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AVATAR TUNER
VOL. 1
Quantum Devil Saga:
AVATAR TUNER
VOL. 1
Texto: Yu Godai
Capa: Hirotaka Maeda
Tradução:
Mangekyou54
www.nerduai.blogspot.com.br
Os Territórios do Lixão
O Lixão
Hora: 05:43:21 HS
Ruído Solar: NÍVEL 8
Coordenadas: 02A7-7B77845
Escaneando.../
Altura: 3567 mm
Comprimento: 2225 mm
Largura: 2225 mm
Peso: Desconhecido
Material: Desconhecido
Objeto: Desconhecido
Reiniciando escaneamento...
Categoria: Erro/
Capítulo 1
– P. W. Atkins
Serph congelou. Alguem estava olhando para ele. Ele podia sentir.
Lá. Ele focou o olhar na pequena criatura encolhida numa pilha de escombros. Ela
olhou de volta com olhos brilhantes.
Gotas de chuva molhavam os dois – uma chuva prateada. Pequenas poças se
formavam aos pes de Serph, tao metalicas que a agua parecia mercurio. Por todo lado,
pedaços retorcidos de metal enferrujado brotavam do chao. A chuva lavava o campo de
batalha. Ela nao tinha peso, nem temperatura – apenas estava la, tingindo o ar de prata.
Ao longe, se destacava a torre do Templo. Agora era HS – Hora de Sombra – e o ceu
estava cinza como o chumbo, com um ou outro feixe de luz esverdeada visível as vezes
do canto do olho. As forças de Serph e seus oponentes aguardavam em esconderijos
improvisados feitos de lajes caídas e veículos virados, espalhados por essa desolada
terra de ninguem. Os trajes tribais que eles usavam para combate possuíam controle de
temperatura, mas nao eram feitos para embates de longa duraçao como esse. Serph
estivera esticando as pernas, tentando amenizar a dureza dos seus musculos, mas parou
com a sensaçao de que alguem o estava observando.
Gato.
A palavra surgiu na sua mente, mas ele nao sabia porque. A tela do seu rastreador
brilhava em verde, exibindo as palavras “Categoria: Erro/” repetidamente. Ele nao tinha
certeza se a leitura vinha do objeto a sua frente ou da coisa que o olhava do alto dos
escombros. Provavelmente não é nada demais. Um momento depois, o que quer que fosse,
desapareceu, juntamente com a mensagem.
A chuva ficou um pouco mais forte.
- Senhor – sua atiradora falou com uma voz baixa. Ele olhou para ela – Avistei
Harley Q.
Serph fez que sim com a cabeça e ajustou o campo de visao do seu rastreador,
aumentando o zoom para visualizar as forças inimigas espalhadas pelo caminho.
Edifícios em ruínas formavam um cenario funebre na distancia sombria mais a frente. O
inimigo estava se escondendo atras de uma infinidade de predios decadentes, pedaços
de concreto indiscerníveis e veículos de guerra virados de lado. A chuva de prata
continuava a cair sem fazer um ruído.
Mesmo com o aprimoramento espectral de luz baixa dos seus olhos, era difícil
para Serph detectar as posiçoes inimigas num confronto em campo aberto como esse.
Por outro lado, o adversario estava no mesmo barco. Eles tambem tinham sistemas
nervosos reforçados e sentidos aprimorados, mas o breu do campo de batalha garantia
uma camuflagem eficaz para ambos os lados. Ele mudou para o modo de rastreio termico,
e silhuetas vermelhas e laranjas apareceram em meio ao campo de cinza.
Lá estão eles. Serph contemplou a força que os Vanguardas tinham despachado.
Os dados do líder deles, Harley Q, estavam superimpostos num canto do seu
monitor de dados. Ele mesmo nao tinha visto Harley ainda, mas se a sua atiradora disse
que ele estava la, entao ele estava la. Ela tinha uma habilidade sem igual para visualizar
alvos – ela nem precisava recorrer a tecnologia dos rastreadores.
Harley Q geralmente preferia taticas de guerrilha mais cautelosas. Era peculiar ele
adotar uma estrategia tao abertamente agressiva como essa. E era exatamente isso que
deixava Serph inquieto.
Inquietude.
Isso significava simplesmente que faltava alguma informaçao.
O campo de batalha era uma bacia rasa. A formaçao desigual era repleta de
destroços de concreto e pedaços de plastico de construçao derretido que se juntavam
em angulos estranhos ao longo do perímetro. No centro dela, ficavam os restos de um
viaduto que tinha desabado bem no meio da sua extensao. Sua silhueta escurecida
perfurava o ceu vazio, marcando a fronteira militar entre Svadhisthana e Muladhara. Do
lado de Serph da divisa estava um grupo de quarenta, e do outro, um de cerca de sessenta,
ambos esperando o sinal para começar as hostilidades.
O inimigo tinha descido a inclinaçao e avançado para varios pontos de defesa
oferecidos por caixas de mercadorias, restos deteriorados de estruturas ha muito
abandonadas e outras ruínas. Eles apareciam como manchas indiscerníveis no
rastreador termico; suas vozes eram audíveis na forma de um murmurio baixo. Pelo que
Serph podia ver, cada uma das posiçoes que ele tinha visualizado estava ocupada por
esquadroes de tres a seis soldados de infantaria.
Ele mudou para a visao normal de novo e olhou ao redor. Atras das linhas inimigas,
eram visíveis vislumbres de marcaçoes tribais verdes em movimentos furtivos. Todas as
tribos usavam uniformes marcados com uma cor unica para se diferenciar das demais.
Os Vanguardas usavam trajes acentuados com vívidas marcaçoes verdes, e os seus
oponentes – a tribo de Serph, a Embriao – eram identificados por um forte laranja.
Ambos se destacavam contra a paisagem cinzenta morta.
Os Vanguardas controlavam Svadhisthana, enquanto a Embriao regia sobre
Muladhara.
No total, o Lixao era composto por sete areas. A mais importante de todas era
Sahasrara, o territorio inviolavel, que abrigava o quartel-general da Igreja. Os portoes
para o paraíso do Nirvana se abririam para quem quer que controlasse as outras seis.
Assim dizia a Igreja, entao devia ser verdade; a Igreja do Karma era a autoridade
absoluta.
Muladhara, Svadhisthana, Manipura, Vishuddha, Anahata, Ajna e o inviolavel
Sahasrara. Sahasrara era onde ficava a torre, a colossal edificaçao habitada pelos
sacerdotes de branco da Igreja. No seu topo ficavam os portoes para o paraíso. O topo da
grande torre era longínquo, muito acima da extensao desolada do Lixao, alem da chuva
e da poeira. Do ponto de vista de Serph, ela parecia turva e eterea, como se pintada com
tinta guache.
Diziam que daquela torre era possível ver os confins do mundo. Mas nesse
momento, ali mesmo, naquele campo de batalha coberto de escombros, havia algo que
ninguem jamais havia visto.
Peso: Desconhecido
Material: Desconhecido
Objeto: Desconhecido
Categoria: Erro/
Nao importava quantas vezes ele escaneasse, o resultado era sempre o mesmo.
O objeto tinha cerca de tres metros e meio de altura e dois metros de diametro.
Sua forma era a de uma esfera deformada, pontuda no topo. Sua superfície consistia de
pratos de metal elípticos – tambem pontudos, semelhantes ao objeto em si – que se
entrelaçavam como escamas. Um padrao de luz verde brilhava as vezes entre os pratos
profundamente negros, fazendo parecer que o objeto estava envolvido em algum tipo de
rede brilhante. Varios tubos grossos conectavam a coisa ao solo; parecia que eles a
alimentavam com algum tipo de nutriente.
Uma luz corria pelos tubos, e toda vez que isso acontecia, o objeto pulsava na
nebulosa chuva de prata. Parecia algum tipo de broto, Serph pensou, mas num instante
a ideia sumiu da sua mente.
Gato. Broto.
A interferencia estava muito forte hoje.
- Aviso para a Embriao. – uma voz grossa ecoou de um megafone – Remova o
objeto nao-identificado nas coordenadas 02A7-7B77845 imediatamente. Caso nao o
faça, consideraremos como um ato de guerra e responderemos com força.
- Aviso para os Vanguardas. – uma voz parecida respondeu com o mesmo tom de
voz seco e uniforme – Removam o objeto nao-identificado nas coordenadas 02A7-
7B77845 imediatamente. Caso nao o façam, consideraremos como um ato de guerra e
responderemos com força.
Uma chamada ressoou no ouvido de Serph. O bispo, posicionado um pouco mais
para tras, transmitiu a sua analise dos dados. Uma serie de informaçoes começou a rolar
na frente dos olhos de Serph, mas a conclusao foi a mesma. Nem mesmo o bispo podia
desvendar o misterio desse objeto desconhecido.
Serph deu uma resposta curta e encerrou a chamada. Sem tirar os olhos das
posiçoes inimigas, emitiu ordens rapidas para suas tropas atraves de sinais com a mao.
Ouviam-se passos para todos os lados atras dele. A atiradora, em posiçao de ataque,
direcionou um olhar rapido para ele. Seu cabelo era rosa e ia ate a altura do ombro, o
que a fazia se destacar em meio as luzes cinzentas.
- Soldados sempre podem ser substituídos, senhor, mas nao podemos substituir o
nosso líder.
Ele nao respondeu. A essa altura, isso era mais do que obvio. Num conflito entre
tribos, se um lado derrotasse o líder inimigo, era o fim da batalha. Mesmo que uma tribo
estivesse emergindo como a vencedora indisputavel do embate, se o seu líder caísse, ela
seria declarada derrotada na hora.
Numa tribo grande com forças suficientes, como os Solidos de Anahata, e claro
que o líder nao se posicionaria nas linhas de frente. Mas para uma tribo emergente como
a Embriao, que tinha muito menos membros, o líder era uma presença valiosa no campo
de batalha.
Era inedito uma tribo pequena como a Embriao tomar o controle de toda a
Muladhara, e teria sido impossível se nao fosse pelas habilidades excepcionais do seu
líder e dos talentos consideraveis dos seus quatro membros-chave.
Argilla, a mulher com o rifle, era uma desses quatro. Ela tinha uma capacidade
incrível de escanear o inimigo sem precisar usar dispositivo algum, e derrubava
qualquer alvo com um unico disparo. Dois dos outros tenentes de Serph estavam
naquele momento liderando os seus proprios esquadroes, posicionados um de cada lado
da formaçao principal. O quarto membro era o bispo, que provavelmente assumiria a
retaguarda quando terminasse a sua analise de dados.
O fato de a Embriao precisar levar o seu líder e os seus quatro membros-chave
para o combate corpo-a-corpo era uma fraqueza, mas ao mesmo tempo uma vantagem.
A tribo tinha apenas cerca de cinquenta membros quando tomou o controle de
Muladhara, com esse grupo central de cinco pessoas sendo responsavel por
praticamente todas as lutas. Provavelmente nao havia muitas outras tribos que
concentravam tanto potencial em apenas cinco combatentes.
Serph sacou sua pistola do coldre e liberou a trava de segurança, preparando o
primeiro tiro.
O plano era ele liderar o ataque contra o líder dos Vanguardas caso ele aparecesse
no campo de batalha. Com movimentos ageis e precisos, Serph atrairia o fogo inimigo na
sua propria direçao, no intuito de fazer o proprio Harley Q se revelar. Nessa hora, suas
forças atacariam em massa. Se eles derrotassem Harley, a batalha estaria acabada.
Normalmente, ficar cara-a-cara com o inimigo so com uma pistola seria suicídio.
Mas nesse caso, ele queria evitar armas de fogo mais pesadas. Uma arma maior e mais
longa como um rifle ou metralhadora seria pesada demais, prejudicando a sua
capacidade de evadir o fogo inimigo.
Para essa estrategia funcionar, a pessoa que agia como isca precisava possuir uma
concentraçao excepcional, habilidade física e a capacidade de se defender sozinho no
campo de batalha usando a menor arma possível. A unica pessoa que atendia a todos os
criterios era o proprio líder da Embriao. Obviamente, era clara a regra de que a morte
de um líder significava a derrota imediata de uma tribo. Era por isso que Argilla o tinha
advertido.
Mas tambem havia outra regra a se considerar.
No caso da morte do líder, os membros restantes eram obrigados a se render na
hora e jurar aliança a tribo vencedora. Foi assim que a Embriao expandiu as suas
proprias fileiras. A mesma mulher que o advertiu momentos atras provavelmente
acabaria servindo a outra tribo sem hesitar caso ele morresse.
Ele levantou a mao para sinalizar o início da operaçao.
Tinha olhos prateados, ele pensou de repente.
O gato. Era negro, tinha uma cauda comprida, grandes orelhas triangulares e
bigodes finos como agulhas.
Isso não importa agora.
Ele abaixou a mao. Os primeiros disparos ecoaram.
Pulando de tras da parede de concreto que estava usando para se esconder, ele
correu adiante a toda velocidade, desviando erraticamente pelo caminho. Balas furavam
o chao aos seus pes. O cheiro e o calor da polvora passavam ao lado do seu rosto. Como
seu objetivo era ficar o mais agil possível, Serph nao estava usando nada para proteger
a cabeça. Ele protegeu os olhos com uma mao e rolou pelo chao.
A arma escolhida pelos Vanguardas eram bestas automaticas. Seus projeteis nao
possuíam muita força de penetraçao, mas eram carregados com explosivos que
ativariam uma vasta explosao apos o impacto. Essas explosoes podiam agitar a areia e o
cascalho com força suficiente para mutilar ou matar.
Ele rolou pelo chao ate um abrigo, mas outro ataque veio antes que pudesse
recuperar o folego. Flechas choveram em cima dele. Mesmo que nao o atingissem
diretamente, os explosivos fariam o trabalho. Rapidamente ele disparou uma se rie de
balas precisas com a sua pistola, detonando as flechas de longe. Chamas deslumbrantes
engoliram o seu campo de visao.
Enquanto ele rolava novamente para fora do esconderijo para evitar a explosao,
fragmentos ardentes de metal voaram para todos os lados, e uma assustadora rajada de
calor soprou sobre o seu rosto, quente o bastante para abrir bolhas na pele exposta,
apesar do creme anti-queimadura que tinha aplicado. Se ele tivesse levado aquela
explosao de perto, agora seria apenas um corpo torrado. O cheiro de cabelo queimado
tomou conta das suas narinas.
Ele destruiu outra saraivada de flechas que estavam vindo na sua direçao,
atirando as ultimas balas do pente e saltando para tras de um grande pedaço de
escombros no qual estava de olho. Um instante depois, chamas floresceram acima dele,
com uma flecha explosiva engolindo toda a area no seu ataque. Houve uma explosao
enorme, seguida de um vendaval cortante que carregava consigo o fedor de asfalto
chamuscado e carne queimada. Provavelmente um bom numero de pessoas tinha
morrido.
Ele colocou um pente novo na pistola e escaneou a area, escolhendo o seu proximo
destino. Do canto do olho, viu soldados inimigos correndo de tras de alguns escombros,
mirando nele. Respondeu instintivamente com um unico tiro – nao no inimigo, mas em
outra flecha explosiva que vinha na sua direçao. Defletido e girando fora de controle, o
projetil voou direto na direçao do inimigo.
Golpe certeiro.
Gritos encheram o ar. Varios soldados inimigos saíram correndo de tras do
concreto estilhaçado; fumaça subia dos seus corpos enquanto eles corriam.
Um momento depois, porem, eles pararam. Sangue jorrou e eles caíram ao chao.
O som de tiros pode ser ouvido. Argilla, ainda abaixada no seu ponto de ataque, trocou o
pente com uma facilidade invejavel e continuou a atirar sem demora. No intervalo de
uma unica respiraçao, todos os membros do esquadrao inimigo estavam mortos no chao.
O som de novos tiros ecoou a direita de Serph. Um soldado Embriao de baixa
estatura e cabelo azul trançado desceu escorregando o aterro no limite do campo de
batalha, atirando com a metralhadora na sua cintura em curtos intervalos. O esquadrao
que ele liderava o seguia de perto.
Ao mesmo tempo, outro grupo veio correndo de uma posiçao no lado oposto. Eles
eram liderados por um soldado de choque, um homem grande de cabelos ruivos que se
destacavam claramente contra a paisagem seca. Sobre um dos largos ombros, ele
carregava um lança-granadas, que descarregou enquanto corria, arrotando uma bola de
chamas; na explosao subsequente, varios soldados inimigos se tornaram cinzas,
deixando um buraco negro e ardente no chao.
Por toda a bacia, combatentes marcados de verde e laranja colidiam num frenesi
sem lei. O homem ruivo parou rapidamente, mantendo o inimigo sob controle com outra
granada, seguida de uma cortina de balas de metralhadora.
Serph ativou a funçao de rastreio de situaçao da sua visao aprimorada e examinou
a batalha. O inimigo tinha atualmente trinta e duas tropas. O seu lado tinha vinte e duas.
As coisas estavam indo melhor que o esperado, mas dada a disparidade entre as forças,
aquilo estava demorando demais. Enquanto ele checava, outro dos seus foi abatido.
Vinte e um.
Mas ainda nao havia sinal de Harley Q.
Havia um pequeno lag quando ele saía do modo de rastreio. Quando fez isso,
avistou um soldado inimigo escalando os escombros pouco mais de um metro acima de
si. Serph começou a levantar sua arma para atirar, sabendo que seria tarde demais. De
repente, se encontrou cara-a-cara com um par de grandes olhos abertos. Serph viu o seu
proprio reflexo neles, um jovem de cabelos prateados cujos proprios olhos estavam tao
arregalados quanto.
Um instante depois, houve um tiro atras dele, e o inimigo desapareceu da sua
frente num chafariz de sangue e massa cinzenta. Serph se recompos, atirou em outros
dois atacantes bem no meio dos olhos e seguiu para o seu proximo esconderijo. Ruídos
estalavam no comunicador na sua orelha.
Do alto de uma elevaçao atras das linhas da Embriao, um homem ergueu o rosto
de tras da mira do seu rifle de assalto. Seus olhos eram de um verde muito claro, a mesma
cor do cabelo debaixo do capuz. O bispo.
- Pude confirmar que Harley Q esta presente. Tenha cuidado, senhor. – a
transmissao foi seguida de um pacote de coordenadas. Serph ajustou seu radar,
mudando para o modo de zoom para escanear as linhas inimigas. Um homem de cabelo
vermelho apareceu brevemente, correndo para tras de uma carreta. O radar capturou
uma imagem, ampliou e filtrou. As linhas borradas foram limpas, revelando a silhueta de
um homem magro de aparencia inconfundível. Havia marcaçoes verdes nos seus ombros
e abaixo dos olhos. Era o suficiente para confirmar que era a mesma pessoa do arquivo.
Harley Q em pessoa.
Serph tinha localizado o seu alvo. Agora era apenas uma questao de encontrar o
jeito certo de atrai-lo para campo aberto. Ele esperou uma abertura no ataque inimigo,
tentando determinar a melhor rota a seguir.
Entao, de repente o campo de batalha foi banhado por uma luz branca ofuscante.
A princípio, Serph achou que a luz tinha vindo de uma explosao, mas um momento
depois, ouviu um guincho horrível no seu comunicador, seguido imediatamente de
silencio total. Seu radar oscilava de interferencia, e o fluxo de dados tinha sido
totalmente cortado.
Ele podia ver Harley. Nao havia som de nenhum tiro, apenas um chiado incessante.
Harley saiu cambaleando de tras do seu esconderijo, entao arqueou as costas e esticou
os braços. Chiado. Mais chiado.
Serph pode ouvir a exclamaçao desesperada de Harley:
- O que esta acontecendo comigo?!
A voz de Harley tambem parecia estar misturada com o chiado. Suas palavras
pareciam um grunhido borbulhante. Seus joelhos fraquejaram e ele caiu ao chao,
curvado como se fosse vomitar. Um movimento de pulsaçao subia e descia pelas suas
costas, como se houvesse algo vivo ali. O som molhado de carne sendo rasgada
preencheu o ar.
E no meio de tudo, o chiado.
Harley gritou. A parte de tras da sua jaqueta se levantou, e entao rasgou de dentro
para fora. Uma forma negra saltou quase que depressa demais para ser vista; os gritos
de um dos soldados dos Vanguardas que estava por perto pararam de repente, ja que
tudo dos seus ombros para cima desapareceu sem deixar vestígio. O homem morto
cambaleou para tras e, um momento depois, sangue começou a jorrar do seu corpo,
formando uma viscosa poça vermelha.
Serph apenas olhou, perplexo. O inimigo tinha desenvolvido alguma nova forma
de ataque? Mas isso nao explicava o corpo mutilado de Harley, ou por que ele atacaria os
proprios homens. Um novo oponente tinha aparecido?
Varias possibilidades vieram a mente, mas Serph dispensou todas elas. O líder da
Embriao continuou escondido enquanto pesava suas opçoes. Ele tentou chamar a
retaguarda pelo comunicador, mas nao houve resposta. Alguns tiros esporadicos eram
audíveis de novo, mas longe de no mesmo nível de antes. Com grande cautela, Serph
colocou a cabeça para fora do esconderijo e olhou ao redor.
O “broto” tinha se aberto.
O estranho objeto tinha ficado parado la durante toda a batalha, e como nenhum
dos lados o considerou uma ameaça, foi essencialmente ignorado. Mas agora, parecia
que ele podia ser algum tipo de arma laser bizarra ou bomba de fragmentaçao. A luz la
dentro pulsava em rajadas rapidas e aleatorias.
As escamas negras agora mais pareciam petalas, e tinham se aberto num calice
circular, acima do qual dançava um aglomerado de incontaveis luzes azuis claras. As
luzes giravam em torno de um vortice central, deixando trilhas brilhantes no seu trajeto
hipnotizante. Era impossível acompanhar qualquer uma delas individualmente. Vez ou
outra, uma das luzes azuis se separava do resto, como se simplesmente nao conseguisse
continuar girando com as outras, e voava em alguma direçao aleatoria – ou entao ia atras
de um dos indivíduos encolhidos que foram lentos demais para fugir. Qualquer um infeliz
o bastante para ser perfurado por uma dessas luzes logo tombava, tomado de violentos
espasmos. Os grossos tubos no chao pulsavam grotescamente, brilhando a cada pulso, a
fluorescencia tingida de verde pintando a area como sangue alienígena.
Luzes girando e chiado.
Serph tentou dar a ordem para suas forças recuarem, mas o comunicador na sua
orelha so emitiu um rangido em protesto. Percebendo o perigo, as forças da Embriao
começaram a se afastar por conta propria, mas a coisa era mais rapida que qualquer um.
Alguns sofreram o mesmo destino da primeira vítima, tendo a cabeça ou membros
decepados, enquanto outras, como Harley, foram perfuradas pelos feixes de luz azulada
e tombaram violentamente ao chao. O tiroteio cessou, substituído por um zumbido
quase inaudível enquanto a area era engolida pela luz do objeto. Serph sentiu uma dor
intensa, como se algum tentaculo rastejante tivesse entrado pelo seu ouvido e estivesse
cortando seu cerebro em pedaços com uma pequena faca. A arma caiu da sua mao.
Algo – algum tipo de transformaçao – tinha começado. Harley estava agonizando.
Um par de membros deformados brotou das suas costas curvadas, balançando
selvagemente como se controlados por alguma outra mente. Por todo o campo de
batalha, corpos se contorciam e dilatavam enquanto asas se abriam, chifres nasciam,
temíveis garras cresciam, pele era substituída por escamas ou pelo. A carne
convulsionava enquanto os combatentes caídos começavam a se transformar em alguma
coisa que nao era humana. Havia uma especie assustadora de beleza artística na amostra
grotesca de corpos deformados.
De repente, o chiado no comunicador parou e um grito ecoou nele.
- Senhor, abaixe!
So entao Serph percebeu que tinha se levantado. Sentiu um poderoso impacto no
seu peito.
Ele tinha sido baleado. Ele podia sentir. Era isso, pura e simplesmente. Bem no
coraçao. Um ferimento certamente fatal. Ele nao sabia se tinha sido amigo ou inimigo,
mas uma bala perdida o acertou em cheio, penetrando ate o seu traje de combate. A força
lentamente se esvaiu das suas pernas, e ele tombou de joelhos. Olhou para baixo, vendo
o proprio sangue escorrer e se espalhar pelo chao.
Um longo tempo se passou, ou pelo menos foi o que pareceu para a sua percepçao
aguçada. Mas, de acordo com o relogio que ainda continuava aceso no radar quase que
totalmente escurecido, tinha sido apenas um segundo. Dentro de mais um segundo, ele
sabia, estaria morto. Ele viu os numeros vermelhos como uma contagem regressiva da
propria vida.
Chiado.
Uma esfera de luz branca desceu sobre ele. Ele precisava desviar, pensou, mas nao
tinha forças. Seu tempo tinha acabado. Um instante antes de a sua consciencia se esvair,
a luz branca envolveu seu corpo.
O amontoado de luzes peregrinas emitiu um som estridente, e entao explodiu em
pedaços, se espalhando em todas as direçoes.
Uma forma fantasmagorica flutuava na frente dele. Era humanoide; encara-la dava
a sensaçao de estar olhando um espelho, exceto pelo fato de que o rosto que olhava de
volta nao era humano. Ao inves disso, parecia ser algo esculpido num cristal, com
milhoes de facetas brilhantes e translucidas. Seu cabelo flutuava no ar, semi-líquido,
balançando em ondas ininterruptas e criando um arco-íris com o movimento. Energia
corria dentro da apariçao em ondas imprecisas, se originando nos seus joelhos e
cotovelos translucidos, destacando o seu robusto corpo liso.
O radar de Serph foi tomado por outra onda de chiado quando tentou analisar a
forma misteriosa, e entao mostrou uma unica linha de texto.
Varuna
Deus da agua e do ceu.
Estava... Chovendo.
Chuva.
Uma chuva que nunca parava. A chuva do Lixao.
Os corpos dos mortos evaporavam e ascendiam aos ceus, tornando-se a chuva que
caía e por fim se reunia debaixo do Templo. La, o espírito era purificado do seu karma –
os pecados cometidos durante as lutas – e renascia no mundo novamente, para lutar
outra vez. Assim dizia a Igreja.
Ele viu uma mao esticada na sua frente. Alem dela, se estendia o ceu cinzento,
vazio e monotono como sempre.
O lixão. A luta. Chuva, luz. Uma mão.
Minha mão.
Eu.
Eu sou Serph.
Ele sentiu como se alguem apertasse o seu coraçao com as duas maos.
Serph expressou um grunhido baixo quando recobrou a consciencia. Os arredores
ressurgiram com uma clareza quase assustadora.
O inimigo tinha sumido. Ele nao estava vendo nenhum dos seus aliados tambem.
Estava quieto. Seu comunicador estava caído no chao, de onde emitia um hino de
zumbidos. Os restos retorcidos do que parecia ser um rifle jaziam aos seus pes.
Alguem colocou a mao na sua cintura, virando-o e tentando tira-lo do transe.
- Heat... – murmurou Serph de leve, reconhecendo o grande soldado pela pressao
firme da sua mao. Ele tentou se levantar. Ao fazer isso, sentiu algo quente subindo pela
garganta e vomitou. Um líquido meio marrom, meio vermelho, se esparramou pelo chao,
parecendo oleo usado, velho. Heat nao disse nada, apenas segurando Serph enquanto o
líder da Embriao se curvava e esvaziava o estomago.
O ceu estava começando a clarear para um magenta claro. Era quase HL – Hora de
Luz. Quanto tempo tinha se passado? Serph olhou ao redor. O misterioso objeto tinha
desaparecido sem deixar vestígio. Nao havia sinal de mais ninguem entre as pilhas
amontoadas de lixo e escombros. Era como se tudo nao tivesse passado de um sonho
ruim. Ele limpou a boca com a mao.
- Como estao os outros?
- Estao bem. Bom, ou fugiram ou foram mortos, na verdade. Seja como for, nao
vejo mais ninguem aqui. – disse Heat, fazendo um gesto na direçao da bacia desolada –
Nao se preocupe. Todo mundo esta no mesmo barco.
- Quer dizer que isso aconteceu com todos nos?
Heat fez que sim com a cabeça, e entao torceu a cara e cuspiu no chao. Serph
conseguiu ficar de pe, mas entao engasgou e tossiu, sendo acometido por outro ataque
de nausea.
- Para onde foram todos? Eles recuaram?
- Nao tenho certeza. – Heat balançou a cabeça em frustraçao – Quando voltei a
mim, eles tinham sumido. Todos sumiram. Nos somos os unicos que restaram.
Serph passou os dedos pelo peito, encontrando o buraco de bala no seu traje.
Então não foi um sonho. Parecia que a sua boca tinha sido enchida de alcatrao. Havia um
leve cheiro de ferro, e um gosto que fazia a sua língua formigar.
Algo nao estava certo.
- Heat. Voce é o Heat, nao e?
- E claro que sou. – respondeu Heat, fazendo uma careta – Tem certeza que voce e
voce, Serph? Vamos, Argilla e Gale estao logo ali.
Argilla. Gale.
A visao de Serph ficou borrada por um momento, e ele cambaleou.
“Argilla” era o nome-codigo da atiradora da Embriao, bem como “Gale” era o nome
do bispo, o analista taciturno que bolava as estrategias deles.
E Heat era o melhor combatente deles, o numero dois da Embriao, a par com o
proprio Serph. Ele lutava ao lado de Serph desde o começo, conquistando o seu lugar de
um dos membros-chave da tribo.
- Serph? – havia duvida nos olhos de Heat quando ele olhou o líder de perto – Voce
nao parece bem. Talvez seja melhor dizer para os outros virem ate aqui.
- Nao, esta tudo bem. Eu estou bem. – Serph balançou a cabeça, tentando afastar
a estranha tontura que pairava sobre ele. Era uma sensaçao estranha, como se o zoom
do seu radar tivesse sido aumentado demais – ou melhor, como se a nitidez tivesse sido
elevada ao maximo. Era como se ele vivesse sob uma película protetora que nunca tinha
percebido e que agora tinha sido removida.
Ele sentiu o calor dos dedos de Heat agarrando o seu braço. E quando gotas de
chuva molharam o seu braço, sentiu tambem um aperto no peito, lembrando que ela era
feita daqueles que morreram ali mesmo, naquele campo de batalha.
O cheiro de ferrugem tomou conta do seu olfato.
- Onde eu estou? Por que eu estou- Uwaah! – uma voz estridente chamou de algum
lugar ali perto.
- Quem esta aí? –perguntou Serph.
- E o Cielo. – disse Heat – O que sera que deu nele?
O mais novo dos membros-chave, Cielo – não era esse o nome dele? Um soldado de
infantaria. Sim, era isso mesmo. Serph sabia de tudo isso. E claro que ele sabia.
- Ele esta bem? Vamos, vamos la ver.
- Líder, o senhor esta bem? – Argilla e Gale apareceram de tras de alguns
escombros, aparentemente tendo ouvido a voz de Cielo tambem. Gale parecia o mesmo
de sempre, esticando o rosto para fora do capuz enquanto escaneava a area
cautelosamente, seus olhos verdes afiados e alertas. Argilla parecia um tanto debilitada;
mechas despenteadas do seu cabelo rosa chamavam a atençao em meio aos fios
normalmente impecaveis. Sem um rifle nas maos, ela parecia mais vulneravel do que se
estivesse nua.
- Senhor, o que aconteceu aqui? Onde estao os Vanguardas? Onde estao todos? E o
que era aquela... Coisa no campo de batalha?
- Nao estou detectando nada correspondente ao objeto dentro de um raio de tres
quilometros da nossa posiçao atual. – disse Gale, com a sua voz seca – Nao ha outros
sinais de vida num raio de cinco quilometros. Tambem nao detecto nenhuma defesa
automatizada. Nos somos os unicos aqui. Concluo que nao corremos risco de um novo
ataque.
- Ah, cala a boca. – respondeu Argilla – Quantas vezes eu vou ter que te dizer que
ser atacado nao e o problema? Eu quero saber o que aconteceu. Voce lembra de alguma
coisa, senhor?
- Nao, de nada. E o Heat tambem nao. E pelo jeito, parece que nem voces.
Argilla sentou no chao, aparentemente esgotada. Serph olhou para Gale.
- Nao consigo acessar os registros da Igreja. – respondeu Gale, como que sentindo
o que Serph ia perguntar – A interferencia esta muito forte. Parece que esta causando
algum efeito nos meus implantes. Eu sugiro que voltemos a base para reagrupar. Todos
estao exaustos e, alem disso, precisamos de mais informaçoes antes de tomar qualquer
decisao.
- Parece a melhor opçao. – Serph olhou para Argilla. Seu rosto estava palido, e ela
estava com a mao na boca, como que se segurando para nao vomitar. Todos estavam mal,
mas Argilla parecia estar pior que os outros.
Os outros.
- Quase esqueci. – disse Serph – Onde esta o Cielo?
Cielo era o que estava mais perto do objeto quando ele se ativou.
Olhando ao redor, Serph viu a silhueta de um jovem rapaz contra o ceu magenta,
de joelhos sobre uma pedaço de terra que tinha se elevado com a explosao. Cielo estava
olhando para alguma coisa la embaixo com grande interesse. Serph e os outros subiram
a elevaçao para se juntar a ele.
- O que foi, Cielo? O que esta havendo?
- Ah, oi, chefe. – Cielo se virou para olhar para Serph, seu cabelo azul trançado
balançando. Ele apontou na direçao em que estava olhando. – Da uma olhada.
No lugar onde o estranho objeto estivera, agora havia uma cratera circular, de
aproximadamente dez metros de diametro e profunda o suficiente para uma pessoa ficar
em pe la dentro. Suas paredes de pedra e solo tinham sido transmutadas em vidro, como
se derretidas por um tremendo calor. O solo das imediaçoes tinha sido fundido no que
parecia uma obsidiana. Ele brilhava na chuva.
No fundo daquela tigela de vidro estava uma mulher, caída de lado e curvada.
Era uma jovem esbelta sem nenhum retalho de roupa sobre o corpo. Era possível
ter um pequeno vislumbre dos seus seios pequenos por entre os braços entrelaçados, e
sua pele era do mais puro branco, como porcelana polida.
