu corpo.
O amontoado de luzes peregrinas emitiu um som estridente, e entao explodiu em
pedaços, se espalhando em todas as direçoes.

Uma forma fantasmagorica flutuava na frente dele. Era humanoide; encara-la dava
a sensaçao de estar olhando um espelho, exceto pelo fato de que o rosto que olhava de
volta nao era humano. Ao inves disso, parecia ser algo esculpido num cristal, com
milhoes de facetas brilhantes e translucidas. Seu cabelo flutuava no ar, semi-líquido,
balançando em ondas ininterruptas e criando um arco-íris com o movimento. Energia
corria dentro da apariçao em ondas imprecisas, se originando nos seus joelhos e
cotovelos translucidos, destacando o seu robusto corpo liso.
O radar de Serph foi tomado por outra onda de chiado quando tentou analisar a
forma misteriosa, e entao mostrou uma unica linha de texto.

Om Mani Padme Hum


Da lama nasce a flor de lótus.

O texto entao pareceu derreter e escorrer, se reorganizando numa unica palavra.

Varuna
Deus da agua e do ceu.

A apariçao se aproximou e se esgueirou em silencio para dentro do corpo de Serph.


Entao desapareceu.
Ele podia sentir dentro de si. Um poder esmagador. Seu folego foi tomado dele
num unico grito sem fim. Parecia que suas celulas estavam explodindo, uma a uma, mas
infinitamente rapido, enquanto o seu corpo era reformado como alguma coisa que nao
era. Logo debaixo da pele, o poder dentro dele ondulava como mercurio.
E agora, justo numa hora dessas, ele estava rindo. Era uma risada imponente,
retumbante, como se viesse das profundezas de um mar tempestuoso.
Houve um rugido quando um tentaculo negro veio rastejando por tras dele. Justo
quando estava prestes a se enrolar no seu pescoço, Serph estendeu a mao e o agarrou.
Foi mais facil que segurar o soco de uma criança. Osso e tendao foram esmagados no seu
punho como se fossem feitos de papel. Ele sentiu dor e fome, bem como um medo
delicioso que o banhou como uma chuva de completo prazer.
O inimigo o olhou de volta, olhos inundados de terror. Bom. Agora o oponente
sabia o tamanho da diferença entre eles. Na sua mao, ainda havia restos esmagados de
carne e osso. Ele continuou segurando forte a vítima aterrorizada e sorriu enquanto
começava a caminhar na sua direçao.
O mantra tilintou nos seus labios. Seu poder se cristalizou. Ele era o mestre da
agua.
Serph estendeu a mao. Houve prata... E entao vermelho.

Estava... Chovendo.
Chuva.
Uma chuva que nunca parava. A chuva do Lixao.
Os corpos dos mortos evaporavam e ascendiam aos ceus, tornando-se a chuva que
caía e por fim se reunia debaixo do Templo. La, o espírito era purificado do seu karma –
os pecados cometidos durante as lutas – e renascia no mundo novamente, para lutar
outra vez. Assim dizia a Igreja.
Ele viu uma mao esticada na sua frente. Alem dela, se estendia o ceu cinzento,
vazio e monotono como sempre.
O lixão. A luta. Chuva, luz. Uma mão.
Minha mão.
Eu.
Eu sou Serph.
Ele sentiu como se alguem apertasse o seu coraçao com as duas maos.
Serph expressou um grunhido baixo quando recobrou a consciencia. Os arredores
ressurgiram com uma clareza quase assustadora.
O inimigo tinha sumido. Ele nao estava vendo nenhum dos seus aliados tambem.
Estava quieto. Seu comunicador estava caído no chao, de onde emitia um hino de
zumbidos. Os restos retorcidos do que parecia ser um rifle jaziam aos seus pes.
Alguem colocou a mao na sua cintura, virando-o e tentando tira-lo do transe.
- Heat... – murmurou Serph de leve, reconhecendo o grande soldado pela pressao
firme da sua mao. Ele tentou se levantar. Ao fazer isso, sentiu algo quente subindo pela
garganta e vomitou. Um líquido meio marrom, meio vermelho, se esparramou pelo chao,
parecendo oleo usado, velho. Heat nao disse nada, apenas segurando Serph enquanto o
líder da Embriao se curvava e esvaziava o estomago.
O ceu estava começando a clarear para um magenta claro. Era quase HL – Hora de
Luz. Quanto tempo tinha se passado? Serph olhou ao redor. O misterioso objeto tinha
desaparecido sem deixar vestígio. Nao havia sinal de mais ninguem entre as pilhas
amontoadas de lixo e escombros. Era como se tudo nao tivesse passado de um sonho
ruim. Ele limpou a boca com a mao.
- Como estao os outros?
- Estao bem. Bom, ou fugiram ou foram mortos, na verdade. Seja como for, nao
vejo mais ninguem aqui. – disse Heat, fazendo um gesto na direçao da bacia desolada –
Nao se preocupe. Todo mundo esta no mesmo barco.
- Quer dizer que isso aconteceu com todos nos?
Heat fez que sim com a cabeça, e entao torceu a cara e cuspiu no chao. Serph
conseguiu ficar de pe, mas entao engasgou e tossiu, sendo acometido por outro ataque
de nausea.
- Para onde foram todos? Eles recuaram?
- Nao tenho certeza. – Heat balançou a cabeça em frustraçao – Quando voltei a
mim, eles tinham sumido. Todos sumiram. Nos somos os unicos que restaram.
Serph passou os dedos pelo peito, encontrando o buraco de bala no seu traje.
Então não foi um sonho. Parecia que a sua boca tinha sido enchida de alcatrao. Havia um
leve cheiro de ferro, e um gosto que fazia a sua língua formigar.
Algo nao estava certo.
- Heat. Voce é o Heat, nao e?
- E claro que sou. – respondeu Heat, fazendo uma careta – Tem certeza que voce e
voce, Serph? Vamos, Argilla e Gale estao logo ali.
Argilla. Gale.
A visao de Serph ficou borrada por um momento, e ele cambaleou.
“Argilla” era o nome-codigo da atiradora da Embriao, bem como “Gale” era o nome
do bispo, o analista taciturno que bolava as estrategias deles.
E Heat era o melhor combatente deles, o numero dois da Embriao, a par com o
proprio Serph. Ele lutava ao lado de Serph desde o começo, conquistando o seu lugar de
um dos membros-chave da tribo.
- Serph? – havia duvida nos olhos de Heat quando ele olhou o líder de perto – Voce
nao parece bem. Talvez seja melhor dizer para os outros virem ate aqui.
- Nao, esta tudo bem. Eu estou bem. – Serph balançou a cabeça, tentando afastar
a estranha tontura que pairava sobre ele. Era uma sensaçao estranha, como se o zoom
do seu radar tivesse sido aumentado demais – ou melhor, como se a nitidez tivesse sido
elevada ao maximo. Era como se ele vivesse sob uma película protetora que nunca tinha
percebido e que agora tinha sido removida.
Ele sentiu o calor dos dedos de Heat agarrando o seu braço. E quando gotas de
chuva molharam o seu braço, sentiu tambem um aperto no peito, lembrando que ela era
feita daqueles que morreram ali mesmo, naquele campo de batalha.
O cheiro de ferrugem tomou conta do seu olfato.
- Onde eu estou? Por que eu estou- Uwaah! – uma voz estridente chamou de algum
lugar ali perto.
- Quem esta aí? –perguntou Serph.
- E o Cielo. – disse Heat – O que sera que deu nele?
O mais novo dos membros-chave, Cielo – não era esse o nome dele? Um soldado de
infantaria. Sim, era isso mesmo. Serph sabia de tudo isso. E claro que ele sabia.
- Ele esta bem? Vamos, vamos la ver.
- Líder, o senhor esta bem? – Argilla e Gale apareceram de tras de alguns
escombros, aparentemente tendo ouvido a voz de Cielo tambem. Gale parecia o mesmo
de sempre, esticando o rosto para fora do capuz enquanto escaneava a area
cautelosamente, seus olhos verdes afiados e alertas. Argilla parecia um tanto debilitada;
mechas despenteadas do seu cabelo rosa chamavam a atençao em meio aos fios
normalmente impecaveis. Sem um rifle nas maos, ela parecia mais vulneravel do que se
estivesse nua.
- Senhor, o que aconteceu aqui? Onde estao os Vanguardas? Onde estao todos? E o
que era aquela... Coisa no campo de batalha?
- Nao estou detectando nada correspondente ao objeto dentro de um raio de tres
quilometros da nossa posiçao atual. – disse Gale, com a sua voz seca – Nao ha outros
sinais de vida num raio de cinco quilometros. Tambem nao detecto nenhuma defesa
automatizada. Nos somos os unicos aqui. Concluo que nao corremos risco de um novo
ataque.
- Ah, cala a boca. – respondeu Argilla – Quantas vezes eu vou ter que te dizer que
ser atacado nao e o problema? Eu quero saber o que aconteceu. Voce lembra de alguma
coisa, senhor?
- Nao, de nada. E o Heat tambem nao. E pelo jeito, parece que nem voces.
Argilla sentou no chao, aparentemente esgotada. Serph olhou para Gale.
- Nao consigo acessar os registros da Igreja. – respondeu Gale, como que sentindo
o que Serph ia perguntar – A interferencia esta muito forte. Parece que esta causando
algum efeito nos meus implantes. Eu sugiro que voltemos a base para reagrupar. Todos
estao exaustos e, alem disso, precisamos de mais informaçoes antes de tomar qualquer
decisao.
- Parece a melhor opçao. – Serph olhou para Argilla. Seu rosto estava palido, e ela
estava com a mao na boca, como que se segurando para nao vomitar. Todos estavam mal,
mas Argilla parecia estar pior que os outros.
Os outros.
- Quase esqueci. – disse Serph – Onde esta o Cielo?
Cielo era o que estava mais perto do objeto quando ele se ativou.
Olhando ao redor, Serph viu a silhueta de um jovem rapaz contra o ceu magenta,
de joelhos sobre uma pedaço de terra que tinha se elevado com a explosao. Cielo estava
olhando para alguma coisa la embaixo com grande interesse. Serph e os outros subiram
a elevaçao para se juntar a ele.
- O que foi, Cielo? O que esta havendo?
- Ah, oi, chefe. – Cielo se virou para olhar para Serph, seu cabelo azul trançado
balançando. Ele apontou na direçao em que estava olhando. – Da uma olhada.
No lugar onde o estranho objeto estivera, agora havia uma cratera circular, de
aproximadamente dez metros de diametro e profunda o suficiente para uma pessoa ficar
em pe la dentro. Suas paredes de pedra e solo tinham sido transmutadas em vidro, como
se derretidas por um tremendo calor. O solo das imediaçoes tinha sido fundido no que
parecia uma obsidiana. Ele brilhava na chuva.
No fundo daquela tigela de vidro estava uma mulher, caída de lado e curvada.
Era uma jovem esbelta sem nenhum retalho de roupa sobre o corpo. Era possível
ter um pequeno vislumbre dos seus seios pequenos por entre os braços entrelaçados, e
sua pele era do mais puro branco, como porcelana polida.
- Quem... Quem e aquela? – perguntou Argilla, com uma voz tremula.
Serph ficou de joelhos e se inclinou para ver melhor a cratera. Nao parecia haver
armadilhas. Ele ativou as funçoes de zoom e scanner do radar e iniciou uma analise
detalhada. Ao que tudo indicava, a garota estava desarmada, e nao tinha nenhum
membro prostetico que pudesse esconder alguma surpresa. Nao parecia haver nada
estranho com ela – exceto pelo fato de que ela estava dormindo pelada no meio de um
campo de batalha. Bom, pelo menos era um campo de batalha ate pouco tempo.
O cabelo dela era preto. Isso era estranho, refletiu Serph. Ele nunca tinha visto
alguem de cabelo preto no Lixao. As pessoas do Lixao nasciam com uma infinidade de
cores de olhos e cabelos: Serph os tinha prateados, Heat, vermelhos, Cielo, azuis, e daí
por diante. Os olhos e os cabelos eram sempre da mesma cor. Mas, ate onde Serph sabia,
nunca houve registro de alguem de cabelo preto.
Ninguem dizia nada. Nem mesmo Gale conseguiu dar alguma sugestao do que
fazer. Ainda assim, ficar ali olhando nao ia resolver nada, entao Serph desceu ate o poço.
Cautelosamente, ele escorregou ate o fundo da cratera, direcionando apenas um
breve olhar para os seus companheiros la em cima quando eles gritaram para ter
cuidado. A superfície vítrea escorregava e rachava sob os seus pes. O que quer que fosse
aquele objeto, elevou a temperatura dali a um nível absurdo. O calor residual subia por
entre a chuva que caía, envolvendo-o num calor agradavel. O vidro em si ainda estava tao
quente que Serph podia sentir a temperatura mesmo estando de bota.
Mas ela não se queimou...
Ao se aproximar e levantar a garota, ele ficou surpreso com o quanto ela era leve.
De perto, ela parecia ainda menor e mais magra, com quase nenhum musculo – o que
era impensavel para um habitante do Lixao. As pessoas nascidas neste mundo existiam
para lutar, e ate alguem novo como Cielo ainda tinha força muscular e resistencia
decentes.
E, apesar de estar no calor intenso da cratera, a pele da garota estava fria, ate um
pouco umida. Serph jogou o cabelo dela para o lado, expondo o rosto pequeno. Seus cílios
longos eram da mesma cor do cabelo, e seus labios escarlate pareciam que tinham sido
pintados. Seu rosto parecia expressar um leve desconforto. A chuva de prata fazia o seu
cabelo se agarrar molhado na pele.
- Argilla, me jogue alguma coisa que ela possa vestir. Vamos leva-la para a base.
- Tem certeza que isso e seguro? – perguntou Argilla. Serph olhou novamente para
a garota nos seus braços.
Era um risco leva-la? Talvez. Mas algo lhe dizia que ele nao podia simplesmente
deixar aquela garota ali. Por alguma razao, ela parecia... Familiar.
Ele balançou a cabeça para se livrar da ideia. Isso nao era possível.
Em verdade, havia nao-combatentes no Lixao. A maioria das pessoas que
cuidavam das estaçoes de suprimento e fabricaçao de armas servia as tribos apenas
como combatentes secundarios. Os monges da Igreja, por sua vez, aderiam a uma rígida
política de nao-violencia, e nunca sequer apareciam nos campos de batalha. Sendo a
coisa mais proxima que o Lixao tinha de regentes, os monges eram arbitros supremos
para as tribos, e se mantinham acima de qualquer tipo de luta. Mas Serph nunca tinha
ouvido falar da existencia de monges mulheres, entao duvidava que a garota fosse um
deles.
Ela continuava inconsciente nos seus braços, respirando lenta e profundamente.
- Perigosa ou nao, ela pode ter alguma coisa a ver com o objeto que estava aqui. –
disse ele – E possivelmente ate com o que aconteceu depois. Quando ela acordar, talvez
consigamos fazer com que diga alguma coisa. Me de a sua capa, Argilla. E joguem uma
corda. Nao acho que posso sair daqui sozinho.
Capítulo 2

… eis eles se erguem


E ambos se observam com espanto mútuo;
Acham seus olhos nimiamente abertos,
Suas ideias nimiamente obscuras.

– Milton, Paraíso Perdido

- O que voce quer? – Serph olhou por cima da tela do computador. Ele estava no
seu quarto particular, mas a porta estava aberta, e em algum momento Heat tinha
entrado. O homem grande estava encostado na porta com os braços cruzados e um dos
pes apoiados na parede.
Eles estavam num dos comodos do edifício dilapidado que foi o primeiro que
tomaram no dia em que requeriram a Igreja a formaçao da sua tribo. Dutos enferrujados
e pedaços de vergalhao expostos eram comuns por todo o perímetro. As piores partes
foram remendadas com cimento de secagem rapida.
O quarto de Serph refletia o estado geral do quartel-general da tribo. Isso era uma
instalaçao militar, afinal, entao eles deram prioridade a fortalecer as defesas exteriores,
deixando o conforto para outra hora. A Embriao estava se expandindo rapidamente com
a chegada constante de novos membros, e agora, ao inves de ter tudo centralizado num
unico predio principal, a base era um caos de puxadinhos, se esticando em todas as
direçoes, nao sendo nem facil de navegar, nem agradavel aos olhos.
- Alguma coisa te deixou interessado nos seus atributos depois de todo esse tempo?
– perguntou Heat – Voce ja devia estar bem acostumado com o seu rosto.
Devia, não é?, Serph pensou.
A tela iluminada mostrava a foto 3x4 de um rapaz magro de cabelos e olhos
prateados. Na imagem, ele parecia palido e inexpressivo, como um cadaver. Ao lado da
foto, rolavam valores numericos para todos os tipos de campos de dados. Altura. Peso.
Numero de registro. Estatísticas de todas as partes do seu corpo. Tempo transcorrido
desde o renascimento. Seu status dentro da Embriao. Os Pontos de Combate que ele
tinha adquirido ate agora.
Este era Serph. Os dados, o codigo que o definia.
Alguns poderiam dizer que o seu rosto era um tanto feminino, ele considerou. Ou
talvez fosse mais preciso dizer que era androgino. Suas feiçoes eram leves e simetricas,
tao perfeitas que eram proximas ao artificial e sem vida. Seu peito e ombros eram muito
mais magros que os de Heat, e ele tambem era menor e mais leve.
Heat. Seu cabelo ruivo o tornava inconfundível, e ele era alto o bastante para se
destacar em qualquer multidao. Ele tinha ombros largos e braços fortes que davam peso
a sua presença mesmo que nao dissesse uma palavra. Seu rosto tambem era
decididamente mais masculino que o de Serph, com um maxilar forte, feiçoes definidas
e pele morena. Por baixo da sua franja despenteada, brilhavam olhos vermelhos
cortantes.
Heat era o tipo quieto, e raramente falava com qualquer um que nao fosse Serph.
Era peculiar ele aparecer e começar uma conversa assim.
Serph sentiu uma pontada estranha no peito.
Eu e Heat sempre fomos assim?
Serph levantou a mao e a balançou na frente do rosto. Seus dedos eram compridos,
magros e ageis. O simples ato de pensar que aquela mao era dele o fazia se sentir
estranho de novo.
E o meu rosto também.
- Algum problema? – so quando Heat perguntou, com as suas poucas palavras, foi
que Serph percebeu que tinha começado a coçar a bochecha esquerda.
- Sim. Estou preocupado. Voce nao?
- Sim. – respondeu Heat, levantando o antebraço esquerdo para revelar uma
marca escura, de um formato estranho.
As pontas da marca eram bem definidas; era como se tivesse sido cuidadosamente
desenhada. Seu formato lembrava uma bola de fogo deixando um rastro de chamas para
tras. A bola de fogo em si tinha uma boca com dentes afiados, aberta como que rugindo.
Serph olhou para a tela novamente. O rosto na foto era o mesmo de sempre, mas
ele sabia que nao podia dizer o mesmo do seu. Algo tinha começado a mudar.
Serph tambem estava com uma marca peculiar, no seu caso na bochecha esquerda.
Parecia uma borrifada de agua, uma imagem diferente da de Heat, mas claramente no
mesmo estilo, e tambem com uma irregularidade que podia ser interpretada como uma
boca com garras.
- Os outros tambem tem? – ele perguntou.
- Sim. Argilla no peito, Gale na canela esquerda e Cielo na coxa direita. – Heat
mudou de posiçao e retomou a fala, desta vez num tom de voz mais baixo – Os lugares
sao diferentes, mas todos tem uma marca em algum lugar. Nao verificamos a tribo inteira
ainda, mas parece que podemos estar falando de todos aqui na base.
- Entao nao sao so as pessoas que estavam na batalha. Isso pode ter acontecido
com todos no Lixao.
Heat apenas ficou quieto. Serph colocou o computador no modo de hibernaçao e
olhou para o seu tenente de novo.
- Voce acha que essas marcas tem alguma ligaçao com o objeto negro e aquelas
luzes que nos vimos?
- Boa pergunta. Mas, para ser sincero, no momento eu nao consigo pensar em
nenhuma outra coisa que poderia ter causado isso. – Heat tirou o cabelo do rosto,
irritado – O que a Igreja disse?
- Nada ainda. Gale esta calibrando os implantes agora, mas pelo que ele me disse,
todas as redes da Igreja estao fora do ar. Eu tambem nao consegui acessa -las. Parece que
o nosso servidor esta funcionando independentemente. – Serph balançou a cabeça.
Parecia que ela estava cheia de espuma – E a garota?
- Pelo que eu sei, ainda esta dormindo. Acho que Argilla esta com ela.
- Acho que vou dar uma olhada nela. – Serph se levantou. Seu corpo estava lento e
cansado, exigindo mais sono, mas ele nao tinha tempo para isso agora. Ele parou quando
passou ao lado de Heat – Voce vem?
- Nao, agora nao. Eu perdi um dos meus melhores lança-granadas na batalha.
Preciso praticar um pouco com um novo. – ele saiu da porta e começou a caminhar pelo
corredor, mas parou e olhou por sobre o ombro quando Serph o chamou.
- Aquela garota... Nao consigo ignorar a sensaçao de que ja a vi em algum lugar. –
Serph falou mais baixo – Voce tambem tem essa sensaçao?
Houve uma breve pausa antes de Heat responder.
- Talvez. E isso me assusta.
Ele seguiu o seu caminho, deixando Serph a sos com a sensaçao de deja vu.

- E aí, galera!
Serph cambaleou quando uma nuvem de tranças azuis entrou correndo no quarto,
batendo de frente com ele.
O cabelo azul claro de Cielo estava preso numa serie de tufos segurados por clipes
de metal. Seus grandes olhos redondos correram os arredores, como que procurando
alguma coisa que chamasse atençao. A grande bolsa na sua cintura balançava quando ele
andava, permitindo breves vislumbres da marca negra debaixo dela.
- Silencio, Cielo. Nao queremos assusta-la. – repreendeu Argilla, sentada ao lado
da cama da garota.
Argilla era forte e esbelta, e alta para uma mulher, quase da altura de Serph. O
corte na sua longa saia oferecia uma amostra excitante das suas pernas torneadas. Seus
olhos eram do mesmo rosa claro dos seus cabelos.
Com movimentos doces e cautelosos, ela estava arrumando o cabelo despenteado
da garota adormecida com as maos. Quando ela se mexia, a abertura na frente do seu
traje mostrava a sua propria marca negra. A dela parecia uma serie de ondas que
formavam um triangulo invertido, contendo a mesma peculiar boca agressiva das
marcas dos outros.
- E que negocio e esse de “galera”? Nosso líder esta aqui. Tenha mais respeito.
- Mas e assim que eu sou. – respondeu Cielo, apoiando o braço no ombro de Serph
– Ser eu mesmo me faz sentir que temos um laço verdadeiro. Alem do mais, voce nao liga,
ne? – ele disse, olhando para Serph.
Serph forçou uma risada e deu um tapinha na cabeça de Cielo para mostrar que
concordava. Cielo começou a pular em triunfo.
- Senhor, isso nao e adequado. O senhor nao pode permitir que um dos seus
subordinados o trate assim.
- Eu nao ligo. Cielo e um dos nossos melhores homens. Ele pode fazer o que quiser.
– mas, mesmo enquanto falava, Serph lutava contra uma sensaçao enervante de
deslocamento.
Argilla e Cielo. E Heat também. Os três estão ao meu lado há tanto tempo. Então por
que eu estou com essa sensação de que é a primeira vez que nos vemos? A sensação de que
é a primeira vez que eu associo esses nomes a essas pessoas chamadas Heat, Argilla e Cielo...
Ele tentou ignorar a sensaçao de estranheza. Nao havia tempo para pensar nesse
tipo de coisa agora.
- Como ela esta?
- Nada bem. Parece que esta respirando e nada mais. E uma respiraçao fraca.
Argilla era o tipo que se abalava facilmente, entao Serph se ajoelhou ao lado dela
para conforta-la. A garota misteriosa estava deitada sob um cobertor branco, respirando
tao baixo que era quase imperceptível. Nao parecia que ela ia acordar tao cedo. Mesmo
com a barulhada de Cielo, ela nao esboçava a menor reaçao.
- Nos fizemos um exame medico completo, e fisicamente nao ha nada de errado
com ela. Por outro lado, pode-se dizer que esta tudo errado com ela.
- Como assim?
- Ela nao parece ter nenhuma experiencia de combate. – disse Argilla – Na verdade,
ela nem parece ser do Lixao. – ela gesticulou na direçao do monitor, e Serph se
concentrou nos dados exibidos na tela.
A garota nao tinha cicatrizes nem sinais de ferimentos anteriores, e tambem nao
tinha nenhum implante. Seu tecido muscular era mínimo. A pele dos seus pes era tao
macia que parecia que ela nunca tinha dado um so passo no chao duro. A conclusao
logica era que ela nunca tinha entrado em combate, mas nem Novatos tinham corpos tao
frageis.
- Se ela nao e do Lixao, entao o que esta fazendo aqui? – a pergunta de Serph so
encontrou o silencio. Era de se esperar. E claro que Argilla nao tinha a resposta para essa
pergunta. Ele coçou a cabeça e olhou para a garota dormindo.
Os Novatos, cujo nome oficial era “Recem-Nascidos”, eram aqueles que tinham
renascido recentemente sob o Templo. Quando os habitantes do Lixao morriam em
combate, seus corpos se dissolviam e ascendiam aos ceus, onde se fundiam as nuvens
sempre presentes e retornavam a terra na forma de chuva.
A agua da chuva se acumulava no coraçao do Lixao, na area central conhecida
como Sahasrara. La, a chuva escorria para as profundezas do Templo, chegando a um
local de purificaçao onde era libertada do seu karma e ganhava uma nova vida, tomando
a forma de uma pessoa, que era entao enviada para tomar parte do eterno conflito. Pelo
menos, essa era a doutrina da Igreja.
Os Recem-Nascidos eram todos diferentes, variando em termos de genero,
aparencia física e habilidades inatas, mas em geral, todos nasciam com uma
predisposiçao para o combate, e todos eram relativamente parecidos em termos de
estrutura física e capacidade marcial. Havia exceçoes, e claro. Cielo, por exemplo, cuja
estatura era abaixo da media, compensava o tamanho com pernas fortes que o tornavam
excepcionalmente rapido e agil. Argilla era outro exemplo desses; sendo mulher, ela era
fisicamente mais fraca que a maioria dos homens, mas fora abençoada com talentos
raros que faziam dela uma excelente atiradora. As pessoas do Lixao tendiam a
compensar a fragilidade de uma area sendo excepcionais em outra.
A Igreja soltava os Recem-Nascidos no Lixao. Depois disso, eles estavam a propria
merce, sem ninguem mais para protege-los. Uma vez que saíam do Templo, eles tinham
duas opçoes: ou podiam se juntar a uma tribo ja existente ou podiam se aliar a outros
Recem-Nascidos e formar a sua propria tribo, tomando o territorio de uma das tribos
estabelecidas para se firmar. Aqueles que nao conseguiam fazer nenhuma das duas
coisas morriam rapidamente, apenas para renascer outra vez.
Derrotar outra tribo e tomar seu territorio era de longe a opçao mais difícil, e para
obter sucesso nisso, como a Embriao teve, era preciso uma sinergia incomum entre
indivíduos muito talentosos. Obviamente, nao foi facil para eles. Serph sofreu uma bela
quantidade de ferimentos, e muitos dos seus subordinados tiveram destinos piores. E
ainda assim, essa garota nao tinha ferimentos, nenhuma força física, ao que tudo
indicava, e nenhum tipo de aprimoramento artificial – nem mesmo os implantes mais
basicos que todos os nativos do Lixao recebiam para mante-los conectados com a Igreja.
- Ela nao tem anel de identificaçao tambem?
Argilla fez que nao com a cabeça. A tribo tinha enviado varios grupos para
investigar o local do incidente, especialmente ao longo da fronteira com o territorio dos
Vanguardas, onde a garota foi encontrada. Ate agora, ninguem tinha encontrado nada,
mas a propria garota nao tinha pertence algum quando foi descoberta.
Os aneis de identificaçao eram uma especie de registro dentro da Igreja. Todos
tinham um. Sem ele, a pessoa nao recebia muniçao, armas ou sequer comida. Eles
tambem eram necessarios para solicitar informaçoes e Pontos de Combate a Igreja, e
serviam como a autenticaçao necessaria para entrar em certas areas e bases. Nao
importava o quao habilidoso um indivíduo fosse, seria praticamente impossível viver no
Lixao sem um.
Mas nao havia um nem aqui, nem la. Serph suspirou e se levantou.
- Parece que vamos ter que esperar ela acordar. Argilla, quero que voce continue
cuidando dela.
- Entendido, senhor. – disse Argilla, continuando com a cabeça abaixada. Numa
voz tao doce que quase nao era ouvida, adicionou – Quando ela acordar, farei com que
ela nos diga alguma coisa. – Serph fingiu que nao ouviu.
Ele voltou para o seu proprio quarto para descansar. Antes de chegar ao elevador,
porem, ouviu uma voz estridente gritar “chefinho!” de tras dele.
- Ei, ah... Oi, chefe. – Cielo correu para alcança-lo, entao hesitou, mordendo o labio
– Entao, ahn, sobre o que aconteceu antes. Eu...
- Esta tudo bem. – disse Serph rapidamente. Ele sabia com o que Cielo estava
preocupado, mas nao queria falar a respeito. Nao agora – As coisas estao muito confusas
agora. Quando os sistemas da Igreja voltarem, nos vamos descobrir quem e aquela
garota. Nao existe ninguem neste mundo que a Igreja nao conheça.
- E... – concordou Cielo, mas ele estava visivelmente desanimado. Parecia estar em
busca de amparo.
Serph queria dizer ao rapaz que ele nao era o unico que estava com medo. A
sensaçao de estar perdido, de estar fora da realidade, tinha sumido um pouco, mas ele
sabia que ainda estava em algum lugar dentro dele.
Inquietude significava simplesmente que faltava alguma informaçao. Mas Serph
tinha certeza de que nao era so a falta de informaçao sobre o objeto negro que estava
causando a ansiedade que sentia. Cielo estava se esforçando para parecer calmo porque
sabia que Argilla e Serph tambem o estavam fazendo. Ele estava fazendo o melhor que
podia para manter o clima leve. O fato de ele chegar gritando “galera” e usar o líder como
encosto provavelmente tambem era por isso.
- Escuta. – disse Serph – Se nao estiver ocupado, que tal ir procurar alguma coisa
pra garota vestir quando ela acordar? Nao podemos deixa-la andando por aí nua, afinal.
- Ta bom. Beleza, chefe. – disse Cielo, se animando um pouco – Claro. Eu vou fazer
isso. Quando ela acordar, vai ser parte da tribo. Arranjar umas roupas pra ela e o mínimo
que eu posso fazer. Nos, veteranos, temos que ser receptivos.
Cielo deu um pequeno pulo, se virando no ar e acenando com a mao enquanto
começava a seguir o corredor. Serph acenou de volta, e sentiu aquele aperto no peito
voltar, agora mais forte que antes.
Ele era o líder, a propria vida da tribo. Se ele morresse, a Embriao morria tambem.
Era como Argilla disse: “Soldados sempre podem ser substituídos.” Mas o líder...
No Lixao, tudo que importava era a criaçao e a destruiçao das tribos. Havia um cla
inteiro confiando nele para tomar as decisoes certas.
Ainda assim, mesmo sendo um líder, ele era apenas uma peça do sistema. Um líder
so era importante na medida que era insubstituível dentro daquela tribo específica. Os
membros normais de qualquer tribo simplesmente se juntariam a outra se o seu líder
fosse derrotado. O que significava que na verdade nao eram os soldados que precisavam
manter o líder seguro – isso era uma coisa que o proprio Serph precisava fazer.
Mas, no momento, Serph sentia que tinha a responsabilidade de abrandar o
desconforto de Argilla e Cielo. Talvez isso fosse alem dos deveres tradicionais de um líder,
mas ele nao podia evitar. Sentia que era a coisa certa a fazer.
Ele estava começando a sentir dor de cabeça. Tentando deixar isso de lado, voltou
ao seu quarto.
- Senhor. – a chamada ativou a tela do computador assim que ele abriu a porta do
quarto.
- Gale? Terminou a calibraçao?
- Sim. – a voz do bispo era monotona e sem sentimento – Mas ainda nao
recuperamos a conexao com a Igreja. Enquanto isso, eu gostaria de rever os fatos como
os entendemos agora. O senhor poderia vir a sala de comando?

A sala de comando ficava na parte central da base. Era a maior sala do predio, mas,
com o monitor holografico, os varios equipamentos de analise de dados, a mesa redonda
equipada com um terminal e as varias cadeiras la dentro, quase nao havia espaço para
respirar. Ainda assim, essa era a unica sala na base cujas paredes eram reforçadas com
um forte cristal de carbono e fibras de compressao organicas de autorreparo, sendo
resistente o bastante para suportar um ataque de escala razoavelmente grande. Esse era
o eixo central da Embriao para planejamento tatico, processamento de informaçao e
contato com a Igreja. Se essa sala fosse destruída, a base nao duraria muito mais.
Serph chamou todos os quatro dos seus membros-chave para participar da
reuniao. Gale nao se opos, mas quando todos se reuniram, comentou que apresentaria
informaçoes estrategicas que, para propositos de planejamento, so cabiam ao líder e o
seu conselheiro chefe. Argilla e Cielo imediatamente protestaram.
- Eu tambem sou membro da Embriao! – disse ela – Tenho direito de saber o que
esta acontecendo!
- E! O chefe nao e so seu!
- Gale. – disse Serph, levantando a mao para silenciar os outros – Estamos lidando
com uma situaçao diferente agora. Podemos nos deparar com algumas coisas que nos
dois nao conseguiremos entender sozinhos, e se isso acontecer, pode nao haver tempo
para deixar os outros a par. Por ora, eu acho que nos cinco devemos compartilhar tudo
que sabemos sobre a situaçao.
Por um breve momento, Gale ficou quieto, e entao disse, inclinando a cabeça:
- Nao posso discordar dessa logica, senhor.
Ao contrario de funçoes como atirador e soldado de choque, que eram designadas
com base nas habilidades e talentos do indivíduo, o cargo de bispo era completamente
diferente. As pessoas que se tornavam bispos nasciam para isso.
Certos Recem-Nascidos eram abençoados com um intelecto superior e
conhecimento tatico. Esses indivíduos eram chamados de bispos, e podiam ser
identificados pelos capuzes protetores especiais que cobriam suas cabeças, que eram
abarrotados de delicados equipamentos eletronicos. Eles emergiam no mundo com
implantes cerebrais que lhes garantiam conexao direta com a Maquina de Disseminaçao,
que era o centro das operaçoes da Igreja.
Outros Recem-Nascidos tambem recebiam implantes, mas nada do escopo dos
bispos. Alem da conexao com a Maquina de Disseminaçao, eles tambem possuíam um
monitor organico dentro da retina, o que permitia que analisassem dados sem a
necessidade de um terminal de computador, e o seu dispositivo interno de
armazenamento de memoria permitia que registrassem tudo o que viam. Todos esses
equipamentos delicados necessitavam de uma calibraçao exaustiva. Os bispos tambem
eram submetidos a um severo condicionamento mental, o que os fazia parecer mais
computadores humanoides que pessoas.
Provavelmente era por isso que Gale nao parecia estar vivenciando o mesmo
desconforto que os outros. Quando conversou com Heat, Cielo e Argilla, Serph sentiu que,
assim como ele, eles nao estavam bem, mas Gale nao demonstrava nada do tipo.
Gale era um homem alto, de longos cabelos verdes, cujos olhos, da mesma cor,
ficavam parcialmente escondidos pelo seu capuz. Ele tinha um rosto comprido e
inexpressivo, com labios finos e nariz pontudo, e era visivelmente o mais velho entre os
presentes. Nao tinha ombros tao largos quanto os de Heat, mas seus braços eram
musculosos, o que era raro para um bispo – um sinal da excelente constituiçao física que
ele tambem possuía.
Se o líder era o coraçao da tribo, o bispo era o cerebro. Ter um bom bispo podia
determinar se a tribo prosperaria ou pereceria. Gale pertencia a tribo pequena que a
Embriao derrotou na conquista de Muladhara. Foi ele quem detectou que o seu líder
tinha caído durante a batalha, sinalizando imediatamente um cessar-fogo. Entao, de
acordo com a lei, foi levado para a Embriao, se tornando o primeiro bispo de Serph, e o
melhor que ele poderia ter.
Gale esperava imovel pela proxima diretriz do seu líder.
- Certo, Gale. Por que nao começamos revendo as informaçoes que voce tem sobre
o que aconteceu, a partir de quando o objeto apareceu?
- Entendido. – uma rede verde claro ganhou vida acima da mesa, exibindo uma
imagem tridimensional do “objeto” em questao.
- Esse objeto apareceu dois ciclos atras aproximadamente as 00:00 HS, nas
coordenadas 02A7-7B77845. Sua composiçao, proposito e outros detalhes sao
desconhecidos. – Gale mudou o angulo da imagem antes de continuar a explicaçao – A
apariçao do objeto as 00:00 HS na verdade e uma suposiçao. O horario exato e
desconhecido, porem essa estimativa e baseada nos relatos das testemunhas das nossas
tropas posicionadas ao longo da fronteira. Os dados do nosso sensor corroboram a
informaçao. Num instante, o objeto nao estava presente, e no seguinte, estava.
- Como assim? – interrompeu Cielo – Ele nao pode simplesmente ter surgido do
nada.
- Silencio, Cielo. – disse Serph – Gale, continue, por favor.
- No dia seguinte, as 06:23 HL, nos recebemos um aviso dos Vanguardas. Eles
disseram que consideravam a presença do objeto um ato de agressao da Embriao, e
ameaçaram retaliar se nao fosse removido. – os registros rolavam pela tela enquanto
Gale falava – Em resposta, a Embriao concluiu que o objeto tinha sido colocado la pelos
Vanguardas. Nos os avisamos para remover o objeto, tambem ameaçando um ataque
caso nao o fizessem. No mesmo dia, as 10:02 HS, as forças dos Vanguardas e da Embriao
entraram em combate. Nos conseguimos forçar o contingente dos Vanguardas de volta
para o seu proprio territorio. Durante o confronto, confirmamos a presença do líder
inimigo, Harley Q, no campo de batalha. Concluindo que a situaçao apresentava uma boa
oportunidade para eliminar os Vanguardas, a liderança da Embriao avançou com as
forças da tribo para a fronteira para um ataque em escala total.
Nessa hora, Gale fechou os olhos, e o silencio pairou no ar.
- E entao... – foi Heat quem quebrou o silencio, praticamente cuspindo as palavras
– Nos avançamos, e alguma coisa aconteceu. E sobre isso que queremos saber. Nos poupe
dessa introduçao desnecessaria.
Gale hesitou:
- Nao ha informaçao suficiente. – era raro o bispo nao ter uma resposta concreta.
Nao, era inedito – Nos quase nao temos dados pertinentes a situaçao desse ponto em
diante. Quase todos os nossos sensores pararam. O sistema de Disseminaçao da Igreja
pode ter alguns dados, mas nao conseguimos acessa -lo. Ainda nao conseguimos nem
fazer a contagem dos membros que voltaram, e nao sabemos se os demais estao vivos
ou mortos.
- Tente nao se preocupar tanto com isso. – disse Serph – Por enquanto, apenas nos
diga o que pode. Voce e o bispo. Nos de as suas impressoes.
- Vou transferir alguns dados visuais dos meus bancos de memoria pessoal – disse
Gale depois de alguns momentos – A essa altura, essa e a unica informaçao confiavel que
eu tenho. O conteudo nao e muito significativo, mas acho adequado compartilhar.
Ele abriu um console na ponta da mesa e deslizou o dedo pelo teclado. Removeu
o capuz, expondo o implante embutido atras da orelha, puxou um cabo do console e
plugou no receptor de metal na sua cabeça. Os outros observaram enquanto a imagem
3D acima da mesa oscilou e desapareceu, substituída pela imagem de um campo de
batalha enevoado com a chuva caindo. A perspectiva era de um local alto, olhando para
o campo circular abaixo: uma recriaçao da vista de Gale da sua posiçao na retaguarda.
As vezes a imagem sofria interferencia, tornando ainda mais difícil ver as formas dos
soldados colidindo la embaixo.
- A resoluçao esta ruim. Alem de rodar a imagem por meio de processamento de
vídeo, eu tentei usar uma conexao direta a cabo para minimizar a degradaçao dos dados,
mas parece que nao adiantou.
- Tudo bem, Gale. Continue. – respondeu Serph olhando atentamente para o vídeo.
Ali estava a perspectiva de um observador de fora sobre o que tinha acontecido
enquanto ele estava preso no meio de todo aquele caos.
Serph podia ver a si mesmo. O estrategista por tras da operaçao, Gale, estava num
ponto alto e distante, podendo ver o campo de batalha como um todo, e com quase todas
as forças do inimigo e as suas proprias dentro do seu campo de visao. O som estava ruim,
mas era suficiente para entender o que estava acontecendo. Serph se viu pular de tras
de uma parede de concreto. Ele foi atacado, retornou fogo e rolou para se esconder de
novo.
Houve uma explosao. Cielo e Heat vieram correndo dos dois lados da bacia.
Granadas explodiam pelo campo de batalha enquanto o esquadrao de Cielo derrubava
as tropas inimigas que tentavam avançar. Enquanto isso, Argilla usava os seus refinados
talentos de atiradora para despachar soldados rivais um a um. Em meio a carnificina que
se desenrolava, um soldado com um marcante cabelo prateado – o proprio Serph –
pulava de tras de uma barreira para outra. Ate agora, tudo estava seguindo como Serph
lembrava.
Num canto da imagem, havia um contador mostrando o tempo transcorrido desde
o início da batalha. Quando o contador chegou a 00:52:43, o incidente começou.
- O que e aquilo!? – disse alguem com uma voz bruta. Serph sabia como ele se
sentia. O objeto negro no campo de batalha, completamente ignorado ate aquela hora,
vibrou e começou a brilhar. As escamas que formavam o seu exterior se abriram uma a
uma, revelando nada a nao ser luz la dentro – uma luz louca, em turbilhao.
A imagem do ponto de vista de Gale balançou; parecia que ele estava andando.
Pelo jeito, a batalha la embaixo tinha perdido a intensidade. Luzes espiralavam e giravam
acima do leito de escamas agora abertas do objeto, e entao uma delas voou numa
velocidade incrível.
A sala de comando ficou muda. Nao saía um unico som do monitor acima da mesa,
mas a cena continuou. O feixe de luz atingiu um dos soldados dos Vanguardas que estava
mais proximo, que imediatamente largou a arma e caiu ao chao. Mas ele ainda estava
vivo. O homem se contorcia de agonia, seus movimentos desesperados fazendo buracos
na terra. Seus dedos e unhas começaram a ficar pretos.
Quando os membros das duas tribos começaram a recuar, as luzes dispararam
atras deles como que em perseguiçao. Em rapida sucessao, atingiram cada um dos
combatentes, jogando-os ao chao. Entao houve uma enorme interferencia, tao extrema
que por um momento bloqueou a imagem inteira. Uma figura apareceu na cena,
destruindo tudo. A imagem balançou violentamente, se desmembrou como vidro
quebrado, se refez e entao desmembrou de novo. O chiado chegou a um nível
ensurdecedor, e Argilla e Cielo contorceram o rosto enquanto tapavam os ouvidos.
- Senhor, abaixe! – de repente, uma voz rígida se fez ouvir: a voz de Gale. Ao longe,
Serph tinha se levantado de tras do seu esconderijo e estava olhando para o objeto
brilhante, estupefato. Um momento depois, seu corpo balançou, e entao ele cambaleou
para tras antes de cair de joelhos, apertando o peito. Sangue vermelho e reluzente
escorreu do ferimento.
Gale soltou um grito ininteligível. A forma ajoelhada de Serph parecia tao distante.
Gale correu; a imagem balançava para cima e para baixo.
De repente, ele se virou.
Alguma coisa estava vindo na sua direçao, uma massa de pura luz branca.
Impacto.
A imagem ficou branca. E depois preta.

- Isso e tudo. – disse Gale desconectando o cabo.


O silencio tomou conta da sala. Ninguem sabia como reagir ao que tinha acabado
de ver. Enervado com a desconfortavel mudez, Cielo se mexeu de um lado para o outro,
e enfim se voltou para Serph.
- Parece que voce levou um tiro, chefe. Voce esta bem? Foi um acerto direto.
- Eu estou bem. Lembro de ter sido baleado, mas quando me dei conta, nao tinha
nenhum ferimento, so um buraco no meu traje. O que e mais uma coisa para
adicionarmos a nossa lista de misterios.
- Ah, que bom entao. – o sorriso de Cielo era uma mistura desagradavel de
nervosismo e alívio. – Quer dizer, contanto que voce esteja bem...
Serph fez que sim com a cabeça.
- Muito bem, Gale. – disse ele num tom mais vivo – E quanto a essas... Marcas nos
nossos corpos? Qual a relaçao delas com o que aconteceu? Isso so aconteceu com a gente?
- Ja inspecionamos todos os membros da Embriao. Cada um deles tem uma marca
em algum lugar do corpo, incluindo aqueles que estavam na base durante a batalha.
Vejam. – a imagem mudou, mostrando fileiras de ícones peculiares.
Havia a marca de agua do pescoço de Serph. A bola de fogo do braço de Heat. As
ondas e garras do peito de Argilla. O tornado da canela de Gale. A serie de aneis
concentricos de Cielo. As marcas dos cinco membros-chave estavam na fileira do topo, e
abaixo delas estavam sete ou oito marcas menos elaboradas.
- Tem menos marcas que pessoas. – disse Argilla.
- Os mesmos desenhos se repetem em varios membros da tribo. – Gale digitou
uma serie de comandos, e abaixo de cada marca apareceram os rostos e codigos de
identificaçao dos varios membros da tribo. Cada desenho tinha de cinco a dez pessoas
associadas. – Entretanto, as marcas de nos cinco parecem ser completamente unicas,
nao sendo compartilhadas por mais ninguem. Por outro lado, nao temos como verificar
as outras tribos, entao nao podemos ter certeza.
- Bom, isso nao esta exatamente me ajudando a me sentir melhor. – resmungou
Cielo – O que esta acontecendo afinal? Nossos inimigos somem do nada, essas marcas
estranhas aparecem na gente e a Igreja nao fala nada! O que nos vamos fazer?
Todos ali estavam pensando a mesma coisa. Um clima pesado pairou sobre a
reuniao. Ninguem, nem mesmo Gale, disse uma palavra. Por um tempo, o grupo todo
apenas permaneceu em silencio, olhando para as proprias maos na mesa.
Entao o comunicador sobre a mesa começou a pisca. Antes que Gale pudesse
atender, Serph esticou o braço e apertou o botao.
- Sala de comando. O que foi?
- Aqui e a Terceira Equipe de Patrulha. – disse a voz do outro lado do comunicador,
permeada por um pouco de interferencia – E que estamos monitorando Svadhisthana,
mas, ah... Ahn, senhor...
- O que esta havendo? Faça o relatorio.
- Sim, senhor. Desculpe, senhor. – a voz do batedor deixava escapar um pouco de
panico. Ele engoliu antes de continuar – Nos estamos na fronteira entre Svadhisthana e
Muladhara, mas nao tem ninguem aqui. – Serph trocou olhares com os outros na sala –
Nao vimos nenhum sentinela dos Vanguardas. Normalmente, interpretaríamos isso
como um sinal de que estao preparando algum tipo de investida, mas nao houve nenhum
movimento. Enviamos um patrulha para verificar as coisas, e o lugar parece deserto.
- Pode me enviar a imagem?
A imagem acima da mesa mudou para a camera da equipe de patrulha na fronteira
com Svadhisthana. Gale sobrepos uma grade de coordenadas sobre o mapa. Eles estavam
nas coordenadas 3065-A-w3. E, como o homem disse, nao havia ninguem la. A imagem
mostrava uma edificaçao que provavelmente era uma estaçao de patrulha camuflada,
mas nao havia atividade visível. A posiçao da camera sugeria que a pessoa que estava
filmando estava em campo aberto, um alvo facil, e mesmo assim nao estava sendo
atacada. Isso era decididamente estranho.
- Nao pode ser uma armadilha? Voce tem certeza que nao tem ninguem aí? – disse
Gale no comunicador. Agora num tom de voz mais calmo, o batedor respondeu:
- Eu nao sei.
Segundo ele, alguns membros da equipe de patrulha tinham saído para investigar
a movimentaçao inimiga, quando encontraram um soldado com marcaçoes dos
Vanguardas. Todavia, o inimigo nao demonstrou comportamento hostil, e nao parecia
disposto a atacar. Quando o encontraram, ele estava abaixado com as maos na cabeça e
tremendo, escondido no canto de um predio em ruínas. Quando a equipe de patrulha
entrou e perguntou sua identidade, ele gritou e saiu correndo. Eles foram atras dele, mas
ele sumiu sem deixar vestígio. O tom de voz do batedor enquanto relatava a situaçao nao
escondia a sua propria confusao.
- Bom trabalho. – respondeu Serph – Como nao podemos descartar a
possibilidade de que isso seja algum tipo de artimanha, quero que voces parem a
perseguiçao. Voltem para a base por enquanto. Vamos atualizar suas ordens conforme o
necessario. Tenha cuidado no caminho de volta, soldado.
- Entendido, senhor. – seu tom de voz estava um tanto animado, e ele hesitou por
um momento antes de adicionar – E e uma honra, senhor.
A chamada foi encerrada, e Serph tombou a cabeça em duvida.
- O que ele quis dizer com essa ultima parte?
- Ele esta feliz de ter falado com o líder diretamente, chefe. Isso e uma honra, certo?
Quer dizer, eu falo com voce toda hora, mas mesmo assim. – Cielo finalizou com uma
risada.
- As fileiras mais baixas quase nunca nem veem voce, Serph. Deve ter sido um
choque voce atender a chamada assim do nada. – disse Argilla, tambem dando uma
risada. Heat manteve o seu silencio petreo, e Gale, nao compreendendo o motivo das
risadas, começou a sua analise das imagens de Svadhisthana.
Serph nao entendeu tambem. A tribo sempre achou que falar com o proprio líder
era uma coisa tao rara que merecia uma comemoraçao?
Um líder nao passava de uma parte de algo maior. O mesmo valia para todos os
outros membros da tribo. Juntos, eles compunham essa coisa chamada Embriao. As
vezes, uma parte da maquina precisava se comunicar com outra; isso era mais do que
obvio. Nao havia nada demais nisso.
Ainda assim, o batedor ficou feliz so por ter falado com ele. E agora que pensava a
respeito, Serph adicionou uma coisa meio que de graça ao final da sua mensagem: “Tome
cuidado no caminho de volta.”
O batedor ja tinha apresentado o seu relatorio a base. Que importava o que
aconteceria com ele depois? A perda de um soldado qualquer sequer impactaria a
situaçao militar deles. Eles estavam em guerra; nao havia tempo para adicionar
delicadezas as transmissoes.
E, mesmo assim, as palavras simplesmente saíram da boca de Serph.
- Terminei a analise. – disse Gale, tirando a mao do console – A julgar pelos dados
que acabamos de receber, Svadhisthana parece estar deserta. Estamos recebendo
relatorios parecidos das nossas outras equipes de patrulha – os outros olharam para
Gale – A maior parte da area esta num estado similar de abandono. Tivemos outras duas
situaçoes de membros nossos encontrarem soldados dos Vanguardas, e em ambos os
casos, os indivíduos entraram em panico e fugiram assim que encontrados, sem
nenhuma tentativa de luta.
- Qual e a deles? – perguntou Cielo – Se nao estao se rendendo, quer dizer que o
líder nao esta morto.
- Relataram que um deles gritou algo muito peculiar enquanto fugia. – adicionou
Gale – Ele disse: “nao me coma”.

Por um momento, foi como se a mente de Serph tivesse ficado vazia.


- Como e que e...? – murmurou Argilla. Entao repetiu, aumentando a entonaçao –
Como e que e?! Mas o que significa isso? “Nao me coma”? O que eles pensam que nos
somos? Isso e ridículo!
- Argilla, acalme-se. – disse Serph.
- Pra mim ja chega disso! – gritou Argilla, batendo o punho na mesa – De tudo isso!
Eu quero saber o que aconteceu la. Quero saber o que aconteceu comigo e com todos
nos. E quero saber quem diabos e aquela garota!
A mao de Serph se estendeu para segurar o punho de Argilla antes que ela batesse
na mesa de novo.
- Argilla. – ele disse – Pare com isso. Voce vai se machucar.
- Estou com medo. – ela disse, se controlando. Abaixou a cabeça, escondendo o
rosto, mas fechou a mao em punho com tanta força que as articulaçoes ficaram brancas
– Estou com medo.
- Isso nao vai resolver nada. – disse Serph, colocando as maos nas costas dela –
Por agora, voce precisa tentar se acalmar.
Depois de duas ou tres respiraçoes pesadas, a tensao finalmente deixou o corpo
de Argilla.
- Me perdoe. Um soldado nao deve perder a calma assim. – disse – Talvez eu deva
voltar para o meu quarto e dormir um pouco. Desde que voltamos, estou com dor de
cabeça e uma sensaçao estranha no peito.
- Isso mesmo. Voce ficou cuidado da garota todo esse tempo. Esta dispensada. Va
descansar.
Argilla sorriu.
- Sim, senhor. – ela se levantou e saiu da sala de comando com passos tremulos e
desiguais. Cielo ficou olhando ela sair.
- Sera que ela esta bem? Ela tem se esforçado demais. O rosto dela esta palido
desde que ela ficou aquele tempo todo cuidado daquela garota.
- Mulheres tendem a ser fisicamente menos resistentes que homens. – disse Gale
– Isso era de se esperar.
- Nao foi isso que eu quis dizer. – respondeu Cielo – Olha, eu sei que voce e um
bispo, mas essa situaçao nao te deixa nervoso? Ou com medo ou assustado?
- Eu estou “nervoso” no sentido de que estou frustrado com a minha incapacidade
de prever uma situaçao como essa. E desagradavel nao ter uma diretriz definida para
seguir. “Com medo” e “assustado” nao sao termos precisamente definidos. Pode
reformular a pergunta?
Enquanto Cielo passava a mao no cabelo e praguejava numa bufada, Serph
interviu.
- Gale, como voce se sente a respeito da marca na sua perna?
- Nao ha dados suficientes para saber. A causa continua incerta, mas nao parece
ter sido causada por fatores...
- Esqueça isso. – interrompeu Serph – Esqueça os dados. Estou perguntando como
voce se sente tendo essa marca no seu corpo.
Pela primeira vez, Gale ficou quieto. Ele olhou para baixo, e algo que parecia ser
duvida se formou no seu rosto.
- E isso que e medo. E isso que Argilla e todos os outros estao sentindo agora.
Lembre-se disso. – E eu preciso fazer o mesmo, Serph adicionou em pensamento. Gale
nao respondeu. Apenas se abaixou e correu os dedos pela marca na sua canela.
- Entao o que vamos fazer? – disse Heat, finalmente se manifestando – Vamos
simplesmente ficar parados aqui esperando a conexao com a Igreja voltar? Ou vamos
tomar alguma iniciativa por nossa conta?
- Eu ja relatei toda a informaçao que temos a nossa disposiçao. Agora, a decisao
cabe ao nosso líder. O que faremos, senhor?
- Eu... – Serph hesitou. Ele estava prestes a ordenar uma rapida incursao ao
territorio dos Vanguardas, mas se pegou surpreso por causa de uma nova preocupaçao.
Se possível, ele queria evitar casualidades. Queria manter os seus homens longe do
perigo. E perceber isso o fez titubear no que ia dizer. Ele se esforçou para afastar o medo
e a duvida que vieram a sua mente – Acho que devemos ir a Svadhisthana. – disse
finalmente, deixando a hesitaçao de lado – Quero falar com Harley.
- Isso e serio? – Cielo estava surpreso.
Heat apertou os olhos.
So Gale permaneceu impassivo.
- Nao sabemos se Harley Q esta vivo ou morto. – disse o bispo – E tambem nao
sabemos o seu paradeiro.
- Mas os membros da tribo dele nao estao se entregando, – respondeu Serph – o
que significa que ele ainda deve estar vivo em algum lugar. A area em si pode estar
abandonada, mas se conseguirmos chegar a base deles, tenho certeza de que
encontraremos pessoas la. Entao, se pudermos confirmar que ele esta morto,
cimentaremos nossa vitoria. E se ele estiver vivo, podemos perguntar sobre o que
aconteceu com o objeto negro. Se a mesma coisa que aconteceu conosco estiver
acontecendo com eles, ele tambem vai querer saber do que se trata.
- O senhor mesmo disse que isso podia ser uma armadilha.
- Sim, disse. E e por isso que precisamos prosseguir com extrema cautela. Isso e
perigoso demais para uma simples equipe de patrulha, e se enviarmos pessoas demais,
corremos o risco de alarma-los.
- Entao esta sugerindo que nos mesmos devemos ir. Parece razoavel para mim. –
Heat lentamente se desencostou da parede – E esteja ele vivo ou morto, vamos bota-lo
contra a parede e arrancar o que queremos dele. Certo, Serph?
- Sim, certo. – Serph sentiu como se tivesse alguma coisa presa na sua garganta
quando respondeu. Heat tinha uma linha de pensamento muito diferente de Argilla e
Cielo. O líder ficou observando enquanto o seu robusto tenente saía da sala, vendo-o sob
uma nova perspectiva.
Serph percebeu que tinha medo de Heat, o seu companheiro mais fiel, seu
segundo em comando.
Mas do que ele tinha medo? Nao era como se Heat o tivesse ameaçado ou coisa do
tipo. Isso seria uma violaçao das leis. Os membros de uma tribo simplesmente nao
questionavam o seu líder.
Heat.
Heat era o tipo de pessoa que dizia coisas agressivas. Ele era assim mesmo, certo?
Serph sentiu um aperto no peito quando pensou nisso. Percebeu que nao era de Heat em
si que tinha medo. Tinha medo que o companheiro que ele conhecia e confiava se
tornasse outra pessoa.
Mas o que significava “conhecer” Heat? Ele ainda era o numero dois da Embriao,
um combatente capaz e subordinado direto de Serph. Nao era o tipo de pessoa que
questionaria a sua autoridade. Mas apesar de Serph nao ter identificado nenhuma
mudança direta no corpulento soldado de choque, tinha uma convicçao crescente de que
alguma coisa estava diferente agora. Sim, Heat tinha mudado.
Serph nao sabia dizer como exatamente, mas Argilla e Cielo tambem tinham
mudado. Por fora, Gale parecia ser o mesmo, mas, fosse qual fosse a situaçao, de todo
jeito o bispo era impossível de compreender.
Cielo enfiou a cabeça na sala de novo.
- Por que voces ainda estao parados aí? Temos que ir, chefe.
- Sim. Estamos logo atras de voce.
Todos eles tinham mudado. Quanto a o que isso significava, Serph ainda nao sabia,
mas a sensaçao incomoda de que havia algo errado se recusava a ir embora.

Eles entraram em Svadhisthana certos de que seriam atacados imediatamente,


mas seus medos se mostraram infundados.
- O que esta havendo? O lugar esta mesmo vazio? – Cielo estava logo atras de Serph,
olhando para os lados quase que em tedio. Quando eles cruzaram a fronteira, decidiram
reduzir a comunicaçao apenas ao mais essencial e apenas atraves de sinais manuais, mas
a medida que avançavam, ficava cada vez mais claro que nao havia com o que se alarmar,
e se permitiram relaxar um pouco.
Svadhisthana dividia uma grande parte da sua fronteira com o territorio da
Embriao, Muladhara, e nao havia muita diferença no terreno das duas areas. Serph e os
outros entraram a pe atraves de uma parte da fronteira que ja havia sido contestada e
trocada de dono incontaveis vezes, essencialmente fazendo dela a linha de frente do
conflito entre as duas tribos. Predios abandonados e veículos sucateados jaziam la,
apodrecendo na chuva silenciosa. A jornada nao levaria nem meia hora se eles usassem
veículos, mas, para evitar chamar atençao, optaram por seguir a pe.
- E como se eles tivessem deixado tudo para tras e fugido. – disse Cielo – Aqui,
olhem isso. – ele pegou algo de tras de uma pilha de escombros – E uma espingarda. Esta
sem muniçao, mas nao esta quebrada nem nada.
- Tambem nao parece estar emperrada ou estragada. – disse Serph, pegando a
arma da mao de Cielo e fazendo uma rapida inspeçao – Sabem, para mim, parece que
aconteceu uma batalha aqui. Tem cascas de bala por toda parte.
- Uma batalha com a Embriao?
- Creio que nao. Nossa equipe de patrulha nao adentrou tanto no territorio. E eles
teriam relatado. – Serph olhou para o ceu. A Hora de Sombra era obviamente mais escura
que a Hora de Luz, mas nunca ficava tudo preto. Sempre havia um fraco brilho em algum
lugar do monotono ceu cinza, iluminando as pequenas gotas de chuva de prata.
Ele olhou para Argilla, no centro da formaçao do pequeno grupo. Ela realmente
nao parecia bem. Seu rosto estava mais que palido. Estava cadaverico. Talvez ele devesse
ter se esforçado mais para impedi-la de vir, mas era tarde demais para isso agora.

Algum tempo antes, quando o grupo estava prestes a sair, Argilla insistiu em se
juntar a expediçao.
- Eu tambem sou membro da Embriao. Voces nao podem simplesmente me deixar
aqui. Nao se preocupem, eu ainda aguento o meu proprio peso.
Serph balançou a cabeça em negativa.
- Mas se voce vier, nao vai ter ninguem para cuidar da garota. Ou melhor, para
vigia-la. Ainda nao sabemos quem ela e, entao nao podemos descartar a possibilidade
de que seja algum tipo de espia de outra tribo.
- Entao a amarre ou tranque em algum lugar. Coloque guardas na porta. Gale deve
conseguir pensar em alguma coisa. Eu preciso saber o que aconteceu.
Argilla se recusava a ficar, entao Serph acabou cedendo. Ele pediu para Gale
montar uma escala de guarda para vigiar a garota adormecida no lugar de Argilla, e o
bispo rapidamente selecionou um grupo.

- Nosso destino e a base dos Vanguardas em Svadhisthana. – disse Serph aos seus
quatro membros-chave quando todos se reuniram – Nosso objetivo e localizar e
interrogar o líder deles, Harley Q. As coisas vao ser um pouco diferentes desta vez. Nosso
objetivo primario e estabelecer um dialogo com ele. Se encontrarmos algum soldado
inimigo no caminho, voces nao devem atirar a menos que eles demonstrem hostilidade.
- Voce esta sendo ingenuo. – disse Heat sem cerimonia – E matar ou ser morto.
- Heat! – gritou Argilla.
Gale se virou para Serph, inexpressivo.
- Vai permitir essa insubordinaçao, senhor?
- Ja chega, todos voces. – disse Serph. Olhou para Heat com um olhar firme – Heat,
se sentir que esta em perigo, defenda-se. Mas nao quero que matem ninguem que nao
represente ameaça. Nosso objetivo principal aqui e conseguir informaçao, e nao vamos
conseguir se matarmos quem pode fornece-la. Fui claro?
Heat mordeu os labios quando encontrou o olhar prateado de Serph, entao deu de
ombros e desviou o olhar.
- Entendido, senhor. – murmurou – Se isso e uma ordem, eu vou segui-la. Nao farei
nada a menos que seja atacado. E isso que voce quer?
- Sim, e isso que eu quero. – disse Serph rispidamente, levantando a voz
novamente – Lembrem, nao estamos indo la fazer matança. E informaçao que nos
queremos.

