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e s t e a r t i g o foi elaborado originalmente para o SESC – Consolação (1998)
Fonte:www.institutoreichiano.com.br
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1.
Sou um corpo.
Sou um corpo vivo, pulsante.
Sou um corpo-sensores que capta o mundo e a mim mesma. Sou um corpo que pensa e que pensa a
si mesmo – sou um corpo informático;
Sou um corpo que age e se locomove, busca e expressa, se expande e se recolhe – sou um corpo
espacial que usa e cria espaço, cria mundos;
Sou um corpo que vibra e ressoa, corpo-vísceras, sou ondas internas nos mais variados pulsos,
rítmos e temperaturas – sou um corpo emocional;
Sou um corpo que busca ligação, que compartilha, sou um corpo que se aproxima e se distancia,
sou um corpo que faz relações – sou um corpo conectante.
Sou um corpo que vai do celular ao social e me experiencio como um continuum de experiências.
2.
Sou um corpo-processo.
Sou um corpo existencial.
Sou um processo contínuo de acontecimentos-em-mim.
Me experimento como um processo vivo que é, o tempo todo, atravessado por acontecimentos
internos (por exemplo: a passagem do corpo biológico nas diferentes idades em mim) e
acontecimentos externos.
Sou um processo, uma série de eventos simultâneos com fases e durações diferentes.
Sou um corpo que se forma com a própria experiência; vou me produzindo, usinando e me
metamorfoseando com os efeitos dos acontecimentos-em-mim. Assim produzo outras derivações
de “mim” e outros mundos (mundos de produção, mundos de ligação, mundos artísticos, mundos
de conhecimentos, mundo de poderes...)
3.
Todos nós temos essa experiência de sermos um processo vivo onde os novos acontecimentos que
nos atravessam imprimem em nós mudanças, e vemos assim, modos da gente ser, da gente se
relacionar, modos da gente se dizer, modos da gente se perceber – se alterarem.
(*)
Ana Lucia Rocha - Pedagoga. Trabalha com Educação Somática Existencial em consultório, grupos e empresas.
co-fundadora e professora do Centro de Educação Somática Existencial. Consultora de empresas da PADI -
Consultoria e Treinamento.
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4.
Sou um corpo vivo, pulsante, sou um processo contínuo que cria formas. Formas de si mesmo.
Experimento que me auto-construo o tempo todo fazendo formas, comigo mesma, para dar conta
dos acontecimentos que vão ocorrendo em mim mesma.
Vou fazer um convite para você: acesse a você mesmo neste momento, faça uma pausa na maneira
como você estava me lendo... Dê um tempo... Quem aparece aí?... O que altera em você ao ler este
parágrafo com este tipo de convite?... Perceba, caso este meu convite o tenha afetado, como está
reverberando em você?... Você pode ter a experiência que a engenharia de você mesmo, a sua
forma, se alterou. E...
É assim que vivemos a vida toda: metamorfoses em nossos estados modificando formas para dar
conta do que se passa em nós mesmos.
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Sou um corpo que contém em si mesmo dois grandes legados, eles são o arcabouço e a matéria
prima de todas as minhas formas.
Experimentamos esses dois legados como camadas que nos constitui (esses conceitos são
apresentados por Stanley Keleman no livro: “Corporificando a Experiência):
1) O corpo pré-pessoal: é o corpo herdado. Esta camada da experiência é o nosso corpo
biológico.
Acesse este corpo... e você experimenta músculos, vísceras, circulação, pulsação, ondas cerebrais,
instintos, apetites, comportamentos inatos, o fluxo do metabolismo...
Esta camada é comum a todos nós, é pré-dada, é um dom da natureza. É o patrimônio da
evolução-em-nós, é o presente da vida-em-nós.
2) O corpo pós-pessoal: somos seres datados. Recebemos o legado da cultura. É o nosso corpo
social.
Acesse este corpo... e você experimenta linguagens, tecnologias, posturas, valores, crenças, formas
de contato, sistemas de troca, sistemas de escolha, engenharias informacionais, fluxos de
conhecimento, fluxos de dinheiro, fluxos de poder, fluxos de expressão...
É o corpo das sociedades, das famílias, das políticas.
Nesta camada vivenciamos a socialização da biologia. A produção coletiva a partir da biologia. É
o patrimônio da fabricação do mundo-em-nós.
Estes dois corpos, estas duas camadas da nossa experiência, somos nós como matéria prima, a
plataforma de onde criamos subjetivação. Onde crio formas que respondem aos meus estados
afetados pelos acontecimentos.