- Quem... Quem e aquela? – perguntou Argilla, com uma voz tremula.
Serph ficou de joelhos e se inclinou para ver melhor a cratera. Nao parecia haver
armadilhas. Ele ativou as funçoes de zoom e scanner do radar e iniciou uma analise
detalhada. Ao que tudo indicava, a garota estava desarmada, e nao tinha nenhum
membro prostetico que pudesse esconder alguma surpresa. Nao parecia haver nada
estranho com ela – exceto pelo fato de que ela estava dormindo pelada no meio de um
campo de batalha. Bom, pelo menos era um campo de batalha ate pouco tempo.
O cabelo dela era preto. Isso era estranho, refletiu Serph. Ele nunca tinha visto
alguem de cabelo preto no Lixao. As pessoas do Lixao nasciam com uma infinidade de
cores de olhos e cabelos: Serph os tinha prateados, Heat, vermelhos, Cielo, azuis, e daí
por diante. Os olhos e os cabelos eram sempre da mesma cor. Mas, ate onde Serph sabia,
nunca houve registro de alguem de cabelo preto.
Ninguem dizia nada. Nem mesmo Gale conseguiu dar alguma sugestao do que
fazer. Ainda assim, ficar ali olhando nao ia resolver nada, entao Serph desceu ate o poço.
Cautelosamente, ele escorregou ate o fundo da cratera, direcionando apenas um
breve olhar para os seus companheiros la em cima quando eles gritaram para ter
cuidado. A superfície vítrea escorregava e rachava sob os seus pes. O que quer que fosse
aquele objeto, elevou a temperatura dali a um nível absurdo. O calor residual subia por
entre a chuva que caía, envolvendo-o num calor agradavel. O vidro em si ainda estava tao
quente que Serph podia sentir a temperatura mesmo estando de bota.
Mas ela não se queimou...
Ao se aproximar e levantar a garota, ele ficou surpreso com o quanto ela era leve.
De perto, ela parecia ainda menor e mais magra, com quase nenhum musculo – o que
era impensavel para um habitante do Lixao. As pessoas nascidas neste mundo existiam
para lutar, e ate alguem novo como Cielo ainda tinha força muscular e resistencia
decentes.
E, apesar de estar no calor intenso da cratera, a pele da garota estava fria, ate um
pouco umida. Serph jogou o cabelo dela para o lado, expondo o rosto pequeno. Seus cílios
longos eram da mesma cor do cabelo, e seus labios escarlate pareciam que tinham sido
pintados. Seu rosto parecia expressar um leve desconforto. A chuva de prata fazia o seu
cabelo se agarrar molhado na pele.
- Argilla, me jogue alguma coisa que ela possa vestir. Vamos leva-la para a base.
- Tem certeza que isso e seguro? – perguntou Argilla. Serph olhou novamente para
a garota nos seus braços.
Era um risco leva-la? Talvez. Mas algo lhe dizia que ele nao podia simplesmente
deixar aquela garota ali. Por alguma razao, ela parecia... Familiar.
Ele balançou a cabeça para se livrar da ideia. Isso nao era possível.
Em verdade, havia nao-combatentes no Lixao. A maioria das pessoas que
cuidavam das estaçoes de suprimento e fabricaçao de armas servia as tribos apenas
como combatentes secundarios. Os monges da Igreja, por sua vez, aderiam a uma rígida
política de nao-violencia, e nunca sequer apareciam nos campos de batalha. Sendo a
coisa mais proxima que o Lixao tinha de regentes, os monges eram arbitros supremos
para as tribos, e se mantinham acima de qualquer tipo de luta. Mas Serph nunca tinha
ouvido falar da existencia de monges mulheres, entao duvidava que a garota fosse um
deles.
Ela continuava inconsciente nos seus braços, respirando lenta e profundamente.
- Perigosa ou nao, ela pode ter alguma coisa a ver com o objeto que estava aqui. –
disse ele – E possivelmente ate com o que aconteceu depois. Quando ela acordar, talvez
consigamos fazer com que diga alguma coisa. Me de a sua capa, Argilla. E joguem uma
corda. Nao acho que posso sair daqui sozinho.
Capítulo 2
- O que voce quer? – Serph olhou por cima da tela do computador. Ele estava no
seu quarto particular, mas a porta estava aberta, e em algum momento Heat tinha
entrado. O homem grande estava encostado na porta com os braços cruzados e um dos
pes apoiados na parede.
Eles estavam num dos comodos do edifício dilapidado que foi o primeiro que
tomaram no dia em que requeriram a Igreja a formaçao da sua tribo. Dutos enferrujados
e pedaços de vergalhao expostos eram comuns por todo o perímetro. As piores partes
foram remendadas com cimento de secagem rapida.
O quarto de Serph refletia o estado geral do quartel-general da tribo. Isso era uma
instalaçao militar, afinal, entao eles deram prioridade a fortalecer as defesas exteriores,
deixando o conforto para outra hora. A Embriao estava se expandindo rapidamente com
a chegada constante de novos membros, e agora, ao inves de ter tudo centralizado num
unico predio principal, a base era um caos de puxadinhos, se esticando em todas as
direçoes, nao sendo nem facil de navegar, nem agradavel aos olhos.
- Alguma coisa te deixou interessado nos seus atributos depois de todo esse tempo?
– perguntou Heat – Voce ja devia estar bem acostumado com o seu rosto.
Devia, não é?, Serph pensou.
A tela iluminada mostrava a foto 3x4 de um rapaz magro de cabelos e olhos
prateados. Na imagem, ele parecia palido e inexpressivo, como um cadaver. Ao lado da
foto, rolavam valores numericos para todos os tipos de campos de dados. Altura. Peso.
Numero de registro. Estatísticas de todas as partes do seu corpo. Tempo transcorrido
desde o renascimento. Seu status dentro da Embriao. Os Pontos de Combate que ele
tinha adquirido ate agora.
Este era Serph. Os dados, o codigo que o definia.
Alguns poderiam dizer que o seu rosto era um tanto feminino, ele considerou. Ou
talvez fosse mais preciso dizer que era androgino. Suas feiçoes eram leves e simetricas,
tao perfeitas que eram proximas ao artificial e sem vida. Seu peito e ombros eram muito
mais magros que os de Heat, e ele tambem era menor e mais leve.
Heat. Seu cabelo ruivo o tornava inconfundível, e ele era alto o bastante para se
destacar em qualquer multidao. Ele tinha ombros largos e braços fortes que davam peso
a sua presença mesmo que nao dissesse uma palavra. Seu rosto tambem era
decididamente mais masculino que o de Serph, com um maxilar forte, feiçoes definidas
e pele morena. Por baixo da sua franja despenteada, brilhavam olhos vermelhos
cortantes.
Heat era o tipo quieto, e raramente falava com qualquer um que nao fosse Serph.
Era peculiar ele aparecer e começar uma conversa assim.
Serph sentiu uma pontada estranha no peito.
Eu e Heat sempre fomos assim?
Serph levantou a mao e a balançou na frente do rosto. Seus dedos eram compridos,
magros e ageis. O simples ato de pensar que aquela mao era dele o fazia se sentir
estranho de novo.
E o meu rosto também.
- Algum problema? – so quando Heat perguntou, com as suas poucas palavras, foi
que Serph percebeu que tinha começado a coçar a bochecha esquerda.
- Sim. Estou preocupado. Voce nao?
- Sim. – respondeu Heat, levantando o antebraço esquerdo para revelar uma
marca escura, de um formato estranho.
As pontas da marca eram bem definidas; era como se tivesse sido cuidadosamente
desenhada. Seu formato lembrava uma bola de fogo deixando um rastro de chamas para
tras. A bola de fogo em si tinha uma boca com dentes afiados, aberta como que rugindo.
Serph olhou para a tela novamente. O rosto na foto era o mesmo de sempre, mas
ele sabia que nao podia dizer o mesmo do seu. Algo tinha começado a mudar.
Serph tambem estava com uma marca peculiar, no seu caso na bochecha esquerda.
Parecia uma borrifada de agua, uma imagem diferente da de Heat, mas claramente no
mesmo estilo, e tambem com uma irregularidade que podia ser interpretada como uma
boca com garras.
- Os outros tambem tem? – ele perguntou.
- Sim. Argilla no peito, Gale na canela esquerda e Cielo na coxa direita. – Heat
mudou de posiçao e retomou a fala, desta vez num tom de voz mais baixo – Os lugares
sao diferentes, mas todos tem uma marca em algum lugar. Nao verificamos a tribo inteira
ainda, mas parece que podemos estar falando de todos aqui na base.
- Entao nao sao so as pessoas que estavam na batalha. Isso pode ter acontecido
com todos no Lixao.
Heat apenas ficou quieto. Serph colocou o computador no modo de hibernaçao e
olhou para o seu tenente de novo.
- Voce acha que essas marcas tem alguma ligaçao com o objeto negro e aquelas
luzes que nos vimos?
- Boa pergunta. Mas, para ser sincero, no momento eu nao consigo pensar em
nenhuma outra coisa que poderia ter causado isso. – Heat tirou o cabelo do rosto,
irritado – O que a Igreja disse?
- Nada ainda. Gale esta calibrando os implantes agora, mas pelo que ele me disse,
todas as redes da Igreja estao fora do ar. Eu tambem nao consegui acessa -las. Parece que
o nosso servidor esta funcionando independentemente. – Serph balançou a cabeça.
Parecia que ela estava cheia de espuma – E a garota?
- Pelo que eu sei, ainda esta dormindo. Acho que Argilla esta com ela.
- Acho que vou dar uma olhada nela. – Serph se levantou. Seu corpo estava lento e
cansado, exigindo mais sono, mas ele nao tinha tempo para isso agora. Ele parou quando
passou ao lado de Heat – Voce vem?
- Nao, agora nao. Eu perdi um dos meus melhores lança-granadas na batalha.
Preciso praticar um pouco com um novo. – ele saiu da porta e começou a caminhar pelo
corredor, mas parou e olhou por sobre o ombro quando Serph o chamou.
- Aquela garota... Nao consigo ignorar a sensaçao de que ja a vi em algum lugar. –
Serph falou mais baixo – Voce tambem tem essa sensaçao?
Houve uma breve pausa antes de Heat responder.
- Talvez. E isso me assusta.
Ele seguiu o seu caminho, deixando Serph a sos com a sensaçao de deja vu.
- E aí, galera!
Serph cambaleou quando uma nuvem de tranças azuis entrou correndo no quarto,
batendo de frente com ele.
O cabelo azul claro de Cielo estava preso numa serie de tufos segurados por clipes
de metal. Seus grandes olhos redondos correram os arredores, como que procurando
alguma coisa que chamasse atençao. A grande bolsa na sua cintura balançava quando ele
andava, permitindo breves vislumbres da marca negra debaixo dela.
- Silencio, Cielo. Nao queremos assusta-la. – repreendeu Argilla, sentada ao lado
da cama da garota.
Argilla era forte e esbelta, e alta para uma mulher, quase da altura de Serph. O
corte na sua longa saia oferecia uma amostra excitante das suas pernas torneadas. Seus
olhos eram do mesmo rosa claro dos seus cabelos.
Com movimentos doces e cautelosos, ela estava arrumando o cabelo despenteado
da garota adormecida com as maos. Quando ela se mexia, a abertura na frente do seu
traje mostrava a sua propria marca negra. A dela parecia uma serie de ondas que
formavam um triangulo invertido, contendo a mesma peculiar boca agressiva das
marcas dos outros.
- E que negocio e esse de “galera”? Nosso líder esta aqui. Tenha mais respeito.
- Mas e assim que eu sou. – respondeu Cielo, apoiando o braço no ombro de Serph
– Ser eu mesmo me faz sentir que temos um laço verdadeiro. Alem do mais, voce nao liga,
ne? – ele disse, olhando para Serph.
Serph forçou uma risada e deu um tapinha na cabeça de Cielo para mostrar que
concordava. Cielo começou a pular em triunfo.
- Senhor, isso nao e adequado. O senhor nao pode permitir que um dos seus
subordinados o trate assim.
- Eu nao ligo. Cielo e um dos nossos melhores homens. Ele pode fazer o que quiser.
– mas, mesmo enquanto falava, Serph lutava contra uma sensaçao enervante de
deslocamento.
Argilla e Cielo. E Heat também. Os três estão ao meu lado há tanto tempo. Então por
que eu estou com essa sensação de que é a primeira vez que nos vemos? A sensação de que
é a primeira vez que eu associo esses nomes a essas pessoas chamadas Heat, Argilla e Cielo...
Ele tentou ignorar a sensaçao de estranheza. Nao havia tempo para pensar nesse
tipo de coisa agora.
- Como ela esta?
- Nada bem. Parece que esta respirando e nada mais. E uma respiraçao fraca.
Argilla era o tipo que se abalava facilmente, entao Serph se ajoelhou ao lado dela
para conforta-la. A garota misteriosa estava deitada sob um cobertor branco, respirando
tao baixo que era quase imperceptível. Nao parecia que ela ia acordar tao cedo. Mesmo
com a barulhada de Cielo, ela nao esboçava a menor reaçao.
- Nos fizemos um exame medico completo, e fisicamente nao ha nada de errado
com ela. Por outro lado, pode-se dizer que esta tudo errado com ela.
- Como assim?
- Ela nao parece ter nenhuma experiencia de combate. – disse Argilla – Na verdade,
ela nem parece ser do Lixao. – ela gesticulou na direçao do monitor, e Serph se
concentrou nos dados exibidos na tela.
A garota nao tinha cicatrizes nem sinais de ferimentos anteriores, e tambem nao
tinha nenhum implante. Seu tecido muscular era mínimo. A pele dos seus pes era tao
macia que parecia que ela nunca tinha dado um so passo no chao duro. A conclusao
logica era que ela nunca tinha entrado em combate, mas nem Novatos tinham corpos tao
frageis.
- Se ela nao e do Lixao, entao o que esta fazendo aqui? – a pergunta de Serph so
encontrou o silencio. Era de se esperar. E claro que Argilla nao tinha a resposta para essa
pergunta. Ele coçou a cabeça e olhou para a garota dormindo.
Os Novatos, cujo nome oficial era “Recem-Nascidos”, eram aqueles que tinham
renascido recentemente sob o Templo. Quando os habitantes do Lixao morriam em
combate, seus corpos se dissolviam e ascendiam aos ceus, onde se fundiam as nuvens
sempre presentes e retornavam a terra na forma de chuva.
A agua da chuva se acumulava no coraçao do Lixao, na area central conhecida
como Sahasrara. La, a chuva escorria para as profundezas do Templo, chegando a um
local de purificaçao onde era libertada do seu karma e ganhava uma nova vida, tomando
a forma de uma pessoa, que era entao enviada para tomar parte do eterno conflito. Pelo
menos, essa era a doutrina da Igreja.
Os Recem-Nascidos eram todos diferentes, variando em termos de genero,
aparencia física e habilidades inatas, mas em geral, todos nasciam com uma
predisposiçao para o combate, e todos eram relativamente parecidos em termos de
estrutura física e capacidade marcial. Havia exceçoes, e claro. Cielo, por exemplo, cuja
estatura era abaixo da media, compensava o tamanho com pernas fortes que o tornavam
excepcionalmente rapido e agil. Argilla era outro exemplo desses; sendo mulher, ela era
fisicamente mais fraca que a maioria dos homens, mas fora abençoada com talentos
raros que faziam dela uma excelente atiradora. As pessoas do Lixao tendiam a
compensar a fragilidade de uma area sendo excepcionais em outra.
A Igreja soltava os Recem-Nascidos no Lixao. Depois disso, eles estavam a propria
merce, sem ninguem mais para protege-los. Uma vez que saíam do Templo, eles tinham
duas opçoes: ou podiam se juntar a uma tribo ja existente ou podiam se aliar a outros
Recem-Nascidos e formar a sua propria tribo, tomando o territorio de uma das tribos
estabelecidas para se firmar. Aqueles que nao conseguiam fazer nenhuma das duas
coisas morriam rapidamente, apenas para renascer outra vez.
Derrotar outra tribo e tomar seu territorio era de longe a opçao mais difícil, e para
obter sucesso nisso, como a Embriao teve, era preciso uma sinergia incomum entre
indivíduos muito talentosos. Obviamente, nao foi facil para eles. Serph sofreu uma bela
quantidade de ferimentos, e muitos dos seus subordinados tiveram destinos piores. E
ainda assim, essa garota nao tinha ferimentos, nenhuma força física, ao que tudo
indicava, e nenhum tipo de aprimoramento artificial – nem mesmo os implantes mais
basicos que todos os nativos do Lixao recebiam para mante-los conectados com a Igreja.
- Ela nao tem anel de identificaçao tambem?
Argilla fez que nao com a cabeça. A tribo tinha enviado varios grupos para
investigar o local do incidente, especialmente ao longo da fronteira com o territorio dos
Vanguardas, onde a garota foi encontrada. Ate agora, ninguem tinha encontrado nada,
mas a propria garota nao tinha pertence algum quando foi descoberta.
Os aneis de identificaçao eram uma especie de registro dentro da Igreja. Todos
tinham um. Sem ele, a pessoa nao recebia muniçao, armas ou sequer comida. Eles
tambem eram necessarios para solicitar informaçoes e Pontos de Combate a Igreja, e
serviam como a autenticaçao necessaria para entrar em certas areas e bases. Nao
importava o quao habilidoso um indivíduo fosse, seria praticamente impossível viver no
Lixao sem um.
Mas nao havia um nem aqui, nem la. Serph suspirou e se levantou.
- Parece que vamos ter que esperar ela acordar. Argilla, quero que voce continue
cuidando dela.
- Entendido, senhor. – disse Argilla, continuando com a cabeça abaixada. Numa
voz tao doce que quase nao era ouvida, adicionou – Quando ela acordar, farei com que
ela nos diga alguma coisa. – Serph fingiu que nao ouviu.
Ele voltou para o seu proprio quarto para descansar. Antes de chegar ao elevador,
porem, ouviu uma voz estridente gritar “chefinho!” de tras dele.
- Ei, ah... Oi, chefe. – Cielo correu para alcança-lo, entao hesitou, mordendo o labio
– Entao, ahn, sobre o que aconteceu antes. Eu...
- Esta tudo bem. – disse Serph rapidamente. Ele sabia com o que Cielo estava
preocupado, mas nao queria falar a respeito. Nao agora – As coisas estao muito confusas
agora. Quando os sistemas da Igreja voltarem, nos vamos descobrir quem e aquela
garota. Nao existe ninguem neste mundo que a Igreja nao conheça.
- E... – concordou Cielo, mas ele estava visivelmente desanimado. Parecia estar em
busca de amparo.
Serph queria dizer ao rapaz que ele nao era o unico que estava com medo. A
sensaçao de estar perdido, de estar fora da realidade, tinha sumido um pouco, mas ele
sabia que ainda estava em algum lugar dentro dele.
Inquietude significava simplesmente que faltava alguma informaçao. Mas Serph
tinha certeza de que nao era so a falta de informaçao sobre o objeto negro que estava
causando a ansiedade que sentia. Cielo estava se esforçando para parecer calmo porque
sabia que Argilla e Serph tambem o estavam fazendo. Ele estava fazendo o melhor que
podia para manter o clima leve. O fato de ele chegar gritando “galera” e usar o líder como
encosto provavelmente tambem era por isso.
- Escuta. – disse Serph – Se nao estiver ocupado, que tal ir procurar alguma coisa
pra garota vestir quando ela acordar? Nao podemos deixa-la andando por aí nua, afinal.
- Ta bom. Beleza, chefe. – disse Cielo, se animando um pouco – Claro. Eu vou fazer
isso. Quando ela acordar, vai ser parte da tribo. Arranjar umas roupas pra ela e o mínimo
que eu posso fazer. Nos, veteranos, temos que ser receptivos.
Cielo deu um pequeno pulo, se virando no ar e acenando com a mao enquanto
começava a seguir o corredor. Serph acenou de volta, e sentiu aquele aperto no peito
voltar, agora mais forte que antes.
Ele era o líder, a propria vida da tribo. Se ele morresse, a Embriao morria tambem.
Era como Argilla disse: “Soldados sempre podem ser substituídos.” Mas o líder...
No Lixao, tudo que importava era a criaçao e a destruiçao das tribos. Havia um cla
inteiro confiando nele para tomar as decisoes certas.
Ainda assim, mesmo sendo um líder, ele era apenas uma peça do sistema. Um líder
so era importante na medida que era insubstituível dentro daquela tribo específica. Os
membros normais de qualquer tribo simplesmente se juntariam a outra se o seu líder
fosse derrotado. O que significava que na verdade nao eram os soldados que precisavam
manter o líder seguro – isso era uma coisa que o proprio Serph precisava fazer.
Mas, no momento, Serph sentia que tinha a responsabilidade de abrandar o
desconforto de Argilla e Cielo. Talvez isso fosse alem dos deveres tradicionais de um líder,
mas ele nao podia evitar. Sentia que era a coisa certa a fazer.
Ele estava começando a sentir dor de cabeça. Tentando deixar isso de lado, voltou
ao seu quarto.
- Senhor. – a chamada ativou a tela do computador assim que ele abriu a porta do
quarto.
- Gale? Terminou a calibraçao?
- Sim. – a voz do bispo era monotona e sem sentimento – Mas ainda nao
recuperamos a conexao com a Igreja. Enquanto isso, eu gostaria de rever os fatos como
os entendemos agora. O senhor poderia vir a sala de comando?
A sala de comando ficava na parte central da base. Era a maior sala do predio, mas,
com o monitor holografico, os varios equipamentos de analise de dados, a mesa redonda
equipada com um terminal e as varias cadeiras la dentro, quase nao havia espaço para
respirar. Ainda assim, essa era a unica sala na base cujas paredes eram reforçadas com
um forte cristal de carbono e fibras de compressao organicas de autorreparo, sendo
resistente o bastante para suportar um ataque de escala razoavelmente grande. Esse era
o eixo central da Embriao para planejamento tatico, processamento de informaçao e
contato com a Igreja. Se essa sala fosse destruída, a base nao duraria muito mais.
Serph chamou todos os quatro dos seus membros-chave para participar da
reuniao. Gale nao se opos, mas quando todos se reuniram, comentou que apresentaria
informaçoes estrategicas que, para propositos de planejamento, so cabiam ao líder e o
seu conselheiro chefe. Argilla e Cielo imediatamente protestaram.
- Eu tambem sou membro da Embriao! – disse ela – Tenho direito de saber o que
esta acontecendo!
- E! O chefe nao e so seu!
- Gale. – disse Serph, levantando a mao para silenciar os outros – Estamos lidando
com uma situaçao diferente agora. Podemos nos deparar com algumas coisas que nos
dois nao conseguiremos entender sozinhos, e se isso acontecer, pode nao haver tempo
para deixar os outros a par. Por ora, eu acho que nos cinco devemos compartilhar tudo
que sabemos sobre a situaçao.
Por um breve momento, Gale ficou quieto, e entao disse, inclinando a cabeça:
- Nao posso discordar dessa logica, senhor.
Ao contrario de funçoes como atirador e soldado de choque, que eram designadas
com base nas habilidades e talentos do indivíduo, o cargo de bispo era completamente
diferente. As pessoas que se tornavam bispos nasciam para isso.
Certos Recem-Nascidos eram abençoados com um intelecto superior e
conhecimento tatico. Esses indivíduos eram chamados de bispos, e podiam ser
identificados pelos capuzes protetores especiais que cobriam suas cabeças, que eram
abarrotados de delicados equipamentos eletronicos. Eles emergiam no mundo com
implantes cerebrais que lhes garantiam conexao direta com a Maquina de Disseminaçao,
que era o centro das operaçoes da Igreja.
Outros Recem-Nascidos tambem recebiam implantes, mas nada do escopo dos
bispos. Alem da conexao com a Maquina de Disseminaçao, eles tambem possuíam um
monitor organico dentro da retina, o que permitia que analisassem dados sem a
necessidade de um terminal de computador, e o seu dispositivo interno de
armazenamento de memoria permitia que registrassem tudo o que viam. Todos esses
equipamentos delicados necessitavam de uma calibraçao exaustiva. Os bispos tambem
eram submetidos a um severo condicionamento mental, o que os fazia parecer mais
computadores humanoides que pessoas.
Provavelmente era por isso que Gale nao parecia estar vivenciando o mesmo
desconforto que os outros. Quando conversou com Heat, Cielo e Argilla, Serph sentiu que,
assim como ele, eles nao estavam bem, mas Gale nao demonstrava nada do tipo.
Gale era um homem alto, de longos cabelos verdes, cujos olhos, da mesma cor,
ficavam parcialmente escondidos pelo seu capuz. Ele tinha um rosto comprido e
inexpressivo, com labios finos e nariz pontudo, e era visivelmente o mais velho entre os
presentes. Nao tinha ombros tao largos quanto os de Heat, mas seus braços eram
musculosos, o que era raro para um bispo – um sinal da excelente constituiçao física que
ele tambem possuía.
Se o líder era o coraçao da tribo, o bispo era o cerebro. Ter um bom bispo podia
determinar se a tribo prosperaria ou pereceria. Gale pertencia a tribo pequena que a
Embriao derrotou na conquista de Muladhara. Foi ele quem detectou que o seu líder
tinha caído durante a batalha, sinalizando imediatamente um cessar-fogo. Entao, de
acordo com a lei, foi levado para a Embriao, se tornando o primeiro bispo de Serph, e o
melhor que ele poderia ter.
Gale esperava imovel pela proxima diretriz do seu líder.
- Certo, Gale. Por que nao começamos revendo as informaçoes que voce tem sobre
o que aconteceu, a partir de quando o objeto apareceu?
- Entendido. – uma rede verde claro ganhou vida acima da mesa, exibindo uma
imagem tridimensional do “objeto” em questao.
- Esse objeto apareceu dois ciclos atras aproximadamente as 00:00 HS, nas
coordenadas 02A7-7B77845. Sua composiçao, proposito e outros detalhes sao
desconhecidos. – Gale mudou o angulo da imagem antes de continuar a explicaçao – A
apariçao do objeto as 00:00 HS na verdade e uma suposiçao. O horario exato e
desconhecido, porem essa estimativa e baseada nos relatos das testemunhas das nossas
tropas posicionadas ao longo da fronteira. Os dados do nosso sensor corroboram a
informaçao. Num instante, o objeto nao estava presente, e no seguinte, estava.
- Como assim? – interrompeu Cielo – Ele nao pode simplesmente ter surgido do
nada.
- Silencio, Cielo. – disse Serph – Gale, continue, por favor.
- No dia seguinte, as 06:23 HL, nos recebemos um aviso dos Vanguardas. Eles
disseram que consideravam a presença do objeto um ato de agressao da Embriao, e
ameaçaram retaliar se nao fosse removido. – os registros rolavam pela tela enquanto
Gale falava – Em resposta, a Embriao concluiu que o objeto tinha sido colocado la pelos
Vanguardas. Nos os avisamos para remover o objeto, tambem ameaçando um ataque
caso nao o fizessem. No mesmo dia, as 10:02 HS, as forças dos Vanguardas e da Embriao
entraram em combate. Nos conseguimos forçar o contingente dos Vanguardas de volta
para o seu proprio territorio. Durante o confronto, confirmamos a presença do líder
inimigo, Harley Q, no campo de batalha. Concluindo que a situaçao apresentava uma boa
oportunidade para eliminar os Vanguardas, a liderança da Embriao avançou com as
forças da tribo para a fronteira para um ataque em escala total.
Nessa hora, Gale fechou os olhos, e o silencio pairou no ar.
- E entao... – foi Heat quem quebrou o silencio, praticamente cuspindo as palavras
– Nos avançamos, e alguma coisa aconteceu. E sobre isso que queremos saber. Nos poupe
dessa introduçao desnecessaria.
Gale hesitou:
- Nao ha informaçao suficiente. – era raro o bispo nao ter uma resposta concreta.
Nao, era inedito – Nos quase nao temos dados pertinentes a situaçao desse ponto em
diante. Quase todos os nossos sensores pararam. O sistema de Disseminaçao da Igreja
pode ter alguns dados, mas nao conseguimos acessa -lo. Ainda nao conseguimos nem
fazer a contagem dos membros que voltaram, e nao sabemos se os demais estao vivos
ou mortos.
- Tente nao se preocupar tanto com isso. – disse Serph – Por enquanto, apenas nos
diga o que pode. Voce e o bispo. Nos de as suas impressoes.
- Vou transferir alguns dados visuais dos meus bancos de memoria pessoal – disse
Gale depois de alguns momentos – A essa altura, essa e a unica informaçao confiavel que
eu tenho. O conteudo nao e muito significativo, mas acho adequado compartilhar.
Ele abriu um console na ponta da mesa e deslizou o dedo pelo teclado. Removeu
o capuz, expondo o implante embutido atras da orelha, puxou um cabo do console e
plugou no receptor de metal na sua cabeça. Os outros observaram enquanto a imagem
3D acima da mesa oscilou e desapareceu, substituída pela imagem de um campo de
batalha enevoado com a chuva caindo. A perspectiva era de um local alto, olhando para
o campo circular abaixo: uma recriaçao da vista de Gale da sua posiçao na retaguarda.
As vezes a imagem sofria interferencia, tornando ainda mais difícil ver as formas dos
soldados colidindo la embaixo.
- A resoluçao esta ruim. Alem de rodar a imagem por meio de processamento de
vídeo, eu tentei usar uma conexao direta a cabo para minimizar a degradaçao dos dados,
mas parece que nao adiantou.
- Tudo bem, Gale. Continue. – respondeu Serph olhando atentamente para o vídeo.
Ali estava a perspectiva de um observador de fora sobre o que tinha acontecido
enquanto ele estava preso no meio de todo aquele caos.
Serph podia ver a si mesmo. O estrategista por tras da operaçao, Gale, estava num
ponto alto e distante, podendo ver o campo de batalha como um todo, e com quase todas
as forças do inimigo e as suas proprias dentro do seu campo de visao. O som estava ruim,
mas era suficiente para entender o que estava acontecendo. Serph se viu pular de tras
de uma parede de concreto. Ele foi atacado, retornou fogo e rolou para se esconder de
novo.
Houve uma explosao. Cielo e Heat vieram correndo dos dois lados da bacia.
Granadas explodiam pelo campo de batalha enquanto o esquadrao de Cielo derrubava
as tropas inimigas que tentavam avançar. Enquanto isso, Argilla usava os seus refinados
talentos de atiradora para despachar soldados rivais um a um. Em meio a carnificina que
se desenrolava, um soldado com um marcante cabelo prateado – o proprio Serph –
pulava de tras de uma barreira para outra. Ate agora, tudo estava seguindo como Serph
lembrava.
Num canto da imagem, havia um contador mostrando o tempo transcorrido desde
o início da batalha. Quando o contador chegou a 00:52:43, o incidente começou.
- O que e aquilo!? – disse alguem com uma voz bruta. Serph sabia como ele se
sentia. O objeto negro no campo de batalha, completamente ignorado ate aquela hora,
vibrou e começou a brilhar. As escamas que formavam o seu exterior se abriram uma a
uma, revelando nada a nao ser luz la dentro – uma luz louca, em turbilhao.
A imagem do ponto de vista de Gale balançou; parecia que ele estava andando.
Pelo jeito, a batalha la embaixo tinha perdido a intensidade. Luzes espiralavam e giravam
acima do leito de escamas agora abertas do objeto, e entao uma delas voou numa
velocidade incrível.
A sala de comando ficou muda. Nao saía um unico som do monitor acima da mesa,
mas a cena continuou. O feixe de luz atingiu um dos soldados dos Vanguardas que estava
mais proximo, que imediatamente largou a arma e caiu ao chao. Mas ele ainda estava
vivo. O homem se contorcia de agonia, seus movimentos desesperados fazendo buracos
na terra. Seus dedos e unhas começaram a ficar pretos.
Quando os membros das duas tribos começaram a recuar, as luzes dispararam
atras deles como que em perseguiçao. Em rapida sucessao, atingiram cada um dos
combatentes, jogando-os ao chao. Entao houve uma enorme interferencia, tao extrema
que por um momento bloqueou a imagem inteira. Uma figura apareceu na cena,
destruindo tudo. A imagem balançou violentamente, se desmembrou como vidro
quebrado, se refez e entao desmembrou de novo. O chiado chegou a um nível
ensurdecedor, e Argilla e Cielo contorceram o rosto enquanto tapavam os ouvidos.
- Senhor, abaixe! – de repente, uma voz rígida se fez ouvir: a voz de Gale. Ao longe,
Serph tinha se levantado de tras do seu esconderijo e estava olhando para o objeto
brilhante, estupefato. Um momento depois, seu corpo balançou, e entao ele cambaleou
para tras antes de cair de joelhos, apertando o peito. Sangue vermelho e reluzente
escorreu do ferimento.
Gale soltou um grito ininteligível. A forma ajoelhada de Serph parecia tao distante.
Gale correu; a imagem balançava para cima e para baixo.
De repente, ele se virou.
Alguma coisa estava vindo na sua direçao, uma massa de pura luz branca.
Impacto.
A imagem ficou branca. E depois preta.
Algum tempo antes, quando o grupo estava prestes a sair, Argilla insistiu em se
juntar a expediçao.
- Eu tambem sou membro da Embriao. Voces nao podem simplesmente me deixar
aqui. Nao se preocupem, eu ainda aguento o meu proprio peso.
Serph balançou a cabeça em negativa.
- Mas se voce vier, nao vai ter ninguem para cuidar da garota. Ou melhor, para
vigia-la. Ainda nao sabemos quem ela e, entao nao podemos descartar a possibilidade
de que seja algum tipo de espia de outra tribo.
- Entao a amarre ou tranque em algum lugar. Coloque guardas na porta. Gale deve
conseguir pensar em alguma coisa. Eu preciso saber o que aconteceu.
Argilla se recusava a ficar, entao Serph acabou cedendo. Ele pediu para Gale
montar uma escala de guarda para vigiar a garota adormecida no lugar de Argilla, e o
bispo rapidamente selecionou um grupo.