Serph olhava para as costas de Heat enquanto o soldado de choque caminhava na


sua frente. Ele visualizava claramente o olhar de ressentimento no rosto de Heat quando
foi repreendido.
Em termos de habilidade de combate, nao havia ninguem em quem Serph tinha
mais confiança. O líder da Embriao era extraordinariamente rapido e astuto, mas estava
longe de ter a força de Heat. Ninguem era pareo para ele nesse quesito. Ele era o principal
combatente da tribo, e seus talentos o tiraram de incontaveis situaçoes perigosas. Mas
agora ele estava deixando Serph inquieto.
Quando eles terminaram de fazer todos os preparativos, ja era quase Hora de
Sombra. Avançaram cautelosamente pelo Lixao no período de pouca iluminaçao,
passando pelo campo de batalha recente que apelidaram de “Ponto Zero”, e adentraram
o territorio dos Vanguardas. Agora um cinza rabugento começava a se esgueirar pelos
cantos do ceu magenta escuro.
Serph nao tinha percebido antes, mas ao olhar para cima, pode ver fracas luzes
oscilantes ao longe, alem da chuva. Ele as perdia de vista rapidamente se nao prestasse
muita atençao, mas, vez ou outra, vislumbrava um feixe verde entre as pesadas nuvens
cinzentas.
Era uma cor quase ofuscante, Serph pensou. Lhe ocorreu que aquilo era muito
parecido com a luz esverdeada que ele viu emanar do estranho objeto no Ponto Zero, e
desviou o olhar.
- Estou escaneando o tempo todo em busca de hostis. – disse Gale discretamente
– Atualmente, nao ha leituras de calor inimigas num raio de cinquenta metros. Detectei
diversos dispositivos de vigilancia e armadilhas, mas estao inoperantes.
- Estranho. – disse Serph. Se isso tudo fosse uma armadilha, faria mais sentido
deixar as armadilhas e instrumentos de vigilancia ativados. Justo quando estava
pensando nisso, ele levantou o pe de supetao ao ver uma substancia negra, parecida com
piche, empoçada no chao. Era uma armadilha? Ele rapidamente tentou se afastar dela,
mas a coisa grudenta ja tinha se fixado a sola das suas botas. Nao parecia ser explosiva
nem corrosiva.
- Nao parece ser uma armadilha. – disse Heat – Se fosse, nao seria tao obvia. Gale,
alguma ideia do que e isso?
- Vou investigar. – Gale se abaixou, enfiando um dedo na poça viscosa. Sendo um
bispo, ele tinha um acervo de dispositivos sensoriais muito maior e mais capaz que os
outros.
Argilla olhou para a poça negra e franziu as sobrancelhas.
- Nojento.
A misteriosa substancia era grossa e negra, preenchendo uma pequena depressao
no chao. Havia varias peças de equipamento espalhadas ao redor, de armas a botas e
capacetes, e incontaveis buracos de balas decoravam as paredes e o chao. Era evidente
que uma batalha feroz aconteceu ali tambem.
Mas, sendo assim, onde estavam os corpos? Argilla examinou os buracos de bala
na area e concluiu que a luta nao tinha acontecido ha tanto tempo – certamente nao ha
tempo suficiente para os corpos terem se dissolvido.
Cadaveres nao duravam muito no Lixao. Depois de tres dias, eles se dissolviam
sozinhos, subindo aos ceus para se tornar parte da chuva de prata que caía sem parar,
continuando o ciclo de renascimento da Igreja.
Por essa razao, era estranho nao haver corpos ali logo depois da batalha. Nao
havia indícios de que algum embate de grande escala tinha acontecido ali antes, e fazia
menos sentido ainda os Vanguardas terem passado por algum tipo de conflito interno.
- Analise de campo concluída. – disse Gale, tirando o dedo da poça – Meus sensores
sao incapazes de identificar com precisao a substancia ou sua composiçao, mas consegui
determinar que nao e venenosa, corrosiva ou volatil. Deve ser inofensiva ao toque. Vou
coletar uma amostra e conduzir uma analise mais detalhada quando voltarmos para a
base. Cielo, meu kit, por favor.
- Claro. – disse Cielo, pegando um kit de amostragem da bolsa na sua cintura.
- Se nao ha corpos, sera que os sobreviventes os levaram quando foram embora?
– formulou Argilla.
- Nao, isso nao faz sentido. Por que eles levariam os corpos e deixariam as armas
para tras? Por que tirariam os trajes de combate e as botas? – Serph apontou para um pe
de bota mergulhado na poça gosmenta. Ele estava virado para cima, revelando o interior
vazio; a abertura parecia um abismo sem fim. Argilla teve um arrepio e apertou os braços.
- Terminei de coletar a amostra. – disse Gale – Tambem determinei a localizaçao
da base dos Vanguardas. Nao e longe daqui.

Sendo uma tribo emergente, a Embriao tinha uma base pequena. A base dos
Vanguardas, por outro lado, era uma instalaçao militar de verdade. Apesar de ela
tambem ter sido erguida em cima de predios em ruínas, as areas danificadas tinham sido
restauradas, e as varias fortificaçoes defensivas que foram adicionadas, como
plataformas de observaçao e metralhadoras fixas, a tornavam muito mais
impressionante. Em geral, ela parecia ser no mínimo duas vezes maior que a base da
Embriao, e os parapeitos e canhoes de grosso calibre ao longo das paredes a colocavam
num nível completamente diferente em termos de defesas exteriores.
E ainda assim, o lugar estava quieto. Nao houve tiros de advertencia enquanto a
equipe de cinco de Serph se aproximava. A entrada da base estava muito bem trancada,
mas nao havia um unico guarda ao longo das paredes. Caixotes de armazenamento, ha
muito tingidos de vermelho devido a ferrugem, tinham sido amontoados em pilhas
enormes, e a agua prateada se acumulava em frestas de veículos de combate que tinham
sido deixados com as portas abertas.
- Isso esta quieto demais. Tem certeza que e aqui, Gale?
- Estou detectando dez sinais de calor la dentro. Provavelmente sao membros dos
Vanguardas. Com base nos dados que tenho a minha disposiçao, essa e a localizaçao mais
provavel para a base deles.
Cielo apontou:
- Olha, tem mais daquela coisa. – em varios pontos da parede da base e no chao ao
redor, havia poças da substancia negra parecida com piche que eles viram antes.
Serph estudou os caixotes enferrujados cautelosamente, mas nada se moveu ou
fez um ruído.
- Acho que eles nao vao mesmo abrir fogo. Vamos, vamos entrar. Cuidado com
armadilhas.
Gale tomou a dianteira, usando os seus sensores aprimorados para fazer uma
inspeçao cuidadosa da area ao redor da entrada. Era difícil de acreditar na declaraçao
dele de que nao havia armadilhas.
- Tem certeza? Eles so trancaram a porta e mais nada? – perguntou Serph.
- Talvez eles tenham abandonado essa base e se mudado para outro lugar. – disse
Argilla, parecendo nao acreditar muito no proprio palpite.
- Seja como for, tudo que podemos fazer agora e entrar e ver. – disse Serph – Gale,
abra a porta. Mas tome muito, muito cuidado.
Gale se curvou, pegando um macaco e preparando o codigo que devia abrir a porta
eletronica. Alguns momentos depois, houve um barulho pesado, e as largas portas de
metal se abriram para fora. Cielo foi o primeiro a entrar.
- Uou... O que aconteceu aqui?
- Parece que houve uma luta dentro da base tambem. – disse Serph.
- Uma luta? – debochou Cielo – Esse lugar esta um completo desastre. E olha, tem
mais daquela gosma preta pra todo lado.
Cielo tinha razao. O exterior solido da base nao fazia jus ao estado de total ruína
la dentro. Havia buracos nas paredes e quase todas as luzes estavam quebradas. Buracos
de bala e rastros de explosao adornavam o chao, e havia armas e muniçao descartadas
por toda parte.
Varias das paredes tinham sido derrubadas, abrindo um caminho rapido ate o
centro da base. Enquanto Serph e seu grupo avançavam, bolas de poeira se acumulavam
aos seus pes. Havia pilhas de destroços por toda parte, lembrando os campos de batalha
devastados pela guerra la fora. As estaçoes de guarda e armarios de armas, ja bastante
degradados pelo uso, agora estavam completamente destruídos, e vidro quebrado e
fragmentos de metal retorcido tomavam conta do chao.
A medida que avançavam pela base, eles encontravam mais e mais do piche negro.
Havia poças pelo chao todo e respingos nas paredes. Elas pingavam e babavam,
misturadas com sangue, como se tivessem sido jogadas para todos os lados a esmo.
- Se houve uma luta aqui, com quem foi? E impossível que algum dos nossos tenha
adentrado tanto a base. – disse Argilla.
- Talvez alguns dos nossos soldados tenham sido capturados durante a batalha no
Ponto Zero e tentaram escapar. – cogitou Serph.
- Improvavel. – respondeu Gale – Nao consigo imaginar que tenham capturado
alguem naquelas circunstancias. E mesmo que isso tivesse acontecido, o poder de fogo
que eles possuíam nao bate com a batalha obviamente de grande escala que aconteceu
aqui. O dano a estrutura da base e grande demais para ter sido causado por um conflito
desses.
Cielo esfregou a bochecha.
- Gale, que outra explicaçao ha? Os Vanguardas nao fizeram isso com eles mesmos.
- Por mais estranho que seja, eu acredito que essa e a hipotese mais provavel no
momento.
- E, faz sentido... Espera, o que?! – Cielo agarrou um dos braços de Gale – Ei, do que
voce esta falando? Membros da mesma tribo nao podem lutar entre si. Tipo, todos tem
que obedecer ao mesmo líder. Como uma luta dessas poderia acontecer? O líder tem
controle absoluto, e a lei. Voce sabe disso, Gale!
O líder da tribo era o seu mestre, e os outros membros eram extensoes da sua
vontade. Isso, assim como a natureza inviolavel da Igreja, era uma das regras
fundamentais do Lixao. Os membros de uma tribo so faziam o que o seu líder mandava.
Membros da mesma tribo lutarem entre si seria como a mao direita tentar decepar a
esquerda. Era impensavel.
- E claro que eu sei. Foi por isso que eu disse que e estranho. – a voz de Gale
revelava apenas um remoto indício de desconforto – Porem, apos descartar as outras
possibilidades improvaveis, e a unica explicaçao que resta. Nao temos dados suficientes
para uma analise mais conclusiva. Essa e uma situaçao inedita e altamente irregular.
- Irregular? – Cielo parecia prestes a dizer mais, mas, ao inves disso, apenas deu
um suspiro exausto.
De repente, eles ouviram um estrondo vindo de tras.
Gale e Argilla se viraram e abriram fogo. Cielo fez o mesmo.
Uma parte da parede, ja danificada, nao conseguiu resistir ao peso do poder de
fogo dos tres. Grandes pedaços de alvenaria caíram espalhafatosamente no chao, e
depois so houve silencio. De tras dos restos da parede, um homem vinha rastejando, com
um rosto de choro. Nas suas bochechas e ombros, ele trazia as marcaçoes verdes que o
identificavam como um membro dos Vanguardas. Serph começou a se aproximar dele,
mas Gale se interpos na frente, arma a postos.
- E melhor ficar para tras, senhor. Pode ser perigoso. Eu o interrogarei.
- Nao. Preciso que voce continue escaneando a area em busca de armadilhas. –
Serph se colocou novamente na frente de Gale e ajudou o homem a sentar – Voce e um
dos Vanguardas? – perguntou enquanto olhava o homem com cuidado, avaliando os
ferimentos.
Ele estava gravemente ferido. Havia cortes enormes no seu peito e abdome, e ele
estava coberto de manchas de sangue semicoagulado. Era evidente que ele nao tinha
muito tempo de vida.
- Voce consegue falar? – Serph perguntou – Como isso aconteceu? O que aconteceu
aqui afinal?
Os labios do homem se moveram quando ele tentou falar, mas nao saiu nenhum
som. Sua boca, vermelha de sangue, se agitou e se contorceu.
- O nosso... Líder... – ele finalmente conseguiu falar, com palavras que eram pouco
mais que um grunhido. Antes que pudesse continuar, a cabeça do homem tombou para
frente.
- Ei, aguente firme! O que aconteceu?
De repente o corpo do homem começou a sacudir e a ter espasmos. Por reflexo,
Serph tentou se desvencilhar dele. Os olhos do homem viraram para cima e, de repente,
ele estava de pe. Entao soltou um guincho.
- Cuidado! – gritou Cielo.
- Senhor, para tras! – Gale sacou seu rifle e tentou interferir tambem. Os olhos do
homem estavam tao virados que so era possível ver o branco. A boca abriu mais e mais,
ate que ele soltou um tremendo urro. Enquanto Serph tentava se afastar, o homem se
retorceu e mordeu o seu braço.
A boca dele, agora grotescamente deformada, apresentava fileiras de dentes
brilhantes. Eles eram desordenadamente afiados, e fizeram um distinto som
nauseabundo quando rasparam a superfície da armadura de Serph. O líder da Embriao
se debatia para se libertar enquanto tentava alcançar o coldre na sua cintura.
Um tiro ecoou. Serph sentiu um jato de sangue quente na sua bochecha. O homem
caiu ao chao numa poça de sangue e massa encefalica, sua grande boca arreganhada.
Serph cambaleou, instintivamente levando a mao a ferida no braço, e ao olhar para cima
viu Heat parado la, fumaça subindo do cano da sua pistola.
- Ele atacou primeiro, como voce queria. – disse Heat num tom frio e um brilho
cruel nos seus olhos vermelhos.
- E. – respondeu Serph, respirando fundo para se recuperar antes de limpar o
sangue – Bom trabalho, Heat.
Argilla se aproximou enquanto Heat guardava a pistola em silencio.
- Isso foi sinistro. O que aconteceu? Ele ficou louco porque estava a beira da morte?
- Ele te mordeu, chefe! Voce esta bem? – perguntou Cielo.
- Sim, esta tudo bem. Os dentes dele nao conseguiram atravessar a armadura,
mas... – a pergunta “por que?” ficou presa na garganta de Serph, porque o corpo do
homem começou a ficar preto nas extremidades.
Os cinco ficaram olhando mesmerizados enquanto o cadaver pareceu se contorcer
de agonia. Uma bizarra forma negra deslizou a partir das pontas dos dedos dele, como
se fosse uma coisa viva, se espalhando pelo corpo inteiro.
O homem morto gritou. Uma das suas maos se ergueu e agarrou Serph pelo
tornozelo. Os dedos do cadaver ficaram pretos, pouco a pouco, e entao começaram a se
esfarelar, a começar pelas unhas. Nas articulaçoes, eles quebraram, se desfazendo em po
antes mesmo de chegar ao chao. Um soluço começou a emanar da garganta do que ate
alguns momentos atras foi um homem, mas foi interrompido quando uma grossa massa
da substancia negra jorrou da sua garganta. Houve um barulho como de papel sendo
amassado, e os braços se soltaram dos ombros antes de tambem ficarem pretos e
esfarelarem.
Pouco antes do corpo ficar completamente negro, Serph se desvencilhou dos
fragmentos que ainda estavam agarrados nele. O fino po negro que caiu ao chao começou
a derreter. Os outros apenas continuaram a olhar paralisados, e dentro de alguns
segundos, nao havia mais nada humano ali.
Tudo que restava era uma poça negra e viscosa como a que Serph encontrou na
cidade em ruínas antes. A mesma que Gale nao conseguiu identificar.
Um grito ficou preso na garganta de Argilla. Ela cambaleou para tras, tapando a
boca com a mao. Cielo tambem parecia estar prestes a vomitar, e Serph sentiu parte da
força das suas pernas sumir. O rosto de Gale estava calmo, mas nem ele conseguia
esconder uma leve torçao na bochecha.
- Por que isso aconteceu? – exigiu Argilla, com uma voz aspera – Quando as
pessoas morrem, elas sobem aos ceus. Nao devia ficar nada para tras.
- Nao ha registro de tal fenomeno ter acontecido antes. Evidentemente, a
anormalidade dessa situaçao esta ficando mais preocupante.
- Vamos em frente. – disse Heat – Por aqui. – e começou a andar sem esperar os
companheiros chocados.
- Ei, espera! – gritou Cielo – Isso nao te incomoda em nada? Um cara acabou de
morrer de um jeito muito bizarro!
- E daí? – Heat respondeu sem sequer olhar para tras – Quem esta morto, esta
morto. Se ele ainda estivesse vivo e nos atacando, eu me preocuparia com ele. E seria
bem mais divertido.
- Heat! – gritou Serph.
- Sim? – Heat parou e se virou para encarar o seu líder. Sua resposta foi tao calma
e normal que Serph nao soube o que dizer. O brilho de fome nos olhos de Heat era
claramente visível agora. Cielo jogou um olhar angustiado para Serph.
- Espere um pouco. – disse Serph antes de se dirigir ate Argilla, que estava
encolhida atras de um pedaço de parede quebrada. Ele estava preocupado com ela. Mas
tambem nao aguentaria olhar para a cara de Heat nem mais um segundo – Argilla,
aguente firme. – ele esticou a mao para tocar a bochecha dela, agora com a certeza de
que foi um erro traze-la na missao. O rosto dela tinha perdido praticamente toda a cor.
- Senhor... – Argilla olhou de volta para ele e, nesse momento, Serph sentiu um
arrepio subir pela sua espinha. Ele afastou a mao. Por apenas um momento, os olhos dela
pareceram brilhar em dourado. Um instante depois, tinha passado – um truque da luz,
talvez. Mas ele podia jurar que por um momento, os olhos dela brilharam, quando
vislumbraram a mancha de sangue na sua bochecha.
Eu devo estar vendo coisas, ele tentou se convencer. Os olhos de Argilla
continuavam com a mesma cor rosa clara de sempre. Ele recobrou a compostura e
esticou a mao para tocar o ombro dela. Sua pele estava fria e umida.
- Argilla, voce fica aqui. Ainda ha chance de um ataque inimigo. Proteja essa
posiçao e nos espere voltar. Isso e uma ordem, entendido?
- Nao. – disse Argilla, e entao levou a mao a boca, como que surpresa com as
proprias palavras. Lentamente ela abaixou a mao, repetindo entao a recusa com mais
confiança – Eu quero saber o que aconteceu, senhor. Eu sei que nao estou bem... Minha
cabeça parece que esta prestes a rachar ao meio, estou zonza e mal tenho forças para
andar. Mas eu vou com voce. Se eu acabar ficando em perigo, me ignore. Mas eu preciso
saber.
Um longo momento de silencio pairou no ar. O proximo a falar foi Gale.
- Localizei Harley Q. – Serph e Argilla se viraram para ele na hora – Ele esta num
corredor no segundo andar. Acredito que ele ja nos detectou e esta tentando fugir.
- Bom, mas ele nao vai. – disse Heat, partindo com passos rapidos.
- Vamos, senhor. – disse Argilla, tentando se endireitar e segurando o cabo da arma
com mais força. Ela mordeu o labio, e o olhar no seu rosto mostrava que nao aceitaria
nao como resposta – Nao precisa se preocupar comigo. Nos precisamos pegar Harley. Ele
deve saber de alguma coisa.

O nível de destruiçao ficava pior a medida que eles se aproximavam do coraçao da


base.
- Sinto cheiro de sangue e... E alguma outra coisa. – disse Argilla.
O teto do estreito corredor de concreto que eles estavam seguindo tinha
desmoronado em varios lugares, e o chao e as paredes estavam manchados em varios
pontos com a substancia negra e sangue. A carnificina era catastrofica. Alem das marcas
de tiro, parecia que algum tipo de espada gigante tinha feito cortes profundos no
concreto. Pelo jeito, houvera tambem, deixando salas inteiras cheias de corpos
queimados, seus membros secos, a carne transformada em po. Ainda assim, os trajes de
combate nao mostravam indícios de terem sido tocados por chamas.
- O que aconteceu aqui? – perguntou Cielo – Como e possível alguem morrer assim?
- Nao ha dados suficientes para determinar a causa precisa da morte. – disse Gale
– Na verdade, nao ha dados suficientes para esclarecer nada do que vimos aqui.
- E, eu sei, Gale. – respondeu Cielo – Eu so estava pensando alto. Sabe, as pessoas
normais as vezes... – de repente, parou de falar e apontou para o corredor – Ei, voces
viram aquilo?
Um pouco a frente, outro corredor cortava o deles. Alguem tinha aparecido
brevemente la, olhando para eles e entao pulando para fora de vista num instante.
Embora a figura tivesse desaparecido na escuridao, os sensores de calor do grupo a
mostravam claramente tropeçando em si mesma na tentativa de fugir.
- Localizamos Harley Q. – disse Gale – Ele esta indo na direçao de uma sala mais
no fundo.
- Tomem cuidado, pessoal. Ele esta desesperado, entao estejam preparados para
qualquer coisa. – enquanto Serph dava o aviso, a sua propria apreensao começava a fazer
seu peito se agitar. Havia tantas coisas desconhecidas: a estranha substancia negra, a luz
dourada nos olhos de Argilla e a sua condiçao física deteriorada... Sem contar o proprio
cansaço interminavel dele, que ele ainda nao tinha mencionado para os outros.
E uma bizarra sensação de alegria.
Eles correram, subindo uma escadaria circular. Em pouco tempo, tinham o alvo
em vista, logo a frente. Ele fugia cambaleando, parando para roubar um vislumbre deles
antes de virar em outra quina. Seu rosto cadaverico parecia ter levado uma surra, e
estava travado num olhar de medo tao estarrecedor que quase parecia ridículo. A
respiraçao cansada de Harley vinha em meio a tosses e cuspes enquanto ele se arrastava
com todas as forças pelo corredor, seus passos desesperados ecoando. Os passos dos
seus perseguidores se misturavam mais e mais com os dele a medida que se
aproximavam.
Harley estava soluçando agora. Ele gritou algo ininteligível, e nao fez nenhuma
tentativa de se defender enquanto fugia.
- Isso nao faz nenhum sentido. – disse Serph – Nenhum dos outros membros da
tribo veio atras de nos. Sera que isso e algum tipo de armadilha afinal?
- Improvavel. – respondeu Gale – Uma tribo do tamanho da Vanguardas nao usaria
o proprio líder como isca. E os nossos relatorios de batalhas anteriores mostram que
eles nunca usaram esse tipo de estrategia.
- Chega de conversa. – disse Heat, levantando a arma. Logo a frente, o corredor
terminava numa porta que provavelmente levava ao quarto particular de Harley Q ou a
sala de guerra. Harley entrou correndo e bateu a porta com força. As luzes defeituosas
piscaram por um momento.
Um instante depois, o grupo chegou a porta. Ela estava firmemente trancada, mas
Heat logo disparou nas dobradiças, elevando uma nuvem de poeira. Um grito debil ecoou
la dentro.
- Voce nao tem para onde fugir, Harley. – disse Heat – Ponha as maos na cabeça e
faça exatamente o que dissermos. Acredite, voce nao vai gostar se eu ficar nervoso.

- P- Para tras! Nao se aproximem!


Harley Q estava completamente diferente do adversario que eles conheciam. Seus
olhos estavam fundos, e sua pele estava branca como a de um fantasma. Ele se encolheu
contra uma das paredes da sala, tremendo com um medo incontrolavel. Seu rosto, antes
banal, ofuscado pelo cabelo ruivo, agora estava tao magro que parecia que ele ja era um
cadaver.
A propria sala – outrora a sala de guerra dos Vanguardas – estava uma bagunça
ainda maior. A mesa de planejamento tinha sido arrancada do chao e jogada contra a
parede, os monitores estavam quebrados, fios e outros componentes espalhados por
todos os lados como entranhas. Aqui tambem havia mais da substancia negra. E havia
sangue. Tanto sangue que quase cobria o chao todo. O cheiro pairava no ar, forte o
bastante para dar nauseas, e fazendo a garganta de Serph se contorcer.
- Maos pra cima, Harley! – quando Serph se aproximou dele, Harley soltou um
grito alto e estridente que parecia o lamento de uma sereia; um som que nao era humano.
- Por favor! Nao me coma! Nao me coma, nao me coma... – ele quebrou o contato
visual se encolhendo mais, cobrindo a cabeça com os dois braços, afundando em posiçao
fetal.
- O que deu nele? Ficou louco? – disse Cielo com uma bufada. Serph o interrompeu.
- O que voce quer dizer com isso? – Pare agora, uma voz dentro dele disse. Ele
sabia, de algum jeito, que nao haveria volta se perguntasse o que queria perguntar, mas
mesmo assim a sua boca, como que agindo sozinha, formou as palavras – O que nos
fizemos naquela batalha?
Harley levantou o seu rosto cheio de lagrimas.
- Voces... Voces nos devoraram. – ele disse, engasgando. Seus olhos vazios tinham
assumido uma cor amarelada de doença – Voces cinco, voces viraram monstros... E
comeram todos os meus homens!
Silencio tomou conta da sala. Serph foi tomado por uma sensaçao de total derrota.
La no fundo, alguma parte dele ja sabia qual seria a resposta, mas, como um tolo,
perguntou assim mesmo.
- Do que voce esta falando?
- Aquelas... Luzes estranhas... Vieram voando por todos os lados... E entao eu...
Todos nos... Nos transformamos naqueles... Monstros... – Harley tossia enquanto falava –
E entao nos lutamos. Amigo ou inimigo, nao importava. Foi um caos. Cada um por si. E
aqueles que perdiam eram estraçalhados e... E entao... – a voz dele era tremula.
- Cale a boca! – gritou Argilla de repente, apontando sua arma. Antes que qualquer
um pudesse reagir, o pente foi esvaziado, enchendo o corpo de Harley de buracos.
- Argilla! – Serph pulou e derrubou o rifle da mao dela. Heat rapidamente chutou
a arma, que rodopiou pelo chao ate bater numa parede.
- Eu nao comi ninguem! – gritou Argilla, balançando a cabeça violentamente em
negaçao enquanto Serph a segurava – Eu nao fiz isso. Eu nao seria capaz de fazer isso.
Nao fui eu!
Cielo a agarrou tambem.
- Calma, Argilla. Nos sabemos que voce nao fez isso. – mas mesmo dizendo isso,
ele tremia tanto que provavelmente cairia se nao a estivesse segurando.
Serph se voltou novamente para Harley Q, que jazia no chao de braços e pernas
abertos, ainda se contorcendo. Os movimentos dos seus membros eram estranhos, como
se nao fossem mais parte do seu corpo, apenas balançando de um lado para o outro como
coisas vivas independentes. Quando Serph começou a se aproximar, alguem agarrou o
seu braço. Ao se virar, ele viu Heat o segurando; seu aperto era tao forte que doía mesmo
com o traje de combate.
- Nao chegue muito perto. Nao ainda. – disse Heat, e a feroz expressao de fome no
seu rosto era ainda mais evidente que antes, suficiente para Serph ter um arrepio – Nao
sabemos se ele esta morto. Ainda nao sabemos o que ele realmente e. Nao vimos do que
ele e capaz numa luta.
- Eu... Fome... – a voz de Harley saiu tao baixo que quase nao foi possível ouvir. Um
sangue negro escorreu dos ferimentos de bala, que estavam se curando diante dos olhos
deles. Seus labios tingidos de sangue se contorceram numa parodia cruel de sorriso –
Fome, frio, dor... Eu segurei os meus homens nos braços enquanto os seus corpos ficavam
negros dos pes a cabeça. Eu podia sentir o que eles estavam sentindo. Seu medo, sua dor,
seu sofrimento, e vi como eles continuavam se perguntando como e por que aquilo estava
acontecendo – as palavras ficavam mais fortes a medida que ele falava – Seus corpos
estavam tao cheios de informaçao... E eu soube... Eu soube que, se conseguisse essa
informaçao, o frio passaria, mas ia voltar de novo... Entao eu comi um dos meus
companheiros, e foi horrível e triste e doloroso, mas... – o sorriso grotesco se alargou
ainda mais – Foi tao gostoso!
Cielo gritou e pulou para tras, olhando para o seu pe. Um líquido negro com uma
estranha película gordurosa rastejava por todos os lados; a mesma substancia que eles
encontraram nos corredores la fora.
- O que... Uou! – a bolsa na sua cintura sacudiu e uma capsula de amostra saiu
voando de dentro dela, aquela que Gale tinha usado no caminho. A capsula quebrou, e o
líquido negro contido la dentro se juntou ao resto. Tudo se juntava em Harley Q. O líquido
se espalhava sobre o corpo deformado dele, escurecendo a sua pele onde quer que a
tocasse, e logo o cobriu completamente. Mas ao inves de cobri-lo, a coisa parecia estar
sendo absorvida por ele.
Ele se contorcia, como se houvesse mais alguem escondido sob a sua pele, e suas
costas, ombros e braços borbulhavam, viravam e balançavam desordenadamente. Um
som parecido com um suspiro escapou dos seus labios sorridentes.
- Muito bem... – ele murmurou, uma palavra se misturando a outra – Eu so preciso
comer voces antes que voces me comam!

- Fogo!
Ao comando de Serph, o grupo de cinco pessoas concentrou seu poder de fogo em
Harley, lançando uma chuva de balas na sua figura deformada.
Elas nao tiveram efeito algum.
Harley pareceu cair de quatro, mas na verdade, estava absorvendo mais e mais do
líquido negro, aumentando de tamanho rapidamente ate cobrir totalmente a parede
atras de si. Num instante, ele parecia um gigante para o grupo da Embriao.
O corpo de Harley tinha a mesma camada gordurosa que o proprio líquido, negra
e gosmenta. Sua silhueta estava sempre mudando, nunca parando numa forma
específica – uma massa borbulhante de piche. Num momento ele era uma abominaçao
com tentaculos retorcidos, no outro um poliedro de superfície notavelmente lisa.
- Eu vou comer voces! Comer, comer, comer!
Cielo gritou. Suas pernas balançaram no ar quando a abominaçao esticou um
braço enorme e o puxou do chao. O rosto de Harley pairava na parte superior do corpo
deformado – a unica parte dele que ainda era humana.
Argilla mirou nesse rosto e abriu fogo. Ela abriu buracos na monstruosidade, mas
que aparentemente nao surtiram efeito. Enquanto ele absorvia as balas, um dos
perturbadores olhos amarelos de Harley se fixou nela.
- Isso doeu, sua vaca! Doeu, doeu, doeu!
Um braço negro gosmento agarrou Argilla por tras. Ela soltou um grito. Era como
se a sala inteira tivesse virado uma extensao do corpo de Harley. Nao importava para
onde eles se viravam, a criatura estava la esperando por eles.
Serph berrava enquanto atirava inutilmente nos braços que tinham agarrado
Argilla e Cielo. A sensaçao era a de esvaziar o pente num monte de barro. A carne negra
balançou e grunhiu, expelindo as balas, que caíram ao chao sem cerimonia.
Heat amaldiçoou e continuou atirando, mas a cada vez que o gatilho era puxado,
a abominaçao so parecia ficar maior. O fedor de podridao no ar mudou para algo mais
forte e incomodo a medida que fluidos jorravam do corpo do monstro, as gotas se
espalhando pelo concreto como oleo quente.
- Merda! – Heat jogou longe a sua pistola vazia e sacou uma faca.
- Temos que recuar, senhor! – gritou Gale – Nao temos chance!
- Nao! Nao podemos deixar Cielo e Argilla! – gritou Serph, mantendo a postura.
Um instante depois, ele sentiu uma força terrível o balançar violentamente por
dentro.
Serph gritou, tombando de joelhos. Sua arma caiu ao chao. Nas suas entranhas,
sentia uma corrente raspando, como uma bobina de pura energia se desfiando dentro
dele. Seus movimentos tinham a qualidade líquida do mercurio. Seu corpo era como uma
concha sendo dilacerada para dar luz a coisa la dentro.
Dor e prazer se tornaram um.
A força pressionou a sua testa de dentro para fora, e ele contorceu o corpo
violentamente na tentativa de conte-la, mas nao adiantou. A corrente de energia
prateada rasgou sua pele, engolindo seu corpo inteiro numa espiral de luz.

Om Mani Padme Hum


Varuna

Serph gritou. Ele podia sentir que estava se tornando outra coisa, algo que ao
mesmo tempo era ele e tambem uma criatura feroz e fria e inescrupulosa, e o seu grito
foi de negaçao, desespero e de um prazer inigualavel.

Em meio ao brilho prateado, os sentidos de Serph ficaram mais aguçados, e ele


percebeu uma mudança na batalha.
Houve um raio de luz, e Harley emitiu um guincho ensurdecedor. Um dos seus
tentaculos balançou, soltando a presa que tinha agarrado. A figura ia em direçao ao chao,
mas antes de cair, seu corpo girou, subiu e pairou proximo ao teto.
- Eu estou flutuando! Nao, estou voando! – a voz estava distorcida, como se
estivesse vindo das profundezas de um abismo, mas sem duvida era de Cielo. O seu rosto,
porem, nao era mais humano. Nao que o resto do corpo fosse.
Sua boca tinha assumido uma forma curva, e era possível vislumbrar dentes finos
la dentro. Seus braços, agora azuis, eram compridos e angulares, semelhantes as asas de
um planador, e as maos tinham garras afiadas nas pontas. Uma serie de cinco listras
brilhantes ia do seu quadril ate a coxa; suas pernas eram longas e esguias, completando
a sua forma graciosa. Raios pareciam dançar nas suas maos, se transformando em fogos
de artifício azuis ou purpuras que corriam pelo seu corpo como agua invadindo a proa
de um navio.
De algum lugar la embaixo veio um tremor, e entao um pedaço do chao voou pelos
ares numa tremenda explosao. Uma enorme onda de poeira tomou conta da sala. Entao,
de dentro da nuvem arredia, emergiu um par de tentaculos que se moviam como
chicotes, balançando para cima e para baixo e para um lado e para o outro. Harley recuou
num movimento rastejante, semelhante a uma minhoca, enquanto o seu corpo começou
a queimar no lugar onde um pedaço de concreto ardente o tinha perfurado.
A figura com os braços de chicote ficou visível, e respirava ofegante. Seus braços
se contorciam e balançavam como fios dançantes, espiralando para cima e rastejando
pelo chao. Os contornos do corpo eram femininos, com um busto amplo e cintura fina.
Cada um dos seios da criatura tinha uma boca cheia de dentes afiados sorrindo
ferozmente.
- Argilla? Argilla, e voce? – quando Serph falou, percebeu que sua voz estava
distorcida como a de Cielo. Seu corpo estava todo quente e havia alguma coisa estranha
com a sua visao – tudo parecia tao claro. Claro demais. Ele via os arredores com um grau
de clareza muito alem da capacidade dos olhos humanos.
Argilla emanou um grito estridente e correu na direçao de Harley, o tempo todo
balançando os seus braços chicotes. Os tentaculos predadores de Harley a atacaram de
todas as direçoes, mas os membros de Argilla foram mais rapidos, cortando-os em
pedaços. Seu olhar penetrante estava focado na seçao mediana do inimigo.
Sem fazer um som, uma esfera negra apareceu em pleno ar proximo ao estomago
de Harley. A princípio, parecia que ela ia se fundir com o resto do seu corpo, mas entao
explodiu, levando a maior parte do abdome dele consigo. So restou um espaço vazio no
seu lugar, e Harley gritou de agonia, se curvando sobre o buraco onde o estomago estava.
Ele se jogou sobre Argilla como uma grande onda negra, tentando engoli-la para usar o
seu corpo para substituir a propria carne perdida.
Mas, pouco antes do contato, Argilla foi carregada por uma rapida rajada de um
vento esverdeado. Um momento depois, foi depositada do outro lado da sala, salva do
ataque de Harley por um ser de cabeça fina e comprida e semitransparente, asas verde-
esmeralda que iam dos ombros ate a cintura. O recem-chegado rapidamente brandiu os
braços, moendo uma massa de tentaculos negros que vinham na sua direçao. Suas asas
verdes balançavam suavemente, criando uma lamina de ar que cortava o inimigo.
As asas verdes tambem escondiam uma figura de pernas compridas. Uma lamina
branca brilhante se estendeu de um dos seus pes pontudos, cortando os tentaculos que
se aproximavam. Sua cabeça era rachada no meio, revelando filas e filas de dentes
reluzentes, e uma língua enroscada apareceu por um momento antes de se retrair
novamente. Não pode ser o Gale, não é? Mas Serph sabia que era.
- O que voce esta fazendo, Serph? Concentre-se! O inimigo esta bem na nossa
frente! – uma mao com garras longas e afiadas agarrou o ombro de Serph. A voz era
estranha, mas ao mesmo tempo tao familiar. Serph se virou para olhar e engoliu em seco
quando viu a besta monstruosa que estava ali, seu corpo maciço e imponente, com um
par de cabeças redondas sobre os seus ombros largos.
- Heat? E voce? O que aconteceu com voce?
- Depois. Ele esta vindo, nao baixe a guarda.
Serph direcionou sua atençao de volta para a batalha. Apesar dos ferimentos,
Harley estava indo direto para cima deles. Nao restava mais nada de humano no seu
rosto, mas seus olhos ainda queimavam com uma mistura de odio, loucura e fome.
- Eu vou comer voces! Vou comer todos voces! Comer, comer, comer!
Por puro instinto, Serph estendeu a mao. Antes que tivesse tempo para se
perguntar sobre o tom azul claro da sua pele ou o fato de que partes do seu braço
estavam cobertos por algum tipo de carapaça, seus dois antebraços se abriram, fazendo
um ruído cortante. Nao houve dor, apenas uma sensaçao de alívio. Das fissuras nos
antebraços, surgiram longas laminas feitas de ossos. As laminas dançaram, cortando a
carne de Harley como se nao passasse de uma teia de aranha. Harley gritou, e o seu corpo
deformado se contorceu de agonia.
Seus gritos de dor fizeram o corpo de Serph tremer. Ele tentou se afastar, mas, ao
fazer isso, algo escuro e viscoso se enroscou no seu tronco e começou a aperta -lo.
Imediatamente, Serph sentiu algo afiado e prateado sair de dentro do seu corpo numa
rajada de energia invisível. Se misturou com a poeira no ar, cercando-o com um frio
invernal que ouriçava a pele. O efeito sobre Harley foi muito mais dramatico. A
monstruosidade emitiu outro grito e seus tentaculos começaram a congelar e a quebrar
como vidro.
- Entao voce tem o poder do gelo? Parece que somos opostos. – Serph sentiu um
calor no rosto quando a voz chegou aos seus ouvidos. Olhando para Heat, este segurava
uma esfera de chamas ardentes aninhada nos seus finos braços vermelhos. As longas
garras nas pontas dos dedos deslizavam como que fazendo carinho na bola de fogo, e
entao ele a arremessou com um rugido bestial ensurdecedor. O fedor de carne queimada
encheu o ar, e Serph pode ouvir Harley grunhindo atras da cortina de fumaça que se
levantou.
- Heat, nos... O que nos somos?
- Vamos nos preocupar com isso depois. Por ora, temos alguns poderes novos,
entao vamos nos divertir um pouco. A nossa presa esta ali.
Sim, algo murmurou na mente de Serph. Presa. Cace-a e...
Serph percebeu que a voz na sua cabeça era dele mesmo e, atonito, sentiu
desespero misturado com uma sensaçao intensa e animalística de liberdade.
Cace-a e...
E...
Serph gritou. Ele nem percebeu, tao maravilhosa era a sensaçao de prazer
enquanto as laminas de ossos nos seus braços cortavam a carne do inimigo. O tecido
viscoso congelava ao ser tocado por elas. Entao, um momento depois, seu oponente foi
lançado para tras por uma poderosa rajada vinda de outra direçao.
Serph se virou e viu a figura feminina de braços compridos de chicote – Argilla –
ja preparando outro ataque. Algo como um buraco na propria estrutura da realidade se
formou entre as maos dela, uma poderosa distorçao gravitacional, que ela entao lançou
com um unico movimento suave. A coisa explodiu ao encontrar o corpo da criatura,
formando um enorme buraco – um que ficava maior a medida que o ar uivava ao seu
redor.
Enquanto a criatura grunhia e tentava revidar com seus tentaculos, foi
esbofeteada por uma rajada de vento esmeralda. A criatura de boca enorme – Gale –
balançava suas asas verdes que pareciam uma capa, rugindo enquanto planava sobre a
luta, gerando outra lamina de ar. Suas fortes garras pareciam grandes facas, brilhando
sob a luz, e enquanto ele avançava pelo ar, cortaram mais dezenas de tentaculos de
Harley, espalhando-os em todas as direçoes.
Os pedaços cortados se contorciam, tentando voltar para o dono, mas antes que
pudessem, um relampago purpura e uma bola de chamas vieram voando. A grande
criatura de duas cabeças – Heat – tinha as duas bocas abertas numa risada rouca
enquanto lançava bola de fogo atras de bola de fogo. Ele se aproximava rapidamente da
presa, brandindo brutais garras curvadas cobertas de chamas. Enquanto isso, aquele que
controlava os relampagos purpuras – Cielo – voava agilmente com suas asas coloridas.
Enquanto os relampagos que saíam do seu corpo faziam arcos e tostavam pedaços do
corpo de Harley, ele emitia grunhidos perfurantes.
O que tinha acontecido com eles? Mesmo enquanto lutava, em algum lugar, la no
fundo, Serph se maravilhava com a transformaçao. Os corpos que ele e seus camaradas
agora habitavam nao eram mais deles. Eles sequer existiam antes daquela coisa – aquele
misterioso objeto negro – se abrir? Talvez isso estivesse adormecido dentro deles todo
esse tempo. O que mais poderia explicar a sensaçao de prazer e exaltaçao que fervia
dentro dele? Serph nunca sentiu algo assim no calor de uma batalha. Ele nunca se sentiu
assim em toda a sua vida.
Uma das esferas de gravidade de Argilla acertou Harley diretamente na coisa que
uma vez foi o seu rosto. Sua cabeça implodiu em si mesma, e por toda a sala, a massa
gosmenta do seu corpo estremeceu. O tremor fez Serph cair de joelhos. Juntando as
ultimas forças, Harley mandou dezenas de tentaculos na direçao do líder da Embriao.
Serph levantou os braços, dilacerando o amontoado de tentaculos antes que pudessem
atingi-lo. Seus restos caíram ao chao como uma serie de fragmentos congelados.
O monstro grunhiu e gritou, tentando fugir enquanto recompunha o corpo, mas
foi atingido por uma combinaçao de vento cortante, relampago purpura, ondas de
gravidade e rajadas de chamas. Serph soltou um urro ao liberar o poder contido dentro
de si. Uma geada de puro branco tomou conta da sua visao, engolindo a carne negra do
inimigo e transformando-o numa massa albina de gelo.

Serph emergiu da transformaçao.


Caiu de joelhos na hora, exausto, sentindo como se seu corpo tivesse sido virado
do avesso. Perto dele, Gale e Cielo tambem voltaram as suas formas humanas, caindo
ofegantes. Heat, ainda transformado, se aproximou deles com passos fortes, carregando
a criatura Argilla nos braços. Colocou-a no chao.
- Ela esta viva? – perguntou Serph.
- Esta tudo bem. Ela so esta esgotada.
Argilla grunhiu levemente e balançou a cabeça para confirmar, ainda com os olhos
fechados. Havia um leve luz azulada correndo pela sua pele, que lentamente desapareceu
enquanto ela recuperava a forma humana. Enquanto esperava ela terminar a reversao,
Heat tambem saiu da sua forma de duas cabeças. A fraca luz azul que vinha com a
liberaçao da transformaçao lavou seus olhos e cabelos enquanto um sorriso de vitoria
se formou no seu rosto.
- Pegamos ele? – Argilla conseguiu proferir.
- Ele parou de se mexer. Parece improvavel que retome as hostilidades. Nao
consigo detectar nenhum sinal vital. – Gale ainda ofegava com força enquanto falava, o
que dava um toque comico aos seus comentarios.
- Nao consigo imagina-lo sobrevivendo a tudo aquilo. – disse Cielo. Com a
combinaçao da chuva de fogo de Heat, os ventos cortantes de Gale, as ondas de choque
de Argilla e os projeteis de agua e gelo de Serph, Harley Q – ou a coisa que foi Harley Q –
tinha sido tao severamente mutilado que ate a sua forma monstruosa estava
irreconhecível.
Mas, mesmo assim, a beira da morte, ainda havia um brilho impossível de vida no
inimigo caído. Seus tentaculos esparramados e pedaços de pele dilacerada balançavam
e pulsavam, como que ainda procurando pela presa. Diante dos olhos dos cinco
companheiros, o corpo inchado começou a murchar, virando fumaça.
Heat deu um passo a frente, e Cielo soltou um grito de panico.
- Espera, o que voce ta fazendo? Nao chega perto! Ele ainda esta se mexendo!
- Eu sei que esta. Se nao estivesse, nao teria graça nenhuma. – disse Heat
despreocupadamente enquanto se ajoelhava ao lado da massa pulsante de carne.
Serph viu o perigoso brilho nos olhos de Heat novamente. Ele parecia um homem
possuído – era o mesmo olhar de fome que ele tinha enquanto caminhava em meio a
morte e destruiçao da base. Um arrepio de medo correu pela espinha de Serph, e ele se
levantou, ainda zonzo.
- Heat, espere.
- Esperar o que? – a voz de Heat estava estranhamente seca. Seu olhar nunca se
desviava dos restos em decomposiçao na sua frente – Essa coisa nao e mais Harley. Agora
e algo muito, muito mais poderoso, e voce sabe disso.
- Eu... – Serph teve de engolir uma bola de saliva amarga – Eu...
- Esse homem comeu os proprios seguidores. E isso o deixou mais forte. –
enquanto falava, Heat esticou uma mao para tocar o que restava de Harley. Ele nao
parecia preocupado com os cabelos que se levantaram e se enroscaram na sua mao –
Entao, se nos o comermos, ganharemos poder. Nos e que ficaremos mais fortes.
Cielo olhou para ele em choque.
- Heat, por favor, para com isso, cara. Voce esta falando que nem um louco.
- Nao ha comprovaçao para o que voce esta dizendo, Heat. – adicionou Gale – Eu
nao compreendo.
- Nao ha nada para compreender. Eu so estou apontando o obvio.
A cor desapareceu do rosto de Cielo. Serph falou rispidamente:
- Ja chega, Heat. Vamos embora.
- Ha algo dentro de nos. – Heat disse, como se nao tivesse escutado. Sua mao
acariciava a carne nauseabunda cinzenta lentamente, carinhosamente – E esse algo
precisa se alimentar. Se alimentar dos nossos oponentes caídos. Harley cresceu
devorando os seus proprios homens porque eles eram fracos. Dessa vez, ele e que foi
fraco. Entao e a vez dele ser devorado.
- Mas Harley era um ser humano! – gritou Argilla, numa voz que era quase um
sopro – Como nos.
Heat apenas sorriu.
- Voce chama isso de humano? Esse pedaço fetido de carne? – ele se levantou e
pisou com força na coisa na sua frente. Ela emitiu um guincho que parecia unhas
riscando um quadro negro, mas nao havia palavras. Nada que pudesse vir de um humano
– Nao, nao e. Nao mais. E nem nos somos. Entao por que deveríamos continuar nos
submetendo as concepçoes humanas? De agora em diante, temos que decidir o que e o
nosso novo normal por conta propria. E simples assim.
- Nao e nao, Heat! – disse Argilla – Nos ainda somos humanos. E entao nos... Nos...
- Um ser humano poderia fazer isso? – enquanto Heat falava, chamas envolviam
sua mao esquerda. Sua palma ficou vermelha e ele a afundou na carne da
monstruosidade caída, impregnando o ar com uma fumaça negra malcheirosa. A coisa
Harley se contorceu, soltando um guincho ensurdecedor que foi se esvaindo aos poucos
– Nao. – ele disse, tirando a mao da massa de carne deformada, balançando-a para soltar
os pedaços tostados que ficaram grudados – Nos nao somos mais humanos, quer voce
goste ou nao. Precisamos aceitar isso. Nao ha por que negar. Alem do mais, nos ja
comemos pessoas antes mesmo.
Cielo engoliu em seco e grunhiu alguma coisa ininteligível. Heat continuou,
ignorando-o:
- Precisamos aprender a sobreviver. As coisas dentro de nos sabem as respostas.
- Heat, pare. – disse Serph. Dessa vez era um pedido feito com uma voz suave, mas
ele sabia que nao adiantaria nada. De repente, o olhar sereno no seu rosto se abateu,
substituído por um assombrado.
- Fala serio, Serph. – disse Heat amigavelmente – Tenho certeza que voce ja sabe
disso. Qual e o seu verdadeiro desejo agora? O que voce esta sentindo ao cheirar e ver
tudo isso? Nao e pecado nos... Participarmos. Temos que fazer isso para sobreviver. Toma.
– ele estendeu a mao, segurando um pedaço de carne escorrendo sangue que arrancou
do monstro – Pegue. Voce quer comer, nao quer?
Serph recuou um passo.
Entao se virou e correu, sem olhar para tras. Nao foi por nojo. Foi por se dar conta
de que tudo que ele mais queria era agarrar aquele pedaço de carne, afundar os dentes
nele e deixar o sangue escorrer pela garganta enquanto o devorava completamente,
absorvendo todo o poder que ganharia.

Houve algum sinal de que isso aconteceria? Algo que ele nao percebeu?
A desorientadora batalha e sua conclusao o privaram da capacidade de ser
introspectivo. Enquanto Serph corria pelos corredores em ruínas da base dos
Vanguardas, sua mente estava repleta de uma infinidade atordoante de imagens
fragmentadas – dor se tornando prazer, homem virando monstro, um turbilhao de
duvida e afliçao enquanto o rosto de Harley se transformava numa mascara de revoltante
fome e gula. E entao, vislumbres da batalha.
Eles assumiram formas impossíveis, e de alguma forma sabiam como usa-las. Com
um mero pensamento, ele fez agua jorrar dos seus braços, cortando o ar como uma
navalha afiada. Ele se lembrava do prazer que sentiu quando aquelas laminas de ossos
brotaram dos seus antebraços e cortaram a carne do inimigo. Ele tinha se tornado um
verdadeiro tufao da morte. Agora, lembrar disso fazia o estomago embrulhar. Mas a pior
parte, a mais aterrorizante de todas, foi quando Heat ofereceu a carne.
Pegue. Você quer comer, não quer?
Aquele pedaço de carne, gotejando um sangue viscoso, quase preto. Parecia tao...
Deliciosa.

Argilla foi a primeira a cruzar o portao da base dos Vanguardas, andando


apressadamente, como se nao aguentasse ficar dentro daquele local profano nem mais
um segundo. Ela desceu as escadas cambaleando e caiu ao chao, se encolhendo como
uma bola. Seu rosto estava tao ensopado de lagrimas, sangue e ferrugem que mais
parecia uma mascara.
- Nao fui eu. Nao fui eu. Nao fui eu. – ela repetia incessantemente, balançando a
cabeça de um lado para o outro, tremula – Nao fui eu. Eu nao quero... Eu nao quero comer
ninguem!
Serph saiu logo atras dela. Tentou chegar ate a atiradora, mas nao tinha forças, e
caiu alguns passos atras dela. Nao conseguiu dizer nenhuma palavra. Nao tinha forças
para fazer mais nada a nao ser olhar para Argilla e estender uma mao na sua direçao. Ele
estava vagamente ciente de que Gale e Cielo estavam vindo logo atras, um ajudando o
outro a andar. Eles sentaram por ali. O rosto de Gale estava palido, os olhos de Cielo mais
ainda. Ele tapou a boca com a mao e fechou os olhos, como se pudesse de alguma forma
escapar do que tinha acontecido bloqueando a imagem do mundo que sediou o evento.
Outra onda de nausea atingiu Serph, mais intensa dessa vez, e ele começou a arfar.
Ele tentou nao pensar no que Heat estava fazendo naquele momento dentro da base
arruinada.
Pegue. Você quer comer, não quer?
Ele nao sabia quanto tempo ficou parado ali daquele jeito. Na frente dele, Argilla
balançava a cabeça de um lado para o outro em negaçao, fazendo um som como um uivo
mudo. A cabeça dele doía como se estivesse sendo perfurada por centenas de agulhas, e
Serph lutou duro contra a vontade de vomitar. Finalmente levantando a cabeça, tentou
formular as palavras:
- Por que isso esta acontecendo?
Naquele momento, a mente de Serph rodopiou, pois ele sentiu um impulso
doloroso de dentro das suas entranhas. Era difícil diferenciar da forte nausea que ja
sentia, mas a fonte era claramente diferente. Sua intensidade pavorosa cresceu mais e
mais, como se algo estivesse tentando abrir caminho devorando os seus intestinos.
Ele soltou um grunhido involuntario e se curvou, mas a dor nao parava. Pelo
contrario, continuou a aumentar, a sensaçao de queimaçao se espalhando pelo corpo
todo. Dentro da sua cabeça, ele via tudo piscar em vermelho e branco. A imagem daquele
pedaço gotejante de carne voltou a sua mente, fazendo sua garganta e língua pulsarem
violentamente. Ele lambeu os labios, sua língua se movendo por vontade propria. E o ato
nao causou repulsa. Ao inves disso, pareceu simplesmente natural. Por um tempo, foi
como se ele estivesse se vendo impassivelmente pelos olhos de um estranho – e entao o
estranho derreteu, como cera sob uma chama ardente.
So restou fome. Um feroz apetite, um desejo de se alimentar, instintivo e impiedoso,
borbulhando dentro dele como uma necessidade irrefutavel.
Argilla batia na parede, gritando incoerencias. Cielo tambem gritou, batendo a
cabeça insanamente contra o chao. Serph nao podia ver Gale, mas podia ouvir seus
grunhidos e arfadas.
Serph apoiou as maos no chao e tentou ficar de pe. Sua visao estava turva. De
repente ele perdeu o equilíbrio, e caiu de cara. So entao percebeu que um dos seus
braços tinha se liquefeito numa massa amorfa da substancia negra que eles viram por
toda a base.
Você está consumindo a si mesmo.
Serph percebeu a soluçao para o problema com uma facilidade chocante, a
resposta emergindo da coisa que agora vivia dentro do seu corpo. Ela precisava de
alimento para restaurar a energia que gastou durante a batalha – e isso significava
consumir os corpos dos seus oponentes caídos. Se ele nao fizesse isso, entao a coisa
dentro dele precisaria digerir a sua propria carne para obter sustento. Se nada fosse feito,
ela acabaria consumindo-o por completo, ate que restasse apenas uma poça negra de
piche.
Aquilo nao eram os restos das pessoas que Harley devorou, Serph percebeu. Eram
os restos daqueles que gastaram todas as suas energias para evitar serem comidos, e
entao acabaram consumindo a si mesmos no lugar. De algum modo, Serph sabia
instintivamente que so tinha aproximadamente mais dez ou quinze minutos antes de
sofrer o mesmo destino. E so havia um jeito de evitar isso.
De repente Cielo parou de tremer e se levantou, como que puxado por cordas
invisíveis. Sua cabeça se virou num angulo bizarro quando ele voltou seus olhos da cor
de sangue para Serph. A ardente fome vermelha neles fez o corpo do líder tremer. Ele
tentou chamar o nome de Cielo, mas o que saiu da sua boca foi o rugido bestial de um
animal encarando um invasor. Os olhos de Cielo palpitaram. Havia um fogo neles, e eles
piscaram duas ou tres vezes antes de emitir um fraco brilho.
- Chefe... Nao... Eu nao... – a voz de saiu distorcida e hesitante – Isso nao... Isso nao
sou eu!
Serph queria dizer a Cielo que sabia disso, mas muito provavelmente, Cielo via nos
olhos dele a mesma coisa que ele via nos olhos do amigo. Cielo veio na direçao dele, mao
esticada, proferindo um longo grito soluçante. Ele começou o movimento como um
pedido de ajuda, mas enquanto se aproximava, de repente sua mao estava mirando o
pescoço de Serph.
Sem pensar, Serph levantou a mao direita e defletiu o ataque. Seu braço se
transformou, num instante ficando coberto de uma radiante armadura prateada, e com
o novo gasto de energia, a fome cresceu.
Algum tipo de aviso se espremeu pela garganta de Cielo, mas entao o momento de
sanidade se foi. Num redemoinho de luz, ele reassumiu a forma que tinha tomado
durante a carnificina la dentro, com asas planadoras e um bico semelhante a um par de
alicates. Relampagos purpuras estalavam ameaçadoramente em volta do seu corpo.
Serph sabia que tambem tinha se transformado. Ouviu um grito chiado de alarme
emergir da sua garganta. Seu corpo nao estava mais sob seu controle. Era a fome que
ditava as suas açoes agora, o desejo incontrolavel e instintivo de comer; comer e aliviar
a dor e o vazio dentro de si.
Sem precisar olhar, ele sentiu duas outras figuras se erguerem, uma atras e uma a
sua esquerda. Antes de reconhece-las como Argilla e Gale, os viu primeiro apenas como
comida – algo a ser morto, sangue e carne a ser consumido.
Argilla saltava de um lado para o outro enquanto se aproximava, os dentes nos
seus seios brilhando na luz. Gale, sua boca colossal abrindo e fechando ritmicamente,
olhou para ele tambem – apesar de nao ter olhos discerníveis. Cielo, abrindo suas asas
de cores radiantes, vinha rapidamente, batendo o bico.
Eletricidade purpura veio voando. Serph evitou o ataque. Nao, nao Serph – foi a
coisa que habitava o seu corpo que defletiu as rajadas de energia. O braço que o fez nao
era mais humano; laminas de ossos irrompiam das bainhas que foram os braços de
Serph.
Ele soltou um grito de batalha furioso. Gale respondeu com um urro estridente
que era como uma furadeira no cerebro. A razao tinha escapado para algum lugar
distante, e no seu lugar restava apenas um desejo por batalha e uma necessidade
premente de se alimentar, que tingiam o mundo inteiro de tons de vermelho.
La longe, Serph podia sentir o seu proprio corpo trepidando de felicidade e
adrenalina pela carne e sangue que o alimentariam. Seu espírito humano gritou em
resistencia desesperada enquanto ele era consumido pelas chamas da sua fome bestial
cada vez maior.
Cielo emitiu outro guincho atordoante quando pulou para o ataque. Serph
irradiou poder de todo o seu ser. Parecia completamente natural para ele congelar o
vapor de agua entre eles. Um momento depois, laminas dançantes de gelo atingiram o
seu alvo purpura. Cielo urrou e recuou, cambaleando no voo. Um relampago banhou o
campo de batalha em tons violeta. As laminas de gelo que pairavam no ar foram
estilhaçadas, e as que estavam cravadas no seu corpo desapareceram tambem. A criatura
voadora soltou outro guincho, espalhando uma chuva de sangue roxo-azulado, e entao
emitiu outro urro enquanto os raios envolviam a sua forma agil.
Debaixo dos pes de Serph, o chao começou a balançar e rachar, e ele mal conseguiu
saltar a tempo. Argilla brandiu seus braços chicotes para emendar um ataque. Entao uma
rajada de laminas de vento vieram voando na direçao de Serph, sopro apos sopro. Ele
desviou de todas, deixando-as para estraçalhar veículos tombados e pulverizar paredes.
Gale tambem parecia ter se focado em Serph. Ele estava agachado ali perto, língua
balançando, asas verdes se preparando para outro ataque.
O ultimo fio da razao de Serph estava se esvaindo. Ele estava vagamente ciente de
que havia alguem pedindo ajuda, mas nem tinha certeza de quem era. Ele deu um ultimo
grito.
Por favor. Alguém. Qualquer um.
Pare isso.

No limite dos seus sentidos, Serph detectou um novo alvo. Um inimigo... Ou uma
nova fonte de alimento. Provavelmente os dois.
Rapidamente ele focou suas atençoes la. Com as coisas que serviam como seus
olhos, vislumbrou uma forma peculiar: parecia humano, mas nao estava equipado para
combate. Tinha cabelo preto curto e nao usava nada mais que um simples sobretudo. Era
uma garota, esguia e elegante. Embora descalça, ela vinha na direçao dele com passos
acelerados em meio ao chao repleto de destroços.
Nao havia nenhum indício de medo no comportamento dela, ou sequer cautela, o
que, paradoxalmente, o deixou mais acuado. Ele mordeu a língua para fazer um barulho
agudo, o mesmo que direcionaria a qualquer coisa que percebesse como uma ameaça.
Sentiu um deslize na atençao do inimigo. Agora era a hora perfeita para atacar.
Mas ele nao o fez. Apenas continuou pregado ao chao, sem fazer um movimento.
A garota calmamente levantou uma mao enquanto se aproximava dele, e com a outra
cortou a parte interna do pulso. Sangue quente se acumulou e começou a escorrer,
pingando no chao a cada passo que ela dava. Seus pes brancos brilhavam na luz fraca
enquanto ela mantinha a mao estendida em oferenda.
Ele pode ouvir um grito de panico de alguem, em algum lugar, dizendo para ele
correr – mas nao conseguia resistir a tentaçao daquele sangue escorrendo. A cada gota,
o doce aroma ficava mais atraente. Ele viu a sua propria mao azul se estender na direçao
dela, a longa lamina ainda armada. Cortar a cabeça fragil da garota seria como cortar um
pedaço de corda. E sangue jorraria. Doce sangue. Energia. Poder. Ah, como ele ansiava
por isso!
A garota continuou la, sangrando e sorrindo.
Entao tudo ficou preto.

Serph sentiu uma pele macia tocar os seus labios e um líquido salgado na língua.
Se levantou num sobressalto. Um par de olhos negros acolhedores olhava para ele. A
garota balançou a cabeça em reprovaçao e o deitou novamente com cuidado. Entao
pressionou o ferimento aberto contra a boca dele de novo. Sangue desceu pela sua
garganta, mas nao foi desagradavel – uma bebida quente, abrandando a sua sede sem
fim. Uma sensaçao de alívio tomou conta dele. A garota acariciou o cabelo de Serph,
assobiando uma melodia simples para si mesma, quase quieta demais para ser ouvida.
- Quem... E voce? – foi Argilla quem falou. Ela estava deitada logo atras da garota,
tremendo; sua voz nao era mais que um sussurro. Fracas manchas rosadas eram visíveis
ao redor da sua boca. Perto dali, Cielo e Gale estavam amontoados um em cima do outro.
Nenhum deles tinha o olhar de fome agora. Tudo estava assustadoramente quieto, o
unico som era o doce assobio da garota.
- Meu nome e Sera. – ela disse, transformando a melodia em palavras – Eu vim
para ajudar voces. Para ajudar a todos. – enquanto falava, a garota derramou uma unica
lagrima. Ela escorreu pela sua bochecha macia, refletindo a luz por um momento antes
de cair no chao sujo de sangue.
- Como assim “ajudar”? - perguntou Argilla. Ela estava prestes a perguntar mais
quando o grupo ouviu o som de passos pesados se aproximando. Instintivamente, Serph
colocou a garota atras de si. Argilla e Cielo tambem se aproximaram com movimentos
defensivos.
Era Heat. Ele parou e encostou no portao destruído da base dos Vanguardas,
franzindo as sobrancelhas, um punho fechado escondendo a sua boca. Percebendo a
garota e seus companheiros amontoados logo ali, começou a se aproximar, mas parou de
repente, como se tivesse se deparado com alguma barreira invisível.
- Heat? – chamou Argilla, com uma voz de cautela.
Mas Heat continuou congelado la, olhos fixados na garota. Abriu a boca para dizer
alguma coisa, mas, assim que o fez, ela calmamente estendeu a mao, como tinha feito
com Serph, abrindo os braços para acolhe-lo.
Mas a reaçao de Heat foi muito diferente. O que Serph viu nos olhos dele foi algo
semelhante a medo. O corpulento soldado cambaleou para tras, como que esbofeteado
por uma poderosa rajada de vento, e entao deu meia volta e começou a se afastar
rapidamente. Serph podia sentir o calor da garota ao seu lado enquanto observava em
silencio a partida de Heat.
Ele escolheu.
As palavras ecoaram na mente de Serph. Ele olhou ao redor e percebeu um
pequeno animal de chamativas orelhas triangulares ali perto – um gato negro, de olhos
prateados.
O futuro não está escrito em pedra. Está sempre em movimento. Mas ele escolheu.
Isso não pode ser mudado.
Quem é você? Serph perguntou sem falar. Mas o gato ja tinha sumido, deixando
apenas a lembrança da sua pequena forma negra e dos seus olhos brilhantes.
Capítulo 3

“Como? Isto não significa, falando de modo popular:


Deus está refutado, mas o Diabo não?”
Pelo contrário! Pelo contrário, meus amigos!
E, com os diabos, quem os obriga a falar de modo popular?