Há muitos anos atrás me encantei com uma frase do Caetano Veloso: “como é bom poder tocar um
instrumento”. Essa frase repercutiu em mim.
Pensava comigo mesma, deve ser muito bom estar em certos estados de alma e poder transformar
isso em expressão. Ter a experiência interna alongando-se pelos meus dedos, roçando um
instrumento e que virasse som. Virasse forma, expressão no mundo.
Passados os anos, conheci o pensamento e as práticas corporalistas, entre elas, a que me responde
hoje, o pensamento de Stanley Keleman.
Hoje a frase do Caetano se transformou e se encarnou: como é bom poder usar a mim mesma –
criando forma, criando corpo ao que se passa em mim e por no mundo –criando existência –
solidificando a experiência processual via formas no mundo.
Essa é a nossa terceira camada de experiência, é o corpo pessoal. Nas outras duas camadas (pré-
pessoal e pós pessoal) o processo nos possui, são respostas ou do corpo herdado ou do corpo
social. Aqui eu possuo o processo – eu dialogo com a experiência-em-mim moldando formas.
O corpo pessoal é a maneira como lido, como trabalho os meus legados, é o como subjetivo o que
me afeta.
Acesse seu corpo pessoal... e você acessa as suas formas próprias de afeto, suas formas pessoais de
por limites ou propor aproximação. Acesse esse corpo e você traz as suas formas singulares de
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Podemos viver nossas vidas como vítimas ou desbravadores – como disse Stanley Keleman no
livro Realidade Somática.
Nós nascemos como corpo biológico da espécie e somos inserimos numa sociedade com o seu
repertório próprio de comportamentos, valores, sistemas de troca, sistemas de conhecimentos e de
poderes. Nestes dois corpos nós não exercemos escolha pessoal.
Os acontecimentos internos e externos nos afetam, nos atravessam e nos modificam, e, também
nesta esfera, não tem escolha pessoal. Não tem como evitar ser afetado.
Quantas vezes dizemos ou ouvimos: eu nasci assim, ou, eu sou assim. Ouvimos esta afirmação em
diferentes tons: melancólicos, autoritários, apegados...
Aqui aparece a questão: viver a vida vitimados pelas circunstâncias ou como fundadores de novos
jeitos de si ser?
Reconhecer que podemos pegar nossa vida nas mãos, pegar nossos jeitos de viver, e modificá-los
se constitui como o grande desafio para nossas vidas.
Vamos ver como essa tarefa é possível:
“O corpo fala por sensações, sentimentos, motilidades, portanto ele precisa falar de volta consigo
mesmo, de tal modo que possa influir em seu comportamento. Então o corpo influencia a si
mesmo moldando-se a si mesmo em ações, inibindo-se a si mesmo ou agindo em relação a si
mesmo. Isso ele faz através de um elegante sistema de feedback a que chamamos cérebro. O corpo
organiza a si mesmo para conversar consigo mesmo construindo para si um órgão capaz de receber
de volta seus padrões de ação e conversar consigo mesmo sobre eles.” (Processos de corporificação do
sujeito – cotejo com a neurociência)
A possibilidade que temos é influenciar o como nos encontramos. “Alterar sua situação de vida é
ser capaz de mudar seu funcionamento. Isso não significa apenas mudar a sua mente, mas o modo
como você usa a si mesmo.” (Realidade somática)
Pegar nosso processo de vida nas mãos é a tarefa de auto-gerenciar-se, é pilotar-se:
- usar a nós mesmos como fonte de informação, de pesquisa e de consulta;
- usar a nós mesmos para influirmos nos nossos estados atuais;
- usar a nós mesmos como desbravadores para outros jeitos de si ser;
- usar a nós mesmos para a criação de futuros.
O árduo e a maravilha da trajetória das pessoas e grupos é viver as mudanças, que ocorrem no
interjogo com os acontecimentos.
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Nossos estilos de vida, organizações de grupo, fluxos informacinais e tecnológicos são construções
meta-estáveis, que procuram dar conta dos acontecimentos externos e internos.
Às vezes temos a experiência de abrir mão de certos jeitos de viver (individualmente, em grupo, e,
nas organizações) porque estes jeitos perderam a sua validade - pois as coisas já não são como
antes e não podemos mais nos comportar como fazíamos.
E, às vezes, temos a experiência de jeitos de viver que aumentam a sua força, ganham potência,
ganham em criatividade - pois mudanças foram vividas e sua consequência foi o surgimento de
novas formas de se viver que surgiram exatamente da relação com o novo trazido pela própria
mudança.