- Nosso destino e a base dos Vanguardas em Svadhisthana. – disse Serph aos seus
quatro membros-chave quando todos se reuniram – Nosso objetivo e localizar e
interrogar o líder deles, Harley Q. As coisas vao ser um pouco diferentes desta vez. Nosso
objetivo primario e estabelecer um dialogo com ele. Se encontrarmos algum soldado
inimigo no caminho, voces nao devem atirar a menos que eles demonstrem hostilidade.
- Voce esta sendo ingenuo. – disse Heat sem cerimonia – E matar ou ser morto.
- Heat! – gritou Argilla.
Gale se virou para Serph, inexpressivo.
- Vai permitir essa insubordinaçao, senhor?
- Ja chega, todos voces. – disse Serph. Olhou para Heat com um olhar firme – Heat,
se sentir que esta em perigo, defenda-se. Mas nao quero que matem ninguem que nao
represente ameaça. Nosso objetivo principal aqui e conseguir informaçao, e nao vamos
conseguir se matarmos quem pode fornece-la. Fui claro?
Heat mordeu os labios quando encontrou o olhar prateado de Serph, entao deu de
ombros e desviou o olhar.
- Entendido, senhor. – murmurou – Se isso e uma ordem, eu vou segui-la. Nao farei
nada a menos que seja atacado. E isso que voce quer?
- Sim, e isso que eu quero. – disse Serph rispidamente, levantando a voz
novamente – Lembrem, nao estamos indo la fazer matança. E informaçao que nos
queremos.
Sendo uma tribo emergente, a Embriao tinha uma base pequena. A base dos
Vanguardas, por outro lado, era uma instalaçao militar de verdade. Apesar de ela
tambem ter sido erguida em cima de predios em ruínas, as areas danificadas tinham sido
restauradas, e as varias fortificaçoes defensivas que foram adicionadas, como
plataformas de observaçao e metralhadoras fixas, a tornavam muito mais
impressionante. Em geral, ela parecia ser no mínimo duas vezes maior que a base da
Embriao, e os parapeitos e canhoes de grosso calibre ao longo das paredes a colocavam
num nível completamente diferente em termos de defesas exteriores.
E ainda assim, o lugar estava quieto. Nao houve tiros de advertencia enquanto a
equipe de cinco de Serph se aproximava. A entrada da base estava muito bem trancada,
mas nao havia um unico guarda ao longo das paredes. Caixotes de armazenamento, ha
muito tingidos de vermelho devido a ferrugem, tinham sido amontoados em pilhas
enormes, e a agua prateada se acumulava em frestas de veículos de combate que tinham
sido deixados com as portas abertas.
- Isso esta quieto demais. Tem certeza que e aqui, Gale?
- Estou detectando dez sinais de calor la dentro. Provavelmente sao membros dos
Vanguardas. Com base nos dados que tenho a minha disposiçao, essa e a localizaçao mais
provavel para a base deles.
Cielo apontou:
- Olha, tem mais daquela coisa. – em varios pontos da parede da base e no chao ao
redor, havia poças da substancia negra parecida com piche que eles viram antes.
Serph estudou os caixotes enferrujados cautelosamente, mas nada se moveu ou
fez um ruído.
- Acho que eles nao vao mesmo abrir fogo. Vamos, vamos entrar. Cuidado com
armadilhas.
Gale tomou a dianteira, usando os seus sensores aprimorados para fazer uma
inspeçao cuidadosa da area ao redor da entrada. Era difícil de acreditar na declaraçao
dele de que nao havia armadilhas.
- Tem certeza? Eles so trancaram a porta e mais nada? – perguntou Serph.
- Talvez eles tenham abandonado essa base e se mudado para outro lugar. – disse
Argilla, parecendo nao acreditar muito no proprio palpite.
- Seja como for, tudo que podemos fazer agora e entrar e ver. – disse Serph – Gale,
abra a porta. Mas tome muito, muito cuidado.
Gale se curvou, pegando um macaco e preparando o codigo que devia abrir a porta
eletronica. Alguns momentos depois, houve um barulho pesado, e as largas portas de
metal se abriram para fora. Cielo foi o primeiro a entrar.
- Uou... O que aconteceu aqui?
- Parece que houve uma luta dentro da base tambem. – disse Serph.
- Uma luta? – debochou Cielo – Esse lugar esta um completo desastre. E olha, tem
mais daquela gosma preta pra todo lado.
Cielo tinha razao. O exterior solido da base nao fazia jus ao estado de total ruína
la dentro. Havia buracos nas paredes e quase todas as luzes estavam quebradas. Buracos
de bala e rastros de explosao adornavam o chao, e havia armas e muniçao descartadas
por toda parte.
Varias das paredes tinham sido derrubadas, abrindo um caminho rapido ate o
centro da base. Enquanto Serph e seu grupo avançavam, bolas de poeira se acumulavam
aos seus pes. Havia pilhas de destroços por toda parte, lembrando os campos de batalha
devastados pela guerra la fora. As estaçoes de guarda e armarios de armas, ja bastante
degradados pelo uso, agora estavam completamente destruídos, e vidro quebrado e
fragmentos de metal retorcido tomavam conta do chao.
A medida que avançavam pela base, eles encontravam mais e mais do piche negro.
Havia poças pelo chao todo e respingos nas paredes. Elas pingavam e babavam,
misturadas com sangue, como se tivessem sido jogadas para todos os lados a esmo.
- Se houve uma luta aqui, com quem foi? E impossível que algum dos nossos tenha
adentrado tanto a base. – disse Argilla.
- Talvez alguns dos nossos soldados tenham sido capturados durante a batalha no
Ponto Zero e tentaram escapar. – cogitou Serph.
- Improvavel. – respondeu Gale – Nao consigo imaginar que tenham capturado
alguem naquelas circunstancias. E mesmo que isso tivesse acontecido, o poder de fogo
que eles possuíam nao bate com a batalha obviamente de grande escala que aconteceu
aqui. O dano a estrutura da base e grande demais para ter sido causado por um conflito
desses.
Cielo esfregou a bochecha.
- Gale, que outra explicaçao ha? Os Vanguardas nao fizeram isso com eles mesmos.
- Por mais estranho que seja, eu acredito que essa e a hipotese mais provavel no
momento.
- E, faz sentido... Espera, o que?! – Cielo agarrou um dos braços de Gale – Ei, do que
voce esta falando? Membros da mesma tribo nao podem lutar entre si. Tipo, todos tem
que obedecer ao mesmo líder. Como uma luta dessas poderia acontecer? O líder tem
controle absoluto, e a lei. Voce sabe disso, Gale!
O líder da tribo era o seu mestre, e os outros membros eram extensoes da sua
vontade. Isso, assim como a natureza inviolavel da Igreja, era uma das regras
fundamentais do Lixao. Os membros de uma tribo so faziam o que o seu líder mandava.
Membros da mesma tribo lutarem entre si seria como a mao direita tentar decepar a
esquerda. Era impensavel.
- E claro que eu sei. Foi por isso que eu disse que e estranho. – a voz de Gale
revelava apenas um remoto indício de desconforto – Porem, apos descartar as outras
possibilidades improvaveis, e a unica explicaçao que resta. Nao temos dados suficientes
para uma analise mais conclusiva. Essa e uma situaçao inedita e altamente irregular.
- Irregular? – Cielo parecia prestes a dizer mais, mas, ao inves disso, apenas deu
um suspiro exausto.
De repente, eles ouviram um estrondo vindo de tras.
Gale e Argilla se viraram e abriram fogo. Cielo fez o mesmo.
Uma parte da parede, ja danificada, nao conseguiu resistir ao peso do poder de
fogo dos tres. Grandes pedaços de alvenaria caíram espalhafatosamente no chao, e
depois so houve silencio. De tras dos restos da parede, um homem vinha rastejando, com
um rosto de choro. Nas suas bochechas e ombros, ele trazia as marcaçoes verdes que o
identificavam como um membro dos Vanguardas. Serph começou a se aproximar dele,
mas Gale se interpos na frente, arma a postos.
- E melhor ficar para tras, senhor. Pode ser perigoso. Eu o interrogarei.
- Nao. Preciso que voce continue escaneando a area em busca de armadilhas. –
Serph se colocou novamente na frente de Gale e ajudou o homem a sentar – Voce e um
dos Vanguardas? – perguntou enquanto olhava o homem com cuidado, avaliando os
ferimentos.
Ele estava gravemente ferido. Havia cortes enormes no seu peito e abdome, e ele
estava coberto de manchas de sangue semicoagulado. Era evidente que ele nao tinha
muito tempo de vida.
- Voce consegue falar? – Serph perguntou – Como isso aconteceu? O que aconteceu
aqui afinal?
Os labios do homem se moveram quando ele tentou falar, mas nao saiu nenhum
som. Sua boca, vermelha de sangue, se agitou e se contorceu.
- O nosso... Líder... – ele finalmente conseguiu falar, com palavras que eram pouco
mais que um grunhido. Antes que pudesse continuar, a cabeça do homem tombou para
frente.
- Ei, aguente firme! O que aconteceu?
De repente o corpo do homem começou a sacudir e a ter espasmos. Por reflexo,
Serph tentou se desvencilhar dele. Os olhos do homem viraram para cima e, de repente,
ele estava de pe. Entao soltou um guincho.
- Cuidado! – gritou Cielo.
- Senhor, para tras! – Gale sacou seu rifle e tentou interferir tambem. Os olhos do
homem estavam tao virados que so era possível ver o branco. A boca abriu mais e mais,
ate que ele soltou um tremendo urro. Enquanto Serph tentava se afastar, o homem se
retorceu e mordeu o seu braço.
A boca dele, agora grotescamente deformada, apresentava fileiras de dentes
brilhantes. Eles eram desordenadamente afiados, e fizeram um distinto som
nauseabundo quando rasparam a superfície da armadura de Serph. O líder da Embriao
se debatia para se libertar enquanto tentava alcançar o coldre na sua cintura.
Um tiro ecoou. Serph sentiu um jato de sangue quente na sua bochecha. O homem
caiu ao chao numa poça de sangue e massa encefalica, sua grande boca arreganhada.
Serph cambaleou, instintivamente levando a mao a ferida no braço, e ao olhar para cima
viu Heat parado la, fumaça subindo do cano da sua pistola.
- Ele atacou primeiro, como voce queria. – disse Heat num tom frio e um brilho
cruel nos seus olhos vermelhos.
- E. – respondeu Serph, respirando fundo para se recuperar antes de limpar o
sangue – Bom trabalho, Heat.
Argilla se aproximou enquanto Heat guardava a pistola em silencio.
- Isso foi sinistro. O que aconteceu? Ele ficou louco porque estava a beira da morte?
- Ele te mordeu, chefe! Voce esta bem? – perguntou Cielo.
- Sim, esta tudo bem. Os dentes dele nao conseguiram atravessar a armadura,
mas... – a pergunta “por que?” ficou presa na garganta de Serph, porque o corpo do
homem começou a ficar preto nas extremidades.
Os cinco ficaram olhando mesmerizados enquanto o cadaver pareceu se contorcer
de agonia. Uma bizarra forma negra deslizou a partir das pontas dos dedos dele, como
se fosse uma coisa viva, se espalhando pelo corpo inteiro.
O homem morto gritou. Uma das suas maos se ergueu e agarrou Serph pelo
tornozelo. Os dedos do cadaver ficaram pretos, pouco a pouco, e entao começaram a se
esfarelar, a começar pelas unhas. Nas articulaçoes, eles quebraram, se desfazendo em po
antes mesmo de chegar ao chao. Um soluço começou a emanar da garganta do que ate
alguns momentos atras foi um homem, mas foi interrompido quando uma grossa massa
da substancia negra jorrou da sua garganta. Houve um barulho como de papel sendo
amassado, e os braços se soltaram dos ombros antes de tambem ficarem pretos e
esfarelarem.
Pouco antes do corpo ficar completamente negro, Serph se desvencilhou dos
fragmentos que ainda estavam agarrados nele. O fino po negro que caiu ao chao começou
a derreter. Os outros apenas continuaram a olhar paralisados, e dentro de alguns
segundos, nao havia mais nada humano ali.
Tudo que restava era uma poça negra e viscosa como a que Serph encontrou na
cidade em ruínas antes. A mesma que Gale nao conseguiu identificar.
Um grito ficou preso na garganta de Argilla. Ela cambaleou para tras, tapando a
boca com a mao. Cielo tambem parecia estar prestes a vomitar, e Serph sentiu parte da
força das suas pernas sumir. O rosto de Gale estava calmo, mas nem ele conseguia
esconder uma leve torçao na bochecha.
- Por que isso aconteceu? – exigiu Argilla, com uma voz aspera – Quando as
pessoas morrem, elas sobem aos ceus. Nao devia ficar nada para tras.
- Nao ha registro de tal fenomeno ter acontecido antes. Evidentemente, a
anormalidade dessa situaçao esta ficando mais preocupante.
- Vamos em frente. – disse Heat – Por aqui. – e começou a andar sem esperar os
companheiros chocados.
- Ei, espera! – gritou Cielo – Isso nao te incomoda em nada? Um cara acabou de
morrer de um jeito muito bizarro!
- E daí? – Heat respondeu sem sequer olhar para tras – Quem esta morto, esta
morto. Se ele ainda estivesse vivo e nos atacando, eu me preocuparia com ele. E seria
bem mais divertido.
- Heat! – gritou Serph.
- Sim? – Heat parou e se virou para encarar o seu líder. Sua resposta foi tao calma
e normal que Serph nao soube o que dizer. O brilho de fome nos olhos de Heat era
claramente visível agora. Cielo jogou um olhar angustiado para Serph.
- Espere um pouco. – disse Serph antes de se dirigir ate Argilla, que estava
encolhida atras de um pedaço de parede quebrada. Ele estava preocupado com ela. Mas
tambem nao aguentaria olhar para a cara de Heat nem mais um segundo – Argilla,
aguente firme. – ele esticou a mao para tocar a bochecha dela, agora com a certeza de
que foi um erro traze-la na missao. O rosto dela tinha perdido praticamente toda a cor.
- Senhor... – Argilla olhou de volta para ele e, nesse momento, Serph sentiu um
arrepio subir pela sua espinha. Ele afastou a mao. Por apenas um momento, os olhos dela
pareceram brilhar em dourado. Um instante depois, tinha passado – um truque da luz,
talvez. Mas ele podia jurar que por um momento, os olhos dela brilharam, quando
vislumbraram a mancha de sangue na sua bochecha.
Eu devo estar vendo coisas, ele tentou se convencer. Os olhos de Argilla
continuavam com a mesma cor rosa clara de sempre. Ele recobrou a compostura e
esticou a mao para tocar o ombro dela. Sua pele estava fria e umida.
- Argilla, voce fica aqui. Ainda ha chance de um ataque inimigo. Proteja essa
posiçao e nos espere voltar. Isso e uma ordem, entendido?
- Nao. – disse Argilla, e entao levou a mao a boca, como que surpresa com as
proprias palavras. Lentamente ela abaixou a mao, repetindo entao a recusa com mais
confiança – Eu quero saber o que aconteceu, senhor. Eu sei que nao estou bem... Minha
cabeça parece que esta prestes a rachar ao meio, estou zonza e mal tenho forças para
andar. Mas eu vou com voce. Se eu acabar ficando em perigo, me ignore. Mas eu preciso
saber.
Um longo momento de silencio pairou no ar. O proximo a falar foi Gale.
- Localizei Harley Q. – Serph e Argilla se viraram para ele na hora – Ele esta num
corredor no segundo andar. Acredito que ele ja nos detectou e esta tentando fugir.
- Bom, mas ele nao vai. – disse Heat, partindo com passos rapidos.
- Vamos, senhor. – disse Argilla, tentando se endireitar e segurando o cabo da arma
com mais força. Ela mordeu o labio, e o olhar no seu rosto mostrava que nao aceitaria
nao como resposta – Nao precisa se preocupar comigo. Nos precisamos pegar Harley. Ele
deve saber de alguma coisa.
- Fogo!
Ao comando de Serph, o grupo de cinco pessoas concentrou seu poder de fogo em
Harley, lançando uma chuva de balas na sua figura deformada.
Elas nao tiveram efeito algum.
Harley pareceu cair de quatro, mas na verdade, estava absorvendo mais e mais do
líquido negro, aumentando de tamanho rapidamente ate cobrir totalmente a parede
atras de si. Num instante, ele parecia um gigante para o grupo da Embriao.
O corpo de Harley tinha a mesma camada gordurosa que o proprio líquido, negra
e gosmenta. Sua silhueta estava sempre mudando, nunca parando numa forma
específica – uma massa borbulhante de piche. Num momento ele era uma abominaçao
com tentaculos retorcidos, no outro um poliedro de superfície notavelmente lisa.
- Eu vou comer voces! Comer, comer, comer!
Cielo gritou. Suas pernas balançaram no ar quando a abominaçao esticou um
braço enorme e o puxou do chao. O rosto de Harley pairava na parte superior do corpo
deformado – a unica parte dele que ainda era humana.
Argilla mirou nesse rosto e abriu fogo. Ela abriu buracos na monstruosidade, mas
que aparentemente nao surtiram efeito. Enquanto ele absorvia as balas, um dos
perturbadores olhos amarelos de Harley se fixou nela.
- Isso doeu, sua vaca! Doeu, doeu, doeu!
Um braço negro gosmento agarrou Argilla por tras. Ela soltou um grito. Era como
se a sala inteira tivesse virado uma extensao do corpo de Harley. Nao importava para
onde eles se viravam, a criatura estava la esperando por eles.
Serph berrava enquanto atirava inutilmente nos braços que tinham agarrado
Argilla e Cielo. A sensaçao era a de esvaziar o pente num monte de barro. A carne negra
balançou e grunhiu, expelindo as balas, que caíram ao chao sem cerimonia.
Heat amaldiçoou e continuou atirando, mas a cada vez que o gatilho era puxado,
a abominaçao so parecia ficar maior. O fedor de podridao no ar mudou para algo mais
forte e incomodo a medida que fluidos jorravam do corpo do monstro, as gotas se
espalhando pelo concreto como oleo quente.
- Merda! – Heat jogou longe a sua pistola vazia e sacou uma faca.
- Temos que recuar, senhor! – gritou Gale – Nao temos chance!
- Nao! Nao podemos deixar Cielo e Argilla! – gritou Serph, mantendo a postura.
Um instante depois, ele sentiu uma força terrível o balançar violentamente por
dentro.
Serph gritou, tombando de joelhos. Sua arma caiu ao chao. Nas suas entranhas,
sentia uma corrente raspando, como uma bobina de pura energia se desfiando dentro
dele. Seus movimentos tinham a qualidade líquida do mercurio. Seu corpo era como uma
concha sendo dilacerada para dar luz a coisa la dentro.
Dor e prazer se tornaram um.
A força pressionou a sua testa de dentro para fora, e ele contorceu o corpo
violentamente na tentativa de conte-la, mas nao adiantou. A corrente de energia
prateada rasgou sua pele, engolindo seu corpo inteiro numa espiral de luz.
Serph gritou. Ele podia sentir que estava se tornando outra coisa, algo que ao
mesmo tempo era ele e tambem uma criatura feroz e fria e inescrupulosa, e o seu grito
foi de negaçao, desespero e de um prazer inigualavel.
Houve algum sinal de que isso aconteceria? Algo que ele nao percebeu?
A desorientadora batalha e sua conclusao o privaram da capacidade de ser
introspectivo. Enquanto Serph corria pelos corredores em ruínas da base dos
Vanguardas, sua mente estava repleta de uma infinidade atordoante de imagens
fragmentadas – dor se tornando prazer, homem virando monstro, um turbilhao de
duvida e afliçao enquanto o rosto de Harley se transformava numa mascara de revoltante
fome e gula. E entao, vislumbres da batalha.
Eles assumiram formas impossíveis, e de alguma forma sabiam como usa-las. Com
um mero pensamento, ele fez agua jorrar dos seus braços, cortando o ar como uma
navalha afiada. Ele se lembrava do prazer que sentiu quando aquelas laminas de ossos
brotaram dos seus antebraços e cortaram a carne do inimigo. Ele tinha se tornado um
verdadeiro tufao da morte. Agora, lembrar disso fazia o estomago embrulhar. Mas a pior
parte, a mais aterrorizante de todas, foi quando Heat ofereceu a carne.
Pegue. Você quer comer, não quer?
Aquele pedaço de carne, gotejando um sangue viscoso, quase preto. Parecia tao...
Deliciosa.
No limite dos seus sentidos, Serph detectou um novo alvo. Um inimigo... Ou uma
nova fonte de alimento. Provavelmente os dois.
Rapidamente ele focou suas atençoes la. Com as coisas que serviam como seus
olhos, vislumbrou uma forma peculiar: parecia humano, mas nao estava equipado para
combate. Tinha cabelo preto curto e nao usava nada mais que um simples sobretudo. Era
uma garota, esguia e elegante. Embora descalça, ela vinha na direçao dele com passos
acelerados em meio ao chao repleto de destroços.
Nao havia nenhum indício de medo no comportamento dela, ou sequer cautela, o
que, paradoxalmente, o deixou mais acuado. Ele mordeu a língua para fazer um barulho
agudo, o mesmo que direcionaria a qualquer coisa que percebesse como uma ameaça.
Sentiu um deslize na atençao do inimigo. Agora era a hora perfeita para atacar.
Mas ele nao o fez. Apenas continuou pregado ao chao, sem fazer um movimento.
A garota calmamente levantou uma mao enquanto se aproximava dele, e com a outra
cortou a parte interna do pulso. Sangue quente se acumulou e começou a escorrer,
pingando no chao a cada passo que ela dava. Seus pes brancos brilhavam na luz fraca
enquanto ela mantinha a mao estendida em oferenda.
Ele pode ouvir um grito de panico de alguem, em algum lugar, dizendo para ele
correr – mas nao conseguia resistir a tentaçao daquele sangue escorrendo. A cada gota,
o doce aroma ficava mais atraente. Ele viu a sua propria mao azul se estender na direçao
dela, a longa lamina ainda armada. Cortar a cabeça fragil da garota seria como cortar um
pedaço de corda. E sangue jorraria. Doce sangue. Energia. Poder. Ah, como ele ansiava
por isso!
A garota continuou la, sangrando e sorrindo.
Entao tudo ficou preto.
Serph sentiu uma pele macia tocar os seus labios e um líquido salgado na língua.
Se levantou num sobressalto. Um par de olhos negros acolhedores olhava para ele. A
garota balançou a cabeça em reprovaçao e o deitou novamente com cuidado. Entao
pressionou o ferimento aberto contra a boca dele de novo. Sangue desceu pela sua
garganta, mas nao foi desagradavel – uma bebida quente, abrandando a sua sede sem
fim. Uma sensaçao de alívio tomou conta dele. A garota acariciou o cabelo de Serph,
assobiando uma melodia simples para si mesma, quase quieta demais para ser ouvida.
- Quem... E voce? – foi Argilla quem falou. Ela estava deitada logo atras da garota,
tremendo; sua voz nao era mais que um sussurro. Fracas manchas rosadas eram visíveis
ao redor da sua boca. Perto dali, Cielo e Gale estavam amontoados um em cima do outro.
Nenhum deles tinha o olhar de fome agora. Tudo estava assustadoramente quieto, o
unico som era o doce assobio da garota.
- Meu nome e Sera. – ela disse, transformando a melodia em palavras – Eu vim
para ajudar voces. Para ajudar a todos. – enquanto falava, a garota derramou uma unica
lagrima. Ela escorreu pela sua bochecha macia, refletindo a luz por um momento antes
de cair no chao sujo de sangue.
- Como assim “ajudar”? - perguntou Argilla. Ela estava prestes a perguntar mais
quando o grupo ouviu o som de passos pesados se aproximando. Instintivamente, Serph
colocou a garota atras de si. Argilla e Cielo tambem se aproximaram com movimentos
defensivos.
Era Heat. Ele parou e encostou no portao destruído da base dos Vanguardas,
franzindo as sobrancelhas, um punho fechado escondendo a sua boca. Percebendo a
garota e seus companheiros amontoados logo ali, começou a se aproximar, mas parou de
repente, como se tivesse se deparado com alguma barreira invisível.
- Heat? – chamou Argilla, com uma voz de cautela.
Mas Heat continuou congelado la, olhos fixados na garota. Abriu a boca para dizer
alguma coisa, mas, assim que o fez, ela calmamente estendeu a mao, como tinha feito
com Serph, abrindo os braços para acolhe-lo.
Mas a reaçao de Heat foi muito diferente. O que Serph viu nos olhos dele foi algo
semelhante a medo. O corpulento soldado cambaleou para tras, como que esbofeteado
por uma poderosa rajada de vento, e entao deu meia volta e começou a se afastar
rapidamente. Serph podia sentir o calor da garota ao seu lado enquanto observava em
silencio a partida de Heat.
Ele escolheu.
As palavras ecoaram na mente de Serph. Ele olhou ao redor e percebeu um
pequeno animal de chamativas orelhas triangulares ali perto – um gato negro, de olhos
prateados.
O futuro não está escrito em pedra. Está sempre em movimento. Mas ele escolheu.
Isso não pode ser mudado.
Quem é você? Serph perguntou sem falar. Mas o gato ja tinha sumido, deixando
apenas a lembrança da sua pequena forma negra e dos seus olhos brilhantes.
Capítulo 3
- Ei, ei, olha so! – disse Cielo ao entrar na sala de guerra – O que acham? Nada mal,
ne, chefe?
- Tenho que admitir, Cielo. – disse Argilla, se levantando da mesa de reuniao e
piscando – Eu esperava algo muito pior com voce cuidando disso.
- Ah, fala serio. Eu me esforcei pra caramba. E eu nem estava falando com voce.
Vem, chefe, olha! Eu nao fiz um bom trabalho? – disse ele, se aproximando de Serph. O
líder fez que sim e abriu um sorriso.
- Sim. Muito bem, Cielo.
Eles estavam de volta a base da Embriao. Os outros membros-chave da tribo
estavam sentados em volta da mesa de reuniao. A voz vívida de Cielo conseguia animar
a sala inteira, quebrando o silencio pesado que pairava. Ele gesticulava orgulhosamente
na direçao da porta.
Logo atras dele vinha uma figura franzina, olhos arregalados de surpresa. Cielo
sorriu e puxou uma cadeira para ela.
- Nao fique parada aí, Sera. Sente-se.
A garota sorriu e sentou. O jaleco cirurgico que eles tinham improvisado para ela
fora substituído por um dos trajes com controle de temperatura usados pela maioria dos
habitantes do Lixao e uma pequena jaqueta cor de caqui. Acima dos ombros ficavam as
marcaçoes laranjas que identificavam o usuario como membro da Embriao. Julgando
pela aparencia, ela parecia uma Recem-Nascida que acabara de ser recrutada pela tribo.
Mas a expressao de curiosidade no rosto dela enquanto olhava os arredores
aparentemente sem entender nada a tornava estranha ate para um Recem-Nascido, bem
como o seu curto cabelo preto e as íris profundamente negras dos seus olhos. Agora que
ela estava ao lado dos outros, ficava ainda mais evidente como era pequena e delicada.
A jaqueta que Cielo arranjou para ela era sem duvida a menor que eles tinham, e mesmo
assim ficava larga.
Quando o grupo de Serph voltou das ruínas da base dos Vanguardas, a primeira
coisa que discutiram foi como a garota tinha conseguido escapar do quarto vigiado na
base da Embriao e, depois, como os localizou no campo de batalha.
Como ela conseguiu ir ate la a pe, sem a mais simples peça de armamento
defensivo para se proteger dos inimigos que podia ter encontrado em qualquer lugar
pelo caminho? Nao havia um unico milímetro quadrado do Lixao que nao era lotado de
destroços e vidro quebrado. Era impensavel fazer uma travessia dessas a pe. E mesmo
assim ela chegou la sem sequer um arranhao. So havia o corte que ela mesma fez no
pulso para salvar Serph e os outros.
Os guardas que estavam de vigia do lado de fora do quarto juraram que nunca
deixaram o posto e que a porta nunca foi destrancada. Os demais vigias de patrulha
tambem disseram que nao a viram andar pela base e muito menos alguem saindo. No
Lixao, a lealdade dos membros de uma tribo era incontestavel, e Serph nao tinha razao
para duvidar das palavras do seu povo agora.
Mas isso os deixava sem explicaçao para como a garota, Sera, conseguiu aparecer
justo no lugar certo na hora certa. Para começo de conversa, ela estava inconsciente
quando eles saíram. Baseado em que ela saiu em busca deles?
Os olhos dela se arregalaram quando eles perguntaram.
- Eu so senti que precisava ir onde voces estavam. Eu pude ouvir o quanto voces
estavam sofrendo. Eu tinha que ir. E entao eu fui. E so isso. – ela dava a entender que nao
compreendia porque estavam perguntando algo tao obvio. Eles tentaram reformular a
pergunta de varias maneiras diferentes, mas ela nao deu nenhuma explicaçao melhor,
entao Serph nao teve escolha a nao ser deixar de lado. A garota ainda estava fraca; ela
tinha perdido muito sangue para tirar os quatro guerreiros dos seus estados de criaturas
enlouquecidas.
- Ei, voce esta se sentindo melhor? – Argilla perguntou agora, colocando a mao na
testa dela – Voce deve estar debilitada depois de perder tanto sangue.
- Eu estou bem, ja descansei um pouco. – ela respondeu, sorrindo para Argilla –
Alem do mais, eu vim aqui para ajudar, entao nao me importo.
- Voce disse isso antes tambem. – Gale falou – Eu gostaria que voce esclarecesse
quem pretende ajudar. Voce se refere a nos cinco? A Embriao?
- Eu... – a garota tombou a cabeça, como que nao entendendo bem a pergunta, e
olhou com incerteza para o alto bispo – Eu estou aqui para ajudar a todos. – ela disse um
momento depois – Isso e tudo que eu sei.
- Voce apareceu na cratera formada apos a destruiçao de um objeto que apareceu
na fronteira do nosso territorio. – continuou Gale – Como voce chegou la? Que objeto era
aquele e por que apareceu de repente naquele lugar? Que relaçao voce tem com ele, ou
com os poderes de transformaçao que nos manifestamos?
- Me desculpe. – disse Sera, desviando o olhar – Eu realmente nao sei. Quando eu
acordei, estava la fora, e senti uma compulsao de ajudar voces. Voces estavam em perigo,
entao eu precisava ir ate la e oferecer o meu sangue. Isso e tudo. Eu nao sei o que mais
posso dizer.
- Por favor, Gale, ela nao esta em condiçao de ser interrogada. – disse Cielo
impacientemente – Olha pra ela. Ela esta assustada. E ela acabou de acordar, entao tipo,
deve estar confusa, sei la. Quando ela descansar direito, talvez lembre mais. Certo?
- Eu concordo com Cielo – disse Argila; era algo raro para ela – Nao vamos
conseguir nada intimidando a moça. Tudo que importa por enquanto e que ela nos
salvou. Devíamos estar mais preocupados com a conexao com a Igreja. Ja foi restaurada?
- Continuamos sem conexao. – respondeu Gale – Todas as nossas solicitaçoes de
comunicaçao continuam sem resposta.
- Nao estamos chegando a lugar nenhum. – murmurou Heat do seu banco contra
a parede – Achei que descobriríamos alguma coisa quando essa garota acordasse, mas
so conseguimos mais dores de cabeça. Ela nao passa de um peso inutil.
Argilla ficou brava.
- Ei, nao fale assim dela. Foi graças a ela que nos conseguimos voltar daquele...
Daquele estado em que estavamos. Se ela nao tivesse aparecido, nos... Nos teríamos
devorado uns aos outros. – ela falou baixo, como se as horríveis lembranças estivessem
sendo reproduzidas na sua mente.
Serph sentiu a propria boca ficar seca. Argilla estava certa. Ele nem queria pensar
no que teria acontecido se Sera nao tivesse aparecido naquela hora.
Heat era o unico que nao tinha bebido o sangue de Sera. Ele disse simplesmente
que se alimentou do corpo de Harley ate ficar satisfeito, quando entao a transformaçao
foi desfeita. Ele adicionou quase corriqueiramente que “o gosto era uma merda”, mas
nao ofereceu mais informaçao que isso.
Depois disso, ele se recusou veementemente a ingerir sequer uma gota do sangue
de Sera, e a sua aversao irracional e cautela para com a garota nao pareciam ter
diminuído mesmo quando os outros contaram que foi ela que os trouxe de volta ao
normal. Pelo contrario, parece que so pioraram. Agora, enquanto ela se encolhia na sua
cadeira dura, virando o rosto palido para um lado e para o outro para saciar sua
curiosidade do ambiente, ele a observava como um falcao.
- De todo modo, – disse Serph, tentando se desconcentrar das lembranças
sombrias – temos que agradecer a ela por nos tirar da nossa... Vamos chamar de furia.
Alem disso, ter Sera por perto parece estar impedindo que o que quer que seja que
aconteceu com os Vanguardas aconteça com a Embriao. Nao e mesmo, Gale?
- Ainda nao temos provas conclusivas. Porem, entre os Vanguardas e a Embriao, a
presença dela e o unico fator diferencial. Considerando que nao sabemos o estado atual
das outras tribos, nao posso concluir nada em definitivo, mas se supormos que as esferas
de luz se espalharam por todo o Lixao, e possível que estar dentro de um raio de
proximidade com a garota ajude a inibir aquela... Furia.
- Meu Deus, homem, nao da pra ir direto ao ponto? – disse Cielo – Entao,
resumindo, quer dizer que o fato de ela estar aqui e que esta nos impedindo de ficar
malucos? Se e assim, ela e foda. Alias, a essa altura, acho que a gente devia parar de falar
dela como se ela nao estivesse aqui. – ele estendeu a mao por cima da mesa para pegar
na dela – Tipo, ela veio para nos salvar, sozinha. E mesmo sem essa historia toda, que
motivo teríamos para rejeita-la? Qualquer ajuda e bem-vinda.
- Ele esta certo. – disse Argilla – Uma Novata como ela andando por aí sem rumo?
Alias, ela e ate menos que uma novata. Nao duraria cinco minutos. Sem contar que ela
pode ser a chave para acabar com essas transformaçoes.
Heat levantou a mao.