– Friedrich Nietzsche, Para Além do Bem e do Mal

- Ei, ei, olha so! – disse Cielo ao entrar na sala de guerra – O que acham? Nada mal,
ne, chefe?
- Tenho que admitir, Cielo. – disse Argilla, se levantando da mesa de reuniao e
piscando – Eu esperava algo muito pior com voce cuidando disso.
- Ah, fala serio. Eu me esforcei pra caramba. E eu nem estava falando com voce.
Vem, chefe, olha! Eu nao fiz um bom trabalho? – disse ele, se aproximando de Serph. O
líder fez que sim e abriu um sorriso.
- Sim. Muito bem, Cielo.
Eles estavam de volta a base da Embriao. Os outros membros-chave da tribo
estavam sentados em volta da mesa de reuniao. A voz vívida de Cielo conseguia animar
a sala inteira, quebrando o silencio pesado que pairava. Ele gesticulava orgulhosamente
na direçao da porta.
Logo atras dele vinha uma figura franzina, olhos arregalados de surpresa. Cielo
sorriu e puxou uma cadeira para ela.
- Nao fique parada aí, Sera. Sente-se.
A garota sorriu e sentou. O jaleco cirurgico que eles tinham improvisado para ela
fora substituído por um dos trajes com controle de temperatura usados pela maioria dos
habitantes do Lixao e uma pequena jaqueta cor de caqui. Acima dos ombros ficavam as
marcaçoes laranjas que identificavam o usuario como membro da Embriao. Julgando
pela aparencia, ela parecia uma Recem-Nascida que acabara de ser recrutada pela tribo.
Mas a expressao de curiosidade no rosto dela enquanto olhava os arredores
aparentemente sem entender nada a tornava estranha ate para um Recem-Nascido, bem
como o seu curto cabelo preto e as íris profundamente negras dos seus olhos. Agora que
ela estava ao lado dos outros, ficava ainda mais evidente como era pequena e delicada.
A jaqueta que Cielo arranjou para ela era sem duvida a menor que eles tinham, e mesmo
assim ficava larga.
Quando o grupo de Serph voltou das ruínas da base dos Vanguardas, a primeira
coisa que discutiram foi como a garota tinha conseguido escapar do quarto vigiado na
base da Embriao e, depois, como os localizou no campo de batalha.
Como ela conseguiu ir ate la a pe, sem a mais simples peça de armamento
defensivo para se proteger dos inimigos que podia ter encontrado em qualquer lugar
pelo caminho? Nao havia um unico milímetro quadrado do Lixao que nao era lotado de
destroços e vidro quebrado. Era impensavel fazer uma travessia dessas a pe. E mesmo
assim ela chegou la sem sequer um arranhao. So havia o corte que ela mesma fez no
pulso para salvar Serph e os outros.
Os guardas que estavam de vigia do lado de fora do quarto juraram que nunca
deixaram o posto e que a porta nunca foi destrancada. Os demais vigias de patrulha
tambem disseram que nao a viram andar pela base e muito menos alguem saindo. No
Lixao, a lealdade dos membros de uma tribo era incontestavel, e Serph nao tinha razao
para duvidar das palavras do seu povo agora.
Mas isso os deixava sem explicaçao para como a garota, Sera, conseguiu aparecer
justo no lugar certo na hora certa. Para começo de conversa, ela estava inconsciente
quando eles saíram. Baseado em que ela saiu em busca deles?
Os olhos dela se arregalaram quando eles perguntaram.
- Eu so senti que precisava ir onde voces estavam. Eu pude ouvir o quanto voces
estavam sofrendo. Eu tinha que ir. E entao eu fui. E so isso. – ela dava a entender que nao
compreendia porque estavam perguntando algo tao obvio. Eles tentaram reformular a
pergunta de varias maneiras diferentes, mas ela nao deu nenhuma explicaçao melhor,
entao Serph nao teve escolha a nao ser deixar de lado. A garota ainda estava fraca; ela
tinha perdido muito sangue para tirar os quatro guerreiros dos seus estados de criaturas
enlouquecidas.
- Ei, voce esta se sentindo melhor? – Argilla perguntou agora, colocando a mao na
testa dela – Voce deve estar debilitada depois de perder tanto sangue.
- Eu estou bem, ja descansei um pouco. – ela respondeu, sorrindo para Argilla –
Alem do mais, eu vim aqui para ajudar, entao nao me importo.
- Voce disse isso antes tambem. – Gale falou – Eu gostaria que voce esclarecesse
quem pretende ajudar. Voce se refere a nos cinco? A Embriao?
- Eu... – a garota tombou a cabeça, como que nao entendendo bem a pergunta, e
olhou com incerteza para o alto bispo – Eu estou aqui para ajudar a todos. – ela disse um
momento depois – Isso e tudo que eu sei.
- Voce apareceu na cratera formada apos a destruiçao de um objeto que apareceu
na fronteira do nosso territorio. – continuou Gale – Como voce chegou la? Que objeto era
aquele e por que apareceu de repente naquele lugar? Que relaçao voce tem com ele, ou
com os poderes de transformaçao que nos manifestamos?
- Me desculpe. – disse Sera, desviando o olhar – Eu realmente nao sei. Quando eu
acordei, estava la fora, e senti uma compulsao de ajudar voces. Voces estavam em perigo,
entao eu precisava ir ate la e oferecer o meu sangue. Isso e tudo. Eu nao sei o que mais
posso dizer.
- Por favor, Gale, ela nao esta em condiçao de ser interrogada. – disse Cielo
impacientemente – Olha pra ela. Ela esta assustada. E ela acabou de acordar, entao tipo,
deve estar confusa, sei la. Quando ela descansar direito, talvez lembre mais. Certo?
- Eu concordo com Cielo – disse Argila; era algo raro para ela – Nao vamos
conseguir nada intimidando a moça. Tudo que importa por enquanto e que ela nos
salvou. Devíamos estar mais preocupados com a conexao com a Igreja. Ja foi restaurada?
- Continuamos sem conexao. – respondeu Gale – Todas as nossas solicitaçoes de
comunicaçao continuam sem resposta.
- Nao estamos chegando a lugar nenhum. – murmurou Heat do seu banco contra
a parede – Achei que descobriríamos alguma coisa quando essa garota acordasse, mas
so conseguimos mais dores de cabeça. Ela nao passa de um peso inutil.
Argilla ficou brava.
- Ei, nao fale assim dela. Foi graças a ela que nos conseguimos voltar daquele...
Daquele estado em que estavamos. Se ela nao tivesse aparecido, nos... Nos teríamos
devorado uns aos outros. – ela falou baixo, como se as horríveis lembranças estivessem
sendo reproduzidas na sua mente.
Serph sentiu a propria boca ficar seca. Argilla estava certa. Ele nem queria pensar
no que teria acontecido se Sera nao tivesse aparecido naquela hora.
Heat era o unico que nao tinha bebido o sangue de Sera. Ele disse simplesmente
que se alimentou do corpo de Harley ate ficar satisfeito, quando entao a transformaçao
foi desfeita. Ele adicionou quase corriqueiramente que “o gosto era uma merda”, mas
nao ofereceu mais informaçao que isso.
Depois disso, ele se recusou veementemente a ingerir sequer uma gota do sangue
de Sera, e a sua aversao irracional e cautela para com a garota nao pareciam ter
diminuído mesmo quando os outros contaram que foi ela que os trouxe de volta ao
normal. Pelo contrario, parece que so pioraram. Agora, enquanto ela se encolhia na sua
cadeira dura, virando o rosto palido para um lado e para o outro para saciar sua
curiosidade do ambiente, ele a observava como um falcao.
- De todo modo, – disse Serph, tentando se desconcentrar das lembranças
sombrias – temos que agradecer a ela por nos tirar da nossa... Vamos chamar de furia.
Alem disso, ter Sera por perto parece estar impedindo que o que quer que seja que
aconteceu com os Vanguardas aconteça com a Embriao. Nao e mesmo, Gale?
- Ainda nao temos provas conclusivas. Porem, entre os Vanguardas e a Embriao, a
presença dela e o unico fator diferencial. Considerando que nao sabemos o estado atual
das outras tribos, nao posso concluir nada em definitivo, mas se supormos que as esferas
de luz se espalharam por todo o Lixao, e possível que estar dentro de um raio de
proximidade com a garota ajude a inibir aquela... Furia.
- Meu Deus, homem, nao da pra ir direto ao ponto? – disse Cielo – Entao,
resumindo, quer dizer que o fato de ela estar aqui e que esta nos impedindo de ficar
malucos? Se e assim, ela e foda. Alias, a essa altura, acho que a gente devia parar de falar
dela como se ela nao estivesse aqui. – ele estendeu a mao por cima da mesa para pegar
na dela – Tipo, ela veio para nos salvar, sozinha. E mesmo sem essa historia toda, que
motivo teríamos para rejeita-la? Qualquer ajuda e bem-vinda.
- Ele esta certo. – disse Argilla – Uma Novata como ela andando por aí sem rumo?
Alias, ela e ate menos que uma novata. Nao duraria cinco minutos. Sem contar que ela
pode ser a chave para acabar com essas transformaçoes.
Heat levantou a mao.
- Lamento ter que estourar a sua bolha, mas veja isso. – a marca de bola de fogo
no braço direito dele brilhou com uma luz vermelha. Os outros apenas observaram
enquanto o braço se transformava numa monstruosa mao de pele vermelha com quatro
garras reluzentes. Línguas de fogo dançavam ao longo das garras e deixavam cair
pequenas gotas de chamas.
Ele balançou a mao com garras na frente de Argilla, que simplesmente nao tinha
reaçao.
- Essa garota so contem a fome que sentimos depois de lutar. Nossos poderes de
transformaçao nao mudaram nada. Podemos assumir aquelas formas na hora que
quisermos, por nossa propria vontade. Voce tambem ja experimentou, nao e, Serph?
- Sim. – admitiu Serph.
Ele ja tinha conversado a respeito com Gale, e, de fato, mesmo depois que Sera os
resgatou, eles continuaram capazes de usar aqueles poderes de transformaçao. Mas ao
inves de ativa-los livremente, eles pareciam estar enraizados em instintos naturais, se
manifestando automaticamente quando eles entravam numa mentalidade de batalha.
Apesar de eles ainda nao terem testado, era possível que, alem de fome, emoçoes fortes
como medo ou raiva tambem pudessem faze-los se transformarem. Talvez a presença de
Sera pudesse ajudar numa situaçao dessas, mas parecia que ela nao era capaz de
remover o poder de transformaçao em si.
- Entao o que vai acontecer com a gente? – perguntou Argilla. Ela estava olhando
sem expressao para as proprias maos.
- Me desculpe. – disse Sera, colocando uma mao gentilmente no ombro de Argilla.
Seu tom de voz ficou mais firme quando a soldada olhou de volta com um rosto de
surpresa – Pelo menos, ficando perto de mim e bebendo o meu sangue, acho que voces
nao deverao se transformar de repente. E se eu puder chegar as pessoas antes que elas
percam o controle, posso para-las. Isso e uma coisa que eu tenho certeza.
- Sera... – Argilla ficou sem palavras quando a garota a abraçou – Voce...
- Acho que, ficando perto de mim, as pessoas podem desenvolver uma imunidade,
e assim nao precisarao devorar umas as outras. Mas o vírus se adapta rapidamente. Os
outros precisam tomar um pouco do meu sangue antes que seja tarde demais.
- Baseado em que voce diz isso? – interviu Gale – Se nao lembra de nada, por que
fala com tanta certeza? Que vírus e esse que voce mencionou? A nível molecular, o seu
sangue nao e diferente do de um ser humano normal. E mesmo assim tem esse poder.
Explique como isso e possível.
- Eu... – toda a certeza no rosto de Sera desabou – Me desculpe. Eu nao sei. Eu
realmente nao sei. Tudo que eu sei e o que nos precisamos fazer.
- Nao podemos permitir que a nossa tribo ingira uma substancia cujo mecanismo
de funcionamento e desconhecido.
Gale fez uma analise do sangue de Sera assim que eles voltaram a base. Todos os
resultados foram normais. Nao havia nada no sangue dela que o tornasse diferente do
das outras pessoas, exceto o fato de que era mais claro ate que o de um Recem-Nascido.
- Embora possa ser inofensivo para nos no momento, nao temos como saber que
tipo de efeitos negativos podem...
- Gale, ja chega. – interrompeu Serph – O que importa e que sabemos por
experiencia propria que o sangue de Sera tem algum tipo de poder especial. Se isso pode
impedir que soframos o mesmo destino que os Vanguardas, acho que vale a pena manter
o plano dela em mente. – ele se virou para Sera, que ainda estava um tanto palida – Mas
voce perdeu muito sangue antes. Tentar oferecer o seu sangue para a tribo inteira seria
o mesmo que cometer suicídio.
- Nao se preocupe com isso. – disse Sera, num tom de voz resoluto – Eu precisei
usar muito sangue com voces porque estavam naquele estado precario, mas as pessoas
aqui da base ainda nao foram tao longe. Apenas uma gota para cada ja deve bastar. Entao
eu nao vou me desgastar tanto quanto foi com voces.
Serph queria perguntar como ela tinha certeza, mas se impediu. Ele ja sabia qual
seria a resposta. Por ora, era melhor se concentrar no lado pratico das coisas.
- Gale, prepare um kit de coleta de sangue e algumas capsulas farmacologicas. O
suficiente para a tribo inteira. Vamos usar isso para distribuir o sangue. – Gale fez que
sim e se levantou – Por enquanto, vamos dizer a eles que e um medicamento que esta
sendo distribuído pela Igreja devido a situaçao atual. – continuou Serph – Acho melhor
nos tambem tomarmos um pouco e... Heat, onde voce vai?
Heat ja estava cruzando a porta.
- Eu nao quero.
- Esta desobedecendo uma ordem direta? – perguntou Argilla.
- Eu gosto do meu poder. – Heat fez uma coluna de chamas se erguer na palma da
sua mao. Uma chama de uma cor diferente dançava nos seus olhos enquanto ele
observava – Isso e muito melhor que granadas. Um pouco mais de pratica e estara
perfeito. Nao quero colocar nada no meu corpo que possa me tirar isso. Alem do mais,
eu prefiro o gosto do sangue dos meus inimigos a uma pílula sem graça.
A resposta debochada pairou no ar, tirando toda a força da repreensao de Argilla,
e ele saiu antes que alguem pudesse dizer qualquer outra coisa, fechando a porta. Gale
se virou para Serph, inexpressivo.
- Senhor, acho que devia considerar um castigo para essa insubordinaçao.
- Deixe estar. O Heat so esta sendo ele mesmo. – respondeu Serph. Ele tinha muitas
outras coisas para se preocupar. Quem era Sera, os efeitos do seu sangue, aqueles
poderes bizarros de transformaçao... E a fome de carne.
La no fundo, ele podia sentir que, embora controlado, o seu apetite continuava
uma presença muito real. Se ele baixasse a guarda, aquilo voltaria com força total para
consumi-lo.
Ele olhou para o perfil de porcelana de Sera. Nao era a primeira vez que tinha a
impressao de que a conhecia de algum lugar. Mas, por mais que tentasse, os fios da sua
memoria continuavam escorregando por entre os seus dedos.
Serph balançou a cabeça e tentou se concentrar no problema do que fazer com o
seu segundo em comando.
Heat era membro da Embriao desde o começo. Eles emergiram da Igreja como
Recem-Nascidos juntos e, desde entao, o soldado ruivo tem sido o braço direito de Serph.
Nao, mais do que isso – era como se eles fossem duas metades de um mesmo todo.
Quando o líder da tribo anterior deles foi morto, Serph e Heat conseguiram driblar a lei
que dizia que a tribo derrotada tinha de se juntar a vitoriosa. Logo depois que o líder
deles caiu em batalha, antes que a situaçao pudesse se acalmar, os dois sozinhos
derrotaram o líder da tribo inimiga, deixando as duas tribos sem líder simultaneamente.
Isso significava que todos eles eram efetivamente Recem-Nascidos de novo.
Normalmente, as habilidades de cada um determinariam se seriam mortos ou adotados
por outra tribo. Mas Heat se recusou a aceitar qualquer uma dessas opçoes. Ele apontou
que a lei tambem permitia que os Recem-Nascidos formassem a sua propria tribo.
- Entao e isso que nos vamos fazer. E voce sera o nosso líder. Simples assim.
Serph relembrou a conversa. Suas lembranças de antes do incidente com o objeto
negro pareciam distantes, como se pertencessem a outra pessoa, mas ele lembrava do
tom de voz e do olhar de Heat com uma clareza quase peculiar. Era mais que estranho
uma tribo com apenas um líder e um seguidor, mas a Embriao tinha conseguido
sobreviver.
Pensando bem, o orgulho e arrogancia de Heat – ou, em termos mais amigaveis,
sua determinaçao e simples recusa de se curvar a vontade de qualquer um – eram
qualidades que ele sempre demonstrou ter. Ele jogava pelas regras da Igreja, mas era
impiedoso quando se tratava de enfrentar alguem que pudesse prejudica-lo. As unicas
exceçoes sempre foram o seu antigo líder e Serph.
Mas essas inclinaçoes estavam evidentes demais agora. O que quer que o objeto
misterioso tenha feito com eles, Heat estava certo sobre uma coisa: as transformaçoes e
os poderes que elas conseguiam superavam de longe qualquer arma convencional.
Harley era um exemplo perfeito. Depois de assumir a sua forma monstruosa, ele
conseguiu resistir ao ataque dos cinco membros-chave da Embriao mesmo Argilla tendo
explodido metade do seu rosto. Se eles conseguissem dar um jeito de usar esses novos
poderes sem perder a consciencia e a sanidade, seriam praticamente invencíveis.
Era otimo que o sangue de Sera podia traze-los de volta do estado de furia, mas se
havia alguma chance de isso inibir as proprias transformaçoes, entao para Heat, que
estava bastante confortavel com as suas novas habilidades, esse sangue – e ate a propria
Sera – podiam ser um verdadeiro veneno.
O fato de o rosto de Sera aparentemente ativar alguma lembrança quase
inacessível tornava a situaçao toda ainda mais incomoda para Serph. A afliçao da duvida
pairava dentro dele como espinhos perfurando o seu coraçao. Sera que Heat estava certo?
Ou sera que a sua rejeiçao a garota era algo mais perfido?
As palavras daquele animal negro – o “gato” – pairavam na mente de Serph. Ele
escolheu. Elas pareceram quase uma alucinaçao, mas ainda assim o olhar prateado da
criatura tinha deixado uma cicatriz nos seus pensamentos, como arranhoes de garras.
Eles nao doíam, mas de tempos em tempos, voltavam a mente, como que so para lembrar
que ainda estavam la.
Gale estava se preparando para colher uma amostra de sangue quando soltou um
sibilo e tombou para a frente. O tubo na sua mao caiu no chao, e Sera, que estava mais
perto, correu para socorre-lo.
- O que foi, Gale? – perguntou Serph – Voce esta bem?
- Nao... Nao e isso... – emitiu Gale por entre os dentes cerrados – E uma...
Transmissao da Igreja. Uma intervençao forçada. – ele colocou o dedo na testa e franziu
a sobrancelha em desconforto – Esta vindo por um canal de emergencia restrito,
unidirecional. Vou colocar na tela. Todas as outras funçoes serao... Interrompidas
temporariamente.
Assim que terminou de falar, ele ficou completamente inerte, caindo nos braços
de Sera. Argilla ajudou a carrega-lo ate a cadeira mais proxima.
Sera olhou para Serph e perguntou:
- O que aconteceu com ele?
- Ele esta bem. – garantiu Serph, vendo o olhar de panico no rosto da garota –
Quando a transmissao terminar, ele voltara ao normal.
Sera fez que sim, mas ainda parecia preocupada. Ela segurou a mao de Gale e
olhou para o seu rosto. O monitor na mesa emitiu um chiado e se ativou, mostrando uma
tela branca cheia de interferencia. Depois de alguns momentos assim, um rosto palido e
oval, quase humano, apareceu na tela branca. A Maquina de Disseminaçao.
- Fez uma entrada bem dramatica, hein? – disse Serph, num tom um tanto duro –
Quero saber porque nao houve nenhuma comunicaçao ate agora. E tambem quero saber
porque sentiu a necessidade de submeter o meu bispo a uma intervençao forçada.
- Essas perguntas... Nao podem ser respondidas. – so os labios da Maquina de
Disseminaçao se moviam enquanto ela falava.
A Maquina de Disseminaçao era uma especie de representante da Igreja.
Enquanto os sacerdotes que vestiam branco serviam como guardas, era a Maquina que
era responsavel por monitorar diretamente os habitantes do Lixao. Nao era incomum as
pessoas se comunicarem com ela assim, remotamente. Ate Serph interagia com ela as
vezes. Agora, apenas sua cabeça aparecia na tela, uma representaçao estilizada de rosto
humano em ceramica branca, fria e alienígena.
Esse ar de desumanidade trouxe a sensaçao de deslocamento de Serph de volta a
sua mente, mas ele continuou:
- Entao, a Igreja sabe alguma coisa sobre o fenomeno que aconteceu conosco? De
repente, nos nos transformamos em criaturas bizarras com poderes incríveis, que as
vezes nao conseguimos controlar. Houve outros acontecimentos peculiares tambem.
A Maquina de Disseminaçao nao respondeu. Serph continuou:
- Eu quero saber o que a Igreja tem a dizer sobre isso. Isso foi planejado? Se sim,
acho que merecemos uma explicaçao.
- Essas perguntas... Nao podem ser respondidas. – repetiu a Maquina de
Disseminaçao – Isto e uma notificaçao para os líderes de todas as tribos. Todos os líderes
devem se apresentar no Templo da Igreja dos Arbitros do Karma em Sahasrara as 12:00
HS para um anuncio importante. Ate la, toda e qualquer hostilidade esta proibida em
todo o Lixao. Repetindo: os líderes de todas as tribos devem se apresentar no Templo da
Igreja dos Arbitros do Karma em Sahasrara as 12:00 HS para um anuncio importante.
Fim da transmissao. – a tela ficou preta.
- Que porra foi essa? – questionou Cielo – Acha que tem alguma coisa a ver com os
nossos poderes?
- Espero que sim. – disse Argilla sem muito alarde.
Gale grunhiu ao voltar a si. Seus olhos se arregalaram de surpresa quando olhou
para cima e viu Sera o observando com cara de duvida enquanto segurava suas maos.
- O que esta havendo? – ele perguntou – Eu fiquei fora de controle de novo?
- Ela esta preocupada porque voce apagou. – disse Argilla, indignada – Sera
possível que nao consegue perceber isso?
Cielo riu.
- Acho que nem os bispos sabem de tudo.
- Eu so estava executando uma das minhas tarefas normais. “Preocupaçao” e um
termo impreciso. Se pudesse elaborar mais quanto ao que quer dizer com...
- Ai, ta, ta bom, ja chega disso. – disse Cielo, puxando Sera para longe de Gale –
Sera, vamos deixar esse ingrato pra la. Eu posso te mostrar a base, o que acha? Tenho
certeza que tem muita coisa que voce ainda nao conhece.
- Nao a faça se esforçar. – disse Argilla – Ela ainda precisa descansar.
- Espere. Nao posso permitir que voce faça isso. – disse Gale, se levantando
rapidamente – Tenho ordens de colher amostras do sangue dela e criar uma medicaçao
para distribuir aos membros da tribo primeiro.
- Nao ha pressa para isso agora, Gale. – interviu Serph – Apesar de nao sabermos
com certeza o que a Igreja vai fazer, levando em conta que fomos convocados, e razoavel
pensar que o anuncio deve estar relacionado com a situaçao. Se a conexao com a Igreja
for restaurada, talvez possamos verificar quem Sera e e se existe algum registro do
passado dela. Pode ate ter alguma informaçao sobre o sangue dela, quem sabe? Voce
ainda nao consegue acessar o banco de dados da Maquina de Disseminaçao?
- A transmissao de antes foi de via unica. Nao tenho acesso.
- Entao acho que nao tenho escolha a nao ser ir. – o rosto de Serph estava grave –
Como as lutas estao proibidas, acho que e seguro viajar sozinho. Eles so vao deixar os
líderes entrarem no Templo, mesmo.
- Tem certeza? – Sera estava olhando para Serph com ansiedade. Cielo colocou o
braço em volta do ombro dela e a balançou um pouco, brincando.
- Nao se preocupe, Sera. A Igreja tem os registros de todos do Lixao. Tenho certeza
que conseguiremos descobrir mais sobre voce. Anime-se!
Sera balançou a cabeça em negativa.
- Nao, nao foi isso que eu quis dizer. – ela respondeu – Eu me referia a Serph ir
sozinho. E se alguem o atacar no caminho?
- Ei, voce nao ouviu a conversa? – Cielo cruzou os braços, em tom de decepçao – A
Igreja ordenou um cessar-fogo, entao ninguem vai atacar ninguem. Esta proibido
qualquer tipo de combate, seja com armas de fogo, armas brancas ou mesmo so na mao.
E ninguem jamais desobedece uma ordem da Igreja.
Mas a preocupaçao nao deixou o rosto de Sera. Ela abriu a boca para dizer alguma
coisa, mas parou no meio do caminho.
- Alem do mais, o meu chefinho e forte! Ele e o mais forte de todos nos. Afinal de
contas, ele e nada menos que o líder da Embriao. Certo, chefe?
- E isso aí, Cielo. – disse Serph com um sorriso, mais para acalmar Sera. Ele sentiu
um toque de alívio quando viu a tensao no rosto dela diminuir.
- Ainda assim, e arriscado, senhor. – disse Gale – Temos de considerar a viagem de
volta tambem. Talvez eu ou alguns dos outros membros da tribo devamos acompanha-
lo.
- Nao, nao podemos fazer isso. Nao sabemos se ou quando eu posso acabar...
Mudando de novo. Se isso acontecer, eu nao quero ninguem por perto. A primeira vez ja
foi o suficiente. Eu quero que todos fiquem aqui e atuem com base no que ja sabemos.
Voltarei o mais depressa possível.
Gale ficou quieto por um momento e entao disse:
- Entendido, senhor. – e baixando a cabeça e levando a mao ao peito – Entao eu lhe
desejo sorte. Faça uma boa viagem.

Sahasrara, a lótus reluzente...


Sahasrara era, figurativamente, o coraçao do Lixao, cercada pelas outras seis areas
pelas quais as tribos lutavam incessantemente. Uma terra santa isolada por um
profundo abismo cujos limites eram cobertos por um lustroso metal azul que nao tinha
uma fissura ou mancha de sujeira. O unico jeito de atravessar era usando uma das oito
pontes conhecidas como Arya Marga – o Nobre Caminho Octuplo – que se conectavam
ao centro de Sahasrara. As entradas das pontes eram ornamentadas com portoes pelos
quais so os membros mais importantes de cada tribo podiam passar, e os proprios
portoes eram decorados com elaborados entalhes de texto caligrafico.
O nome oficial da Igreja era Igreja dos Arbitros do Karma. Era a unica e absoluta
autoridade no devastado Lixao, a mediadora, a lei. Os guerreiros que caíam em batalha
renasciam atraves das instalaçoes da Igreja e eram enviados de volta para a guerra, para
lutar de novo. Os arbitros eram o sagrado e sacrossanto coraçao do Lixao, reunindo,
armazenando e protegendo todos os dados do eterno conflito, a ascensao e queda das
diferentes tribos, as fronteiras militares em constante mudança e as disputas de poder
por cada area. Apenas eles tinham autoridade sobre o objetivo final de todos aqueles
que nasciam no Lixao: os portoes para o Nirvana.
Aqueles portoes so se abririam para aqueles que viveram e morreram varias e
varias vezes, que acumularam pecado apos pecado e tiveram seus karmas purificados
incontaveis vezes. O unico jeito de escapar da batalha sem fim ficava no topo de uma
pilha de corpos alta o bastante para ser vista de todas as outras seis areas do Lixao, que
se estendia ate o paraíso.
Em Sahasrara, nao havia sinal da devastaçao que cobria as outras areas. Com o
nome da lotus de mil petalas, era mantida separada da sujeira e destruiçao pelo sombrio
e assustador abismo, um corte circular na terra tao profundo que diziam que existia
outro mundo la embaixo. Diziam que esse mundo abaixo era um lugar sagrado, onde
todos que morriam neste mundo se reuniam e eram separados do peso dos seus pecados
antes de serem purificados. O karma dos caídos era purificado la, nas partes mais
profundas da terra; e entao, de acordo com o samsara, o eterno ciclo de reencarnaçao,
ganhavam nova vida na superfície, como Recem-Nascidos. Era um submundo onde a
morte reinava suprema, e ao mesmo tempo um utero sagrado de renascimento.

Serph parou na entrada da ponte que ja tinha cruzado incontaveis vezes. Desde
que se tornou o líder da Embriao e regente de Muladhara, a Igreja o tinha chamado aqui
mais vezes do que ele conseguia lembrar – e mesmo assim agora essas lembranças
pareciam ser algo de outro mundo, de outra vida. Ele olhava para as pontes imaculadas
como se fosse a primeira vez que as via. Eram feitas de uma substancia desconhecida
que emitia um discreto brilho, como metal ou plastico polido. As elegantes curvas
naturais do seu padrao decorativo, ligeiramente iluminadas pelo ceu magenta,
enquadravam o profundo abismo negro la embaixo.
Areas como Muladhara e Svadhisthana ja tinham sofrido tanta devastaçao que era
quase impossível encontrar estruturas intactas, mas em Sahasrara, havia delas em
abundancia. Alem das longas pontes brancas como a que se estendia diante dele, havia
as enormes torres do Templo, que iam ate o ceu, praças e escadarias com corrimaos
requintados, alem de varios jardins, todos parte de um conjunto bem projetado, cada
peça perfeita. Tudo reluzia em branco e dourado, cristalino, sem nenhum sinal de
manchas de sangue, buracos de bala ou o toque das chamas.
Fora os sacerdotes de branco, que tinham a funçao de manter a ordem, ninguem
sabia quais eram as verdadeiras intençoes da Igreja, ou o que havia dentro daquelas
estruturas reluzentes. Pouquíssimas pessoas do Lixao podiam acessar sequer o terreo
da Igreja, e os outros andares eram estritamente proibidos para todos. Ninguem sabia o
que acontecia nesses outros andares e, ate agora, ninguem tambem nunca teve o
interesse de saber. Mas, dessa vez, enquanto subia a escada que levava a porta da Igreja,
ornamentada com duas coroas de espinhos, Serph sentiu uma certa indignaçao e
desconforto que nunca vivenciou antes. As pessoas do Lixao viviam uma vida de
conflitos sangrentos, destinadas a sofrer indefinidamente, enquanto os monges viviam
em paz na sua torre sublime que ia ate o ceu. O dedo de Serph estava coçando de vontade
de faze-los sentir o gosto de uma bala.
Ele ainda estava irritado com a Igreja por machucar Gale, ativando a intervençao
forçada, alem de desperdiçar o talento do bispo durante uma situaçao peculiar como
essa que eles encaravam agora. Sendo um bispo, Gale existia para processar informaçao,
e se deparar com tantas anormalidades sem nenhum dado para trabalhar era um fardo
tremendo para ele. Sem contar que a conexao forçada pode ter causado danos graves ao
seu sistema nervoso. Serph nao estava disposto a simplesmente deixar para la.
Esses sentimentos continuavam a crescer enquanto ele se aproximava para
inserir o anel de identificaçao no espaço correspondente no portao para ganhar acesso.
Ao fazer isso, seus olhos instintivamente se voltaram para cima, na direçao de uma das
inscriçoes.

Om Mani Padme Hum


Da lama nasce a flor de lótus.

Imediatamente o seu sangue começou a ferver, e um aperto ardente se formou na


sua garganta. Ele sentiu uma força quase explosiva se acumular dentro dele – outra
mente, outra presença, se erguendo sem barreiras. Era uma sensaçao que ele lembrava
muito bem da batalha com Harley, em Svadhisthana. A fome, o instinto de lutar, a ansia
de matar.
Não.
Serph grunhiu, enrolando os braços em si mesmo, enfiando os dedos nos ombros
enquanto tentava conter a mistura de medo e desejo borbulhando dentro dele.
Ouviu um fraco miado em algum lugar la no alto, e entao o tilintar de um sino.
A pressao dentro dele desapareceu como se nao passasse de uma alucinaçao.
Serph se recompos e olhou para o arco acima da sua cabeça.
O gato estava la.
Suas orelhas pontudas estavam em pe, pequenos triangulos negros contra o ceu
magenta, e seus olhos prateados brilhavam no seu pequeno rosto angular. Ele abriu a
boca de novo e deu outro miado, entao rapidamente se virou e pulou para fora de vista,
sua longa cauda balançando antes de desaparecer. O som do sino se foi com ele.
Um sino?
Estava pendurado no pescoço do gato, Serph percebeu. Um pequeno sino
decorativo. E de alguma maneira o eco do seu som parecia lembrar a voz de Sera.
O que nao fazia sentido algum, Serph pensou, balançando a cabeça. Dessa vez,
tomou cuidado para nao olhar para cima de novo quando inseria o anel na entrada.
Aquelas palavras acima do portao aparentemente eram algum tipo de gatilho para a
transformaçao. Ele precisaria mante-las em mente caso quisesse entrar naquele estado
por vontade propria.
Om mani padme hum...

- Voce e da Embriao, certo? – alguem disse quando ele cruzou o ultimo portao e
chegou ao vestíbulo. Era uma moça com marcaçoes amarelas no quadril e no ombro. Isso
significava que ela era membro dos Solidos, a tribo que controlava Anahata. Se Serph
lembrava direito, o líder deles se chamava Mick, o Lesma.
Mas Mick era homem, o que significava que essa mulher era algum tipo de auxiliar
ou guarda-costas que veio acompanhando o chefe. Seu quadril balançava levemente
enquanto ela se aproximava de Serph, passando a língua excepcionalmente vermelha
nos labios e o observando de cima a baixo. Ela abriu um sorriso quando viu a marca
negra na bochecha dele.
- Entao aconteceu com voce tambem.
Serph recuou instintivamente. Nesse momento, a mulher se agachou.
Ela pulou, cruzando tres metros inteiros num unico movimento. Ainda no ar, seu
corpo foi envolvido numa aura de luz azul, na qual ela pareceu desaparecer por um
momento. Entao seus braços se estenderam de dentro daquele nevoeiro brilhante,
transformados em algo esqueletico, quase mecanico, uma coisa viva cheia de juntas que
pareciam tentaculos.
Serph rolou para fora do caminho. Luz azul voou na frente dos seus olhos e as
palavras no canto da sua mente voltaram correndo. Seu braço direito brilhou em azul e
ele o viu mudar de forma e enegrecer antes de ser envolto numa carapaça cinzenta. Sua
palma se abriu, e a lamina deslizou para fora. Sua ponta desenhou um arco no ar ao
cortar o braço-tentaculo da atacante com facilidade.
A mulher emitiu um grunhido que pareciam dois pedaços de metal se raspando, e
contorceu o braço ao cair ao chao. Ela nao era mais uma mulher a essa altura, ou sequer
humana. A forma superior do seu corpo era humanoide, mas tinha inumeras pernas
negras. Uma língua comprida e grossa, parecida com um certo orgao interno, se
esgueirou entre os seus labios para lamber a bochecha suja de sangue.
- Muito bem. – disse ela em tom de elogio – Mas voce nao vai escapar.
- E proibido lutar em Sahasrara. – respondeu a voz de Serph. O calor ardente que
se reunia na marca no seu pescoço começou a se espalhar mais, enchendo o seu corpo
inteiro de poder. Apesar de dizer isso, ele se deleitava com a hostilidade e malícia dela,
como se fosse um banho agradavel. Havia um inimigo ali. Ele podia enfrenta -lo – e
devora-lo.
- Que se dane a lei. Eu estou com fome. – as muitas pernas da criatura balançavam
enquanto ela procurava uma abertura para atacar. Suas garras raspavam o impecavel
chao branco, fazendo um som arrepiante. Apesar de ja ter perdido um dos seus membros,
nao parecia que ela ia recuar. Serph empunhou uma das suas laminas de braço, sentindo
a adrenalina do combate crescendo dentro de si, bem como uma fome tao dominadora
que dava medo. Seus olhos nao conseguiam se desfocar do líquido que escorria da perna
arrancada do alvo, e a ponta da sua língua vibrava como se ja estivesse saboreando o
gosto, sentindo o seu calor e a doçura da carne.
Havia loucura na voz da coisa que foi uma mulher.
- Eu nao sei quem voce e, mas me machucou. E vai se arrepender disso. – e pulou
em Serph de novo. Um instante depois, ele se sentiu zonzo e sua visao ficou branca.
Cegamente, levantou o braço para se defender do ataque das garras afiadas que vinham
por cima.
O ataque nunca chegou. Um cajado veio voando pelo ar, banhado em luz azul. A
mulher soltou um guincho quando ele acertou em cheio a sua cabeça e a mandou longe.
Suas pernas arranharam o chao quando ela tentou se levantar, e ela soltou outro grito
visceral.
Uma figura branca apareceu.
- E proibido lutar aqui. – disse, numa voz sem emoçao ou entonaçao.
- Um sacerdote guerreiro! – de repente, a voz da mulher se tingiu de medo, e ela
rapidamente emergiu da transformaçao.
Os sacerdotes guerreiros de branco que defendiam a Igreja eram chamados assim
por causa da armadura branca e trajes de pele que usavam, alem de elmos fechados com
visores de todos os lados, o que lhes dava um ar imponente, inescrutavel. Nas suas
ombreiras de espinhos com entalhes em preto, havia os dois aneis sobrepostos que eram
o emblema da Igreja.
O sacerdote embainhou o cajado no coldre na sua cintura, fazendo a curta capa
branca pendurada nos seus ombros balançar. Ele era uma figura imponente, cuja
radiante forma branca o distinguia imediatamente dos membros de qualquer tribo,
todos os quais eram inevitavelmente cobertos de cinza e caqui, exceto pela cor das suas
marcaçoes.
- Ambos os lados devem cessar as hostilidades. Desobediencia nao sera tolerada.
A mulher se ergueu imediatamente. Ela estava de volta a forma humana agora,
com o braço direito inteiro faltando. Seus olhos ferviam de raiva quando ela olhou para
Serph, mas ela parecia ter desistido por ora. Sangue fresco escorria entre os dedos que
pressionavam o ferimento, manchando o chao branco com gotas de vermelho. O
sacerdote guerreiro nao pareceu perceber. Voltou seu visor negro para Serph.
- Serph, líder da Embriao. – disse. Era uma constataçao, nao uma pergunta. Serph
fez que sim e voltou o seu braço transformado ao normal. A mudança veio tao facil para
ele quanto respirar, o que o surpreendeu e o fez sentir um pouco enojado ao mesmo
tempo.
A mulher engoliu em seco. Aparentemente, ela nao tinha percebido quem era a
pessoa que tinha atacado.
- Líder? – ela engasgou – Eu nao...
- Voce veio ao Templo como instruído. – disse o sacerdote, como se a mulher nem
estivesse la – A Igreja esta ciente da destruiçao dos Vanguardas. Solicitaçao concluída.
A mulher engasgou outra vez.
- Os líderes das outras tribos ja chegaram. – disse o sacerdote – Apresse-se, Filho
do Purgatorio. – ele entao deu meia volta e começou a caminhar. Enquanto o seguia,
Serph viu, do canto do olho, a mulher sair correndo, ainda sangrando pelo braço
decepado.
A Embriao tinha triunfado sobre os Vanguardas. Isso significava uma grande
mudança no equilíbrio de forças. Sem duvida a mulher estava indo repassar a notícia
para a sua tribo. Apesar de a Embriao ser uma tribo comparativamente pequena, o povo
dela provavelmente nao previa que alguem que controlava uma area inteira se
aventuraria em Sahasrara sozinho. Especialmente nao com os Solidos la.
O líder dos Solidos, Mick, o Lesma, era um homem cauteloso, um que colocava a
sua propria segurança acima de tudo – o completo oposto de Serph, que frequentemente
atuava na linha de frente de batalha. Diziam que Mick nunca saía da base da sua tribo,
em Anahata. Aparentemente, a base dos Solidos rivalizava com a da maior tribo, os
Brutos de Ajna, em termos de defensibilidade; era uma verdadeira fortaleza.
Era uma pena a tribo de Mick descobrir sobre a derrota dos Vanguardas, mas a
Igreja faria um anuncio oficial mais cedo ou mais tarde. Os Solidos so ficariam sabendo
um pouco mais cedo, agora. Sendo o líder da Embriao, Serph sabia que nao era vantajoso
deixar o inimigo ver o seu rosto, mas nao era a primeira vez que isso acontecia. Ele era
um guerreiro das linhas de frente, e nao tinha medo de ser alvejado. Era preciso tomar
cuidado, claro, mas ele sempre soube lidar com isso.
Alem do mais, Serph percebeu, a maneira como as tribos lutavam estava prestes
a mudar completamente. Ja tinha mudado, na verdade. Havia pessoas como Heat, que
receberam as novas habilidades de braços abertos. A mulher dos Solidos, ao inves de
atacar Serph com uma pistola ou faca, se transformou imediatamente para enfrenta -lo.
Ele e seus tenentes deduziram que o estranho fenomeno que acometeu a Embriao
e os Vanguardas tambem tinha afetado as outras tribos, e agora isso estava confirmado.
Armas de fogo foram completamente inuteis contra a forma monstruosa de Harley. Se
todas as pessoas do Lixao agora tinham acesso a um poder desses, as armas que eles
usaram ate agora ja estavam obsoletas. De agora em diante, os conflitos provavelmente
seriam decididos em colisoes de abominaçoes, poder contra poder.
E o vencedor devoraria o perdedor.

Serph e seu guia passaram por mais pessoas enquanto atravessavam o vestíbulo
da Igreja. Evidentemente, as tribos maiores vieram em comitivas consideraveis, que
agora estavam esperando aqui, os líderes ja tendo adentrado o santuario.
Quando o sacerdote guerreiro e Serph passaram por eles, a multidao começou a
murmurar – primeiro com cautela e deboche, e entao, depois de alguns momentos, com
surpresa e suspeita. A notícia de que ele era o líder da Embriao, e que a sua tribo tinha
derrotado os Vanguardas, estava se espalhando rapidamente.
Os que o observavam com mais atençao eram os Solidos de Anahata, todos
identificados de amarelo, e os Maribel de Manipura, de vermelho. Ambas eram tribos de
tamanho medio. Apesar de controlar toda a area de Muladhara, a Embriao era a ultima
na hierarquia das tribos. Porem, tendo derrotado os Vanguardas, agora ela regia sobre
Muladhara e Svadhisthana, o que a tornava tao poderosa quanto essas outras duas, ou
talvez ate mais. No momento, os Solidos e a Maribel estavam vivenciando um impasse
entre suas forças, e o surgimento repentino de um terceiro grupo que podia fazer frente
a eles com certeza nao era uma questao trivial.
As duas maiores tribos que disputavam o poder atualmente eram os Lobos de
Vishuddha, de branco, e os Brutos de Ajna, de índigo. As disputas entre as tribos menores
nao os preocupavam, e geralmente eles tendiam a simplesmente ignora-las, mas ate eles
se viraram para ver Serph quando ele passou, cerrando os olhos de interesse.
Certamente eles tambem informariam os seus líderes assim que voltassem.
Enquanto isso, Serph estava percebendo que a propria Igreja tinha ficado maior.
As estruturas no centro de Arya Marga tinham sido expandidas e agora contavam com
varios andares adicionais. So as partes visíveis contavam oitocentos andares abaixo do
solo e mil acima, e isso estava longe de alcançar as alturas mais altas ou as profundezas
mais profundas.
A torre se erguia de terraços aninhados, mais larga na base e afunilando para cima.
No topo da majestosa e elegante estrutura ficavam os portoes para o Nirvana, o paraíso
onde todas as esperanças e sonhos eram realizados. O dever dos Arbitros do Karma era
julgar os pecados daqueles que viviam no mundo impuro abaixo, e proteger esses
portoes ate chegar o dia em que alguem aparecesse e resolvesse o conflito do Lixao de
uma vez por todas.
- Diga, – disse Serph para o sacerdote guerreiro que o guiava – o que a Igreja pensa
sobre o que esta acontecendo? Foi ela que nos concedeu esse... Poder de transformaçao?
Essa convocaçao foi para explicar isso?
- A Igreja nao explica. – respondeu o sacerdote, como se ja esperasse a pergunta –
A Igreja so da ordens. Ela da, guia e tira: tudo pelo samsara e o caminho para o Nirvana.
Voce so precisa obedecer, Filho do Purgatorio.
Serph chegou a abrir a boca, mas nao falou nada. Seria perda de tempo perguntar
mais alguma coisa. Os sacerdotes nao passavam de paus mandados da Igreja, e nunca
falariam nada que nao tivesse sido ordenado. Percebendo isso, Serph sentiu outra
emoçao tomando o lugar do profundo respeito que sempre sentiu por eles.
O que era? Indignaçao? Revolta?
A autoridade dos sacerdotes e da Igreja a quem eles serviam era absoluta – pelo
menos, ate onde Serph sabia. Os Arbitros do Karma eram os inquestionaveis e inviolaveis
mediadores do Lixao. Quando eles davam ordens, as pessoas as seguiam sem hesitar. E
assim que sempre foi.
Mas a luta que acabou de acontecer ali em Sahasrara tinha sido mais que peculiar.
Ate agora, era impensavel sequer cogitar algo do tipo. E ainda assim a mulher se
transformou e o atacou, e ele nao hesitou nem um pouco em usar seus poderes em
resposta.
As leis estavam começando a perder força?
Serph tinha levado a mao a bochecha sem perceber, e podia sentir um
formigamento na sua estranha marca negra. Tudo tinha mudado tao drasticamente
desde que essas marcas apareceram. Ele teve a sensaçao preocupante de que o proprio
mundo tinha começado a desmoronar, e por um momento cambaleou.
Eles atravessaram um longo corredor com colunas redondas dos dois lados,
chegando finalmente ao santuario interno. O sacerdote guerreiro acendeu uma luz,
sinalizando para os dois guardas em frente a enorme porta dupla, e entao se virou para
Serph.
- Voce pode entrar. Nao se demore mais. Ja esta 163 segundos atrasado.
As portas se abriram, lentas e imponentes, revelando um elevador. Era circular,
com tamanho suficiente para apenas uma pessoa, e emitia uma luz fraca. Serph subiu na
plataforma, e ao fazer isso, ela começou a deslizar suavemente.
O tubo de transporte era iluminado por uma substancia bioluminosa azulada que
quase nao produzia sombra. Mas, ao olhar para sutil oscilaçao aos seus pes, Serph
lembrou da interface pessoal da Maquina de Disseminaçao. A luz que emanava do prato
passava a mesma impressao que o brilho daquela mascara. Talvez fosse simplesmente
porque ambas eram coisas sob o domínio da Igreja, mas alguma coisa nisso ainda era
inquietante.
Diziam que no Lixao os mortos subiam aos ceus e se tornavam a chuva, que entao
era coletada pela Igreja para renascer. Mas e se uma parte dela nao renascesse, sendo ao
inves disso usada para esses paineis, ou para o rosto da Maquina de Disseminaçao?
Serph balançou a cabeça para afastar os pensamentos ridículos. A plataforma
parou. Na frente dele estava um grande portao aberto em forma de arco. Inscrito no topo,
novamente, estava o mantra “Om Mani Padme Hum”. Ele atravessou o portao se
esforçando ao maximo para evitar olhar as palavras. Assim que atravessou e adentrou
na escuridao do outro lado, sentiu um forte formigamento na marca no seu pescoço.
Apos um momento em completa escuridao, o dispositivo de modulaçao de luz dos
olhos de Serph se ativou, permitindo que os arredores lentamente tomassem forma. Ele
mudou para o modo de visao noturna simples, que permitiu que visse que estava dentro
de um grande domo, com seis plataformas dispostas igualmente entre si. No meio,
pendurada no teto, brilhando com uma fraca luz branca, estava a Maquina de
Disseminaçao.
A interface pessoal que aparecia nas transmissoes mostrava so o rosto, mas o
sistema principal em si era composto de seis figuras humanoides, com tudo da cintura
para baixo e do pescoço para cima absorvido pela maquinaria. Cordas e cabos formavam
intricados padroes interligados, e o fino metal pulsava como algum tipo de coraçao negro.
As figuras humanoides – que na verdade eram bastante abstratas – ficavam penduradas
de cabeça para baixo como prisioneiros em jaulas de aço, seus labios negro-azulados
abrindo e fechando sem emitir um ruído. Elas eram iluminadas apenas pelas maos, que
se movimentavam para cima e para baixo constantemente, banhadas numa singela luz
azul, seguindo intrincados padroes, como se estivesse reproduzindo as formas das letras
infinitamente na escuridao.
Serph deu um passo a frente e inseriu seu anel de identificaçao no console que
havia sido preparado na sua plataforma.
- Líder da Embriao, nome pessoal Serph, codigo EM-00001A. Identidade
confirmada. – quando o sistema falou, uma tela fosca desceu na frente dele. Era muito
raro os líderes de todas as tribos se reunirem, e como a derrota de um líder significava
a derrota de uma tribo, qualquer informaçao pessoal sobre eles – incluindo seus rostos
– era considerada confidencial. Parecia, entao, que a Igreja pretendia continuar neutra
no conflito, e nao deixar os varios líderes voltarem ao seu posto com informaçao sobre
as outras tribos. Bom, tarde demais para mim agora, Serph pensou consigo mesmo.
As outras plataformas tambem tinham telas bloqueando a visao dos seus
ocupantes. So uma delas estava vazia. A plataforma que tinha sido preparada para o líder
de Svadhisthana continuava intocada, envolta em escuridao.
- Os Vanguardas ainda nao chegaram? – perguntou a voz de um homem, profunda
e ressoante e tingida de uma ligeira irritaçao. Era evidentemente um dos outros líderes.
As telas negras mantinham as plataformas escondidas em profunda escuridao; a unica
coisa que Serph conseguia identificar eram os contornos das pernas dos ocupantes. Era
provavel que todos os demais tambem podiam identificar as dele.
- Os Vanguardas foram derrotados pela Embriao. – respondeu o sistema – O líder
dos Vanguardas, nome pessoal Harley Q, codigo VA-0003H, e uma casualidade
confirmada. Svadhisthana agora esta sob o controle da Embriao. Logo, os líderes de
todas as grandes tribos estao presentes agora.
Houve apenas silencio. Ninguem ia se expor fazendo grande comoçao com o
anuncio. Mas, muito embora soubesse que ninguem podia ve-lo por tras da tela, Serph
pode sentir os olhares voltados na sua direçao. Ele ficou arrepiado.
- Bah. Isso mal faz diferença. – disse a voz de outro homem. Comparado com o
primeiro, que tinha sido claro e articulado, esse homem vazia sons molhados, vagarosos
ao falar – As brigas pateticas dos fracos nao interessam. Entao, por que nos chamou aqui,
Maquina de Disseminaçao? Deve ser algo importante.
So podia ser o líder dos Solidos de Anahata, Mick, o Lesma. Parecia que a mulher
que tinha atacado Serph de algum modo ja tinha feito a notícia chegar ao seu chefe. Ele
tornou sua identidade obvia com a bravata futil e meia-boca, e sua enorme forma
balançava embaraçosamente atras da tela.
- Nao temos nada de importante a discutir com voces.
A resposta da Maquina de Disseminaçao foi claramente algo que nenhum deles
esperava ouvir. Serph se aproximou mais da tela e se inclinou para ouvir as reclamaçoes
e clamores. Gritos de “o que significa isso?” e “explique-se!” ecoaram por todos os lados,
mas uma voz, a de uma mulher indignada, foi mais forte que todas as outras.
- O que esta acontecendo aqui, Maquina de Disseminaçao? Acha que somos idiotas?
Estamos enfrentando uma situaçao extremamente anormal. Nao foi para explicar isso
que nos chamaram aqui?
Dentre todas as tribos maiores, so uma era liderada por um mulher: a Maribel de
Manipura. A mulher que estava falando so podia ser a líder deles, Jinana.
- Quase todos os membros da minha tribo estao com uma marca estranha no
corpo que apareceu do nada. – ela continuou – Eles se transformam em coisas que nem
podem ser chamadas de humanas, e entao sao mortos pelos proprios aliados. As outras
tribos devem estar passando por isso tambem. Queremos saber o que a Igreja tem a
dizer sobre isso. Foi por isso que viemos aqui. Isso e de vontade da Igreja? Responda,
Maquina de Disseminaçao!
- Nao reconhecemos tal anormalidade no Lixao. – respondeu a Maquina de
Disseminaçao, tao casual que parecia um deboche a pergunta de Jinana – A Igreja nao
tem nada a informar a voces, Filhos do Purgatorio, e tambem nao foi de vontade da Igreja
ordenar que os líderes se reunissem aqui. Nao estamos cientes de nada. Nao ha nenhuma
anormalidade no Lixao. E impossível acontecer mudanças no Purgatorio.
- Entao por que nos...
- Eu responderei a essa pergunta. – todos os doze braços da Maquina de
Disseminaçao balançaram como que em espasmo, e agora ela falou com uma voz
completamente diferente. Era uma voz que tinha entonaçao e emoçao – bem como um
distinto ar de superioridade.
Serph deu um passo para frente quase que instintivamente, tocando a tela negra.
Um burburinho de surpresa tomou conta da sala. As seis figuras humanas se curvaram
amplamente para tras, e a fraca luz azul começou a girar rapidamente, em padroes
atordoantes.
Um momento depois, seus movimentos pararam completamente, e os rostos
abriram suas bocas num grito sem voz. As luzes, agora mais fortes, se reuniram e depois
se espalharam, e entao, de repente, os seis corpos da Maquina de Disseminaçao
tombaram como carne morta, pendurada. So os seus labios se moveram, todas as seis
bocas começando a dizer as mesmas palavras.
- Eu sou Angel. Voces me conhecem como a entidade que os guia quando pedem
ajuda aos ceus.
- Angel... – repetiu alguem, com um choque evidente na voz – E voce que controla
a Igreja?
- Se fica mais facil entender assim... – respondeu a voz, satisfeita – Nao importa.
Voces so precisam seguir as regras que estou prestes a lhes passar.
- Regras novas? – perguntou Jinana.
- Sim. Fui eu quem lhes concedeu as marcas nos seus corpos. O seu Atma.
- Atma. – alguem repetiu a palavra quase num engasgo. A voz pertencia a Mick –
Entao foi voce quem nos deu esses poderes estranhos e a habilidade de nos transformar?
- De fato. Bem como a necessidade de devorar. – Serph podia sentir o prazer que
pairava naquela voz, e isso o enojava – Atma e o poder dos demonios, bem como as suas
formas Asura. E a força vital das suas verdadeiras identidades. A medida que voces
batalharem e devorarem a carne e sangue dos derrotados, seu poder ficara mais forte.
Voces nao precisam mais de meras armas para lutar. Agora so precisam dos seus corpos
e das suas habilidades. Sua recompensa sera a liberdade dessa fome, bem como o
caminho para o paraíso.
- Va pro inferno! – uma das telas foi removida violentamente e jogada para o lado,
e de tras dela surgiu uma mulher, suas bochechas palidas inchadas de raiva. Ela tinha um
radiante cabelo verde quase na altura do ombro, e olhos da mesma cor que pareciam
brilhar. Sua bochecha e uma das pernas do seu traje estavam marcados de vermelho, a
cor da sua tribo. Ela olhava desafiadoramente para a Maquina de Disseminaçao, e quem
quer que estivesse alem dela fazendo as declaraçoes, e gritou: – Tantos dos meus estao
mortos! Sem nenhum motivo, eles se voltaram uns contra os outros, mataram uns aos
outros... E, incapazes de suportar a fome, devoraram qualquer companheiro que
estivesse ao alcance. Alguns deles estao completamente irreconhecíveis. Se essas sao as
suas novas regras, entao eu nao as aceito! O que voce estava pensando? Esta dizendo que
você fez isso com a gente? Se isso e verdade, entao eu nao te perdoo.
- Ah, voce cresceu tao rapido. Ja e capaz de proferir tais palavras de desafio. –
murmurou calmamente o ser que se denominava Angel – Mas, aceite ou nao, nenhum de
voces tem escolha, Asura. Voces vao lutar, e com isso sentirao fome. E se nao se
alimentarem, morrerao. E simples. A unica coisa que mudou foi a maneira de lutar. Os
fracos morrerao, e os fortes sobreviverao. E os portoes para o Nirvana so se abrirao para
o mais forte.
- Entao voce esta dizendo que as regras basicas nao mudaram, e isso? – alguem
perguntou nervosamente – Entao, como antes, a tribo que conseguir conquistar o Lixao
tera acesso ao caminho para o Nirvana e podera se libertar deste mundo? Basta
continuarmos a fazer o que sempre fizemos, lutar por supremacia?
- Nao, nao exatamente. Ha uma... – houve um breve momento de hesitaçao – Ha
uma condiçao adicional.
- E o que e? – perguntou Mick.
- Ha uma garota.
Quando Angel disse isso, Serph ficou tenso.
- Uma garota de cabelos negros. Ela ainda e jovem. Uma garotinha fragil de cabelos
e olhos negros. Tragam essa garota aqui. Nao a matem. Ela deve chegar aqui viva. Aquele
que conseguir conquistar o Lixao e trazer a garota de cabelos negros aqui sera o primeiro
a conhecer os portoes para o paraíso.
- Espere! – gritou Jinana – Se tudo que voce quer e essa garota, por que precisamos
desses poderes horríveis? Tire essas marcas de nos e nos faça voltar ao normal. Traga
de volta aqueles que foram devorados e nos faça esquecer tudo que vimos.
- Isso e impossível. Nao pode ser feito. – respondeu Angel, sem o menor indício de
simpatia – Voces ja experimentaram o gosto do sangue. Caso contrario, nao estariam
aqui agora. Nao ha volta para aqueles que comeram o fruto do conhecimento.
Jinana emitiu um grunhido baixo e cobriu o rosto. Serph podia imaginar
perfeitamente as coisas que ela viu. O que aconteceu com os Vanguardas muito
provavelmente aconteceu com as outras tribos tambem, uma cena brutal sangrenta
digna do proprio inferno. Serph e os outros tambem passaram por isso e, se Sera nao
tivesse aparecido naquela hora, provavelmente ele estaria como Jinana agora, preso nas
garras do medo e do arrependimento.
Não, Serph pensou. Eu provavelmente nem estaria vivo.
Serph decidiu que era hora de agir.
- E quem e essa garota? –exigiu, jogando sua tela longe e se revelando como Jinana
fez. O nevoeiro que dificultava a sua visao desapareceu, e ele pode viver Jinana ficar
claramente rígida. Parecia que so agora, ao ver outra pessoa se revelar, ela percebeu que
tinha dado informaçoes valiosas sobre si mesma para as outras tribos.
Mas ela se recuperou depressa. Disfarçando o choque momentaneo, olhou de
volta para Serph com suspeita e interesse, analisando seus cabelos e olhos prateados e
o seu corpo esguio. Ele era peculiarmente magro para um líder.
Serph olhou para a Maquina de Disseminaçao, se esforçando ao maximo para nao
deixar Jinana ler o seu rosto.
- Solicito dados detalhados sobre essa garota que voce procura. O que a Igreja quer
com ela? Uma mera descriçao da sua aparencia física limita a nossa capacidade de
procurar por ela. Qual e o nome da garota?
- O nome dela e... Nao, nao pode ser. – Angel começou a responder, mas entao se
interrompeu, e sua voz se degenerou em chiados. Por um tempo, eles so conseguiam
distinguia uma palavra, dita com severidade: Você! Angel parecia ter perdido a
compostura; seus movimentos ficavam mais erraticos enquanto murmurava. Mas suas
palavras continuavam ininteligíveis, perdidas na tempestade de chiados. A Maquina de
Disseminaçao balançava e se contorcia, mas ainda assim Serph podia sentir claramente
quem quer que estivesse do outro lado fixando um olhar frio e severo sobre ele. A marca
na sua bochecha – seu Atma – coçava.
- Entendo. – o chiado so piorava, mas mais algumas palavras escaparam por fim –
Ah, agora eu entendo... Sim. Muito bem. Entao que seja. Ele ficara... Surpreso ao saber
disso. Isso ficou muito interessante. – algo semelhante a uma risada se misturou ao
chiado.
- Do que voce esta rindo? – gritou Jinana, chegando ate a ponta da sua plataforma
– Responda as minhas perguntas, Maquina! Quem e voce? Quem e essa garota que voce
quer? Por que nos deu esses poderes? Responda! Responda, “Angel”!
- Eu nao... Preciso... Responder. E o meu tempo... Esta... – por um longo e doloroso
momento, o insuportavel chiado impediu a compreensao de qualquer outra palavra –
Meu acesso e limitado. Nao esqueçam isso: voces sao Asura, espíritos malignos que
existem para lutar. Seus Atmas sao as suas verdadeiras identidades. Lutem, matem,
devorem os seus inimigos. E impossível escapar da fome e sobreviver. E a sua fome...
Mostrara o caminho para o paraíso...
O chiado abafou a voz de Angel. Ainda continuou por mais um tempo, e entao de
repente parou. A duzia de braços da Maquina de Disseminaçao pareceu perder todas as
forças, se pendurando para baixo. O silencio que se seguiu foi quase ensurdecedor. O
unico som era o arfar de Jinana, ecoando fraco no teto do santuario.
- O sistema recebeu uma atualizaçao crítica. – a Maquina de Disseminaçao falou
de novo na familiar voz sem emoçao de sempre. Suas bocas continuaram abertas
enquanto ela erguia os braços e os abria. As pontas brilhantes dos seus dedos
começaram a desenhar novos padroes.
- A Igreja reconhece a existencia do Atma. –anunciou secamente. Jinana e Serph
continuaram completamente parados, e os outros líderes permaneceram atras das suas
telas, todos sem saber o que dizer enquanto o sistema continuava – Houve revisoes nos
metodos de luta e ao tratamento dos mortos. Concedemos permissao para acessar os
detalhes dessas revisoes, bem como os dados sobre o Atma. Os dados do Atma serao
transmitidos ao quartel-general de cada tribo. Vao agora, Filhos do Purgatorio. Ate o dia
da salvaçao.

- Bem-vindo de volta, chefe. – Cielo subiu a escada pulando, as tranças balançando,


galgando tres degraus a cada passo. Ele foi ate Serph com entusiasmo – E entao, como e
que foi? Sobre o que voces conversaram no Templo? Descobriu alguma coisa sobre a Sera?
Nos estavamos roendo as unhas aqui, nao e, Sera?
Sera apareceu nas escadas logo atras dele.
- Bem-vindo de volta, Serph. – disse. Ela parou ao subir o ultimo degrau, seus
braços cheios de cobertores, travesseiros e outras coisas estranhas que Serph nao
conseguiu identificar – alguns pedaços de equipamentos quebrados, fragmentos
brilhantes de plastico e coisas do tipo. Suas bochechas estavam vermelhas e seus olhos
brilhavam de felicidade – Estou tao feliz que voce voltou sao e salvo. Eu estava ficando
nervosa de ficar parada aqui, entao Cielo me levou para conhecer o lugar. Tem tantas
coisas fascinantes aqui, e eu ainda nem vi tudo. Depois eu posso conhecer mais?
- Claro, Sera. Depois. Cielo, onde estao os outros?
- Gale esta analisando alguma coisa como sempre. Nao sei o que. Argilla esta la
embaixo dando aula de tiro pros Novatos. E o Heat esta...
Antes que ele pudesse terminar, houve uma explosao no alto das escadas para o
segundo andar, e uma enorme bola de fogo veio voando na direçao deles. Cielo soltou
um guincho de panico e se abaixou, e Serph agiu mais rapido que o proprio pensamento,
balançando o braço direito e concentrando energia nele. O braço foi banhado de uma
suave luz azul do cotovelo em diante quando ele liberou uma rajada de vento gelado na
direçao da bola de fogo. Quente e frio se cancelaram, deixando uma inofensiva nuvem de
agua e vapor. Serph olhou para as escadas, sentindo a marca na sua bochecha coçando e
a energia pulsando pelo seu corpo.
- Maneira interessante de cumprimentar as pessoas, Heat.
- O que voce esta fazendo, seu maluco? – gritou Cielo – Podia ter machucado
alguem! A Sera esta aqui tambem!
- Nao se preocupe. Eu nao estava usando todo o meu poder. Voce se defendeu
muito bem, Serph. – Heat encontrou o olhar do seu líder enquanto descia lentamente a
escada. Seus olhos vermelhos nao titubeavam, nao demonstravam o menor sinal de
remorso. Ele nao se dignou a olhar para Cielo, cujo cabelo estava praticamente em pe.
Sera so ficou parada la, seus olhos arregalados de choque.
- E se eu nao tivesse defendido? Ou melhor, e se eu nao conseguisse defender?
- Isso era mesmo possível?
Por um momento, Serph ficou sem palavras.
- Nao. – disse por fim.
- Entao esta tudo bem. Voce reagiu como era para reagir. Nao ha nenhum problema.
– Heat passou direto por eles e seguiu para a escada que levava ao primeiro andar.
- Mas o que foi isso? Sera, ele nao te acertou, ne? – perguntou Cielo enquanto
procurava qualquer ferimento nela. Com o susto, ela tinha deixado tudo que estava
carregando cair. Ao se curvar para pegar as coisas, Cielo disse, desta vez para Serph: –
Cara, o Heat esta muito esquisito. Ele fica fazendo essas coisas com voce, tipo... Como se
diz mesmo? Insubordinaçao? Tipo, sei la, tudo bem ele ficar agindo assim? Sera que ele
esta puto com a Igreja e esta descontando assim?
- Eu... Nao tenho certeza.
- Ha? O que foi? – Cielo parou de pegar as coisas e olhou para Serph – Aconteceu
alguma coisa no Templo? Voce esta com uma cara estranha.
- Aconteceu muita coisa. – disse Serph, pegando um rolo de fita adesiva que tinha
caído perto do seu pe. Enquanto a enrolava, ouviu passos apressados vindo da escada do
primeiro andar.
- Ah, que bom. O senhor esta aqui. – Argilla apareceu na escada respirando
pesadamente, com uma arma na mao – Gale tem uma mensagem. Ele disse que a Igreja
transmitiu um arquivo de dados contendo novas leis e regras de combate. E sobre algo
chamado Atma.
- Ja? – Serph entregou o rolo para Sera, entao deu um tapinha nas costas de Cielo
e começou a andar – Vamos ver essas diretrizes que a Igreja mandou. Venha, Cielo. E
voce tambem, Sera. Parece que nos ja cumprimos um dos requerimentos para chegar ao
Nirvana sem que ninguem soubesse.