Assim, podemos contemplar em nossas vidas estilos/formas:
- grudadas, ao como eram antes dos novos acontecimentos;
- viçosas, ganhando vida e aumentado potência;
- ágeis, podendo responder ativamente ao novo;
- desmanchando-se, pois não tem como se sustentar frente aos novos acontecimentos;
- complexificando-se, ampliando-se, em função do que o novo favoreceu;
- esboçando-se, rascunhando-se, topando incubar novos jeitos em função de responder aos efeitos
dos acontecimentos.
Temos a experiência, também de, em diferentes dimensões da nossa vida, estarmos com formas
diferentes. Por exemplo: na esfera do trabalho estar grudado a uma forma, e, na esfera da vida
afetiva estar viçoso; num casamento uma mulher, estar ágil, na relação com o marido, na forma de
mãe dos filhos e, simultaneamente, estar ensaiando uma nova forma de relação íntima de casal.
Stanley Keleman no livro Realidade Somática distingue três etapas do como vivemos esses
prosseguimentos do nosso processo de se formar na vida (processo formativo).
Cada uma dessas etapas das transições de vida, das mudanças em nossas vidas, tem características,
ritmos, formas, sentimentos e desafios que lhe são próprios.
“É inteiramente possível aprendermos a reconhecer o padrão das sensações mentais, musculares e
orgânicas que acompanham as transições de vida, ganhar intimidade com expressões bioquímicas,
emocionais, físicas e experienciais do processo vivo. Experimentar a nós mesmos dessa maneira
nos ajuda a desmanchar velhas atitudes de que já não precisamos e participar da autoformação.”
(Realidade somática )
1) Endings(1):
Interrompem o que estava estabelecido como sequencial e ordenado. Endings são uma
desconfiguração, algo está fenecendo, relações estão se modificando.
“Endings geram conflito entre ficar e partir. Cria-se um espaço, um vazio, um vácuo, tanto no
mundo objetivo quanto em nosso self emocional e neurológico.” (Realidade Somática)
Experimentamos uma tristeza que ultrapassa nossa compreensão, experimentamos desconforto,
um estranhamento-em-nós. Experimentamos lascas soltas de excitação que não se encaixam nas
nossas formas e corpos. Algo nos escapa.
Nossas edificações identitárias se desfocam e se corroem. Sustos, apreensões, arrepios, desamparo,
pausas e velocidades alteradas de ansiedade.
Uma das tentativas desesperadas na experiência do ending é manter todos os espaços e tempos
preenchidos, reconhecíveis. Quando terminamos alguma coisa um espaço vazio realmente surge.
(1)
Términos
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2) Middle-ground(2):
Pausas com consistência. Experiência de recepção e concepção.
O tempo muda seu curso linear. Sensações de tumultos criativos e silêncio. Incubação.
Sentimentos sem vetores definidos ou com multivetores, muitas imagens, hipóteses imaginárias,
restos e brotos de cotidiano, espaços em aberto.
Vivência do mundo dos sonhos nos momentos mais inesperados. E sonhos-percursores esboçando
possibilidades.
Há muitos anos atrás, não sei precisar o ano, houve no MASP uma grande exposição de desenhos e
rascunhos de Picasso. O MASP foi povoado por centenas de desenhos colocados ao longo dos
corredores, numa sequência que seguia as datas de criação. Ao ver esta exposição me encantei. A
profusão de desenhos feitos numa mesma semana. E uma figura que se esboçava num desenho, se
multiplicava. Ocupava lugares centrais em alguns, periféricos em outros. Outro rumo era seguido
ou deixado. Aquela figura, inicialmente mulher, virava mais andrógino, depois quase um bicho.
Um detalhe deste quase bicho era explorado até a exaustão. Multiplicava-se o quase bicho, e
transmutava-se, um desenho mais nítido, rico e singular de uma mulher – não era mais uma mulher
qualquer era aquela mulher. E aí, você reconhecia que era um dos esboços de quadros conhecidos.
Nesta exposição pude ter a experiência do onírico, da profusão criativa, da recepção, da
exploração, da escolha do gesto criativo.
Middle-ground é esta experiência inicial da exploração de Picasso. É seguir as trilhas das imagens,
sensações, sentimentos. É captar o mundo de outras formas, com outros tatos, com outros ouvidos,
com outros olhos. São profusões oceânicas e pausas. Caldos consistentes com substâncias e
químicas novas. Novas combinações.