- Lamento ter que estourar a sua bolha, mas veja isso. – a marca de bola de fogo
no braço direito dele brilhou com uma luz vermelha. Os outros apenas observaram
enquanto o braço se transformava numa monstruosa mao de pele vermelha com quatro
garras reluzentes. Línguas de fogo dançavam ao longo das garras e deixavam cair
pequenas gotas de chamas.
Ele balançou a mao com garras na frente de Argilla, que simplesmente nao tinha
reaçao.
- Essa garota so contem a fome que sentimos depois de lutar. Nossos poderes de
transformaçao nao mudaram nada. Podemos assumir aquelas formas na hora que
quisermos, por nossa propria vontade. Voce tambem ja experimentou, nao e, Serph?
- Sim. – admitiu Serph.
Ele ja tinha conversado a respeito com Gale, e, de fato, mesmo depois que Sera os
resgatou, eles continuaram capazes de usar aqueles poderes de transformaçao. Mas ao
inves de ativa-los livremente, eles pareciam estar enraizados em instintos naturais, se
manifestando automaticamente quando eles entravam numa mentalidade de batalha.
Apesar de eles ainda nao terem testado, era possível que, alem de fome, emoçoes fortes
como medo ou raiva tambem pudessem faze-los se transformarem. Talvez a presença de
Sera pudesse ajudar numa situaçao dessas, mas parecia que ela nao era capaz de
remover o poder de transformaçao em si.
- Entao o que vai acontecer com a gente? – perguntou Argilla. Ela estava olhando
sem expressao para as proprias maos.
- Me desculpe. – disse Sera, colocando uma mao gentilmente no ombro de Argilla.
Seu tom de voz ficou mais firme quando a soldada olhou de volta com um rosto de
surpresa – Pelo menos, ficando perto de mim e bebendo o meu sangue, acho que voces
nao deverao se transformar de repente. E se eu puder chegar as pessoas antes que elas
percam o controle, posso para-las. Isso e uma coisa que eu tenho certeza.
- Sera... – Argilla ficou sem palavras quando a garota a abraçou – Voce...
- Acho que, ficando perto de mim, as pessoas podem desenvolver uma imunidade,
e assim nao precisarao devorar umas as outras. Mas o vírus se adapta rapidamente. Os
outros precisam tomar um pouco do meu sangue antes que seja tarde demais.
- Baseado em que voce diz isso? – interviu Gale – Se nao lembra de nada, por que
fala com tanta certeza? Que vírus e esse que voce mencionou? A nível molecular, o seu
sangue nao e diferente do de um ser humano normal. E mesmo assim tem esse poder.
Explique como isso e possível.
- Eu... – toda a certeza no rosto de Sera desabou – Me desculpe. Eu nao sei. Eu
realmente nao sei. Tudo que eu sei e o que nos precisamos fazer.
- Nao podemos permitir que a nossa tribo ingira uma substancia cujo mecanismo
de funcionamento e desconhecido.
Gale fez uma analise do sangue de Sera assim que eles voltaram a base. Todos os
resultados foram normais. Nao havia nada no sangue dela que o tornasse diferente do
das outras pessoas, exceto o fato de que era mais claro ate que o de um Recem-Nascido.
- Embora possa ser inofensivo para nos no momento, nao temos como saber que
tipo de efeitos negativos podem...
- Gale, ja chega. – interrompeu Serph – O que importa e que sabemos por
experiencia propria que o sangue de Sera tem algum tipo de poder especial. Se isso pode
impedir que soframos o mesmo destino que os Vanguardas, acho que vale a pena manter
o plano dela em mente. – ele se virou para Sera, que ainda estava um tanto palida – Mas
voce perdeu muito sangue antes. Tentar oferecer o seu sangue para a tribo inteira seria
o mesmo que cometer suicídio.
- Nao se preocupe com isso. – disse Sera, num tom de voz resoluto – Eu precisei
usar muito sangue com voces porque estavam naquele estado precario, mas as pessoas
aqui da base ainda nao foram tao longe. Apenas uma gota para cada ja deve bastar. Entao
eu nao vou me desgastar tanto quanto foi com voces.
Serph queria perguntar como ela tinha certeza, mas se impediu. Ele ja sabia qual
seria a resposta. Por ora, era melhor se concentrar no lado pratico das coisas.
- Gale, prepare um kit de coleta de sangue e algumas capsulas farmacologicas. O
suficiente para a tribo inteira. Vamos usar isso para distribuir o sangue. – Gale fez que
sim e se levantou – Por enquanto, vamos dizer a eles que e um medicamento que esta
sendo distribuído pela Igreja devido a situaçao atual. – continuou Serph – Acho melhor
nos tambem tomarmos um pouco e... Heat, onde voce vai?
Heat ja estava cruzando a porta.
- Eu nao quero.
- Esta desobedecendo uma ordem direta? – perguntou Argilla.
- Eu gosto do meu poder. – Heat fez uma coluna de chamas se erguer na palma da
sua mao. Uma chama de uma cor diferente dançava nos seus olhos enquanto ele
observava – Isso e muito melhor que granadas. Um pouco mais de pratica e estara
perfeito. Nao quero colocar nada no meu corpo que possa me tirar isso. Alem do mais,
eu prefiro o gosto do sangue dos meus inimigos a uma pílula sem graça.
A resposta debochada pairou no ar, tirando toda a força da repreensao de Argilla,
e ele saiu antes que alguem pudesse dizer qualquer outra coisa, fechando a porta. Gale
se virou para Serph, inexpressivo.
- Senhor, acho que devia considerar um castigo para essa insubordinaçao.
- Deixe estar. O Heat so esta sendo ele mesmo. – respondeu Serph. Ele tinha muitas
outras coisas para se preocupar. Quem era Sera, os efeitos do seu sangue, aqueles
poderes bizarros de transformaçao... E a fome de carne.
La no fundo, ele podia sentir que, embora controlado, o seu apetite continuava
uma presença muito real. Se ele baixasse a guarda, aquilo voltaria com força total para
consumi-lo.
Ele olhou para o perfil de porcelana de Sera. Nao era a primeira vez que tinha a
impressao de que a conhecia de algum lugar. Mas, por mais que tentasse, os fios da sua
memoria continuavam escorregando por entre os seus dedos.
Serph balançou a cabeça e tentou se concentrar no problema do que fazer com o
seu segundo em comando.
Heat era membro da Embriao desde o começo. Eles emergiram da Igreja como
Recem-Nascidos juntos e, desde entao, o soldado ruivo tem sido o braço direito de Serph.
Nao, mais do que isso – era como se eles fossem duas metades de um mesmo todo.
Quando o líder da tribo anterior deles foi morto, Serph e Heat conseguiram driblar a lei
que dizia que a tribo derrotada tinha de se juntar a vitoriosa. Logo depois que o líder
deles caiu em batalha, antes que a situaçao pudesse se acalmar, os dois sozinhos
derrotaram o líder da tribo inimiga, deixando as duas tribos sem líder simultaneamente.
Isso significava que todos eles eram efetivamente Recem-Nascidos de novo.
Normalmente, as habilidades de cada um determinariam se seriam mortos ou adotados
por outra tribo. Mas Heat se recusou a aceitar qualquer uma dessas opçoes. Ele apontou
que a lei tambem permitia que os Recem-Nascidos formassem a sua propria tribo.
- Entao e isso que nos vamos fazer. E voce sera o nosso líder. Simples assim.
Serph relembrou a conversa. Suas lembranças de antes do incidente com o objeto
negro pareciam distantes, como se pertencessem a outra pessoa, mas ele lembrava do
tom de voz e do olhar de Heat com uma clareza quase peculiar. Era mais que estranho
uma tribo com apenas um líder e um seguidor, mas a Embriao tinha conseguido
sobreviver.
Pensando bem, o orgulho e arrogancia de Heat – ou, em termos mais amigaveis,
sua determinaçao e simples recusa de se curvar a vontade de qualquer um – eram
qualidades que ele sempre demonstrou ter. Ele jogava pelas regras da Igreja, mas era
impiedoso quando se tratava de enfrentar alguem que pudesse prejudica-lo. As unicas
exceçoes sempre foram o seu antigo líder e Serph.
Mas essas inclinaçoes estavam evidentes demais agora. O que quer que o objeto
misterioso tenha feito com eles, Heat estava certo sobre uma coisa: as transformaçoes e
os poderes que elas conseguiam superavam de longe qualquer arma convencional.
Harley era um exemplo perfeito. Depois de assumir a sua forma monstruosa, ele
conseguiu resistir ao ataque dos cinco membros-chave da Embriao mesmo Argilla tendo
explodido metade do seu rosto. Se eles conseguissem dar um jeito de usar esses novos
poderes sem perder a consciencia e a sanidade, seriam praticamente invencíveis.
Era otimo que o sangue de Sera podia traze-los de volta do estado de furia, mas se
havia alguma chance de isso inibir as proprias transformaçoes, entao para Heat, que
estava bastante confortavel com as suas novas habilidades, esse sangue – e ate a propria
Sera – podiam ser um verdadeiro veneno.
O fato de o rosto de Sera aparentemente ativar alguma lembrança quase
inacessível tornava a situaçao toda ainda mais incomoda para Serph. A afliçao da duvida
pairava dentro dele como espinhos perfurando o seu coraçao. Sera que Heat estava certo?
Ou sera que a sua rejeiçao a garota era algo mais perfido?
As palavras daquele animal negro – o “gato” – pairavam na mente de Serph. Ele
escolheu. Elas pareceram quase uma alucinaçao, mas ainda assim o olhar prateado da
criatura tinha deixado uma cicatriz nos seus pensamentos, como arranhoes de garras.
Eles nao doíam, mas de tempos em tempos, voltavam a mente, como que so para lembrar
que ainda estavam la.
Gale estava se preparando para colher uma amostra de sangue quando soltou um
sibilo e tombou para a frente. O tubo na sua mao caiu no chao, e Sera, que estava mais
perto, correu para socorre-lo.
- O que foi, Gale? – perguntou Serph – Voce esta bem?
- Nao... Nao e isso... – emitiu Gale por entre os dentes cerrados – E uma...
Transmissao da Igreja. Uma intervençao forçada. – ele colocou o dedo na testa e franziu
a sobrancelha em desconforto – Esta vindo por um canal de emergencia restrito,
unidirecional. Vou colocar na tela. Todas as outras funçoes serao... Interrompidas
temporariamente.
Assim que terminou de falar, ele ficou completamente inerte, caindo nos braços
de Sera. Argilla ajudou a carrega-lo ate a cadeira mais proxima.
Sera olhou para Serph e perguntou:
- O que aconteceu com ele?
- Ele esta bem. – garantiu Serph, vendo o olhar de panico no rosto da garota –
Quando a transmissao terminar, ele voltara ao normal.
Sera fez que sim, mas ainda parecia preocupada. Ela segurou a mao de Gale e
olhou para o seu rosto. O monitor na mesa emitiu um chiado e se ativou, mostrando uma
tela branca cheia de interferencia. Depois de alguns momentos assim, um rosto palido e
oval, quase humano, apareceu na tela branca. A Maquina de Disseminaçao.
- Fez uma entrada bem dramatica, hein? – disse Serph, num tom um tanto duro –
Quero saber porque nao houve nenhuma comunicaçao ate agora. E tambem quero saber
porque sentiu a necessidade de submeter o meu bispo a uma intervençao forçada.
- Essas perguntas... Nao podem ser respondidas. – so os labios da Maquina de
Disseminaçao se moviam enquanto ela falava.
A Maquina de Disseminaçao era uma especie de representante da Igreja.
Enquanto os sacerdotes que vestiam branco serviam como guardas, era a Maquina que
era responsavel por monitorar diretamente os habitantes do Lixao. Nao era incomum as
pessoas se comunicarem com ela assim, remotamente. Ate Serph interagia com ela as
vezes. Agora, apenas sua cabeça aparecia na tela, uma representaçao estilizada de rosto
humano em ceramica branca, fria e alienígena.
Esse ar de desumanidade trouxe a sensaçao de deslocamento de Serph de volta a
sua mente, mas ele continuou:
- Entao, a Igreja sabe alguma coisa sobre o fenomeno que aconteceu conosco? De
repente, nos nos transformamos em criaturas bizarras com poderes incríveis, que as
vezes nao conseguimos controlar. Houve outros acontecimentos peculiares tambem.
A Maquina de Disseminaçao nao respondeu. Serph continuou:
- Eu quero saber o que a Igreja tem a dizer sobre isso. Isso foi planejado? Se sim,
acho que merecemos uma explicaçao.
- Essas perguntas... Nao podem ser respondidas. – repetiu a Maquina de
Disseminaçao – Isto e uma notificaçao para os líderes de todas as tribos. Todos os líderes
devem se apresentar no Templo da Igreja dos Arbitros do Karma em Sahasrara as 12:00
HS para um anuncio importante. Ate la, toda e qualquer hostilidade esta proibida em
todo o Lixao. Repetindo: os líderes de todas as tribos devem se apresentar no Templo da
Igreja dos Arbitros do Karma em Sahasrara as 12:00 HS para um anuncio importante.
Fim da transmissao. – a tela ficou preta.
- Que porra foi essa? – questionou Cielo – Acha que tem alguma coisa a ver com os
nossos poderes?
- Espero que sim. – disse Argilla sem muito alarde.
Gale grunhiu ao voltar a si. Seus olhos se arregalaram de surpresa quando olhou
para cima e viu Sera o observando com cara de duvida enquanto segurava suas maos.
- O que esta havendo? – ele perguntou – Eu fiquei fora de controle de novo?
- Ela esta preocupada porque voce apagou. – disse Argilla, indignada – Sera
possível que nao consegue perceber isso?
Cielo riu.
- Acho que nem os bispos sabem de tudo.
- Eu so estava executando uma das minhas tarefas normais. “Preocupaçao” e um
termo impreciso. Se pudesse elaborar mais quanto ao que quer dizer com...
- Ai, ta, ta bom, ja chega disso. – disse Cielo, puxando Sera para longe de Gale –
Sera, vamos deixar esse ingrato pra la. Eu posso te mostrar a base, o que acha? Tenho
certeza que tem muita coisa que voce ainda nao conhece.
- Nao a faça se esforçar. – disse Argilla – Ela ainda precisa descansar.
- Espere. Nao posso permitir que voce faça isso. – disse Gale, se levantando
rapidamente – Tenho ordens de colher amostras do sangue dela e criar uma medicaçao
para distribuir aos membros da tribo primeiro.
- Nao ha pressa para isso agora, Gale. – interviu Serph – Apesar de nao sabermos
com certeza o que a Igreja vai fazer, levando em conta que fomos convocados, e razoavel
pensar que o anuncio deve estar relacionado com a situaçao. Se a conexao com a Igreja
for restaurada, talvez possamos verificar quem Sera e e se existe algum registro do
passado dela. Pode ate ter alguma informaçao sobre o sangue dela, quem sabe? Voce
ainda nao consegue acessar o banco de dados da Maquina de Disseminaçao?
- A transmissao de antes foi de via unica. Nao tenho acesso.
- Entao acho que nao tenho escolha a nao ser ir. – o rosto de Serph estava grave –
Como as lutas estao proibidas, acho que e seguro viajar sozinho. Eles so vao deixar os
líderes entrarem no Templo, mesmo.
- Tem certeza? – Sera estava olhando para Serph com ansiedade. Cielo colocou o
braço em volta do ombro dela e a balançou um pouco, brincando.
- Nao se preocupe, Sera. A Igreja tem os registros de todos do Lixao. Tenho certeza
que conseguiremos descobrir mais sobre voce. Anime-se!
Sera balançou a cabeça em negativa.
- Nao, nao foi isso que eu quis dizer. – ela respondeu – Eu me referia a Serph ir
sozinho. E se alguem o atacar no caminho?
- Ei, voce nao ouviu a conversa? – Cielo cruzou os braços, em tom de decepçao – A
Igreja ordenou um cessar-fogo, entao ninguem vai atacar ninguem. Esta proibido
qualquer tipo de combate, seja com armas de fogo, armas brancas ou mesmo so na mao.
E ninguem jamais desobedece uma ordem da Igreja.
Mas a preocupaçao nao deixou o rosto de Sera. Ela abriu a boca para dizer alguma
coisa, mas parou no meio do caminho.
- Alem do mais, o meu chefinho e forte! Ele e o mais forte de todos nos. Afinal de
contas, ele e nada menos que o líder da Embriao. Certo, chefe?
- E isso aí, Cielo. – disse Serph com um sorriso, mais para acalmar Sera. Ele sentiu
um toque de alívio quando viu a tensao no rosto dela diminuir.
- Ainda assim, e arriscado, senhor. – disse Gale – Temos de considerar a viagem de
volta tambem. Talvez eu ou alguns dos outros membros da tribo devamos acompanha-
lo.
- Nao, nao podemos fazer isso. Nao sabemos se ou quando eu posso acabar...
Mudando de novo. Se isso acontecer, eu nao quero ninguem por perto. A primeira vez ja
foi o suficiente. Eu quero que todos fiquem aqui e atuem com base no que ja sabemos.
Voltarei o mais depressa possível.
Gale ficou quieto por um momento e entao disse:
- Entendido, senhor. – e baixando a cabeça e levando a mao ao peito – Entao eu lhe
desejo sorte. Faça uma boa viagem.
Serph parou na entrada da ponte que ja tinha cruzado incontaveis vezes. Desde
que se tornou o líder da Embriao e regente de Muladhara, a Igreja o tinha chamado aqui
mais vezes do que ele conseguia lembrar – e mesmo assim agora essas lembranças
pareciam ser algo de outro mundo, de outra vida. Ele olhava para as pontes imaculadas
como se fosse a primeira vez que as via. Eram feitas de uma substancia desconhecida
que emitia um discreto brilho, como metal ou plastico polido. As elegantes curvas
naturais do seu padrao decorativo, ligeiramente iluminadas pelo ceu magenta,
enquadravam o profundo abismo negro la embaixo.
Areas como Muladhara e Svadhisthana ja tinham sofrido tanta devastaçao que era
quase impossível encontrar estruturas intactas, mas em Sahasrara, havia delas em
abundancia. Alem das longas pontes brancas como a que se estendia diante dele, havia
as enormes torres do Templo, que iam ate o ceu, praças e escadarias com corrimaos
requintados, alem de varios jardins, todos parte de um conjunto bem projetado, cada
peça perfeita. Tudo reluzia em branco e dourado, cristalino, sem nenhum sinal de
manchas de sangue, buracos de bala ou o toque das chamas.
Fora os sacerdotes de branco, que tinham a funçao de manter a ordem, ninguem
sabia quais eram as verdadeiras intençoes da Igreja, ou o que havia dentro daquelas
estruturas reluzentes. Pouquíssimas pessoas do Lixao podiam acessar sequer o terreo
da Igreja, e os outros andares eram estritamente proibidos para todos. Ninguem sabia o
que acontecia nesses outros andares e, ate agora, ninguem tambem nunca teve o
interesse de saber. Mas, dessa vez, enquanto subia a escada que levava a porta da Igreja,
ornamentada com duas coroas de espinhos, Serph sentiu uma certa indignaçao e
desconforto que nunca vivenciou antes. As pessoas do Lixao viviam uma vida de
conflitos sangrentos, destinadas a sofrer indefinidamente, enquanto os monges viviam
em paz na sua torre sublime que ia ate o ceu. O dedo de Serph estava coçando de vontade
de faze-los sentir o gosto de uma bala.
Ele ainda estava irritado com a Igreja por machucar Gale, ativando a intervençao
forçada, alem de desperdiçar o talento do bispo durante uma situaçao peculiar como
essa que eles encaravam agora. Sendo um bispo, Gale existia para processar informaçao,
e se deparar com tantas anormalidades sem nenhum dado para trabalhar era um fardo
tremendo para ele. Sem contar que a conexao forçada pode ter causado danos graves ao
seu sistema nervoso. Serph nao estava disposto a simplesmente deixar para la.
Esses sentimentos continuavam a crescer enquanto ele se aproximava para
inserir o anel de identificaçao no espaço correspondente no portao para ganhar acesso.
Ao fazer isso, seus olhos instintivamente se voltaram para cima, na direçao de uma das
inscriçoes.
- Voce e da Embriao, certo? – alguem disse quando ele cruzou o ultimo portao e
chegou ao vestíbulo. Era uma moça com marcaçoes amarelas no quadril e no ombro. Isso
significava que ela era membro dos Solidos, a tribo que controlava Anahata. Se Serph
lembrava direito, o líder deles se chamava Mick, o Lesma.
Mas Mick era homem, o que significava que essa mulher era algum tipo de auxiliar
ou guarda-costas que veio acompanhando o chefe. Seu quadril balançava levemente
enquanto ela se aproximava de Serph, passando a língua excepcionalmente vermelha
nos labios e o observando de cima a baixo. Ela abriu um sorriso quando viu a marca
negra na bochecha dele.
- Entao aconteceu com voce tambem.
Serph recuou instintivamente. Nesse momento, a mulher se agachou.
Ela pulou, cruzando tres metros inteiros num unico movimento. Ainda no ar, seu
corpo foi envolvido numa aura de luz azul, na qual ela pareceu desaparecer por um
momento. Entao seus braços se estenderam de dentro daquele nevoeiro brilhante,
transformados em algo esqueletico, quase mecanico, uma coisa viva cheia de juntas que
pareciam tentaculos.
Serph rolou para fora do caminho. Luz azul voou na frente dos seus olhos e as
palavras no canto da sua mente voltaram correndo. Seu braço direito brilhou em azul e
ele o viu mudar de forma e enegrecer antes de ser envolto numa carapaça cinzenta. Sua
palma se abriu, e a lamina deslizou para fora. Sua ponta desenhou um arco no ar ao
cortar o braço-tentaculo da atacante com facilidade.
A mulher emitiu um grunhido que pareciam dois pedaços de metal se raspando, e
contorceu o braço ao cair ao chao. Ela nao era mais uma mulher a essa altura, ou sequer
humana. A forma superior do seu corpo era humanoide, mas tinha inumeras pernas
negras. Uma língua comprida e grossa, parecida com um certo orgao interno, se
esgueirou entre os seus labios para lamber a bochecha suja de sangue.
- Muito bem. – disse ela em tom de elogio – Mas voce nao vai escapar.
- E proibido lutar em Sahasrara. – respondeu a voz de Serph. O calor ardente que
se reunia na marca no seu pescoço começou a se espalhar mais, enchendo o seu corpo
inteiro de poder. Apesar de dizer isso, ele se deleitava com a hostilidade e malícia dela,
como se fosse um banho agradavel. Havia um inimigo ali. Ele podia enfrenta -lo – e
devora-lo.
- Que se dane a lei. Eu estou com fome. – as muitas pernas da criatura balançavam
enquanto ela procurava uma abertura para atacar. Suas garras raspavam o impecavel
chao branco, fazendo um som arrepiante. Apesar de ja ter perdido um dos seus membros,
nao parecia que ela ia recuar. Serph empunhou uma das suas laminas de braço, sentindo
a adrenalina do combate crescendo dentro de si, bem como uma fome tao dominadora
que dava medo. Seus olhos nao conseguiam se desfocar do líquido que escorria da perna
arrancada do alvo, e a ponta da sua língua vibrava como se ja estivesse saboreando o
gosto, sentindo o seu calor e a doçura da carne.
Havia loucura na voz da coisa que foi uma mulher.
- Eu nao sei quem voce e, mas me machucou. E vai se arrepender disso. – e pulou
em Serph de novo. Um instante depois, ele se sentiu zonzo e sua visao ficou branca.
Cegamente, levantou o braço para se defender do ataque das garras afiadas que vinham
por cima.
O ataque nunca chegou. Um cajado veio voando pelo ar, banhado em luz azul. A
mulher soltou um guincho quando ele acertou em cheio a sua cabeça e a mandou longe.
Suas pernas arranharam o chao quando ela tentou se levantar, e ela soltou outro grito
visceral.
Uma figura branca apareceu.
- E proibido lutar aqui. – disse, numa voz sem emoçao ou entonaçao.
- Um sacerdote guerreiro! – de repente, a voz da mulher se tingiu de medo, e ela
rapidamente emergiu da transformaçao.
Os sacerdotes guerreiros de branco que defendiam a Igreja eram chamados assim
por causa da armadura branca e trajes de pele que usavam, alem de elmos fechados com
visores de todos os lados, o que lhes dava um ar imponente, inescrutavel. Nas suas
ombreiras de espinhos com entalhes em preto, havia os dois aneis sobrepostos que eram
o emblema da Igreja.
O sacerdote embainhou o cajado no coldre na sua cintura, fazendo a curta capa
branca pendurada nos seus ombros balançar. Ele era uma figura imponente, cuja
radiante forma branca o distinguia imediatamente dos membros de qualquer tribo,
todos os quais eram inevitavelmente cobertos de cinza e caqui, exceto pela cor das suas
marcaçoes.
- Ambos os lados devem cessar as hostilidades. Desobediencia nao sera tolerada.
A mulher se ergueu imediatamente. Ela estava de volta a forma humana agora,
com o braço direito inteiro faltando. Seus olhos ferviam de raiva quando ela olhou para
Serph, mas ela parecia ter desistido por ora. Sangue fresco escorria entre os dedos que
pressionavam o ferimento, manchando o chao branco com gotas de vermelho. O
sacerdote guerreiro nao pareceu perceber. Voltou seu visor negro para Serph.
- Serph, líder da Embriao. – disse. Era uma constataçao, nao uma pergunta. Serph
fez que sim e voltou o seu braço transformado ao normal. A mudança veio tao facil para
ele quanto respirar, o que o surpreendeu e o fez sentir um pouco enojado ao mesmo
tempo.
A mulher engoliu em seco. Aparentemente, ela nao tinha percebido quem era a
pessoa que tinha atacado.
- Líder? – ela engasgou – Eu nao...
- Voce veio ao Templo como instruído. – disse o sacerdote, como se a mulher nem
estivesse la – A Igreja esta ciente da destruiçao dos Vanguardas. Solicitaçao concluída.
A mulher engasgou outra vez.
- Os líderes das outras tribos ja chegaram. – disse o sacerdote – Apresse-se, Filho
do Purgatorio. – ele entao deu meia volta e começou a caminhar. Enquanto o seguia,
Serph viu, do canto do olho, a mulher sair correndo, ainda sangrando pelo braço
decepado.
A Embriao tinha triunfado sobre os Vanguardas. Isso significava uma grande
mudança no equilíbrio de forças. Sem duvida a mulher estava indo repassar a notícia
para a sua tribo. Apesar de a Embriao ser uma tribo comparativamente pequena, o povo
dela provavelmente nao previa que alguem que controlava uma area inteira se
aventuraria em Sahasrara sozinho. Especialmente nao com os Solidos la.
O líder dos Solidos, Mick, o Lesma, era um homem cauteloso, um que colocava a
sua propria segurança acima de tudo – o completo oposto de Serph, que frequentemente
atuava na linha de frente de batalha. Diziam que Mick nunca saía da base da sua tribo,
em Anahata. Aparentemente, a base dos Solidos rivalizava com a da maior tribo, os
Brutos de Ajna, em termos de defensibilidade; era uma verdadeira fortaleza.
Era uma pena a tribo de Mick descobrir sobre a derrota dos Vanguardas, mas a
Igreja faria um anuncio oficial mais cedo ou mais tarde. Os Solidos so ficariam sabendo
um pouco mais cedo, agora. Sendo o líder da Embriao, Serph sabia que nao era vantajoso
deixar o inimigo ver o seu rosto, mas nao era a primeira vez que isso acontecia. Ele era
um guerreiro das linhas de frente, e nao tinha medo de ser alvejado. Era preciso tomar
cuidado, claro, mas ele sempre soube lidar com isso.
Alem do mais, Serph percebeu, a maneira como as tribos lutavam estava prestes
a mudar completamente. Ja tinha mudado, na verdade. Havia pessoas como Heat, que
receberam as novas habilidades de braços abertos. A mulher dos Solidos, ao inves de
atacar Serph com uma pistola ou faca, se transformou imediatamente para enfrenta -lo.
Ele e seus tenentes deduziram que o estranho fenomeno que acometeu a Embriao
e os Vanguardas tambem tinha afetado as outras tribos, e agora isso estava confirmado.
Armas de fogo foram completamente inuteis contra a forma monstruosa de Harley. Se
todas as pessoas do Lixao agora tinham acesso a um poder desses, as armas que eles
usaram ate agora ja estavam obsoletas. De agora em diante, os conflitos provavelmente
seriam decididos em colisoes de abominaçoes, poder contra poder.
E o vencedor devoraria o perdedor.
Serph e seu guia passaram por mais pessoas enquanto atravessavam o vestíbulo
da Igreja. Evidentemente, as tribos maiores vieram em comitivas consideraveis, que
agora estavam esperando aqui, os líderes ja tendo adentrado o santuario.
Quando o sacerdote guerreiro e Serph passaram por eles, a multidao começou a
murmurar – primeiro com cautela e deboche, e entao, depois de alguns momentos, com
surpresa e suspeita. A notícia de que ele era o líder da Embriao, e que a sua tribo tinha
derrotado os Vanguardas, estava se espalhando rapidamente.
Os que o observavam com mais atençao eram os Solidos de Anahata, todos
identificados de amarelo, e os Maribel de Manipura, de vermelho. Ambas eram tribos de
tamanho medio. Apesar de controlar toda a area de Muladhara, a Embriao era a ultima
na hierarquia das tribos. Porem, tendo derrotado os Vanguardas, agora ela regia sobre
Muladhara e Svadhisthana, o que a tornava tao poderosa quanto essas outras duas, ou
talvez ate mais. No momento, os Solidos e a Maribel estavam vivenciando um impasse
entre suas forças, e o surgimento repentino de um terceiro grupo que podia fazer frente
a eles com certeza nao era uma questao trivial.
As duas maiores tribos que disputavam o poder atualmente eram os Lobos de
Vishuddha, de branco, e os Brutos de Ajna, de índigo. As disputas entre as tribos menores
nao os preocupavam, e geralmente eles tendiam a simplesmente ignora-las, mas ate eles
se viraram para ver Serph quando ele passou, cerrando os olhos de interesse.
Certamente eles tambem informariam os seus líderes assim que voltassem.
Enquanto isso, Serph estava percebendo que a propria Igreja tinha ficado maior.
As estruturas no centro de Arya Marga tinham sido expandidas e agora contavam com
varios andares adicionais. So as partes visíveis contavam oitocentos andares abaixo do
solo e mil acima, e isso estava longe de alcançar as alturas mais altas ou as profundezas
mais profundas.
A torre se erguia de terraços aninhados, mais larga na base e afunilando para cima.
No topo da majestosa e elegante estrutura ficavam os portoes para o Nirvana, o paraíso
onde todas as esperanças e sonhos eram realizados. O dever dos Arbitros do Karma era
julgar os pecados daqueles que viviam no mundo impuro abaixo, e proteger esses
portoes ate chegar o dia em que alguem aparecesse e resolvesse o conflito do Lixao de
uma vez por todas.
- Diga, – disse Serph para o sacerdote guerreiro que o guiava – o que a Igreja pensa
sobre o que esta acontecendo? Foi ela que nos concedeu esse... Poder de transformaçao?
Essa convocaçao foi para explicar isso?
- A Igreja nao explica. – respondeu o sacerdote, como se ja esperasse a pergunta –
A Igreja so da ordens. Ela da, guia e tira: tudo pelo samsara e o caminho para o Nirvana.
Voce so precisa obedecer, Filho do Purgatorio.
Serph chegou a abrir a boca, mas nao falou nada. Seria perda de tempo perguntar
mais alguma coisa. Os sacerdotes nao passavam de paus mandados da Igreja, e nunca
falariam nada que nao tivesse sido ordenado. Percebendo isso, Serph sentiu outra
emoçao tomando o lugar do profundo respeito que sempre sentiu por eles.
O que era? Indignaçao? Revolta?
A autoridade dos sacerdotes e da Igreja a quem eles serviam era absoluta – pelo
menos, ate onde Serph sabia. Os Arbitros do Karma eram os inquestionaveis e inviolaveis
mediadores do Lixao. Quando eles davam ordens, as pessoas as seguiam sem hesitar. E
assim que sempre foi.
Mas a luta que acabou de acontecer ali em Sahasrara tinha sido mais que peculiar.
Ate agora, era impensavel sequer cogitar algo do tipo. E ainda assim a mulher se
transformou e o atacou, e ele nao hesitou nem um pouco em usar seus poderes em
resposta.
As leis estavam começando a perder força?
Serph tinha levado a mao a bochecha sem perceber, e podia sentir um
formigamento na sua estranha marca negra. Tudo tinha mudado tao drasticamente
desde que essas marcas apareceram. Ele teve a sensaçao preocupante de que o proprio
mundo tinha começado a desmoronar, e por um momento cambaleou.
Eles atravessaram um longo corredor com colunas redondas dos dois lados,
chegando finalmente ao santuario interno. O sacerdote guerreiro acendeu uma luz,
sinalizando para os dois guardas em frente a enorme porta dupla, e entao se virou para
Serph.
- Voce pode entrar. Nao se demore mais. Ja esta 163 segundos atrasado.
As portas se abriram, lentas e imponentes, revelando um elevador. Era circular,
com tamanho suficiente para apenas uma pessoa, e emitia uma luz fraca. Serph subiu na
plataforma, e ao fazer isso, ela começou a deslizar suavemente.
O tubo de transporte era iluminado por uma substancia bioluminosa azulada que
quase nao produzia sombra. Mas, ao olhar para sutil oscilaçao aos seus pes, Serph
lembrou da interface pessoal da Maquina de Disseminaçao. A luz que emanava do prato
passava a mesma impressao que o brilho daquela mascara. Talvez fosse simplesmente
porque ambas eram coisas sob o domínio da Igreja, mas alguma coisa nisso ainda era
inquietante.
Diziam que no Lixao os mortos subiam aos ceus e se tornavam a chuva, que entao
era coletada pela Igreja para renascer. Mas e se uma parte dela nao renascesse, sendo ao
inves disso usada para esses paineis, ou para o rosto da Maquina de Disseminaçao?