- Atma? – disse Argilla – Esse e o nome dos nossos poderes?


- Ha varios tipos diferentes de Atma. Podemos identifica-los pelas diferentes
marcas que apareceram nos nossos corpos. – explicou Gale enquanto passava as
imagens. Os outros cinco estavam sentados, iluminados apenas pelo reflexo do monitor
principal da sala de comando, seus rostos ficando cada vez mais palidos. A voz mecanica
de Gale, por outro lado, nao demonstrava sinais de desconforto – Os Atmas que sao
compartilhados por multiplos indivíduos demonstram capacidades mais fracas que os
possuídos por apenas um indivíduo ou alguns poucos. Todos os membros-chave da
Embriao possuem Atmas que provavelmente sao unicos; a documentaçao que
recebemos os chama de “Atmas Maiores”. Os outros, dos quais ha muitos casos, sao
chamados de “Atmas Menores”.
Argilla estava sem ar. Os olhos de Cielo estavam arregalados, mostrando um
choque evidente. Sera estava encolhida num banco num canto, brincando com a fita que
Serph tinha pegado, as vezes balançando a perna.
- Ainda assim, pode-se deduzir que a medida que os Atmas Menores se saírem
vitoriosos em combate e continuarem a devorar seus oponentes, ficarao mais fortes.
Todavia, pelo menos ate onde os documentos mostram, ainda ha uma diferença
consideravel entre as capacidades dos Atmas Menores e dos Atmas Maiores. Sem
considerar fatores externos e diferenças individuais, uma estimativa media indica que
um unico Atma Maior tem poder equivalente a cerca de vinte Atmas Menores.
- Entao... Tipo, na primeira vez que eu me transformei, senti como se tivesse
alguma coisa dentro da minha cabeça. – disse Cielo – Uma frase... “Om mani pada alguma
coisa. E aí alguma coisa que devia ser um nome. “Dyaus”, eu acho.
- Era o comando de ativaçao e o nome do seu Atma. Vejam. – Gale deu zoom numa
parte da tela, mostrando fileiras de varios ícones que representavam as diferentes
marcaçoes que tinham aparecido nos habitantes do Lixao e os nomes dos seus
respectivos Atmas. Na margem havia uma anotaçao com os dizeres:
Palavras de Comando: Om Mani Padme Hum

- Quando forem entrar em combate, basta se concentrarem nessas palavras que


se transformarao. Essencialmente, e como puxar o gatilho para ativar a metamorfose do
seu Atma. Se o indivíduo estiver sofrendo um estresse psicologico extremo ou fome, o
autocontrole pode ser perdido, mas em circunstancias normais, o comando pode ser
usado livremente.
- Entao, em outras palavras, nao podemos ficar com fome. – disse Cielo com um
suspiro – Tipo, esses poderes sao incríveis. Muito incríveis. Mas tambem sao muito
nojentos.
Heat parecia estar prestando pouca atençao a conversa. Ele estava encostado na
parede proximo a porta, criando pequenas bolas de fogo na palma da mao e as apagando
repetidamente. O fogo dançava no espaço entre os seus dedos como se estivesse
tentando escapar.
- Heat. – disse Serph com impaciencia – Venha aqui e escute um pouco o que Gale
esta dizendo. Isso envolve todos nos, inclusive voce.
- Nao tenho certeza se e realmente necessario, a essa altura. Eu ja estou bem
acostumado a esse poder agora – havia ostentaçao na sua voz, mas ele desencostou da
parede e atravessou a sala para sentar ao lado de Serph. Sera ficou imovel, observando-
o com cuidado.
Heat olhou para a tela. O nome “Agni” estava escrito sob o ícone correspondente
a marca no seu braço direito.
- Certo, entao o meu Atma se chama Agni. Isso significa alguma coisa?
- No momento, os significados por tras desses nomes sao incertos. Todavia, o ser
que se chamava Angel, falando atraves da Maquina de Disseminaçao da Igreja, disse que
nos eramos uma especie de demonio chamado Asura. E isso mesmo, nao e, senhor?
Serph fez que sim. Ele tinha contado a Gale tudo que aconteceu no Templo. Tudo
exceto a sensaçao de que Angel de alguma forma estava olhando diretamente para ele,
apesar do fato de ser essencialmente uma voz desencarnada. Aquela experiencia em
particular nao parecia relevante para a situaçao em maos. E a verdade e que ele estava
com medo de falar a respeito. Ele nem tinha certeza do que causava tal sensaçao. Ele so
sabia que aquela voz, nem masculina nem feminina, com sua risada de deboche, o deixou
extremamente desconfortavel.
- Tambem nao temos como confirmar o significado dessa informaçao. Todavia,
“Asura” parece ser um nome usado para se referir a um tipo, ou talvez tipos, de Atmas,
com alguma conotaçao especial.
- Entao eu sou Dyaus, Argilla e Prithvi... – Cielo contava nos dedos – Heat e Agni,
Gale e Vayu e voce e Varuna, chefe. – ele coçou a cabeça – E muito nome. Vai ser difícil
lembrar tudo.
- Varuna e o deus da agua. – disse Sera de repente. O grupo todo se virou para ela
num estalo, como se tivessem ate esquecido que ela estava ali. Ela se assustou com a
atençao repentina, mas se recompos e continuou – Ele e um deus hindu muito antigo,
aquele que mantem o Rta, a ordem natural e as leis do universo. Agni e o deus do fogo,
que queima tudo que e impuro com as suas chamas purificadoras.
- O que e “hindu”? – perguntou Cielo, mas Sera pareceu nao ouvi-lo.
- Vayu e o deus do vento, mestre do ar e das tempestades. Prithvi e Dyaus estao
entre os deuses mais antigos, Mae-Terra e Pai-Ceu. Todos esses nomes sao de poderosos
deuses hindus. Nao sao demonios.
Os outros a olhavam com rostos surpresos, e Sera se encolheu no banco. Ela se
virou para Serph:
- O que foi? Eu disse alguma coisa estranha?
- Sera, como voce... Nao, esqueça. – Serph sabia que nao adiantaria perguntar.
Alem do mais, o significado por tras daqueles nomes nao importava agora. O que
importava e que esse era o novo metodo de luta que foi imposto a eles. Eles precisavam
estar prontos para se adaptar a situaçao.
Serph pediu para Gale abrir as especificaçoes dos Atmas de todos.
- Varuna e capaz de reduzir a temperatura do ambiente ao seu redor para abaixo
de zero instantaneamente. – disse Gale, apertando uma tecla – Isso permite que o vapor
atmosferico seja usado como arma, e tambem pode ser usado para ferir oponentes
proximos congelando a agua dentro dos seus corpos. Ambos os seus braços sao
equipados com laminas feitas de um material que parece ser osso modificado. Essa
substancia possui dureza equivalente a ceramica de carbono de alta densidade.
- Gale, e eu? – perguntou Cielo. Ele parecia parcialmente curioso e parcialmente
amedrontado.
- A principal característica de Dyaus e a capacidade de voo.
Cielo soltou um pequeno assobio.
- Eu posso voar...
- Em tese, voce pode voar em velocidades de aproximadamente duzentos
quilometros por hora. Alem disso, possui o poder de manipular as ondas
eletromagneticas presentes no ar. Em termos praticos, voce pode usar relampagos para
atacar os seus oponentes.
Gale continuou a passar as informaçoes, lendo-as no seu tom indiferente.
- Agni e o completo oposto de Varuna, capaz de elevar a temperatura ao redor a
níveis extremos instantaneamente. Alem da habilidade obvia de usar bolas de fogo como
armas, ele pode incendiar a carne dos oponentes proximos e despedaça -la.
Os labios de Heat formaram um discreto sorriso e ele se deu ao trabalho de criar
uma bola de fogo na palma da mao, balançando-a um pouco antes de esmaga-la, gerando
uma chuva de faíscas.
- O meu Atma, Vayu, controla a pressao atmosferica. Com isso, eu sou capaz de
comprimir o vento de modo a usa-lo como arma. Tambem posso manusear um pequeno
vacuo localizado como uma lamina. Embora nao seja capaz de voar como Dyaus, parece
que o controle da pressao atmosferica de Vayu o permite planar. Por fim, temos Prathvi,
que e capaz de manipular a gravidade. A principal utilidade disso e aumentar a massa
de um oponente ate um ponto em que ele nao suporte mais o proprio peso, ou
concentrar uma distorçao gravitacional extrema num unico ponto para...
- Pare! – gritou Argilla, tapando os ouvidos. Gale olhou para ela, sem expressao.
- Por que nao quer ouvir, Argilla? Essas sao as armas que recebemos. Como
membro da tribo, voce deve conhecer as suas especificaçoes e metodo de aplicaçao.
- Eu sei disso. – ela disse – Eu sei disso, mas... – ela respirou fundo varias vezes e
entao colocou as maos de volta na mesa, os dedos ainda tremulos – Mas o que é tudo
isso? O que e? Eu estou ouvindo voces falarem desses poderes como se devesse
simplesmente entender e aceitar tudo isso. O que eu quero saber e o que sao esses Atmas
e como me livrar deles.
- Atmas sao os novos poderes que recebemos. Sao nossas armas para lutar. Pense
neles como equipamentos novos. Precisamos entende-los e dominar o seu uso. Serph ja
explicou as novas regras passadas pela Igreja.
- A Igreja pode ir se foder. – disse Argilla, e entao logo levou a mao a boca em
choque com o que tinha acabado de dizer – Espera, nao, eu nao pretendia...
- Esta tudo bem, Argilla. Todos voces, escutem. – Serph sabia que era hora de ele
fazer alguma coisa. Levantou a mao para impedir Gale de dizer o que quer que fosse
dizer – Desde o incidente na batalha com os Vanguardas, mais algum de voces sentiu que
alguma coisa estava diferente por dentro? Nao me refiro apenas ao Atma. Estou falando
dos seus... Sentimentos.
Ele teve dificuldade para processar a palavra “sentimentos”, e mesmo quando a
disse, ela pareceu estranha aos seus ouvidos.
- E, e isso! – gritou Cielo, se levantando – Como voce sabia, chefe? Desde entao,
tudo parece tao mais claro. E tipo, parece que eu posso ver as coisas muito melhor agora,
e como se eu as estivesse vendo de verdade pela primeira vez. Entao... Todo mundo esta
sentindo isso tambem?
- Se com “claro” voce quer dizer “vazio”, eu nao vi mudança nenhuma. – disse Heat.
- Ah, cala a boca, Vermelho. Por que tudo tem que ser tao difícil com voce? –
respondeu Cielo – De todo modo, e tipo, parece que tem um monte de coisas que eu
consigo pensar muito melhor agora. Eu estava preocupado que alguma coisa estranha
estivesse acontecendo comigo, entao fico feliz que voce sinta o mesmo, chefe.
- Eu tambem senti. – Argilla adicionou rapidamente – Como a minha revolta agora
ha pouco, por exemplo. Como o Cielo disse, parece que tudo esta tao mais claro agora.
Ate agora, eu nunca duvidei da Igreja, mas... – ela engoliu em seco, hesitando um pouco
antes de juntar coragem para continuar – Na minha concepçao, eu quero mais e que a
Igreja va a merda. Eles nos dao esses poderes que nao pedimos, e agora estao nos
obrigando a... Comer pessoas. Como eu poderia aceitar isso sem questionar?
- Eu nao vivenciei nenhuma mudança específica. – disse Gale – Continuo o mesmo.
- Eu ja imaginava que voce nao entenderia, Gale.
Gale direcionou um olhar frio para Argilla, e entao voltou para o monitor nas suas
maos.
- E quanto a voce, Heat? – perguntou Serph – Sentiu alguma coisa?
- Fala serio, voce sabe o quanto essa pergunta e idiota. Eu sempre vou ser eu. Se
esse poder... – ele levantou uma mao com a luva chamuscada de tanto conjurar chamas
– Se essa coisa chamada Atma e o que nos realmente somos, entao nada mudou. Nos
lutamos e vencemos. Isso e tudo. Nao ha nada de estranho nisso.
A marca de bola de fogo no seu braço direito brilhou na cor do sangue. Um sorriso
cruel e faminto se formou nos seus labios, e Serph teve de desviar o olhar.
Uma feiçao de curiosidade apareceu no rosto de Argilla.
- Ha algum motivo para o senhor ter perguntado isso? Aconteceu alguma coisa em
especial? – ela perguntou.
Serph fez um breve resumo do seu confronto com a membro dos Solidos no
Templo.
- Mas Sahasrara e sagrada. Como ela pode te atacar? – perguntou Cielo – Isso
simplesmente nao e possível.
- E mesmo assim eu fui atacado. – disse Serph – Se o sacerdote guerreiro nao
tivesse intervisto, teríamos lutado pra valer. A inviolabilidade das leis esta começando a
ruir. O aparecimento do Atma e essas novas leis que foram aplicadas estao causando um
caos sem precedentes. – ele pausou por um momento e entao continuou – Nos mudamos.
Isso e obvio e inegavel. Mas eu acho que o proprio Lixao esta começando a mudar
tambem. E muito provavel que vejamos esse tipo de lutas antes impensaveis
acontecendo cada vez mais. Mesmo os poderes do Atma que recebemos nao vao
continuar os mesmos para sempre. Se o que Angel, ou quem quer que seja, disse for
verdade, aqueles que devorarem os outros ficarao mais fortes. Isso significa que os fortes
ascenderao ao topo consumindo os fracos.
- Nao. Eu nao. – Argilla balançava a cabeça em negaçao – Eu nao vou matar e comer
pessoas. Eu me recuso.
- Bom, se voce nao comer, vai morrer. – disse Heat – Pra piorar, provavelmente vai
ficar louca e fora de controle primeiro, e aí um de nos vai ter que te matar. E matar ou
ser morto. A escolha e sua.
- Cala a boca, Heat. – grunhiu Cielo – Voce esta me dando vontade de vomitar.
Argilla suspirou enquanto mergulhava o rosto nas maos. O silencio tomou conta
da sala.
- Vai ficar tudo bem. – disse Sera, numa voz confiante e imponente. Os olhos de
Argilla se abriram num salto, como se ela tivesse levado um tiro. Cielo tambem deu um
pulo, se virando para ela com olhos arregalados. Sera falava com o rosto corado,
apertando com força o rolo de fita que tinha nas maos – Enquanto eu estiver aqui,
nenhum de voces vai se transformar num demonio. Eu vim aqui para ajudar a todos. E
por isso que eu estou aqui. Nao importa o que aconteça, eu vou ajudar voces.
- Sera... – Argilla correu ate a garota de cabelos negros, envolvendo-a num forte
abraço – E verdade. Nos temos Sera. E graças a ela que nao comemos uns aos outros, que
nao atacamos uns aos outros como os Vanguardas e as outras tribos fizeram. Ela vai nos
salvar.
- A captura dela e um dos requerimentos para ascender ao Nirvana. – disse Gale
estoicamente – E provavel que as outras tribos nao tenham ciencia da presença dela aqui.
Isso nos da uma vantagem sem igual. Nos tambem temos o sangue dela, que e capaz de
desativar o Atma de um indivíduo a força.
- Espere, espere. – disse Argilla, se virando na direçao de Gale – Do jeito que voce
esta falando, parece que pretende usar o sangue de Sera como arma.
- Tudo indica que e possível.
- Ei, ei, ei. Nao mesmo. – se opos Cielo – Nao vamos sugar mais sangue dela pra
usar como arma. Ela ja esta muito debilitada. Se perder mais sangue, pode morrer!
- A sobrevivencia dela e essencial para entrar no paraíso. Se formos tirar sangue
dela, sera apenas o mínimo, de modo a nao afetar sua saude.
- Mesmo assim! Eu suou totalmente, 100% contra isso! – Cielo parou do lado de
Sera, oposto ao de Argilla, e colocou o braço em volta da garota, balançando a cabeça tao
enfaticamente que suas tranças pareciam um borrao azul. Gale apenas olhava friamente
para os dois.
- Acho as suas objeçoes difíceis de compreender. Prevalecer nesse conflito e uma
necessidade categorica. Nosso objetivo e sobreviver e ser vitoriosos, para podermos
alcançar o Nirvana. Temos de fazer isso usando quaisquer meios. Nas proximas batalhas,
o sangue dela sera uma arma esmagadoramente eficaz para neutralizar as capacidades
de combate dos nossos inimigos – um recurso que devemos usar sem hesitar. E a unica
escolha.
- Gale, voce nao acha que manter a existencia dela em segredo seria uma tatica
melhor? – Serph simpatizava com os sentimentos de Argilla e Cielo, entao apelou a logica
do bispo – Se usarmos uma arma que e capaz de neutralizar o Atma dos nossos inimigos,
eles vao querer saber como conseguimos desenvolve-la. Sera so questao de tempo ate
descobrirem que temos Sera. Se o nosso objetivo e mante-la segura ate o fim enquanto
lutamos para derrotar as outras tribos, entao ainda estamos em desvantagem, ja que
temos poucos membros. Devíamos evitar qualquer movimento que exponha
desnecessariamente o fato de que ja conseguimos cumprir um dos requerimentos-chave.
- Entendido. – disse Gale apos um momento – Seu raciocínio e logico, senhor.
Retiro a minha proposta. – Serph sentiu um estupor de alívio antes de Gale continuar –
Sendo assim, devemos considerar colocar a garota em confinamento de segurança
maxima. Sera preciso um cuidado minucioso para manter a presença dela aqui em
segredo. Uma ordem de silencio deve ser imposta a tribo, e ela jamais deve sair da base.
As outras tribos provavelmente ja começaram a procurar por uma garota de cabelo preto.
Ha um alto risco de ela ser descoberta caso saia.
- Nao vamos prender Sera. – disse Serph, interrompendo Cielo e Argilla, que ja iam
começar a protestar – Obviamente, nao vamos deixa-la sair dessa area, e nos
certificaremos de que ela fique dentro da base o maximo possível, mas um confinamento
total provavelmente causaria um efeito negativo tanto no seu bem-estar físico quanto
psicologico. Nos precisamos leva-la para a Igreja em perfeitas condiçoes. Precisamos
evitar qualquer coisa que a afete negativamente, Gale.
Gale cerrou os olhos quase imperceptivelmente.
- Entendido. Entretanto, ha algumas falhas na sua logica, senhor...
- Talvez. – Serph estava ficando cansado rapidamente da conversa – Mas nao
vamos prender Sera. Isso e uma ordem. Ela podera se locomover livremente dentro da
nossa base. Naturalmente, vamos mante-la sob observaçao. E, com relaçao a segurança
das informaçoes, ela nao podera entrar em nenhuma area considerada de risco. Cielo.
- Sim, chefe?
- Quero que voce seja o responsavel pela segurança de Sera. Argilla e quaisquer
outros membros da tribo estao a sua disposiçao, mas nao mencione nada sobre o sangue
de Sera para eles. Isso e algo que eu quero manter entre nos cinco. Quanto a Sera ser
uma das condiçoes para alcançar o Nirvana... Eles vao descobrir mais cedo ou mais tarde,
entao nao ha por que esconder.
- Entendido! – Cielo sorriu de orelha a orelha, entao deu um tapinha na orelha de
Sera, que estava parada la com cara de susto – Isso nao e otimo, Sera? Viu, esse e o nosso
chefe! Ele e muito mais inteligente que o Gale!
- O que sera que a Igreja quer com uma garota como voce? – Argilla olhou
carinhosamente nos olhos de Sera – Esse “Angel” nao disse mesmo pra que precisava
dela?
- Assim que eu pedi mais informaçoes, a transmissao foi interrompida.
- Que garotinha misteriosa. – Argilla puxou Sera para perto e deu um beijo suave
na sua testa – E estranho. A Igreja nos deu esse poder chamado Atma. Sera e capaz de
neutraliza-lo. Mas ela mesma nao tem um Atma. Nem nenhuma outra maneira de lutar.
– ela falava quase em devaneio – Sera que na verdade ela caiu do Nirvana? Aposto que la
nao existe Atma. Ninguem devora ninguem, ninguem precisa lutar com ninguem e todos
sao gentis e amaveis, como a Sera.
Heat deu uma bufada quieta, tao quieta que Serph foi provavelmente o unico a
ouvir. Argilla, enquanto isso, ignorando o desprezo dele, continuava a olhar para a garota.
- Eu quero chegar la, senhor. Farei o que for preciso. Eu juro que vou te proteger,
Sera. Voce e a nossa unica esperança.
Sera parecia prestes a responder, mas de repente o seu rosto ficou triste e ela
desviou o olhar.
- Bom, entao o que voce esta dizendo – disse Heat – e que nada mudou. Ainda
estamos tentando chegar ao Nirvana. Temos que lutar e vencer para tomar o controle do
Lixao e nos elevar acima das outras tribos. Esse e o nosso objetivo, assim como sempre
foi.
- E o que parece. – disse Serph, se levantando. Ele estava exausto – Vamos deixar
o planejamento da nossa estrategia para amanha. Cielo, me envie uma lista dos
candidatos a proteger Sera assim que possível. E Gale, quero que voce coloque aquela
ordem de silencio em pratica agora mesmo.
Gale fez que sim e logo se voltou para o seu monitor. Sera, espremida entre Argilla
e Cielo, olhou para Serph com os seus límpidos olhos negros. Ela parece estar prestes a
chorar, ele pensou, e entao se perguntou se nao estaria imaginando coisas.
- Nos reuniremos de novo em doze horas, as 08:30 HS. Voces estao livres ate la.
Descansem e preparem-se para amanha. A batalha esta prestes a se tornar muito
diferente. Isso e tudo. Dispensados.

Apesar de ter dito aos outros para descansarem, Serph se pegou incapaz de fazer
o mesmo. Desde que voltou ao seu quarto, tudo que fez foi se revirar de um lado para o
outro na cama. Ele podia ouvir o som dos proprios batimentos quando deitava a cabeça
no travesseiro. A cor do sangue tomava conta da sua mente, e embora o enchesse de
desgosto, tambem ativava um desejo doentio. Ele estava longe do calor do combate,
entao a sensaçao era sutil, mas era suficiente para trazer de volta a lembrança das coisas
infernais que viu acontecer com os Vanguardas.
Ele piscou para mostrar a hora no monitor do seu olho. Mal podia acreditar que
so tinha se passado um dia desde a ultima batalha na fronteira com os Vanguardas.
Parecia que tinha acontecido ha anos. Era como se tudo que ele ja vivera tivesse
simplesmente desaparecido e ele fosse de novo um Novato que tinha acabado de
atravessar os portoes da Igreja, sentindo-se fraco e indefeso.
Nao, Novatos nao sentiam. Pelo menos, nao ate agora. A palavra “sentir” nem era
relevante para eles. Agora que pensava a respeito, Serph nem tinha certeza se era capaz
de explicar o significado de palavras como “sentir” ou “pensar”. O que elas significavam?
Como Gale colocaria, “Que comportamentos essas palavras representam? Suas definições
são imprecisas. Por favor, use uma terminologia mais específica.”
Era tudo tao desorientador. As açoes incompreensíveis da Igreja. A intervençao do
ser chamado Angel. Atma. A fome. E, claro, Sera, a garota de cabelos negros.
Ele desativou o relogio e cobriu a cabeça. Se fechasse os olhos e parasse de pensar
nisso, talvez conseguisse pelo menos cochilar um pouco. Estava cansado demais. Nao
precisava de uma avaliaçao medica para saber que estava mais que exausto, tanto física
quanto mentalmente. E como era o líder de uma tribo, ficar exausto nao era apenas uma
simples inconveniencia para ele. Era um atraso para a tribo inteira. Ele precisava dormir
um pouco, de qualquer jeito.
E quando se deu conta, estava correndo pelo campo de batalha.
Isso o surpreendeu um pouco, mas nao completamente. Sua visao estava
estranhamente nublada, e a maior parte do que podia ver a frente eram as costas de
outro homem. As marcaçoes pintadas na sua armadura eram laranjas, a cor da Embriao.
Quem quer que fosse, era muito mais musculoso que Serph, e mais alto tambem, com
cabelos ruivos compridos amarrados em tranças que iam ate o meio das costas.
O proprio Serph segurava uma pistola enquanto corria atras do outro homem. Os
sons de uma batalha acirrada ecoavam ao longe. Minas terrestres explodiram, e um
contingente de tanques que vinha na direçao deles foi engolido em chamas. Ele nao
lembrava onde estava ou o objetivo da batalha, mas isso nao era importante agora. Tudo
que ele tinha de fazer era seguir o grande homem a sua frente.
Um pouco mais a frente, ele visualizou outro homem ruivo. Serph o reconheceu
como Heat. O soldado de choque carregava um lança-granadas sobre o ombro, e atirou
num dos tanques que tinha escapado da explosao de antes. Com a unidade de direçao
atingida, o tanque fez uma meia volta, e as suas esteiras, ja danificadas, pararam por
completo. O homem na frente de Serph olhou para tras e fez um sinal com a mao. Serph
correu para frente, alcançando o topo do tanque num unico salto.
O canhao do tanque girava, inutilmente procurando o seu agil oponente. Serph
enfiou uma mini granada no cano, e entao rapidamente pulou para tras e se protegeu
atras do veículo. Uma poderosa onda de choque tremeu dentro do tanque. Serph esperou,
sabendo que o calor aumentaria dentro da armadura a prova de fogo.
Alguns momentos depois, a escotilha abriu e um soldado saiu cambaleando,
coberto de fogo dos pes a cabeça. Serph se levantou silenciosamente e enfiou uma unica
bala no cranio do homem. Jogou o corpo para o chao e entao executou o proximo soldado
que emergiu do mesmo jeito que o primeiro. Usou uma faca para cortar a garganta do
terceiro e ultimo homem. Sangue jorrou como se Serph tivesse cortado uma mangueira.
Deixando o corpo semi-decapitado no tanque, pulou de volta ao chao.
O tanque estremeceu e morreu. Do outro lado do campo de batalha, Heat
descartou o lança-granadas e seguiu na direçao de Serph. O outro homem ruivo tinha se
posicionado numa trincheira que o inimigo tinha cavado ali perto. Mirou com o seu rifle
e começou a dizimar um grupo de tropas inimigas que se aproximava. O sistema de
comando nao estava funcionando muito bem. O inimigo parecia estar perdendo, mas era
lento em recuar. Como nao havia chegado nenhuma ordem de cessar fogo, significava
que o líder da tribo nao tinha sido abatido ainda. Parecia que os dois lados estavam no
limite. A batalha podia terminar de qualquer jeito. Serph mergulhou na trincheira e
olhou para o ruivo de rifle em busca de orientaçoes.
O homem se virou para ele. Seus labios se moviam, mas Serph nao conseguia ouvir
o que ele dizia. Em verdade, Serph tinha a estranha impressao de que o seu companheiro
de alguma forma era imaterial. Uma bizarra sensaçao de impaciencia borbulhava dentro
dele. O que ele estava dizendo?
Os labios do homem se moveram mais uma vez, mas, novamente, Serph nao
conseguiu ouvir nada. Ao inves disso, sentiu a cabeça girar, seguido de uma certeza de
que sabia o que ia acontecer depois. O medo que veio com isso apertou o seu coraçao
como uma mao de gelo. Seu companheiro se virou e começou a sair da trincheira. Serph
tentou gritar para ele parar, mas sua língua parecia presa dentro da boca, e nada saiu. Ao
inves disso, seu corpo se moveu sozinho, seguindo o homem para fora do esconderijo.
O ceu de magenta causava nauseas de tao brilhante. Havia pilhas de corpos e
poças de sangue por toda parte. Tanques jaziam virados. O cheiro de metal chamuscado
e oleo queimando impregnavam o ar. E havia as costas daquele homem de ombros largos,
que ainda corria na frente dele. Eles correram por uma eternidade. Serph nao podia
deixa-lo ir. Nao podia deixa-lo se afastar.
Um tiro ecoou. O homem grande na frente dele tombou para frente como se
tivesse levado um soco na barriga. Serph o viu cair com uma clareza inacreditavel, como
se o tempo tivesse parado, a cena avançando quadro a quadro, instante a instante.
Heat balbuciou alguma coisa. Alguem deu um grito assustador. So quando acordou,
um momento depois, Serph percebeu que o grito foi dele mesmo.

Serph nao queria mais ficar na cama. O monitorador automatico de saude do seu
quarto recomendava que ele tomasse uma dose de pílulas para dormir, mas ele nao
achava que isso serviria como um descanso de verdade. Cansado de olhar para a tela que
piscava incessantemente, vestiu sua jaqueta e saiu do quarto para andar sem rumo pela
base durante o silencio que vinha com a Hora de Sombra.
Com exceçao dos sentinelas de plantao, todos pareciam estar tirando o descanso
que o líder ordenou. Vez ou outra ele passava por um soldado e trocava um cumprimento,
e isso o fez pensar em ha quanto tempo estava ali. Quando a Embriao estabeleceu esse
lugar como sua base, a tribo tinha apenas dois membros: Serph, o líder, e Heat, seu unico
seguidor, seu braço direito. E agora eles controlavam Muladhara e Svadhisthana, o que
significava que, alem de ter mais companheiros, eles tinham duas areas inteiras no seu
currículo. Era o suficiente para coloca-los no nível de tribos de tamanho medio, como a
Maribel e os Solidos.
E o nome, Embriao. Quando relembrou sua origem, Serph sentiu uma pontada de
nostalgia. Foi escolhido por alguem que, por bastante tempo, nao fez nada de especial
no Lixao. Ele agia sozinho, como um soldado mercenario, vagando de um campo de
batalha a outro, sem se prender a nenhuma tribo. Ele nunca viu necessidade de nomes
para as tribos, mas, quando decidiu adotar Serph e Heat, ainda Recem-Nascidos, sob os
seus cuidados como seus subordinados, a lei da Igreja exigia algum tipo de nome-codigo
para formalizar a fundaçao da tribo.
A lei era que, se mais de duas pessoas fizessem uma aliança para lutarem lado a
lado regularmente, automaticamente eram consideradas uma tribo. O homem que
nomeou a Embriao passou a vida inteira vendendo suas habilidades para qualquer um,
ate que, pela primeira vez, decidiu formar a sua propria tribo de tres membros. Agora,
tudo que restava do que ele deu a Serph e Heat eram as marcaçoes laranjas nos seus
uniformes e o nome Embriao. Isso e a perícia e conhecimento tatico que os havia
imbuído minuciosamente, que os permitiu sobreviverem no campo de batalha.
Os pensamentos de Serph pesavam violentamente sobre ele enquanto subia por
uma serie de elevadores dos predios debilitados ate o topo maximo da base.
De la ele podia ver o Templo claramente. Olhou para o ceu cinza da Hora de
Sombra, cortado por feixes oscilantes de luz esmeralda que pareciam correr ate o
infinito. As silhuetas desordenadas das ruínas do Lixao se misturavam com a sutil curva
do horizonte, que era borrada por uma luz verde e azul. No meio de tudo, ficava o Templo,
banhado no branco radiante dos seus farois. Mesmo dessa distancia, a estrutura
transmitia uma beleza embasbacante. Mas o topo da longa e elegante torre desaparecia
na escuridao acima, intocavel. Aquele era o caminho para o paraíso.
A chuva de prata caía. A chuva dos mortos. Serph saiu do elevador e correu os olhos
pelo telhado. Havia um pedaço de concreto parcialmente demolido ali perto, e ele
percebeu alguem encolhido atras dele. So as pontas de duas botas eram visíveis.
- Quem esta aí? – ele perguntou.
As botas rapidamente se encolheram para fora de vista. Por um momento, Serph
nao pode ver nada nas sombras. Entao uma cabeça e um rosto apareceram, olhando para
ele – olhos temerosos com uma franja negra e molhada caída sobre o rosto.
- Sera? – perguntou Serph, surpreso – Por que nao esta na cama? Argilla nao
preparou um quarto para voce?
Sera fez que sim com a cabeça, murmurou alguma coisa sobre nao conseguir
dormir e enrolou os braços em volta dos joelhos, se encolhendo atras do concreto de
novo. Serph caminhou rapidamente para evitar a chuva e se enfiou debaixo do pedaço
de escombro, que funcionava como teto improvisado. Sera parecia agitada, como se
esperasse algum tipo de bronca, mas quando ele apenas sentou la, olhando para ela em
silencio, ela deixou escapar um pequeno suspiro e deixou a tensao de lado. Por um tempo,
ninguem falou nada.
A chuva continuava caindo, formando leitos prateados que corriam para a vala de
drenagem como raízes de mercurio. O ceu cinzento e os pontos de luz esmeralda que
dançavam nele eram refletidos no brilho metalico.
- Voce deve ter gostado disso. – disse Serph, vendo que Sera ainda estava
segurando o rolo de fita de antes. Era uma fita adesiva comum que ela encontrou no
deposito. Cabia facilmente na palma de uma mao, mas Sera segurava firmemente com as
duas.
- Tal e o mundo. – ela respondeu, passando o dedo pelo círculo interno do rolo. Ela
começou a murmurar numa voz baixa, quase em tom de melodia:

Tal é o mundo:
Rolar, correr,
Subir, descer.
Vidro rotundo,
Sonoro e oco,
A pouco e pouco
Fendas a abrir.
Aqui brilhante,
Lá coruscante,
Sempre cambiante,
Sempre a fugir.
Fala-te um ente,
Qual tu vivente,
Qual tu mortal.
Evita, amigo,
Esse inimigo,
Mundo fatal.
Crê-lo maciço,
E é quebradiço,
Como cristal.
- O que e isso?
- Fausto, de Goethe.
O rosto da garota estava estranhamente inexpressivo enquanto ela falava, como
se a sua mente estivesse completamente paralisada. Ela olhava para a frente com olhos
vazios, sem foco. Se nao fosse pela sua quieta resposta, Serph poderia jurar que ela nao
tinha ouvido a pergunta. Entao seus dedos ficaram negligentes, e o rolo caiu da mao,
rolando pelo chao ate algum canto, fora de vista. Sera nao mostrou interesse em
recupera-lo; apenas manteve as maos penduradas e languidas.
- Nao tem sol aqui, ne? – ela suspirou.
- Refere-se a algum tipo específico de solo?
- Nao tem lua tambem. – ela continuou, ignorando a pergunta de Serph – Mas, me
pergunto se aquelas coisas brilhantes seriam estrelas.
Serph nao fazia ideia do que ela estava falando.
- Nao sei o que sao “estrelas”, mas dizem que esses brilhos verdes que aparecem
durante a Hora de Sombra sao a luz dos mortos que subiram ao ceu para cair como chuva.
- Nao e “Hora de Sombra”. E noite. A palavra e noite. – disse Sera com firmeza – E
nao e Hora de Luz tambem. E dia. A noite, a lua aparece e as estrelas brilham. Entao, de
manha, o sol nasce e as nuvens correm pelo ceu azul. As vezes chove, mas depois aparece
um arco-íris. Manha, tarde, noite e depois manha de novo.
- Nao faço ideia do que voce esta falando. – Serph se perguntava de onde a garota
tinha tirado todas aquelas ideias estranhas – Existe uma Hora de Sombra e uma Hora de
Luz. Todo mundo sabe disso. O que sao essas coisas chamadas “sol” e “lua” que voce esta
falando?
- Ambos ficam no ceu. Sao brilhantes e lindos. E sao quentes e... – entao ela parou,
como se de repente tivesse ficado sem palavras. Fechou os olhos e, depois de alguns
momentos, deixou escapar um suspiro pesado – Eu nao sei. – disse.
- Sera. – Serph falou num impulso repentino – Voce ja viu coisas acontecerem
quando esta dormindo? Como lembranças do passado, de muito, muito tempo atras... Ou
imagens de pessoas que ja se foram?
- Isso sao sonhos. – disse Sera de uma vez – Enquanto dormimos, as coisas que
armazenamos no nosso subconsciente, como lembranças, preocupaçoes e ansiedades,
se manifestam como se fossem reais, seja de maneira concreta ou como símbolos mais
abstratos. E uma coisa normal que a mente faz. –olhou para Serph – Por que, voce teve
um sonho?
Serph olhou para as suas maos abertas. Elas tremiam um pouco. Foi preciso um
pouco de esforço para fecha-las e deixa-las firmes. A palavra “sonho” se desfez em po, se
misturando aos pequenos fragmentos de imagens que viu antes de acordar. Sim, um
sonho. Um sonho com ele. Um sonho sobre o dia em que ele morreu...
- Que tipo de sonho foi? – aqueles grandes olhos negros estavam voltados para ele
– Era um sonho com alguem específico? Alguem que ja morreu?
- Era o nosso antigo líder. Meu e do Heat. – ansiosamente, ele abriu o punho, entao
o apertou de novo quando se forçou a falar. Em algum lugar da sua cabeça, havia uma
fraca, mas desagradavel pontada, e ele sentiu um peso frio na barriga – Na epoca em que
Heat e eu ainda eramos Novatos, foi ele quem nos adotou e nos treinou. Ate entao, ele
nunca tinha feito parte de nenhuma tribo, e tambem nunca tinha fundado uma. Ele
provavelmente seria capaz de reunir uma força grande o bastante para rivalizar ate os
Brutos, mas nao se interessava por isso. Ele so lutava como mercenario, quando
precisava de comida ou suprimentos, nunca favorecendo uma tribo ou outra. Ate que
adotou Heat e eu.
Sera abriu mais os olhos.
- Isso nao e estranho? Digo, lutar sozinho.
- As pessoas do Lixao lutam para chegar ao paraíso. Para alcançar o Nirvana,
atraves do caminho de salvaçao estabelecido pela Igreja. Os portoes do Nirvana so serao
abertos para a tribo que controlar o Lixao inteiro. Ninguem jamais conseguiria controlar
tudo sem pertencer a uma tribo. Lutar sozinho, sem o objetivo de conquistar alguma
coisa, e o mesmo que virar as costas para a salvaçao oferecida pela Igreja. Uma vida sem
sentido que so conseguiria acumular mais karma.
- Voce acha que foi sem sentido? – a voz dela saiu estranhamente sem emoçao, o
que pareceu deixa-la mais autoritaria – O que ele, o seu líder, pretendia, lutando sozinho
assim?
- Nao. – foi uma resposta nascida do reflexo. Serph ficou surpreso com a pura força
e determinaçao da sua voz. So depois que a palavra ja estava fora da boca ele percebeu
a sua propria convicçao – Nao. – ele repetiu, entre dentes rangidos – Do ponto de vista
do Lixao, sim, com certeza o que ele estava fazendo era sem sentido, mas para ele nao
era. Para ele, acho que a Igreja e a promessa do Nirvana e que eram sem sentido. Tudo
que importava para ele era lutar e sobreviver.
- Entao por que ele quis voce e Heat como seus companheiros?
Serph balançou a cabeça. Se pelo menos ele estivesse vivo, pensou. Quando ele e
Heat ainda eram Recem-Nascidos, passaram incontaveis horas na companhia do seu
mentor, mas Serph nunca soube porque o homem os adotou depois de passar tanto
tempo sozinho. Por que, dentre todos os Recem-Nascidos que podia ter escolhido, foram
Serph e Heat?
Depois da sua morte, seu corpo e seu karma foram levados com a chuva, e a essa
altura ja tinham se misturado ha muito tempo com os karmas de outros para formar
outro Recem-Nascido, exatamente como Serph e Heat eram quando ele os tomou sob
sua tutela. Pensar nisso fazia Serph sentir um no na garganta. Sera se curvou um pouco
e acariciou sua bochecha.
- Voce esta chorando?
- Chorando? – era outra palavra que ele nunca tinha ouvido.
- E quando voce derrama lagrimas porque esta triste, ou as vezes quando esta feliz.
As vezes faz barulhos tambem, mas nem sempre. – seus dedos eram suaves e frios contra
a bochecha dele – As lagrimas saem dos olhos, e te ajudam a liberar as emoçoes ruins. E
outra maneira que as pessoas tem de expressar o que estao sentindo. Voce chorou
quando ele morreu, Serph?
- Eu nao me lembro. Provavelmente nao. Nao haveria tempo para isso, de todo
modo. – a batalha ainda estava a todo vapor: duas tribos maiores se atracando por todos
os lados, com a tenue distinçao entre amigo e inimigo perdida em meio ao caos. No sonho,
Serph tinha gritado, mas provavelmente isso foi algo que ele adicionou depois do fato.
Tudo que conseguia escavar nas suas lembranças mais distantes era a imagem dele
mesmo ajoelhado ao lado do corpo, e Heat o puxando pelo braço, se esforçando ao
maximo para tira-lo dali.
- Levante! Ainda nao anunciaram que a batalha acabou! – a voz de Heat finalmente
cortou a cacofonia – O líder deles ainda esta vivo. Eu detectei uma unidade líder perto
daqui. Se o matarmos, a batalha acabou.
Eles deixaram o corpo la, como os incontaveis outros. A Igreja monitorava os
sinais vitais de todas as unidades, e assim que elas cessavam, eram contadas como
casualidades na hora. Era a mesma coisa para os líderes. A morte de um líder podia
significar a dissoluçao da tribo, mas essa era a unica diferença dele para os demais. Uma
vez morto, o líder tambem era deixado no campo de batalha para sua carne se dissolver
na chuva de prata, como qualquer outro soldado.
Mais um que não vai alcançar o Nirvana.
Ele viveu ate o ultimo minuto dando as costas para o paraíso e a salvaçao.
- Voce... Voce veio do Nirvana? Do paraíso?
Sera apenas ficou em silencio. Exasperado, Serph colocou as maos nos ombros
dela e deixou as perguntas saírem.
- O que essa coisa que diz se chamar Angel sabe sobre voce? O que a Igreja quer
com voce? Por que voce tem o poder de suprimir o Atma? Por que voce apareceu de
repente na nossa frente naquela hora?
Um olhar doloroso apareceu no rosto de Sera, que novamente nao respondeu.
Percebendo que tinha perdido o autocontrole, Serph se forçou a respirar fundo.
- Voce diz que veio para nos salvar. Mas nos salvar do que? Do nosso Atma? Ou de
alguma outra coisa?
Sera se desvencilhou de Serph. Se encolheu no canto, mergulhando o rosto nos
joelhos como se, por pura força de vontade, pudesse desaparecer. Mas Serph continuou:
- O que e um deus? O que e um demonio? Angel nos chamou de demonios, mas
voce disse que os nossos Atmas eram deuses. Mas o que sao deuses e demonios afinal?
O que eles representam? O que essas coisas significam?
Sera nao ofereceu resposta – apenas pressionou a cabeça mais forte contra os
joelhos. Serph viu uma unica gota de algum líquido cair por entre seus dedos e formar
um pequeno ponto no concreto. Ao contrario da chuva, era umida de verdade, afundando
no chao. Serph ficou chocado ao perceber que era uma lagrima.
Sera estava chorando.
- Eu nao sei. – ela murmurou finalmente, em meio a um soluço quieto – Eu tenho
tentado entender desde que cheguei aqui, mas simplesmente nao sei. Coisas sem
importancia as vezes vem a minha mente, mas nao as coisas que eu mais quero saber.
Quem sou eu? De onde eu vim? O que eu devo fazer aqui? Tudo que eu sei e que eu vim
aqui para ajudar. Mas eu nem sei fazer nada. Eu nao vim aqui para ser protegida pelas
outras pessoas. Eu vim aqui para protege-las, para ajuda-las, mas...
Suas palavras se dissolveram em soluços pesados. Ainda encolhida, ela balançava
para frente e para tras. Para Serph, isso nao parecia uma simples “liberaçao de emoçoes”.
Ela parecia estar prestes a arrancar o proprio coraçao, ou chorar ate dissolver o corpo
inteiro em lagrimas.
- Nao chore. – disse Serph depois de um longo tempo. Ele estava certo de que havia
uma maneira mais apropriada de conforta-la, mas nao sabia qual era. Ele teve uma
deprimente sensaçao de inutilidade. Era um soldado do Lixao, um líder que sabia
comandar tropas no campo de batalha, e mesmo assim nao conseguia fazer a garota ao
seu lado parar de chorar. O que o antigo chefe faria? Quando pensou nisso, Serph
lembrou da cena que o acordou do seu sonho, e sentiu uma pressao afiada e penetrante
atras dos olhos.
Depois de um tempo, Sera limpou as lagrimas, respirou fundo e murmurou um
rapido pedido de desculpas:
- Nao ligue muito para as coisas que eu digo, Serph. – ela adicionou depois de um
momento – Nem eu entendo direito. Quando voce bate a mao em alguma coisa, faz
barulho, e quando me pergunta alguma coisa, palavras saem. E a mesma ideia. E melhor
so me ignorar.
- Nao diga isso.
No mínimo, lagrimas nao pareciam coisas que simplesmente saíam, Serph pensou.
Para os olhos produzirem aquele líquido, parecia que era necessario ter alguma coisa se
remoendo dentro de voce que nao tinha mais como ser contida. A tal liberaçao de
emoçoes.
Devia ser por isso que ela parecia prestes a chorar mais cedo, na sala de reuniao.
Ela sabia que estava la para ajudar; a seu ver, essa era a sua propria razao de ser. De certo
modo, nao era diferente de Serph e os outros existirem unicamente para lutar e
conquistar o Lixao. Entao para ela, estar nessa situaçao em que nao podia fazer nada, em
que tinha de ser protegida, devia ser extremamente doloroso.
- Serph... – começou Sera – Demonios sao criaturas horrendas e perversas que
atiçam os humanos a fazerem coisas ruins, os machucam e os matam. Deuses sao seres
transcendentais, muito superiores aos humanos e demonios. Eles protegem as pessoas,
respondem a oraçoes e sao adorados. – Sera forçou um sorriso – Mas voce me salvou.
Voce, Argilla, Cielo, Gale e Heat. Entao voces nao podem ser demonios. Talvez nao sejam
deuses tambem, mas no mínimo sao humanos. Como eu.
Por um tempo, Serph ficou quieto, apenas olhando a chuva e as luzes esmeralda
brilhando no ceu noturno. Sera baixou a cabeça de novo, olhando para o chao por entre
os joelhos.
- Sera. – disse Serph. Ela olhou para cima novamente – Eu quero te perguntar uma
ultima coisa: voce quer ficar aqui, com a Embriao?
Sera pareceu ficar totalmente aturdida, como se as palavras tivessem sido ditas
numa língua que ela nao entendia. Seus olhos se deslocavam de um lado para o outro
sem parar.
- Se voce esta falando de Gale querer usar o meu sangue como arma, eu nao me
importo. Se for ajudar, tudo bem. Eu so...
- Nao e isso. – Serph lembrou da irritaçao que sentiu enquanto conversava com
Gale mais cedo. Colocou uma mao gentil sobre o ombro dela. Ela se assustou com o
repentino calor do toque dele, mas nao desviou o olhar – Nao e sobre ajudar ou nao. Voce
quer estar aqui agora? Preferia estar em algum outro lugar? A Igreja esta procurando
voce. Talvez, se for ate la, consiga as respostas que tanto quer. No mínimo, voce estaria
mais segura que aqui.
Ele sabia o quanto estava sendo ilogico. Se Gale ouvisse as coisas que ele estava
dizendo, franziria as sobrancelhas em reprovaçao. Nao, apenas manteria o mesmo rosto
sem expressao de sempre e diria algo do tipo: “O senhor esta sendo altamente ilogico.”
Mas Serph sentia um estranho prazer em ir contra a razao. Em ser ilogico.
- Todos estao procurando voce, Sera, inclusive tribos muito maiores que a nossa.
E nao ha motivo para achar que eles vao te tratar do mesmo jeito que nos. Eles
provavelmente perceberao que so precisam te manter viva, e talvez façam algo como o
que Gale sugeriu antes. Eles podem te manter presa em algum lugar. No momento, voce
e a coisa mais importante do Lixao. A maioria nem te consideraria uma pessoa. Voce e a
chave para abrir os portoes do paraíso, Sera. E por isso que voce e tao valiosa. E tambem
porque e uma ferramenta util para impedir o nosso Atma de ficar fora de controle. Existe
ate uma chance de que, caso te entreguemos para a Igreja, sejamos libertados disso.
Quem sabe? Foram eles que enfiaram esses Atmas em nos, entao devem ser capazes de
remove-los tambem.
Serph olhou nos grandes olhos de Sera, seu rosto refletido naquele espelho
profundamente negro.
- Pense bem, Sera. Sabendo de tudo que eu acabei de te dizer, voce ainda quer ficar
aqui? Conosco? Nao com a Igreja ou alguma outra tribo?
Ela nao respondeu imediatamente. Entao, voltou o olhar para o Templo, radiante
e majestoso, iluminado pelo brilho verde do horizonte.
- Eu nao quero ir para la. – ela murmurou – Nao para aquele lugar. Ele me assusta.
Algo sobre ele nao parece certo. So de ve-lo eu sinto um arrepio. Nao, eu nao quero ir
para a Igreja. – seu corpo tremeu levemente e, naquele momento, seus olhos sem duvida
expressaram medo – Eu tambem nao quero ir para as outras tribos. Eu quero ficar aqui,
com voce e os outros. - se voltou para Serph – Eu posso ficar aqui? Mesmo nao
conseguindo fazer nada?
De repente ela se jogou sobre ele, as maos tremulas agarrando os seus ombros,
afundando o rosto fragil no peito dele.
- Mesmo voces nao sabendo quem eu sou ou o que estou fazendo aqui, mesmo eu
so lembrando de coisas que nao fazem sentido? Eu posso ficar aqui com voce s? – Sera
olhava para ele quase sem conseguir respirar.
Serph fez que sim com a cabeça, com um olhar de compreensao. Ela apenas
continuou olhando para ele, como que num transe, e entao começou a se desmanchar
em fortes soluços de novo.
- Nao chore. – disse Serph, sentindo que se saiu um pouco melhor dessa vez – Voce
pode ficar aqui com a gente se e isso que quer. Nos nao vamos te entregar pra Igreja nem
nenhuma das outras tribos. Vamos fazer tudo que pudermos para te ajudar. E voce ja
esta nos ajudando muito so de estar aqui, Sera. Entao por favor, nao chore.
Mas os soluços regulares nao pareciam que iam parar. Apertando-a contra o peito,
Serph olhou para as luzes oscilantes no ceu escuro. A chuva de prata continuava a cair
em silencio.
O que eram “estrelas” afinal?, ele pensou. Talvez devesse perguntar a Sera alguma
outra hora. Mas elas deviam ser algo muito bonito – com certeza, muito mais bonito que
aqueles pontos de luz oscilantes feitos de mortos. Dava para perceber pelo olhar saudoso
que ela fez quando disse a palavra. Ele as veria algum dia, Serph disse a si mesmo. Ele
veria aquelas estrelas que nunca viu antes. E entao veria o sol e a lua tambem. E o ceu.
O ceu do Lixao era de um magenta chapado ou um cinza manchado com brilhos
esmeralda. Nao existia ceu azul. Mas, por alguma razao, Serph tinha certeza de que isso
era real.
Sera que o ceu que ele veria no Nirvana seria azul? Teria estrelas?
Ele precisaria ir ver por si mesmo. Pela primeira vez na vida, ele estava certo de
que queria ir la.
- Venha, nos precisamos descansar. – disse Serph. Os soluços de Sera estavam
começando a diminuir. Estava ficando tarde. Logo o proximo guarda passaria pelo quarto
de Sera, e quando visse que ela nao estava la, seria uma confusao.
- Amanha vamos fazer novos planos. Agora que temos o Atma, o modo de lutar vai
mudar. Precisamos nos adaptar a isso.
Sera fez que sim, esfregando os olhos antes de olhar para cima. Serph se levantou
e estendeu a mao para ajuda-la a ficar de pe. Seus dedos eram tao pequenos e frios.
- Volte para o seu quarto e durma um pouco. Eu tambem vou dormir. Finalmente
estou começando a sentir sono.
Ele levou a pequena garota de cabelos negros ate o elevador. As portas fecharam
e a plataforma começou a descer. A chuva continuava caindo no teto de concreto vazio.
Das sombras, apareceu um animal com olhos prateados e cauda comprida. Ele
observou enquanto o elevador descia.
Capítulo 4

O sistema “lembra” as condições iniciais


que fizeram cada acontecimento possível,
os começos de cada nova estrutura na sua evolução.
Pode-se dizer que o sistema é capaz de religio,
de se conectar à sua própria origem.
Ao se conectar, o sistema “revivencia” a sua própria experiência;
não em detalhes separáveis, mas numa sequência
de regimes holísticos autopoiéticos.

– Eric Jantsch, A Auto-Organização do Universo

- Voce quer se aliar a uma das outras tribos?! – Heat gritou ao ouvir a sugestao que
Serph fez no início da reuniao do dia seguinte – Ficou louco? Eles sao inimigos, Serph.
Estamos falando de pessoas que nao pensariam duas vezes antes de nos trucidar se
tivessem uma oportunidade. E voce quer juntar forças com eles? Nao. O que nos temos
que fazer e tomar a iniciativa, ataca-los primeiro antes que eles tenham chance de fazer
o mesmo conosco.
Serph continuou calmamente, apesar da objeçao de Heat:
- Eu pensei muito sobre isso desde ontem. Nos mudamos. Isso e inquestionavel. E
por isso a maneira como lutamos tambem precisa mudar. Precisamos considerar novas
abordagens estrategicas que nao cogitaríamos antes. Gale, o que voce acha de fazer uma
aliança formal, ainda que temporaria, com outra tribo?
- No passado, ja houve varios casos de acordos de cessar fogo. – respondeu Gale –
Mas todos foram arranjados pela Igreja, no intuito de corrigir equilíbrios mais egregios
na capacidade de luta, e nao pelos proprios combatentes. O que o senhor propoe, as
proprias tribos formalizarem um cessar de hostilidades por iniciativa propria, jamais
aconteceu.
- Entao sera a primeira vez. – disse Serph com convicçao – De um ponto de vista
estrategico, qual tribo seria a mais propensa a aceitar uma oferta de cooperaçao?
- Atualmente, essas sao as duas tribos cuja força militar e mais proxima da
Embriao. – uma imagem tridimensional do Lixao apareceu no centro da sala. No meio
estava a Lotus Reluzente, Sahasrara, com as outras areas formando um círculo irregular
ao seu redor. Cada area era simbolizada por uma cor diferente, com o territorio da
Embriao, Muladhara, bem como Svadhisthana, antes controlado pelos Vanguardas,
ambos marcados com laranja.
O territorio a nordeste era Manipura, colorido de vermelho e controlado pela tribo
Maribel. Serph lembrou da mulher que manifestou sua indignaçao no Templo. A sudeste,
colorido de branco, estava Vishudda, notavel por ser controlado pelos Lobos, a segunda
mais poderosa das cinco tribos regentes.
Do outro lado de Sahasrara, em amarelo, ficava Anahata, o territorio dos Solidos.
A garota que atacou Serph na Igreja pertencia a essa tribo. Ao norte dos Solidos ficavam
os Brutos, que controlavam Ajna, a maior area. Seu territorio era identificado pelo azul.
Os Brutos eram reconhecidos universalmente como a facçao mais forte do Lixao, devido
a sua superioridade numerica e as armas avançadas que possuíam.
Gale destacou a Maribel e os Solidos.
- Essas duas tribos estao sempre em conflito uma com a outra, e no momento a
batalha chegou a um impasse. A menor interferencia pode destruir esse equilíbrio
completamente. Se vamos formar uma aliança, devíamos nos juntar a uma dessas duas
e atacar a outra.
- Entendo. – disse Serph – E qual voce recomendaria?
Gale pausou por um momento para considerar.
- Eu sugeriria a Maribel. O líder dos Solidos, Mick, o Lesma, tem fama de ser
extremamente cauteloso. Sua tribo nao e tao boa em termos de ataque, mas e muito bem
defendida. E baixíssima a probabilidade que ele aceite caso ofereçamos uma aliança. Pior
ainda, e possível que aceite a oferta so para nos pegar desprevenidos na primeira
oportunidade. Por outro lado, a Maribel esta sem condiçoes de continuar atacando os
Solidos. Relatos indicam que eles continuam a perder tropas. E muito mais provavel que
eles aceitem uma proposta. Alem disso, como suas forças estao enfraquecidas, depois
que nos juntarmos a eles e derrotarmos os Solidos, estaremos em excelente posiçao para
os conquistarmos tambem.
- Ei, espera aí. – Cielo se levantou da cadeira, visivelmente contrariado – Voce quer
que a gente junte forças com eles pra depois apunhala-los pelas costas?
Gale simplesmente olhou para ele.
- No meu entendimento, e isso que o nosso líder pretende. Estou correto, senhor?
- Nao, Gale. – disse Serph – Nao esta.
Serph ja esperava que Gale sugerisse essa tatica. Como bispo, Gale tinha de
considerar tudo que podia dar alguma vantagem a sua tribo. Para ele, a vitoria era tudo,
com quaisquer outros fatores sendo apenas ruídos na equaçao. Era natural ele ver uma
potencial aliança com outra tribo como nada mais que uma oportunidade de compensar
a atual falta de mao de obra, e posteriormente colocar essa tribo sob o seu controle para
solidificar a base de poder da propria Embriao.
- Eu quero alcançar o Nirvana. – disse Serph, relembrando o que tinha sentido na
noite anterior – Para isso, nos precisamos vencer. Temos que continuar vencendo, como
sempre fizemos. A essa altura, perder significa morrer, e aqueles que morrem sao
devorados. Sem um corpo deixado para tras para subir aos ceus com a chuva, a alma nao
volta para o utero de renascimento. E sem essa chuva, a Igreja nao vai conseguir fazer
mais Recem-Nascidos tambem.
- Se e assim, senhor, entao por que propoe algo tao irracional? Formando uma
aliança, temos a oportunidade de eliminar dois oponentes de uma so vez. O caminho
para o Nirvana so se abrira para a ultima tribo que permanecer de pe. A Igreja ja
decretou isso.
- A Igreja nao e mais como antes. – contra-atacou Serph – As leis mudaram
tambem. Ate onde eu sei, eles so sao a Igreja em nome. Argilla, se eu fosse morto por
alguma das outras tribos, os Solidos, por exemplo, voce se juntaria a eles?
- Que especie de pergunta e essa? E claro que nao. – Argilla estava sentada com os
cotovelos sobre a mesa, se erguendo de surpresa com a mudança repentina no rumo da
conversa – Eu sou membro da Embriao, agora e sempre. Eu nunca mudaria para outra
tribo, especialmente a que matou o meu líder.
- Eu mataria todos eles! – concordou Cielo – Mas fala serio, chefe. Como se alguem
pudesse derrotar voce.
Serph se voltou para Heat a seguir.
- E quanto a voce?
- Eu tomaria a frente e assumiria o seu lugar. – ele respondeu numa voz seca, sem
sinal de falsa bravata. Seus olhos vermelhos continuaram franzidos – E entao faria o que
Cielo sugeriu: destruir quem te derrotou. No momento, voce e o nosso líder, e eu o
reconheço como tal. Mas eu nao aceitaria qualquer outra pessoa no seu lugar. Um líder
precisa ser forte, e por isso eu sou o mais indicado para substituí-lo.
Argilla levantou as sobrancelhas, e Cielo deixou escapar um leve assobio. Por um
longo momento, o ar ficou cheio de tensao.
- Tais acontecimentos estao fora das minhas consideraçoes atuais. – disse Gale
indiferente, continuando calmamente sua analise – Sendo o bispo da Embriao, minha
preocupaçao e garantir a nossa vitoria. Qualquer evento que decorra da morte do nosso
líder e uma questao a parte. Alem do mais, tal eventualidade seria altamente irregular, e
meus planos sao projetados para evitar tais circunstancias. Nao posso planejar algo para
tais irregularidades a menos que ocorram.
- Entao... Ta. Quer dizer que nenhum de nos quer se juntar a outra tribo. – disse
Cielo – Entao isso significa...
- Significa que as leis ja perderam o efeito. – disse Serph.
Argilla e Cielo trocaram olhares surpresos. Ate Gale pareceu ter sido pego de
surpresa. So o rosto de Heat continuou impassivo.
Era uma reaçao compreensível. Quando um líder morria, os seus subordinados
eram absorvidos pela tribo que ate entao era inimiga. Sempre foi assim. E agora eles
estavam percebendo que essa maxima, que sempre foi fundamental na lei do Lixao, que
as pessoas sempre obedeceram sem questionar, não era imutavel: cada um deles
mostrou que estava preparado para ignora-la sem pensar duas vezes.
- Nos estamos percebendo isso so agora porque quase todos os membros dos
Vanguardas estao mortos. Mas se ainda houvesse muitos sobreviventes, com certeza eles
nao viriam se juntar a nos com um sorriso no rosto. Os tempos mudaram. Se matarmos
o líder de alguma outra tribo, os membros sobreviventes, assim como todos voces,
podem simplesmente se recusar a aceitar as circunstancias. E entao o que faríamos?
- Entao, ahn... – Cielo engoliu em seco quando olhou de volta para Serph – Nao
podemos contar com derrotar outra tribo para conseguir mais tropas?
- Nos ja recebemos varios relatos de situaçoes como essa. – disse Gale – Alguns
membros dos Vanguardas ainda estao vivos. Obviamente, alguns se renderam para nos,
mas a inteligencia indica que muitos mais se recusaram a faze-lo, e ainda estao resistindo
em varios pontos de Svadhisthana. Suas forças sao limitadas, entao nos podemos conte -
los por enquanto, mas ha uma alta probabilidade de que enfrentemos casos de
resistencia parecidos no futuro.
Cielo suspirou de desanimo.
- Ai, o que nos vamos fazer agora? Mal temos gente o bastante para manter
Muladhara, e se tentarmos expandir o nosso territorio, nao so nao conseguiremos mais
soldados para compensar o problema, mas tambem vamos ter que enfrentar rebeldes?
Que porcaria.
- E exatamente por isso que precisamos nos aliar a outra tribo. – disse Serph, agora
mais enfatico – Precisamos cooperar com os outros, nao subjuga-los. Se fizermos um
ataque surpresa e derrotarmos o líder de outra tribo, corremos o risco de perder tropas
e nao conseguir substitutos, como o Gale disse. Podemos acabar enfrentando mais
inimigos do que podemos lidar. Para evitar isso, precisamos encontrar aliados nos quais
possamos confiar e erguer uma força unida.
- Mas no fim, so uma tribo podera entrar no paraíso. – disse Heat.
- Essa e uma regra antiga. Pode ser que nem esteja mais em efeito. Seja como for,
eu estou escolhendo ignora-la. – respondeu Serph, num tom firme – Eu quero chegar ao
Nirvana, e quero levar o maximo de pessoas que puder comigo. Se eu so for visto como
um inimigo, com certeza lutarei. Mas se as pessoas estiverem dispostas a confiar em mim,
entao nos podemos desafiar a Igreja, ou qualquer um que quiser nos impedir, e fazer o
maximo de pessoas ascenderem ao Nirvana, independente de a qual tribo pertençam.
Argilla foi a primeira a falar:
- Estou dentro. Nao quero matar ninguem sem necessidade. Nos devíamos evitar
conflito sempre que possível. Quem comanda a Maribel e uma mulher, certo? Talvez ela
e eu possamos conversar olho no olho.
- Tambem gostei da ideia. – disse Cielo, levantando a mao – E um bom plano, chefe.
Acho que e por isso que voce e o chefe, e nao o vermelhao ali. – em tom de brincadeira,
apontou o polegar para Heat, que deu um murro no ombro dele – Ei, calma, vermelhao!
- Voce quer dizer alguma coisa, Heat? – perguntou Serph, mas Heat nao disse nada.
- Entao so falta voce, Gale. – disse Serph – Alguma objeçao?
- Nao, senhor. – respondeu Gale com uma mesura – Todavia, eu precisarei refazer
o plano do zero. Isso tomara algum tempo. Me de duas horas, senhor. Enviarei para o seu
terminal particular assim que estiver pronto. Ha apenas uma coisa... – ele parou por um
momento – Nao sou contra o plano, mas devo ressaltar que o senhor esta sendo deveras
irracional. A sua linha de pensamento possui varias falhas. Por favor, tenha em mente
que ha riscos que eu nao poderei eliminar.
- Sim, nao se preocupe, Gale. – disse Serph com um sorriso de esguelha – Vamos
nos reunir novamente quando Gale tiver desenvolvido o novo plano. Voces estao livres
ate la. Dispensados.