É o convívio com o estranho-em-nós. Vamos nos imaginar comendo uma fruta – o mandaçá (pode
procurar no Aurélio, esta palavra não está lá, pois não existe!). Descascamos a fruta e nos
perguntamos: será que a casca é de comer? Deixa eu testar... A cor parece de... mas não é igual. É
diferente, é estranha. O caldo da fruta começa a escorrer pelas nossas mãos, uns vão cheirar, outros
testar a consistência deste caldo. Alguns vão pegar o mandaçá com todos os dedos, outras com
garfo e faca... Ora nos parece agradável, ora nos parece muito esquisito. Aí, chegou o momento de
morder! Fazemos caras e bocas, contraímos e expandimos os sensores da língua e da boca... Ora
desce redondo, ora queremos comparar com frutos conhecidos, ora queremos expulsar esse gosto
novo, e, em algum momento podemos deixar que a experiência nova do mandaçá nos possua!
(2)
Etapa intermediária
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O middle-ground nos ensina a nos sustentar neste caldo criativo e profícuo de nós mesmos.
Grávidos de nós. É a experiência do caos como presságio de novas configurações. Dentro desta
experiência de sensações, balbucios, ensaios, e de ir se configurando aos pouquinhos, vai-se
revelando o novo, vai-se revelando uma outra forma de nós mesmos com uma nova direção.
3) Forming(3):
“Do oceano do middle-ground, uma corrente somática de organização nos impulsiona em direção
ao crescimento.”(Realidade Somática, pag. 69)
A partir do middle-ground experimentamos intensidades, estados emocionais que vão, aos poucos,
se solidificando em formas. Descobrimos aspectos diferentes de nós mesmos, configuramos novas
necessidades e imaginamos novas formas de estar no mundo.
No forming usamos os recursos dos nossos tecidos e trechos/fragmentos dos nossos
comportamentos sociais e usinamos, conosco mesmo, formas novas de ser. Nos reconhecemos num
novo jeito.
Se no middle ground colhemos a abertura para novas experiências, sensações, necessidades,
aspirações, podemos, no forming, nos comprometer com o que queremos formar. Como diz
Stanley Keleman (Realidade Somática, pag.69): “É transformar o insight e a visão em ação muscular,
forma corporal e forma social.”
O forming é uma fase de excitação que gera movimento e aprendizagem. É um momento de
rascunhos de comportamento, hesitações, tentativas. É a fase do explorar e se familiarizar. É um
momento de mudar a ligação com pessoas, idéias e valores. É lidar com os afetos e os ecos que
estas novas formas geram em nós mesmos e nos mundos que nos cercam. Experiência de viço, de
frescor e de recepção dos efeitos das novas formas.
Convivência com êxitos e fracassos. Momentos de coragem de retomar o novo que estamos
corpando frente à ação automática dos hábitos.
Stanley Keleman, extrai do cotidiano uma experiência, e nos relata como o forming é como a
aprendizagem de andar de bicicleta. Há, no início, desajeitamentos, dificuldades, pequenas
sequências de coordenação, desafios para sequências de ação mais longas, novos tropeços e
inadequações, até que a nova habilidade se instaura.
(3)
Etapa formativa
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Forming é a experiência de sermos fundadores de nós mesmos. É a experiência de dar conta das
novas circunstâncias de vida. Exercitando e acompanhando as nossas novas formas, se torna
possível ultrapassar o medo de se arriscar diferente ao como nos conhecíamos.
As novas formas não se opõem às formas anteriores. Deleuze fala como estados sucessivos de
mim. O novo não é melhor que o velho. Também não estamos falando de substituições. Estamos
aqui experimentando a multiplicação de nós mesmos. São outras formas de mim que estou
incorporando. Somos uma assembléia de corpos. Se estamos criando outros graus na forma do
enternecer-se com o outro, não significa jogar fora a forma do enfrentamento ou da maternidade.
Quanto maior o nosso número de formas e graus de formas, maior possibilidade teremos de dar
conta do que surge em nosso processo de vida.
Bibliografia:
- Keleman, Stanley. Realidade somática. São Paulo, Summus Editorial, 1994.
- _____ Corporificando a experiência: construindo uma vida pessoal. São Paulo, Summus Editorial, 1995.
- _____ O Corpo diz sua mente. São Paulo, Summus Editorial, 1996.
- Favre, Regina – Sawaya, Rogerio. Processos de corporificação do sujeito – cotejo com a neurociência. São Paulo, acervo
do Centro de Educação Somática Existencial, 1997.
- Rolnik, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo, Estação Liberdade, 1989.