Serph balançou a cabeça para afastar os pensamentos ridículos. A plataforma
parou. Na frente dele estava um grande portao aberto em forma de arco. Inscrito no topo,
novamente, estava o mantra “Om Mani Padme Hum”. Ele atravessou o portao se
esforçando ao maximo para evitar olhar as palavras. Assim que atravessou e adentrou
na escuridao do outro lado, sentiu um forte formigamento na marca no seu pescoço.
Apos um momento em completa escuridao, o dispositivo de modulaçao de luz dos
olhos de Serph se ativou, permitindo que os arredores lentamente tomassem forma. Ele
mudou para o modo de visao noturna simples, que permitiu que visse que estava dentro
de um grande domo, com seis plataformas dispostas igualmente entre si. No meio,
pendurada no teto, brilhando com uma fraca luz branca, estava a Maquina de
Disseminaçao.
A interface pessoal que aparecia nas transmissoes mostrava so o rosto, mas o
sistema principal em si era composto de seis figuras humanoides, com tudo da cintura
para baixo e do pescoço para cima absorvido pela maquinaria. Cordas e cabos formavam
intricados padroes interligados, e o fino metal pulsava como algum tipo de coraçao negro.
As figuras humanoides – que na verdade eram bastante abstratas – ficavam penduradas
de cabeça para baixo como prisioneiros em jaulas de aço, seus labios negro-azulados
abrindo e fechando sem emitir um ruído. Elas eram iluminadas apenas pelas maos, que
se movimentavam para cima e para baixo constantemente, banhadas numa singela luz
azul, seguindo intrincados padroes, como se estivesse reproduzindo as formas das letras
infinitamente na escuridao.
Serph deu um passo a frente e inseriu seu anel de identificaçao no console que
havia sido preparado na sua plataforma.
- Líder da Embriao, nome pessoal Serph, codigo EM-00001A. Identidade
confirmada. – quando o sistema falou, uma tela fosca desceu na frente dele. Era muito
raro os líderes de todas as tribos se reunirem, e como a derrota de um líder significava
a derrota de uma tribo, qualquer informaçao pessoal sobre eles – incluindo seus rostos
– era considerada confidencial. Parecia, entao, que a Igreja pretendia continuar neutra
no conflito, e nao deixar os varios líderes voltarem ao seu posto com informaçao sobre
as outras tribos. Bom, tarde demais para mim agora, Serph pensou consigo mesmo.
As outras plataformas tambem tinham telas bloqueando a visao dos seus
ocupantes. So uma delas estava vazia. A plataforma que tinha sido preparada para o líder
de Svadhisthana continuava intocada, envolta em escuridao.
- Os Vanguardas ainda nao chegaram? – perguntou a voz de um homem, profunda
e ressoante e tingida de uma ligeira irritaçao. Era evidentemente um dos outros líderes.
As telas negras mantinham as plataformas escondidas em profunda escuridao; a unica
coisa que Serph conseguia identificar eram os contornos das pernas dos ocupantes. Era
provavel que todos os demais tambem podiam identificar as dele.
- Os Vanguardas foram derrotados pela Embriao. – respondeu o sistema – O líder
dos Vanguardas, nome pessoal Harley Q, codigo VA-0003H, e uma casualidade
confirmada. Svadhisthana agora esta sob o controle da Embriao. Logo, os líderes de
todas as grandes tribos estao presentes agora.
Houve apenas silencio. Ninguem ia se expor fazendo grande comoçao com o
anuncio. Mas, muito embora soubesse que ninguem podia ve-lo por tras da tela, Serph
pode sentir os olhares voltados na sua direçao. Ele ficou arrepiado.
- Bah. Isso mal faz diferença. – disse a voz de outro homem. Comparado com o
primeiro, que tinha sido claro e articulado, esse homem vazia sons molhados, vagarosos
ao falar – As brigas pateticas dos fracos nao interessam. Entao, por que nos chamou aqui,
Maquina de Disseminaçao? Deve ser algo importante.
So podia ser o líder dos Solidos de Anahata, Mick, o Lesma. Parecia que a mulher
que tinha atacado Serph de algum modo ja tinha feito a notícia chegar ao seu chefe. Ele
tornou sua identidade obvia com a bravata futil e meia-boca, e sua enorme forma
balançava embaraçosamente atras da tela.
- Nao temos nada de importante a discutir com voces.
A resposta da Maquina de Disseminaçao foi claramente algo que nenhum deles
esperava ouvir. Serph se aproximou mais da tela e se inclinou para ouvir as reclamaçoes
e clamores. Gritos de “o que significa isso?” e “explique-se!” ecoaram por todos os lados,
mas uma voz, a de uma mulher indignada, foi mais forte que todas as outras.
- O que esta acontecendo aqui, Maquina de Disseminaçao? Acha que somos idiotas?
Estamos enfrentando uma situaçao extremamente anormal. Nao foi para explicar isso
que nos chamaram aqui?
Dentre todas as tribos maiores, so uma era liderada por um mulher: a Maribel de
Manipura. A mulher que estava falando so podia ser a líder deles, Jinana.
- Quase todos os membros da minha tribo estao com uma marca estranha no
corpo que apareceu do nada. – ela continuou – Eles se transformam em coisas que nem
podem ser chamadas de humanas, e entao sao mortos pelos proprios aliados. As outras
tribos devem estar passando por isso tambem. Queremos saber o que a Igreja tem a
dizer sobre isso. Foi por isso que viemos aqui. Isso e de vontade da Igreja? Responda,
Maquina de Disseminaçao!
- Nao reconhecemos tal anormalidade no Lixao. – respondeu a Maquina de
Disseminaçao, tao casual que parecia um deboche a pergunta de Jinana – A Igreja nao
tem nada a informar a voces, Filhos do Purgatorio, e tambem nao foi de vontade da Igreja
ordenar que os líderes se reunissem aqui. Nao estamos cientes de nada. Nao ha nenhuma
anormalidade no Lixao. E impossível acontecer mudanças no Purgatorio.
- Entao por que nos...
- Eu responderei a essa pergunta. – todos os doze braços da Maquina de
Disseminaçao balançaram como que em espasmo, e agora ela falou com uma voz
completamente diferente. Era uma voz que tinha entonaçao e emoçao – bem como um
distinto ar de superioridade.
Serph deu um passo para frente quase que instintivamente, tocando a tela negra.
Um burburinho de surpresa tomou conta da sala. As seis figuras humanas se curvaram
amplamente para tras, e a fraca luz azul começou a girar rapidamente, em padroes
atordoantes.
Um momento depois, seus movimentos pararam completamente, e os rostos
abriram suas bocas num grito sem voz. As luzes, agora mais fortes, se reuniram e depois
se espalharam, e entao, de repente, os seis corpos da Maquina de Disseminaçao
tombaram como carne morta, pendurada. So os seus labios se moveram, todas as seis
bocas começando a dizer as mesmas palavras.
- Eu sou Angel. Voces me conhecem como a entidade que os guia quando pedem
ajuda aos ceus.
- Angel... – repetiu alguem, com um choque evidente na voz – E voce que controla
a Igreja?
- Se fica mais facil entender assim... – respondeu a voz, satisfeita – Nao importa.
Voces so precisam seguir as regras que estou prestes a lhes passar.
- Regras novas? – perguntou Jinana.
- Sim. Fui eu quem lhes concedeu as marcas nos seus corpos. O seu Atma.
- Atma. – alguem repetiu a palavra quase num engasgo. A voz pertencia a Mick –
Entao foi voce quem nos deu esses poderes estranhos e a habilidade de nos transformar?
- De fato. Bem como a necessidade de devorar. – Serph podia sentir o prazer que
pairava naquela voz, e isso o enojava – Atma e o poder dos demonios, bem como as suas
formas Asura. E a força vital das suas verdadeiras identidades. A medida que voces
batalharem e devorarem a carne e sangue dos derrotados, seu poder ficara mais forte.
Voces nao precisam mais de meras armas para lutar. Agora so precisam dos seus corpos
e das suas habilidades. Sua recompensa sera a liberdade dessa fome, bem como o
caminho para o paraíso.
- Va pro inferno! – uma das telas foi removida violentamente e jogada para o lado,
e de tras dela surgiu uma mulher, suas bochechas palidas inchadas de raiva. Ela tinha um
radiante cabelo verde quase na altura do ombro, e olhos da mesma cor que pareciam
brilhar. Sua bochecha e uma das pernas do seu traje estavam marcados de vermelho, a
cor da sua tribo. Ela olhava desafiadoramente para a Maquina de Disseminaçao, e quem
quer que estivesse alem dela fazendo as declaraçoes, e gritou: – Tantos dos meus estao
mortos! Sem nenhum motivo, eles se voltaram uns contra os outros, mataram uns aos
outros... E, incapazes de suportar a fome, devoraram qualquer companheiro que
estivesse ao alcance. Alguns deles estao completamente irreconhecíveis. Se essas sao as
suas novas regras, entao eu nao as aceito! O que voce estava pensando? Esta dizendo que
você fez isso com a gente? Se isso e verdade, entao eu nao te perdoo.
- Ah, voce cresceu tao rapido. Ja e capaz de proferir tais palavras de desafio. –
murmurou calmamente o ser que se denominava Angel – Mas, aceite ou nao, nenhum de
voces tem escolha, Asura. Voces vao lutar, e com isso sentirao fome. E se nao se
alimentarem, morrerao. E simples. A unica coisa que mudou foi a maneira de lutar. Os
fracos morrerao, e os fortes sobreviverao. E os portoes para o Nirvana so se abrirao para
o mais forte.
- Entao voce esta dizendo que as regras basicas nao mudaram, e isso? – alguem
perguntou nervosamente – Entao, como antes, a tribo que conseguir conquistar o Lixao
tera acesso ao caminho para o Nirvana e podera se libertar deste mundo? Basta
continuarmos a fazer o que sempre fizemos, lutar por supremacia?
- Nao, nao exatamente. Ha uma... – houve um breve momento de hesitaçao – Ha
uma condiçao adicional.
- E o que e? – perguntou Mick.
- Ha uma garota.
Quando Angel disse isso, Serph ficou tenso.
- Uma garota de cabelos negros. Ela ainda e jovem. Uma garotinha fragil de cabelos
e olhos negros. Tragam essa garota aqui. Nao a matem. Ela deve chegar aqui viva. Aquele
que conseguir conquistar o Lixao e trazer a garota de cabelos negros aqui sera o primeiro
a conhecer os portoes para o paraíso.
- Espere! – gritou Jinana – Se tudo que voce quer e essa garota, por que precisamos
desses poderes horríveis? Tire essas marcas de nos e nos faça voltar ao normal. Traga
de volta aqueles que foram devorados e nos faça esquecer tudo que vimos.
- Isso e impossível. Nao pode ser feito. – respondeu Angel, sem o menor indício de
simpatia – Voces ja experimentaram o gosto do sangue. Caso contrario, nao estariam
aqui agora. Nao ha volta para aqueles que comeram o fruto do conhecimento.
Jinana emitiu um grunhido baixo e cobriu o rosto. Serph podia imaginar
perfeitamente as coisas que ela viu. O que aconteceu com os Vanguardas muito
provavelmente aconteceu com as outras tribos tambem, uma cena brutal sangrenta
digna do proprio inferno. Serph e os outros tambem passaram por isso e, se Sera nao
tivesse aparecido naquela hora, provavelmente ele estaria como Jinana agora, preso nas
garras do medo e do arrependimento.
Não, Serph pensou. Eu provavelmente nem estaria vivo.
Serph decidiu que era hora de agir.
- E quem e essa garota? –exigiu, jogando sua tela longe e se revelando como Jinana
fez. O nevoeiro que dificultava a sua visao desapareceu, e ele pode viver Jinana ficar
claramente rígida. Parecia que so agora, ao ver outra pessoa se revelar, ela percebeu que
tinha dado informaçoes valiosas sobre si mesma para as outras tribos.
Mas ela se recuperou depressa. Disfarçando o choque momentaneo, olhou de
volta para Serph com suspeita e interesse, analisando seus cabelos e olhos prateados e
o seu corpo esguio. Ele era peculiarmente magro para um líder.
Serph olhou para a Maquina de Disseminaçao, se esforçando ao maximo para nao
deixar Jinana ler o seu rosto.
- Solicito dados detalhados sobre essa garota que voce procura. O que a Igreja quer
com ela? Uma mera descriçao da sua aparencia física limita a nossa capacidade de
procurar por ela. Qual e o nome da garota?
- O nome dela e... Nao, nao pode ser. – Angel começou a responder, mas entao se
interrompeu, e sua voz se degenerou em chiados. Por um tempo, eles so conseguiam
distinguia uma palavra, dita com severidade: Você! Angel parecia ter perdido a
compostura; seus movimentos ficavam mais erraticos enquanto murmurava. Mas suas
palavras continuavam ininteligíveis, perdidas na tempestade de chiados. A Maquina de
Disseminaçao balançava e se contorcia, mas ainda assim Serph podia sentir claramente
quem quer que estivesse do outro lado fixando um olhar frio e severo sobre ele. A marca
na sua bochecha – seu Atma – coçava.
- Entendo. – o chiado so piorava, mas mais algumas palavras escaparam por fim –
Ah, agora eu entendo... Sim. Muito bem. Entao que seja. Ele ficara... Surpreso ao saber
disso. Isso ficou muito interessante. – algo semelhante a uma risada se misturou ao
chiado.
- Do que voce esta rindo? – gritou Jinana, chegando ate a ponta da sua plataforma
– Responda as minhas perguntas, Maquina! Quem e voce? Quem e essa garota que voce
quer? Por que nos deu esses poderes? Responda! Responda, “Angel”!
- Eu nao... Preciso... Responder. E o meu tempo... Esta... – por um longo e doloroso
momento, o insuportavel chiado impediu a compreensao de qualquer outra palavra –
Meu acesso e limitado. Nao esqueçam isso: voces sao Asura, espíritos malignos que
existem para lutar. Seus Atmas sao as suas verdadeiras identidades. Lutem, matem,
devorem os seus inimigos. E impossível escapar da fome e sobreviver. E a sua fome...
Mostrara o caminho para o paraíso...
O chiado abafou a voz de Angel. Ainda continuou por mais um tempo, e entao de
repente parou. A duzia de braços da Maquina de Disseminaçao pareceu perder todas as
forças, se pendurando para baixo. O silencio que se seguiu foi quase ensurdecedor. O
unico som era o arfar de Jinana, ecoando fraco no teto do santuario.
- O sistema recebeu uma atualizaçao crítica. – a Maquina de Disseminaçao falou
de novo na familiar voz sem emoçao de sempre. Suas bocas continuaram abertas
enquanto ela erguia os braços e os abria. As pontas brilhantes dos seus dedos
começaram a desenhar novos padroes.
- A Igreja reconhece a existencia do Atma. –anunciou secamente. Jinana e Serph
continuaram completamente parados, e os outros líderes permaneceram atras das suas
telas, todos sem saber o que dizer enquanto o sistema continuava – Houve revisoes nos
metodos de luta e ao tratamento dos mortos. Concedemos permissao para acessar os
detalhes dessas revisoes, bem como os dados sobre o Atma. Os dados do Atma serao
transmitidos ao quartel-general de cada tribo. Vao agora, Filhos do Purgatorio. Ate o dia
da salvaçao.
Apesar de ter dito aos outros para descansarem, Serph se pegou incapaz de fazer
o mesmo. Desde que voltou ao seu quarto, tudo que fez foi se revirar de um lado para o
outro na cama. Ele podia ouvir o som dos proprios batimentos quando deitava a cabeça
no travesseiro. A cor do sangue tomava conta da sua mente, e embora o enchesse de
desgosto, tambem ativava um desejo doentio. Ele estava longe do calor do combate,
entao a sensaçao era sutil, mas era suficiente para trazer de volta a lembrança das coisas
infernais que viu acontecer com os Vanguardas.
Ele piscou para mostrar a hora no monitor do seu olho. Mal podia acreditar que
so tinha se passado um dia desde a ultima batalha na fronteira com os Vanguardas.
Parecia que tinha acontecido ha anos. Era como se tudo que ele ja vivera tivesse
simplesmente desaparecido e ele fosse de novo um Novato que tinha acabado de
atravessar os portoes da Igreja, sentindo-se fraco e indefeso.
Nao, Novatos nao sentiam. Pelo menos, nao ate agora. A palavra “sentir” nem era
relevante para eles. Agora que pensava a respeito, Serph nem tinha certeza se era capaz
de explicar o significado de palavras como “sentir” ou “pensar”. O que elas significavam?
Como Gale colocaria, “Que comportamentos essas palavras representam? Suas definições
são imprecisas. Por favor, use uma terminologia mais específica.”
Era tudo tao desorientador. As açoes incompreensíveis da Igreja. A intervençao do
ser chamado Angel. Atma. A fome. E, claro, Sera, a garota de cabelos negros.
Ele desativou o relogio e cobriu a cabeça. Se fechasse os olhos e parasse de pensar
nisso, talvez conseguisse pelo menos cochilar um pouco. Estava cansado demais. Nao
precisava de uma avaliaçao medica para saber que estava mais que exausto, tanto física
quanto mentalmente. E como era o líder de uma tribo, ficar exausto nao era apenas uma
simples inconveniencia para ele. Era um atraso para a tribo inteira. Ele precisava dormir
um pouco, de qualquer jeito.
E quando se deu conta, estava correndo pelo campo de batalha.
Isso o surpreendeu um pouco, mas nao completamente. Sua visao estava
estranhamente nublada, e a maior parte do que podia ver a frente eram as costas de
outro homem. As marcaçoes pintadas na sua armadura eram laranjas, a cor da Embriao.
Quem quer que fosse, era muito mais musculoso que Serph, e mais alto tambem, com
cabelos ruivos compridos amarrados em tranças que iam ate o meio das costas.
O proprio Serph segurava uma pistola enquanto corria atras do outro homem. Os
sons de uma batalha acirrada ecoavam ao longe. Minas terrestres explodiram, e um
contingente de tanques que vinha na direçao deles foi engolido em chamas. Ele nao
lembrava onde estava ou o objetivo da batalha, mas isso nao era importante agora. Tudo
que ele tinha de fazer era seguir o grande homem a sua frente.
Um pouco mais a frente, ele visualizou outro homem ruivo. Serph o reconheceu
como Heat. O soldado de choque carregava um lança-granadas sobre o ombro, e atirou
num dos tanques que tinha escapado da explosao de antes. Com a unidade de direçao
atingida, o tanque fez uma meia volta, e as suas esteiras, ja danificadas, pararam por
completo. O homem na frente de Serph olhou para tras e fez um sinal com a mao. Serph
correu para frente, alcançando o topo do tanque num unico salto.
O canhao do tanque girava, inutilmente procurando o seu agil oponente. Serph
enfiou uma mini granada no cano, e entao rapidamente pulou para tras e se protegeu
atras do veículo. Uma poderosa onda de choque tremeu dentro do tanque. Serph esperou,
sabendo que o calor aumentaria dentro da armadura a prova de fogo.
Alguns momentos depois, a escotilha abriu e um soldado saiu cambaleando,
coberto de fogo dos pes a cabeça. Serph se levantou silenciosamente e enfiou uma unica
bala no cranio do homem. Jogou o corpo para o chao e entao executou o proximo soldado
que emergiu do mesmo jeito que o primeiro. Usou uma faca para cortar a garganta do
terceiro e ultimo homem. Sangue jorrou como se Serph tivesse cortado uma mangueira.
Deixando o corpo semi-decapitado no tanque, pulou de volta ao chao.
O tanque estremeceu e morreu. Do outro lado do campo de batalha, Heat
descartou o lança-granadas e seguiu na direçao de Serph. O outro homem ruivo tinha se
posicionado numa trincheira que o inimigo tinha cavado ali perto. Mirou com o seu rifle
e começou a dizimar um grupo de tropas inimigas que se aproximava. O sistema de
comando nao estava funcionando muito bem. O inimigo parecia estar perdendo, mas era
lento em recuar. Como nao havia chegado nenhuma ordem de cessar fogo, significava
que o líder da tribo nao tinha sido abatido ainda. Parecia que os dois lados estavam no
limite. A batalha podia terminar de qualquer jeito. Serph mergulhou na trincheira e
olhou para o ruivo de rifle em busca de orientaçoes.
O homem se virou para ele. Seus labios se moviam, mas Serph nao conseguia ouvir
o que ele dizia. Em verdade, Serph tinha a estranha impressao de que o seu companheiro
de alguma forma era imaterial. Uma bizarra sensaçao de impaciencia borbulhava dentro
dele. O que ele estava dizendo?
Os labios do homem se moveram mais uma vez, mas, novamente, Serph nao
conseguiu ouvir nada. Ao inves disso, sentiu a cabeça girar, seguido de uma certeza de
que sabia o que ia acontecer depois. O medo que veio com isso apertou o seu coraçao
como uma mao de gelo. Seu companheiro se virou e começou a sair da trincheira. Serph
tentou gritar para ele parar, mas sua língua parecia presa dentro da boca, e nada saiu. Ao
inves disso, seu corpo se moveu sozinho, seguindo o homem para fora do esconderijo.
O ceu de magenta causava nauseas de tao brilhante. Havia pilhas de corpos e
poças de sangue por toda parte. Tanques jaziam virados. O cheiro de metal chamuscado
e oleo queimando impregnavam o ar. E havia as costas daquele homem de ombros largos,
que ainda corria na frente dele. Eles correram por uma eternidade. Serph nao podia
deixa-lo ir. Nao podia deixa-lo se afastar.
Um tiro ecoou. O homem grande na frente dele tombou para frente como se
tivesse levado um soco na barriga. Serph o viu cair com uma clareza inacreditavel, como
se o tempo tivesse parado, a cena avançando quadro a quadro, instante a instante.
Heat balbuciou alguma coisa. Alguem deu um grito assustador. So quando acordou,
um momento depois, Serph percebeu que o grito foi dele mesmo.
Serph nao queria mais ficar na cama. O monitorador automatico de saude do seu
quarto recomendava que ele tomasse uma dose de pílulas para dormir, mas ele nao
achava que isso serviria como um descanso de verdade. Cansado de olhar para a tela que
piscava incessantemente, vestiu sua jaqueta e saiu do quarto para andar sem rumo pela
base durante o silencio que vinha com a Hora de Sombra.
Com exceçao dos sentinelas de plantao, todos pareciam estar tirando o descanso
que o líder ordenou. Vez ou outra ele passava por um soldado e trocava um cumprimento,
e isso o fez pensar em ha quanto tempo estava ali. Quando a Embriao estabeleceu esse
lugar como sua base, a tribo tinha apenas dois membros: Serph, o líder, e Heat, seu unico
seguidor, seu braço direito. E agora eles controlavam Muladhara e Svadhisthana, o que
significava que, alem de ter mais companheiros, eles tinham duas areas inteiras no seu
currículo. Era o suficiente para coloca-los no nível de tribos de tamanho medio, como a
Maribel e os Solidos.
E o nome, Embriao. Quando relembrou sua origem, Serph sentiu uma pontada de
nostalgia. Foi escolhido por alguem que, por bastante tempo, nao fez nada de especial
no Lixao. Ele agia sozinho, como um soldado mercenario, vagando de um campo de
batalha a outro, sem se prender a nenhuma tribo. Ele nunca viu necessidade de nomes
para as tribos, mas, quando decidiu adotar Serph e Heat, ainda Recem-Nascidos, sob os
seus cuidados como seus subordinados, a lei da Igreja exigia algum tipo de nome-codigo
para formalizar a fundaçao da tribo.
A lei era que, se mais de duas pessoas fizessem uma aliança para lutarem lado a
lado regularmente, automaticamente eram consideradas uma tribo. O homem que
nomeou a Embriao passou a vida inteira vendendo suas habilidades para qualquer um,
ate que, pela primeira vez, decidiu formar a sua propria tribo de tres membros. Agora,
tudo que restava do que ele deu a Serph e Heat eram as marcaçoes laranjas nos seus
uniformes e o nome Embriao. Isso e a perícia e conhecimento tatico que os havia
imbuído minuciosamente, que os permitiu sobreviverem no campo de batalha.
Os pensamentos de Serph pesavam violentamente sobre ele enquanto subia por
uma serie de elevadores dos predios debilitados ate o topo maximo da base.
De la ele podia ver o Templo claramente. Olhou para o ceu cinza da Hora de
Sombra, cortado por feixes oscilantes de luz esmeralda que pareciam correr ate o
infinito. As silhuetas desordenadas das ruínas do Lixao se misturavam com a sutil curva
do horizonte, que era borrada por uma luz verde e azul. No meio de tudo, ficava o Templo,
banhado no branco radiante dos seus farois. Mesmo dessa distancia, a estrutura
transmitia uma beleza embasbacante. Mas o topo da longa e elegante torre desaparecia
na escuridao acima, intocavel. Aquele era o caminho para o paraíso.
A chuva de prata caía. A chuva dos mortos. Serph saiu do elevador e correu os olhos
pelo telhado. Havia um pedaço de concreto parcialmente demolido ali perto, e ele
percebeu alguem encolhido atras dele. So as pontas de duas botas eram visíveis.
- Quem esta aí? – ele perguntou.
As botas rapidamente se encolheram para fora de vista. Por um momento, Serph
nao pode ver nada nas sombras. Entao uma cabeça e um rosto apareceram, olhando para
ele – olhos temerosos com uma franja negra e molhada caída sobre o rosto.
- Sera? – perguntou Serph, surpreso – Por que nao esta na cama? Argilla nao
preparou um quarto para voce?
Sera fez que sim com a cabeça, murmurou alguma coisa sobre nao conseguir
dormir e enrolou os braços em volta dos joelhos, se encolhendo atras do concreto de
novo. Serph caminhou rapidamente para evitar a chuva e se enfiou debaixo do pedaço
de escombro, que funcionava como teto improvisado. Sera parecia agitada, como se
esperasse algum tipo de bronca, mas quando ele apenas sentou la, olhando para ela em
silencio, ela deixou escapar um pequeno suspiro e deixou a tensao de lado. Por um tempo,
ninguem falou nada.
A chuva continuava caindo, formando leitos prateados que corriam para a vala de
drenagem como raízes de mercurio. O ceu cinzento e os pontos de luz esmeralda que
dançavam nele eram refletidos no brilho metalico.
- Voce deve ter gostado disso. – disse Serph, vendo que Sera ainda estava
segurando o rolo de fita de antes. Era uma fita adesiva comum que ela encontrou no
deposito. Cabia facilmente na palma de uma mao, mas Sera segurava firmemente com as
duas.
- Tal e o mundo. – ela respondeu, passando o dedo pelo círculo interno do rolo. Ela
começou a murmurar numa voz baixa, quase em tom de melodia:
Tal é o mundo:
Rolar, correr,
Subir, descer.
Vidro rotundo,
Sonoro e oco,
A pouco e pouco
Fendas a abrir.
Aqui brilhante,
Lá coruscante,
Sempre cambiante,
Sempre a fugir.
Fala-te um ente,
Qual tu vivente,
Qual tu mortal.
Evita, amigo,
Esse inimigo,
Mundo fatal.
Crê-lo maciço,
E é quebradiço,
Como cristal.
- O que e isso?
- Fausto, de Goethe.
O rosto da garota estava estranhamente inexpressivo enquanto ela falava, como
se a sua mente estivesse completamente paralisada. Ela olhava para a frente com olhos
vazios, sem foco. Se nao fosse pela sua quieta resposta, Serph poderia jurar que ela nao
tinha ouvido a pergunta. Entao seus dedos ficaram negligentes, e o rolo caiu da mao,
rolando pelo chao ate algum canto, fora de vista. Sera nao mostrou interesse em
recupera-lo; apenas manteve as maos penduradas e languidas.
- Nao tem sol aqui, ne? – ela suspirou.
- Refere-se a algum tipo específico de solo?
- Nao tem lua tambem. – ela continuou, ignorando a pergunta de Serph – Mas, me
pergunto se aquelas coisas brilhantes seriam estrelas.
Serph nao fazia ideia do que ela estava falando.
- Nao sei o que sao “estrelas”, mas dizem que esses brilhos verdes que aparecem
durante a Hora de Sombra sao a luz dos mortos que subiram ao ceu para cair como chuva.
- Nao e “Hora de Sombra”. E noite. A palavra e noite. – disse Sera com firmeza – E
nao e Hora de Luz tambem. E dia. A noite, a lua aparece e as estrelas brilham. Entao, de
manha, o sol nasce e as nuvens correm pelo ceu azul. As vezes chove, mas depois aparece
um arco-íris. Manha, tarde, noite e depois manha de novo.
- Nao faço ideia do que voce esta falando. – Serph se perguntava de onde a garota
tinha tirado todas aquelas ideias estranhas – Existe uma Hora de Sombra e uma Hora de
Luz. Todo mundo sabe disso. O que sao essas coisas chamadas “sol” e “lua” que voce esta
falando?
- Ambos ficam no ceu. Sao brilhantes e lindos. E sao quentes e... – entao ela parou,
como se de repente tivesse ficado sem palavras. Fechou os olhos e, depois de alguns
momentos, deixou escapar um suspiro pesado – Eu nao sei. – disse.
- Sera. – Serph falou num impulso repentino – Voce ja viu coisas acontecerem
quando esta dormindo? Como lembranças do passado, de muito, muito tempo atras... Ou
imagens de pessoas que ja se foram?
- Isso sao sonhos. – disse Sera de uma vez – Enquanto dormimos, as coisas que
armazenamos no nosso subconsciente, como lembranças, preocupaçoes e ansiedades,
se manifestam como se fossem reais, seja de maneira concreta ou como símbolos mais
abstratos. E uma coisa normal que a mente faz. –olhou para Serph – Por que, voce teve
um sonho?
Serph olhou para as suas maos abertas. Elas tremiam um pouco. Foi preciso um
pouco de esforço para fecha-las e deixa-las firmes. A palavra “sonho” se desfez em po, se
misturando aos pequenos fragmentos de imagens que viu antes de acordar. Sim, um
sonho. Um sonho com ele. Um sonho sobre o dia em que ele morreu...
- Que tipo de sonho foi? – aqueles grandes olhos negros estavam voltados para ele
– Era um sonho com alguem específico? Alguem que ja morreu?
- Era o nosso antigo líder. Meu e do Heat. – ansiosamente, ele abriu o punho, entao
o apertou de novo quando se forçou a falar. Em algum lugar da sua cabeça, havia uma
fraca, mas desagradavel pontada, e ele sentiu um peso frio na barriga – Na epoca em que
Heat e eu ainda eramos Novatos, foi ele quem nos adotou e nos treinou. Ate entao, ele
nunca tinha feito parte de nenhuma tribo, e tambem nunca tinha fundado uma. Ele
provavelmente seria capaz de reunir uma força grande o bastante para rivalizar ate os
Brutos, mas nao se interessava por isso. Ele so lutava como mercenario, quando
precisava de comida ou suprimentos, nunca favorecendo uma tribo ou outra. Ate que
adotou Heat e eu.
Sera abriu mais os olhos.
- Isso nao e estranho? Digo, lutar sozinho.
- As pessoas do Lixao lutam para chegar ao paraíso. Para alcançar o Nirvana,
atraves do caminho de salvaçao estabelecido pela Igreja. Os portoes do Nirvana so serao
abertos para a tribo que controlar o Lixao inteiro. Ninguem jamais conseguiria controlar
tudo sem pertencer a uma tribo. Lutar sozinho, sem o objetivo de conquistar alguma
coisa, e o mesmo que virar as costas para a salvaçao oferecida pela Igreja. Uma vida sem
sentido que so conseguiria acumular mais karma.
- Voce acha que foi sem sentido? – a voz dela saiu estranhamente sem emoçao, o
que pareceu deixa-la mais autoritaria – O que ele, o seu líder, pretendia, lutando sozinho
assim?
- Nao. – foi uma resposta nascida do reflexo. Serph ficou surpreso com a pura força
e determinaçao da sua voz. So depois que a palavra ja estava fora da boca ele percebeu
a sua propria convicçao – Nao. – ele repetiu, entre dentes rangidos – Do ponto de vista
do Lixao, sim, com certeza o que ele estava fazendo era sem sentido, mas para ele nao
era. Para ele, acho que a Igreja e a promessa do Nirvana e que eram sem sentido. Tudo
que importava para ele era lutar e sobreviver.
- Entao por que ele quis voce e Heat como seus companheiros?
Serph balançou a cabeça. Se pelo menos ele estivesse vivo, pensou. Quando ele e
Heat ainda eram Recem-Nascidos, passaram incontaveis horas na companhia do seu
mentor, mas Serph nunca soube porque o homem os adotou depois de passar tanto
tempo sozinho. Por que, dentre todos os Recem-Nascidos que podia ter escolhido, foram
Serph e Heat?
Depois da sua morte, seu corpo e seu karma foram levados com a chuva, e a essa
altura ja tinham se misturado ha muito tempo com os karmas de outros para formar
outro Recem-Nascido, exatamente como Serph e Heat eram quando ele os tomou sob
sua tutela. Pensar nisso fazia Serph sentir um no na garganta. Sera se curvou um pouco
e acariciou sua bochecha.
- Voce esta chorando?
- Chorando? – era outra palavra que ele nunca tinha ouvido.
- E quando voce derrama lagrimas porque esta triste, ou as vezes quando esta feliz.
As vezes faz barulhos tambem, mas nem sempre. – seus dedos eram suaves e frios contra
a bochecha dele – As lagrimas saem dos olhos, e te ajudam a liberar as emoçoes ruins. E
outra maneira que as pessoas tem de expressar o que estao sentindo. Voce chorou
quando ele morreu, Serph?
- Eu nao me lembro. Provavelmente nao. Nao haveria tempo para isso, de todo
modo. – a batalha ainda estava a todo vapor: duas tribos maiores se atracando por todos
os lados, com a tenue distinçao entre amigo e inimigo perdida em meio ao caos. No sonho,
Serph tinha gritado, mas provavelmente isso foi algo que ele adicionou depois do fato.
Tudo que conseguia escavar nas suas lembranças mais distantes era a imagem dele
mesmo ajoelhado ao lado do corpo, e Heat o puxando pelo braço, se esforçando ao
maximo para tira-lo dali.