- Serph.
Serph estava a caminho do seu quarto para descansar ate Gale terminar os
preparativos quando Heat o chamou. Serph se virou com cautela.
- O que voce quer, Heat?
- Aquilo que voce disse antes era serio?
- Do que exatamente voce esta falando? – Serph podia ver a raiva no rosto de Heat.
Seus olhos cerraram de indignaçao com a pergunta.
- Voce sabe do que eu estou falando. – rosnou Heat, chegando mais perto – Se aliar
a outra tribo e uma coisa, mas voce quer manter a aliança depois? Matar ou ser morto –
e assim que sempre foi aqui no Lixao. E nao importa o que mais possa estar acontecendo,
isso pelo menos nao mudou. Voce acha que todo mundo simplesmente esqueceu disso?
- Agora e devorar ou morrer. Acredite, eu sei disso. – disse Serph – Se alguem
tentar nos ameaçar, nos vamos revidar, como sempre foi. Mas o que vamos nos tornar se
matarmos e devorarmos pessoas que nao pretendem nos fazer mal?
- Vamos nos tornar mais fortes! Esse e o objetivo! – Heat agarrou Serph pelo braço
enquanto falava. Ele se aproximou e murmurou no ouvido de Serph enquanto o
pressionava contra a parede do corredor: – Voce esta esquecendo de uma coisa
importante. Devorar os outros nao e so para sobrevivencia. Isso nos deixa mais fortes.
Veja o que aconteceu com Harley. E exatamente como Angel disse.
Serph sentia o bafo de Heat como um vento quente no seu rosto. O cheiro de
sangue atingiu suas narinas, e ele pode sentir a garganta começando a ficar seca.
- Enquanto nos ficamos aqui fazendo filosofia, os outros estao la fora matando,
devorando e ficando mais fortes. Quanto mais tempo ficarmos sem lutar, mais fracos
ficaremos. Se continuarmos assim, mais cedo ou mais tarde alguem vai vir atras de nos.
Vao nos matar e nos devorar. Ou sera que voce nao parou pra considerar isso?
O cheiro de sangue estava forte no ar. Os olhos de Heat nao carregavam apenas o
vermelho ardente do fogo – tinham assumido a tonalidade do sangue fresco. Serph
tentou se desvencilhar, mas mal conseguiu se mexer.
- Heat, me solte.
- Voce nao vai poder chegar ao seu precioso Nirvana se estiver morto. – Heat o
segurou com mais força – Ou voce vai ser devorado, ou vai devorar alguem e viver para
ver outro dia. E assim que o Lixao funciona agora. Camaradagem? Alianças? Quanto
tempo voce acha que um sonho infantil desses vai durar?
- Me solte, agora!
Serph sentiu a raiva ferver dentro dele. Uma luz branca brilhou sob as maos de
Heat que o seguravam, e quase instantaneamente uma densa neblina se espalhou entre
os dois homens.
Quando a neblina dissipou, as maos de Heat e os braços de Serph estavam
cobertos de gelo. Os antebraços de Serph tinham assumido uma cor branca acinzentada,
e estavam revestidos de uma carapaça de espinhos. Buracos se abriram nas suas maos,
e ele sentiu as afiadas laminas de ossos prontas para dispararem.
- Isso mesmo! E assim que se sobrevive no Lixao! – Heat sorriu de satisfaçao antes
de finalmente solta-lo. Sua pele congelada fez um barulho de algo rachando, mas ele nao
mostrou sinal de estar sentindo alguma dor.
- Lembre-se disso, Serph. As regras nao mudaram. As coisas so ficaram mais
brutais, mais impiedosas; isso e tudo. E e assim que eu gosto. La no fundo, voce tambem.
Entao va em frente e lute. Devore. Vai ser divertido.
- Voce com certeza ja devorou bastantes pessoas indefesas.
- Ate nao aguentar mais. – disse Heat com um sorriso. Serph estava acostumado
com aquele sorriso sarcastico, mas agora os caninos de Heat pareciam maiores. Eram
quase como garras – Mas eles eram fracos, nao eram presas de valor. So serviram pra
segurar um pouco a minha fome. Mas as tropas sobreviventes dos Vanguardas, eles sim
podem me oferecer um banquete. Gale disse que ainda ha alguns por aí.
- Alguns deles ainda podem querer se render.
- Nao precisamos de fracotes como eles na Embriao. Melhor que os fracos se
tornem alimento para os fortes. Assim pelo menos terao alguma utilidade.
- Heat! – gritou Serph, e entao um barulho forte foi ouvido no final do corredor. Os
dois homens se voltaram para a fonte do som. Sera estava parada la segurando uma
bandeja vazia contra o peito, seu rosto palido de choque.
- Eu, ahn, tinha terminado de comer e... Estava levando isso de volta. – ela
murmurou.
Heat mordeu a língua, e entao soltou Serph e saiu pisando fundo pelo corredor.
- Nao esqueça de mandar o Gale me dar uma bronca por insubordinaçao, chefe. –
desdenhou – Isso se e que o robo ja nao sentiu de algum lugar e ja nao esta preparando
uma. – e desapareceu virando o corredor, sua capa com a grande cruz laranja da Embriao
balançando no seu rastro.
Sera correu ate Serph e agarrou nervosamente o seu braço.
- Serph, o que esta havendo? Parecia que voces dois estavam brigando. Por que
Heat esta tao bravo?
- Nao se preocupe com isso. Nao tem nada a ver com voce. – disse Serph.
Sim, não era nada para Sera se preocupar. Heat so estava nervoso porque achava
que o seu líder estava sendo fraco. Um líder precisava ser forte, precisava ser melhor que
os líderes das outras tribos – ou, no mínimo, precisava ser um exemplo para os seus.
Ou talvez eu só não queira sujar as minhas mãos, pensou Serph. Talvez a verdade
seja essa. Como líder da Embriao, Serph tinha a responsabilidade de ser forte pela sua
tribo, e agora mais do que nunca ele queria levar o maximo possível de pessoas para o
Nirvana. Se ele nao matasse e devorasse os seus inimigos, cedo ou tarde alguem faria
isso com ele, e entao o que seria da sua tribo?
De certo modo, ele nao esteve sempre matando os inimigos e usando-os para ficar
mais forte, mesmo antes do Atma se manifestar? Mesmo que ele nao os devorasse
literalmente, havia realmente alguma diferença no fim das contas, entre o que eles
faziam antes e o que todos estavam fazendo agora? Ele nao tinha uma boa resposta para
isso.
Heat estava certo. E Gale tambem. No fim, o Lixao era um purgatorio infernal onde
os fortes devoravam os fracos para sobreviver. Com o Atma incitando essa nova fome
dentro deles, esse fato ficou ainda mais tangível e evidente. Nao havia porque tentar
negar.
Serph se aproximou e acariciou gentilmente o cabelo de Sera – suas maos ja
tinham voltado a forma normal –, mas seu olhar nao estava no seu rosto preocupado, e
sim na direçao em que o seu antigo confidente seguiu. As gotas de sangue da mao cortada
de Heat formavam uma trilha de pontos vermelhos pelo chao. Talvez Heat tenha visto
atraves do desejo de Serph de ser o unico sem pecado – a mascara que ele usou para
esconder sua covardia.

- O que sera que aconteceu com as pessoas que viviam aqui? – murmurou Argilla
ao vislumbrar a paisagem. La atras, Heat bufou.
- Esse lugar e uma zona de guerra. Acho que o que aconteceu aqui e bem obvio.
- Nao, estou falando de antes dessas lutas todas. – Argilla apontou para as ruínas
diante deles com uma mao. Predios jaziam tombados de lado, veículos abandonados
lotavam as ruas e persianas enferrujadas balançavam ao vento. Tambem havia postes
quebrados aos montes, e as rachaduras no asfalto pareciam teias de aranha.
- Sera me perguntou que tipo de pessoas viviam nessa cidade antes dela ficar
assim. Ela mencionou coisas chamadas “casas”, onde as pessoas habitavam. “Lojas”, onde
as pessoas faziam algo chamado “compras”, e “carros”, que as pessoas dirigiam. – a voz
de Argilla ficava mais baixa a medida que ela andava, ate que silenciou completamente
– Bom, pelo menos foi como Sera descreveu. – continuou finalmente – Ela disse que uma
cidade nao nasce zona de guerra. Antes, ela devia estar cheia de pessoas vivendo vidas
normais, cheias de tarefas cotidianas. E antes de o Lixao ficar como e hoje, talvez fosse
cheio de vida assim tambem, e talvez...
- Talvez eles nao lutassem. – disse Heat com um grunhido sarcastico – Aquela
garota nao bate bem da cabeça. Ainda nao consigo entender o que a Igreja pode querer
com ela. Nos nascemos para lutar. Ninguem tem o luxo de passar pela vida sem conflitos.
Bom, exceto talvez os sacerdotes.
- Nao diga coisas assim. – protestou Argilla – Sera disse que nao sabe como sabe
essas coisas. Ela simplesmente sabe. – ela pausou, deixando escapar um longo suspiro –
Tenho certeza que o lugar de onde ela veio e assim. E e assim que o Nirvana deve ser
tambem. Um lugar cheio de luz, beleza e felicidade, sem todas essas lutas. Um lugar
maravilhoso.
- Quietos, os dois. – ordenou Serph. Eles estavam chegando perto da fronteira de
Manipura – Mais um pouco e estaremos no territorio da Maribel. Devemos esperar
hostilidades, e preparem-se para receber fogo a qualquer momento. Ou algum outro tipo
de ataque. Tudo e possível.
Desde o surgimento do Atma, o uso de armas de fogo em combates tinha
diminuído consideravelmente. Aqueles que tinham Atmas mais fracos ainda corriam o
risco de serem mortos se cercados por um numero grande num ataque coordenado, mas
em geral, armamentos convencionais tendiam a ser ineficazes contra aqueles que
tinham liberado o poder do seu Atma. A batalha com Harley deixou isso bem claro.
Serph, Heat e Argilla tinham trazido suas armas de fogo de sempre, mas isso foi
mais por habito e desencargo de consciencia. Qualquer batalha que eles travassem seria
decidida pelo Atma.
Heat e Argilla ficaram quietos com o comando de Serph. Ele pode sentir que o ar
estava estranhamente pesado, e levou uma mao a bochecha para tocar o símbolo
pulsante do Atma. Houve uma sensaçao de picada, e uma fraca aura azul oscilou nos
limites da sua visao.
Há inimigos por perto. Serph podia senti-los. Varios indivíduos com Atma,
fervendo de hostilidade, muito proximos e ainda mais a cada segundo. Seu Atma estava
se ativando em resposta ao deles. Ele gritava por liberaçao, para ser liberado na sua
presa.
Ele queria se alimentar de carne e sangue. De vida. De poder.

- Seria preferível enviar um grupo relativamente pequeno. – disse Gale para as


pessoas na sala de reuniao antes do início da missao – Se enviarmos um grupo maior, os
Maribel podem achar que e um ataque e reagir de acordo. Alem disso, se o nosso objetivo
e negociar diretamente com a líder deles, nada mais justo que enviar o nosso proprio
líder, de modo a estabelecer uma comunicaçao de igual para igual. Duas pessoas devem
acompanha-lo para proteçao. Algum voluntario?
- Eu. – disse Heat enfaticamente, olhando diretamente para Serph, e aquele olhar
nao aceitaria nao como resposta. Serph nao disse nada. Ambos sabiam que Heat era o
combatente mais capaz da tribo depois do proprio Serph. Argilla foi a proxima a se
manifestar:
- Eu tambem quero ir. Como ja disse antes, a Maribel e comandada por uma mulher.
Sem contar que o Heat nao e muito bom com palavras.
- Muito bem. – disse Gale. Ele olhou para Serph, que acenou em confirmaçao, e
entao continuou com a explicaçao: – Eu ficarei aqui e darei apoio a equipe de campo.
Cielo continuara a monitorar Sera e a garantir o seu bem-estar. Acredito que ela continue
docil?
- Sim. Sinto um pouco de pena dela. – respondeu Cielo, chutando nervosamente
um pe da mesa – Tipo, ela deve estar super entediada, mas nao reclama de nada. Sempre
que da, eu paro pra conversar um pouco com ela, e isso parece que a deixa feliz. Ela gosta
de falar sobre muitas coisas. Coisas como o “ceu” e “dançar”.
- Entao pelo jeito ela esta em boas maos. – disse Serph – Gale, quanto poder de
fogo voce acha que devemos levar?
- A simples força do Atma ultrapassa o poder das armas de fogo convencionais em
varios graus de magnitude. Liberar sua capacidade maxima pode neutralizar um
oponente quase instantaneamente. De todo modo, como o objetivo dessa missao e
estabelecer negociaçoes, voces so deviam levar equipamentos de autodefesa, para evitar
causar a impressao de que pretendem iniciar um confronto. Alem disso, para podermos
manter comunicaçao, voces devem levar isso e manter no ouvido. – Gale segurava um
dispositivo do tamanho da ponta de um dedo – E um transceptor. Com ele, eu poderei
lhes fornecer mais dados a medida que analisar. So transmite som, mas e o suficiente
para me manter a par da sua situaçao.
Serph fez que sim e pegou o dispositivo.
- No momento, eu estou selecionando indivíduos que possuam Atmas de alta
mobilidade nas nossas fileiras. – continuou Gale – Caso as negociaçoes falhem, havera
uma equipe de reforços disponível para envio imediato. Se sentirem algum perigo,
chamem-nos imediatamente.
Gale se abaixou e tirou uma serie de pequenos malotes de uma caixa no chao.
- Isso – ele disse, colocando-os na mesa – contem ampolas com o sangue de Sera.
Se sentirem que o seu Atma pode estar correndo o risco de sair de controle, tomem.
- Ela esta bem? – perguntou Serph, pegando um dos malotes e olhando mais de
perto. Ele continha um pequeno pacote mais ou menos do tamanho da sua mao, e dentro
havia vinte ampolas de sangue, organizadas em duas fileiras.
- Nao houve efeitos adversos a sua saude. Para equipar voces tres, 200 ml bastam.
- Nao preciso disso. – bufou Heat, ignorando o seu malote – Nao vou colocar essa
porcaria no meu corpo. Se eu sentir vontade de me alimentar, vou simplesmente caçar
algo para saciar o apetite.
- Nao ouse desperdiçar algo que Sera se sacrificou para nos dar! – exclamou Argilla,
pegando o malote apressadamente – Nao se preocupe, eu carrego a sua parte. Tudo isso
vai ser uma grande perda de tempo se nos acabarmos comendo as pessoas com quem
queremos nos aliar porque alguem nao conseguiu se controlar. Foi por isso que eu disse
que voce nao era ideal pra uma conversa de paz.
Enquanto Argilla guardava o malote, Heat perguntou:
- Voce nao pretende comer, Argilla?
- Nao, nao pretendo. – respondeu Argilla, irritada. Encarou Heat antes de
continuar – Porque sou humana. Eu nunca ia querer estripar e devorar outra pessoa. E
agora que temos o sangue de Sera, nao preciso fazer isso.
- Entao voce prefere sobreviver as custas do sangue de Sera ao inves do dos
inimigos. – provocou Heat. Argilla engoliu em seco, sem responder. Ele continuou: – Voce
nao vai encontrar muitas pessoas por aí que vao simplesmente se deixar ser devoradas.
Essa garota e uma rara exceçao. Mas voce ainda esta devorando alguem, Argilla. Entao
pare de se fazer de santa.
O rosto de Argilla enegreceu.
- Nao, eu...
Serph fez um sinal para que parassem a discussao e pegou a sua porçao de
ampolas.
- Por precauçao, e melhor mantermos isso conosco o tempo todo. Mas tambem
devemos ter em mente que, no futuro, talvez nao tenhamos Sera para nos ajudar se
perdermos o controle. Tem muita coisa sobre o Atma que ainda nao entendemos. Mas,
por enquanto, precisamos nos concentrar em firmar essa tregua com a Maribel.
Lembrem-se disso.
Cielo soltou o suspiro de alívio que estava segurando. Argilla guardou suas
ampolas. Serph saiu da sala de reuniao, ciente do olhar de Heat perfurando as suas
costas.

- Aí vem eles. – murmurou Argilla.


Serph fez que sim com a cabeça, sentindo a pulsaçao na sua bochecha ficar mais
forte e a sensaçao de formigamento se espalhar pelo resto do seu corpo.
Os tres estavam ha menos de um quilometro da base da Maribel agora, e o coraçao
de Serph estava pulando mais que o normal. Ele tentou ignorar o som da propria
respiraçao ecoando nos seus ouvidos e focar no que estava ao seu redor. As marcas de
Atma no peito de Argilla e no braço de Heat tambem clamavam por sangue, brilhando e
pulsando – a de Argilla num rosa profundo, a de Heat num vermelho ardente.
Havia inimigos por perto.
Com seus sentidos aprimorados, Heat podia sentir a presença dos indivíduos
escondidos atras dos entulhos.
Sim, inimigos. Havia inimigos.
Havia presas.
Pequenas formas negras oscilavam entre as sombras de predios semidemolidos,
depressa demais para serem identificadas.
Heat ergueu a cabeça e olhou ao redor, sorrindo e lambendo os labios.
- Parece que ha um banquete esperando por nos.
Nos cantos da vista, mais sinais de movimento dançavam a cada momento, mas
nenhuma figura ficava completamente a vista. Os sons de garras raspando e asas
balançando preenchiam o ar, e um ruído semelhante a papel sendo rasgado ficava cada
vez mais alto, fazendo uma desagradavel sensaçao de alerta correr pela espinha de Serph.
- Visualizo vários sinais de calor convergindo na sua localização. – o som
inconstante da voz de Gale chegou ao ouvido de Serph pelo comunicador – O dispositivo
só pode escanear até cerca de 15 metros, mas detecto aproximadamente trinta sinais de
calor só nessa área. Não estão perto o bastante para ser uma ameaça, e não detecto nada
fora do comum, mas fiquem em alerta.
Serph captou fragmentos dos cochichos nas sombras.
- Eu quero a garota. Aqueles seios enormes, aquela cintura suculenta, aquela carne
macia...
- O homem de cabelo prateado e meu. Olha so aquela pele lisinha!
- Aquele outro, o de cabelo vermelho. Ele vai dar uma otima refeiçao. Pelo jeito,
ele tem um poder daqueles.
Heat levantou uma mao, num movimento quase casual.
- Heat, pare!
Um momento depois, o braço de Heat se transformou na sua forma Atma, criando
uma bola de fogo em volta do punho e, apesar da exclamaçao de Serph, a lançou no topo
do predio onde a maioria das figuras convergia.
Houve uma explosao estridente seguida de um tremor, e entao uma serie de gritos.
Varias formas voaram em todas as direçoes, e algo com grandes asas e cabeça e tronco
de mulher fugiu pelo ceu. Heat abriu um sorriso de satisfaçao.
- Heat, nos viemos aqui para conversar, nao para começar uma briga!
- E, eu sei. Mas a situaçao me deu um mau pressentimento, entao decidi fazer
alguma coisa a respeito. E olha so, funcionou.
- Não consigo mais detectar nenhum sinal de calor. – disse a voz de Gale no
comunicador – O ataque de Heat aumentou demais a temperatura ambiente. Mas captei
as leituras do que acredito serem inimigos fugindo da área de calor aumentado. Acredito
que não há nenhum Atma hostil dentro da área de detecção.
- Entendido, Gale. – respondeu Serph. Disparou um rapido olhar para Heat e
continuou andando. Por ora, ele ainda precisava se concentrar em iniciar negociaçoes.
Logo eles chegaram a uma parede de concreto de cerca de cinco metros de altura,
com um par de enormes portas de ferro cobertas de poeira. A parede tinha sido pintada
de vermelho com o sangue da tribo Maribel, mas incontaveis buracos de bala, cortes e
marcas de queimadura, essencialmente no mesmo estilo da destruída base dos
Vanguardas, tambem adornavam a estrutura.
Nao havia sinal de ninguem ali, e ninguem veio desafiar Serph e os outros como
era de se esperar de uma base inimiga. Os Maribel deviam ter ciencia da presença de
invasores no seu domínio, mas nao havia ninguem de guarda no alto dos muros. Os canos
das metralhadoras nao apontavam para nenhum lugar específico, todos abandonados.
Argilla ficou alarmada ao ver a cena:
- Nao e possível que esse lugar tambem caiu. –disse – Sera que foi o mesmo que
aconteceu com os homens de Harley?
- Nao, eu acho que nao. – disse Serph – Quando fui ao Templo, eu vi a líder deles,
Jinana, entao ela esta viva. Ou pelo menos estava.
Entao as enormes portas de ferro rangeram, abrindo-se lentamente.

Do outro lado das portas, havia um punhado de homens em formaçao. Eles


estavam armados e trajando uniformes de combate, mas seus rostos expressavam
inquietude, contorcidos de tensao. No meio deles estava uma mulher alta com um
chamativo cabelo verde e olhos da mesma cor. Uma das suas pernas tinha sido tingida
com a cor rubra que identificava a sua tribo. De cabeça erguida e uma mao na cintura,
ela disparou um olhar penetrante para os recem-chegados.
Serph percebeu uma marca em forma de lagrima tatuada numa das bochechas
dela – marca essa que nao estava la quando ele a viu no Templo. O olhar severo no rosto
dela se intensificou quando ela o reconheceu, rangendo os dentes tao forte que Serph
pode ver os musculos se contraindo em volta da mandíbula.
- Podem parar aí mesmo. – ela disse. Sua voz era baixa e rouca, mas carregava um
forte tom de autoridade – Detectamos a sua aproximaçao ha uma hora. O que quer aqui,
Embriao? E obvio que isso nao e uma invasao. Ou sera que realmente pensaram que
podiam derrotar Jinana e o resto da Maribel so com voces tres?
As tropas em ambos os lados mudaram para uma posiçao mais defensiva. Era um
movimento que demonstrava claramente um amplo treinamento por parte deles. Jinana
lhes direcionou um olhar e acenou com uma mao, como que dizendo “ainda nao”.
- Nao viemos aqui para lutar, Jinana da Maribel. – Serph tambem gesticulou para
Argilla e Serph se afastarem e entao deu um passo a frente, sozinho. Jinana o observava
com curiosidade.
Ela parecia alguns anos mais velha que Argilla. Seus cabelos profundamente
verdes mal chegavam aos ombros, e sua longa franja caía na frente de um olho. Ela usava
um uniforme customizado feito para enfatizar as curvas – o visual de uma líder confiante
nas suas habilidades e na sua aparencia. Como um todo, o seu corpo robusto e membros
torneados resultavam numa fusao impressionante de capacidade de luta e beleza.
- Entao o que o traz aqui, Serph da Embriao? Eu o reconheço do Templo. Voce tem
muita coragem para aparecer aqui pessoalmente.
As tropas da Maribel começaram a se inclinar para frente. Serph nao podia culpa-
los: eles estavam diante do líder da tribo que controlava Muladhara e Svadhisthana, que
marchou para dentro do territorio deles com apenas dois soldados. Matar um líder
significava a morte da tribo, e se a Maribel matasse Serph ali, ganharia o controle de duas
areas de uma vez.
- Calma, homens. – disse Jinana para suas tropas – Vamos ouvir porque o nosso
amigo veio... Depois que ele tirar aquela coisa do ouvido. O bispo da Embriao esta
ouvindo tudo. Ele e muito esperto, entao eu prefiro manter essa conversa so entre nos.
Se voce quer conversar, tudo bem. Mas serao apenas líder e líder.
Um olhar preocupado cruzou o rosto de Argilla.
- Senhor?
- Esta tudo bem, Argilla. Voce ouviu isso, Gale?
Serph levou a mao ao ouvido e puxou o fino cabo conectado ao soquete atras do
seu lobulo. O receptor se soltou da sua orelha e caiu na sua mao.
- Senhor, eu não recomendo interromper a comunicação. – disse a voz de Gale no
comunicador, pela primeira vez expressando um pouco de preocupaçao – Vocês estão em
número muito menor, e eu detectei a presença de artilharia pesada. Mantenham a posição
e reforços chegarão em pouco tempo.
- Esta tudo bem, Gale. Faça-os esperar por enquanto. Aguarde eu fazer contato
novamente. Nao faça nada ate eu dar a minha aprovaçao. E uma ordem. Cambio e desligo.
– quando terminou de falar, apertou o dispositivo com o punho. Houve um rapido som
de rachadura, e entao Serph abriu a mao, deixando os pedaços quebrados caírem ao chao
– Satisfeita, Jinana?
- Muito bem. – respondeu Jinana fazendo um gesto com a mao. Seus homens
avançaram de tras dela, apontando as armas para Argilla e Heat, incitando-os a recuar.
- Mas o que e isso? – questionou Heat.
- Jinana! – gritou Argilla – Nao viemos aqui para lutar, queremos conversar!
- E o que voces dizem. – disse Jinana, sucinta e rígida – Serph, venha comigo.
Heat ainda estava com uma cara de quem podia estraçalhar alguem, e o rosto de
Argilla emanava panico. Serph apenas olhou para eles, implorando em silencio que
mantivessem a calma, e entao cautelosamente deu um passo a frente.
- Largue a arma. – disse Jinana – Seus dois amigos tambem. Voces vao fazer
exatamente o que eu disser de agora em diante.
- Tudo bem. Heat, Argilla, façam como ela diz. – respondeu Serph, tirando sua
arma do coldre e soltando-a no chao. Um dos soldados rapidamente a confiscou. Argilla
parecia que ia resistir, mas apos ver Serph entregar sua arma, mordeu o labio,
desprendeu o rifle do ombro e o entregou. Heat brandiu suas garras e fez uma cara feia,
mas depois que Serph chamou o seu nome com severidade, baixou a arma e a entregou.
- Voce vai entrar para conversar comigo sozinho, Serph da Embriao. – disse Jinana,
fazendo outra vistoria nele em busca de possíveis armas escondidas – Seus dois amigos
esperarao aqui. Se eles causarem problemas, seremos forçados a tomar medidas
apropriadas. Talvez desarma-los nao faça muita diferença, mas tenham em mente que
ha cem de nos para cada um de voces.
- Eu entendo. – respondeu Serph, e depois se virou para Heat e Argilla – Esperem
aqui ate eu voltar. Jamais, em qualquer circunstancia, evoquem os seus Atmas. E Heat,
por favor, tente nao causar problemas.
- Isso e ridículo. – grunhiu Heat, a marca no seu antebraço brilhando levemente –
Se abrirmos as pernas pra essa gente, vamos...
- Entendido, senhor. – respondeu Argilla, interrompendo-o – Eu manterei Heat na
linha. Faça o seu trabalho tranquilo.
Serph fez um ultimo aceno e se virou. Jinana o esperava na porta. Os dois entraram,
sozinhos. A porta da base da Maribel se fechou com um barulho forte.

- Procurando alguma coisa?


- Nao. – disse Serph, interrompendo sua rapida inspeçao ao entrar, seguindo
Jinana e seus guardas armados – So estou impressionado com o quanto a sua base e
diferente da nossa.
Jinana bufou discretamente.
- Impressionado? Sim, claro, tenho certeza que e isso. – ela respondeu cinicamente,
mas, alguns passos depois, sua expressao facial finalmente relaxou, talvez devido ao
alívio de estar dentro das suas paredes.
- Para começar, a nossa base esta longe de ser tao organizada. – continuou Serph.
Provavelmente pela tribo ser muito maior, os quartos da Maribel eram bem mais
equipados que os da Embriao. Ao contrario da base da Embriao, com suas paredes
rachadas e dutos expostos, os corredores daqui eram totalmente e impecavelmente
pintados, e o chao era recoberto de belos azulejos. A iluminaçao tambem era muito
melhor. Era evidente que eles tinham recursos nao so para as funçoes militares, mas
tambem para a aparencia.
Serph deduziu que estava vendo apenas uma area de baixa prioridade das
instalaçoes da Maribel, ja que era improvavel que o levassem a algum lugar importante.
Mesmo assim, pelo pouco que estava vendo ali, ele teve toda uma nova impressao da
situaçao dessa tribo em relaçao a sua.
- Voce e um líder estranho, Serph da Embriao. Parece que nao tem nenhuma
disciplina militar. Percebi no instante em que mostrou sua cara no Templo. – Jinana se
virou e olhou Serph de perto. Com seus cabelos e olhos prateados e o rosto androgino,
ele era alguem que se destacava na multidao – e mesmo que nao fosse o caso, era senso
comum um líder nao revelar sua aparencia para os seus rivais.
- E voce saiu de tras da sua tela e mostrou o rosto tambem. – comentou Serph.
- Uma manobra equivocada de minha parte. Nao devia ter sido tao impulsiva. –
respondeu Jinana, com um arrependimento obvio na voz – A essa altura, suponho que
mal importa, mas na hora, eu fiquei muito indignada com a atitude da Igreja. – mal as
palavras saíram, ela fechou a boca e olhou reservadamente para Serph, como que para
medir sua reaçao a blasfemia que tinha dito.
- Eu entendo. – respondeu Serph, e os olhos de Jinana se arregalaram – Tambem
estou achando difícil acatar as ordens da Igreja ultimamente. Especialmente agora, com
o que aquela voz estranha chamada Angel disse.
Os olhos de Jinana se arregalaram ainda mais. Seu alívio era claro.
- Ja ha pessoas ignorando as antigas leis. – disse Serph – E isso me fez pensar. Foi
por isso que eu vim falar com voce hoje. Eu gostaria de propor uma parceria com a
Maribel.
Jinana tinha começado a andar, mas parou imediatamente. Serph a olhou de volta,
diretamente nos seus reluzentes olhos verdes, com toda a sinceridade que conseguiu
reunir:
- Nao ha motivo para so uma tribo poder ascender ao Nirvana. Eu acho que
podemos levar quantas pessoas quisermos para la, quantas quiserem ir. E foi por isso
que eu vim falar com voce sobre o meu plano, Jinana. Aquele dia, no Templo, eu vi o
quanto voce ficou indignada com a perda do seu povo. E eu compartilho do mesmo
sentimento. Se trabalharmos juntos, como aliados, talvez possamos evitar mais
sofrimento.
Jinana desviou o olhar, nao dizendo nada, e abruptamente começou a andar de
novo. Serph podia ver que ela estava se recompondo. Ela levou Serph ate o fim do
corredor onde estavam, finalmente parando na frente de uma porta. Ergueu a mao ate o
painel de acesso, entao parou por um momento antes de se dirigir aos dois guardas que
os acompanhavam:
- Granato, Zaphir, voces estao dispensados. – disse discretamente.
- Mas senhora, vamos deixa-la sozinha com o inimigo?
- E como Granato diz, senhora. Isso tudo pode ser um truque. Ele pode te atacar
quando ficarem sozinhos.
- E voces acham que eu vou perder para ele? – questionou Jinana – Eu disse
dispensados. Vao la para fora e esperem com os outros. Ninguem entra nessa sala ate nos
sairmos.
Os dois guardas claramente reprovavam a decisao, mas, ao inves de encarar mais
uma bronca, fizeram uma saudaçao e voltaram pelo caminho que vieram, embora
tenham olhado para tras varias vezes. So quando eles estavam do lado de fora Jinana
disse:
- Entre. – o painel da porta se acendeu quando ela liberou a trava – Esses sao meus
aposentos pessoais. Ninguem jamais esteve aqui antes.
O quarto era guarde, muito maior que o comodo de tamanho padrao que Serph
tinha. As paredes eram pintadas de cores quentes e leves, com o chao de tons mais
escuros das mesmas. Apesar de estar no coraçao do territorio inimigo, Serph se
encontrava tomado por uma sensaçao de paz.
Uma partiçao dividia o quarto. Serph podia ver uma cama grande e o que parecia
ser um box de chuveiro do outro lado. O terminal pessoal de Jinana era maior que o
modelo generico que Serph usava, com varios monitores conectados. Parecia que ela nao
tinha reservas quanto a ficar com os melhores equipamentos para si mesma. Ate a
cadeira na frente do seu terminal era grande e requintada, diferente de qualquer cadeira
que Serph ja tinha visto. Ao contrario dos bancos duros com os quais ele estava
acostumado, essa cadeira tinha confortaveis enchimentos no assento e no encosto.
Apesar da situaçao, ele nao conseguiu segurar um riso.
- Qual e a graça?
- Ah... Nada. – disse Serph, disfarçando – So estou pensando que deve ser legal ser
o líder de uma tribo tao grande. Aposto que voce pode ficar horas sentada nessa cadeira
e nao ficar dolorida.
- Voce e mesmo estranho. – disse Jinana dando de ombros enquanto sentava na
cadeira – Mas antes de começarmos, deixe-me ver o seu Atma. Nao reconheço o símbolo
na sua bochecha. E um dos Atmas Maiores?
- Exatamente. – disse Serph, levando a mao a bochecha. Mentalmente, conjurou as
palavras do comando de ativaçao mencionadas no arquivo da Igreja – om mani padme
hum. Sua bochecha ficou quente e ondas de energia correram por todo o seu corpo.
Todos os seus sentidos mudaram, e ele tomou ciencia de coisas que meros olhos e
ouvidos humanos nunca perceberiam. Os pulsos de energia borbulhando dentro dele o
forçaram a abrir os olhos – abri-los para algo mais.
Ele viu Jinana – nao, a sentiu. Ela se inclinara levemente para tras na sua cadeira,
se protegendo instintivamente. Embora tenha pedido para ver o Atma de Serph, ela
estava intimidada com a transformaçao acontecendo diante dos seus olhos.
O mundo se tornou algo alem da percepçao e experiencia humanas. A mulher de
cabelos verdes emanava um calor e energia que Serph podia sentir no seu amago. Algo
alem do seu controle fazia a sua garganta coçar e a sua boca ficar seca. Com esforço, ele
conseguiu dispensar as sensaçoes, repetindo mentalmente para si mesmo que aquilo
nao era uma luta. Onde estava a marca de Jinana? Ele podia senti-la na sua propria pele,
ativando-se em reaçao ao seu proprio Atma.
- O nome do meu Atma e Varuna – ele disse – Ele comanda o poder do gelo e possui
laminas em ambos os braços. – sua voz saía da sua boca distorcida. Essa era a primeira
vez que o seu Atma se manifestava atraves das palavras de comando ao inves de em
reaçao ao calor do combate. Ele abriu um dos braços, deixando a lamina deslizar de
dentro dele. Era uma lamina de ossos, um gracioso instrumento da morte. Jinana olhava
para a sua letalidade como que paralisada.
- Ja e o suficiente. – ela disse, com uma voz repleta de tensao – Volte ao normal.
Serph desfez a transformaçao. Pouco a pouco, seus sentidos expandidos voltaram
ao normal, e por um momento, ele se sentiu esmagado pela sensaçao da sua propria
insignificancia.
Isso foi arriscado. Evidentemente, ativar o Atma podia modificar as percepçoes do
usuario. Era provavelmente o primeiro passo para ativar a vontade de devorar. Havia
uma boa chance de que evocar esse poder sem cuidado pudesse resultar em se perder
em meio a essas emoçoes aguçadas, incapaz de voltar. Serph se lembrou que precisava
tomar muito cuidado com isso.
- Se nao se importar, – disse ele – eu gostaria de ver o seu Atma. Mas nao vou
insistir.
- Meu Atma se chama Ushas. – disse Jinana, mais prontamente do que Serph
esperava – Mas eu preferiria nao me transformar agora. Ainda nao consigo controla-lo
tao bem quanto voce.
- Tudo bem. – concordou Serph.
Jinana apontou para uma cadeira do outro lado do quarto e Serph se sentou.
- Vamos voltar ao que o trouxe aqui. – disse ela – O que exatamente voce pretende
formando uma aliança entre a Embriao e a Maribel?
Serph descreveu o seu plano para ela, tomando o cuidado de entrar em detalhes
enquanto explicava a logica por tras dele. A ideia de trabalhar juntos tinha lhe ocorrido
na noite anterior, depois que mandou Sera de volta para o quarto. Quando Argilla
criticou a Igreja diretamente, ele lembrou do rosto ultrajado de Jinana no Templo,
questionando as mudanças feitas neles a força.
Se havia outros que detestavam a ideia de ter de devorar pessoas, ele pensou,
entao devia ser possível trabalhar junto com eles. Para a Embriao, isso traria o benefício
obvio de suprir a sua falta de mao de obra, mas o que motivou Serph ainda mais foi a
imagem que ele tinha de Jinana, remoendo um rancor que nao tinha como colocar para
fora. Serph ja tinha imaginado que conseguiria conversar com ela sem as coisas ficarem
violentas antes mesmo de Gale propor a Maribel como potencial aliada, e tomou a
analise do seu bispo como um sinal de que estava no caminho certo.
Considerando a sua oposiçao e desgosto mutuos tanto pela Igreja quanto pelo
conceito de canibalismo, Serph deduziu que ela estaria disposta a ouvir, e que poderia
muito bem gostar da ideia do reforço que o seu plano traria para as suas capacidades
militares enfraquecidas. Os Vanguardas tinham se destruído devorando uns aos outros,
e, considerando o que Jinana disse no Templo, Serph deduziu que a Maribel tambem nao
estava isenta de algo parecido.
Quando ele terminou de falar, Jinana ficou quieta por um tempo, ponderando.
Finalmente, se virou e o olhou diretamente.
- Acho que entendo o que voce quer dizer. – ela disse. Seus olhos verdes brilhavam
com a dignidade solene de um líder – Mas o que a Maribel ganhara se aliando a Embriao?
Voce diz que uma aliança aumentara as nossas forças, mas quem garante que voces nao
vao voltar atras e nos atacar depois que os ajudarmos a derrotarem os seus inimigos?
Seria uma manobra inteligente, afinal. Nunca na Historia do Lixao duas tribos
trabalharam juntas como voce sugere. Mas ja houve casos de uma tribo apunhalando a
outra pelas costas depois que a Igreja ordenou um armistício.
- Nao posso dizer que nunca pensei isso. – admitiu Serph – De fato, foi o que Gale,
o nosso bispo, sugeriu inicialmente. Mas eu nao aceitei. A minha decisao e formar uma
aliança com a Maribel e, como líder da Embriao, a minha decisao e final. Tudo que eu
preciso agora e que voce confie em mim, Jinana.
- Confiar? – os olhos de Jinana se estreitaram. Seu olhar era perfurante como uma
adaga, mas Serph nao titubeou – E uma palavra muito estranha de se usar. O que significa
isso, “confiar”? As tribos existem para lutar entre si. Nos nao somos como os soldados
comuns, que mudam de lado quando o líder morre. Nos somos os líderes, Serph da
Embriao. Nao temos escolha que nao ser inimigos.
- Se e assim, entao por que perder tempo me escutando? – Jinana ficou
visivelmente abalada, e Serph continuou: – Voce sabe que tomar as nossas armas foi
completamente inutil. Manifestar o nosso Atma nos permitiria causar muito mais dano
que qualquer arma de fogo. E voce ate foi longe o bastante para pedir para ver o meu
Atma. Por que?
- Eu... – pela primeira vez, Serph viu incerteza no rosto de Jinana. Ela baixou a
cabeça e levou a mao a boca – Eu nao achei que era serio. – disse ela finalmente, como se
nao pudesse acreditar nas proprias palavras – Voce disse que tinha vindo conversar, nao
lutar. Eu nunca vi um inimigo dizer isso antes. Entao decidi entrar no jogo e ver o que
aconteceria. Eu tinha certeza que era algum truque, que voce atacaria assim que uma
oportunidade surgisse, e entao eu me defenderia usando o meu Atma.
- Mas eu não tentei te matar. Nos nao atacamos os seus homens. Voce sabe que
pelo menos isso e verdade. E alem das vantagens taticas que eu mencionei, tem mais
uma coisa que podemos fazer pela Maribel.
- E o que seria?
Serph relutou em dizer mais. Antes dele partir para a missao, Gale insistiu que a
existencia da garota fosse mantida em segredo. Ele tinha de escolher as palavras com
muito cuidado.
- Nos conhecemos um jeito de impedir o Atma de ficar fora de controle.
A cadeira de Jinana caiu no chao quando ela se levantou de um salto. Seu corpo
todo estremeceu e seus olhos se arregalaram.
- Isso e verdade? – disse ela, com os labios palidos e tremulos – Nao, nao pode ser
verdade! Um jeito de manter o Atma sob controle? Impossível! Os arquivos da Igreja nao
mencionavam nada do tipo, e nem Angel. Como a Embriao seria capaz?
- Nao posso te dar mais detalhes. – disse Serph, encontrando o olhar de Jinana. O
desespero nos olhos dela era quase demais para ele aguentar – Mas posso te garantir
uma coisa: nenhum dos membros da Embriao se voltou contra os outros. Nenhum,
nenhuma vez. Tambem nao devoramos nenhum dos nossos. Chegou muito perto de
acontecer uma vez, mas conseguimos impedir. Nenhum de nos perdeu o controle de si
mesmo ou a crença na sua propria humanidade.
- Nao pode ser. – a voz de Jinana mal era um sussurro, e ela tombou para frente, se
apoiando na beirada da mesa – Mas entao... Entao o que foi que aconteceu conosco? Toda
aquela carnificina e sangue, todos ficando loucos... E tudo que eu pude fazer foi olhar. E
entao algo... Alguém tomou conta de mim, e eu nao consegui resistir. Todo aquele sangue...
E carne. – sua voz ficou ainda mais baixa, e ela fechou os olhos – Eu nao quero lembrar.
Nao me faça lembrar.
- Ha um jeito de te trazer de volta antes que se cruze o limite. – disse Serph. Jinana
olhou de volta para ele – Voce precisa acreditar em mim. Eu sei que voce quer uma prova,
mas eu nao posso te mostrar ainda. Mas essa hora vai chegar, e voce precisa confiar em
mim ate la. E como eu te disse antes: eu realmente falo serio. Eu quero que o maximo
possível de pessoas ascenda ao Nirvana, independente da tribo. Embriao, Maribel, nao
importa. Se o que eu vi de voce no Templo era verdade, entao por favor, Jinana, una-se a
mim.
Jinana hesitou. Seu abalo era palpavel. Voltou o olhar para o chao a apertou a
ponta da mesa com tanta força que seus dedos ficaram brancos. Por um longo tempo, ela
ficou imovel. Entao saiu do transe, se endireitou e marchou em direçao a porta.
- Jinana.
- Venha comigo. – disse a líder da Maribel sem olhar para tras – Vou te dar a minha
resposta la fora, para todos ouvirem. Nossa reuniao esta encerrada, Serph da Embriao.
- Tem so uma coisa que eu quero te perguntar. – disse Jinana, sua voz rouca
ecoando fracamente pelo corredor, vazio exceto pelos dois – Esse metodo que voce tem
para controlar o Atma... Ele tambem pode trazer de volta alguem que ja perdeu a sua
percepçao de humanidade?
- Infelizmente, nao. Pelo menos nao na maioria dos casos. – respondeu Serph,
relembrando o quanto ele e os outros chegaram perto de cruzar a linha – As vezes, se
agirmos logo depois que a pessoa começou a perder o controle, ainda ha uma chance,
mas se o Atma toma o controle por um período de tempo razoavel, nao ha mais o que se
fazer.
- Entendo. – Jinana deixou escapar um leve suspiro.
- A proposito, onde esta o bispo da Maribel? Ainda nao o vi.
- Esta morto.
A resposta foi tao curta que Serph nao soube o que dizer.
- O conflito entre o seu condicionamento de bispo e o seu Atma fora de controle
fizeram seus implantes entrarem em curto. Quando o encontramos, ele estava em algum
lugar entre Atma e humano, segurando uma arma contra a boca. Ele explodiu a propria
cabeça, destruindo o cerebro e os implantes ao mesmo tempo. – depois de um momento,
Jinana adicionou – Ele partiu do jeito que quis. O bispo perfeito. – seu tom de voz era
formal, mas Serph percebeu que escondia uma dor.
Serph hesitou em fazer a proxima pergunta, mas decidiu seguir em frente com ela.
- Entao o que nos encontramos do lado de fora da base...
- Sim, sao membros da Maribel. – Jinana terminou para ele.
“Ela nao disse eram”, pensou Serph.
- Alguns deles se perderam completamente na primeira vez que o Atma se
manifestou. Outros conseguiram se controlar, mas nao suportaram a fome, e entao
escolheram se exilar antes que acabassem rasgando as gargantas dos proprios
camaradas. Eles sao o meu povo, e minha responsabilidade – ela ficou quieta por um
tempo, soltando um suspiro antes de continuar – Eu pensei que poderia haver um jeito
de salva-los. Ou pelo menos dar algum sentido as suas mortes.
Serph podia sentir o rancor de Jinana. Ela pareceu perceber que tinha revelado
um lado vulneravel. Seu rosto se enrijeceu em seguida.
Eles voltaram para a entrada principal, e Serph pode ouvir sons de comoçao do
lado de fora. Jinana ergueu a mao ate o painel de controle sem dizer nada, e entao as
portas se soltaram com um solavanco antes de abrirem para os dois lados. Alem dela, os
inquietos membros da tribo tinham se dividido em varios grupos, mas todos se voltaram
na direçao da porta em uníssono.
Enquanto o povo de Jinana expressava o seu alívio em ve-la bem, Argilla abriu
caminho pela multidao e praticamente pulou em Serph.
- Bom, parece que o senhor nao esta ferido. Mas que bom que voltou rapido. – e
adicionou num tom mais baixo: – Manter Heat sob controle e uma provaçao. Mais cinco
minutos e acho que ele teria explodido.
- O que aconteceu? Ora, parece que voce esta bem. – disse Heat, vindo logo atras
dela. Ele olhou Serph de cima a baixo e deu um risinho – Eu estava ansioso pra quebrar
isso aqui tudo. Que pena que nao aconteceu nada.
- Lamento decepciona-lo. – sorriu Serph. Ele estava feliz em ver o rosto do amigo
de novo. E parecia que eles tinham conseguido evitar uma luta com a Maribel. Se eles
conseguissem trabalhar em conjunto com uma tribo, talvez pudessem negociar com as
outras tambem.
- Acho que deu certo. – disse Serph – Jinana ainda nao me deu uma resposta
concreta, mas estou com um bom pressentimento. Ela disse que faria um anuncio na
frente de todos.
- Bom, tomara que seja a resposta que esperamos. – disse Argilla, ficando na ponta
dos pes para dar uma olhada em Jinana, que estava cercada pelos seus homens. Dois
deles seguraram suas maos e a escoltaram ate um dos veículos na frente da parede de
guarda. Todas as pessoas que tinham se espalhado se reuniram ao redor dela. Ate os
guardas armados que tinham sido designados para vigiar Argilla e Heat pararam de
apontar as armas para eles e voltaram suas atençoes para o que estava acontecendo.
- Muito bem, Maribel, me escute! – exclamou Jinana, sua voz ressonante
silenciando os cerca de cinquenta soldados – A Embriao nos trouxe uma proposta: eles
querem que cessemos as hostilidades e formemos uma aliança para trabalhar juntos
contra as outras tribos.
Um burburinho discreto correu entre a tribo, ficando cada vez mais alto. Muitas
pessoas se viraram para olhar para Serph e seus companheiros, que estavam agrupados
num canto. Quase todos demonstravam uma clara desconfiança, e alguns pareciam estar
esperando um ataque surpresa mesmo agora. Serph e seus companheiros sabiam que
era melhor ficarem quietos por enquanto.
Heat começou a ranger os dentes.
- Calma, Heat. – murmurou Serph, colocando a mao no ombro dele – Esta tudo
bem. Eles so estao surpresos.
- Ninguem no Lixao jamais parou para considerar algo assim. – apontou Argilla –
E quase ridículo sequer sugerir tal coisa. Eu sei que ela nos ouviu, mas ainda estou
nervosa.
Jinana esperou a discussao entre a multidao parar antes de continuar.
- Eu, particularmente, acho que devemos aceitar essa oferta de aliança. Mas com
uma condiçao. – levantou a mao para indicar que todos fizessem silencio.
Serph olhou para cima, devolvendo o olhar quando ela o encarou por sobre a
multidao reunida, e deu um passo a frente.
- Que condiçao e essa, Jinana da Maribel?
- Serph, da Embriao, – ela declarou, enfatizando seu nome e título – minha
condiçao e a seguinte: nos dois escolheremos uma pessoa entre as nossas tropas para
representar a sua tribo, e essas duas pessoas lutarao.
Argilla interviu:
- Ei, espere! Nos nao viemos aqui para lutar!
- O lado vencedor determinara se daremos prosseguimento ou nao a aliança. –
disse Jinana, ignorando o protesto de Argilla – A Maribel nao se curvara a uma tribo
inferior. So trabalharemos com uma tribo que seja igual ou melhor que nos. Se a Embriao
nao puder comprovar o seu valor, entao voce se rendera a mim na hora, Serph da
Embriao.
Os olhos verdes de Jinana encontraram os olhos prateados de Serph.
- E se o seu campeao perder, entao, depois que nos entregar o meio do qual falou
que pode manter o Atma sob controle, voce podera escolher jurar lealdade a mim ou
tirar a propria vida enquanto ainda e o líder da Embriao. Se preferir morrer em batalha,
tenho soldados mais que suficientes para realizar esse desejo. Eu lhe ofereço a escolha,
para demonstrar o meu respeito. Esta de acordo?
Argilla parecia prestes a fazer outro protesto, mas Serph a impediu.
- Muito bem, Jinana da Maribel. – ele respondeu, com uma voz firme – Eu concordo
com os seus termos. Acredito que temos a liberdade de escolher o nosso campeao?
- Naturalmente. E nos faremos o mesmo. Se quiser chamar alguem da sua base,
estou disposta a esperar.
- Nao sera necessario. – disse Heat, dando um passo a frente. Um sorriso se formou
nos seus labios, e ele pareceu ficar maior. Suas garras afiadas se estenderam e seus
joelhos estalaram, como uma maquina de guerra rufando ao ser ativada – E eu aqui
achando que ia embora para casa sem me divertir nada. Um exercício me fara bem. E
alem disso, estou com fome.
- Heat, voce pode lutar, mas nao quero que mate ninguem. – cochichou Serph para
ele, sabendo que nao conseguiria faze-lo desistir da luta – Se matar o oponente, vai criar
animosidade entre eles.
- Nao seja ingenuo. – bufou Heat, lançando um olhar de esgueira para Serph – O
meu oponente com certeza vai tentar me matar. E voce sabe que, se eu perder, sera o seu
fim. Porque se eu perder, e me ocorrer por um segundo que voce vai se render a Maribel...
Eu mesmo te mato.
- Eu ja imaginava que voce diria isso. – disse Serph, conseguindo sorrir apesar por
muito autocontrole – Mas mesmo assim, não mate o seu oponente. Jinana leva a morte
dos seus a serio. Nao quero machuca-la fazendo-a perder mais um. Sera prejudicial a
nossa causa.
- Voce e um idiota – cuspiu Heat, e entao começou a andar, levantando a voz – Eu
sou Heat da Embriao. Qual de voces quer ser o meu jantar?
Os membros da Maribel começaram a se ouriçar. As palavras de Heat claramente
provocaram alguns deles, enquanto outros se afastaram, intimidados. Viraram uns para
os outros, murmurando entre si; Jinana ficou quieta, de braços cruzados, permitindo aos
seus subordinados decidirem quem enfrentaria o desafiante da Embriao.
Algum tempo depois, o aglomerado se desfez, e um homem esguio deu um passo
a frente. Ele era muito mais magro que Heat, mas se movia com uma agilidade e fluidez
graciosas, seu corpo forte e sinuoso. Tinha longos cabelos purpuras que desciam ate os
ombros, e usava as marcaçoes com as cores da tribo em volta do olho direito. Na parte
superior do corpo, ao inves do uniforme de combate padrao usado pela sua tribo, trajava
uma leve malha a prova de facas.
Combate mano a mano era claramente o seu forte. Ele brandia uma grande faca
de combate em uma mao, brincando com ela como se fosse um enfeite inofensivo. Seus
olhos eram tao afiados quanto a propria faca, e ele tinha um nariz pequeno e labios finos
que irradiavam um sorriso maldoso.
- Meu nome e Bat. – disse ele, com uma voz zombeteira que raspava os ouvidos –
Meu Atma e Camazotz. Vou te fazer em pedaços.
- Nao preciso saber o nome da minha comida. – respondeu Heat, erguendo o braço
direito, a marca de Atma pulsando com uma luz vermelha – Me poupe desse protocolo
de merda e vamos logo ao que interessa. A menos que esteja com medo?
Os dois sorriram largamente um para o outro. Bat brincou mais um pouco com a
faca antes de embainha-la atras da cintura. Um momento depois, sacou outro par de
punhais, um em cada mao, e emitiu um guincho, estendendo os braços e correndo na
direçao de Heat.
- Que voz e essa? – perguntou Argilla, fazendo uma careta e tapando as orelhas.
Serph fez o mesmo. O guincho do guerreiro criava uma sensaçao como a de agulhas
perfurando o tímpano. Era claramente uma forma de ataque sonico de alta frequencia.
Enquanto avançava, Bat começou a se transformar na frente dos olhos dos
espectadores. Seu corpo inteiro ficou preto e ainda mais magro, ja que seu tronco
encolheu. Suas pernas se contorceram e tambem pareceram diminuir, sendo puxadas
em direçao ao abdome, que agora estava coberto de uma fina pele negra.
Ao contrario das pernas, seus braços esticaram, ficando muito maiores, os
punhais em cada mao se transformando em afiadas garras. Seu sorriso perverso se abriu
ainda mais, jamais sumindo do rosto, mesmo quando a boca se transformou numa
monstruosidade de presas. Suas orelhas ficaram de um tamanho enorme, balançando
para frente e para tras nos dois lados da cabeça, que tinha afundado para dentro do peito,
enquanto os ombros se alargaram e curvaram. Suas juntas se distorceram, revelando os
ossos, e com um “vum”, asas membranosas, semelhantes a uma capa, brotaram. Seus pes
abandonaram o chao, deixando um furacao de areia para tras enquanto ele alçava o ceu
acima do Lixao como uma enorme criatura de asas negras.
- Prepare-se para ser devorado, seu verme! – grunhiu Bat, agora Camazotz, com a
sua voz perfurante de agulha – Vou te estraçalhar e devorar cada pedacinho, ate
sobrarem so os ossos!
Heat, enquanto isso, nao tinha ficado parado. Seu sorriso estava ainda mais
confiante quando ele fechou a mao em punho, murmurando sublimemente as palavras
de ativaçao – om mani padme hum. Num instante, seu corpo inteiro foi envolvido em luz
azul. Ele balançou o braço, e a luz desapareceu como que dispensada. Agora quem estava
ali era Agni, uma colossal forma vermelha com duas cabeças e quatro robustos membros.
Seu corpo viril e ombros largos eram cobertos de uma brilhante armadura amarela, e
cada uma das hediondas cabeças apresentava uma enorme boca semicircular.
A presença dessa monstruosa criatura rubra gerou gritos de choque nas tropas da
Maribel. Mesmo Serph nunca teve a oportunidade de estudar o Atma de Heat tao de
perto assim antes. Era uma imagem realmente assustadora. Sera tinha dito que Agni era
um deus do fogo, e agora Heat realmente era o avatar das chamas.
Camazotz emitiu um longo guincho e mergulhou para atacar, e Agni estocou com
um dos seus braços para recebe-lo. Houve uma rapida colisao, e Camazotz foi repelido.
Um conjunto de quatro garras afiadas brotou do punho reforçado de Agni. Ele as brandiu
ameaçadoramente e emanou um rugido, atacando enquanto Camazotz tentava se
recompor. Camazotz conseguiu desviar, batendo as asas e se erguendo mais alto.
- Volte aqui! – berrou Agni balançando suas garras, mas tudo que recebeu em
resposta foi um guincho de deboche e uma feroz rajada de vento. Agni cravou o pe no
chao e cobriu as duas cabeças com um braço, se protegendo da força desconhecida que
o atacava de cima. No ultimo momento possível, pulou para tras, evitando por pouco um
acerto direto – as pedras sobre as quais ele estava foram lançadas no ar, onde foram
feitas em pequenos pedaços de cascalho.
“Algum tipo de ataque de gravidade?”, Serph pensou. Nao, devia ser uma especie
de onda de choque de energia altamente concentrada. A primeira vista, parecia
semelhante ao poder de Argilla, mas o dela nao vinha acompanhado do som estridente
que cortava o ar agora. Argilla estava tapando os ouvidos e fechando os olhos com força
para conter a dor.
Membros da Embriao e da Maribel ficaram embasbacados quando Agni soltou um
berro furioso e seu corpo se cobriu de fogo. As chamas ardentes dançaram e estalaram,
assumindo uma forma semelhante a de uma flecha ao cruzar o ar em direçao a Camazotz.
Este girou rapidamente para desviar do ataque, mas a onda de calor ainda o atingiu, e
ele soltou mais um grunhido. A poderosa onda de choque gerada pelo grito errou o alvo,
fazendo um grande buraco no muro da fortaleza; soldados da Maribel correram para
escapar dos escombros.
Agni correu para atacar Camazotz enquanto ele descia, mas o avatar de morcego
nao se deixaria pegar tao facilmente. Mais uma vez ele bateu as suas asas laminadas,
tentando recuperar altitude enquanto atirava outra serie de ondas de choque sonicas.
Agni sabia que nao conseguiria desviar de todas, e varias atingiram o seu tronco
diretamente, perfurando sua armadura e mandando sangue e pedaços de carne voando.
A besta colossal começou a titubear, e Argilla deixou escapar um grito contido.
Camazotz mergulhou para interceptar alguns dos pedaços sangrentos de carne
em pleno ar, fazendo o espetaculo de pega-los com a boca. Sangue escorria das suas
presas, e ele soltou um guincho ensurdecedor de puro prazer.
- Sua carne e podre, Embriao! Como eu poderia me saciar com tamanha sujeira?
Agni emitiu um uivo feroz. A carne semi-mastigada fez sons molhados e
escorregadios ao tocar a terra, e Camazotz soltou outro guincho de provocaçao ao fazer
uma nova investida, cortando com as garras afiadas nas pontas das suas asas. Pouco
antes que elas acertassem o alvo, porem, um golpe de um enorme punho vermelho o
derrubou do ceu.
- Nao fique se achando, idiota. – rosnou Agni, sua voz retumbante parecendo fazer
o proprio chao tremer. Ele abriu suas maciças bocas ao maximo e cravou duas presas
afiadas na base de uma das asas de Camazotz.
O morcego se contorceu numa tentativa desesperada de escapar. Emitiu outro
guincho – desta vez, nao uma onda de choque, mas um grito de dor. Agni rosnou e
balançou suas cabeças, sacudindo Camazotz de um lado para o outro. O som de carne
sendo cortada tomou o ar, e gotas vermelhas se espalharam. Sangue se acumulava no
chao debaixo dos dois combatentes. Camazotz bateu as asas mais duas ou tres vezes e
finalmente se libertou, seu membro ferido escorrendo sangue. Sua mandíbula se
arreganhou para disparar outra saraivada de ondas de choque. De tao perto, o ataque
cambaleou Agni, cercando-o com uma nevoa escarlate. E ainda assim, apesar dos cortes
profundos no peito e no ombro, uma das duas cabeças de Agni se virou para lançar um
olhar satisfeito para Serph.
Uma das maos do Atma de fogo avançou, as quatro garras brilhando com o
vermelho do calor quando atropelaram o abdome de Camazotz, fazendo uma fonte de
sangue jorrar.
Mais sangue escorreu da boca de Camazotz, silenciando seus guinchos. Seu corpo
começou a ter espasmos e convulsoes, os tremores ficando cada vez mais intensos, ate
que uma fraca luz azul o envolveu e sua transformaçao se desfez. Bat, agora de volta a
forma humana, caiu ao chao, seu corpo coberto de vermelho.
O guerreiro da Maribel se encolheu numa posiçao fetal, cuspindo bolas de líquido
vermelho. Ele se esforçou desajeitadamente para levantar a cabeça enquanto a colossal
forma vermelha do seu oponente se aproximava. O buraco no ombro de Agni ja tinha
sarado, e o sangue derramado era praticamente invisível contra aquela pele vermelha.
Bat olhava ao redor em desespero, procurando uma maneira de escapar do fim iminente.
Um olhar de puro terror se formou no seu rosto.
Serph correu para o combate. Ele nao podia deixar aquilo acontecer.
- Jinana! – grunhiu Bat. Agni chegou mais perto, se abaixando e pegando o inimigo
– agora reduzido a uma presa assustada – e levando a cabeça do homem acabado ate em
frente a sua mandíbula. Justo quando aquelas fileiras de dentes estavam prestes a
estraçalhar o cranio de Bat, Serph interviu, agarrando o braço de Agni.
- Pare! O duelo acabou. Solte-o, Heat.
- Por que voce me impede? – questionou Agni, voltando a cabeça livre para Serph
– Ele perdeu, e os perdedores sao devorados pelos vencedores. Essa e a nova lei. Se eu
perdesse, o mesmo aconteceria comigo.
- Isso nao importa. – respondeu Serph. A furia de Agni era evidente. Um calor
opressivo pairava sobre eles, acompanhado pelo denso odor de sangue queimado. A
criatura do fogo nao demonstrava nenhuma intençao de poupar o oponente do abraço
da sua mandíbula. Serph sentiu o proprio estomago remexer em reaçao a todo o sangue.
Colocou mais força na voz e na mao que segurava o braço de Agni – Resista a esse instinto!
Lembre por que viemos aqui!
- Eu lembro! – rugiu Agni. Sua outra enorme boca apertou mais o cranio de Bat.
Houve o som de um osso quebrando, e entao sangue do mais puro vermelho começou a
escorrer entre os seus labios.
Argilla engasgou. Mesmo Jinana, que ate agora se mantivera rígida, esperando
para ver como as coisas se desenrolariam, descruzou os braços e deu um passo para
frente, com uma expressao de claro choque.
- Ja chega! – gritou Serph com dentes rangidos. Seus olhos estavam turvos de dor,
e suas pernas titubeavam enquanto ele se esforçava para manter o equilíbrio – Voce
queria sangue? Ja teve a sua cota. Isso e uma ordem, Heat! Volte ao normal e deixe-o em
paz.
Sangue começou a escorrer pelo braço de Serph. Sangue dele mesmo. Antes que
Agni pudesse cravar os dentes no cranio de Bat, Serph enfiou o proprio braço dentro
daquela boca voraz.
Os grandes dentes de Agni mergulharam na carne do braço, perfurando ate o osso.
Nao houve tempo para Serph se transformar, para se proteger com a carapaça do seu
Atma. O sangue escorria dos dentes de Agni formando uma linha vermelha pelo braço
machucado. Com apenas um pouco mais de pressao da sua mandíbula, Agni podia
facilmente arrancar o braço dele fora. E a cabeça que ele estava protegendo viria logo
em seguida.
O tempo pareceu congelar. O unico ruído era o da respiraçao frenetica de Bat.
Finalmente Agni cedeu, abrindo a boca pouco a pouco, deslizando as presas para
fora do braço de Serph antes de jogar Bat ao chao como um pedaço de lixo descartado.
Com um brilho de luz azul, a monstruosa forma rubra desapareceu, substituída pela de
um homem ruivo e mal-encarado.
- Ta bom. – ele disse, limpando o sangue da boca com o verso da mao e cuspindo
no chao – Voce e o líder, Serph. Eu nao preciso gostar das suas ordens, apenas segui-las.
Serph quis responder com um sorriso, mas acabou cambaleando e engasgando de
dor. Caiu apoiado num joelho. Mais sangue escorreu do seu braço dilacerado. O membro
estava mutilado do cotovelo para baixo, parecendo que tinha sido triturado. Argilla
correu ate ele, segurando imediatamente o braço ferido.
- Isso foi muita imprudencia, senhor. – e olhou para Heat – E voce... O seu líder
disse varias vezes que nao era para matar o oponente. Foi uma ordem direta!
Heat apenas fez uma careta e olhou para o outro lado.
- Esta tudo bem, Argilla. Nao e tao ruim quanto parece. – dessa vez Serph
conseguiu esboçar um sorriso, e se apoiou no ombro de Argilla para se levantar. Ele sabia
que a marca de Atma na sua bochecha estava brilhando levemente em reaçao ao cheiro
de sangue – Heat pegou leve comigo. Sinceramente, eu nao me surpreenderia se ele
arrancasse o meu braço inteiro, entao nao fique muito brava com...
Ele parou no meio da frase, embora sem saber se foi pela dor do ferimento ou um
estímulo do seu Atma. Instintivamente, empurrou Argilla para fora do caminho e deu
meia volta.
A faca que vinha na sua direçao errou o alvo, meramente arranhando o seu peito
ao inves de perfurar o coraçao. A marca na sua bochecha ardeu, e ele se ouviu gritar com
uma voz que nao era dele.
Quase que sem pensar, Varuna-Serph expeliu uma rajada de ar frio e gelo em Bat,
que avançava na direçao dele com outra faca na mao. Bat cambaleou com o ataque e
deixou cair a faca agora congelada, que se estilhaçou como vidro quando chegou ao chao.
- O que voce pensa que esta fazendo? – rosnou Heat, tomando a frente. A marca
de Atma no seu antebraço ja estava começando a brilhar em vermelho de novo. Argilla
correu para proteger Serph, mas Jinana chegou primeiro, num movimento agil e
silencioso.
Ela parou na frente de Bat com uma furia palpavel. Ele estava grunhindo e
apertando a mao; a cor tinha desaparecido completamente dela. Levou alguns
momentos para ele perceber que havia alguem parado na frente dele. Quando se deu
conta, olhou para cima. Entao Jinana deu um poderoso soco bem no meio do seu rosto.
Todos, Embriao e Maribel, ficaram mudos.
- Por que, Jinana? – disse Bat, cambaleando enquanto levava uma mao a bochecha
em descrença – Se matarmos o líder da Embriao agora, a Maribel controlara tres
territorios!
- Coloque-se no seu lugar. – Jinana falou num tom de voz baixo, mas carregado de
raiva contida – Eu sou a líder da Maribel. E voce ousa me questionar, Bat? Voce perdeu.
Acabou. Aceite. Nunca mais levante um dedo para a Embriao ou seu líder.
Serph tinha caído de joelhos de novo. Argilla examinava os seus ferimentos.
- Jinana... – disse ela, com o rosto irradiando esperança – Isso significa que a
Maribel...
Jinana fez que sim com a cabeça e se virou na direçao da multidao. Falou em alto
e bom som:
- Muito bem, escutem todos! – ela clamou – O duelo terminou. Conforme acordado,
a Maribel formara uma aliança com a Embriao.
Serph olhou para cima, surpreso. Apos uma breve pausa, Jinana continuou, sua
voz ecoando imponente:
- De agora em diante, nossas tribos lutarao como uma contra as outras. Ninguem
das nossas tribos deve procurar conflito com os membros ou o líder da outra sem causa
justa, e derramamento de sangue esta estritamente proibido. Esse e o meu decreto, como
líder da Maribel. Se alguem e contra, fale agora.
Ninguem falou. Ninguem se moveu. Bat recuou para o fundo da multidao, cabeça
abaixada de vergonha, sua bochecha palida formigando. Jinana respirou fundo e
finalmente se permitiu relaxar, a tensao deixando o seu corpo enquanto estendia a mao
para Serph.
- Serph, a minha inabilidade como líder resultou em voce ser ferido por um dos
meus homens. Vou chamar uma equipe medica imediatamente para tratar os seus
ferimentos.
- Nao ha necessidade. Vai curar sozinho se eu ativar o meu Atma.
- Considere uma questao de etiqueta. Por favor, nos deixe ajudar. – e entao, ela
sorriu. Foi a primeira vez que Serph a viu expressar uma emoçao tao positiva.
- Eu nunca pensei que as coisas acabariam assim. – adicionou Jinana, falando um
pouco mais baixo – Estou surpresa. E foi uma experiencia e tanto. “Confiar”, nao e? E uma
bela palavra. Acho que gosto dela.
Serph se colocou de pe novamente, ainda segurando a mao dela. Mesmo ele mal
podia acreditar que tinha alcançado o seu objetivo. Ali estava ele, apertando a mao de
uma mulher que era sua inimiga ate momentos antes. Sua mao era quente, e Serph
pensou que o sorriso que ela mostrava agora combinava muito mais com o seu rosto que
a postura rígida de antes.
- Jinana, afaste-se dele! – gritou Bat de tras deles, seu rosto expressando puro
desespero. O poder do seu Atma tinha feito o sangramento do abdome parar, mas seu
braço continuava pendurado, tendo quase sido arrancado na altura do ombro. A cor do
seu rosto ensanguentado fazia um contraste lugubre com o de Jinana – Isso e tudo um
truque! Eles so estao esperando nos darmos uma brecha, e aí nos apunhalarao pelas
costas! Nao deixe essa conversa de “confiar” prejudicar o seu raciocínio, Jinana! Pense
no que eu fiz por voce!
- Silencio, Bat! – Jinana nao se dignou a olhar para ele – Os medicos cuidarao de
voce tambem. Seus ferimentos sao graves, voce demorara mais para se recuperar,
mesmo com a ajuda do seu Atma. Ate la, tente ficar mais parado. Quando tiver a
oportunidade de se acalmar, voce podera entender a minha decisao.
Bat olhou ao redor, com uma expressao louca no seu rosto sujo de sangue.
- Nao seja enganada por eles! Voce vai vender a Maribel assim? Cedo ou tarde,
essas pessoas devorarao todos voces, como o vermelho tentou fazer comigo! Voce vai
ver! – ele apontou para Heat, que meramente continuou impassível frente a toda a
gritaria.
- Por aqui, Serph da Embriao. – disse um dos Maribel, se aproximando e apoiando
Serph no lugar de Jinana. Ele possuía as marcaçoes vermelhas, mas o seu uniforme era
mais simples, e nao carregava arma – Vamos entrar. Isso sera relativamente simples,
vamos apenas esterilizar e enfaixar o ferimento. Provavelmente voce precisara de
pontos, mas faremos o melhor possível.
- Ahn, ah... Obrigado.
- “Obrigado”? – as palavras saíram de Serph naturalmente, e Jinana, parada ao lado
dele, levantou uma sobrancelha ao ouvi-las – O que significa isso? E alguma coisa
semelhante ao seu “confiar”?
- E uma palavra de... Gratidao... Que se usa quando alguem faz algo por voce. Eu
acho. – agora que parou para pensar, Serph percebeu que era uma palavra que Sera usava
muito. Quando Cielo preparava as suas roupas, quando eles diziam coisas gentis para ela,
depois das refeiçoes... E a palavra meio que se espalhou para Serph e os outros membros
da tribo.
Jinana abriu um sorriso.
- “Obrigado”. Tem um som agradavel. Terei de me lembrar dessa palavra, alem da
“confiar”.
- Jinana!
- Mandei ficar quieto, Bat! – rebateu Jinana. Ela nem se virou para olhar para ele.
Bat ficou observando Serph ser acompanhado ate a base, juntamente com Argilla e Heat.
Pouco antes da porta se fechar, Serph deu uma rapida olhada para tras. Bat estava
sendo tratado por um grupo de medicos, mas havia um fogo nos seus olhos, ardendo
com um odio sem limites. Sangue fresco escorria da sua boca, onde ele mordera o
proprio labio. Seu corpo inteiro tremia de raiva, uma forma de odio diferente de tudo
que Serph ja tinha visto, irradiando malícia como se fosse uma coisa tangível.