- Levante! Ainda nao anunciaram que a batalha acabou! – a voz de Heat finalmente
cortou a cacofonia – O líder deles ainda esta vivo. Eu detectei uma unidade líder perto
daqui. Se o matarmos, a batalha acabou.
Eles deixaram o corpo la, como os incontaveis outros. A Igreja monitorava os
sinais vitais de todas as unidades, e assim que elas cessavam, eram contadas como
casualidades na hora. Era a mesma coisa para os líderes. A morte de um líder podia
significar a dissoluçao da tribo, mas essa era a unica diferença dele para os demais. Uma
vez morto, o líder tambem era deixado no campo de batalha para sua carne se dissolver
na chuva de prata, como qualquer outro soldado.
Mais um que não vai alcançar o Nirvana.
Ele viveu ate o ultimo minuto dando as costas para o paraíso e a salvaçao.
- Voce... Voce veio do Nirvana? Do paraíso?
Sera apenas ficou em silencio. Exasperado, Serph colocou as maos nos ombros
dela e deixou as perguntas saírem.
- O que essa coisa que diz se chamar Angel sabe sobre voce? O que a Igreja quer
com voce? Por que voce tem o poder de suprimir o Atma? Por que voce apareceu de
repente na nossa frente naquela hora?
Um olhar doloroso apareceu no rosto de Sera, que novamente nao respondeu.
Percebendo que tinha perdido o autocontrole, Serph se forçou a respirar fundo.
- Voce diz que veio para nos salvar. Mas nos salvar do que? Do nosso Atma? Ou de
alguma outra coisa?
Sera se desvencilhou de Serph. Se encolheu no canto, mergulhando o rosto nos
joelhos como se, por pura força de vontade, pudesse desaparecer. Mas Serph continuou:
- O que e um deus? O que e um demonio? Angel nos chamou de demonios, mas
voce disse que os nossos Atmas eram deuses. Mas o que sao deuses e demonios afinal?
O que eles representam? O que essas coisas significam?
Sera nao ofereceu resposta – apenas pressionou a cabeça mais forte contra os
joelhos. Serph viu uma unica gota de algum líquido cair por entre seus dedos e formar
um pequeno ponto no concreto. Ao contrario da chuva, era umida de verdade, afundando
no chao. Serph ficou chocado ao perceber que era uma lagrima.
Sera estava chorando.
- Eu nao sei. – ela murmurou finalmente, em meio a um soluço quieto – Eu tenho
tentado entender desde que cheguei aqui, mas simplesmente nao sei. Coisas sem
importancia as vezes vem a minha mente, mas nao as coisas que eu mais quero saber.
Quem sou eu? De onde eu vim? O que eu devo fazer aqui? Tudo que eu sei e que eu vim
aqui para ajudar. Mas eu nem sei fazer nada. Eu nao vim aqui para ser protegida pelas
outras pessoas. Eu vim aqui para protege-las, para ajuda-las, mas...
Suas palavras se dissolveram em soluços pesados. Ainda encolhida, ela balançava
para frente e para tras. Para Serph, isso nao parecia uma simples “liberaçao de emoçoes”.
Ela parecia estar prestes a arrancar o proprio coraçao, ou chorar ate dissolver o corpo
inteiro em lagrimas.
- Nao chore. – disse Serph depois de um longo tempo. Ele estava certo de que havia
uma maneira mais apropriada de conforta-la, mas nao sabia qual era. Ele teve uma
deprimente sensaçao de inutilidade. Era um soldado do Lixao, um líder que sabia
comandar tropas no campo de batalha, e mesmo assim nao conseguia fazer a garota ao
seu lado parar de chorar. O que o antigo chefe faria? Quando pensou nisso, Serph
lembrou da cena que o acordou do seu sonho, e sentiu uma pressao afiada e penetrante
atras dos olhos.
Depois de um tempo, Sera limpou as lagrimas, respirou fundo e murmurou um
rapido pedido de desculpas:
- Nao ligue muito para as coisas que eu digo, Serph. – ela adicionou depois de um
momento – Nem eu entendo direito. Quando voce bate a mao em alguma coisa, faz
barulho, e quando me pergunta alguma coisa, palavras saem. E a mesma ideia. E melhor
so me ignorar.
- Nao diga isso.
No mínimo, lagrimas nao pareciam coisas que simplesmente saíam, Serph pensou.
Para os olhos produzirem aquele líquido, parecia que era necessario ter alguma coisa se
remoendo dentro de voce que nao tinha mais como ser contida. A tal liberaçao de
emoçoes.
Devia ser por isso que ela parecia prestes a chorar mais cedo, na sala de reuniao.
Ela sabia que estava la para ajudar; a seu ver, essa era a sua propria razao de ser. De certo
modo, nao era diferente de Serph e os outros existirem unicamente para lutar e
conquistar o Lixao. Entao para ela, estar nessa situaçao em que nao podia fazer nada, em
que tinha de ser protegida, devia ser extremamente doloroso.
- Serph... – começou Sera – Demonios sao criaturas horrendas e perversas que
atiçam os humanos a fazerem coisas ruins, os machucam e os matam. Deuses sao seres
transcendentais, muito superiores aos humanos e demonios. Eles protegem as pessoas,
respondem a oraçoes e sao adorados. – Sera forçou um sorriso – Mas voce me salvou.
Voce, Argilla, Cielo, Gale e Heat. Entao voces nao podem ser demonios. Talvez nao sejam
deuses tambem, mas no mínimo sao humanos. Como eu.
Por um tempo, Serph ficou quieto, apenas olhando a chuva e as luzes esmeralda
brilhando no ceu noturno. Sera baixou a cabeça de novo, olhando para o chao por entre
os joelhos.
- Sera. – disse Serph. Ela olhou para cima novamente – Eu quero te perguntar uma
ultima coisa: voce quer ficar aqui, com a Embriao?
Sera pareceu ficar totalmente aturdida, como se as palavras tivessem sido ditas
numa língua que ela nao entendia. Seus olhos se deslocavam de um lado para o outro
sem parar.
- Se voce esta falando de Gale querer usar o meu sangue como arma, eu nao me
importo. Se for ajudar, tudo bem. Eu so...
- Nao e isso. – Serph lembrou da irritaçao que sentiu enquanto conversava com
Gale mais cedo. Colocou uma mao gentil sobre o ombro dela. Ela se assustou com o
repentino calor do toque dele, mas nao desviou o olhar – Nao e sobre ajudar ou nao. Voce
quer estar aqui agora? Preferia estar em algum outro lugar? A Igreja esta procurando
voce. Talvez, se for ate la, consiga as respostas que tanto quer. No mínimo, voce estaria
mais segura que aqui.
Ele sabia o quanto estava sendo ilogico. Se Gale ouvisse as coisas que ele estava
dizendo, franziria as sobrancelhas em reprovaçao. Nao, apenas manteria o mesmo rosto
sem expressao de sempre e diria algo do tipo: “O senhor esta sendo altamente ilogico.”
Mas Serph sentia um estranho prazer em ir contra a razao. Em ser ilogico.
- Todos estao procurando voce, Sera, inclusive tribos muito maiores que a nossa.
E nao ha motivo para achar que eles vao te tratar do mesmo jeito que nos. Eles
provavelmente perceberao que so precisam te manter viva, e talvez façam algo como o
que Gale sugeriu antes. Eles podem te manter presa em algum lugar. No momento, voce
e a coisa mais importante do Lixao. A maioria nem te consideraria uma pessoa. Voce e a
chave para abrir os portoes do paraíso, Sera. E por isso que voce e tao valiosa. E tambem
porque e uma ferramenta util para impedir o nosso Atma de ficar fora de controle. Existe
ate uma chance de que, caso te entreguemos para a Igreja, sejamos libertados disso.
Quem sabe? Foram eles que enfiaram esses Atmas em nos, entao devem ser capazes de
remove-los tambem.
Serph olhou nos grandes olhos de Sera, seu rosto refletido naquele espelho
profundamente negro.
- Pense bem, Sera. Sabendo de tudo que eu acabei de te dizer, voce ainda quer ficar
aqui? Conosco? Nao com a Igreja ou alguma outra tribo?
Ela nao respondeu imediatamente. Entao, voltou o olhar para o Templo, radiante
e majestoso, iluminado pelo brilho verde do horizonte.
- Eu nao quero ir para la. – ela murmurou – Nao para aquele lugar. Ele me assusta.
Algo sobre ele nao parece certo. So de ve-lo eu sinto um arrepio. Nao, eu nao quero ir
para a Igreja. – seu corpo tremeu levemente e, naquele momento, seus olhos sem duvida
expressaram medo – Eu tambem nao quero ir para as outras tribos. Eu quero ficar aqui,
com voce e os outros. - se voltou para Serph – Eu posso ficar aqui? Mesmo nao
conseguindo fazer nada?
De repente ela se jogou sobre ele, as maos tremulas agarrando os seus ombros,
afundando o rosto fragil no peito dele.
- Mesmo voces nao sabendo quem eu sou ou o que estou fazendo aqui, mesmo eu
so lembrando de coisas que nao fazem sentido? Eu posso ficar aqui com voce s? – Sera
olhava para ele quase sem conseguir respirar.
Serph fez que sim com a cabeça, com um olhar de compreensao. Ela apenas
continuou olhando para ele, como que num transe, e entao começou a se desmanchar
em fortes soluços de novo.
- Nao chore. – disse Serph, sentindo que se saiu um pouco melhor dessa vez – Voce
pode ficar aqui com a gente se e isso que quer. Nos nao vamos te entregar pra Igreja nem
nenhuma das outras tribos. Vamos fazer tudo que pudermos para te ajudar. E voce ja
esta nos ajudando muito so de estar aqui, Sera. Entao por favor, nao chore.
Mas os soluços regulares nao pareciam que iam parar. Apertando-a contra o peito,
Serph olhou para as luzes oscilantes no ceu escuro. A chuva de prata continuava a cair
em silencio.
O que eram “estrelas” afinal?, ele pensou. Talvez devesse perguntar a Sera alguma
outra hora. Mas elas deviam ser algo muito bonito – com certeza, muito mais bonito que
aqueles pontos de luz oscilantes feitos de mortos. Dava para perceber pelo olhar saudoso
que ela fez quando disse a palavra. Ele as veria algum dia, Serph disse a si mesmo. Ele
veria aquelas estrelas que nunca viu antes. E entao veria o sol e a lua tambem. E o ceu.
O ceu do Lixao era de um magenta chapado ou um cinza manchado com brilhos
esmeralda. Nao existia ceu azul. Mas, por alguma razao, Serph tinha certeza de que isso
era real.
Sera que o ceu que ele veria no Nirvana seria azul? Teria estrelas?
Ele precisaria ir ver por si mesmo. Pela primeira vez na vida, ele estava certo de
que queria ir la.
- Venha, nos precisamos descansar. – disse Serph. Os soluços de Sera estavam
começando a diminuir. Estava ficando tarde. Logo o proximo guarda passaria pelo quarto
de Sera, e quando visse que ela nao estava la, seria uma confusao.
- Amanha vamos fazer novos planos. Agora que temos o Atma, o modo de lutar vai
mudar. Precisamos nos adaptar a isso.
Sera fez que sim, esfregando os olhos antes de olhar para cima. Serph se levantou
e estendeu a mao para ajuda-la a ficar de pe. Seus dedos eram tao pequenos e frios.
- Volte para o seu quarto e durma um pouco. Eu tambem vou dormir. Finalmente
estou começando a sentir sono.
Ele levou a pequena garota de cabelos negros ate o elevador. As portas fecharam
e a plataforma começou a descer. A chuva continuava caindo no teto de concreto vazio.
Das sombras, apareceu um animal com olhos prateados e cauda comprida. Ele
observou enquanto o elevador descia.
Capítulo 4
- Voce quer se aliar a uma das outras tribos?! – Heat gritou ao ouvir a sugestao que
Serph fez no início da reuniao do dia seguinte – Ficou louco? Eles sao inimigos, Serph.
Estamos falando de pessoas que nao pensariam duas vezes antes de nos trucidar se
tivessem uma oportunidade. E voce quer juntar forças com eles? Nao. O que nos temos
que fazer e tomar a iniciativa, ataca-los primeiro antes que eles tenham chance de fazer
o mesmo conosco.
Serph continuou calmamente, apesar da objeçao de Heat:
- Eu pensei muito sobre isso desde ontem. Nos mudamos. Isso e inquestionavel. E
por isso a maneira como lutamos tambem precisa mudar. Precisamos considerar novas
abordagens estrategicas que nao cogitaríamos antes. Gale, o que voce acha de fazer uma
aliança formal, ainda que temporaria, com outra tribo?
- No passado, ja houve varios casos de acordos de cessar fogo. – respondeu Gale –
Mas todos foram arranjados pela Igreja, no intuito de corrigir equilíbrios mais egregios
na capacidade de luta, e nao pelos proprios combatentes. O que o senhor propoe, as
proprias tribos formalizarem um cessar de hostilidades por iniciativa propria, jamais
aconteceu.
- Entao sera a primeira vez. – disse Serph com convicçao – De um ponto de vista
estrategico, qual tribo seria a mais propensa a aceitar uma oferta de cooperaçao?
- Atualmente, essas sao as duas tribos cuja força militar e mais proxima da
Embriao. – uma imagem tridimensional do Lixao apareceu no centro da sala. No meio
estava a Lotus Reluzente, Sahasrara, com as outras areas formando um círculo irregular
ao seu redor. Cada area era simbolizada por uma cor diferente, com o territorio da
Embriao, Muladhara, bem como Svadhisthana, antes controlado pelos Vanguardas,
ambos marcados com laranja.
O territorio a nordeste era Manipura, colorido de vermelho e controlado pela tribo
Maribel. Serph lembrou da mulher que manifestou sua indignaçao no Templo. A sudeste,
colorido de branco, estava Vishudda, notavel por ser controlado pelos Lobos, a segunda
mais poderosa das cinco tribos regentes.
Do outro lado de Sahasrara, em amarelo, ficava Anahata, o territorio dos Solidos.
A garota que atacou Serph na Igreja pertencia a essa tribo. Ao norte dos Solidos ficavam
os Brutos, que controlavam Ajna, a maior area. Seu territorio era identificado pelo azul.
Os Brutos eram reconhecidos universalmente como a facçao mais forte do Lixao, devido
a sua superioridade numerica e as armas avançadas que possuíam.
Gale destacou a Maribel e os Solidos.
- Essas duas tribos estao sempre em conflito uma com a outra, e no momento a
batalha chegou a um impasse. A menor interferencia pode destruir esse equilíbrio
completamente. Se vamos formar uma aliança, devíamos nos juntar a uma dessas duas
e atacar a outra.
- Entendo. – disse Serph – E qual voce recomendaria?
Gale pausou por um momento para considerar.
- Eu sugeriria a Maribel. O líder dos Solidos, Mick, o Lesma, tem fama de ser
extremamente cauteloso. Sua tribo nao e tao boa em termos de ataque, mas e muito bem
defendida. E baixíssima a probabilidade que ele aceite caso ofereçamos uma aliança. Pior
ainda, e possível que aceite a oferta so para nos pegar desprevenidos na primeira
oportunidade. Por outro lado, a Maribel esta sem condiçoes de continuar atacando os
Solidos. Relatos indicam que eles continuam a perder tropas. E muito mais provavel que
eles aceitem uma proposta. Alem disso, como suas forças estao enfraquecidas, depois
que nos juntarmos a eles e derrotarmos os Solidos, estaremos em excelente posiçao para
os conquistarmos tambem.
- Ei, espera aí. – Cielo se levantou da cadeira, visivelmente contrariado – Voce quer
que a gente junte forças com eles pra depois apunhala-los pelas costas?
Gale simplesmente olhou para ele.
- No meu entendimento, e isso que o nosso líder pretende. Estou correto, senhor?
- Nao, Gale. – disse Serph – Nao esta.
Serph ja esperava que Gale sugerisse essa tatica. Como bispo, Gale tinha de
considerar tudo que podia dar alguma vantagem a sua tribo. Para ele, a vitoria era tudo,
com quaisquer outros fatores sendo apenas ruídos na equaçao. Era natural ele ver uma
potencial aliança com outra tribo como nada mais que uma oportunidade de compensar
a atual falta de mao de obra, e posteriormente colocar essa tribo sob o seu controle para
solidificar a base de poder da propria Embriao.
- Eu quero alcançar o Nirvana. – disse Serph, relembrando o que tinha sentido na
noite anterior – Para isso, nos precisamos vencer. Temos que continuar vencendo, como
sempre fizemos. A essa altura, perder significa morrer, e aqueles que morrem sao
devorados. Sem um corpo deixado para tras para subir aos ceus com a chuva, a alma nao
volta para o utero de renascimento. E sem essa chuva, a Igreja nao vai conseguir fazer
mais Recem-Nascidos tambem.
- Se e assim, senhor, entao por que propoe algo tao irracional? Formando uma
aliança, temos a oportunidade de eliminar dois oponentes de uma so vez. O caminho
para o Nirvana so se abrira para a ultima tribo que permanecer de pe. A Igreja ja
decretou isso.
- A Igreja nao e mais como antes. – contra-atacou Serph – As leis mudaram
tambem. Ate onde eu sei, eles so sao a Igreja em nome. Argilla, se eu fosse morto por
alguma das outras tribos, os Solidos, por exemplo, voce se juntaria a eles?
- Que especie de pergunta e essa? E claro que nao. – Argilla estava sentada com os
cotovelos sobre a mesa, se erguendo de surpresa com a mudança repentina no rumo da
conversa – Eu sou membro da Embriao, agora e sempre. Eu nunca mudaria para outra
tribo, especialmente a que matou o meu líder.
- Eu mataria todos eles! – concordou Cielo – Mas fala serio, chefe. Como se alguem
pudesse derrotar voce.
Serph se voltou para Heat a seguir.
- E quanto a voce?
- Eu tomaria a frente e assumiria o seu lugar. – ele respondeu numa voz seca, sem
sinal de falsa bravata. Seus olhos vermelhos continuaram franzidos – E entao faria o que
Cielo sugeriu: destruir quem te derrotou. No momento, voce e o nosso líder, e eu o
reconheço como tal. Mas eu nao aceitaria qualquer outra pessoa no seu lugar. Um líder
precisa ser forte, e por isso eu sou o mais indicado para substituí-lo.
Argilla levantou as sobrancelhas, e Cielo deixou escapar um leve assobio. Por um
longo momento, o ar ficou cheio de tensao.
- Tais acontecimentos estao fora das minhas consideraçoes atuais. – disse Gale
indiferente, continuando calmamente sua analise – Sendo o bispo da Embriao, minha
preocupaçao e garantir a nossa vitoria. Qualquer evento que decorra da morte do nosso
líder e uma questao a parte. Alem do mais, tal eventualidade seria altamente irregular, e
meus planos sao projetados para evitar tais circunstancias. Nao posso planejar algo para
tais irregularidades a menos que ocorram.
- Entao... Ta. Quer dizer que nenhum de nos quer se juntar a outra tribo. – disse
Cielo – Entao isso significa...
- Significa que as leis ja perderam o efeito. – disse Serph.
Argilla e Cielo trocaram olhares surpresos. Ate Gale pareceu ter sido pego de
surpresa. So o rosto de Heat continuou impassivo.
Era uma reaçao compreensível. Quando um líder morria, os seus subordinados
eram absorvidos pela tribo que ate entao era inimiga. Sempre foi assim. E agora eles
estavam percebendo que essa maxima, que sempre foi fundamental na lei do Lixao, que
as pessoas sempre obedeceram sem questionar, não era imutavel: cada um deles
mostrou que estava preparado para ignora-la sem pensar duas vezes.
- Nos estamos percebendo isso so agora porque quase todos os membros dos
Vanguardas estao mortos. Mas se ainda houvesse muitos sobreviventes, com certeza eles
nao viriam se juntar a nos com um sorriso no rosto. Os tempos mudaram. Se matarmos
o líder de alguma outra tribo, os membros sobreviventes, assim como todos voces,
podem simplesmente se recusar a aceitar as circunstancias. E entao o que faríamos?
- Entao, ahn... – Cielo engoliu em seco quando olhou de volta para Serph – Nao
podemos contar com derrotar outra tribo para conseguir mais tropas?
- Nos ja recebemos varios relatos de situaçoes como essa. – disse Gale – Alguns
membros dos Vanguardas ainda estao vivos. Obviamente, alguns se renderam para nos,
mas a inteligencia indica que muitos mais se recusaram a faze-lo, e ainda estao resistindo
em varios pontos de Svadhisthana. Suas forças sao limitadas, entao nos podemos conte -
los por enquanto, mas ha uma alta probabilidade de que enfrentemos casos de
resistencia parecidos no futuro.
Cielo suspirou de desanimo.
- Ai, o que nos vamos fazer agora? Mal temos gente o bastante para manter
Muladhara, e se tentarmos expandir o nosso territorio, nao so nao conseguiremos mais
soldados para compensar o problema, mas tambem vamos ter que enfrentar rebeldes?
Que porcaria.
- E exatamente por isso que precisamos nos aliar a outra tribo. – disse Serph, agora
mais enfatico – Precisamos cooperar com os outros, nao subjuga-los. Se fizermos um
ataque surpresa e derrotarmos o líder de outra tribo, corremos o risco de perder tropas
e nao conseguir substitutos, como o Gale disse. Podemos acabar enfrentando mais
inimigos do que podemos lidar. Para evitar isso, precisamos encontrar aliados nos quais
possamos confiar e erguer uma força unida.
- Mas no fim, so uma tribo podera entrar no paraíso. – disse Heat.
- Essa e uma regra antiga. Pode ser que nem esteja mais em efeito. Seja como for,
eu estou escolhendo ignora-la. – respondeu Serph, num tom firme – Eu quero chegar ao
Nirvana, e quero levar o maximo de pessoas que puder comigo. Se eu so for visto como
um inimigo, com certeza lutarei. Mas se as pessoas estiverem dispostas a confiar em mim,
entao nos podemos desafiar a Igreja, ou qualquer um que quiser nos impedir, e fazer o
maximo de pessoas ascenderem ao Nirvana, independente de a qual tribo pertençam.
Argilla foi a primeira a falar:
- Estou dentro. Nao quero matar ninguem sem necessidade. Nos devíamos evitar
conflito sempre que possível. Quem comanda a Maribel e uma mulher, certo? Talvez ela
e eu possamos conversar olho no olho.
- Tambem gostei da ideia. – disse Cielo, levantando a mao – E um bom plano, chefe.
Acho que e por isso que voce e o chefe, e nao o vermelhao ali. – em tom de brincadeira,
apontou o polegar para Heat, que deu um murro no ombro dele – Ei, calma, vermelhao!
- Voce quer dizer alguma coisa, Heat? – perguntou Serph, mas Heat nao disse nada.
- Entao so falta voce, Gale. – disse Serph – Alguma objeçao?
- Nao, senhor. – respondeu Gale com uma mesura – Todavia, eu precisarei refazer
o plano do zero. Isso tomara algum tempo. Me de duas horas, senhor. Enviarei para o seu
terminal particular assim que estiver pronto. Ha apenas uma coisa... – ele parou por um
momento – Nao sou contra o plano, mas devo ressaltar que o senhor esta sendo deveras
irracional. A sua linha de pensamento possui varias falhas. Por favor, tenha em mente
que ha riscos que eu nao poderei eliminar.
- Sim, nao se preocupe, Gale. – disse Serph com um sorriso de esguelha – Vamos
nos reunir novamente quando Gale tiver desenvolvido o novo plano. Voces estao livres
ate la. Dispensados.
- Serph.
Serph estava a caminho do seu quarto para descansar ate Gale terminar os
preparativos quando Heat o chamou. Serph se virou com cautela.
- O que voce quer, Heat?
- Aquilo que voce disse antes era serio?
- Do que exatamente voce esta falando? – Serph podia ver a raiva no rosto de Heat.
Seus olhos cerraram de indignaçao com a pergunta.
- Voce sabe do que eu estou falando. – rosnou Heat, chegando mais perto – Se aliar
a outra tribo e uma coisa, mas voce quer manter a aliança depois? Matar ou ser morto –
e assim que sempre foi aqui no Lixao. E nao importa o que mais possa estar acontecendo,
isso pelo menos nao mudou. Voce acha que todo mundo simplesmente esqueceu disso?
- Agora e devorar ou morrer. Acredite, eu sei disso. – disse Serph – Se alguem
tentar nos ameaçar, nos vamos revidar, como sempre foi. Mas o que vamos nos tornar se
matarmos e devorarmos pessoas que nao pretendem nos fazer mal?
- Vamos nos tornar mais fortes! Esse e o objetivo! – Heat agarrou Serph pelo braço
enquanto falava. Ele se aproximou e murmurou no ouvido de Serph enquanto o
pressionava contra a parede do corredor: – Voce esta esquecendo de uma coisa
importante. Devorar os outros nao e so para sobrevivencia. Isso nos deixa mais fortes.
Veja o que aconteceu com Harley. E exatamente como Angel disse.
Serph sentia o bafo de Heat como um vento quente no seu rosto. O cheiro de
sangue atingiu suas narinas, e ele pode sentir a garganta começando a ficar seca.
- Enquanto nos ficamos aqui fazendo filosofia, os outros estao la fora matando,
devorando e ficando mais fortes. Quanto mais tempo ficarmos sem lutar, mais fracos
ficaremos. Se continuarmos assim, mais cedo ou mais tarde alguem vai vir atras de nos.
Vao nos matar e nos devorar. Ou sera que voce nao parou pra considerar isso?
O cheiro de sangue estava forte no ar. Os olhos de Heat nao carregavam apenas o
vermelho ardente do fogo – tinham assumido a tonalidade do sangue fresco. Serph
tentou se desvencilhar, mas mal conseguiu se mexer.
- Heat, me solte.
- Voce nao vai poder chegar ao seu precioso Nirvana se estiver morto. – Heat o
segurou com mais força – Ou voce vai ser devorado, ou vai devorar alguem e viver para
ver outro dia. E assim que o Lixao funciona agora. Camaradagem? Alianças? Quanto
tempo voce acha que um sonho infantil desses vai durar?
- Me solte, agora!
Serph sentiu a raiva ferver dentro dele. Uma luz branca brilhou sob as maos de
Heat que o seguravam, e quase instantaneamente uma densa neblina se espalhou entre
os dois homens.
Quando a neblina dissipou, as maos de Heat e os braços de Serph estavam
cobertos de gelo. Os antebraços de Serph tinham assumido uma cor branca acinzentada,
e estavam revestidos de uma carapaça de espinhos. Buracos se abriram nas suas maos,
e ele sentiu as afiadas laminas de ossos prontas para dispararem.
- Isso mesmo! E assim que se sobrevive no Lixao! – Heat sorriu de satisfaçao antes
de finalmente solta-lo. Sua pele congelada fez um barulho de algo rachando, mas ele nao
mostrou sinal de estar sentindo alguma dor.
- Lembre-se disso, Serph. As regras nao mudaram. As coisas so ficaram mais
brutais, mais impiedosas; isso e tudo. E e assim que eu gosto. La no fundo, voce tambem.
Entao va em frente e lute. Devore. Vai ser divertido.
- Voce com certeza ja devorou bastantes pessoas indefesas.
- Ate nao aguentar mais. – disse Heat com um sorriso. Serph estava acostumado
com aquele sorriso sarcastico, mas agora os caninos de Heat pareciam maiores. Eram
quase como garras – Mas eles eram fracos, nao eram presas de valor. So serviram pra
segurar um pouco a minha fome. Mas as tropas sobreviventes dos Vanguardas, eles sim
podem me oferecer um banquete. Gale disse que ainda ha alguns por aí.
- Alguns deles ainda podem querer se render.
- Nao precisamos de fracotes como eles na Embriao. Melhor que os fracos se
tornem alimento para os fortes. Assim pelo menos terao alguma utilidade.
- Heat! – gritou Serph, e entao um barulho forte foi ouvido no final do corredor. Os
dois homens se voltaram para a fonte do som. Sera estava parada la segurando uma
bandeja vazia contra o peito, seu rosto palido de choque.
- Eu, ahn, tinha terminado de comer e... Estava levando isso de volta. – ela
murmurou.
Heat mordeu a língua, e entao soltou Serph e saiu pisando fundo pelo corredor.
- Nao esqueça de mandar o Gale me dar uma bronca por insubordinaçao, chefe. –
desdenhou – Isso se e que o robo ja nao sentiu de algum lugar e ja nao esta preparando
uma. – e desapareceu virando o corredor, sua capa com a grande cruz laranja da Embriao
balançando no seu rastro.
Sera correu ate Serph e agarrou nervosamente o seu braço.
- Serph, o que esta havendo? Parecia que voces dois estavam brigando. Por que
Heat esta tao bravo?
- Nao se preocupe com isso. Nao tem nada a ver com voce. – disse Serph.
Sim, não era nada para Sera se preocupar. Heat so estava nervoso porque achava
que o seu líder estava sendo fraco. Um líder precisava ser forte, precisava ser melhor que
os líderes das outras tribos – ou, no mínimo, precisava ser um exemplo para os seus.
Ou talvez eu só não queira sujar as minhas mãos, pensou Serph. Talvez a verdade
seja essa. Como líder da Embriao, Serph tinha a responsabilidade de ser forte pela sua
tribo, e agora mais do que nunca ele queria levar o maximo possível de pessoas para o
Nirvana. Se ele nao matasse e devorasse os seus inimigos, cedo ou tarde alguem faria
isso com ele, e entao o que seria da sua tribo?
De certo modo, ele nao esteve sempre matando os inimigos e usando-os para ficar
mais forte, mesmo antes do Atma se manifestar? Mesmo que ele nao os devorasse
literalmente, havia realmente alguma diferença no fim das contas, entre o que eles
faziam antes e o que todos estavam fazendo agora? Ele nao tinha uma boa resposta para
isso.
Heat estava certo. E Gale tambem. No fim, o Lixao era um purgatorio infernal onde
os fortes devoravam os fracos para sobreviver. Com o Atma incitando essa nova fome
dentro deles, esse fato ficou ainda mais tangível e evidente. Nao havia porque tentar
negar.
Serph se aproximou e acariciou gentilmente o cabelo de Sera – suas maos ja
tinham voltado a forma normal –, mas seu olhar nao estava no seu rosto preocupado, e
sim na direçao em que o seu antigo confidente seguiu. As gotas de sangue da mao cortada
de Heat formavam uma trilha de pontos vermelhos pelo chao. Talvez Heat tenha visto
atraves do desejo de Serph de ser o unico sem pecado – a mascara que ele usou para
esconder sua covardia.
- O que sera que aconteceu com as pessoas que viviam aqui? – murmurou Argilla
ao vislumbrar a paisagem. La atras, Heat bufou.
- Esse lugar e uma zona de guerra. Acho que o que aconteceu aqui e bem obvio.
- Nao, estou falando de antes dessas lutas todas. – Argilla apontou para as ruínas
diante deles com uma mao. Predios jaziam tombados de lado, veículos abandonados
lotavam as ruas e persianas enferrujadas balançavam ao vento. Tambem havia postes
quebrados aos montes, e as rachaduras no asfalto pareciam teias de aranha.
- Sera me perguntou que tipo de pessoas viviam nessa cidade antes dela ficar
assim. Ela mencionou coisas chamadas “casas”, onde as pessoas habitavam. “Lojas”, onde
as pessoas faziam algo chamado “compras”, e “carros”, que as pessoas dirigiam. – a voz
de Argilla ficava mais baixa a medida que ela andava, ate que silenciou completamente
– Bom, pelo menos foi como Sera descreveu. – continuou finalmente – Ela disse que uma
cidade nao nasce zona de guerra. Antes, ela devia estar cheia de pessoas vivendo vidas
normais, cheias de tarefas cotidianas. E antes de o Lixao ficar como e hoje, talvez fosse
cheio de vida assim tambem, e talvez...
- Talvez eles nao lutassem. – disse Heat com um grunhido sarcastico – Aquela
garota nao bate bem da cabeça. Ainda nao consigo entender o que a Igreja pode querer
com ela. Nos nascemos para lutar. Ninguem tem o luxo de passar pela vida sem conflitos.
Bom, exceto talvez os sacerdotes.
- Nao diga coisas assim. – protestou Argilla – Sera disse que nao sabe como sabe
essas coisas. Ela simplesmente sabe. – ela pausou, deixando escapar um longo suspiro –
Tenho certeza que o lugar de onde ela veio e assim. E e assim que o Nirvana deve ser
tambem. Um lugar cheio de luz, beleza e felicidade, sem todas essas lutas. Um lugar
maravilhoso.
- Quietos, os dois. – ordenou Serph. Eles estavam chegando perto da fronteira de
Manipura – Mais um pouco e estaremos no territorio da Maribel. Devemos esperar
hostilidades, e preparem-se para receber fogo a qualquer momento. Ou algum outro tipo
de ataque. Tudo e possível.
Desde o surgimento do Atma, o uso de armas de fogo em combates tinha
diminuído consideravelmente. Aqueles que tinham Atmas mais fracos ainda corriam o
risco de serem mortos se cercados por um numero grande num ataque coordenado, mas
em geral, armamentos convencionais tendiam a ser ineficazes contra aqueles que
tinham liberado o poder do seu Atma. A batalha com Harley deixou isso bem claro.
Serph, Heat e Argilla tinham trazido suas armas de fogo de sempre, mas isso foi
mais por habito e desencargo de consciencia. Qualquer batalha que eles travassem seria
decidida pelo Atma.
Heat e Argilla ficaram quietos com o comando de Serph. Ele pode sentir que o ar
estava estranhamente pesado, e levou uma mao a bochecha para tocar o símbolo
pulsante do Atma. Houve uma sensaçao de picada, e uma fraca aura azul oscilou nos
limites da sua visao.
Há inimigos por perto. Serph podia senti-los. Varios indivíduos com Atma,
fervendo de hostilidade, muito proximos e ainda mais a cada segundo. Seu Atma estava
se ativando em resposta ao deles. Ele gritava por liberaçao, para ser liberado na sua
presa.
Ele queria se alimentar de carne e sangue. De vida. De poder.
- Aqui esta. – disse Serph, colocando o malote lacrado em cima da mesa em frente
a Jinana – Cada um desses malotes contem vinte capsulas. Infelizmente, por enquanto,
nao posso te dizer o que ha nelas, mas garanto que nao e veneno. Se quiser uma prova,
entao, por favor, escolha qualquer capsula que quiser e eu beberei agora mesmo.
Tres dias se passaram desde as negociaçoes em Manipura e, conforme ficou
acordado la, Jinana veio com uma pequena caravana visitar a Embriao em Muladhara.
Serph foi encontra-la na fronteira pessoalmente, tendo chamado seus patrulhas de volta
para a base pouco antes para a remota possibilidade de que a sua presença resultasse
numa luta. Jinana demonstrou uma cautela semelhante, deixando os homens que trouxe
consigo dentro do seu proprio territorio.
Gale e Heat queriam estar com ele nesse encontro, mas Serph recusou, insistindo
em conversar com Jinana sozinho. Depois de tudo que eles passaram para conquistar a
confiança dela, ele nao queria arriscar estragar tudo causando uma impressao de
intimidaçao.
Vozes abafadas murmuravam do lado de fora da porta, provavelmente membros
da Embriao tentando ouvir como as coisas estavam indo. Seu interesse era
compreensível. Nunca alguem fora da alta cupula da Embriao entrou na sala de reuniao
deles, muito menos o líder de outra tribo. Toda Muladhara estava falando disso.
- Nao ha necessidade disso. Eu confio em voce, Serph da Embriao. – disse Jinana,
pegando o malote. Ela abriu o involucro e levantou as sobrancelhas enquanto olhava as
capsulas coloridas contidas nele – Entao ha vinte aqui. Apenas uma por pessoa e
suficiente?
- As vezes, mas nao sempre. Quando tomadas como medida preventiva, uma ou
duas devem bastar, mas quando alguem ja esta fora de controle, e difícil dizer com
certeza. Quantos membros a Maribel tem atualmente?
Jinana nao respondeu imediatamente. “Cinquenta e dois”, disse depois de um
momento, superando a longa relutancia em revelar informaçoes sobre as suas forças
para alguem que ha poucos dias era seu inimigo.
Cinquenta e dois. O numero pegou Serph de surpresa. A Embriao tinha cerca de
cento e cinquenta membros, quase o triplo.
- Isso nao inclui os do lado de fora da base. – disse Jinana – Aqueles que... Se
perderam para o Atma. Eles se foram para sempre? Nao ha mesmo nada a se fazer por
eles? Nada para faze-los voltarem a ser humanos?
- Sinto muito. – Sera ja tinha dito isso a Serph. Quando ele perguntou, ela abaixou
a cabeça, ficando quieta por um tempo, e entao explicou que nada podia restaurar a
humanidade aqueles que foram completamente dominados pelo Atma, independente do
quanto sangue ingerissem – Eu gostaria de poder fazer alguma coisa, mas, no momento,
simplesmente nao e possível. – ao relatar a ma notícia, Serph lembrou do olhar
desamparado de Sera.
- Entendo. – disse Jinana, e Serph desviou o olhar, engolindo em seco de remorso
por esmagar as esperanças dela.
- Infelizmente, – ele disse – nao temos recursos para produzir essas capsulas em
grandes quantidades. So podemos te dar o suficiente para manter os seus membros
atuais sob controle. Considerando o seu contingente atual de cinquenta e dois membros,
com uma media de tres capsulas por membro e mais algumas por precauçao, duzentas
parece um numero bom?
- Sera o suficiente. Voce tem a minha gratid... Nao, obrigada, Serph. – Jinana sorriu
ao trocar a palavra no ultimo momento – Assim fica melhor. “Obrigada”. Ate a sensaçao
de dizer essa palavra em voz alta e... Extraordinaria. Estou usando-a corretamente?
Serph sorriu.
- Sim, eu acho que sim. – se levantou da sua cadeira – Eu preciso ir para ajudar a
preparar as capsulas restantes. Voce e bem-vinda para ficar para o jantar, se quiser.
Comida normal, e claro. Hoje em dia, o termo “comida” as vezes tem conotaçoes infelizes.
- Seria um prazer. Mas sabe, a sua Embriao e mesmo diferente.
- Como assim?
- Talvez seja porque o líder e tao estranho. – disse Jinana com um sorriso de
deboche – Durante todo o tempo em que eu estive aqui, me senti estranhamente calma.
Estou no coraçao daquilo que sempre considerei territorio inimigo, e ainda assim estou
mais em paz aqui do que quando estou em casa com a Maribel. Mesmo a sua base
estando nesse estado deploravel.
- Desculpe por isso. – Serph olhou envergonhado para os arredores decrepitos –
Temo que seja o melhor que a Embriao pode fazer. – a pequena sala de reuniao, com suas
cadeiras e bancos simples amontoados ao redor da mesa, devia parecer pouco mais que
um deposito de entulho para alguem acostumado com aposentos particulares e uma
cadeira grande e confortavel. Jinana sorriu para ele em tom de desculpa.
- Mesmo assim, quanto mais tempo passo aqui, mais sinto a tensao deixando o
meu corpo. E quente e confortavel aqui. Relaxante. Agora acho que entendo porque
voces nao perdem o controle. Tem essas capsulas para tomar, e a simples sensaçao de
estar neste lugar ajuda a controlar os animos.
Serph deduziu que o sentimento de calma de Jinana provavelmente era por estar
perto de Sera. Enquanto Serph e os outros ja tinham se acostumado, ja que estavam com
ela ha algum tempo, alguem de fora, como Jinana, sem duvida sentiria mais a diferença.
Serph entao abriu a porta, e um homem de baixa estatura que estava apoiado
contra ela caiu para dentro da sala, colidindo com ele com um grito de surpresa.
- Cielo, o que voce esta fazendo aqui?
Cielo olhou para ele com uma risada nervosa e acanhada. Atras dele, Serph viu os
outros tres membros da sua equipe principal, todos com cara de vergonha. Exceto Gale.
- O que todos voces estao fazendo aqui? Eu disse que queria conversar com Jinana
sozinho.
- E, e isso e tipo, totalmente injusto! – disse Cielo, se desvencilhando do peito de
Serph e batendo o pe no chao – Eu queria dar uma olhada na líder da Maribel. Afinal, ela
vai ser nossa aliada agora, certo? E alem disso, ela e uma gata! Eu tinha que ver! Ola,
senhora. Meu nome e Cielo. Sou o pupilo mais brilhante do chefe. Prazer em conhece-la.
- Cielo, voce so esta piorando as coisas. – disse Argilla, correndo para para-lo – Me
desculpe, Serph. Tinha uma multidao se aglomerando aqui. Eu vim correndo expulsa-los,
mas entao, quem eu vejo entre eles, senao Cielo e esses dois, tentando ouvir a conversa?
E depois que os outros se dispersaram, eu fiquei tentando tira-los daqui, mas eles nao
iam embora.
- Voce estava aqui porque tambem queria ouvir. – murmurou Heat de tras dela. O
rosto de Argilla ficou vermelho.
- Ta, talvez eu estivesse curiosa, mas... Seja como for, o que você estava fazendo
aqui, Heat? Voce tambem foi ordenado a ficar longe ate eles terminarem a conversa.
- Eu vou onde quero. Ninguem me impede de nada.
- Quando eu cheguei, so esses tres estavam aqui. – disse Gale calmamente – Os
outros membros saíram correndo quando perceberam que eu estava vindo. O que, alias,
eu so fiz para me certificar de que as suas ordens estavam sendo cumpridas.
Serph suspirou. Ele nao tinha certeza se devia ficar bravo ou feliz. Sim, eles tinham
desobedecido as ordens, mas ele sabia que so o fizeram porque estavam preocupados
com ele, entao nao podia ser severo demais. O verdadeiro problema era o que Jinana
estava pensando a respeito. Ele se virou para pedir desculpas pela interrupçao e dizer
que ja ia manda-los sair, mas, para sua surpresa, ela estava rindo incontrolavelmente.
Cielo ficou pasmo. Argilla e Heat tambem arregalaram os olhos de surpresa, e ate
a mascara de neutralidade objetiva de Gale escorregou um pouco. Jinana riu ainda mais
alto, se curvando na cadeira, como se a graça fosse demais para ela segurar.
- Ai, ai... – finalmente ela conseguiu conter o riso – Eu sabia que o seu líder era um
maluco, mas nao esperava que a tribo inteira fosse. Voces sao um bando incrível,
Embriao. Eu gosto de voces. Pode apostar que eu vou aceitar aquela sua oferta de jantar,
Serph, e espero poder sentar perto desses caras. Tem muitas coisas sobre as quais eu
gostaria de conversar. Parece que a diversao esta so começando.
Do lado de fora do portao principal do complexo dos Solidos, Gale fez uma careta
apos mais uma chamada nao-atendida. Depois de tres tentativas malsucedidas
sucessivas de contato com o líder da Embriao, ele so podia deduzir que algo dera errado.
Serph e sua equipe ja deviam ter reportado a essa altura. Gale franziu a sobrancelha.
Isso é muito estranho.
Mais de duas horas haviam se passado desde que a missao de infiltraçao começou.
De acordo com o planejamento inicial, a operaçao devia ter terminado ha trinta minutos.
Ele levou multiplos atrasos possíveis em conta, mas, mesmo assim, nao havia contato ha
quase uma hora.
- Bispo Gale. – era um mensageiro de Jinana, que havia assumido o comando da
batalha do lado de fora da base dos Solidos – Os soldados que protegiam o portao
principal foram quase todos mortos. Em breve teremos caminho livre. Devemos avançar
para a base e dar suporte a equipe de infiltraçao?
Gale estava prestes a aprovar a ordem, mas algo o segurou. Uma estranha picada
de incerteza. Ele balançou a cabeça.
- Nao. Nao entrem ainda. Esperem mais quinze minutos e transmitirei novas
ordens. A situaçao atual do campo de batalha e...
- Nossa força e claramente superior. – disse o mensageiro avidamente – Esses
caras nunca imaginaram que a Embriao e a Maribel iam se juntar contra eles. So isso ja
os deixou desesperados e desorganizados. Alem disso, temos um dos nossos líderes la
dentro. E impossível perdermos.
Gale nao respondeu. Ele funcionava com base em fatos e dados – otimismo e
pensamento positivo eram irrelevantes, assim como a sua incerteza sem fundamento.
Mas agora, por razoes que nao compreendia, alguma coisa o fazia hesitar, embora
ele soubesse que agir com base em palpites e instintos era um ultraje ao seu refinado
intelecto de bispo. Querendo um panorama melhor da situaçao atual no solo, ele subiu
uma elevaçao para visualizar o campo de batalha. O mensageiro o seguiu, falando
apressadamente como se tivesse acabado de lembrar de algo que esqueceu.
- Jinana parece exausta. Talvez fosse melhor manda-la recuar por agora. Ela esta
alternando entre a forma humana e Atma sem parar, e as vezes sente muita dor.
Mais uma vez, Gale sentiu como se estivesse sendo perfurado por espinhos que
nao podia ver. Nesse momento, o som de uma forte explosao perto do portao principal
dos Solidos os fez parar. A força do estouro foi grande o bastante para fazer Gale
cambalear e derrubar o mensageiro.
- Mas o que foi isso? – perguntou o homem do chao, ofegando – Os Solidos nao
poderiam estar se autodestruindo, entao... Ah! Bispo, espere!
Ignorando os gritos desesperados do homem, Gale desceu correndo a elevaçao,
ativando sua transformaçao no caminho. Rapidamente o homem alto de cabelos e olhos
verde-azulados se tornou uma criatura muito mais alta de asas verde claro e uma cabeça
que se dividia ao meio por uma grande boca: o Atma Maior Vayu. Ele se alçou ao ar com
uma forte rajada gerada pelas suas proprias poderosas pernas; o vento uivou enquanto
ele voava para a linha de frente em questao de segundos.
- Bispo Gale! – um dos membros da Embriao, em forma de Atma, veio correndo
ate ele.
- Me diga o que aconteceu. Onde esta Jinana? Que barulho foi aquele?
O homem abriu a boca, mas nao teve chance de falar antes que uma lamina de ar
o atravessasse. Sendo Vayu, o mestre do vento, Gale conseguiu se defender do ataque,
mas o outro membro da Embriao foi cortado perfeitamente ao meio, jogando uma rajada
de sangue no rosto de Vayu. A enorme língua do Atma verde deslizou para fora
subconscientemente, permitindo-lhe experimentar o choque e o medo dos ultimos
momentos do homem. Por instinto, proferiu um rugido. Uma sombra negra desceu do
ceu, emanando escarnio.
- Ora, ora. So peguei o lacaio.
Asas negras membranosas batiam malignamente, e presas com o formato de
agulhas formavam um sorriso sinistro. As grandes orelhas oscilavam frequentemente,
absorvendo a infinidade de sons do campo de batalha. Gale nunca vira essa criatura
antes, mas seu líder ja o havia descrito, e tambem disse o nome do Atma.
Era Camazotz.
Vayu grunhiu um rugido feroz.
- Muito bem.
O que restava da sala fortificada agora era uma bagunça irreconhecível. Por todos
os lados, pedaços esturricados de Nues podiam ser vistos entre os escombros,
juntamente com sangue e tiras de carne nao-identificavel. Os tres Atmas Maiores –
Varuna, Agni e Prithvi – estavam imponentes sobre as ruínas, poças de sangue banhando
seus pes. Prithvi usou seus membros elasticos para levantar e segurar o Turdak, que
tinha perdido todos os ossos da cintura para baixo, bem como todo o braço direito e boa
parte do esquerdo.
- Se voces puderam vir direto ate aqui embaixo, significa que ha um elevador que
leva diretamente ao teto. – disse Prithvi – Onde fica?
- Por que eu contaria? – apesar de nao poder se mexer, o Turdak continuou
inflexível – Voces nunca chegariam a tempo, mesmo. A essa altura, o chefe ja deve ter
devorado todos os seus amigos.
- Fale. – guinchou Prithvi. O cranio do Turdak começou a rachar, e medo
verdadeiro apareceu nos seus olhos. A ponta da sua espinha quebrada balançava como
o rabo de um animal desesperado numa tentativa va de se libertar – Vou esmagar o seu
cranio aqui mesmo se nao falar. Nao teste a nossa paciencia. Voce ja viu do que somos
capazes.
- Vadia desgraçada! Vai pro inferno! – o corpo do Turdak se contorcia, e seus olhos
rolavam nas orbitas – Voces ainda nao entenderam o que esta acontecendo? Todo esse
papo de aliança e lutar juntos... Vocês ainda comem pessoas. Olhem so o que aconteceu
desde que o Atma veio. Nao tem ninguem aqui que nao virou para a pessoa do seu lado
durante a primeira transformaçao e cortou sua garganta para comer sua carne e beber
seu sangue!
Os braços de Prithvi fraquejaram. A ponta da espinha do Turdak balançava como
uma minhoca enlouquecida.
- Voce sabe que e verdade. – ele disse – E matar ou ser morto. Comer ou ser comido.
Quando a fome bater, voce vai afundar os seus dentes na pessoa mais proxima, seja
inimigo ou aliado. Nao adianta negar. E o que ha de errado em fazer isso se e o que e
preciso para sobreviver? Voce tambem ja comeu pessoas. Ate a Embriao mata e dilacera,
bebe o sangue e enche a pança com a carne...
As palavras do Turdak foram interrompidas quando os longos braços de Prithvi o
apertaram com mais força. Suas poucas costelas restantes racharam, ameaçando
quebrar de vez.
- Ja chega de conversa. – balbuciou Prithvi – Fale onde fica o elevador. Agora. E a
sua ultima chance.
Varias rachaduras começaram a aparecer no cranio, que era lentamente
esmagado.
- Espere, pare! – gritou o Turdak – Eu falo! Eu falo! So nao me mate!
- Fale onde. – foi Varuna quem falou dessa vez.
- Essa sala tem uma porta secreta. – revelou o Turdak – Aquele monitor maior ali
e so um disfarce. Empurrem ele pro lado que voces encontrarao o elevador. Ele leva
direto ao portao principal em pouco mais de um minuto. Eu juro! Voces tem que
acreditar em mim. Me levem com voces se quiserem. So nao me matem. Nao me comam!
- Voce foi muito util. – disse Prithvi friamente – Adeus.
Antes que o Turdak pudesse falar, seu cranio se espatifou. Fragmentos de ossos se
espalharam pelo chao, e o pouco que restava do seu rosto arruinado caiu em seguida.
- Como se alguem fosse querer comer esses seus ossos podres. – disse Prithvi,
tirando a poeira das garras.
- Argilla. – começou Serph.
- Vamos, senhor. – Prithvi deu as costas e caminhou em direçao ao fundo da sala.
Atras de um pedaço de tecido empoeirado, eles encontraram um monitor danificado –
Nao temos tempo a perder. – disse ela – Jinana, a Embriao e ate Sera podem estar em
perigo.
Havia mesmo um elevador atras do monitor. O grupo entrou nele e fechou a porta,
e o dispositivo se ativou sozinho. Nao havia nada indicando em que andar estavam ou
mesmo qualquer tipo de painel de controle. Era so uma caixa cinza apertada e escura.
Enquanto subiam, os tres retornaram a forma humana. Ninguem disse nada, nem
mesmo Heat. Argilla remexeu o malote na sua cintura com a mao tremula e sacou uma
das ampolas do sangue de Sera. Foi uma batalha so para conseguir abri-la; quando
finalmente conseguiu, rapidamente engoliu o líquido. Ela engasgou, entao respirou
fundo e deu um tapinha no peito antes de tombar para a frente pesadamente,
pressionando a cabeça contra a parede do elevador.
Serph se aproximou para ajuda-la.
- Argilla, voce esta...
- Eu estou bem. – ela interrompeu, deixando a ampola vazia cair ao chao, onde se
espatifou em fragmentos sangrentos. Serph sentiu a boca secar com a imagem, e entao
sentiu vergonha disso.
- Por favor, nao fale comigo agora, senhor. – disse ela – Eu estou bem. Estou bem,
entao... So nao fale nada agora. Por favor. – Argilla fechou os olhos com força e pressionou
a cabeça ainda mais contra a parede – Por favor.
Serph recolheu a mao que tinha estendido. Heat continuou quieto; estava parado
no meio do elevador, olhando para o teto. Ele olhava como se estivesse imaginando a
batalha que estava se desenrolando la fora, alem daqueles pratos de metal enferrujado
e escuridao.
As portas se abriram, revelando o ceu magenta. Passava das 12:00 HL, e os olhos
de Serph, que tinham se acostumado com a escuridao, acharam a luz do meio-dia quase
cegante. Todos os tres ficaram atordoados por um momento e, enquanto aguardavam
suas vistas se ajustarem, algo veio voando na direçao deles, caindo ao chao com um
barulho pesado.
Era uma pessoa. Um membro da Maribel, a julgar pelas marcaçoes vermelhas no
uniforme. Ele tinha perdido a capacidade de manter o Atma e, agora que estava de volta
a forma humana, sua dor era visível. Seu rosto e corpo estavam cobertos de sangue.
- O que foi isso? O que aconteceu? – perguntou Serph.
- Foi... Foi o Bat. – disse o homem depois de um tempo, numa voz difícil de ouvir –
Ele contou aos Solidos sobre o nosso ataque. O Atma Maior do Mick, o Lesma... Rahu...
Ele... A nossa líder, Jinana...
Seus labios ficaram moles quando ele deu o seu ultimo suspiro. Serph o deitou
gentilmente no chao e se levantou em seguida.
A cena diante deles era brutal. Sob o brilho do ceu magenta, pedaços de corpos
mastigados pareciam boiar num mar de sangue. As vezes um resquício de descarga
eletrica ou foco de chama era visível, mas a batalha estava efetivamente terminada. Foi
uma derrota total para a Embriao e seus aliados. A maioria dos caídos usava marcaçoes
vermelhas ou laranjas; Serph so podia ver algumas poucas amarelas.
Argilla se aproximou de Serph e engasgou.
- Onde esta Jinana? E Gale e os outros?
Antes que ele pudesse responder, ambos estremeceram; um estranho arrepio
correu pelos seus corpos. Por puro instinto, Serph ergueu uma mao e liberou uma rajada
de frio congelante. Um guincho ensurdecedor preencheu o ar, seguido de uma rajada de
vento. Houve o som de asas batendo enquanto uma figura negra descia do ceu.
- Ola, tolos. – as palavras foram quase uma risada de deboche – Parece que os
inuteis la de baixo falharam. Mesmo assim, eles nos ganharam tempo mais que suficiente.
Eu preferia mata-los pessoalmente, mesmo.
- Bat. – a mao de Argilla se fechou em punho – Entao voce era mesmo um traidor.
A unica resposta de Bat foi uma risada sarcastica enquanto balançava as asas;
Camazotz estava conjurando um redemoinho de vento. Serph e os outros recuaram e
cobriram o rosto para se proteger.
Raiva e arrependimento queimavam no peito de Serph. Metade da raiva era dele
mesmo. Ele sabia agora, vendo o olhar que o Atma de asas negras dirigia a ele, que devia
ter considerado mais o que Bat podia fazer. Ódio. Malícia. Coisas desse tipo nunca
importaram antes. Mas agora a malevolencia de Bat tinha disparado uma reaçao em
cadeia cujo resultado era algo antes impensavel no Lixao: traiçao.
Heat rangeu os dentes.
- Seu desgraçado! – ele encarava o grande Atma de pelos negros que pairava no ar
com olhos de puro odio – Eu devia ter te devorado quando tive a chance!
Nesse momento, uma figura colossal apareceu no topo de uma colina proxima,
olhando-os de cima. Tinha quase quatro metros de altura, mais que o dobro de Serph e
os outros mesmo nas suas formas de Atma. Aos seus pes estavam os corpos de varios
membros das tribos – era difícil dizer se estavam vivos ou mortos – e seu olhar hostil
emanava triunfo. Ergueu um dos seus braços, que segurava um corpo magro.
- Jinana! – gritou Argilla. Antes que Serph pudesse impedir, ela ja estava correndo
e transformando-se em Prithvi. Com um rugido, saltou sobre o imponente inimigo.
Um momento depois, um tufao negro cortou seu caminho. Prithvi agilmente
saltou para se desviar. O Atma de asas negras fez questao de se aproximar e mostrar seu
sorriso cavalar.
- Cuidado, Embriao. – disse, num tom repleto de desdem – O chefe dos Solidos tem
o estopim longo, mas, se causarem muitos problemas, podem acabar perdendo a cabeça
da sua preciosa aliada.
Sem dizer uma palavra, Heat se transformou em Agni, e Serph em Varuna. Odio
corria por todo o seu ser; as laminas dos seus braços coçavam de vontade de atacar. Tudo
que ele queria era se jogar em cima do inimigo com toda a violencia, acertar as contas
da maneira mais brutal possível. Mas, vendo Jinana inconsciente, ele sabia que nao podia
ser imprudente.
- Como ousa aparecer na nossa frente, Bat? Seu traidor miseravel! – a voz de
Prithvi tremulava de raiva – E voce, – se dirigindo ao enorme oponente no alto da colina
– agora vai ter que enfrentar a gente. E depois do que aconteceu la embaixo, ja temos
uma boa ideia do verme fraco que voce e. Solte a Jinana!
- Voce e corajosa, garota. – o gigante sorriu – Tudo bem, entao. La vai. – ele
arremessou Jinana com uma facilidade assustadora, como se fosse uma bola. Ela rolou
quando atingiu o chao ate parar completamente, inerte e sem forças. Ja tinha voltado a
forma humana.
- Jinana! – Prithvi correu para o lado dela. Seus olhos estavam fechados, mas ela
estava respirando. Devagar e com dificuldade, mas respirando. Ainda estava viva, mas
tinha varios ossos quebrados e juntas deslocadas. Seu uniforme tribal tinha sido rasgado
na altura do peito, e seus seios expostos estavam cobertos de sangue. Seus ombros e
membros estavam dobrados em angulos estranhos, e seu rosto, outrora belo, estava
coberto de cortes e arranhoes.
- Aguente firme, Jinana! Sou eu, Argilla!
- Argilla...
Seus olhos verdes se abriram, e ela viu vagamente os tres membros da Embriao
reunidos ao seu redor antes que o medo obscurecesse o seu rosto.
- Nao! Afastem-se de mim! Depressa! – ela se debateu desesperadamente,
soltando a mao de Argilla e tentando se arrastar para longe – Vao para o mais longe que
puderem, depressa, ou eu...
- Do que voce esta falando? – perguntou Argilla – Somos seus aliados. Nao vamos
te abandonar.
- Aliados? – disse o Atma gigante para ninguem em particular, como se a cena que
desenrolava na sua frente nao passasse de uma piada sem graça. Ele era uma visao
intimidadora. Sua forma maciça era coberta por uma armadura azul. Sua cabeça tinha
uma boca, mas o restante do rosto era vazio. Ele tinha quatro braços, dois grossos e
robustos e outro par menor conectado a parte superior do tronco, proximo ao pescoço.
Havia outra boca no centro do seu peito, um verdadeiro buraco capaz de engolir um
homem inteiro. Ela abria e fechava ritmicamente, como que ansiando pela sua proxima
refeiçao.
De repente, essa figura temível desapareceu em meio a um estouro de luz azul, e
em seu lugar apareceu um enorme homem de pele negra: o líder dos Solidos, Mick, o
Lesma.
Ele so tinha metade da altura do seu Atma, mas era tao gordo que parecia ate mais
largo que alto. Seu cabelo negro estava preso em tranças que escorriam sobre os ombros
rechonchudos, e uma barba desgrenhada adornava as bochechas flacidas. Seus olhos
pequenos e redondos, que quase desapareciam em meio a gordura do rosto,
examinavam cautelosamente a situaçao, e seus grossos labios rosados formavam um
sorriso astuto. A marca de Atma estava na testa, brilhando discretamente.
- Ah, essa ceninha nao da vontade de chorar, Bat?
- E como. A Jinana sempre foi o tipo de líder que pensa nos outros primeiro. –
debochou Camazotz – Acredita que ela tinha o remedio que mantem o Atma sob controle,
mas ao inves de usar em si mesma, foi ate as ruínas e distribuiu as capsulas uma a uma
para aqueles que tinham sido banidos, sem nem se preocupar que nao sobraria nada
para ela? Mesmo aqui, ela continuou falando que nao queria devorar ninguem nem
matar desnecessariamente. E agora olha so no que deu. Olha o estado dela.
Varuna, visivelmente surpreso, se ajoelhou perto de Jinana.
- Jinana, voce nao ficou com nada? Se tomar um pouco agora, ainda...
- Nao... Meu povo, eles...
Varuna – Serph – nao sabia o que dizer. Apesar de ele ter garantido que o sangue
nao funcionaria naqueles que ja perderam a humanidade, Jinana se recusou a abandonar
aquele raio de esperança. Mas se ela estava usando seu Atma para lutar e nao tomou
nenhuma capsula nem devorou ninguem, so podia haver um resultado.
- Acho que ja passou da hora de acabar com isso. – disse Mick, esfregando as maos
– A diversao acabou, e os meus homens devem estar detonando a base da Embriao agora.
O segredo do seu remedio que controla o Atma sera nosso. Com certeza faremos melhor
uso dele que voces. Claro que eu nao pretendo parar de comer pessoas. E divertido, afinal.
- O seu proprio povo... – rangiu Prithvi – Voce os comeu, nao foi? Os membros da
sua propria tribo. – Mick se curvou para tras e soltou uma risada retumbante.
- Mas e claro! Que outra serventia eles teriam para o meu Rahu uma vez
derrotados e incapacitados de agir como minhas tropas? Derrotados e incapacitados,
como essa mulher ridícula aí na sua frente.
Prithvi se virou para atacar. Serph, ainda como Varuna, engasgou. Uma luz azul
estava começando a emanar do corpo de Jinana. Veias de luz se espalhavam pelo seu
corpo como fissuras em expansao. Nao era uma transformaçao normal. Algo estava
obviamente muito errado.
- Afastem... se... – Jinana tentou se levantar, mas caiu de novo. Sua voz nao era mais
humana – Eu... Nao consigo... Voces precisam... – suas palavras viraram um guincho rouco.
Sua pele branca escureceu e linhas de luz azul cobriram seu corpo inteiro. Sua esguia
silhueta feminina se distorceu e ficou maior, enquanto a risada de Mick ecoava ao fundo.
- Seu desgraçado! – rugiu Agni, erguendo os braços. Incontaveis esferas de fogo
infernal voaram na direçao de Mick, mas, antes que pudessem engolir o homem enorme,
um par de asas negras as interceptou, espalhando as chamas em faíscas inofensivas.
- Pode vir! – Camazotz sorriu e fez uma acrobacia no ar, enquanto Agni olhava em
choque, vendo que suas asas negras nao mostravam sinal algum de queimadura – Eu
posso ter perdido antes, mas nao vou fazer papel de bobo pra sempre!
Agni grunhiu.
- Voce andou comendo.
- Ah, sim. Um banquete e tanto. – riu Camazotz, protegendo Mick com suas asas
enquanto o enorme homem sorria de prazer – E agora você vai ser a minha proxima
refeiçao. Voce ja viu que os seus ataques pateticos nao me fazem mais nem cocegas. Eu
nao esqueci o que voce fez comigo antes. Estou louco para ve-lo sofrer.
- Quem vai virar refeiçao e voce, seu...
- Ei, ei, voce vai ignorar a sua aliada pra ficar de conversa? – a voz de Mick era puro
sarcasmo. Serph, sem açao, viu Jinana cair de joelhos e emitir um rugido alto.
- Jinana! – gritou Prithvi – Jinana, recomponha-se!
A unica resposta foi um tremor sob os seus pes. No lugar de Jinana, agora havia
uma forma sombria e grotesca. Se levantando, a criatura que tomou seu lugar começou
a se aproximar deles, seus movimentos fluidos e suaves.
Era o Atma Maior Ushas.
Tinha pescoço e membros longos e compridos, bem como a grande boca típica dos
Atmas Maiores. Sobre a cabeça, quase como um tufo de cabelo, um emaranhado do que
pareciam ser tentaculos. A forma do seu tronco ainda era graciosamente feminina, e com
o brilho amarelo claro da sua pele, quase era bonita, mas a boca inquieta e as garras
afiadas so mostravam fome e loucura. Camazotz e Mick começaram a rir.
- Bom, aliados, divirtam-se devorando uns aos outros. – provocou Mick – Se me
dao licença, tenho coisas a fazer, entao ja vou. Ah, e eu ficaria grato se nenhum de voces
sobrevivesse. Adeus!
Suas palavras foram seguidas por uma tremenda rajada de vento, tao intensa que
Serph e os outros tiveram de cobrir os olhos por causa da areia e poeira levantadas.
Quando a ventania se acalmou, eles viram a forma negra de Camazotz ja alto no ceu, com
Mick pendurado na sua barriga como um tumor disforme.
- O senhor esta bem?
Serph se virou em surpresa para ver algo vindo na sua direçao. Era Gale, na forma
de Vayu. Sangue escorria das garras dos seus pes quando ele pousou junto com os outros.
Havia rasgos nas suas asas, provavelmente da luta com Camazotz, e cortes no peito e
ombros, que ja haviam começado a curar.
- Sua falta de comunicaçao me deixou preocupado. Estou feliz que esteja bem,
senhor. Temo que tenha ocorrido um vazamento de informaçao, e acredito que Bat e o
responsavel.
- Eu sei. Mas conversamos depois. Cielo esta bem?
- To aqui, chefe! – a resposta veio do alto. Dyaus pairava logo acima deles – Eu ia
acabar com eles, mas o Gale mandou eu me segurar. Ate porque, eles tinham a Jinana. Eu
vou atras deles, chefe.
- Nao. No momento, a nossa maior preocupaçao e Jinana e Sera. – Serph estava
recuando discretamente enquanto Jinana – Ushas – avançava lentamente na direçao
deles, olhos ardendo de loucura – Voce e o mais rapido, Cielo. Pegue Gale e volte
imediatamente para a base. Gale, voce esta encarregado da defesa da base da Embriao.
Cielo, sua prioridade maxima e garantir a segurança de Sera. Va depressa. Nos ficaremos
aqui e cuidaremos de Jinana.
Gale voltou a forma humana.
- Senhor, pegue isso. – disse ele, entregando uma maleta do tamanho de uma mao
– Sao balas de rifle contendo o sangue de Sera. Ainda estao em fase prototipo, entao ha
apenas seis.
Serph abriu a maleta. Havia meia duzia de balas vermelhas dentro, obviamente
feitas a mao.
- Pensei ter dito que nao usaríamos o sangue dela como arma.
- Foi ela quem pediu. Disse que seria util se a situaçao piorasse. E de fato aconteceu,
embora mais cedo do que eu esperava. – disse Gale, direto e inexpressivo.
Nao havia tempo para brigar. Varuna grunhiu, pegou a maleta e jogou para Prithvi.
- Argilla, volte ao normal e atire isso em Jinana. Voce e a melhor pessoa para o
trabalho. Nao sei se vai funcionar, mas precisamos pelo menos tentar.
- Entendido. – Prithvi se transformou imediatamente em Argilla. Varuna fez o sinal
para Gale e Cielo partirem. Cielo fez um mergulho para deixar Gale subir nas suas costas
antes de voar na direçao da base da Embriao numa velocidade assustadora.
Ushas tinha parado de avançar e agora estava parada a uma curta distancia,
balançando languidamente de um lado para outro. Os tentaculos-cabelo da cor do ouro
a envolviam como uma neblina. Seus braços se mexiam como que procurando alguma
coisa, mas os movimentos eram desajeitados e inconsistentes, como se ela nao
compreendesse as proprias açoes. Vez ou outra ela jogava a cabeça para tras e rugia,
enquanto feixes de luz azul brilhavam como rachaduras por todo o seu corpo. Ela nao
fazia movimento de ataque. Apenas grunhia, sua grande boca abrindo e fechando como
que bebendo insaciavelmente o sangue e a polvora no ar.
Argilla, que tinha perdido o seu rifle na confusao dentro da base, pegou outro de
um guerreiro caído e fez uma rapida inspeçao. Mordeu a língua enquanto inseria as balas.
Os rifles de cada tribo eram diferentes. Se o funcionamento desse nao fosse como o
daqueles que ela conhecia melhor, a chance de erro seria mais alta.