- Aqui esta. – disse Serph, colocando o malote lacrado em cima da mesa em frente
a Jinana – Cada um desses malotes contem vinte capsulas. Infelizmente, por enquanto,
nao posso te dizer o que ha nelas, mas garanto que nao e veneno. Se quiser uma prova,
entao, por favor, escolha qualquer capsula que quiser e eu beberei agora mesmo.
Tres dias se passaram desde as negociaçoes em Manipura e, conforme ficou
acordado la, Jinana veio com uma pequena caravana visitar a Embriao em Muladhara.
Serph foi encontra-la na fronteira pessoalmente, tendo chamado seus patrulhas de volta
para a base pouco antes para a remota possibilidade de que a sua presença resultasse
numa luta. Jinana demonstrou uma cautela semelhante, deixando os homens que trouxe
consigo dentro do seu proprio territorio.
Gale e Heat queriam estar com ele nesse encontro, mas Serph recusou, insistindo
em conversar com Jinana sozinho. Depois de tudo que eles passaram para conquistar a
confiança dela, ele nao queria arriscar estragar tudo causando uma impressao de
intimidaçao.
Vozes abafadas murmuravam do lado de fora da porta, provavelmente membros
da Embriao tentando ouvir como as coisas estavam indo. Seu interesse era
compreensível. Nunca alguem fora da alta cupula da Embriao entrou na sala de reuniao
deles, muito menos o líder de outra tribo. Toda Muladhara estava falando disso.
- Nao ha necessidade disso. Eu confio em voce, Serph da Embriao. – disse Jinana,
pegando o malote. Ela abriu o involucro e levantou as sobrancelhas enquanto olhava as
capsulas coloridas contidas nele – Entao ha vinte aqui. Apenas uma por pessoa e
suficiente?
- As vezes, mas nao sempre. Quando tomadas como medida preventiva, uma ou
duas devem bastar, mas quando alguem ja esta fora de controle, e difícil dizer com
certeza. Quantos membros a Maribel tem atualmente?
Jinana nao respondeu imediatamente. “Cinquenta e dois”, disse depois de um
momento, superando a longa relutancia em revelar informaçoes sobre as suas forças
para alguem que ha poucos dias era seu inimigo.
Cinquenta e dois. O numero pegou Serph de surpresa. A Embriao tinha cerca de
cento e cinquenta membros, quase o triplo.
- Isso nao inclui os do lado de fora da base. – disse Jinana – Aqueles que... Se
perderam para o Atma. Eles se foram para sempre? Nao ha mesmo nada a se fazer por
eles? Nada para faze-los voltarem a ser humanos?
- Sinto muito. – Sera ja tinha dito isso a Serph. Quando ele perguntou, ela abaixou
a cabeça, ficando quieta por um tempo, e entao explicou que nada podia restaurar a
humanidade aqueles que foram completamente dominados pelo Atma, independente do
quanto sangue ingerissem – Eu gostaria de poder fazer alguma coisa, mas, no momento,
simplesmente nao e possível. – ao relatar a ma notícia, Serph lembrou do olhar
desamparado de Sera.
- Entendo. – disse Jinana, e Serph desviou o olhar, engolindo em seco de remorso
por esmagar as esperanças dela.
- Infelizmente, – ele disse – nao temos recursos para produzir essas capsulas em
grandes quantidades. So podemos te dar o suficiente para manter os seus membros
atuais sob controle. Considerando o seu contingente atual de cinquenta e dois membros,
com uma media de tres capsulas por membro e mais algumas por precauçao, duzentas
parece um numero bom?
- Sera o suficiente. Voce tem a minha gratid... Nao, obrigada, Serph. – Jinana sorriu
ao trocar a palavra no ultimo momento – Assim fica melhor. “Obrigada”. Ate a sensaçao
de dizer essa palavra em voz alta e... Extraordinaria. Estou usando-a corretamente?
Serph sorriu.
- Sim, eu acho que sim. – se levantou da sua cadeira – Eu preciso ir para ajudar a
preparar as capsulas restantes. Voce e bem-vinda para ficar para o jantar, se quiser.
Comida normal, e claro. Hoje em dia, o termo “comida” as vezes tem conotaçoes infelizes.
- Seria um prazer. Mas sabe, a sua Embriao e mesmo diferente.
- Como assim?
- Talvez seja porque o líder e tao estranho. – disse Jinana com um sorriso de
deboche – Durante todo o tempo em que eu estive aqui, me senti estranhamente calma.
Estou no coraçao daquilo que sempre considerei territorio inimigo, e ainda assim estou
mais em paz aqui do que quando estou em casa com a Maribel. Mesmo a sua base
estando nesse estado deploravel.
- Desculpe por isso. – Serph olhou envergonhado para os arredores decrepitos –
Temo que seja o melhor que a Embriao pode fazer. – a pequena sala de reuniao, com suas
cadeiras e bancos simples amontoados ao redor da mesa, devia parecer pouco mais que
um deposito de entulho para alguem acostumado com aposentos particulares e uma
cadeira grande e confortavel. Jinana sorriu para ele em tom de desculpa.
- Mesmo assim, quanto mais tempo passo aqui, mais sinto a tensao deixando o
meu corpo. E quente e confortavel aqui. Relaxante. Agora acho que entendo porque
voces nao perdem o controle. Tem essas capsulas para tomar, e a simples sensaçao de
estar neste lugar ajuda a controlar os animos.
Serph deduziu que o sentimento de calma de Jinana provavelmente era por estar
perto de Sera. Enquanto Serph e os outros ja tinham se acostumado, ja que estavam com
ela ha algum tempo, alguem de fora, como Jinana, sem duvida sentiria mais a diferença.
Serph entao abriu a porta, e um homem de baixa estatura que estava apoiado
contra ela caiu para dentro da sala, colidindo com ele com um grito de surpresa.
- Cielo, o que voce esta fazendo aqui?
Cielo olhou para ele com uma risada nervosa e acanhada. Atras dele, Serph viu os
outros tres membros da sua equipe principal, todos com cara de vergonha. Exceto Gale.
- O que todos voces estao fazendo aqui? Eu disse que queria conversar com Jinana
sozinho.
- E, e isso e tipo, totalmente injusto! – disse Cielo, se desvencilhando do peito de
Serph e batendo o pe no chao – Eu queria dar uma olhada na líder da Maribel. Afinal, ela
vai ser nossa aliada agora, certo? E alem disso, ela e uma gata! Eu tinha que ver! Ola,
senhora. Meu nome e Cielo. Sou o pupilo mais brilhante do chefe. Prazer em conhece-la.
- Cielo, voce so esta piorando as coisas. – disse Argilla, correndo para para-lo – Me
desculpe, Serph. Tinha uma multidao se aglomerando aqui. Eu vim correndo expulsa-los,
mas entao, quem eu vejo entre eles, senao Cielo e esses dois, tentando ouvir a conversa?
E depois que os outros se dispersaram, eu fiquei tentando tira-los daqui, mas eles nao
iam embora.
- Voce estava aqui porque tambem queria ouvir. – murmurou Heat de tras dela. O
rosto de Argilla ficou vermelho.
- Ta, talvez eu estivesse curiosa, mas... Seja como for, o que você estava fazendo
aqui, Heat? Voce tambem foi ordenado a ficar longe ate eles terminarem a conversa.
- Eu vou onde quero. Ninguem me impede de nada.
- Quando eu cheguei, so esses tres estavam aqui. – disse Gale calmamente – Os
outros membros saíram correndo quando perceberam que eu estava vindo. O que, alias,
eu so fiz para me certificar de que as suas ordens estavam sendo cumpridas.
Serph suspirou. Ele nao tinha certeza se devia ficar bravo ou feliz. Sim, eles tinham
desobedecido as ordens, mas ele sabia que so o fizeram porque estavam preocupados
com ele, entao nao podia ser severo demais. O verdadeiro problema era o que Jinana
estava pensando a respeito. Ele se virou para pedir desculpas pela interrupçao e dizer
que ja ia manda-los sair, mas, para sua surpresa, ela estava rindo incontrolavelmente.
Cielo ficou pasmo. Argilla e Heat tambem arregalaram os olhos de surpresa, e ate
a mascara de neutralidade objetiva de Gale escorregou um pouco. Jinana riu ainda mais
alto, se curvando na cadeira, como se a graça fosse demais para ela segurar.
- Ai, ai... – finalmente ela conseguiu conter o riso – Eu sabia que o seu líder era um
maluco, mas nao esperava que a tribo inteira fosse. Voces sao um bando incrível,
Embriao. Eu gosto de voces. Pode apostar que eu vou aceitar aquela sua oferta de jantar,
Serph, e espero poder sentar perto desses caras. Tem muitas coisas sobre as quais eu
gostaria de conversar. Parece que a diversao esta so começando.

Duas horas depois, conforme o cronograma, Serph acompanhou Jinana de volta


ate a fronteira, onde ela se reuniu com os membros da Maribel, que a aguardavam.
Carregava consigo um malote de capsulas contendo o sangue de Sera. Seu bom humor
claramente surpreendeu seus subordinados.
- Discutiremos os detalhes taticos posteriormente, Serph da Embriao. – agora que
estava liderando suas tropas novamente, seu rosto vestia novamente a expressao
resoluta de antes – Acho que lutaremos bem juntos. A Maribel conquistou um aliado
valioso. Por favor, transmita essas palavras ao seu povo. Especialmente a donzela de
cabelo rosa, Argilla, e o jovem azul agitado. – ela sorriu, relembrando – Diga a Argilla que
eu me diverti especialmente conversando com ela, e que estou ansiosa para reve -la.
Nunca pensei que poderia conversar tanto sobre algo que nao fosse batalhas. Ela e uma
moça curiosa. Gostaria de ter alguem como ela na minha tribo.
- Pode deixar que direi a ela. – garantiu Serph – E lembre de so usar essas capsulas
quando necessario. Nao poderemos substitui-las imediatamente se acabarem. O
suprimento e limitado. E nos tambem estamos no mesmo barco. Um dia, eu poderei te
dizer mais, mas ate la, por favor, tente sobreviver com o que te dei.
- Entendido. – disse Jinana, fazendo que sim com a cabeça e dando um tapinha no
malote, o sorriso desaparecendo do seu rosto – Manteremos contato, Embriao. Ate breve.
Jinana acenou para a sua escolta e eles partiram. Serph esperou ate a Maribel ter
atravessado a fronteira de volta para o seu proprio territorio antes de voltar para a base
de Muladhara. Encontrou Argilla sozinha no refeitorio, recolhendo os utensílios.
- Argilla? Esta limpando tudo sozinha?
- Bem-vindo de volta, Serph. – disse ela olhando para cima, as bochechas ainda um
pouco coradas – Deu tudo certo na volta da Jinana? Ela e uma pessoa incrível. Estou feliz
que a conseguimos como aliada. Sabe, acho que essa foi a primeira vez que eu tive uma
conversa de verdade com alguem. Eu nunca nem tive outra mulher para conversar de
igual para igual antes. Nunca pensei que podia ser tao divertido.
- Jinana disse algo muito parecido a seu respeito. – disse Serph, com um leve
sorriso no rosto. Durante o jantar, Jinana e Argilla foram as mais falantes. As coisas
começaram com um clima de tensao, a conversa lenta e forçada, mas, em algum
momento, elas engataram.
Cielo tentou entrar na conversa algumas vezes, mas mal conseguia dizer uma
palavra antes de ser jogado para escanteio. Heat, como era de se esperar, ficou na dele,
comendo em silencio, e quando Serph e Gale terminaram suas refeiçoes, se retiraram
para preparar o restante das capsulas, deixando as mulheres a vontade para continuar
a conversa. Se Jinana nao tivesse hora marcada para voltar, provavelmente elas ainda
estariam conversando ate agora.
- Serio? Espero poder ve-la de novo. Fora do campo de batalha, se possível.
Adoraria poder conversar com ela sem ter que me preocupar com o tempo. – Argilla
suspirou, e entao se recompos da sua pequena fantasia – Eu nao disse uma palavra sobre
a Sera, eu juro. Tomei muito cuidado com isso.
- Eu confio em voce. Jinana disse que quer te ver de novo tambem. – respondeu
Serph, e entao deixou o recinto, seguindo para o quarto de Sera.
Por precauçao, Sera ficara confinada no seu quarto, proibida de sair enquanto
Jinana estivesse na base. Ela estava sentada na beirada da cama, aparentemente
entediada, mas quando viu Serph, seus olhos brilharam.
- Deu tudo certo, Serph? Conseguiu ter a sua conversa com Jinana?
- Ela ja foi embora. – disse Serph, puxando uma cadeira e se sentando para olhar
para Sera – Me perdoe por te-la feito doar tanto sangue. Como esta se sentindo? Alguma
dor ou desconforto?
- Eu estou bem. – disse Sera – Descansei bastante, e a equipe medica esta cuidando
muito bem de mim. – seu rosto ainda estava um pouco palido, mas ela sorria mesmo
assim. Serph afagou o joelho dela para tranquiliza-la.
- As coisas estao indo bem com Jinana e a Maribel. Pretendemos fazer um ataque
conjunto contra os Solidos em Anahata. Ainda preciso trabalhar os detalhes com Gale,
mas, se trabalharmos juntos, poderemos erguer uma força capaz de derrotar os Solidos.
- Entao vai haver mais lutas... – um olhar de tristeza tomou conta do rosto de Sera
– Voce nao pode tentar conversar com os Solidos como fez com a Maribel?
- Nao e viavel. A especialidade dos Solidos sao taticas baixas. Ataques sorrateiros,
esse tipo de coisa. Seria impossível confiar neles. Alem disso, seu líder, Mick, o Lesma,
possui um fortíssimo senso de autopreservaçao, tanto que nunca entra no campo de
batalha. Ele provavelmente nem concordaria em nos receber se tentassemos negociar.
Mas talvez, se a Embriao e a Maribel lutarem juntas e reduzirem as suas forças o bastante,
isso possa mudar.
- E se voce contasse a eles sobre o meu sangue?
- Nao podemos fazer isso. Ainda nao contamos nem pra Jinana, e mesmo na
Embriao, so eu e os meus conselheiros sabemos que o seu sangue e capaz de suprimir o
Atma. Se os Solidos ou qualquer outra tribo ficarem sabendo disso, e muito provavel que
tentem te levar a força para conseguirem esse poder. Jinana e basicamente um caso
especial em tudo isso. Eu nao ficaria muito empolgado com os líderes das outras tribos.
- Entendo. – Sera abaixou o olhar. Uma voz exageradamente animada quebrou o
silencio.
- Opa, e aí, chefe? Nao sabia que voce estava aqui. Vim buscar a Sera. – era Cielo,
carregando uma bandeja com comida suficiente para muito mais que duas pessoas. Ele
entrou correndo no quarto e deslizou ate perto deles – Vem, Sera, vamos comer. – disse
– Estou morrendo de fome, entao achei uma boa ideia comer com voce.
- Voce vai comer de novo? Nao acabou de jantar? – disse Serph, nao conseguindo
acreditar na montanha de comida que estava vendo. Cielo torceu os labios.
- E, mas a Jinana e a Argilla ficaram falando sem parar e nao me deixaram
participar da conversa. E aí, quando eu fui reclamar com a Argilla depois, ela ficou toda:
“Um moleque com voce nao entenderia. Deixa a conversa de gente grande com a gente.”
E olha que eu nem sou tao novo assim. Isso me deixou deprimido, entao fiquei com fome.
Serph segurou um riso enquanto escutava o desabafo de Cielo. Recordou-se de
quando Jinana partiu – quando ela chamou o jovem soldado de “azul agitado”. Ele
precisou se esforçar para manter o rosto serio.
- Entao Jinana e Argilla ficaram amigas? Isso e maravilhoso! – disse Sera,
empolgada.
- Amigas? – questionou Serph, confuso com essa outra palavra nova.
- Sim, amigas. Alguem com quem voce gosta de conversar, que te faz sorrir, e de
quem voce sente falta quando nao esta por perto. Isso e um amigo.
- E diferente de um aliado ou colega de tribo? – perguntou Serph.
- E parecido, mas um amigo e alguem com quem voce gosta de estar, independente
de obrigaçao, vantagem estrategica ou benefícios. Jinana e Argilla pareciam estar se
divertindo, nao e?
- Entao, tipo, voce e eu... Nos somos amigos? – Cielo colocou a bandeja na mesa e
apoiou os cotovelos na cama, olhando para Sera. Ela ficou visivelmente comovida.
- Eu... Eu e voce?
- E, oras. Eu gosto de estar com voce. E legal quando conversamos, e eu me sinto
bem quando te vejo sorrir. Tipo, eu sinto isso por alguns membros da Embriao tambem,
mas a gente pode ser amigo e aliado ao mesmo tempo, nao e? – ele olhou cheio de
expectativa para Serph.
Serph hesitou por um momento, mas entao olhou nos olhos de Sera e fez que sim
com a cabeça.
- Nao tenho certeza se entendi completamente o que sao “amigos”, mas eu vi
Argilla e Jinana hoje, e acho que se sentir bem na companhia de alguem assim e algo bom.
Sera, eu quero que voce fique confortavel e relaxada enquanto esta aqui.
- E o Heat e o Gale podem ser meio sem jeito, e talvez possam ate parecer meio
assustadores as vezes, mas eles tambem tem um lado bom. – adicionou Cielo
rapidamente – Eu acho que seria otimo se todos nos pudessemos ser seus amigos. Eu
nao estou usando essa palavra errado nao, ne?
- Nao, de jeito nenhum. – Sera estava chorando de emoçao – Obrigada, Cielo. E
obrigada, Serph.
- Ei, nao, nao chore. – afobado, Cielo balançou as maos, e entao começou a
descarregar a comida da bandeja na mesa – Vem, Sera, vem com tudo. Tipo, voce e muito
bonita, mas esta muito magra. Precisa comer pra colocar um pouco de carne nesses
ossos.
Serph saiu da sala, fechando a porta ao som de vozes felizes. Cielo cuidaria das
coisas de agora em diante.
Ele murmurou a palavra “amigo” para si mesmo de novo. Como Jinana teria dito,
tem um som agradavel. A amizade era mesmo algo capaz de ir alem das fronteiras
territoriais? Alem das tribos? So podia ser. Argilla e Jinana eram prova suficiente. Serph
tinha dito a Sera que Jinana e a Maribel eram um caso especial, mas, se eles jogassem as
cartas direito, talvez fosse possível encontrar algum jeito de evitar lutar com as outras
tribos afinal. Heat provavelmente diria para ele parar de sonhar e que essas ideias eram
ridículas, mas, mesmo assim, havia um pouco de otimismo nos passos de Serph
enquanto ele voltava para o quarto.
Gale estava esperando do lado de fora quando ele chegou la.
- Senhor, – ele disse – eu tracei o esboço de um plano para o nosso ataque conjunto
com a Maribel contra os Solidos. Tenho uma copia física aqui comigo, e tambem
encaminhei o arquivo para o seu terminal pessoal. Se algo nao estiver claro, ou, se sentir
que alguma coisa deve ser melhorada, posso fazer revisoes, contanto que me envie o seu
feedback ate a HL de amanha.
- Certo. – disse Serph. Ele sentiu como se tivesse sido arrancado de um sonho de
volta para a realidade. Nada tinha mudado na verdade. Eles ainda precisavam planejar
para a guerra. Eles ainda precisavam ir la fora e matar uns aos outros. E talvez fazer
coisas muito mais horríveis que isso.
Ele pegou os papeis e enfiou debaixo do braço.
- Voce tambem deve descansar um pouco, Gale. Pelo que pude perceber com as
minhas conversas com Jinana, voce e o unico bispo do Lixao que conseguiu se manter
sao depois da chegada do Atma.
Gale nao pareceu se afetar com a informaçao. Serph admirou o seu autocontrole.
O Atma inevitavelmente trazia a tona os instintos selvagens do indivíduo, alem de uma
poderosa e monstruosa fome, mas os bispos eram condicionados para cortar toda
emoçao e desejo, de modo que pensavam e se comportavam essencialmente como
maquinas. A loucura que resultava dessa disparidade podia ser fatal. Serph so podia
deduzir que o tumulto que deveria estar borbulhando dentro de Gale estava sendo
mantido sob controle pelo sangue de Sera e a sua presença pacificadora. Ele acreditava
que esses fatores ganharam tempo para que as conexoes neurais dos implantes de Gale
se reconfigurassem, um autoajuste que permitiu as suas capacidades de bispo e Atma
coexistirem.
- Suas responsabilidades so tendem a aumentar de agora em diante. – adicionou
Serph – Conto com voce. – ele se virou e entrou no quarto, mas Gale permaneceu parado
a porta, como se ainda quisesse dizer alguma coisa.
Serph parou, percebendo as intençoes do bispo.
- Voce tem algo mais a relatar? Se e sobre eu ter quebrado o comunicador, acredito
que ja ouvi o bastante naquele dia.
- A mulher e uma ameaça, senhor. – disse Gale sem cerimonia. Serph demorou
alguns segundos para perceber que ele estava falando de Jinana, e quando o fez, sentiu
uma indignaçao explodir dentro de si. Jogou o plano de batalha violentamente na mesa
e se voltou para Gale, encarando-o com severidade.
- O que voce quer dizer com isso? – exigiu – Acha que Jinana pretende nos trair?
Que no meio da nossa batalha juntos, ela vai aproveitar a oportunidade e nos atacar
pelas costas? E isso?
- Nao. – mesmo frente a furia de Serph, Gale permaneceu inabalado – Estou
completamente convencido de que ela honrara o nosso acordo. Ela literalmente seria
capaz de arriscar a propria vida para manter a aliança com a Embriao intacta.
- Entao por que ela e uma ameaça?
- Ela se importa demais com o seu povo.
Por alguns momentos, Serph ficou sem palavras. Entao uma ira feroz cresceu
dentro dele. Ele sentiu vontade de estrangular o seu conselheiro gelido e analítico. Qual
era o problema em se preocupar com alguem? Um bom líder entendia o quanto o seu
povo era importante, e nao arriscava as vidas dos seus seguidores ou os deixava sofrer
sem motivo. Serph disse mais ou menos isso, pausadamente, tentando segurar a raiva.
- O senhor esta numa posiçao tendenciosa. – disse Gale secamente – Embora as
regras de fato tenham mudado desde o aparecimento do Atma, a diretriz basica de que
uma tribo e eliminada com a morte do seu líder nao mudou. Isso significa que, se Jinana
morrer, a Maribel sera desmantelada, juntamente com a aliança que formamos.
- E o que isso tem a ver com ela se importar com o seu povo?
- Eu ja lhe expliquei isso anteriormente, senhor. – pela primeira vez que Serph
podia lembrar, Gale o olhou diretamente nos olhos. A surpresa o fez se calar; o bispo
normalmente mantinha o olhar baixo enquanto fornecia o seu monotono relato de
informaçoes. Serph agora o estava vendo sob uma perspectiva diferente.
- Eu posso entender porque o senhor simpatiza com ela. Como ela, o senhor tende
a colocar o bem-estar do seu povo acima do seu. – continuou Gale – Suas açoes ja
demonstravam isso mesmo antes do incidente com o objeto negro, e, desde o surgimento
do Atma, essa tendencia ficou ainda mais pronunciada. Mas isso e um grave erro. Se
Jinana morrer, a Maribel tambem morre. Ela nao esta levando isso em conta. Da mesma
maneira, se o senhor morrer, a Embriao morre junto. Os outros membros da tribo
deviam ser usados como escudo, para garantir que o senhor sobreviva a qualquer custo.
Esse e o dever e o proposito dessas unidades.
Serph rosnou de volta para ele.
- Voce quer que eu me torne como Mick, o Lesma, me escondendo em segurança
na minha base enquanto uso os membros da minha tribo como ferramentas descartaveis
para morrer no meu lugar?
- Pode ser uma estrategia eficaz. – disse Gale sem pensar duas vezes – Ate agora,
a Embriao era fraca demais para lutar sem o seu líder ao seu lado nas linhas de frente.
Mas agora que temos as tropas da Maribel nas nossas fileiras, a sua presença direta nao
e mais necessaria. O senhor devia permanecer na base, emitindo os comandos daqui
enquanto os seus tenentes direcionam a açao no campo de batalha. Nao havera reduçao
da capacidade de combate. Por exemplo, as nossas tropas conseguiram fazer muitos dos
Vanguardas sobreviventes se renderem sem ter de coloca-lo em risco na linha de frente,
senhor.
- E foi isso que voce escreveu no seu plano de batalha? – perguntou Serph,
gesticulando impacientemente para o relatorio que jogara na mesa.
- Nao. – disse Gale, com apenas uma hesitaçao momentanea – A responsabilidade
do bispo e auxiliar o líder dentro da sua linha de pensamento. Logo, o plano de batalha
que eu elaborei e compatível com as estrategias que o senhor tem em mente. Todavia, eu
senti a necessidade de dizer que esse plano vai contra as minhas proprias
recomendaçoes. O senhor nao e mais o comandante de uma tribo emergente. A Embriao
agora controla dois territorios. Como seu estrategista chefe, eu nao posso concordar que
se arrisque participando diretamente no campo de batalha como fazia no passado.
- Entao voce preferiria servir a alguem como Mick, o Lesma? – a raiva ainda nao
havia deixado a voz de Serph – Alguem que so se preocupa com a propria sobrevivencia,
se escondendo atras de paredes reforçadas? Alguem que fica satisfeito em ver o seu povo
ser morto contato que o seu proprio pescoço nao esteja em jogo? E mesmo esse o tipo
de homem que voce quer servir, Gale?
Gale demorou um tempo para responder.
- Eu sou um bispo, senhor. – seu esforço para encontrar as palavras certas era
visível – Um bispo serve ao seu líder. Independente de que tipo de líder ele possa ser, as
responsabilidades da posiçao de bispo nao mudam. Se o líder morre, a tribo e eliminada.
A minha consideraçao principal e garantir que a Embriao nao sofra esse destino. Meus
desejos particulares nao tem relevancia.
- Entao comece a pensar nisso. – insistiu Serph, serio e firme – Pense no que e que
voce quer fazer. Eu terminarei as minhas revisoes do plano de batalha ate amanha. Ate
la, pense se voce serve a mim ou a Embriao. E se voce decidir que eu nao sou adequado
para garantir a sobrevivencia da tribo, sinta-se livre para procurar algum lugar cujo líder
seja. Mas saiba que eu nao serei o tipo de líder que se esconde atras de um escudo feito
com o seu proprio povo. Eu jamais me tornarei esse tipo de líder, e nao vou aceitar que
voce me aconselhe a faze-lo. Mas voce tem o direito de nao gostar disso. Se quiser ir
embora, nao vou impedi-lo.
- O senhor deseja me expulsar da Embriao?
- Nao. Eu preciso de voce, e, se possível, gostaria de te-lo ao meu lado me
aconselhando por muito tempo. Por quanto tempo for possível. Eu so nao quero fazer
voce trabalhar para alguem com quem nao esta satisfeito. Apenas pense nisso, Gale. E...
Me desculpe por gritar com voce.
Gale nao ofereceu resposta.
- Voce e um dos meus membros mais importantes. – adicionou Serph mais
calmamente, se aproximando da porta – Eu nao quero te chatear. Nao quero que voce se
machuque. E muito menos que voce va embora e morra em algum buraco onde nunca o
encontraremos. Entenda pelo menos isso.
Gale tombou a cabeça, mas nao fez nenhum outro movimento. Enquanto fechava
a porta, Serph viu rapidamente a marca de Atma na perna de Gale pulsando com uma
fraca luz esverdeada.
Houve silencio do lado de fora por um tempo e entao, apos alguns momentos, o
som de passos se afastando gradualmente. Serph respirou fundo e sentou na cama para
analisar o plano de batalha.
Era um bom plano. Realmente era o tipo de coisa que ele mesmo bolaria, mas
desenvolvida com as muitas ideias excelentes de Gale. Serph deitou na cama. As folhas
se espalharam pelo chao, mas ele nao teve animo para pega-las. Estava cansado demais.
Gale estava certo, Serph pensou com um suspiro.
Mas, pensando bem, Gale estava sempre certo, nao e? Sua avaliaçao de Jinana
provavelmente foi certeira. Ela realmente se importava demais com o seu povo.
Ninguem a teria culpado por considerar as pessoas que perderam a humanidade
e foram exiladas da base como mortas e enterradas. Elas estavam alem de salvaçao. Mas
isso nao a impediu de querer encontrar um jeito de salva-las. A tristeza na sua voz
quando ela disse isso ressoou com Serph em algum lugar profundo, algum lugar sobre o
qual ele nao tinha controle.
Sua mente flutuou para o decreto mais recente da Igreja, feito nao muito antes da
sua ultima reuniao com Jinana. Os membros de uma tribo derrotada nao seriam mais
absorvidos pela conquistadora. Logo, a tribo que perdesse o líder era imediatamente
dissolvida, com os membros sobreviventes deixados a propria sorte, como os Recem-
Nascidos, sem ninguem para ajuda-los, ate que fossem mortos e devorados, ou ate
perderem a humanidade e se tornaram monstros. Em todo caso, Serph pensou, era um
destino muito mais miseravel que o anterior.
E agora nós comemos pessoas...
Graças ao sangue de Sera e ao efeito tranquilizante que a sua presença tinha, a
Embriao tinha conseguido ate agora evitar o caos que destruiu os Vanguardas e
enfraqueceu a Maribel. Mas nao havia como saber o que poderia acontecer quando eles
começassem a campanha militar contra os Solidos, usando os Atmas em batalha. Como
Heat disse, devorar pessoas tornava o Atma mais forte, entao, se eles nao fizessem isso,
estariam em grave desvantagem ao enfrentar aqueles que nao tinham essa reserva. E
mesmo o sangue de Sera tinha limites. Eles nao podiam contar com ela para resolver
todos os problemas para sempre.
- Do que e... – Serph se perguntou – Que eu tenho tanto medo?
Em algum lugar la no fundo, ele encontrou a resposta: mudança.
Ele nunca teve muitos escrupulos com relaçao a matar e obter a vitoria antes do
incidente com o objeto desconhecido e a chegada do Atma. A morte sempre foi apenas
uma coisa que acontecia, com os outros assim como aconteceria com ele, sem nenhum
significado especial. Mas agora era algo de profunda preocupaçao para ele. Ele nao
queria perder nenhum membro da Embriao, e, se possível, queria manter seus aliados
da Maribel seguros tambem. Nao simplesmente por consideraçoes taticas, mas porque
era isso que os seus sentimentos o faziam querer – sentimentos de compaixao, de
amizade.
Mas, ao mesmo tempo, ele sabia que, para proteger Sera e ascender a esse lugar
que a Igreja chamava de Nirvana, teria de triunfar sobre uma pilha de corpos, uma
montanha de sangue e carne. Sangue e carne – o simples pensamento fazia a sua
garganta coçar. Um formigamento corria pela sua bochecha. O Atma que jazia
adormecido ate agora se ouriçou em reaçao aos pensamentos do seu portador.
Antes, tudo era tao claro e simples, sem o menor potencial para mudança. Era lutar,
vencer e continuar lutando para chegar ao paraíso que a Igreja prometeu. Naquela epoca,
mesmo o paraíso nao era nada mais que um conceito. Antes de receber o seu Atma, Serph
nunca parou para pensar em que tipo de lugar o Nirvana era; e, muito provavelmente,
ninguem mais o tinha feito.
E mesmo assim, agora ele possuía um desejo imensuravel de ir ate la, e tentar
levar outros consigo. Antes do Atma, o proprio pensamento seria impossível. Agora que
o Atma mudou as regras antigas, apesar de ele ser capaz de pensar em tal coisa, era uma
ideia simplesmente risível. Um portador do Atma precisava devorar outros, ou nao
sobreviveria.
Gale diria que ele estava sendo contraditorio, e com razao. Mas Serph nao podia
mudar o que estava sentindo – muito embora uma pequena parte dele sentisse uma
trepidaçao crescente com as novas emoçoes que descobria dentro de si. Ate onde essa
metamorfose ia leva-los?
Ele lembrou do poder que sentiu quando se transformou na frente de Jinana, e o
prazer embriagante que vinha com ele. Talvez aquela fosse a verdadeira fonte do seu
medo. Se transformar em algo diferente era ao mesmo tempo assustador e fascinante.
Sim, fascinante. Junto com o medo vinha uma compulsao a qual Serph mal podia resistir,
algo que parecia suga-lo, para transforma-lo para sempre em algo que nao era humano.
“Venha”, ela parecia sussurrar docemente. “Derrame o sangue dos seus oponentes,
banhe-se em poder e torne-se o senhor dos mortos, dos desesperados, e dos indignos.”
E Serph temia ser fraco demais para rejeitar esse chamado para sempre. Se ele
tivesse de lutar e devorar seus oponentes, essa voz podia muito bem acabar vencendo.
Tambem era difícil negar que a tentaçao parecia promissora, capaz de liberta -lo de um
jugo que o limitava.
Antes de vencer a batalha contra os Solidos, Serph pensou, ele precisava vencer a
luta contra Varuna, contra o demonio sedento de sangue dentro dele que era o seu Atma.
Angel disse que os Atmas dos habitantes do Lixao eram as manifestaçoes das suas
verdadeiras naturezas. Isso podia ate ser verdade, mas quem nao conseguia controlar a
propria natureza corria o risco de perder a identidade. Talvez a Igreja considerasse isso
um sucesso, mas Serph nao ia simplesmente se deixar controlar. Ele queria continuar
sendo ele mesmo, como sempre se conheceu.
Ele ja ouvira alguem dizer algo assim.
Heat nao via nenhum problema em devorar outras pessoas, mas, la no fundo, ele
ainda era o Heat, e nao tinha mudado. Se tivesse, entao Serph nao teria conseguido dete -
lo durante o incidente da Maribel. Heat aceitou tanto seu Atma quanto sua fome. Agora
Serph percebia que foi por isso que Heat o questionou no corredor antes, com a sua
inquietude quanto a indecisao contínua do líder.
- Eu sempre vou ser eu. – Serph invejava a força por tras dessa declaraçao. Heat
esperava que Serph demonstrasse essa mesma força, a determinaçao de sempre ser ele
mesmo, viesse o que viesse. E, para fazer jus a confiança do seu camarada, a Embriao
precisava garantir que ele nao se tornasse algo diferente. Ele precisava suprimir seus
desejos, controlar as tentaçoes sangrentas do seu Atma, para ser um pilar que...
Serph abriu os olhos.
Em algum momento, ele caiu no sono. Em algum lugar ao longe, ele pensou ter
ouvido um suave miado, mas seus ouvido podiam apenas estar pregando uma peça nele.
Ele se levantou e foi ate a janela. Eram 11:23 da Hora de Sombra – nao, era noite.
Da janela, ele podia ver a muralha externa da base e os soldados de guarda la. Acima da
escada de emergencia do outro lado, percebeu uma centelha de luz vermelha. Olhando
para ela, viu que Heat estava la, encostado contra a parede, fora do alcance da chuva de
prata. Ele olhava para uma das suas maos.
A mao de Heat tinha se transformado numa das maos vermelhas de Agni. Suas
quatro garras se abriam e fechavam lentamente, círculos de fogo dançando no espaço
entre elas. O fogo iluminava um lado do seu rosto. Ele parecia exausto, e nao parecia
ciente de que Serph o observava.
De novo e de novo, ele criava e extinguia aquelas chamas; entao esticou os braços
e pernas e recostou a cabeça contra a parede, ficando quieto, como que dormindo. Seu
braço, ainda o de Agni do cotovelo para baixo, nao parecia compartilhar da total falta de
energia do dono – as garras afiadas continuavam a se mover lentamente, como que em
busca de alguma presa nao-existente.
Serph fechou a janela e sentou a sua mesa.
- Eu nao vou – ele murmurou para si mesmo – deixar de ser eu mesmo.
Independente do que acontecesse. Independente do quão difíceis as coisas ficassem.
Ele ligou o computador, reuniu as paginas espalhadas pelo chao e começou a
analisar o relatorio de novo. Ele so tinha algumas horas para entregar a revisao a Gale.
Capítulo 5

Proposição XXII: Se imaginarmos que alguém


afeta de alegria a coisa que amamos, seremos
afetados de amor para com ele. Se, ao contrário,
imaginarmos que a afeta de tristeza,
seremos, ao contrário, afetados de ódio contra ele.

– Espinosa, Ética, Parte III

Eram 05:02 HS. O ceu ainda estava escuro.


- Uma hora para o amanhecer. – murmurou Serph para si mesmo; ele desenvolveu
esse habito recentemente. Em breve, a Hora de Sombra mudaria para Hora de Luz. Sera
chamava isso de “amanhecer”, quando o sol (Serph ainda nao entendia muito bem o que
era isso) se erguia e irradiava sua luz sobre o mundo. Aqui havia apenas um entediante
ceu magenta, e uma fonte de luz que nao passava de um brilho indistinto. Ainda assim,
Serph achava que “amanhecer” era uma boa palavra.
Heat e Argilla estavam escondidos ali perto. Seu objetivo, um conjunto de
muralhas negras de fortaleza, estava a cerca de duzentos metros. Cabeças eram visíveis
por volta dos cinquenta metros de altura, proximo ao centro do terceiro pavimento.
Havia varios postos e artilharia ao longo das muralhas, e vez ou outra os soldados que
os ocupavam podiam ser vistos. Eles estavam num estado de alerta mais elevado que o
esperado.
Essa era a fortaleza no coraçao de Anahata, o quartel-general dos Solidos – talvez
a base mais bem protegida de todas as tribos. Serph e os outros tinham se posicionado
atras de um predio a sudoeste do lado frontal da base. Os defensores tinham removido
a maioria dos destroços da area ao redor para eliminar qualquer cobertura para
possíveis atacantes.
Ate dois ou tres dias atras, o lugar onde o grupo de Serph estava se escondendo
agora era um posto de vigilancia dos Solidos. A edificaçao foi tomada e destruída num
ataque da Maribel, e parece que nao houve tempo desde entao para os Solidos limparem
a area. O ataque da tribo aliada tinha como objetivo abrir espaço para uma pequena
equipe de infiltraçao, composta por Serph e os outros, se esconder ate chegar a hora da
operaçao começar. Como esperado, o líder dos Solidos, Mick, o Lesma, nao apareceu em
momento algum.
A operaçao pedia que a incursao começasse durante o período de transiçao de
Hora de Sombra para Hora de Luz, durante o breve “pre-amanhecer” em que a
visibilidade era bastante limitada. O cheiro podre de aço queimado ainda pairava no ar.
Serph checou a hora uma ultima vez antes de levar a mao ao ouvido, ajustando a
recepçao do seu novo comunicador.
- Gale, me copia? Qual a sua situaçao?
- Nenhum problema a relatar. – devido a alta proximidade com o inimigo, eles
estavam usando dois níveis de criptografia para impedir que as transmissoes fossem
interceptadas pelos Solidos, entao havia um pequeno atraso nas respostas – Cielo esta
liderando com um esquadrao de Atmas alados, que ja esta a caminho. Estou em posiçao
a dois quilometros da base. Jinana esta no comando das tropas da Maribel. Tudo parece
estar seguindo de acordo com o plano no lado deles.
- Excelente.
- Começaremos o ataque as 06:00 HL. A incursao começara trinta minutos depois,
conforme o cronograma. Que o karma o abençoe, senhor. Cambio e desligo.
A transmissao terminou. Serph tirou a mao do ouvido e voltou sua atençao para o
objetivo.
A operaçao conjunta da Embriao e da Maribel contra os Solidos tinha prosseguido
de acordo com o plano de Gale ate agora. Primeiro, um grupo de choque da Maribel fez
um pequeno ataque com o intuito de limpar o caminho e criar um ambiente propício
para a equipe de infiltraçao atravessar. Foi esse o grupo que destruiu o posto de
vigilancia. Agora, uma força combinada da Embriao e da Maribel se preparava para fazer
um ataque total frontal e aereo e, enquanto os Solidos estivessem ocupados com isso, a
equipe de infiltraçao, menor, entraria na base para capturar ou eliminar Mick, o Lesma.
Juntas, a Embriao e a Maribel tinham pouco mais de duzentos soldados. Tirando
os que precisavam ficar para tras para proteger as respectivas bases, a força real de
campo nao passava de cem. Normalmente, uma força de ataque desse porte seria
insuficiente para uma missao tao ambiciosa, mas, levando em conta que a explosao
inicial do Atma reduziu a Maribel a míseros cinquenta e poucos membros, Gale deduziu
que era muito provavel que os Solidos tivessem sofrido perdas semelhantes.
- Se o objetivo principal do ataque e simplesmente distrair o inimigo, entao os
nossos duzentos soldados devem ser o bastante. O ponto crítico e neutralizar o líder,
Mick, o Lesma. O QG dos Solidos e muito maior que o da Embriao e ate mesmo que o da
Maribel, mas se fizermos um ataque simultaneo por terra e ar com uma força de cem
Atmas, o inimigo sera forçado a negligenciar a segurança do interior da base. Isso criara
uma abertura nas suas defesas suficiente para um grupo pequeno se infiltrar e atacar o
líder diretamente.
Gale realmente me conhece muito bem, pensou Serph enquanto revia o plano
mentalmente.
Gale selecionou a si mesmo, Heat e Argilla para serem os membros da equipe de
infiltraçao. Serph removeu Gale da lista e se incluiu no lugar. Quando percebeu essa
mudança entre as revisoes de Serph ao plano, o bispo se opos.
- E porque o senhor tem duvidas quanto a minha capacidade de combate?
- E apenas uma questao de ter as pessoas certas no trabalho certo. Nao entenda
errado, voce e um bom guerreiro. Mas os bispos sao naturalmente mais adeptos a
atividades taticas, e tenho certeza de que voce tambem reconhece que as minhas
habilidades de combate superam as suas. Alem disso, voce e um dos poucos bispos que
ainda restam no Lixao. Se o pior acontecesse com voce, nao teríamos como substitui-lo.
- O senhor e o unico que nao e substituível. Se o senhor morrer, a Embriao...
- Ja conversamos sobre isso ontem, e nao vamos faze-lo de novo agora. A equipe
de infiltraçao deve ser composta por aqueles com as melhores capacidades de combate.
Tenho certeza que voce entende isso.
Gale claramente tinha uma opiniao diferente, mas nao insistiu. Ficou quieto por
um tempo, e entao disse, por fim:
- Estive pensando no que o senhor me perguntou ontem a noite. Se eu sirvo ao
meu líder ou a Embriao.
Serph colocou a sua copia do relatorio na mesa e esperou Gale continuar.
- Nao cheguei a uma conclusao. – disse Gale finalmente apos um longo silencio.
Provavelmente foi a primeira vez que Serph o ouviu falar sem a sua prontidao inabalavel
de sempre – Eu sou um bispo. Foi para ser isso que eu nasci. Ainda nao sou capaz de
compreender completamente que tipo de efeito o meu Atma tem sobre mim. Todavia,
pelo menos por enquanto, nao encontro contradiçao entre servir aos interesses da
Embriao e servir ao senhor como meu líder. Atualmente, o senhor e o líder da tribo a
qual eu pertenço e a qual sirvo. A possibilidade de o senhor morrer ou se ausentar nao
existe e nao pode existir para mim. Nao posso levar fatores tao abstratos em
consideraçao, e...
- Tudo bem, Gale, eu entendi. – disse Serph, dando um tapinha no ombro do seu
tenente, detendo-o antes que ele começasse a dar voltas – Esta tudo bem por enquanto.
Tente ir entendendo aos poucos. Nao ha pressa. Eu preciso de voce. Eu confio em voce,
Gale. Do fundo do meu coraçao.
Com isso, as sobrancelhas de Gale se moveram levemente, mas ele nao disse mais
nada.
E agora, Gale estava ao lado de Jinana, cuidando da comunicaçao entre os dois
líderes e monitorando a operaçao. Serph estava confiante em encarrega-lo disso, e Jinana
estava feliz por ter um valioso bispo a sua disposiçao. A hora do ataque frontal se
aproximava.
Uma fraca luz começou a aparecer no limite do ceu escuro, um triste magenta
fluorescente. Serph se perguntou como seria um amanhecer de verdade, mas deixou o
pensamento de lado para se concentrar na missao.
- Preparem-se. Esta na hora.
Como se essas palavras fossem um gatilho, uma serie de explosoes ressoou do
outro lado das robustas muralhas dos Solidos. As figuras no alto da muralha entraram
em panico, debandando dos seus postos. Serph sorriu maliciosamente. Ele quase podia
ouvir Gale comentando que o desespero deles era evidencia de uma liderança pobre.
Quando um líder designava membros da tribo para um posto, eles jamais deviam
abandona-lo sem uma ordem.
Enquanto o feixe crescente de luz fraca se esticava pelo horizonte, varias figuras
aladas surgiam no ceu. Eram lideradas por um elegante Atma de cabeça pontuda e asas
que pareciam navalhas. Era o alter ego de Cielo, Dyaus. Ele fez uma ampla manobra sobre
a fortaleza, olhou para Serph e os outros e emanou um uivo triunfante.
Um raio brilhou acima de onde Serph e seu grupo estavam escondidos; a rajada
disparada por Dyaus era o sinal para os outros Atmas alados começarem o ataque. Um
apos o outro, eles voaram em direçao a base. Um enorme, de quatro patas e garras
afiadas, disparou um cone de fogo enquanto avançava; com um rapido bater de asas,
espalhou penas que se transformaram em afiadas agulhas de luz que metralharam as
forças inimigas. Outro conjurou uma esfera de luz que brilhou forte por um instante,
para entao derreter em escuridao; tudo no seu caminho foi partido ao meio, e, ao se
chocar com o chao, causou um forte tremor que levantou uma nuvem de grossa fumaça
e poeira.
Os Solidos começaram a receber o ataque com os seus proprios Atmas voadores.
Sobre a fortaleza, asas batiam umas contra as outras, garras encontravam presas e
relampagos brilhavam. Um par de formas engalfinhadas tombou do ceu, mas, quando
estavam prestes a bater num predio, uma delas se afastou, batendo as asas e se
reerguendo para retornar a batalha, mastigando o pedaço sangrento de carne que
arrancou do oponente. O cheiro de carne queimada tomou o ar, misturado com o forte
odor de ozonio da tempestade de eletricidade.
Serph respirou fundo enquanto assistia a batalha travada sobre sua cabeça,
enquanto Gale o fornecia atualizaçoes constantes sobre a situaçao atraves do
comunicador no seu ouvido. Apesar da sua reputaçao, os Solidos pareciam
despreparados para multiplos ataques num intervalo de tempo tao curto, e o fato de
estarem enfrentando um ataque combinado da Embriao e da Maribel os pegou de
surpresa. Havia muito mais tropas do que eles jamais enfrentaram antes, e estavam
atacando nao so por terra, mas tambem por ar – um tipo de ataque ao qual nenhuma
fortaleza do Lixao foi construída para resistir. Com sorte, isso daria a equipe de
infiltraçao de Serph uma chance muito maior de entrar na base sem ser detectada.
A hora chegou. Serph acenou para Heat e Argilla e saiu na chuva. Os tres usavam
capas de camuflagem que se misturavam ao ambiente e escondiam seus cabelos de cores
chamativas. Pequenas gotas escorriam pelo material resistente a agua. Algum dia,
pensou Serph, essa chuva vai parar. Quando não houverem mais corpos para se tornarem
chuva, não haverá mais chuva para cair.
Levou cerca de cinco minutos para eles chegarem ao destino, correndo de um
ponto de cobertura para outro. O que os aguardava era uma enorme muralha sem
nenhuma empunhadura – um obstaculo formidavel. Mas a equipe de choque ja tinha
bolado uma estrategia para escalar a superfície durante o ataque anterior. Uma pessoa
comum nunca conseguiria, mas Serph e os outros tinham o Atma.
- Heat.
Ao chamado de Serph, Heat se transformou na colossal forma rubra de duas
cabeças de Agni. Soltando um discreto grunhido, pendurou a corda que o grupo trouxe
num ombro e enfiou as quatro garras de cada um dos seus punhos na parede. Seus
grandes musculos enrijeceram quando ele começou a escalar a imponente estrutura.
Sem uma unica pausa para descanso, Agni venceu a parede de quase cinquenta metros.
Alguns minutos se passaram e uma ponta da corda foi lançada la de cima. Serph e Argilla
a agarraram rapidamente e subiram a construçao. Quando chegaram ao topo,
encontraram Heat esperando. Ele havia desfeito sua transformaçao e estava abaixado,
averiguando os arredores.
Argilla foi a ultima a chegar ao topo. Assoprou os pulsos doloridos enquanto
tentava recuperar o folego.
- Nao podíamos pelo menos ter trazido uma escada de corda? Vou ter dificuldade
para mirar com as maos desse jeito.
- Voce ainda acha que armas servem pra alguma coisa? – zombou Heat, olhando
para o rifle pendurado no ombro dela.
- E nao servem? Me sinto nua sem isso. E e como eu disse antes: ao contrario de
voce, eu nao quero ativar o meu Atma a menos que seja absolutamente necessario,
mesmo que tenhamos ampolas com o sangue de Sera a postos.
Heat bufou e se voltou para Serph.
- E voce? Tambem vai usar o sangue da garota pra fugir da realidade?
- Nao.
Argilla reagiu com surpresa, e Heat abriu um olhar de curiosidade.
- Nao vou matar ninguem sem necessidade, – disse Serph – mas vou matar
qualquer um que tentar me impedir, se for preciso. Nao e como se nunca tivessemos feito
isso antes. A essa altura, eu nao posso mais simplesmente me esconder atras de um veu
de idealismo. Eu preciso ser forte, para proteger a mim mesmo e aos meus companheiros.
- Mas senhor...
- Nao vou te obrigar a fazer nada, Argilla. – disse Serph com calma – Voce tem a
liberdade para agir conforme a situaçao exigir, como sempre.
Argilla começou a responder, mas segurou as palavras e apenas fez que sim.
- Muito bem, entao. – disse Serph firmemente – Nao temos mais tempo a perder.
Mick, o Lesma, esta em algum lugar dessa base. Provavelmente nao encontraremos
muitos soldados na parte de dentro, mas, quanto mais depressa terminarmos isso,
menos pessoas se machucarao. Vamos.

Serph e os outros tingiram as marcaçoes laranjas da Embriao de seus trajes com


o amarelo dos Solidos, para o caso de serem descobertos dentro da base, mas isso nao
mudava o fato de que estavam em serio perigo.
Eles conseguiram descer despercebidos do topo da estrutura de sete andares ate
o terceiro, onde se depararam com um longo corredor exposto ao ceu; na sua ponta,
havia um posto de artilharia vazio. Muito acima, eles podiam ouvir os sons dos seus
Atmas alados colidindo com as tropas de ar dos Solidos, entao se esconderam na relativa
segurança do posto. Por um momento, o ceu foi banhado de purpura, e entao, com uma
grande explosao, tudo ficou branco, com algum tipo de descarga eletrica cortando o ar.
Parecia que a batalha aerea estava ficando cada vez mais violenta.
As unicas saídas do posto de artilharia, fora o caminho pelo qual vieram, eram
uma escada rudimentar no seu lado externo e um elevador de carga na parte interna.
Descer a escada os deixaria perigosamente expostos, e entao, apesar do risco da
presença de inimigos, eles decidiram usar o elevador de carga.
Serph pressionou o botao para chamar o elevador; alguns momentos depois, a
porta se abriu. Argilla tomou a dianteira, rifle em posiçao. A area estava limpa. Serph deu
o sinal para avançar.
Os tres entraram e o elevador começou a descer. Nao era particularmente
confortavel, balançando e batendo nas paredes como balas num cano estreito. Logo a
vista do exterior foi obscurecida, mas eles podiam sentir o predio tremendo com a
batalha que fervia la fora.
- Nao pode fazer contato com Gale? – cochichou Heat.
- Estamos sob controle de radio. Nao podemos arriscar que a transmissao seja
interceptada. – dessa vez, eles estavam sozinhos. Mais um motivo para terminar o
trabalho depressa e sem complicaçoes. Se encontrassem algum inimigo, eles precisavam
atacar primeiro e atacar direito.
O elevador de carga parou. Heat deu uma boa olhada ao redor antes de acenar
para os outros saírem. Os sons de batalha estavam mais perto agora que antes. Uma
placa indicava que eles estavam no primeiro andar.
- Acho que as escadas sao o unico jeito de descer mais. – disse Heat.
- Talvez. – Serph examinou a area. Antes da operaçao, eles fizeram varias
tentativas de conseguir a planta da base; recorreram ate a alguns dados de quando a
fortaleza foi usada como base por outra tribo antes dos Solidos. Mas nada se mostrou
confiavel, sendo informaçao falsa ou simplesmente desatualizada.
- Provavelmente ha algum jeito mais direto de chegar la. – concluiu Serph – Mas
nao temos tempo para procurar por isso. Acho que vamos ter que pegar as escadas e, se
por acaso encontrarmos algum elevador no caminho, otimo.
O som de passos freneticos surgiu de repente no corredor. Serph e os outros se
espalharam, se escondendo em pontos estrategicos. Um grupo de quatro ou cinco
Solidos passou aos gritos pela interseçao em T no final do corredor que o grupo de Serph
estava seguindo. Ele e os outros esperaram o inimigo ir embora para sair dos seus
esconderijos.
Mas Serph mal deu um suspiro de alívio por nao terem sido descobertos quando
uma voz ecoou da direçao oposta.
- Ei, o que voces estao fazendo aí?
Era um par de guardas armados, aproximando-se por tras com armas a postos.
- Todos que puderem segurar uma arma devem se juntar a batalha no portao
principal. Nao ouviram a ordem? – rosnou um dos guardas, balançando a arma –
Depressa, andem... Ei, espera aí. – ele começou a se aproximar – Eu nunca vi voces tres
antes. Sao de qual batalhao?
A farsa acabou.
Antes que Serph pudesse reagir, Heat saltou, luz azul envolvendo o seu corpo
enquanto ele se transformava na sua demoníaca forma vermelha. Um dos guardas gritou,
atirando cegamente por puro reflexo. As balas ricochetearam em Agni como se fossem
graos de areia, e a besta agarrou o homem, o levantou acima da cabeça e o partiu no meio
com a facilidade com que se rasga um pedaço de papel, sangue e tripas chovendo sobre
o seu enorme corpo.
Argilla desviou o olhar da cena medonha. O jato de sangue foi absorvido pela pele
de Agni ao toca-la, nao deixando rastro. Uma das duas cabeças redondas lambeu os
beiços em satisfaçao, abrindo um sorriso macabro.
Em panico, o outro guarda ativou seu Atma e partiu para o ataque, transformando-
se numa besta coberta de um grosso pelo negro. As garras nas suas quatro patas eram
envoltas em chamas azul claro, e sua boca emanava fogo. Heat, como Agni, soltou um
rugido quando bloqueou a estocada da mandíbula ardente da criatura. A grande besta
de pelos negros emitiu um guincho estridente, cravando suas garras cobertas de chamas
no dorso de Agni.
Contra um deus do fogo, porem, chamas de nada serviam. Agni latiu outra risada
e entao agarrou o oponente pela mandíbula com as duas maos. Ossos quebraram, e
sangue se misturou com a baba do monstro peludo. Saliva vermelha pingou no chao
quando a besta miou um pedido de misericordia.
- Ja chega! Solte-o, Heat! – ordenou Serph, colocando a mao no braço de Agni e
tentando ao maximo controlar nao so a nausea nas suas entranhas, mas o forte desejo
que corria contrario ao seu desgosto: o desejo de se alimentar daquela carne cheia de
vida e sangue.
- Por que voce sempre tem que me impedir quando eu estou chegando na melhor
parte? – disse Agni, que, embora tenha soltado a presa, permaneceu transformado. Ele
ficou atras de Serph, brandindo suas garras em tom de ameaça, dando todos os sinais de
que ficaria feliz em terminar o que começou. O guarda voltou a forma humana assim que
caiu ao chao, sangue fresco escorrendo dos dois lados da sua boca estourada.
- Quem e voce? O que e voce? – ele conseguiu balbuciar – Espera... Cabelo
prateado... – o homem pareceu reconhecer Serph, e entao um novo tipo de medo inundou
seu rosto deformado – Voce e... Voce e o líder da Embriao. O que faz aqui?
- Basta dizer que ele e diferente do covarde que voce chama de chefe. – disse
Argilla, enfiando o cano do rifle na boca do homem – Agora, onde esta Mick, o Lesma?
Fale, ou vou estourar seus miolos aqui e agora. Posso apostar que voce nao tem poder
suficiente para se transformar de novo.
- Mas se nao quiser falar, tudo bem. – adicionou Agni – Vamos perguntar pra algum
dos seus amigos pelos corredores. Voce prefere ser devorado vivo ou depois de morto?
A escolha e sua.
O homem soltou um fraco ganido. Serph o estudou com os olhos. Seu medo nao
parecia ser fingimento – o jeito que ele tremia quando olhava para os restos dilacerados
do seu parceiro era sem duvida muito real. Serph direcionou um olhar para Argilla e ela
tirou o rifle da boca ensanguentada do guarda.
- Eu nao sei de nada direito. – balbuciou o homem entre soluços – O chefe nunca
fica no mesmo lugar por muito tempo, e nunca diz a ninguem onde esta. Ele passa as
ordens por vídeo ou radio. Um soldado raso como eu quase nunca o ve em pessoa.
- Ele e tao dissimulado que nao confia nem no seu proprio povo. – disse Argilla,
mordendo o labio – Esses caras sao mesmo uns coitados.
- Tudo bem se voce nao sabe onde exatamente ele esta. – disse Serph – So nos de
um palpite. Algum tipo de pista.
Ambas as cabeças de Agni lamberam os labios ameaçadoramente.
- Sera um prazer arrancar sua cabeça se nao falar. – ofereceu o Atma de fogo.
Por fim, o homem juntou coragem para falar.
- O lugar mais provavel para ele estar e a sala de controle principal. Acho que fica
no oitavo subnível. Eu nao sei bem onde, mas quando ele da ordens, a maioria das
transmissoes vem la de baixo. Nao tenho certeza se o chefe fica la o tempo todo ou nao.
Sao so boatos.
- Tudo bem. Obrigado. – disse Serph, e rapidamente desferiu um golpe no pescoço
do homem. Os olhos do guarda se arregalaram, e entao reviraram quando ele perdeu a
consciencia. Serph o carregou ate o elevador de carga e o ativou. Esperou ele estar bem
alto e manifestou seu Atma no braço direito, estendendo a lamina retratil e cravando-a
no painel de controle. Varias faíscas voaram, e a maquina ficou quieta.
- Isso devera mante-lo fora do nosso caminho por um bom tempo. – disse Serph
quando reverteu o braço ao normal.
- Voce continua um frouxo. Seria muito mais pratico mata-lo.
- Voce ja matou o outro, Heat. Foi o suficiente. – Serph fez uma pausa – Agora
vamos. Voces ouviram o homem. Vamos descer.
Eles prosseguiram para mais fundo na base com cautela, tomando cuidado para
se espalhar e se esconder sempre que alguem se aproximava. Encontraram varios
guardas pelo caminho, mas conseguiram passar por todos sem ser vistos. Felizmente, o
interior da base dos Solidos era bastante escuro, alem de cheio de quinas e bifurcaçoes
aparentemente inuteis, o que facilitava para eles se esconderem. As muitas bifurcaçoes
provavelmente eram uma medida para confundir invasores, e as paredes grossas e
pesadas criavam um senso de confinamento que contrastava violentamente com a
receptividade da base da Maribel.
De vez em quando, os sons distantes da batalha ainda chegavam a eles.
- Espero que Jinana e os outros estejam bem. – murmurou Argilla.
- Foco na missao, Argilla. – alertou Serph – Quanto mais rapido terminarmos isso,
melhor sera para os outros. Concentre-se.
- Sim, senhor. Desculpe.
Serph entendia o que ela estava sentindo. Tudo estava correndo bem demais, e
isso o deixava inquieto. Essa era a base de uma tribo de porte medio, do nível da Maribel.
Mesmo que os Solidos tivessem perdido pessoas durante a primeira manifestaçao do
Atma, e mesmo que estivessem focados no ataque no portao principal, devia mesmo ter
tao pouca resistencia ali, no coraçao da fortaleza?
Quanto mais desciam, mais os membros da Embriao ficavam alerta, mas parecia
haver cada vez menos pessoas. Serph começou a se perguntar se nao seguiram uma pista
falsa. Se Mick, o Lesma, estava mesmo se escondendo la embaixo, considerando o que se
sabia da sua personalidade, nao se manteria cercado de guardas? Ou usaria essa farsa
como cortina de fumaça enquanto se escondia em outro lugar?
Heat mexia os dedos impacientemente. Ele adorava uma boa batalha, sangue e
morte. Toda essa cautela, se escondendo atras de paredes e tentando evitar confrontos,
estava claramente cansando-o. Ter devorado aquele guarda mais cedo provavelmente
exacerbou ainda mais o seu apetite insaciado. Argilla, por outro lado, estava visivelmente
preocupada com a situaçao la fora, olhando varias vezes para cima como se pudesse ver
atraves dos blocos de aço e concreto para saber o que estava acontecendo. A cada
explosao ouvida, ela mordia os labios ansiosamente.
- Parem. Guardas a frente. – a tensao subiu na hora. Heat emitiu um rosnado quieto
e Argilla sacou o rifle. Serph gesticulou para que ficassem para tras, e entao olhou com
cuidado da ponta da escadaria.
Eles estavam no setimo subnível, um andar acima do suposto destino. Os poucos
guardas que encontraram pelo caminho estavam patrulhando em duplas ou trios. Agora
eles se depararam com meia duzia de vigia no amplo corredor onde as escadas
terminavam. Pareciam estar protegendo algum tipo de sala ou aposento.
- Parece que encontramos o lugar. – murmurou Heat – Esteja ele la dentro ou nao,
com certeza e um lugar importante.
- Argilla. – disse Serph concentradamente – Granadas de luz. Agora.
Argilla fez que sim. Os tres companheiros rapidamente colocaram as mascaras de
gas e oculos que trouxeram consigo, e entao a atiradora sacou algumas granadas do seu
cinto.
- Ainda nao. – cochichou Serph – So mais um pouco. Certo, tres, dois, um... Agora!
Argilla jogou tres esferas reluzentes no corredor. Elas rolaram ate os guardas
fazendo um barulho metalico. Os seis soldados se assustaram com o som, e entao a
realidade do que estava acontecendo tomou conta dos seus rostos.
Assim que os guardas abriram a boca para exclamar um aviso, houve uma
explosao de luz, transformando seus gritos em xingamentos abafados. Nao so a luz os
deixaria sem visibilidade por uns bons dez segundos, mas as granadas tambem
emanavam um irritante gas branco que tomou conta do corredor. Serph e os outros
desceram a escadaria correndo.
- Ha uma porta no final do corredor, Serph. – disse Heat pelo microfone da mascara
– Deve ser o lugar que aquele guarda falou. Vamos depressa.
Os guardas atordoados foram silenciados com um unico golpe cada antes que
pudessem organizar qualquer tipo de resistencia. Uma serie de gritos ecoou la em cima
– aparentemente, outros soldados ouviram o estouro das granadas, e, pelo jeito, estavam
se aproximando depressa. Mesmo assim, Serph concluiu que eles teriam tempo
suficiente para chegar a Mick, o Lesma. Mesmo que o líder dos Solidos tivesse uma rota
de fuga preparada de antemao, decerto nao seria suficiente para ir longe.
O grupo da Embriao correu ate a porta atravessando o veu de fumaça. Ela tinha
cerca de dois metros de largura, e era feita de aço reforçado. Parecia extremamente
resistente, e nao havia meios visíveis de abri-la.
- Heat. – disse Serph, e Heat murmurou um “sim” entre dentes enquanto envolvia
seu braço em chamas. Nenhum guarda chegou a tempo. A camara do outro lado estava
escura; no centro, eles viram uma grande cadeira que provavelmente pertencia a Mick,
o Lesma, mas estava vazia. Telas suspensas e monitores espalhados pela sala ofereciam
amplas opçoes de esconderijo.
- Muito bem, Mick, onde voce esta? – gritou Serph – Esse e um ataque conjunto da
Embriao e da Maribel. Estamos dispostos a aceitar sua rendiçao. Voce nao tem para onde
fugir. Apareça!
A unica resposta foi o som de metal rachando, seguido de algo batendo no
concreto atras dele. Serph deu meia volta, so para ver que um bloco ainda mais maciço
havia tomado o lugar da porta de aço que Heat destruiu. Argilla engasgou e Heat mordeu
a língua. Varias vozes puderam ser ouvidas por perto, rindo.
- Uma armadilha. – suspirou Heat – E caímos como patinhos.
Multiplas silhuetas saíram de tras dos monitores e pilhas de equipamentos. Serph
e os outros se agruparam costa a costa, armas a postos enquanto analisavam a situaçao.
Havia de vinte a trinta figuras cercando-os – e nem todas eram humanas. Todas
usavam marcaçoes tribais amarelas. Seus risinhos ecoavam por toda parte. Uma
emboscada dos Sólidos. Em quase todos, era possível ver a marca do Atma brilhando.
Muitas eram identicas, o que fazia deles Atmas Menores, mas se qualquer um entre eles
teve a chance de aumentar seus poderes devorando outros, nao podia ser subestimado.
- Onde esta Mick, o Lesma?
- Nao aqui. – um dos Solidos disse com um sorriso de deboche. Os outros riram
em uníssono, o sinistro som ecoando pelas paredes.
- Ja faz tempo que sabíamos que voces atacariam. Se estao procurando o chefe, ele
deve estar no telhado agora, mastigando os homens que voces trouxeram como
distraçao. Ou isso ou esta a caminho do territorio da Embriao para pegar esse seu
remedio que controla o Atma. Mas tudo isso e so palpite. Afinal, o chefe so nos conta o
que precisamos saber.
- Remedio? – disse Argilla – Mas so Jinana e a Maribel...
- Bom, foi isso que o cara que veio vender voces disse ao nosso chefe. – sua risada
de escarnio estava mais alta agora, e seu sorriso parecia ir ate a orelha – O chefe nao
tinha certeza se devia acreditar ou nao, mas aí voces fizeram exatamente o que esse cara
disse que iam fazer. Devo dizer que estou impressionado por ele ter feito algo tao
deliciosamente dissimulado.
Argilla ficou palida.
- E impossível! Ninguem venderia a propria tribo!
- Voces deviam ter visto a cara daquela mulher quando descobriu que um dos seus
proprios homens a vendeu daquele jeito. Aposto que o chefe esta fazendo um banquete
com ela agora, saboreando cada pedaço.
- Seu desgraçado! – gritou Argilla, e seu corpo foi envolvido numa explosao de luz
azul.
- Devorem eles! – ordenou o homem, sua voz triunfante ecoando pela sala.

Um sorriso sinistro se formou no rosto do líder da emboscada enquanto a luz azul


o envolvia. Seu rosto se distorceu, mas aquele sorriso de orelha a orelha foi a unica coisa
que nao mudou quando uma armadura se formou sobre o seu corpo, e sua forma se
transformou na de um esqueleto portando uma espada em cada mao. A criatura morta-
viva riu. O rastreador no olho de Serph o identificou como um Turdak – um Atma Menor,
mas um dos mais capazes.
Os outros soldados proferiram um coro de urros vulgares enquanto, um apos o
outro, se transformaram. A maioria eram Nues, grandes criaturas amarelas com rostos
negros e jubas brancas, raios dançando sobre os seus corpos. Esses tambem eram Atmas
Menores, e nao particularmente fortes, mas o que nao tinham de força, compensavam
com numeros. O Turdak se posicionou enquanto os Nues furiosos atiraram arcos de
relampago em todas as direçoes, jogando a sala inteira num caos.
Serph tirou a mascara e os oculos e os jogou longe. Sua bochecha estava quente, e
ele levou a mao ate a marca pulsante de Atma. Deixou as palavras de comando, om mani
padme hum, se formarem na sua mente. Num instante, um surto embriagante de energia
correu pelo seu corpo enquanto uma luz azul borrou sua visao. Ele balançou o braço; a
luz desapareceu, e o som das suas laminas se estendendo cortou o ar. Um rosnado baixo
e rouco escapou por entre os seus dentes pontudos.
- Atma Maior! – gritou um dos Nues, se afastando de medo – Nao pode ser! Por
que haveria um Atma Maior aqui? Eles sao apenas tres!
- “Apenas”? – cochichou uma das cabeças de Agni no ouvido do Nue. O Atma de
fogo ja havia se transformado e partiu para o ataque. Agora sangue escorria da boca do
Nue, cuja garganta fora esmagada. Com seus enormes punhos vermelhos, Agni
rapidamente torceu o pescoço do oponente – Estou com fome faz tempo. Voces vao
desejar nao ter me encontrado.
Com um rugido, Agni afundou os dentes na garganta do Nue. A criatura nao teve
nem tempo para agonizar, ja que seus membros foram arrancados e Agni usou as duas
maos para empurrar o cadaver em pedaços para dentro da boca. O som de carne
rasgando e osso quebrando ocuparam a sala, enquanto sangue escorria pelo peito
maciço de Agni. Sua garganta inflou e sua grande língua deslizou sobre os labios antes
de ele cuspir um punhado de ossos com alguns poucos pedaços de metal.
- Que nojo! – rugiu Agni – Nao tem ninguem mais saboroso aqui? Voce aí, vamos
ver qual e o seu gosto.
- Peguem eles! – ordenou o Turdak, balançando suas laminas – E se algum dos
covardes tentar fugir, eu mesmo o devorarei! Agora andem logo e acabem com eles, seus
idiotas!
Os Nues, que tinham recuado apos ver um dos seus camaradas ser devorado,
avançaram de novo. Uma lamina rapida demais para ser vista foi de encontro a eles,
fazendo varios em pedaços antes que pudessem reagir, espalhando sangue pelo chao.
Varuna sacudiu o braço para limpar o desprezível sangue; sua língua coçava de vontade
de lambe-lo mesmo depois que as gotas se espalharam pelo chao. Novamente os Nues
tomaram distancia para atacar, uivando.
- A mulher! Ataquem ela!
Varios Nues correram na direçao de Argilla, agora Prithvi, que estava perto da
porta. Ela se posicionou e estendeu seus braços de chicote, garras como navalhas na
ponta de cada um dos seus dedos. Agilmente saltou para frente e atacou, e o primeiro
Nue gritou quando o seu rosto foi dilacerado.
As bocas abertas nos seios de Prithvi soltaram uma onda de sons latejantes, e o
grupo que avançava contra ela foi levantado no ar, seus corpos batendo um contra o
outro sem controle. Prithvi aumentou a pressao da gravidade, concentrando-a num
ponto entre eles, e o vortice mortal tragou os Nues impiedosamente. Sangue e carne se
partiam enquanto eles eram esmagados, os rugidos e rosnados das criaturas se
transformando em gritos de agonia. Ate as bolas de sangue que jorravam quando os seus
corpos quebravam eram capturadas pela fenda gravitacional, avançando para a
singularidade juntamente com a massa de carne distorcida. Finalmente o no ensopado
de sangue de ossos triturados caiu ao chao com um barulho pesado.
- Que diabos sao essas coisas?! – gritou um dos Nues, recuando quando uma bola
de fogo atingiu o seu ombro. O ferimento era o fundo o bastante para revelar os ossos. O
cheiro de sangue escaldado e gordura queimada pairava no ar.
- Droga! Nos disseram que havia apenas tres deles, mas ninguem falou que eram
monstros desse nível!
- Eu sou Serph, líder da Embriao. – disse Varuna – Esses sao os meus melhores
tenentes, Heat e Argilla. Nao importa quantos peoes como voces ataquem, nunca
conseguirao nos derrotar. Rendam-se agora! Estamos com pressa.
- O líder da Embriao? – zombou um dos Nues – Nenhum líder se coloca na linha
de frente.
- Talvez nao o seu líder. – disse Prithvi – O nosso e diferente.
- No fim, voces so serviram pra ter essa morte patetica. – disse Agni
desdenhosamente – Seu líder jogou suas vidas fora so para ganhar um pouco mais de
tempo.
- Eu nao aguento mais isso! – um dos soldados, a beira de lagrimas, voltou para a
forma humana e recuou para um canto – Ja chega. So nos mandaram cercar os caras que
invadiram e devora-los. Nao disseram nada sobre Atmas Maiores, nem...
Antes que ele pudesse terminar, a cabeça do homem voou do seu corpo. Um jato
de sangue vermelho tingiu a parede, e a cabeça recem-arrancada rolou pelo chao,
parando apenas quando bateu na porta, olhos ainda abertos. O bando de Nues
estremeceu.
- Nao ousem tentar fugir, seus vermes! – berrou o Turdak, pisando com o seu pe
esqueletico no corpo sem cabeça do ex-capanga – Ninguem sai daqui enquanto eles
estiverem vivos. Vamos, ataquem! Se nao forem devorados por ele, serao por mim!
Os Nues estavam visivelmente perturbados. Nao havia saída, a morte certa os
aguardava por um lado ou outro. Depois de alguns momentos, um deles sucumbiu ao
desespero, pulando loucamente em Varuna. Uma rajada de ar gelado o atingiu no ar,
transformando seu corpo inteiro num bloco de gelo que se desfez em pedaços quando
chegou ao chao. Mas o seu ataque impensado incitou os outros, e agora os Nues nao
demonstravam hesitaçao, se jogando nos inimigos todos de uma vez.
Atmas enlouquecidos voaram para todos os lados. Em algum lugar da sua
consciencia dividida, Serph podia ver a si mesmo, seus braços transformados em
laminas enquanto cortava os inimigos em pedaços, fatiava-os com laminas de gelo e
disparava rajadas de ar gelido. A fome que fazia a sua garganta coçar de ansiedade ficava
cada vez mais forte a medida que o banho de sangue aumentava.
Ele viu Agni erguer um Nue acima da sua cabeça, partindo-o ao meio e se
banhando selvagemente no seu sangue e entranhas. A cena lhe deu arrepios, como se ele
pudesse sentir o gosto metalico do sangue na sua propria língua e sentir o calor da carne
fresca. Ele se imaginou devorando a carne da barriga aberta do Nue. Naquele momento,
uma cena que normalmente o deixaria enojado parecia a coisa mais excitante do mundo.
O sangue do inimigo. A carne. O poder. Aqueles doces sabores. Lutar. Continuar
lutando. Vencer. E comer de novo. E fazer tudo de novo, de novo e de novo...
Varuna disparou um rugido de prazer, suas maos e boca borradas de sangue.
- Ja disse que nao vao fugir! – gritou o Turdak. Varios Nues que tentaram escapar
em meio a confusao agora jaziam no chao. Enquanto agonizavam la, incapazes de fazer
qualquer coisa, uma suave neblina purpura começou a subir em volta deles. Ao mesmo
tempo, um fedor de podridao tomou conta do ar, e sua carne começou a apodrecer.
Varuna soltou um rapido grito de aviso e pulou para tras.
- Veneno. – disse Prithvi.

Do lado de fora do portao principal do complexo dos Solidos, Gale fez uma careta
apos mais uma chamada nao-atendida. Depois de tres tentativas malsucedidas
sucessivas de contato com o líder da Embriao, ele so podia deduzir que algo dera errado.
Serph e sua equipe ja deviam ter reportado a essa altura. Gale franziu a sobrancelha.
Isso é muito estranho.
Mais de duas horas haviam se passado desde que a missao de infiltraçao começou.
De acordo com o planejamento inicial, a operaçao devia ter terminado ha trinta minutos.
Ele levou multiplos atrasos possíveis em conta, mas, mesmo assim, nao havia contato ha
quase uma hora.
- Bispo Gale. – era um mensageiro de Jinana, que havia assumido o comando da
batalha do lado de fora da base dos Solidos – Os soldados que protegiam o portao
principal foram quase todos mortos. Em breve teremos caminho livre. Devemos avançar
para a base e dar suporte a equipe de infiltraçao?
Gale estava prestes a aprovar a ordem, mas algo o segurou. Uma estranha picada
de incerteza. Ele balançou a cabeça.
- Nao. Nao entrem ainda. Esperem mais quinze minutos e transmitirei novas
ordens. A situaçao atual do campo de batalha e...
- Nossa força e claramente superior. – disse o mensageiro avidamente – Esses
caras nunca imaginaram que a Embriao e a Maribel iam se juntar contra eles. So isso ja
os deixou desesperados e desorganizados. Alem disso, temos um dos nossos líderes la
dentro. E impossível perdermos.
Gale nao respondeu. Ele funcionava com base em fatos e dados – otimismo e
pensamento positivo eram irrelevantes, assim como a sua incerteza sem fundamento.
Mas agora, por razoes que nao compreendia, alguma coisa o fazia hesitar, embora
ele soubesse que agir com base em palpites e instintos era um ultraje ao seu refinado
intelecto de bispo. Querendo um panorama melhor da situaçao atual no solo, ele subiu
uma elevaçao para visualizar o campo de batalha. O mensageiro o seguiu, falando
apressadamente como se tivesse acabado de lembrar de algo que esqueceu.
- Jinana parece exausta. Talvez fosse melhor manda-la recuar por agora. Ela esta
alternando entre a forma humana e Atma sem parar, e as vezes sente muita dor.
Mais uma vez, Gale sentiu como se estivesse sendo perfurado por espinhos que
nao podia ver. Nesse momento, o som de uma forte explosao perto do portao principal
dos Solidos os fez parar. A força do estouro foi grande o bastante para fazer Gale
cambalear e derrubar o mensageiro.
- Mas o que foi isso? – perguntou o homem do chao, ofegando – Os Solidos nao
poderiam estar se autodestruindo, entao... Ah! Bispo, espere!
Ignorando os gritos desesperados do homem, Gale desceu correndo a elevaçao,
ativando sua transformaçao no caminho. Rapidamente o homem alto de cabelos e olhos
verde-azulados se tornou uma criatura muito mais alta de asas verde claro e uma cabeça
que se dividia ao meio por uma grande boca: o Atma Maior Vayu. Ele se alçou ao ar com
uma forte rajada gerada pelas suas proprias poderosas pernas; o vento uivou enquanto
ele voava para a linha de frente em questao de segundos.
- Bispo Gale! – um dos membros da Embriao, em forma de Atma, veio correndo
ate ele.
- Me diga o que aconteceu. Onde esta Jinana? Que barulho foi aquele?
O homem abriu a boca, mas nao teve chance de falar antes que uma lamina de ar
o atravessasse. Sendo Vayu, o mestre do vento, Gale conseguiu se defender do ataque,
mas o outro membro da Embriao foi cortado perfeitamente ao meio, jogando uma rajada
de sangue no rosto de Vayu. A enorme língua do Atma verde deslizou para fora
subconscientemente, permitindo-lhe experimentar o choque e o medo dos ultimos
momentos do homem. Por instinto, proferiu um rugido. Uma sombra negra desceu do
ceu, emanando escarnio.
- Ora, ora. So peguei o lacaio.
Asas negras membranosas batiam malignamente, e presas com o formato de
agulhas formavam um sorriso sinistro. As grandes orelhas oscilavam frequentemente,
absorvendo a infinidade de sons do campo de batalha. Gale nunca vira essa criatura
antes, mas seu líder ja o havia descrito, e tambem disse o nome do Atma.
Era Camazotz.
Vayu grunhiu um rugido feroz.

- A neblina e toxica. Nao respirem. – alertou Prithvi.


Varuna protegeu o rosto com os braços e falou, num grunhido abafado:
- Vai sacrificar o seu proprio povo?
- Fracos nao me servem de nada. – a risada mortal do Turdak ecoou pela sala, seus
dentes de ossos colidindo em sucessao – Eles nao passam de comida. E voces tambem. –
abriu a boca ainda mais, expelindo outra bolha da terrível neblina na direçao de Varuna.
A baforada gelida de Varuna foi mais rapida, transformando as partículas toxicas
em cacos purpuras de gelo. Mas a risada do Turdak ficou ainda mais alta; ele brandiu
suas espadas e avançou. O som de quatro laminas colidindo se fez ouvir.
O Turdak bloqueou os ataques de Varuna e expirou na abertura na sua defesa
quando suas laminas travaram umas as outras. Mais gas venenoso saiu e, dessa vez, o
contra-ataque de gelo veio tarde demais. O gas fez contato com a pele de Varuna,
causando um torpor formigante e entao uma queimaçao agonizante por todo o seu corpo.
Ele gritou e caiu de joelhos.
Agni e Prithvi os rondavam, procurando uma chance de entrar na luta. O Turdak
era efetivamente o unico inimigo que restava na sala. Poças de sangue cresciam sob os
corpos deformados, e por toda parte havia cadaveres tostados e parcialmente devorados.
- Quem e esse cara? – perguntou Prithvi enquanto o Atma esqueletico se
vangloriava com o seu líder debilitado – O Turdak deveria ser um Atma Menor. Como ele
pode ser tao forte?
- Ele deve estar se alimentando bem. De gente da propria tribo, alias. – disse Agni,
lançando uma bola de fogo. Com uma risada ainda mais maníaca, o Turdak interceptou
a esfera flamejante em pleno ar com suas espadas, em seguida saltando alto, mirando
uma de suas laminas na cabeça de Prithvi.
Antes que pudesse acerta-la, porem, foi rebocado por uma parede de pura
gravidade. O impacto o jogou de um lado para o outro antes de solta-lo ao chao. Chamas
se acenderam nas cavidades oculares vazias do seu cranio quando ele se levantou,
rangendo os dentes de raiva.
- Voce e um filho da puta cabeça dura. – disse Agni – Aposto que o seu chefe Mick
ficaria orgulhoso.
- Mas e claro. No Lixao, nao se pode fazer escrupulos para sobreviver. O chefe
entende isso. Ele nao e uma criança ingenua como o líder idiota da sua Embriao.
Varuna se levantou com dificuldade, o veneno fazendo suas pernas tremerem,
enquanto um estranho arrepio corria pelos seus ombros. Ele rangeu os dentes afiados,
mostrando-os mais e mais. O Turdak, nao percebendo isso, deu outra risada, e
novamente a neblina toxica saiu.
- Capangas sempre serviram para serem usados e depois descartados. – disse ele
– Capangas, camaradas, aliados... Comida deve simplesmente calar a boca e aceitar ser
comida. Alimentar pensamentos tolos so leva ao fracasso, e entao... Uma morte horrível.
- Fique quieto. – entoou Varuna, as proprias palavras congelando a neblina toxica
num amontoado de pedras de gelo purpuras que caíram inofensivas ao chao. Mas Varuna
ainda nao tinha terminado. Sua raiva arrepiante se reuniu na forma de uma esfera de
gelo que disparou contra o Turdak, prendendo seu braço direito de osso em gelo. A
lamina de Varuna estocou, atravessando o membro congelado do inimigo e arrancando-
o na altura do ombro. O Turdak soltou um guincho louco, seus ossos congelados se
espalhando pelo chao ensopado de sangue. Varuna caminhou ate o braço caído e
prontamente o estilhaçou com um unico pisao.
- Voce ousa me ferir?! – berrou o Turdak, levando a mao ao ombro – Vai pagar por
isso, Novato maldito!
- Mandei ficar quieto. – outras vez as palavras de Varuna viraram gelo, e desta vez,
foi a pelvis do Turdak que congelou. Perdendo o equilíbrio e incapaz de mover as pernas,
a criatura esqueletica se estatelou no chao.
- Senhor, para tras! – gritou Prithvi. Ergueu um dos seus braços chicote e atacou.
Um instante depois, a criatura virou o pescoço em surpresa, olhando para cima e
vendo uma rachadura aparecer no robusto teto sobre a sua cabeça, como se o concreto
tivesse sido atingido por um enorme martelo. Varuna pulou para tras para sair do
caminho e o Turdak, esquecendo os inimigos por um momento, tentou rastejar para um
lugar seguro, demonstrando desespero de verdade pela primeira vez.
Mas seu corpo congelado estava preso ali e, com a violencia com que se debateu
para sair do caminho do teto prestes a desmoronar, houve um grande estalo: sua coluna
se quebrou em pedaços. De uma vez so, o Atma da morte se desfez como se fosse de
cascalho. Entao o teto caiu sobre a sua forma mal reconhecível, engolindo o esqueleto
numa chuva de escombros.

- Muito bem.
O que restava da sala fortificada agora era uma bagunça irreconhecível. Por todos
os lados, pedaços esturricados de Nues podiam ser vistos entre os escombros,
juntamente com sangue e tiras de carne nao-identificavel. Os tres Atmas Maiores –
Varuna, Agni e Prithvi – estavam imponentes sobre as ruínas, poças de sangue banhando
seus pes. Prithvi usou seus membros elasticos para levantar e segurar o Turdak, que
tinha perdido todos os ossos da cintura para baixo, bem como todo o braço direito e boa
parte do esquerdo.
- Se voces puderam vir direto ate aqui embaixo, significa que ha um elevador que
leva diretamente ao teto. – disse Prithvi – Onde fica?
- Por que eu contaria? – apesar de nao poder se mexer, o Turdak continuou
inflexível – Voces nunca chegariam a tempo, mesmo. A essa altura, o chefe ja deve ter
devorado todos os seus amigos.
- Fale. – guinchou Prithvi. O cranio do Turdak começou a rachar, e medo
verdadeiro apareceu nos seus olhos. A ponta da sua espinha quebrada balançava como
o rabo de um animal desesperado numa tentativa va de se libertar – Vou esmagar o seu
cranio aqui mesmo se nao falar. Nao teste a nossa paciencia. Voce ja viu do que somos
capazes.
- Vadia desgraçada! Vai pro inferno! – o corpo do Turdak se contorcia, e seus olhos
rolavam nas orbitas – Voces ainda nao entenderam o que esta acontecendo? Todo esse
papo de aliança e lutar juntos... Vocês ainda comem pessoas. Olhem so o que aconteceu
desde que o Atma veio. Nao tem ninguem aqui que nao virou para a pessoa do seu lado
durante a primeira transformaçao e cortou sua garganta para comer sua carne e beber
seu sangue!
Os braços de Prithvi fraquejaram. A ponta da espinha do Turdak balançava como
uma minhoca enlouquecida.
- Voce sabe que e verdade. – ele disse – E matar ou ser morto. Comer ou ser comido.
Quando a fome bater, voce vai afundar os seus dentes na pessoa mais proxima, seja
inimigo ou aliado. Nao adianta negar. E o que ha de errado em fazer isso se e o que e
preciso para sobreviver? Voce tambem ja comeu pessoas. Ate a Embriao mata e dilacera,
bebe o sangue e enche a pança com a carne...
As palavras do Turdak foram interrompidas quando os longos braços de Prithvi o
apertaram com mais força. Suas poucas costelas restantes racharam, ameaçando
quebrar de vez.
- Ja chega de conversa. – balbuciou Prithvi – Fale onde fica o elevador. Agora. E a
sua ultima chance.
Varias rachaduras começaram a aparecer no cranio, que era lentamente
esmagado.
- Espere, pare! – gritou o Turdak – Eu falo! Eu falo! So nao me mate!
- Fale onde. – foi Varuna quem falou dessa vez.
- Essa sala tem uma porta secreta. – revelou o Turdak – Aquele monitor maior ali
e so um disfarce. Empurrem ele pro lado que voces encontrarao o elevador. Ele leva
direto ao portao principal em pouco mais de um minuto. Eu juro! Voces tem que
acreditar em mim. Me levem com voces se quiserem. So nao me matem. Nao me comam!
- Voce foi muito util. – disse Prithvi friamente – Adeus.
Antes que o Turdak pudesse falar, seu cranio se espatifou. Fragmentos de ossos se
espalharam pelo chao, e o pouco que restava do seu rosto arruinado caiu em seguida.
- Como se alguem fosse querer comer esses seus ossos podres. – disse Prithvi,
tirando a poeira das garras.
- Argilla. – começou Serph.
- Vamos, senhor. – Prithvi deu as costas e caminhou em direçao ao fundo da sala.
Atras de um pedaço de tecido empoeirado, eles encontraram um monitor danificado –
Nao temos tempo a perder. – disse ela – Jinana, a Embriao e ate Sera podem estar em
perigo.

Havia mesmo um elevador atras do monitor. O grupo entrou nele e fechou a porta,
e o dispositivo se ativou sozinho. Nao havia nada indicando em que andar estavam ou
mesmo qualquer tipo de painel de controle. Era so uma caixa cinza apertada e escura.
Enquanto subiam, os tres retornaram a forma humana. Ninguem disse nada, nem
mesmo Heat. Argilla remexeu o malote na sua cintura com a mao tremula e sacou uma
das ampolas do sangue de Sera. Foi uma batalha so para conseguir abri-la; quando
finalmente conseguiu, rapidamente engoliu o líquido. Ela engasgou, entao respirou
fundo e deu um tapinha no peito antes de tombar para a frente pesadamente,
pressionando a cabeça contra a parede do elevador.
Serph se aproximou para ajuda-la.
- Argilla, voce esta...
- Eu estou bem. – ela interrompeu, deixando a ampola vazia cair ao chao, onde se
espatifou em fragmentos sangrentos. Serph sentiu a boca secar com a imagem, e entao
sentiu vergonha disso.
- Por favor, nao fale comigo agora, senhor. – disse ela – Eu estou bem. Estou bem,
entao... So nao fale nada agora. Por favor. – Argilla fechou os olhos com força e pressionou
a cabeça ainda mais contra a parede – Por favor.
Serph recolheu a mao que tinha estendido. Heat continuou quieto; estava parado
no meio do elevador, olhando para o teto. Ele olhava como se estivesse imaginando a
batalha que estava se desenrolando la fora, alem daqueles pratos de metal enferrujado
e escuridao.

As portas se abriram, revelando o ceu magenta. Passava das 12:00 HL, e os olhos
de Serph, que tinham se acostumado com a escuridao, acharam a luz do meio-dia quase
cegante. Todos os tres ficaram atordoados por um momento e, enquanto aguardavam
suas vistas se ajustarem, algo veio voando na direçao deles, caindo ao chao com um
barulho pesado.
Era uma pessoa. Um membro da Maribel, a julgar pelas marcaçoes vermelhas no
uniforme. Ele tinha perdido a capacidade de manter o Atma e, agora que estava de volta
a forma humana, sua dor era visível. Seu rosto e corpo estavam cobertos de sangue.
- O que foi isso? O que aconteceu? – perguntou Serph.
- Foi... Foi o Bat. – disse o homem depois de um tempo, numa voz difícil de ouvir –
Ele contou aos Solidos sobre o nosso ataque. O Atma Maior do Mick, o Lesma... Rahu...
Ele... A nossa líder, Jinana...
Seus labios ficaram moles quando ele deu o seu ultimo suspiro. Serph o deitou
gentilmente no chao e se levantou em seguida.
A cena diante deles era brutal. Sob o brilho do ceu magenta, pedaços de corpos
mastigados pareciam boiar num mar de sangue. As vezes um resquício de descarga
eletrica ou foco de chama era visível, mas a batalha estava efetivamente terminada. Foi
uma derrota total para a Embriao e seus aliados. A maioria dos caídos usava marcaçoes
vermelhas ou laranjas; Serph so podia ver algumas poucas amarelas.
Argilla se aproximou de Serph e engasgou.
- Onde esta Jinana? E Gale e os outros?
Antes que ele pudesse responder, ambos estremeceram; um estranho arrepio
correu pelos seus corpos. Por puro instinto, Serph ergueu uma mao e liberou uma rajada
de frio congelante. Um guincho ensurdecedor preencheu o ar, seguido de uma rajada de
vento. Houve o som de asas batendo enquanto uma figura negra descia do ceu.
- Ola, tolos. – as palavras foram quase uma risada de deboche – Parece que os
inuteis la de baixo falharam. Mesmo assim, eles nos ganharam tempo mais que suficiente.
Eu preferia mata-los pessoalmente, mesmo.
- Bat. – a mao de Argilla se fechou em punho – Entao voce era mesmo um traidor.
A unica resposta de Bat foi uma risada sarcastica enquanto balançava as asas;
Camazotz estava conjurando um redemoinho de vento. Serph e os outros recuaram e
cobriram o rosto para se proteger.
Raiva e arrependimento queimavam no peito de Serph. Metade da raiva era dele
mesmo. Ele sabia agora, vendo o olhar que o Atma de asas negras dirigia a ele, que devia
ter considerado mais o que Bat podia fazer. Ódio. Malícia. Coisas desse tipo nunca
importaram antes. Mas agora a malevolencia de Bat tinha disparado uma reaçao em
cadeia cujo resultado era algo antes impensavel no Lixao: traiçao.
Heat rangeu os dentes.
- Seu desgraçado! – ele encarava o grande Atma de pelos negros que pairava no ar
com olhos de puro odio – Eu devia ter te devorado quando tive a chance!
Nesse momento, uma figura colossal apareceu no topo de uma colina proxima,
olhando-os de cima. Tinha quase quatro metros de altura, mais que o dobro de Serph e
os outros mesmo nas suas formas de Atma. Aos seus pes estavam os corpos de varios
membros das tribos – era difícil dizer se estavam vivos ou mortos – e seu olhar hostil
emanava triunfo. Ergueu um dos seus braços, que segurava um corpo magro.
- Jinana! – gritou Argilla. Antes que Serph pudesse impedir, ela ja estava correndo
e transformando-se em Prithvi. Com um rugido, saltou sobre o imponente inimigo.
Um momento depois, um tufao negro cortou seu caminho. Prithvi agilmente
saltou para se desviar. O Atma de asas negras fez questao de se aproximar e mostrar seu
sorriso cavalar.
- Cuidado, Embriao. – disse, num tom repleto de desdem – O chefe dos Solidos tem
o estopim longo, mas, se causarem muitos problemas, podem acabar perdendo a cabeça
da sua preciosa aliada.
Sem dizer uma palavra, Heat se transformou em Agni, e Serph em Varuna. Odio
corria por todo o seu ser; as laminas dos seus braços coçavam de vontade de atacar. Tudo
que ele queria era se jogar em cima do inimigo com toda a violencia, acertar as contas
da maneira mais brutal possível. Mas, vendo Jinana inconsciente, ele sabia que nao podia
ser imprudente.
- Como ousa aparecer na nossa frente, Bat? Seu traidor miseravel! – a voz de
Prithvi tremulava de raiva – E voce, – se dirigindo ao enorme oponente no alto da colina
– agora vai ter que enfrentar a gente. E depois do que aconteceu la embaixo, ja temos
uma boa ideia do verme fraco que voce e. Solte a Jinana!
- Voce e corajosa, garota. – o gigante sorriu – Tudo bem, entao. La vai. – ele
arremessou Jinana com uma facilidade assustadora, como se fosse uma bola. Ela rolou
quando atingiu o chao ate parar completamente, inerte e sem forças. Ja tinha voltado a
forma humana.
- Jinana! – Prithvi correu para o lado dela. Seus olhos estavam fechados, mas ela
estava respirando. Devagar e com dificuldade, mas respirando. Ainda estava viva, mas
tinha varios ossos quebrados e juntas deslocadas. Seu uniforme tribal tinha sido rasgado
na altura do peito, e seus seios expostos estavam cobertos de sangue. Seus ombros e
membros estavam dobrados em angulos estranhos, e seu rosto, outrora belo, estava
coberto de cortes e arranhoes.
- Aguente firme, Jinana! Sou eu, Argilla!
- Argilla...
Seus olhos verdes se abriram, e ela viu vagamente os tres membros da Embriao
reunidos ao seu redor antes que o medo obscurecesse o seu rosto.
- Nao! Afastem-se de mim! Depressa! – ela se debateu desesperadamente,
soltando a mao de Argilla e tentando se arrastar para longe – Vao para o mais longe que
puderem, depressa, ou eu...
- Do que voce esta falando? – perguntou Argilla – Somos seus aliados. Nao vamos
te abandonar.
- Aliados? – disse o Atma gigante para ninguem em particular, como se a cena que
desenrolava na sua frente nao passasse de uma piada sem graça. Ele era uma visao
intimidadora. Sua forma maciça era coberta por uma armadura azul. Sua cabeça tinha
uma boca, mas o restante do rosto era vazio. Ele tinha quatro braços, dois grossos e
robustos e outro par menor conectado a parte superior do tronco, proximo ao pescoço.
Havia outra boca no centro do seu peito, um verdadeiro buraco capaz de engolir um
homem inteiro. Ela abria e fechava ritmicamente, como que ansiando pela sua proxima
refeiçao.
De repente, essa figura temível desapareceu em meio a um estouro de luz azul, e
em seu lugar apareceu um enorme homem de pele negra: o líder dos Solidos, Mick, o
Lesma.
Ele so tinha metade da altura do seu Atma, mas era tao gordo que parecia ate mais
largo que alto. Seu cabelo negro estava preso em tranças que escorriam sobre os ombros
rechonchudos, e uma barba desgrenhada adornava as bochechas flacidas. Seus olhos
pequenos e redondos, que quase desapareciam em meio a gordura do rosto,
examinavam cautelosamente a situaçao, e seus grossos labios rosados formavam um
sorriso astuto. A marca de Atma estava na testa, brilhando discretamente.
- Ah, essa ceninha nao da vontade de chorar, Bat?
- E como. A Jinana sempre foi o tipo de líder que pensa nos outros primeiro. –
debochou Camazotz – Acredita que ela tinha o remedio que mantem o Atma sob controle,
mas ao inves de usar em si mesma, foi ate as ruínas e distribuiu as capsulas uma a uma
para aqueles que tinham sido banidos, sem nem se preocupar que nao sobraria nada
para ela? Mesmo aqui, ela continuou falando que nao queria devorar ninguem nem
matar desnecessariamente. E agora olha so no que deu. Olha o estado dela.
Varuna, visivelmente surpreso, se ajoelhou perto de Jinana.
- Jinana, voce nao ficou com nada? Se tomar um pouco agora, ainda...
- Nao... Meu povo, eles...
Varuna – Serph – nao sabia o que dizer. Apesar de ele ter garantido que o sangue
nao funcionaria naqueles que ja perderam a humanidade, Jinana se recusou a abandonar
aquele raio de esperança. Mas se ela estava usando seu Atma para lutar e nao tomou
nenhuma capsula nem devorou ninguem, so podia haver um resultado.
- Acho que ja passou da hora de acabar com isso. – disse Mick, esfregando as maos
– A diversao acabou, e os meus homens devem estar detonando a base da Embriao agora.
O segredo do seu remedio que controla o Atma sera nosso. Com certeza faremos melhor
uso dele que voces. Claro que eu nao pretendo parar de comer pessoas. E divertido, afinal.
- O seu proprio povo... – rangiu Prithvi – Voce os comeu, nao foi? Os membros da
sua propria tribo. – Mick se curvou para tras e soltou uma risada retumbante.
- Mas e claro! Que outra serventia eles teriam para o meu Rahu uma vez
derrotados e incapacitados de agir como minhas tropas? Derrotados e incapacitados,
como essa mulher ridícula aí na sua frente.
Prithvi se virou para atacar. Serph, ainda como Varuna, engasgou. Uma luz azul
estava começando a emanar do corpo de Jinana. Veias de luz se espalhavam pelo seu
corpo como fissuras em expansao. Nao era uma transformaçao normal. Algo estava
obviamente muito errado.
- Afastem... se... – Jinana tentou se levantar, mas caiu de novo. Sua voz nao era mais
humana – Eu... Nao consigo... Voces precisam... – suas palavras viraram um guincho rouco.
Sua pele branca escureceu e linhas de luz azul cobriram seu corpo inteiro. Sua esguia
silhueta feminina se distorceu e ficou maior, enquanto a risada de Mick ecoava ao fundo.
- Seu desgraçado! – rugiu Agni, erguendo os braços. Incontaveis esferas de fogo
infernal voaram na direçao de Mick, mas, antes que pudessem engolir o homem enorme,
um par de asas negras as interceptou, espalhando as chamas em faíscas inofensivas.
- Pode vir! – Camazotz sorriu e fez uma acrobacia no ar, enquanto Agni olhava em
choque, vendo que suas asas negras nao mostravam sinal algum de queimadura – Eu
posso ter perdido antes, mas nao vou fazer papel de bobo pra sempre!
Agni grunhiu.
- Voce andou comendo.
- Ah, sim. Um banquete e tanto. – riu Camazotz, protegendo Mick com suas asas
enquanto o enorme homem sorria de prazer – E agora você vai ser a minha proxima
refeiçao. Voce ja viu que os seus ataques pateticos nao me fazem mais nem cocegas. Eu
nao esqueci o que voce fez comigo antes. Estou louco para ve-lo sofrer.
- Quem vai virar refeiçao e voce, seu...
- Ei, ei, voce vai ignorar a sua aliada pra ficar de conversa? – a voz de Mick era puro
sarcasmo. Serph, sem açao, viu Jinana cair de joelhos e emitir um rugido alto.
- Jinana! – gritou Prithvi – Jinana, recomponha-se!
A unica resposta foi um tremor sob os seus pes. No lugar de Jinana, agora havia
uma forma sombria e grotesca. Se levantando, a criatura que tomou seu lugar começou
a se aproximar deles, seus movimentos fluidos e suaves.
Era o Atma Maior Ushas.
Tinha pescoço e membros longos e compridos, bem como a grande boca típica dos
Atmas Maiores. Sobre a cabeça, quase como um tufo de cabelo, um emaranhado do que
pareciam ser tentaculos. A forma do seu tronco ainda era graciosamente feminina, e com
o brilho amarelo claro da sua pele, quase era bonita, mas a boca inquieta e as garras
afiadas so mostravam fome e loucura. Camazotz e Mick começaram a rir.
- Bom, aliados, divirtam-se devorando uns aos outros. – provocou Mick – Se me
dao licença, tenho coisas a fazer, entao ja vou. Ah, e eu ficaria grato se nenhum de voces
sobrevivesse. Adeus!
Suas palavras foram seguidas por uma tremenda rajada de vento, tao intensa que
Serph e os outros tiveram de cobrir os olhos por causa da areia e poeira levantadas.
Quando a ventania se acalmou, eles viram a forma negra de Camazotz ja alto no ceu, com
Mick pendurado na sua barriga como um tumor disforme.
- O senhor esta bem?
Serph se virou em surpresa para ver algo vindo na sua direçao. Era Gale, na forma
de Vayu. Sangue escorria das garras dos seus pes quando ele pousou junto com os outros.
Havia rasgos nas suas asas, provavelmente da luta com Camazotz, e cortes no peito e
ombros, que ja haviam começado a curar.
- Sua falta de comunicaçao me deixou preocupado. Estou feliz que esteja bem,
senhor. Temo que tenha ocorrido um vazamento de informaçao, e acredito que Bat e o
responsavel.
- Eu sei. Mas conversamos depois. Cielo esta bem?
- To aqui, chefe! – a resposta veio do alto. Dyaus pairava logo acima deles – Eu ia
acabar com eles, mas o Gale mandou eu me segurar. Ate porque, eles tinham a Jinana. Eu
vou atras deles, chefe.
- Nao. No momento, a nossa maior preocupaçao e Jinana e Sera. – Serph estava
recuando discretamente enquanto Jinana – Ushas – avançava lentamente na direçao
deles, olhos ardendo de loucura – Voce e o mais rapido, Cielo. Pegue Gale e volte
imediatamente para a base. Gale, voce esta encarregado da defesa da base da Embriao.
Cielo, sua prioridade maxima e garantir a segurança de Sera. Va depressa. Nos ficaremos
aqui e cuidaremos de Jinana.
Gale voltou a forma humana.
- Senhor, pegue isso. – disse ele, entregando uma maleta do tamanho de uma mao
– Sao balas de rifle contendo o sangue de Sera. Ainda estao em fase prototipo, entao ha
apenas seis.
Serph abriu a maleta. Havia meia duzia de balas vermelhas dentro, obviamente
feitas a mao.
- Pensei ter dito que nao usaríamos o sangue dela como arma.
- Foi ela quem pediu. Disse que seria util se a situaçao piorasse. E de fato aconteceu,
embora mais cedo do que eu esperava. – disse Gale, direto e inexpressivo.
Nao havia tempo para brigar. Varuna grunhiu, pegou a maleta e jogou para Prithvi.
- Argilla, volte ao normal e atire isso em Jinana. Voce e a melhor pessoa para o
trabalho. Nao sei se vai funcionar, mas precisamos pelo menos tentar.
- Entendido. – Prithvi se transformou imediatamente em Argilla. Varuna fez o sinal
para Gale e Cielo partirem. Cielo fez um mergulho para deixar Gale subir nas suas costas
antes de voar na direçao da base da Embriao numa velocidade assustadora.
Ushas tinha parado de avançar e agora estava parada a uma curta distancia,
balançando languidamente de um lado para outro. Os tentaculos-cabelo da cor do ouro
a envolviam como uma neblina. Seus braços se mexiam como que procurando alguma
coisa, mas os movimentos eram desajeitados e inconsistentes, como se ela nao
compreendesse as proprias açoes. Vez ou outra ela jogava a cabeça para tras e rugia,
enquanto feixes de luz azul brilhavam como rachaduras por todo o seu corpo. Ela nao
fazia movimento de ataque. Apenas grunhia, sua grande boca abrindo e fechando como
que bebendo insaciavelmente o sangue e a polvora no ar.
Argilla, que tinha perdido o seu rifle na confusao dentro da base, pegou outro de
um guerreiro caído e fez uma rapida inspeçao. Mordeu a língua enquanto inseria as balas.
Os rifles de cada tribo eram diferentes. Se o funcionamento desse nao fosse como o
daqueles que ela conhecia melhor, a chance de erro seria mais alta.
- Desculpe por isso, Jinana. – ela murmurou – Aguente so mais um pouco. Nos
vamos te salvar. Vamos fazer voce voltar ao normal.
Argilla puxou o gatilho, e o rifle cuspiu fogo. De novo. Tres vezes. Quatro, cinco,
seis. Todas as balas carregadas com o sangue de Sera acertaram Ushas diretamente.
Argilla mirou bem, e elas nao atingiram nenhum ponto vital, pegando nos ombros,
braços e coxas.
Ushas cambaleou e tombou, mas seus gritos uivantes nao pararam. Por alguns
momentos, ela ficou quieta, atordoada, como que surpresa pelo que tinha acontecido,
mas entao jogou a cabeça para tras e deu um grito duas vezes mais alto que todos os
anteriores. Os tentaculos sobre a sua cabeça balançavam e pulsavam. As balas
fragmentadas foram expulsas da sua pele amarelo claro, e uma a uma caíram ao chao.
Argilla deixou o rifle cair, chocada.
- Nao! Nao teve nenhum efeito?
Agni rosnou por entre suas mandíbulas fechadas.
- Acho que nao funciona tao bem se nao beber.
Eles precisavam de mais sangue. E precisavam achar algum jeito de chegar perto
o bastante de Ushas para faze-la beber. Se nao o fizessem, Jinana ia se tornar nada mais
que uma besta sem mente que so vivia para matar e devorar. Eles ainda tinham mais
ampolas do sangue de Sera, mas seria o suficiente?
- Quantas das capsulas que demos para a Maribel ainda restam?
Um dos membros da Maribel respondeu rapidamente:
- E- Eu nao tenho certeza, mas vou descobrir.
- Va e reuna as capsulas restantes, todas que puder. E seja rapido. Peça para
qualquer um que ainda pode se mover te ajudar, e diga para os membros da Embriao
trazerem as suas proprias capsulas aqui. Vamos dar tudo para Jinana.
O soldado da Maribel fez que sim e partiu correndo.
- Entendo perfeitamente que faze-la beber o sangue e o unico jeito, Serph. – disse
Agni – Mas primeiro precisaremos chegar perto e imobiliza-la. Voce sabe disso, nao e?
- Ah, acredite, eu sei.

Ushas tombou a cabeça para tras e rugiu para o ceu.


A nuvem de tentaculos na sua cabeça se contorceu e disparou raios de luz para o
alto. Momentos depois, eles caíram como chuva no portao destruído da base dos Solidos.
Ushas baixou a cabeça e observou, com olhos de pura loucura, o enorme portao ficar tao
cheio de buracos que parecia uma esponja usada, ate se soltar das suas dobradiças e cair
ao chao. As placas de metal, arruinadas, lentamente se dissolveram.
Parecia que cada um dos cabelos-tentaculos do Atma era uma especie de arma
especializada. Alguns podiam emitir raios letais, outros eram finos como uma linha de
tecido, mas disparavam agulhas duras como diamante, enquanto outros funcionavam
como chicotes toxicos que podiam partir coisas ao meio e depois fundi-las novamente.
Ushas uivou de novo. Com um movimento da sua cabeça, enrolou o cabelo de
modo que parecia uma furadeira e avançou abruptamente sobre Varuna, que mal
conseguiu pular para fora do caminho. Com alguma nova forma de ataque, ela abriu um
grande buraco onde ele estava, levantando poeira com o vento do Lixao. Ushas berrou
de raiva por sua presa ter escapado. Sua cabeça balançava de um lado para outro como
uma arvore numa tempestade, e seus cabelos-tentaculo se contorciam
inexplicavelmente, cortando tudo ao redor como uma arma a laser. Um veículo que
estava ali perto foi cortado perfeitamente ao meio, suas duas partes explodindo em
seguida. Sacos de areia empilhados, paredes da fortaleza e amontoados de corpos, tudo
era feito em pedaços e reduzido a um borrao lamacento sob a furia dela.
Agni se colocou em posiçao, formando uma bola de fogo do tamanho de uma
cabeça humana entre as maos. Varuna rapidamente se aproximou para impedi-lo.
- Nao a provoque, Heat. Ela esta agindo por fome e instinto agora. Se voce atacar,
as coisas podem piorar e nao conseguiremos mais traze-la de volta.
- E daí? Voce quer o que, que eu nao faça nada? Ela esta vindo atras de nos. Nao
vai adiantar nada se ela nos matar antes que as capsulas cheguem.
- Argilla, voce pode usar o seu controle de gravidade para segura -la? – perguntou
Varuna, se virando para Argilla.
- E, acho que sim. – ela hesitou por um momento, mas se endireitou em seguida –
Posso tentar. Nao, eu posso fazer isso.
A marca de Atma no peito de Argilla brilhou, e num instante Prithvi estava
enfrentando Ushas. Ela cruzou os longos braços em frente ao peito.
O avanço de Ushas parou abruptamente, como se suas pernas tivessem ficado
presas no chao. Ela se debateu e gritou e balançou os membros, incapaz de se controlar.
De repente, caiu, como se alguma força poderosa a tivesse derrubado. Embora se
contorcesse com todas as forças e rugisse de odio, ela nao conseguia se levantar.
- Serph, aqui esta! – o membro da tribo que tinha ido buscar as capsulas de sangue
voltou. Ele tinha um punhado delas amontoadas nas maos, alem de malotes enfiados
debaixo dos braços. Pelo jeito, era uma boa quantidade.
- Senhor! – Prithvi o olhou por sobre os ombros. Segurar Ushas, que nao parava
de se debater, nao era tarefa facil. Prithvi tinha se apoiado numa grande pedra, mas ainda
assim sua forma esguia tremia e balançava – As ampolas que eu trouxe comigo estao
perto do rifle. Use-as tambem!
Havia um pacote caído perto do rifle que Argilla estava usando. Dentro estava a
maleta de ampolas que ela sempre carregava consigo. Serph hesitou, e ela gritou para
apressa-lo:
- Depressa, nao ha tempo! Precisamos salvar Jinana!
Varuna balançou a cabeça em duvida, mas pegou a grande pilha de capsulas do
soldado da Maribel com uma das suas grandes maos e entao pegou o pacote de Argilla e
enfiou debaixo do braço.
- Argilla, diminua a força. Vai quebrar as ampolas.
- Mas senhor, ate que esteja perto o bastante da Jinana, e...
- Anda logo, Argilla. – disse Agni, ja se preparando – Nos daremos cobertura.
Varuna olhou para tras e encontrou o olhar de Agni, e um fez que sim para o outro.
Prithvi hesitou por um momento, e entao murmurou um discreto “tudo bem” antes de
levantar as maos e liberar a força que continha Ushas.
Ushas se colocou de pe com um rugido enlouquecido. Varuna correu na direçao
dela, incapaz de estender suas laminas enquanto segurava as capsulas. O cabelo letal de
Ushas voou na direçao dele como um chicote. Mas justo quando ele teve certeza que ia
ser perfurado, uma parede de fogo se formou sobre sua cabeça.
Os terríveis cabelos-tentaculo foram tostados e, surpreendida, Ushas deu um pulo
para tras, mas um momento depois atacou novamente com ferocidade renovada. De
novo e de novo ela atacou, mas todas as vezes, a parede de fogo salvava Varuna do perigo.
Agni, tenso mas determinado, mantinha os braços erguidos e firmes; parecia que ele
podia manter aquelas chamas o dia todo.
Vendo que seu ataque nao estava funcionando, Ushas saltou para tras e começou
a girar, quase como se estivesse dançando. Ao fazer isso, uma lamina de luz semicircular
se formou em volta dos seus elegantes quadris, voando direto na direçao de Varuna, que
continuava avançando.
Nem as chamas de Agni nem a rajada de ar frio de Varuna surtiram efeito na
lamina brilhante. Varuna nao tinha como se proteger; a preciosa carga que ele carregava
nos braços o impedia sequer de adotar uma posiçao defensiva. Foi pego diretamente
pelo ataque, que abriu varios ferimentos profundos pelo seu corpo.
Varuna soltou um grito. A besta la dentro queimava de odio, uivando com o desejo
de matar o inimigo – causar o dobro da dor que tinha sofrido, devolver aquela agonia
com sangue. Ao mesmo tempo, a mente de Serph dentro de Varuna lutava contra essa
ansia, tentando se concentrar em manter o sangue de Sera seguro. As ampolas que ele
segurava com tanto cuidado nas maos continham sangue derramado nao por morte,
odio ou medo, mas amor e bondade. Ele nao podia deixar isso ser em vao.
Ushas de repente caiu de joelhos enquanto tentava conjurar outra lamina de luz.
Mal conseguindo se mover, ela so podia contorcer os membros lentamente e uivar.
Prithvi tinha ativado o seu controle de gravidade novamente, mas com menos força que
antes. Ushas rugiu pelo ultraje, seu cabelo balançando como raios sem rumo.
Varuna foi rapido em aproveitar a oportunidade. Cobriu os ultimos metros que o
separavam de Ushas num salto e afundou sua cabeça no chao. Entrar no poço de
gravidade de Prithvi deixou o seu corpo dolorosamente pesado, e foi preciso fazer o
dobro do esforço normal para sequer mover os braços. Rasgou o pacote que trazia nas
maos com os dentes e pegou as ampolas que estavam la dentro.
Ushas balançava a cabeça de um lado para outro. Sua boca abria e fechava
incansavelmente numa furia cega, e seus cabelos-tentaculo se cravaram nas costas e
ombros de Varuna, ardendo como agulhas em brasa. Por um momento, ele quase
sucumbiu a intensidade da dor; ele podia ouvir o som dos proprios ossos rachando
enquanto os seus nervos gritavam de agonia. Mas, no meio de tudo isso, pegou todo o
suprimento de capsulas, bem como as ampolas de Argilla, e enfiou na boca de Ushas.
- Vamos, Jinana, beba. – murmurou, mal conseguindo respirar – Todos juntaram
isso para voce. Todo o nosso povo... Argilla, Sera... E tudo pra voce.
Essa era a propria essencia de Sera. Se alguma coisa podia salvar Jinana, era isso.
Varuna esperou aquela boca trituradora estar completamente aberta antes de
esmagar as ampolas e capsulas. De uma vez so, um jato de sangue desceu pela garganta
de Ushas. Muito provavelmente, havia um pouco do sangue de Varuna misturado
tambem.
Vamos, Jinana. Volte. Todos estão esperando. O seu povo. Argilla. Nós sabemos que
você consegue. Volte, Jinana. Volte a ser você. Volte a ser humana.
Volte.
O que pareceu uma eternidade se passou.
De repente, Varuna sentiu o corpo ficar mais leve e rolou para o lado, fragmentos
de ampola caindo das suas maos. Seu corpo latejava como se tivesse sido prensado. O
controle de gravidade de Prithvi tinha cessado.
- Senhor! – era a voz de Argilla, nao do seu Atma, se aproximando. Ele podia ver o
cabelo vermelho de Heat tambem. Em algum momento, a transformaçao do proprio
Serph tambem tinha sido desfeita. Seu corpo todo coçava, e quando olhou para as maos,
viu fragmentos de vidro encravados nas suas palmas ensanguentadas.
Ele ouviu o som de uma respiraçao abafada em algum lugar por perto, e virou a
cabeça para o lado para o olhar.
Ushas tinha desaparecido. Agora so restava Jinana. A líder de cabelos verdes da
Maribel ofegava desesperadamente em busca de ar, sua boca manchada de vermelho.
- Jinana! – Serph correu ate Jinana e a levantou nos braços – Pode me ouvir? Sou
eu, Serph. Argilla tambem esta aqui. Aguente firme, Jinana. Seja forte.
- Jinana, sou eu. – Argilla se ajoelhou ao seu lado, segurando a mao da amiga com
um desespero visível no rosto – Voce esta bem agora. Nao vai mais virar um demonio.
Vamos, olhe para mim.
Mas Jinana nao abriu os olhos. Seu corpo se contorcia de dor, e sua cabeça
continuava virando de um lado para o outro enquanto ela grunhia entre dentes rangidos.
De repente, seus olhos se estatelaram. Um feixe de luz vermelha apareceu e desapareceu
dentro das suas pupilas verdes, e ela soltou outro gemido antes de ficar mole outra vez.
- Senhor...
- Parece que ainda nao estamos seguros. – disse Serph. Se levantou e ergueu o
corpo de Jinana nos ombros. Por enquanto, parecia que o sangue que ela bebeu tinha
contido o Atma, mas nao foi suficiente para reverte-la definitivamente ao normal. Eles
precisavam de mais do sangue de Sera, e rapido.
- Precisamos leva-la para a base imediatamente. Os Solidos ainda tem tropas por
aqui. Argilla e Heat, voces ficam aqui e cuidam dos inimigos que ainda estao na base. Eu
vou levar Jinana de volta para Muladhara e me juntar a Cielo e Gale. Estou preocupado
com Sera.
- Entendido, senhor. – disse Argilla sem hesitar, transformando-se na hora – Va o
mais rapido que puder. Nao sabemos quanto tempo temos.
Agni tambem resmungou depois de se transformar.
- Eu preferia nao desperdiçar o meu tempo enfrentando esses capachos, mas acho
que nao tem outro jeito.
- Serph da Embriao! – um gigante de pele azul vinha na direçao deles. Ele tinha
seis poderosos braços, carregando uma variedade de armas, de uma espada a uma
metralhadora, e numa mao ate segurava o que parecia ser o corpo esmagado de um dos
Solidos, ainda em forma de Atma – Se voce vai para Muladhara, nos podemos ajudar.
Zaphir, depressa!
Houve uma rajada de vento e, um momento depois, uma besta dourada de quatro
patas, rosto branco e busto de mulher se formou, os quatro rígidos membros batendo
com força no chao. Ao inves de cabelos, uma juba branca, semelhante a uma nuvem,
circundava sua cabeça, e seu rosto franzido abrigava ardentes olhos dourados. Asas
brancas esvoaçantes brotavam do seu corpo no ponto onde ela passava de mulher a
besta.
- Sphinx e a membro mais rapida da nossa tribo. Talvez mais rapida em solo que
aqueles entre voces que podem alçar o ar. Por favor, monte nela, senhor, e leve Jinana
para la o mais depressa possível.
- Suba, Serph da Embriao. – disse Sphinx. Parecia que ela tinha dificuldade para
falar, talvez devido a forma da sua boca quando transformada. Presas brancas se
amontoavam atras dos seus labios vermelhos – Voce nao conseguira chegar a tempo se
tiver que carregar Jinana sozinho. Por favor, Serph. Nao ha tempo.
Serph se lembrou do nome Zaphir. Era um dos dois guardas que acompanhavam
Jinana na primeira vez que eles se falaram. O gigante azul provavelmente era o outro. Os
dois olhavam para Jinana com desespero no rosto, assustados com o rosto palido e o
corpo inerte da sua líder.
- Tudo bem. Obrigado. – Serph colocou Jinana sobre Sphinx primeiro e depois a
montou tambem. Seu pelo dourado era macio, mas por baixo, ele podia sentir musculos
indubitavelmente poderosos.
- Segure firme, Serph da Embriao. Estamos indo!