- Desculpe por isso, Jinana. – ela murmurou – Aguente so mais um pouco. Nos
vamos te salvar. Vamos fazer voce voltar ao normal.
Argilla puxou o gatilho, e o rifle cuspiu fogo. De novo. Tres vezes. Quatro, cinco,
seis. Todas as balas carregadas com o sangue de Sera acertaram Ushas diretamente.
Argilla mirou bem, e elas nao atingiram nenhum ponto vital, pegando nos ombros,
braços e coxas.
Ushas cambaleou e tombou, mas seus gritos uivantes nao pararam. Por alguns
momentos, ela ficou quieta, atordoada, como que surpresa pelo que tinha acontecido,
mas entao jogou a cabeça para tras e deu um grito duas vezes mais alto que todos os
anteriores. Os tentaculos sobre a sua cabeça balançavam e pulsavam. As balas
fragmentadas foram expulsas da sua pele amarelo claro, e uma a uma caíram ao chao.
Argilla deixou o rifle cair, chocada.
- Nao! Nao teve nenhum efeito?
Agni rosnou por entre suas mandíbulas fechadas.
- Acho que nao funciona tao bem se nao beber.
Eles precisavam de mais sangue. E precisavam achar algum jeito de chegar perto
o bastante de Ushas para faze-la beber. Se nao o fizessem, Jinana ia se tornar nada mais
que uma besta sem mente que so vivia para matar e devorar. Eles ainda tinham mais
ampolas do sangue de Sera, mas seria o suficiente?
- Quantas das capsulas que demos para a Maribel ainda restam?
Um dos membros da Maribel respondeu rapidamente:
- E- Eu nao tenho certeza, mas vou descobrir.
- Va e reuna as capsulas restantes, todas que puder. E seja rapido. Peça para
qualquer um que ainda pode se mover te ajudar, e diga para os membros da Embriao
trazerem as suas proprias capsulas aqui. Vamos dar tudo para Jinana.
O soldado da Maribel fez que sim e partiu correndo.
- Entendo perfeitamente que faze-la beber o sangue e o unico jeito, Serph. – disse
Agni – Mas primeiro precisaremos chegar perto e imobiliza-la. Voce sabe disso, nao e?
- Ah, acredite, eu sei.
Eles viajaram numa velocidade incrível, tao rapido que a destruiçao avassaladora
que tomava conta do campo de batalha parecia apenas um borrao disforme. Sphinx
contornou buracos, pulou pilhas e mais pilhas de destroços, e numa ocasiao ate transpos
um predio desabado com um unico e poderoso salto que nenhum humano jamais
poderia fazer, agilmente cruzando cada obstaculo sem uma so pausa. Serph usava todas
as forças para garantir que nem ele nem Jinana caíssem.
Os cortes nas suas maos estavam começando a curar, mas o Atma la dentro ja
estava com fome de novo. A batalha para deter Jinana devia te -lo exaurido. Seus dentes
afiados coçavam e ele sentia uma queimaçao na bochecha. Um grunhido feral subiu pela
sua garganta. Zaphir dirigiu o olhar para ele brevemente, mas logo se voltou para o
caminho a frente e se concentrou em correr. Serph fechou a boca com força e se curvou
para frente, como que tentando esmagar a furiosa fome dentro de si.
Por que isso está acontecendo? – pensou ele, enquanto sua mente parecia ficar
vermelha – Por que nós estamos neste lugar? O que estamos fazendo aqui?
- Serph! – gritou Zaphir. Logo a frente, um grupo de inimigos os aguardava. Suas
marcaçoes tribais amarelas os identificavam como Solidos. Uma emboscada.
- Fora! – comandou Serph com uma voz aspera. Sua bochecha parecia que ia pegar
fogo. Seus dentes se alongaram em presas, perfurando a língua. O gosto do seu proprio
sangue se espalhou pela boca. Ele ficou tonto – Se nao quiserem morrer, abram caminho.
Vou mata-los se tentarem nos atrapalhar.
Os Solidos hesitaram por um momento, mas logo uma luz azul começou a envolver
os seus corpos. Uma a uma, as formas dos seus Atmas apareceram. Eram bestas
selvagens, como os Nues no subsolo da fortaleza, mas esses tinham asas de ossos com
membranas de uma pele vermelha viscosa, corpos cobertos em pelos negros e um par
de chifres na cabeça.
Uma onda de energia se reuniu no braço de Serph. Ele se inclinou sobre Jinana,
protegendo-a com o proprio corpo, e se segurou no pescoço de Zaphir com o braço
esquerdo enquanto o direito se transformava no de Varuna. A pele do ombro a ponta dos
dedos ficou palida e revestida, e com uma aura feroz, a lamina de ossos se libertou.
E sangue jorrou.
Os Atmas ferais nao eram pareo para os golpes letais de Varuna e a agilidade quase
artística de Sphinx. Braços, cabeças e entranhas voaram, cobrindo o chao como numa
chuva de confete. Varuna deu um urro de prazer com o cheiro do sangue e a sensaçao da
sua lamina cortando carne. Quase em transe, Serph via a si mesmo lambendo
gulosamente o sangue que escorria. Ele ficou surpreso ao perceber que nem sentia mais
nojo.
Por que nós lutamos? Por que matamos?
Por que temos que matar? Por quê?
Um frio cortante varreu o ar. Um dos Atmas voadores que os perseguia foi atingido
diretamente pela rajada gelida de Varuna, congelou e se espatifou, espalhando
fragmentos de gelo ao vento.
Por que matamos?
Porque era matar ou ser morto. Essa era a razao, pura e simples. Mas ao mesmo
tempo nao era razao alguma. Simplesmente nao havia uma boa explicaçao para por que
eles tinham que matar uns aos outros. A adiçao do Atma e essa fome insaciavel nao era
o motivo – nao o motivo fundamental. Tudo que eles fizeram foi tornar ainda mais claro
para Serph o que ele e o resto do Lixao sempre fizeram, mas nao por que.
Serph e os outros nasceram nesse mundo para lutar. Eles viviam para lutar. Mas
quem foi que os condenou a esse destino? A Igreja? Quem estabeleceu a Igreja? Quem
foi que fez essa promessa do Nirvana, esse suposto paraíso que eles nao eram nem
capazes de conceber?
Quem foi que nos deu as nossas vidas, o nosso karma?
E ainda assim ele continuou com o massacre, ate que o ultimo dos Atmas
selvagens caiu. Serph balançou o braço para limpar o sangue escorrido. O sedutor aroma
de morte que se instaurou sobre ele fazia a sua boca aguar. Agora nao havia rastro de
mais nenhum inimigo, e ele começou a reconhecer a paisagem local. Eles estavam de
volta a Muladhara, perto da base da Embriao. Ao longe, alem de um predio abandonado,
ele viu varias colunas de fumaça preta subindo, mas nao havia sinais de batalha. Serph
mandou Zaphir parar e esperar com Jinana escondida numa ruína.
- Mas Serph...
- Eu so vou ver qual e a situaçao da base e ja volto. Se a luta ainda nao tiver acabado,
sera muito perigoso levar Jinana para la. Eu vou ver se o lugar esta seguro e volto com
reforços o mais rapido possível.
Zaphir hesitou a princípio, mas entao respondeu que sim e acomodou Jinana no
chao. Ela permaneceu transformada, mantendo uma vigília ansiosa sobre sua líder
enquanto lambia o sangue do seu proprio pelo dourado.
Serph correu para a base o mais depressa que pode, tomando o cuidado de
permanecer oculto. Sua garganta estava seca. Dentro do seu coraçao, Varuna ainda rugia,
ainda queria matar, exigindo mais sangue e mais carne. Os cheiros de luta, sangue e
polvora estavam em todas as direçoes, e o odor de carne queimada atiçava o seu olfato a
cada passo. Foi preciso um esforço consciente por parte dele para evitar lamber os labios.
Nao demorou muito para ele alcançar uma posiçao da qual tinha uma boa vista da
base. As primeiras coisas que viu foram os restos destroçados das muralhas de suporte
no portao frontal e varias pilhas de carga que foram vítima de explosoes. O solo ao redor
da fortaleza tinha sido esturricado, e havia corpos de soldados espalhados por toda
parte. Pelo menos metade deles estava em forma de Atma, ou tinha as marcaçoes tribais
amarelas dos Solidos, mas tambem havia um punhado que portava o laranja da Embriao.
Alguns estavam completamente inertes, mas outros ainda estavam vivos, grunhindo
enquanto tentavam se levantar ou rastejar pelo campo de batalha.
Nao havia tempo a perder. Deixando qualquer hesitaçao de lado, Serph correu por
uma trincheira proxima para chegar a um membro da tribo gravemente ferido e ajudou
o homem a sentar. Ele estava com dificuldade para respirar, e Serph teve de segura -lo
com força para faze-lo parar de se debater. Seus olhos piscaram algumas vezes e vagaram
sem rumo por um tempo antes de pararem e se focarem no líder.
- Ah... Senhor... – o soldado tentou sorrir, mas acabou se contorcendo de dor – Eles
nos atacaram enquanto voces estavam fora. Sinto muito. Nos...
- Esta tudo bem. Onde esta o inimigo? Como estao as coisas la dentro?
- Demos cabo de todos os invasores que estavam dentro da base. – disse uma voz
rígida de repente de algum lugar ali perto.
Serph se virou e viu Gale saindo de um buraco que tinha sido feito na muralha de
bloqueio, apoiando um braço nela. Embora seu rosto continuasse inexpressivo como
sempre, ele nao podia esconder o cansaço do seu corpo. Seu capuz estava coberto de
ferrugem, e seu uniforme tribal estava queimado em varias partes.
- Parece que conseguimos voltar mais depressa do que eles esperavam. Tambem
havia menos hostis do que eu imaginava. Acredito que eles nao vieram com a intençao
de lutar, e sim procurar o nosso meio de controlar o Atma. Despachei uma unidade com
uma maleta cheia de farmacos e dispositivos falsos, com ordens de fingir uma fuga. Mais
de metade das forças inimigas partiu atras deles.
Serph deitou o homem moribundo cautelosamente no chao. Ele estava aliviado
pela sua tribo ter conseguido escapar da destruiçao, mas ainda tinha Jinana para se
preocupar, entao nao podia se dar ao luxo de relaxar por enquanto.
- Sera esta bem? Eles a encontraram?
- Cielo se escondeu com ela. Estamos procurando por eles agora. – disse Gale.
Por enquanto, parecia que eles nao precisavam se preocupar com outro ataque
inimigo. Serph instruiu Gale a resgatar Zaphir e Jinana e leva-los de volta a base. Alguns
dos membros caídos da Embriao ainda podiam se mexer, e chamaram por ele assim que
perceberam que tinha voltado. Serph encarregou as tropas de Gale de cuidar deles e se
dirigiu rapidamente para a base.
Quando entrou, engoliu em seco. Era uma visao horrível, dolorosamente evocativa
da cena morbida na base dos Vanguardas. Havia sangue espalhado no chao e no teto e
marcas de queimadura e buracos de bala para todos os lados. O corredor principal tinha
desabado, e seria difícil encontrar outro caminho.
- Cielo! – gritou Serph, mas sua voz apenas ecoou sem resposta pelo corredor. De
algum lugar ao longe, veio o som de pedras desabando – Cielo, onde voce esta? Cielo!
Ele usou o seu Atma para vaporizar a montanha de concreto que bloqueava o
caminho. Os pedaços de pedra e concreto congelaram e se desintegraram num po
brilhante, mas nao havia ninguem do outro lado. Ele podia ouvir o som de passos e gritos
freneticos, mas nao conseguia identificar de onde vinham.
Aquela edificaçao sempre foi um lugar decrepito, difícil de cuidar e reparar,
porque suas varias estruturas e corredores nao eram nada uniformes. O resultado era
que eles tinham de conviver com uma base que era quase como um labirinto.
- Cielo! – Serph repetiu o chamado. Rangeu os dentes inquieto quando ouviu vozes
ao longe de novo.
Muito embora nao tivesse realmente opçao na hora, Serph se arrependeu de ter
mandado Cielo para proteger Sera. Dyaus podia ser um Atma Maior, mas seus pontos
fortes eram a habilidade de voar e ataques a longa distancia pelo ar. Ele nao era
adequado para lutas em ambientes fechados e apertados. Por outro lado, defender a
misteriosa garota era uma tarefa importante demais para ser confiada a qualquer um, e
entao o dever recaiu sobre o jovem Cielo.
O sentimento de que o tempo estava acabando pesava violentamente na cabeça
de Serph. Jinana precisava de ajuda rapido. A cada momento, ela era mais consumida
pelo seu Atma fora de controle. Serph ativou Varuna de novo e expandiu seus sentidos,
mas, apesar de detectar muitos Embrioes ainda nas suas formas de Atma, na o encontrou
Dyaus entre eles. Muito provavelmente, o proprio Cielo tambem estava num estado
muito enfraquecido.
Ou está morto, pensou Serph brevemente antes de expulsar a hipotese da cabeça.
Nao. Ele se recusava a acreditar nisso. Enfiou o punho na parede ao seu lado e, com o
poder do Atma por tras do soco, a estrutura danificada se espatifou ainda mais, como se
tivesse sido atingida por uma bola de canhao.
- … volta dele. E o Cielo. Alguem precisa avisar o líder. Cielo...
Serph praticamente mergulhou no buraco que fez. Os sons de mais gritos e passos
ecoavam no corredor do outro lado. Enquanto ele corria, quase colidiu com um membro
da Embriao, e ja ia desferir uma mordida, ate que percebeu quem era.
- Senhor! Quando voltou?
- O Cielo esta aqui? Onde ele esta? – exigiu Serph, pulando as formalidades.
Sentindo a urgencia, o soldado rapidamente deu meia volta e o encaminhou em
direçao aos níveis inferiores da base. Eles desceram varias escadarias e passaram por
inumeras salas desorganizadas. Depois de atravessar diversos corredores, começaram a
ouvir o barulho de uma comoçao mais a frente. Serph correu ate la, chegando a uma sala
lotada de gente. A multidao estava apreensiva, quase em panico.
- Escuta, nos nao somos o inimigo! – gritou um homem para alguem. Um instante
depois, foi iluminado pela rajada de um relampago azul claro que acertou de raspao. Ele
cambaleou e caiu ao chao. Um dos outros o ajudou a se levantar, e Serph correu ao
encontro deles.
- Senhor! – disse o segundo homem, preocupado e surpreso – O senhor nao deve
se aproximar! E muito perigoso. O Cielo esta fora de si!
Serph o mandou fazer silencio com um gesto e atravessou a porta a frente. A sala
estava um caos. Parecia uma area de suprimentos, so que tudo la dentro tinha sido
completamente destruído – esmagado e explodido –, exceto um unico armario de armas
que ainda continuava de pe, enferrujado mas ileso, num estranho contraste com tudo ao
redor.
Cielo, na forma de Dyaus, estava jogado contra a porta do armario, como que ainda
protegendo-o apesar do estado deploravel em que se encontrava. Ele estava pessimo;
provavelmente era sorte ainda estar vivo. Sua perna esquerda estava quebrada, dobrada
num angulo bizarro, e metade de uma das suas asas tinha sido arrancada. Ele sangrava
de uma dezena de ferimentos ou mais, o sangue formando poças enegrecidas no
concreto. O cheiro fazia o estomago de Serph coçar.
- Cielo.
Assim que a palavra saiu, uma rajada de eletricidade voou na direçao dele. Serph
a repeliu com um movimento do seu braço. Nao havia muito poder por tras dela. Era
obvio que Cielo nao tinha muito mais a oferecer. Serph se aproximou do amigo e ajoelhou
ao seu lado.
- Cielo, sou eu. Esta tudo bem agora. Eu nao sou seu inimigo. Voce se saiu bem. Fez
o melhor que pode.
- O... Oi, chefe... – as palavras saíram quase como um resmungo por entre os dentes
cerrados – Voce voltou. A Jinana... Ela esta bem? E... os outros...
- Eles estao bem. – garantiu Serph – Jinana esta la fora esperando o tratamento.
Argilla, Heat, Gale, estao todos bem. E veja, eu tambem estou.
- Que... Que bom... – de repente Dyaus cambaleou para frente e caiu, a
transformaçao em Atma se desfazendo quando ele ficou sem força. Serph segurou a
pequena forma humana de Cielo e rapidamente convocou uma equipe de primeiros
socorros. Alguem veio correndo imediatamente.
- Ei, chefe, eu...
- Esta tudo bem, Cielo. Nao tente falar. – Serph estava surpreso com o quanto o
corpo de Cielo era leve, acomodando-o cuidadosamente – Vou ouvir todos os seus feitos
heroicos depois. Por enquanto, voce deve ficar quieto.
- Eu fiz o melhor que pude. Pela Sera. Porque ela e minha amiga. – um sorriso
satisfeito se formou no rosto sujo e ensanguentado de Cielo – Eu vou protege-la. Custe o
que custar. Faço qualquer coisa. Porque eu sou o seu soldado numero um, nao e, chefe?
Ele recostou a cabeça de cabelos azuis no ombro de Serph. A equipe de primeiros
socorros veio e o colocou numa maca. Um momento depois, a porta do armario, nao mais
bloqueada pelo seu peso, abriu com um rangido.
La dentro, espremida no espaço escuro e poeirento, estava uma garota de cabelos
negros, encolhida e inconsciente.
– Franz Kafka
- Abra um pouco mais as pernas. Os pes devem ficar na direçao dos ombros. Isso,
perfeito. Agora coloque o pe direito um pouco para tras. Endureça os ombros e jogue o
seu peso um pouco para a frente. Nao mantenha os braços completamente retos, deixe
seus cotovelos curvarem um pouco. Eles precisam estar firmes, mas nao travados. Isso.
Relaxe o corpo... Agora concentre-se nos alvos. Voce quer aquele círculo vermelho bem
no centro.
Serph e Sera estavam numa ruína numa regiao relativamente segura proxima a
base da Embriao. Eles limparam a sujeira e os escombros o bastante para formar uma
area aberta e pintaram uma serie de círculos concentricos numa das paredes de concreto
do outro lado. Argilla, juntamente com alguns outros membros da tribo que estavam de
patrulha, observavam a cena preocupados.
Sera seguia as instruçoes de Serph passo a passo com um rosto serio.
- Muito bem. – disse ele – Agora mantenha essa postura, e lembre, o gatilho deve
ser pressionado com delicadeza. Certo... Fogo.
Quando o som da bala ecoou, Sera soltou um gritinho e quase deixou a arma cair.
A tinta vermelha coloriu um amontoado de destroços; o tiro passou longe do alvo. Argilla
levou a mao a testa e os outros soldados trocaram olhares de pena e cochichos.
- Como eu disse, voce precisa relaxar o corpo. – lembrou-a Serph – Principalmente
os ombros. Isso e so uma arma de tinta, mas ainda tem um recuo. Para alguem como voce,
que nunca usou uma arma antes, o coice pode ser muito mais forte do que o seu corpo
esta esperando, e se voce ficar muito tensa esperando por isso, vai interferir na sua
capacidade de mirar. Use os cotovelos como se fossem molas para absorver o impacto.
Tente de novo.
Sera coçou a bochecha e fez que sim. Se voltou para o alvo e reassumiu a posiçao
de tiro.
Apos aproximadamente mais uma hora de instruçoes, Serph disse a Sera que
precisava ir a uma reuniao com Gale. Ele e o bispo precisavam discutir para onde
exatamente iam mandar a garota.
Mick e Bat tinham caído na isca da maleta falsa, mas nao iam continuar enganados
para sempre. Bat provavelmente ainda tinha as capsulas de sangue que a Maribel lhe
deu, e era razoavel pensar que ele e Mick analisariam o conteudo. Eles provavelmente
nao fariam a conexao entre o sangue e a garota que a Igreja estava procurando de
imediato, mas como o inimigo conhecia a localizaçao e a planta da base da Embriao, a
prioridade agora era encontrar algum lugar para manter Sera segura.
Serph chamou Argilla num canto.
- Se importa de cuidar das coisas aqui ate ela terminar? Ela tambem precisa
aprender a desmontar e recarregar a arma. Pode fazer isso por mim?
- Bem, posso... – disse Argilla, franzindo a sobrancelha – Mas o senhor quer mesmo
mandar Sera para o campo de batalha?
- E claro que nao. Se possível, eu gostaria que ela nem nunca visse um combate. –
respondeu Serph – Mas o que Heat disse e verdade. Sera ficou muito chateada por Cielo
ter se machucado enquanto ela ficou escondida sem fazer nada. Ela precisa se sentir util,
e embora possa ser um pouco drastico, eu acho que nao fara mal algum ela receber
treinamento em armas. Gale tambem aprova.
- Eu entendo... – quando mais tiros ecoaram no campo de treinamento
improvisado, Argilla olhou com uma expressao preocupada – Mas isso me deixa nervosa.
A questao e mais que entrar em combate... Ela nunca nem pegou numa arma antes.
- Argilla, voce sabe melhor do que ninguem que uma nove milímetros nao vale
muita coisa numa situaçao de combate real. Pra Sera, seria apenas uma maneira de se
defender. – disse Serph tambem olhando para Sera, que continuava totalmente
concentrada nos alvos – Alem do mais, do jeito que o Atma esta se espalhando e
crescendo no Lixao, ate uma magnum de alto calibre mal se qualifica como uma arma de
verdade. E ela so esta treinando com tinta, nao balas.
Outro tiro ecoou, e tinta vermelha se espalhou pela parede onde o alvo fora
desenhado. Nao passou nem perto do centro do círculo, mas pelo menos ela conseguiu
acertar a parede certa dessa vez.
- Nao e como se ela pudesse fazer mal a alguem com uma bala perdida. So vou
pensar em deixa-la usar balas de verdade depois que estiver bem melhor com essa mira.
- Certo... – Argilla mordeu os labios – Mas eu ainda nao entendo porque ela precisa
ter uma arma. Ela tem a nos para protege-la, nao tem? Estamos acostumados com esse
tipo de vida. Mas ela? Eu entendo o que o Heat esta pensando, mas...
- Mas o que?
- E difícil colocar em palavras. – respondeu Argilla depois de um momento – Mas
eu nao quero que ela faça parte dessa triste realidade de matar ou ser morto. Eu quero
que ela continue a pessoa gentil e bondosa que e. E agora a vejo tentando aprender a
matar, quando isso e tao diferente de tudo que ela e... Nao parece certo. Isso parte o meu
coraçao.
Serph ficou quieto por um tempo, apenas observando o esforço de Sera, incapaz
de encontrar palavras para responder.
- Estive conversando com Jinana. – continuou Argilla, num tom mais seco que
antes – Eu nao vou mais usar o sangue de Sera. E nem ela. Nos vamos matar e devorar os
nossos oponentes, assim como todos os outros. Porque e isso que nos somos agora.
- O que? – Serph ficou boquiaberto. Nao era Argilla quem resistia mais ferozmente
a fome do seu Atma, que queria mais desesperadamente que qualquer um voltar ao
normal?
- Nao se incomode. – interrompeu ela antes mesmo dele começar – Garanto que
nao desisti de mim mesma nem nada do tipo. Mas Jinana e eu conversamos a respeito e
chegamos a essa decisao juntas. Quando lutamos com aquela criatura esqueleto no
subsolo dos Solidos, eu finalmente entendi. E isso que eu sou agora. Quando eu esmaguei
o cranio daquele desgraçado, senti um calafrio. Mas ao mesmo tempo, foi tao, tao bom.
O senhor entende o que estou dizendo, nao e?
Argilla nao estava olhando para ele com seus olhos rosas de sempre. Agora eles
mostravam uma tonalidade levemente dourada.
- Sim. – Serph demorou um pouco para responder – Sei muito bem do que voce
esta falando.
Serph tambem havia sentido isso, incontaveis vezes, no calor da batalha: aquela
coisa detestavel dentro dele que atiçava repulsa e prazer ao mesmo tempo. Ate agora,
Argilla parecia nao querer reconhecer essa realidade.
- O sangue de Sera inibe isso. Ele deixa a gente se safar de matar e devorar, nos
permitindo fingir que ainda somos humanos, mas... – a voz de Argilla fraquejou, e uma
lagrima se formou no canto do seu olho – Por mais que eu nao queira me submeter a
isso, usar o sangue dela e como sugar a sua vida, pouco a pouco. Nao posso cometer a
hipocrisia de dizer que a estou protegendo enquanto a faço passar por isso. Nao e certo.
Serph deu um abraço carinhoso em Argilla. Ele podia imaginar o quanto ela e
Jinana se martirizaram com o assunto antes de chegar a essa decisao.
- Entao eu nao preciso mais do sangue de Sera. – disse Argilla depois de um breve
silencio, enrijecendo sua resoluçao – Eu vou lutar, vou vencer e vou devorar aqueles que
matar. E vou ficar mais forte, por ela. Nao quero fazer isso, mas se tenho que escolher
entre o meu bem-estar e o dela, escolho o de Sera mil vezes. Nao sei se algum dia nos
conseguiremos voltar a ser verdadeiramente humanos, mas, por enquanto, e isso que
nos somos. Aquela garota fez muito por nos. Nao importa o que vai acontecer comigo.
Eu vou pagar essa dívida.
- Pare com essa historia de “nao importa o que vai acontecer comigo”. – insistiu
Serph – Voce e um membro importante da minha equipe, Argilla. Nao ha uma so pessoa
na Embriao que “nao importa”. Isso inclui Sera, mas inclui voce tambem.
- E claro. Me desculpe. – Argilla ficou olhando por alguns momentos para a lagrima
na ponta do seu dedo antes de continuar – Mas ainda sou contra Sera carregar uma arma.
Nao me parece certo. E nem me fale da ideia do Heat de ela ameaçar se matar. Por que
cogitar uma situaçao dessas se estaremos fazendo o nosso trabalho de protege-la?
- Pense da seguinte forma, Argilla. – disse Serph, vendo Sera travar uma batalha
para trocar o pente da pistola – Nos vamos fazer tudo que pudermos para manter Sera
segura. Nao por causa de uma ordem da Igreja, mas porque nos – eu, a Embriao, Jinana
e todos os outros – decidimos fazer isso. Mas ha outras tribos aqui no Lixao, e todas estao
procurando por ela. E os Lobos e os Brutos sao muito fortes. Sem contar que nem
sabemos onde Mick, o Lesma, esta. Sera ainda tem muitos inimigos la fora.
- Eu sei disso, mas...
- Se nao fizermos tudo que pudermos, ou mesmo se fizermos, Sera pode acabar
sendo capturada. Nesse caso, se houvesse alguma coisa que ela pudesse fazer para
ganhar nem que seja um pouco de tempo, ou possivelmente criar uma abertura para nos,
nao seria melhor fazer? Ela carregar uma arma nao e uma ma opçao. Na pior hipotese,
se ela acabar tendo de usa-la, significa que nos ja falhamos. – a voz de Serph estava mais
seria agora – A essa altura, ao inves de apontar a arma para o inimigo ou para si mesma,
ela devia e usa-la em nos.
- Se ela acabar tendo de usar a arma, nos falhamos. – repetiu Argilla com um
suspiro – Tudo bem, eu entendo. Nos so precisamos mante-la segura. So isso. Nao
importa o que aconteça, eu vou protege-la. Se o senhor quer que ela carregue uma arma,
que seja. Mas saiba que ela nunca vai precisar usa-la. Eu nao vou deixar ninguem
encostar um dedo nela.
- Essa e a ideia, Argilla. – sorriu Serph, acomodando seu rifle nas costas – Nos
vamos proteger a Sera. Ninguem vai encostar um dedo nela. Ninguem fara mal a ela.
Um momento depois, Sera veio trotando ate eles com seus passinhos leves, a arma
pressionada com força contra o peito.
- Desculpa. – disse ela, parando para respirar – Nao sei direito o que aconteceu,
mas o gatilho nao mexe mais. Acho que emperrou. Eu ja olhei tudo, mas nao consegui
descobrir porque nao mexe.
- Deixa eu ver... Sera, as suas maos! – quando Argilla pegou a arma da garota com
um movimento profissional, sua voz de repente oscilou. Sera pareceu ficar confusa –
Olha quantos cortes! – exclamou Argilla.
As delicadas maos de Sera estavam sangrando em varias partes. Como ela estava
apertando a arma com muita força, o desvio do coice prendeu sua mao entre o polegar e
o indicador, rasgando a pele. Ela tambem adquiriu alguns arranhoes quando trocou o
peite desajeitadamente, e mais um quando raspou o dedo na trava de segurança.
- Sera, esta tudo bem. Voce nao precisa fazer isso se nao quiser. – Argilla envolveu
as maos da garota com as suas e a olhou nos olhos – Eu prometo que nos vamos te manter
segura, nao importa o que aconteça. Nao tem problema voce treinar com uma arma de
fogo, mas se e pra te machucar desse jeito...
- Argilla, pare. Por favor, me deixe fazer isso. – Sera falou com tanto desespero que
Argilla ficou muda – Fazer isso me deixa feliz. Eu me sinto mais proxima de voces,
fazendo algo que voces fazem.
Argilla estava sem palavras. Sera desviou o olhar, mas continuou falando:
- Eu quero poder fazer as coisas que voces fazem. Nao quero so ficar escondida
sem fazer nada enquanto todo mundo me protege. Eu sei que lutar deve ser assustador,
mas voces sempre deram um jeito. E voces tambem tiveram que aprender um dia, nao e?
Eu nao quero que mais ninguem se machuque por minha causa como aconteceu com o
Cielo. Eu... Eu quero poder lutar tambem e...
- Eu entendi, Sera. – disse Argilla. A garota estava a beira das lagrimas e ela nao
queria ver isso – Apenas nao se esforce alem do necessario. Por que nao paramos por
hoje e voce continua amanha? Se nao cuidarmos desses machucados, vai começar a doer
tanto que voce nem vai conseguir mirar mesmo. Lembre, eu sou a melhor atiradora da
Embriao, entao sei do que estou falando.
- Tudo bem. – o rosto melancolico de Sera finalmente abriu um sorriso – Acho que
esta bom por hoje. Voce acha que amanha eu ja consigo acertar o alvo?
- Heh. Vamos ver. Primeiro voce tem que cuidar dessas maos, senao nao vai acertar
nada. Vem.
Deixando Sera aos cuidados de Argilla, Serph seguiu em direçao a base para ter
sua reuniao com Gale. Assim que começou a andar, porem, uma voz desesperada gritou
o seu nome. Olhando ao redor, ele viu um membro da tribo correndo na sua direçao
vindo de um dos predios por perto. Instintivamente, Argilla colocou Sera atras de si.
- O que foi? Mick e Bat?
- Nao, nao e isso. E que... Eu... Nao sei direito. – o soldado tinha corrido tanto que
estava sem folego, curvado com as maos apoiadas nos joelhos. Seu rosto estava
contorcido de vergonha – Do outro lado da base, do nada um buraco se abriu no chao e...
Cerca de vinte Novatos apareceram.
- Vinte? – Serph mal pode acreditar no que ouvira. Um buraco se abrir do nada ja
era bastante bizarro, mas ouvir que um grupo de vinte pessoas tinha passado pelo
cordao de segurança da Embriao e chegado tao perto da base era ao mesmo tempo
improvavel e perturbador.
- Eles dizem que sao sobreviventes dos Lobos... O que nao faz nenhum sentido,
mas parece que a tribo foi... Engolida por alguma coisa.
- Como assim?
- Eu nao sei dizer, senhor. E parece que nem eles. So disseram que, antes que se
dessem conta, sua area inteira foi engolida, e o unico lugar para eles fugirem era o
subsolo.
A ideia de que algum Atma tinha ficado fora de controle cruzou a mente de Serph,
mas era difícil de acreditar que mesmo um grupo poderoso de Atmas ferais poderia
destruir tao rapidamente os Lobos, a segunda maior tribo de todo o Lixao.
- Quem esta la agora? – perguntou Serph.
- O bispo e Heat, senhor. Por ora, todos os invasores foram apreendidos. Eles nao
resistiram. Um dos Novatos parece ser o líder deles. Pediu para falar com o líder da
Embriao. O bispo recusou, mas Heat disse que devíamos comunicar o senhor.
Dada a natureza cautelosa de Gale, Serph entendia porque ele nao aprovaria o
líder da tribo aparecer na frente de um grupo desconhecido. Mas por que Heat pensaria
diferente?
- Eu ja vou para la. Voce vai na frente e diz aos outros que estou a caminho.
O soldado fez uma saudaçao e saiu correndo. Argilla e Sera, que ouviram tudo,
olhavam com suspeita.
- O que foi isso? – perguntou Argilla – Nao parece que estamos sob ataque.
- Algo estranho esta acontecendo. Eu vou verificar. Sera, e melhor voce parar por
hoje, cuidar desses ferimentos e descansar um pouco. Nao exagere.
Sera fez que sim, seu rosto palido. Apertou a pistola com força, como se fosse
algum tipo de amuleto da sorte, e Serph seguiu na direçao da base.
Aos meus fas de longa data, obrigada de novo, e aos que sao novos leitores, sejam
bem-vindos. Eu sou Yu Godai, e esta e a minha primeira publicaçao com a Hayakawa
Bunko JA.
A ideia original era que esse livro fosse publicado pela Kadokawa Shoten, mas ele
acabou sendo passado para a Fujimi Publishing, e de la para a Tokuma Shoten, e nesse
vai-e-vem, quando eu me dei conta, dez anos haviam se passado desde que eu comecei
o trabalho. Eu estava prestes a desistir, achando que a unica opçao seria uma publicaçao
independente. Nem sei como agradecer ao meu editor, Shiozawa-san da Hayakawa JA, e
ao meu contato, a Takatsuka-san, pela oportunidade de publicar esse livro, e pela sua
ajuda no refinamento do manuscrito. Tambem gostaria de agradecer ao Hirotaka Maeda
pelas ilustraçoes maravilhosas que agraciam as capas.
Este volume e o proximo compoem a primeira das tres partes da historia, que no
total vira em cinco volumes. Eu sei que essa e so a primeira parte de uma serie mais
longa, mas espero que todos leiam ate o fim. Obrigada mais uma vez.
2011 / Hayakawa Publishing Corp.