Eles viajaram numa velocidade incrível, tao rapido que a destruiçao avassaladora
que tomava conta do campo de batalha parecia apenas um borrao disforme. Sphinx
contornou buracos, pulou pilhas e mais pilhas de destroços, e numa ocasiao ate transpos
um predio desabado com um unico e poderoso salto que nenhum humano jamais
poderia fazer, agilmente cruzando cada obstaculo sem uma so pausa. Serph usava todas
as forças para garantir que nem ele nem Jinana caíssem.
Os cortes nas suas maos estavam começando a curar, mas o Atma la dentro ja
estava com fome de novo. A batalha para deter Jinana devia te -lo exaurido. Seus dentes
afiados coçavam e ele sentia uma queimaçao na bochecha. Um grunhido feral subiu pela
sua garganta. Zaphir dirigiu o olhar para ele brevemente, mas logo se voltou para o
caminho a frente e se concentrou em correr. Serph fechou a boca com força e se curvou
para frente, como que tentando esmagar a furiosa fome dentro de si.
Por que isso está acontecendo? – pensou ele, enquanto sua mente parecia ficar
vermelha – Por que nós estamos neste lugar? O que estamos fazendo aqui?
- Serph! – gritou Zaphir. Logo a frente, um grupo de inimigos os aguardava. Suas
marcaçoes tribais amarelas os identificavam como Solidos. Uma emboscada.
- Fora! – comandou Serph com uma voz aspera. Sua bochecha parecia que ia pegar
fogo. Seus dentes se alongaram em presas, perfurando a língua. O gosto do seu proprio
sangue se espalhou pela boca. Ele ficou tonto – Se nao quiserem morrer, abram caminho.
Vou mata-los se tentarem nos atrapalhar.
Os Solidos hesitaram por um momento, mas logo uma luz azul começou a envolver
os seus corpos. Uma a uma, as formas dos seus Atmas apareceram. Eram bestas
selvagens, como os Nues no subsolo da fortaleza, mas esses tinham asas de ossos com
membranas de uma pele vermelha viscosa, corpos cobertos em pelos negros e um par
de chifres na cabeça.
Uma onda de energia se reuniu no braço de Serph. Ele se inclinou sobre Jinana,
protegendo-a com o proprio corpo, e se segurou no pescoço de Zaphir com o braço
esquerdo enquanto o direito se transformava no de Varuna. A pele do ombro a ponta dos
dedos ficou palida e revestida, e com uma aura feroz, a lamina de ossos se libertou.
E sangue jorrou.
Os Atmas ferais nao eram pareo para os golpes letais de Varuna e a agilidade quase
artística de Sphinx. Braços, cabeças e entranhas voaram, cobrindo o chao como numa
chuva de confete. Varuna deu um urro de prazer com o cheiro do sangue e a sensaçao da
sua lamina cortando carne. Quase em transe, Serph via a si mesmo lambendo
gulosamente o sangue que escorria. Ele ficou surpreso ao perceber que nem sentia mais
nojo.
Por que nós lutamos? Por que matamos?
Por que temos que matar? Por quê?
Um frio cortante varreu o ar. Um dos Atmas voadores que os perseguia foi atingido
diretamente pela rajada gelida de Varuna, congelou e se espatifou, espalhando
fragmentos de gelo ao vento.
Por que matamos?
Porque era matar ou ser morto. Essa era a razao, pura e simples. Mas ao mesmo
tempo nao era razao alguma. Simplesmente nao havia uma boa explicaçao para por que
eles tinham que matar uns aos outros. A adiçao do Atma e essa fome insaciavel nao era
o motivo – nao o motivo fundamental. Tudo que eles fizeram foi tornar ainda mais claro
para Serph o que ele e o resto do Lixao sempre fizeram, mas nao por que.
Serph e os outros nasceram nesse mundo para lutar. Eles viviam para lutar. Mas
quem foi que os condenou a esse destino? A Igreja? Quem estabeleceu a Igreja? Quem
foi que fez essa promessa do Nirvana, esse suposto paraíso que eles nao eram nem
capazes de conceber?
Quem foi que nos deu as nossas vidas, o nosso karma?
E ainda assim ele continuou com o massacre, ate que o ultimo dos Atmas
selvagens caiu. Serph balançou o braço para limpar o sangue escorrido. O sedutor aroma
de morte que se instaurou sobre ele fazia a sua boca aguar. Agora nao havia rastro de
mais nenhum inimigo, e ele começou a reconhecer a paisagem local. Eles estavam de
volta a Muladhara, perto da base da Embriao. Ao longe, alem de um predio abandonado,
ele viu varias colunas de fumaça preta subindo, mas nao havia sinais de batalha. Serph
mandou Zaphir parar e esperar com Jinana escondida numa ruína.
- Mas Serph...
- Eu so vou ver qual e a situaçao da base e ja volto. Se a luta ainda nao tiver acabado,
sera muito perigoso levar Jinana para la. Eu vou ver se o lugar esta seguro e volto com
reforços o mais rapido possível.
Zaphir hesitou a princípio, mas entao respondeu que sim e acomodou Jinana no
chao. Ela permaneceu transformada, mantendo uma vigília ansiosa sobre sua líder
enquanto lambia o sangue do seu proprio pelo dourado.
Serph correu para a base o mais depressa que pode, tomando o cuidado de
permanecer oculto. Sua garganta estava seca. Dentro do seu coraçao, Varuna ainda rugia,
ainda queria matar, exigindo mais sangue e mais carne. Os cheiros de luta, sangue e
polvora estavam em todas as direçoes, e o odor de carne queimada atiçava o seu olfato a
cada passo. Foi preciso um esforço consciente por parte dele para evitar lamber os labios.
Nao demorou muito para ele alcançar uma posiçao da qual tinha uma boa vista da
base. As primeiras coisas que viu foram os restos destroçados das muralhas de suporte
no portao frontal e varias pilhas de carga que foram vítima de explosoes. O solo ao redor
da fortaleza tinha sido esturricado, e havia corpos de soldados espalhados por toda
parte. Pelo menos metade deles estava em forma de Atma, ou tinha as marcaçoes tribais
amarelas dos Solidos, mas tambem havia um punhado que portava o laranja da Embriao.
Alguns estavam completamente inertes, mas outros ainda estavam vivos, grunhindo
enquanto tentavam se levantar ou rastejar pelo campo de batalha.
Nao havia tempo a perder. Deixando qualquer hesitaçao de lado, Serph correu por
uma trincheira proxima para chegar a um membro da tribo gravemente ferido e ajudou
o homem a sentar. Ele estava com dificuldade para respirar, e Serph teve de segura -lo
com força para faze-lo parar de se debater. Seus olhos piscaram algumas vezes e vagaram
sem rumo por um tempo antes de pararem e se focarem no líder.
- Ah... Senhor... – o soldado tentou sorrir, mas acabou se contorcendo de dor – Eles
nos atacaram enquanto voces estavam fora. Sinto muito. Nos...
- Esta tudo bem. Onde esta o inimigo? Como estao as coisas la dentro?
- Demos cabo de todos os invasores que estavam dentro da base. – disse uma voz
rígida de repente de algum lugar ali perto.
Serph se virou e viu Gale saindo de um buraco que tinha sido feito na muralha de
bloqueio, apoiando um braço nela. Embora seu rosto continuasse inexpressivo como
sempre, ele nao podia esconder o cansaço do seu corpo. Seu capuz estava coberto de
ferrugem, e seu uniforme tribal estava queimado em varias partes.
- Parece que conseguimos voltar mais depressa do que eles esperavam. Tambem
havia menos hostis do que eu imaginava. Acredito que eles nao vieram com a intençao
de lutar, e sim procurar o nosso meio de controlar o Atma. Despachei uma unidade com
uma maleta cheia de farmacos e dispositivos falsos, com ordens de fingir uma fuga. Mais
de metade das forças inimigas partiu atras deles.
Serph deitou o homem moribundo cautelosamente no chao. Ele estava aliviado
pela sua tribo ter conseguido escapar da destruiçao, mas ainda tinha Jinana para se
preocupar, entao nao podia se dar ao luxo de relaxar por enquanto.
- Sera esta bem? Eles a encontraram?
- Cielo se escondeu com ela. Estamos procurando por eles agora. – disse Gale.
Por enquanto, parecia que eles nao precisavam se preocupar com outro ataque
inimigo. Serph instruiu Gale a resgatar Zaphir e Jinana e leva-los de volta a base. Alguns
dos membros caídos da Embriao ainda podiam se mexer, e chamaram por ele assim que
perceberam que tinha voltado. Serph encarregou as tropas de Gale de cuidar deles e se
dirigiu rapidamente para a base.
Quando entrou, engoliu em seco. Era uma visao horrível, dolorosamente evocativa
da cena morbida na base dos Vanguardas. Havia sangue espalhado no chao e no teto e
marcas de queimadura e buracos de bala para todos os lados. O corredor principal tinha
desabado, e seria difícil encontrar outro caminho.
- Cielo! – gritou Serph, mas sua voz apenas ecoou sem resposta pelo corredor. De
algum lugar ao longe, veio o som de pedras desabando – Cielo, onde voce esta? Cielo!
Ele usou o seu Atma para vaporizar a montanha de concreto que bloqueava o
caminho. Os pedaços de pedra e concreto congelaram e se desintegraram num po
brilhante, mas nao havia ninguem do outro lado. Ele podia ouvir o som de passos e gritos
freneticos, mas nao conseguia identificar de onde vinham.
Aquela edificaçao sempre foi um lugar decrepito, difícil de cuidar e reparar,
porque suas varias estruturas e corredores nao eram nada uniformes. O resultado era
que eles tinham de conviver com uma base que era quase como um labirinto.
- Cielo! – Serph repetiu o chamado. Rangeu os dentes inquieto quando ouviu vozes
ao longe de novo.
Muito embora nao tivesse realmente opçao na hora, Serph se arrependeu de ter
mandado Cielo para proteger Sera. Dyaus podia ser um Atma Maior, mas seus pontos
fortes eram a habilidade de voar e ataques a longa distancia pelo ar. Ele nao era
adequado para lutas em ambientes fechados e apertados. Por outro lado, defender a
misteriosa garota era uma tarefa importante demais para ser confiada a qualquer um, e
entao o dever recaiu sobre o jovem Cielo.
O sentimento de que o tempo estava acabando pesava violentamente na cabeça
de Serph. Jinana precisava de ajuda rapido. A cada momento, ela era mais consumida
pelo seu Atma fora de controle. Serph ativou Varuna de novo e expandiu seus sentidos,
mas, apesar de detectar muitos Embrioes ainda nas suas formas de Atma, na o encontrou
Dyaus entre eles. Muito provavelmente, o proprio Cielo tambem estava num estado
muito enfraquecido.
Ou está morto, pensou Serph brevemente antes de expulsar a hipotese da cabeça.
Nao. Ele se recusava a acreditar nisso. Enfiou o punho na parede ao seu lado e, com o
poder do Atma por tras do soco, a estrutura danificada se espatifou ainda mais, como se
tivesse sido atingida por uma bola de canhao.
- … volta dele. E o Cielo. Alguem precisa avisar o líder. Cielo...
Serph praticamente mergulhou no buraco que fez. Os sons de mais gritos e passos
ecoavam no corredor do outro lado. Enquanto ele corria, quase colidiu com um membro
da Embriao, e ja ia desferir uma mordida, ate que percebeu quem era.
- Senhor! Quando voltou?
- O Cielo esta aqui? Onde ele esta? – exigiu Serph, pulando as formalidades.
Sentindo a urgencia, o soldado rapidamente deu meia volta e o encaminhou em
direçao aos níveis inferiores da base. Eles desceram varias escadarias e passaram por
inumeras salas desorganizadas. Depois de atravessar diversos corredores, começaram a
ouvir o barulho de uma comoçao mais a frente. Serph correu ate la, chegando a uma sala
lotada de gente. A multidao estava apreensiva, quase em panico.
- Escuta, nos nao somos o inimigo! – gritou um homem para alguem. Um instante
depois, foi iluminado pela rajada de um relampago azul claro que acertou de raspao. Ele
cambaleou e caiu ao chao. Um dos outros o ajudou a se levantar, e Serph correu ao
encontro deles.
- Senhor! – disse o segundo homem, preocupado e surpreso – O senhor nao deve
se aproximar! E muito perigoso. O Cielo esta fora de si!
Serph o mandou fazer silencio com um gesto e atravessou a porta a frente. A sala
estava um caos. Parecia uma area de suprimentos, so que tudo la dentro tinha sido
completamente destruído – esmagado e explodido –, exceto um unico armario de armas
que ainda continuava de pe, enferrujado mas ileso, num estranho contraste com tudo ao
redor.
Cielo, na forma de Dyaus, estava jogado contra a porta do armario, como que ainda
protegendo-o apesar do estado deploravel em que se encontrava. Ele estava pessimo;
provavelmente era sorte ainda estar vivo. Sua perna esquerda estava quebrada, dobrada
num angulo bizarro, e metade de uma das suas asas tinha sido arrancada. Ele sangrava
de uma dezena de ferimentos ou mais, o sangue formando poças enegrecidas no
concreto. O cheiro fazia o estomago de Serph coçar.
- Cielo.
Assim que a palavra saiu, uma rajada de eletricidade voou na direçao dele. Serph
a repeliu com um movimento do seu braço. Nao havia muito poder por tras dela. Era
obvio que Cielo nao tinha muito mais a oferecer. Serph se aproximou do amigo e ajoelhou
ao seu lado.
- Cielo, sou eu. Esta tudo bem agora. Eu nao sou seu inimigo. Voce se saiu bem. Fez
o melhor que pode.
- O... Oi, chefe... – as palavras saíram quase como um resmungo por entre os dentes
cerrados – Voce voltou. A Jinana... Ela esta bem? E... os outros...
- Eles estao bem. – garantiu Serph – Jinana esta la fora esperando o tratamento.
Argilla, Heat, Gale, estao todos bem. E veja, eu tambem estou.
- Que... Que bom... – de repente Dyaus cambaleou para frente e caiu, a
transformaçao em Atma se desfazendo quando ele ficou sem força. Serph segurou a
pequena forma humana de Cielo e rapidamente convocou uma equipe de primeiros
socorros. Alguem veio correndo imediatamente.
- Ei, chefe, eu...
- Esta tudo bem, Cielo. Nao tente falar. – Serph estava surpreso com o quanto o
corpo de Cielo era leve, acomodando-o cuidadosamente – Vou ouvir todos os seus feitos
heroicos depois. Por enquanto, voce deve ficar quieto.
- Eu fiz o melhor que pude. Pela Sera. Porque ela e minha amiga. – um sorriso
satisfeito se formou no rosto sujo e ensanguentado de Cielo – Eu vou protege-la. Custe o
que custar. Faço qualquer coisa. Porque eu sou o seu soldado numero um, nao e, chefe?
Ele recostou a cabeça de cabelos azuis no ombro de Serph. A equipe de primeiros
socorros veio e o colocou numa maca. Um momento depois, a porta do armario, nao mais
bloqueada pelo seu peso, abriu com um rangido.
La dentro, espremida no espaço escuro e poeirento, estava uma garota de cabelos
negros, encolhida e inconsciente.

Jinana abriu os olhos so o bastante para deixar um feixe de luz entrar.


Lentamente sua mente navegou de volta para a consciencia. Seu primeiro
pensamento foi se perguntar onde estava. E entao veio a questao de por que estava la.
Sua memoria estava turva. Ela lembrava de sentir dor. Uma poderosa fome e sede. Odio.
Medo. Um apetite tao intenso que fez sua visao ficar vermelha. E entao medo, e dor. Dor.
Dor.
E entao...
Jinana levantou de um salto. Percebeu que tinha sido colocada numa cama, num
quarto que nao reconhecia. As lembranças voltaram esmagadoras como um tsunami: a
traiçao de Bat, a batalha, seu Atma ficando fora de controle, e entao...
A porta se abriu.
- Oh, Jinana! – exclamou a mulher de cabelo rosa anelado ao entrar – Estou tao
feliz que voce acordou. Voce estava dormindo ha tanto, tanto tempo que estavamos
ficando preocupados. Mas vai ficar tudo bem agora. Todos podemos relaxar.
- Relaxar... – ela ficou confusa de novo. Quando sentiu o Atma subjugar sua
consciencia, ela ficou preparada para morrer. Desejar a morte era a coisa certa a fazer.
Ela nao suportaria a ideia de se tornar um monstro enlouquecido, como o seu proprio
povo se tornou, espalhado do lado de fora das muralhas da fortaleza. Ela preferia que
alguem a matasse antes disso, antes que ela matasse alguem, ou antes que ferisse um
dos seus novos aliados – seus novos amigos.
- Eu... Eu devia estar morta. O que eu estou fazendo aqui? Isso e o alem? Argilla,
voce tambem esta aqui. Estamos dentro do Templo?
- Estamos na base da Embriao. Desculpe a bagunça. – disse Argilla, apontando
para o quarto desordenado. Chegando perto da cama, ela sorriu acariciando a cabeça de
Jinana – Eu sei que as camas sao duras, mas tente aguentar. Ate porque, tem gente que
esta em situaçao bem pior.
- O que? Eu nao entendo.
A porta se abriu de novo. Por reflexo, Jinana parou de falar, se virando
rapidamente para ver o que estava acontecendo.
- Calma. – disse Argilla gentilmente – Voce nao deve se mexer tao rapido ainda.
Perdeu muito sangue, entao precisa se concentrar em descansar agora.
Ela ouviu uma voz do lado de fora do corredor, entao uma garota pequena entrou,
com passos tremulos e incertos. O laranja da sua roupa a marcava como membro da
Embriao. Ela parecia extremamente fragil, mesmo para uma nova recruta. Serph, com
uma postura solene, entrou atras dela.
Ao ver Jinana acordada e sentada, a garota levou a mao a boca num sobressalto.
Em seguida, correu apressadamente e ajoelhou ao lado da cama. Seu sedoso cabelo
negro fez cocegas na bochecha de Jinana.
- Ah, que bom. Deu tempo. Deu tempo!
Jinana olhou para Serph como que procurando uma explicaçao enquanto a garota
enterrava o rosto no peito de Jinana, soluçando.
- Achei que seria tarde demais pra te salvar. Mas deu tempo. Eu te salvei. Eu te
salvei!
- Foi o sangue dessa garota que nos permitiu salvar voce, Jinana. – disse Argilla,
acariciando o cabelo de Sera.
Cabelos negros. A garota levantou o rosto ensopado de lagrimas. Seus olhos
tambem eram negros. Os olhos de Jinana se arregalaram de surpresa.
- O nome dela e Sera. – disse Serph minimamente – Ela e a garota de cabelos
negros que a Igreja esta procurando.
Próximo Estágio

Nossa salvação é a morte, mas não esta.

– Franz Kafka

Varin Omega estava de mau humor.


Ele devia ser o comandante de todo o Lixao, aquele com as maiores chances de
alcançar o Nirvana, mas desde aquele dia caotico – o dia em que o Atma se manifestou –
vivia num estado constante de vexaçao, e praticamente todos da sua tribo, os Brutos,
sabiam disso.
Nem ele mesmo sabia direito porque andava tao contrariado. A Igreja, a
inquestionavel autoridade suprema do Lixao, repassou as informaçoes sobre o Atma,
mas isso nao serviu de nada para acalmar sua irritaçao.
Ele nao estava particularmente preocupado com o Atma, ou a fome que veio com
ele. Foi desagradavel o seu bispo ter morrido, esmagado pelo conflito entre o
condicionamento da Igreja e os impulsos do Atma, mas, fora esse inconveniente, as novas
realidades do conflito do Lixao pouco afetaram as suas estrategias. Assim como antes,
tudo que eles precisavam fazer era lutar e vencer. Ninguem sabia o que acontecia com
quem morria agora, mas se devorar os outros o deixaria mais forte, ele nao perderia a
oportunidade.
A fome do Atma tambem servia como força motora para os membros da tribo.
Havia alguns que expressavam desconforto com a ideia de se alimentar de outros, mas
esses fracos logo seriam mortos e devorados pelos seus colegas mais determinados.
Varin Omega nao se incomodava com o canibalismo dentro da tribo. Oficialmente, ele
havia proibido a luta entre membros para evitar uma perda estupida de pessoal, mas, se
a morte de um covarde fosse permitir que um indivíduo mais talentoso ficasse mais
poderoso, estava mais que disposto a fazer vista grossa.
No Lixao, os fortes reinavam supremos. E esse princípio nao era so uma lei do
lugar, era a propria crença pessoal de Varin Omega. Obviamente, sendo o líder da maior
tribo do Lixao, claro que ele ja tinha devorado uma quantidade razoavel de soldados
inimigos em batalhas. Ele nao tinha nada contra essa pratica. Era assim que as coisas
eram feitas agora, entao era o que ele fazia. Nada tinha mudado. Essencialmente, eles
nao estavam fazendo o que sempre fizeram?
Mas havia coisas acontecendo no Lixao ultimamente que ele nao gostava. De
acordo com a informaçao que recebeu outro dia, a Embriao, a menor das seis tribos
principais, derrotou seus vizinhos em Svadhisthana, os Vanguardas, e depois formou
uma aliança com a Maribel, que tinha um porte medio. Depois disso, parece que eles
massacraram completamente os inimigos da Maribel, os Solidos. Era uma historia difícil
de acreditar, mas fora confirmada varias vezes. As notícias da Igreja nao mentiam. Mas
era sem precedentes duas tribos concordarem em cessar hostilidades por vontade
propria, sem a Igreja emitir uma ordem de armistício.
E ainda por cima, depois da batalha com os Solidos, a Embriao manteve a aliança
com a Maribel. As duas agora ajudavam a defender o territorio uma da outra, e
aparentemente estavam trabalhando juntas para apreender os membros restantes dos
Solidos e ate recrutando Recem-Nascidos.
Como a Igreja nao tinha decretado o fim dos Solidos, significava que seu líder, Mick,
o Lesma, ainda estava vivo em algum lugar. Sua base, porem, havia sido completamente
ocupada por um contingente de forças da Embriao e da Maribel, e o que se dizia e que
os membros dos Solidos estavam indo ate la para se render voluntariamente.
Provavelmente Mick nao apareceria de novo tao cedo. Por ora, os Solidos nao eram mais
uma força relevante no Lixao.
Isso significava que a Embriao e a Maribel – talvez fosse mais correto dizer que a
Embriao tinha absorvido a Maribel – agora controlavam um total de quatro areas: seu
territorio natal, Muladhara, e mais Svadhisthana, Manipura e Anahata.
Um arrepio correu pela espinha de Varin Omega, mas ele nao deu atençao. Ele ja
tinha visto o líder da Embriao uma vez, no Templo. Era um homem jovem, de porte
relativamente pequeno e magro, cabelos prateados e traços faciais tao delicados que
eram quase femininos. Na ocasiao, Varin o considerou um imbecil por mostrar o rosto
na frente de todos os outros líderes, mas parecia que o rapaz imprudente estava
ganhando espaço no mundo rapidamente.
Sendo a maior tribo, os Brutos ainda possuíam força militar superior, e a area que
controlavam, Ajna, era a maior do Lixao. Mas se a tendencia atual continuasse, a Embriao
podia acabar subjugando o atual inimigo dos Brutos, os Lobos de Vishuddha. Entao,
mesmo com sua grande força, os Solidos se encontrariam cercados de todos os lados por
um inimigo superior, forçados a travar uma batalha defensiva sem chance de vitoria.
Nos ultimos dias, o conflito com os Lobos chegou a um impasse. As intençoes deles
eram incertas. Talvez simplesmente nao tivessem se organizado ainda depois do caos
que abateu todas as tribos depois que o Atma apareceu. Se fosse assim, Varin pensava,
agora seria uma boa hora para derrota-los e adicionar Vishuddha ao domínio dos Brutos,
mas a situaçao atual com a Embriao tornava um conflito nessa escala muito arriscado.
A pior possibilidade seria a fusao Embriao-Maribel adicionar os Solidos restantes
as suas fileiras e oferecer uma proposta de aliança aos Lobos. Se as forças combinadas
das tres tribos adicionassem os Lobos ao contingente, se tornariam uma força
extremamente perigosa. Os Brutos nao podiam deixar isso acontecer, mas, como a
situaçao atual dos Lobos era um misterio, agora nao era hora de açoes imprudentes. Ele
teria de prosseguir com cautela.
Houve uma chamada no comunicador. Varin Omega atendeu.
- O que e? – rosnou.
- Senhor, uma pessoa veio se render.
Varin detectou uma ponta de medo na voz do homem. Ficou feliz. O gosto do poder
sempre melhorava o seu humor.
- Se render? De que tribo?
- E, bom...
Uma voz grave e funda o interrompeu.
- E o Varin Omega?
- Quem esta falando?
- Voce me magoa! Sei que ja ouviu a minha voz pelo menos uma vez, quando a
Igreja mandou todos nos irmos ao Templo. – houve uma grande risada – Aqui e o Mick,
o Lesma, líder dos Solidos, como voce obviamente ja sabe.
Varin nao podia dizer que nao esperava por isso. Tendo perdido sua base e a maior
parte dos seus membros para a Embriao, Mick teria dificuldade para reunir bons
recrutas entre os Recem-Nascidos, e as forças que tinha eram muito limitadas. Depois
de um golpe desses, qualquer líder inteligente faria essa manobra: buscar refugio numa
tribo maior que a que o derrotou. Ele so teria que estar preparado para o fato de que nao
seria mais tratado como líder. Isso se fosse aceito.
- Quero imagem. – disse Varin, apoiando os cotovelos na mesa. A tela na parede se
iluminou. Quase metade da imagem era ocupada por um homem enorme de pele escura.
Seus labios rosados formavam um largo sorriso, mostrando seus grandes dentes
amarelos.
- Tem mais alguem atras de voce. – disse Varin – Quem e?
- Sou Bat, da Maribel. – a voz do homem tinha um timbre alto e irritante. Ele
parecia nervoso; seus olhos em alerta se movimentavam de um lado para outro
incessantemente. Mechas de cabelo roxo manchado de sangue caíam sobre seus ombros
magros.
- Na verdade e “ex-Maribel”. – disse Mick com uma risada – Ele nao aguentava mais
aquela vagabunda burra da líder dele, entao vazou e veio ficar comigo. Nao foi isso, Bat?
- Eu vou mata-los. – disse Bat, num tom completamente neutro – O moleque que
comanda a Embriao, a mulher, os imbecis da minha tribo... Nao terei piedade. Vou faze -
los em pedaços com as minhas proprias maos e depois os devorarei.
O Bruto ao lado deles pareceu ficar um pouco desconfortavel com o comentario.
Varin deu de ombros.
- Voces vao esperar aí enquanto verifico suas identidades. – ele disse. Entao,
interrompendo a conexao por um momento, começou o procedimento para confirmar
se os visitantes eram quem diziam ser. Se ainda tivesse um bispo, ele poderia
simplesmente ativar um breve comando e a verificaçao estaria completa em questao de
segundos, mas agora, precisava ativar o seu proprio terminal, acessar o sistema da Igreja
e fazer a busca manualmente. Varin comparou as características registradas contra os
nomes e posiçoes que os dois relataram. Parecia que estavam dizendo a verdade.
Ele reabriu o canal e olhou para Mick e Bat.
- Se rendendo aos Brutos, querem dizer que pretendem nos servir como membros
comuns? Decerto nao pretendem tomar o meu lugar de líder. Nao importa que tipo de
Atma voces tenham, ainda sao apenas dois. Nao e possível que subestimam tanto assim
a nossa força. O que os Brutos ganharao aceitando voces?
- Isso aqui. Da uma olhada. – Mick ergueu uma maleta. Era feita de metal, com
cerca de meio metro de comprimento. Sua tintura azul estava repleta de furos de bala e
manchas de sangue – Isso e um dispositivo que a Embriao desenvolveu, capaz de criar
um medicamento para controlar o Atma.
- O que? – Varin se levantou – Controlar o Atma? Isso nao pode ser verdade.
- Ah, mas e. Essa foi a isca que a Embriao usou pra ficar amiguinha da Maribel. Por
algum motivo, aquela mulher se achava boa demais pra comer outras pessoas. – Mick
pressionou forte a maleta contra o peito – Ainda nao descobrimos como funciona, mas a
coisa que isso faz e extraordinaria. Bat viu com os proprios olhos. Ele diz que foi com
isso que a Embriao conseguiu evitar o canibalismo depois que o Atma despertou.
Varin grunhiu. Mick continuava com o seu sorriso largo.
- A Maribel nao foi extinta ainda, nao e? Eu nao sei como, mas a dose certa dessa
coisa pode reverter ate um Atma que ja ficou fora de controle. Quando nos saímos de la,
tínhamos certeza que aquela vagabunda da Jinana estava condenada. Ou ia se matar pra
evitar a loucura ou ia ser morta pelos outros. Mas parece que ela ainda esta viva, e de
volta ao normal.
- Entendo. Retomaremos a conversa assim que eu confirmar essa historia. – Varin
encerrou a chamada, ponderando sobre a nova informaçao. Fez uma busca, e parecia que
o relato da sobrevivencia da líder da Maribel era verdadeiro, mas nao havia detalhes
sobre o acontecido. A Embriao realmente tinha feito algo para traze-la de volta e mante-
la viva?
A ideia era absurda. A Embriao poderia te-la matado e eliminado a Maribel para
fazer sua tribo subir mais um degrau na escada para o Nirvana. Se Jinana tinha ficado
louca, era mais um motivo para acabar com ela. Essa historia toda de aliança realmente
nao era so uma farsa que eles bolaram para destruir a Maribel e os Solidos de uma vez
so? Era isso que Varin teria feito.
Pensar no jovem impetuoso que liderava a Embriao o irritava. Ele nao conseguia
nem conceber o que o garoto planejava.
Varin sabia que nao podia confiar muito em Mick e seu companheiro. Um deles
tinha traído a propria líder, e o outro abandonou o proprio povo, para depois virem pedir
ajuda de outra tribo. Podia parecer um bom negocio agora, mas nao havia garantia de
que nao o apunhalariam pelas costas se tivessem a chance.
Mas ele estava muito interessado nesse “medicamento para controlar o Atma” que
Mick mencionou. Se a Embriao pode usa-lo para eliminar ou controlar outras tres tribos,
com certeza os Brutos tambem poderiam fazer bom proveito dele.
Se fosse eu, pensou Varin, encontraria uma utilidade muito melhor que esses idiotas
sem visão.
Ele estava prestes a apertar o botao do comunicador de novo quando ouviu uma
risadinha atras de si.
- Voce sempre se deixou enganar tao facil pela promessa de poder, Coronel.
Ele se virou e deu de cara com uma figura parada a porta, coberta da cabeça aos
pes com um longo sobretudo preto. Sem dizer uma palavra, Varin ativou seu Atma e
disparou uma rajada de relampago azul no intruso.
O homem de preto apenas levantou a mao e uma luz brilhou, dispersando o ataque
de Varin. O capuz negro do intruso balançou na escuridao do escritorio, mas, exceto por
isso, ele permaneceu imovel, como se a tentativa de ataque nunca tivesse acontecido.
Olhando para ele analiticamente, Varin pode ver que havia um símbolo na luva
branca que o homem usava: um par de círculos de espinhos entrelaçados, o emblema da
Igreja. Uma fraca luz azul oscilava nele. O líder dos Brutos ficou sem palavras.
- Saiba que a maleta que eles carregam era uma isca. O bispo da Embriao, sempre
cauteloso, os enganou direitinho. O verdadeiro medicamento para controlar o Atma esta
em outro lugar. E eu sei onde.
- Quem e voce? – perguntou Varin. Ele podia sentir que estava suando frio. Se deu
conta de que nao sabia quando o homem tinha entrado. Ele podia estar ali ja ha bastante
tempo. O intruso era magro e baixo, nao chegando nem a altura do ombro de Varin, mas,
embora seu físico nao intimidasse, havia algo extremamente inquietante na sua
presença. Algo nele parecia alienígena, diferente de tudo no Lixao.
As marcaçoes da Igreja sugeriam que era um padre, mas suas palavras sarcasticas
e voz de deboche eram muito diferentes do perfil dos sacerdotes guerreiros que Varin
encontrara antes, que executavam as ordens da Igreja como maquinas.
- E melhor que voce lembre por conta propria, Coronel. – ainda havia um tom de
deboche na voz do estranho – Por ora, considere-me um mensageiro da Igreja e o seu
novo bispo. E saiba, Coronel, que os Brutos agora tem o apoio incondicional da Igreja. Ou
pelo menos o apoio de Angel. Meu coraçao pertence a voce. Afinal, voce e a vítima aqui.
Naquela epoca, ninguem imaginaria que voce acabaria assim.
Varin enrijeceu quase sem perceber.
- Do que voce esta falando? Escute, seu merd... Perdao. Olha, eu gostaria de uma
explicaçao. Voce sabe de alguma coisa? Sobre o Lixao? Sobre o Atma? – sua garganta
coçou para conseguir proferir as proximas palavras – Sobre... Mim?
Quem sou eu realmente?
Varin teria ficado chocado se tivesse percebido que estava começando a fazer as
mesmas perguntas que Serph fez ha nao muito tempo. Suas lembranças da epoca antes
do Atma pareciam tao distantes agora, como se tivessem se ocultado atras de um veu de
neblina. Quase parecia que nao eram reais – como se fossem as lembranças de uma
pessoa completamente diferente que tinha lutado, vencido e levado sua tribo a uma
posiçao privilegiada.
Outra pessoa. A questao agora nao era sobre o Atma nem nada do tipo. Ele queria
saber algo muito mais basico. Queria entender o que definia o indivíduo chamado Varin.
Quem era ele? Por que estava ali? Pelo que lutava? Onde estava o paraíso que ele
aprendeu que devia almejar, e o que era a salvaçao que a Igreja prometia?
Quem sou eu?
- Eu posso te dar todas as respostas, Coronel. Venha comigo.
O homem de capuz gesticulou para Varin e se dirigiu a mesa de reuniao. Ao fazer
o mesmo, o líder dos Brutos ouviu uma voz ansiosa do outro lado do comunicador.
- Senhor? Senhor, aconteceu alguma coisa? Por favor, responda!
- Tranque esses dois em algum lugar. – ele grunhiu ao microfone, ignorando as
perguntas que foram feitas depois e cortando a comunicaçao.
O homem de capuz o esperava em frente a mesa. Era possível ver apenas um pouco
da parte inferior do seu rosto nas sombras abaixo do capuz. Seus contornos eram um
tanto femininos, os labios pequenos curvados num sorriso delicado. Houve um zumbido
quieto quando a mesa estabeleceu uma conexao com a Igreja. Uma luz verde começou a
brilhar, iluminando discretamente a sala escura.
O rosto que apareceu nao era a inexpressiva mascara de carne da Maquina de
Disseminaçao.
- Ha quanto tempo, Coronel Willian van Beck. – falava numa voz calma que nao
era nem masculina nem feminina – Peço que me desculpe por demorar tanto a entrar
em contato. Primeiro, permita-me dizer que estou feliz em ver que esta bem. Como no
momento nao podemos usar o Technoshaman, nao e facil estabelecer uma conexao
estavel. Gostaria de ter lhe falado no Templo, mas nao foi possível. Alem da presença dos
outros Asuras, ele tambem estava la.
Varin estava em choque.
- Como assim, “ele”?
- O homem que te matou antes, Coronel. – o homem de capuz respondeu com um
riso. Com um movimento suave, tirou o capuz, revelando uma fisionomia inesperada. O
cabelo, que ia ate o ombro, era de uma coloraçao negra que nao existia no Lixao. A pele
era branca como a neve, e o rosto era praticamente feminino.
Mas so metade desse rosto era visível, devido aos oculos escuros que ele usava
sobre os olhos.

Ela ainda nao tinha parado de soluçar.


- Ei, Sera, e serio, voce devia descansar um pouco. – disse Argilla, colocando a mao
no ombro da garota – A condiçao do Cielo nao e mais crítica, entao por que voce nao se
acalma e dorme um pouco? Estamos sentindo falta daquele seu eu cheio de energia.
Alem disso, voce tambem perdeu muito sangue.
- Mas... – Sera soluçava enquanto limpava as lagrimas. Seus olhos estavam
vermelhos de tanto chorar – E culpa minha o Cielo...
- Olha, nao e culpa sua. Quantas vezes eu vou ter que te dizer isso?
Mas Sera continuava de cabeça baixa e soluçando. Argilla suspirou, cruzando os
braços e olhando para Cielo, que dormia na cama, coberto de ataduras. Havia uma ligeira
amargura nos seus olhos.
Dez dias se passaram desde a batalha com os Solidos. O objetivo da força-tarefa
inimiga aparentemente era escapar com o segredo da Embriao para controlar o Atma,
entao eles nao perderam tempo devorando os oponentes derrotados. A isca de Gale fez
um otimo trabalho em engana-los, e felizmente a batalha nao se prolongou muito. As
casualidades eram bem menos que o esperado, e os ferimentos dos que sobreviveram
tambem nao eram tao graves. Exceto os de Cielo.
Considerando as limitaçoes da base, nao era tarefa facil enfrentar uma multidao
de invasores e proteger uma garota assustada ao mesmo tempo. Mas Cielo conseguiu.
Se o inimigo tivesse visto os cabelos e olhos negros de Sera, teria percebido na
hora que ela era a garota que a Igreja estava procurando. A primeira coisa que ele fez foi
esconde-la num armario de armas numa area de carga desativada nas profundezas da
fortaleza. Disse para ela nao abrir a porta em hipotese alguma e se transformou para
enfrentar completamente sozinho um poderoso esquadrao de ataque inimigo.
Seus ferimentos foram severos. Sofreu dano nas juntas da perna esquerda e teve
um dos braços arrancados. Ele tambem tinha queimaduras e laceraçoes por todo o corpo,
alem de incontaveis outros ferimentos externos. Nao fosse pelo seu Atma e suas grandes
capacidades regenerativas, ele provavelmente teria morrido la mesmo.
E a sorte parecia estar mesmo do seu lado. A equipe de resgate encontrou o braço
arrancado intacto num canto da sala de carga. A chance de reconstituiçao era de apenas
50%, mas por ora, o prognostico era bom. Ele ainda nao podia movimentar o braço, por
causa das suturas e do delicado tratamento de reconexao neural que Gale desenvolveu,
mas, no mínimo, os medicos estavam confiantes de que nao haveria necrose e ele nao
perderia o braço.
- Vem, Sera. – disse Argilla – Voce precisa descansar. O Cielo sempre foi duro na
queda, entao eu tenho certeza que ele vai continuar lutando. E voce so vai piorar as
coisas se acabar desmaiando aqui.
- Eu... Nao, eu sei disso, mas... – Sera baixou a cabeça de novo e mais lagrimas
caíram nas suas maos, que se apoiavam nos joelhos – E que... Eu nao pude fazer nada.
Quando os Solidos nos atacaram, eu sabia que o Cielo estava lutando sozinho, mas fiquei
com tanto medo que nao consegui nem me mexer. E o Cielo... A questao e que nos fomos
atacados por minha causa. Porque eu estava aqui.
Uma voz fraca surgiu na cama.
- Isso... Nao e verdade... Sera.
- Cielo! – Sera praticamente deu um pulo, se agarrando na cabeceira da cama.
Argilla tambem.
- Cielo, que bom, voce acordou! Como esta se sentindo?
- Ah, eu to bem. Nunca estive melhor. Ver o rosto da Sera e o melhor remedio. –
mesmo agora, apesar da voz tremula e respiraçao ofegante, Cielo conseguiu abrir um
sorriso para ela – Por que essa cara? Uma garota bonita como voce precisa sorrir mais.
Vamos, me mostra um sorriso.
- Ela e tao cabeça-dura, nao e? – disse Argilla, limpando as proprias lagrimas – Ta
bom, ve se fica quieto aí. Eu vou chamar Gale e os medicos.
- Cielo, eu sinto muito. – lagrimas começaram a escorrer de novo dos olhos de Sera
quando ela se sentou no chao ao lado da cama – Eu so fiquei olhando. Eu nao...
De repente Sera sentiu um peso cair no seu colo, e a surpresa interrompeu sua
fala.
- Heat! – repreendeu Argilla – O que voce esta fazendo? O que voce tem na cabeça
pra trazer uma coisa dessas aqui?
- Ela disse que nao pode fazer nada. – em algum momento, Heat tinha entrado no
quarto. Agora ele estava encostado na porta, de braços cruzados, nao dispensando um
unico olhar a Argilla. Toda a sua atençao estava focada no rosto assustado de Sera – Nao
tem nada que eu odeio mais que gente que fica choramingando que nao conseguiu fazer
nada sendo que nem tentou. Pegue isso.
Sera levou a mao ao colo e levantou uma pesada pistola, cuja superfície negra
emitia um brilho intimidador.
- Eu nao estou dizendo que voce precisa aprender a usar uma arma. Voce nao tem
porte físico pra isso, mesmo. Mas se estiver cercada de gente ruim, pode pelo menos
apontar essa coisa pra cabeça ou enfiar na boca e ameaçar puxar o gatilho se eles se
aproximarem.
Cielo tentou levantar.
- Ei, que ideia e es... – suas palavras foram interrompidas por um gemido. Heat nao
desviou o olhar de Sera.
- Todo mundo quer voce viva, porque e isso que a Igreja quer. Melhor fazer uma
ameaça funcional que colocar uma arma que voce nem vai conseguir usar na sua mao.
- Voce so pode estar brincando. – disse Argilla severamente – E claro que ela nao
vai fazer isso. Como voce pode pensar numa coisa dessas? Sera, me da isso.
- Espera. – disse Sera, e quanto Argilla tentou pegar a arma das suas maos, ela a
apertou contra o peito, se levantou e foi ate a porta. Heat, tendo dito tudo que tinha para
dizer, se virou para ir embora.
- Obrigada, Heat. – ela disse – Eu sempre achei que voce so nao gostava de mim.
- Eu nao uso pistolas. Peça pro Serph te ensinar. – com isso, Heat desapareceu no
corredor.
- O que foi tudo isso? – disse Argilla, ainda indignada – Sinceramente, acho que a
cada dia eu entendo menos o Heat. Nao se preocupe, Sera. Voce e uma ajuda maravilhosa
para nos so por estar aqui. Sem o sangue que voce nos deu, Jinana e muitos outros ja
teriam morrido ou enlouquecido.
Jinana havia terminado sua recuperaçao alguns dias antes e voltou para a base da
Maribel, que tambem fora atacada por uma força dos Solidos no dia da batalha. Eles nao
sofreram tantas perdas quanto a Embriao, mas os sobreviventes estavam apreensivos
com a notícia de que a sua líder tinha se perdido no Atma. Saber que a Embriao trouxe
Jinana de volta do limite melhorou muito a moral deles. Agora eles estavam
reconstruindo sua base ao mesmo tempo em que trabalhavam com a Embriao para
manter o controle sobre o territorio dos Solidos e eliminar qualquer resistencia na area.
Eles ainda nao tinham encontrado Mick, o Lesma, entao tinham que tomar cuidado e
ficar sempre em alerta, mas a confiança que se instalou na aliança Embriao-Maribel era
forte.
- Vamos, anime-se. – continuou Argilla – E... Essa arma nao combina com voce,
entao deixa que eu fico com ela, ta bom?
Sera nao se mexeu. Abraçou a arma com força e fechou os olhos como que em
oraçao.
- Argilla, o Cielo acordou mesmo? – disse Serph ao entrar correndo no quarto, so
para parar num susto quando viu a pistola nas ma os de Sera. Ela abriu os olhos e falou
com toda a calma:
- Serph, eu tenho um favor a pedir.

- Abra um pouco mais as pernas. Os pes devem ficar na direçao dos ombros. Isso,
perfeito. Agora coloque o pe direito um pouco para tras. Endureça os ombros e jogue o
seu peso um pouco para a frente. Nao mantenha os braços completamente retos, deixe
seus cotovelos curvarem um pouco. Eles precisam estar firmes, mas nao travados. Isso.
Relaxe o corpo... Agora concentre-se nos alvos. Voce quer aquele círculo vermelho bem
no centro.
Serph e Sera estavam numa ruína numa regiao relativamente segura proxima a
base da Embriao. Eles limparam a sujeira e os escombros o bastante para formar uma
area aberta e pintaram uma serie de círculos concentricos numa das paredes de concreto
do outro lado. Argilla, juntamente com alguns outros membros da tribo que estavam de
patrulha, observavam a cena preocupados.
Sera seguia as instruçoes de Serph passo a passo com um rosto serio.
- Muito bem. – disse ele – Agora mantenha essa postura, e lembre, o gatilho deve
ser pressionado com delicadeza. Certo... Fogo.
Quando o som da bala ecoou, Sera soltou um gritinho e quase deixou a arma cair.
A tinta vermelha coloriu um amontoado de destroços; o tiro passou longe do alvo. Argilla
levou a mao a testa e os outros soldados trocaram olhares de pena e cochichos.
- Como eu disse, voce precisa relaxar o corpo. – lembrou-a Serph – Principalmente
os ombros. Isso e so uma arma de tinta, mas ainda tem um recuo. Para alguem como voce,
que nunca usou uma arma antes, o coice pode ser muito mais forte do que o seu corpo
esta esperando, e se voce ficar muito tensa esperando por isso, vai interferir na sua
capacidade de mirar. Use os cotovelos como se fossem molas para absorver o impacto.
Tente de novo.
Sera coçou a bochecha e fez que sim. Se voltou para o alvo e reassumiu a posiçao
de tiro.
Apos aproximadamente mais uma hora de instruçoes, Serph disse a Sera que
precisava ir a uma reuniao com Gale. Ele e o bispo precisavam discutir para onde
exatamente iam mandar a garota.
Mick e Bat tinham caído na isca da maleta falsa, mas nao iam continuar enganados
para sempre. Bat provavelmente ainda tinha as capsulas de sangue que a Maribel lhe
deu, e era razoavel pensar que ele e Mick analisariam o conteudo. Eles provavelmente
nao fariam a conexao entre o sangue e a garota que a Igreja estava procurando de
imediato, mas como o inimigo conhecia a localizaçao e a planta da base da Embriao, a
prioridade agora era encontrar algum lugar para manter Sera segura.
Serph chamou Argilla num canto.
- Se importa de cuidar das coisas aqui ate ela terminar? Ela tambem precisa
aprender a desmontar e recarregar a arma. Pode fazer isso por mim?
- Bem, posso... – disse Argilla, franzindo a sobrancelha – Mas o senhor quer mesmo
mandar Sera para o campo de batalha?
- E claro que nao. Se possível, eu gostaria que ela nem nunca visse um combate. –
respondeu Serph – Mas o que Heat disse e verdade. Sera ficou muito chateada por Cielo
ter se machucado enquanto ela ficou escondida sem fazer nada. Ela precisa se sentir util,
e embora possa ser um pouco drastico, eu acho que nao fara mal algum ela receber
treinamento em armas. Gale tambem aprova.
- Eu entendo... – quando mais tiros ecoaram no campo de treinamento
improvisado, Argilla olhou com uma expressao preocupada – Mas isso me deixa nervosa.
A questao e mais que entrar em combate... Ela nunca nem pegou numa arma antes.
- Argilla, voce sabe melhor do que ninguem que uma nove milímetros nao vale
muita coisa numa situaçao de combate real. Pra Sera, seria apenas uma maneira de se
defender. – disse Serph tambem olhando para Sera, que continuava totalmente
concentrada nos alvos – Alem do mais, do jeito que o Atma esta se espalhando e
crescendo no Lixao, ate uma magnum de alto calibre mal se qualifica como uma arma de
verdade. E ela so esta treinando com tinta, nao balas.
Outro tiro ecoou, e tinta vermelha se espalhou pela parede onde o alvo fora
desenhado. Nao passou nem perto do centro do círculo, mas pelo menos ela conseguiu
acertar a parede certa dessa vez.
- Nao e como se ela pudesse fazer mal a alguem com uma bala perdida. So vou
pensar em deixa-la usar balas de verdade depois que estiver bem melhor com essa mira.
- Certo... – Argilla mordeu os labios – Mas eu ainda nao entendo porque ela precisa
ter uma arma. Ela tem a nos para protege-la, nao tem? Estamos acostumados com esse
tipo de vida. Mas ela? Eu entendo o que o Heat esta pensando, mas...
- Mas o que?
- E difícil colocar em palavras. – respondeu Argilla depois de um momento – Mas
eu nao quero que ela faça parte dessa triste realidade de matar ou ser morto. Eu quero
que ela continue a pessoa gentil e bondosa que e. E agora a vejo tentando aprender a
matar, quando isso e tao diferente de tudo que ela e... Nao parece certo. Isso parte o meu
coraçao.
Serph ficou quieto por um tempo, apenas observando o esforço de Sera, incapaz
de encontrar palavras para responder.
- Estive conversando com Jinana. – continuou Argilla, num tom mais seco que
antes – Eu nao vou mais usar o sangue de Sera. E nem ela. Nos vamos matar e devorar os
nossos oponentes, assim como todos os outros. Porque e isso que nos somos agora.
- O que? – Serph ficou boquiaberto. Nao era Argilla quem resistia mais ferozmente
a fome do seu Atma, que queria mais desesperadamente que qualquer um voltar ao
normal?
- Nao se incomode. – interrompeu ela antes mesmo dele começar – Garanto que
nao desisti de mim mesma nem nada do tipo. Mas Jinana e eu conversamos a respeito e
chegamos a essa decisao juntas. Quando lutamos com aquela criatura esqueleto no
subsolo dos Solidos, eu finalmente entendi. E isso que eu sou agora. Quando eu esmaguei
o cranio daquele desgraçado, senti um calafrio. Mas ao mesmo tempo, foi tao, tao bom.
O senhor entende o que estou dizendo, nao e?
Argilla nao estava olhando para ele com seus olhos rosas de sempre. Agora eles
mostravam uma tonalidade levemente dourada.
- Sim. – Serph demorou um pouco para responder – Sei muito bem do que voce
esta falando.
Serph tambem havia sentido isso, incontaveis vezes, no calor da batalha: aquela
coisa detestavel dentro dele que atiçava repulsa e prazer ao mesmo tempo. Ate agora,
Argilla parecia nao querer reconhecer essa realidade.
- O sangue de Sera inibe isso. Ele deixa a gente se safar de matar e devorar, nos
permitindo fingir que ainda somos humanos, mas... – a voz de Argilla fraquejou, e uma
lagrima se formou no canto do seu olho – Por mais que eu nao queira me submeter a
isso, usar o sangue dela e como sugar a sua vida, pouco a pouco. Nao posso cometer a
hipocrisia de dizer que a estou protegendo enquanto a faço passar por isso. Nao e certo.
Serph deu um abraço carinhoso em Argilla. Ele podia imaginar o quanto ela e
Jinana se martirizaram com o assunto antes de chegar a essa decisao.
- Entao eu nao preciso mais do sangue de Sera. – disse Argilla depois de um breve
silencio, enrijecendo sua resoluçao – Eu vou lutar, vou vencer e vou devorar aqueles que
matar. E vou ficar mais forte, por ela. Nao quero fazer isso, mas se tenho que escolher
entre o meu bem-estar e o dela, escolho o de Sera mil vezes. Nao sei se algum dia nos
conseguiremos voltar a ser verdadeiramente humanos, mas, por enquanto, e isso que
nos somos. Aquela garota fez muito por nos. Nao importa o que vai acontecer comigo.
Eu vou pagar essa dívida.
- Pare com essa historia de “nao importa o que vai acontecer comigo”. – insistiu
Serph – Voce e um membro importante da minha equipe, Argilla. Nao ha uma so pessoa
na Embriao que “nao importa”. Isso inclui Sera, mas inclui voce tambem.
- E claro. Me desculpe. – Argilla ficou olhando por alguns momentos para a lagrima
na ponta do seu dedo antes de continuar – Mas ainda sou contra Sera carregar uma arma.
Nao me parece certo. E nem me fale da ideia do Heat de ela ameaçar se matar. Por que
cogitar uma situaçao dessas se estaremos fazendo o nosso trabalho de protege-la?
- Pense da seguinte forma, Argilla. – disse Serph, vendo Sera travar uma batalha
para trocar o pente da pistola – Nos vamos fazer tudo que pudermos para manter Sera
segura. Nao por causa de uma ordem da Igreja, mas porque nos – eu, a Embriao, Jinana
e todos os outros – decidimos fazer isso. Mas ha outras tribos aqui no Lixao, e todas estao
procurando por ela. E os Lobos e os Brutos sao muito fortes. Sem contar que nem
sabemos onde Mick, o Lesma, esta. Sera ainda tem muitos inimigos la fora.
- Eu sei disso, mas...
- Se nao fizermos tudo que pudermos, ou mesmo se fizermos, Sera pode acabar
sendo capturada. Nesse caso, se houvesse alguma coisa que ela pudesse fazer para
ganhar nem que seja um pouco de tempo, ou possivelmente criar uma abertura para nos,
nao seria melhor fazer? Ela carregar uma arma nao e uma ma opçao. Na pior hipotese,
se ela acabar tendo de usa-la, significa que nos ja falhamos. – a voz de Serph estava mais
seria agora – A essa altura, ao inves de apontar a arma para o inimigo ou para si mesma,
ela devia e usa-la em nos.
- Se ela acabar tendo de usar a arma, nos falhamos. – repetiu Argilla com um
suspiro – Tudo bem, eu entendo. Nos so precisamos mante-la segura. So isso. Nao
importa o que aconteça, eu vou protege-la. Se o senhor quer que ela carregue uma arma,
que seja. Mas saiba que ela nunca vai precisar usa-la. Eu nao vou deixar ninguem
encostar um dedo nela.
- Essa e a ideia, Argilla. – sorriu Serph, acomodando seu rifle nas costas – Nos
vamos proteger a Sera. Ninguem vai encostar um dedo nela. Ninguem fara mal a ela.
Um momento depois, Sera veio trotando ate eles com seus passinhos leves, a arma
pressionada com força contra o peito.
- Desculpa. – disse ela, parando para respirar – Nao sei direito o que aconteceu,
mas o gatilho nao mexe mais. Acho que emperrou. Eu ja olhei tudo, mas nao consegui
descobrir porque nao mexe.
- Deixa eu ver... Sera, as suas maos! – quando Argilla pegou a arma da garota com
um movimento profissional, sua voz de repente oscilou. Sera pareceu ficar confusa –
Olha quantos cortes! – exclamou Argilla.
As delicadas maos de Sera estavam sangrando em varias partes. Como ela estava
apertando a arma com muita força, o desvio do coice prendeu sua mao entre o polegar e
o indicador, rasgando a pele. Ela tambem adquiriu alguns arranhoes quando trocou o
peite desajeitadamente, e mais um quando raspou o dedo na trava de segurança.
- Sera, esta tudo bem. Voce nao precisa fazer isso se nao quiser. – Argilla envolveu
as maos da garota com as suas e a olhou nos olhos – Eu prometo que nos vamos te manter
segura, nao importa o que aconteça. Nao tem problema voce treinar com uma arma de
fogo, mas se e pra te machucar desse jeito...
- Argilla, pare. Por favor, me deixe fazer isso. – Sera falou com tanto desespero que
Argilla ficou muda – Fazer isso me deixa feliz. Eu me sinto mais proxima de voces,
fazendo algo que voces fazem.
Argilla estava sem palavras. Sera desviou o olhar, mas continuou falando:
- Eu quero poder fazer as coisas que voces fazem. Nao quero so ficar escondida
sem fazer nada enquanto todo mundo me protege. Eu sei que lutar deve ser assustador,
mas voces sempre deram um jeito. E voces tambem tiveram que aprender um dia, nao e?
Eu nao quero que mais ninguem se machuque por minha causa como aconteceu com o
Cielo. Eu... Eu quero poder lutar tambem e...
- Eu entendi, Sera. – disse Argilla. A garota estava a beira das lagrimas e ela nao
queria ver isso – Apenas nao se esforce alem do necessario. Por que nao paramos por
hoje e voce continua amanha? Se nao cuidarmos desses machucados, vai começar a doer
tanto que voce nem vai conseguir mirar mesmo. Lembre, eu sou a melhor atiradora da
Embriao, entao sei do que estou falando.
- Tudo bem. – o rosto melancolico de Sera finalmente abriu um sorriso – Acho que
esta bom por hoje. Voce acha que amanha eu ja consigo acertar o alvo?
- Heh. Vamos ver. Primeiro voce tem que cuidar dessas maos, senao nao vai acertar
nada. Vem.
Deixando Sera aos cuidados de Argilla, Serph seguiu em direçao a base para ter
sua reuniao com Gale. Assim que começou a andar, porem, uma voz desesperada gritou
o seu nome. Olhando ao redor, ele viu um membro da tribo correndo na sua direçao
vindo de um dos predios por perto. Instintivamente, Argilla colocou Sera atras de si.
- O que foi? Mick e Bat?
- Nao, nao e isso. E que... Eu... Nao sei direito. – o soldado tinha corrido tanto que
estava sem folego, curvado com as maos apoiadas nos joelhos. Seu rosto estava
contorcido de vergonha – Do outro lado da base, do nada um buraco se abriu no chao e...
Cerca de vinte Novatos apareceram.
- Vinte? – Serph mal pode acreditar no que ouvira. Um buraco se abrir do nada ja
era bastante bizarro, mas ouvir que um grupo de vinte pessoas tinha passado pelo
cordao de segurança da Embriao e chegado tao perto da base era ao mesmo tempo
improvavel e perturbador.
- Eles dizem que sao sobreviventes dos Lobos... O que nao faz nenhum sentido,
mas parece que a tribo foi... Engolida por alguma coisa.
- Como assim?
- Eu nao sei dizer, senhor. E parece que nem eles. So disseram que, antes que se
dessem conta, sua area inteira foi engolida, e o unico lugar para eles fugirem era o
subsolo.
A ideia de que algum Atma tinha ficado fora de controle cruzou a mente de Serph,
mas era difícil de acreditar que mesmo um grupo poderoso de Atmas ferais poderia
destruir tao rapidamente os Lobos, a segunda maior tribo de todo o Lixao.
- Quem esta la agora? – perguntou Serph.
- O bispo e Heat, senhor. Por ora, todos os invasores foram apreendidos. Eles nao
resistiram. Um dos Novatos parece ser o líder deles. Pediu para falar com o líder da
Embriao. O bispo recusou, mas Heat disse que devíamos comunicar o senhor.
Dada a natureza cautelosa de Gale, Serph entendia porque ele nao aprovaria o
líder da tribo aparecer na frente de um grupo desconhecido. Mas por que Heat pensaria
diferente?
- Eu ja vou para la. Voce vai na frente e diz aos outros que estou a caminho.
O soldado fez uma saudaçao e saiu correndo. Argilla e Sera, que ouviram tudo,
olhavam com suspeita.
- O que foi isso? – perguntou Argilla – Nao parece que estamos sob ataque.
- Algo estranho esta acontecendo. Eu vou verificar. Sera, e melhor voce parar por
hoje, cuidar desses ferimentos e descansar um pouco. Nao exagere.
Sera fez que sim, seu rosto palido. Apertou a pistola com força, como se fosse
algum tipo de amuleto da sorte, e Serph seguiu na direçao da base.

A parte mais danificada da base fora convertida em deposito. Materiais pouco


utilizados e pedaços de equipamentos foram empilhados la, quase nao deixando espaço
para andar. Agora, num canto, uma area de cerca de cinco metros quadrados fora
rapidamente liberada, e em meio a toda a sucata acumulada, estavam quinze ou
dezesseis Recem-Nascidos, todos com rostos nervosos. Eles estavam cercados por
membros da Embriao, a maioria carregando armas, alguns tendo evocado o Atma para
aumentar a intimidaçao.
Gale e Heat monitoravam a cena de um mezanino um nível acima quando Serph
chegou. Ele achou estranho Heat nao ter manifestado o seu Atma; se havia alguem mais
propenso a isso nessa situaçao, seria ele. Ao inves disso, o grande soldado de choque
estava simplesmente parado com os braços cruzados, observando o grupo de jovens
nervosos.
- Senhor. – disse Gale, se dirigindo a Serph. Discretas rugas apareceram na sua
testa – Nao havia necessidade de o senhor vir. Eu posso interrogar essas pessoas e fazer
um relatorio detalhado.
- Cala a boca, Gale. – rosnou Heat rispidamente – Serph. – fez um sinal discreto
com os olhos, e Serph seguiu a direçao.
- Voce e o líder da Embriao? – perguntou um dos Recem-Nascidos, tentando dar
um passo a frente. Os soldados da tribo rapidamente o interceptaram, mas ele nao
mostrou sinal de medo, olhando para Serph sem titubear.
Serph pode sentir o proprio rosto ficando palido.
- Peço desculpas pelo metodo desagradavel que usamos para chegar aqui. – disse
o homem – Mas por favor entenda que eu e meus homens nao tínhamos outra escolha. –
fazendo um gesto na direçao dos companheiros.
O falante era um homem alto de boa condiçao física. Sua voz era baixa e articulada,
os cabelos, vermelhos, de um tom um pouco mais escuro que os de Heat, presos numa
duzia de tranças finas. Ele tinha as marcaçoes brancas dos Lobos pintadas nas bochechas,
mas nao parecia ser o líder deles. Seus traços decididamente masculinos e corpo bem
desenvolvido o faziam parecer bem mais velho que um Recem-Nascido normal.
- Que grosseria de minha parte. Nao me apresentei. Eu sou...
- Lupa. – o nome saltou dos labios de Serph, que continuava parado, em choque.
- O que? – um olhar de surpresa tambem se formou no rosto do outro homem –
Como voce sabe o meu nome, Serph da Embriao?
Posfácio

Aos meus fas de longa data, obrigada de novo, e aos que sao novos leitores, sejam
bem-vindos. Eu sou Yu Godai, e esta e a minha primeira publicaçao com a Hayakawa
Bunko JA.

A historia da publicaçao de Quantum Devil Saga: Avatar Tuner foi um pouco


diferente do normal, entao primeiro, eu gostaria de falar um pouco sobre como a serie
começou.
Tudo começou em 2000, quando a Kadokawa Shoten perguntou se eu gostaria de
fazer a historia de um jogo de videogame. O convite tinha vindo da Atlus, criadora da
famosa serie “Megami Tensei”, que queria alguem para escrever uma historia e
ambientaçao originais para um novo título relacionado a serie. Sendo eu mesma fa de
Megami Tensei ha muito tempo, aceitei a oferta com prazer.
O que eu entreguei foi uma proposta para Digital Devil Saga, e e nela que esse livro
se baseia. Felizmente, eles gostaram do material, e entao eu acabei indo morar
temporariamente em Toquio, tendo varias conversas com a equipe da Atlus e refinando
o projeto aos poucos.
Nao demorou muito para eu perceber que escrever a historia de um jogo e muito
diferente de escrever a historia de um livro. A maior diferença e que, num jogo, voce
precisa dar espaço para o jogador participar da historia, o que e fundamentalmente
diferente de um livro, onde, em geral, a historia se desenvolve a partir da perspectiva do
protagonista. Ou seja, eu precisava trabalhar junto com o roteirista da Atlus se quisesse
fazer as coisas direito. Determinando que elementos como visao de mundo, personagens
e desenvolvimento episodico sao coisas que ambos os formatos tem em comum, eu
escrevi uma historia que podia ser trabalhada tanto para um livro quanto para um jogo.
Para estabelecer o mundo e a ambientaçao, desenvolver um senso geral da historia e dos
personagens principais e transmitir o clima certo, eu escrevi a primeira parte do jogo
(mais ou menos ate o primeiro chefe) como se fosse uma obra simples e curta de ficçao.
Depois disso, por varios motivos, como nao me acostumar com a vida em Toquio
e problemas de saude, eu acabei tendo de sair da equipe, mas pude continuar
trabalhando no que estava escrevendo (ja que o contrato inicial me permitia publicar
uma versao em livro do que escrevesse).
Dez anos se passaram e, apesar sempre estar mexendo com ele, acabava sempre
deixando o manuscrito em segundo plano. Por varias vezes, eu tive vontade de
abandonar o projeto de vez. Ate o ultimo momento antes da publicaçao, as pessoas me
perguntavam: “Quando o livro do Avatar Tuner vai sair?” Eu via comentarios online de
pessoas questionando se realmente o livro ia sair algum dia, e isso fazia eu me sentir
muito culpada.
A minha obra sempre foi essencialmente de fantasia e, por mais que eu ame ficçao
científica, o meu coraçao e de fantasia. Mas, como ja disse, eu gosto de ficçao científica
tambem, entao o que voces tem aqui e o resultado dos meus maiores esforços para fazer
algo nesse genero. Os volumes 1 e 2 sao focados nas transformaçoes dos personagens,
mas os volumes 3, 4 e 5 mudam muito as coisas, entao eu acho que voces vao se divertir
cada vez mais lendo a serie.
Provavelmente muitas pessoas compraram esse livro porque gostaram dos jogos
e acharam que seria interessante dar uma lida. Ainda assim, esse e um livro
independente, nao uma novelizaçao. E claro que ha muitas coisas em comum com os
jogos, mas e melhor pensar nesse livro como as minhas proprias ideias pessoais sobre a
historia dos jogos.
Por outro lado, para quem nao jogou, mas gostou do que leu aqui, eu recomendo
experimentar os jogos se houver oportunidade. Kazuma Kaneko fez character designs
fabulosos, e o sistema de batalha e bastante elaborado e divertido. Eu acho que ambos
sao otimos RPGs.

A ideia original era que esse livro fosse publicado pela Kadokawa Shoten, mas ele
acabou sendo passado para a Fujimi Publishing, e de la para a Tokuma Shoten, e nesse
vai-e-vem, quando eu me dei conta, dez anos haviam se passado desde que eu comecei
o trabalho. Eu estava prestes a desistir, achando que a unica opçao seria uma publicaçao
independente. Nem sei como agradecer ao meu editor, Shiozawa-san da Hayakawa JA, e
ao meu contato, a Takatsuka-san, pela oportunidade de publicar esse livro, e pela sua
ajuda no refinamento do manuscrito. Tambem gostaria de agradecer ao Hirotaka Maeda
pelas ilustraçoes maravilhosas que agraciam as capas.
Este volume e o proximo compoem a primeira das tres partes da historia, que no
total vira em cinco volumes. Eu sei que essa e so a primeira parte de uma serie mais
longa, mas espero que todos leiam ate o fim. Obrigada mais uma vez.
2011 / Hayakawa Publishing Corp.

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