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APROPRIAÇÕES
Luiza Baptista1
Amanda Volotão2
Introdução
“Ele está em toda parte — às vezes no mesmo dia.”4 A máscara inspirada em
Guy Fawkes ganhou as ruas e, atualmente, os olhos puxados, as bochechas rosadas e o
sorriso misterioso já se tornaram mundialmente conhecidos. Entretanto, nem sempre
esse rosto teve o mesmo significado. Embora o uso da máscara como forma de
representação ideológica tenha se tornado recorrente, uma análise histórica mostra que
os ideais por trás da mesma não foram sempre os mesmos. Pelo contrário, não só foram
modificados, de acordo com as suas apropriações, como é possível perceber a
coexistência de ideologias contraditórias no mesmo artefato, denotando a essência
mítica da imagem.
Em 1605, Guy Fawkes, um soldado inglês católico inconformado com a
dominação protestante no país, foi preso, acusado de planejar explodir o parlamento
durante a reunião do rei Jaime I com os membros do corpo legislativo. Fawkes
pretendia, com seu ato, realizar um levante católico contra a dominação do
anglicanismo, que restringia os direitos políticos dos seguidores de sua religião. Guy e
seus aliados foram condenados à forca, entretanto, após ter sido torturado por mais de
1
Mestranda em Mídia e Mediações Socioculturais pela Escola de Comunicação da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. luizabaptista7@gmail.com
2
Mestranda em Mídia e Mediações Socioculturais pela Escola de Comunicação da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. avolotao@gmail.com
3
Junção de hacker e ativista.
4
Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/mascara-de-personagem-inspirado-em-conspirador-ingles-
usada-no-mundo-inteiro-8748761 Acesso em 20 de julho de 2013
uma semana, Fawkes acabou por cometer suicídio antes da execução. Seu ataque,
mesmo frustrado, entrou para a história como a Conspiração da Pólvora.
Após o acontecimento, Fawkes tornou-se vilão popular. Durante anos,
comemorou-se a data com fogueiras e Guy Fawkes era rechaçado como uma espécie de
Judas. Esse episódio é lembrado até hoje na Inglaterra com a música “Remember
Remember the fifth of November”5. A data instituía a celebração do dia em que o
Parlamento inglês foi salvo da destruição. A Conspiração da Pólvora marcou a história
inglesa, entretanto, com o passar do tempo, a conotação negativa dada ao personagem
opositor foi se perdendo, gradualmente.
Séculos mais tarde, já em 1982, a biografia de Guy - ou parte dela - retornou na
graphic novel de Alan Moore e David Linch. Servindo de inspiração, Guy teve sua face
adaptada à máscara utilizada por V, personagem principal da trama. V de Vingança
narra a história de um anarquista que almeja, por meio de ações terroristas, derrubar o
governo totalitário que conquistou o poder na Inglaterra fictícia dos anos 1990, após
uma guerra nuclear. Seu plano, tal como o de Fawkes, era explodir o Parlamento inglês.
Por meio da destruição desse símbolo político, V visava o desmantelamento do Estado.
Em 2006, lançou-se o filme homônimo, que, embora tenha sido alvo de diversas críticas
- parte destas especificamente voltadas a um reducionismo de adaptação no que tange
ao caráter político da trama presente na graphic novel -, foi considerado um sucesso de
bilheteria. Inúmeros produtos inspirados no longa-metragem foram lançados no
mercado, dentre eles a máscara utilizada por V. Logo a entidade Anonymous juntou-se
aos usuários desse artefato. Com o crescimento e a vinculação do grupo Anonymous a
diversos movimentos de protesto espalhados pelo mundo, também aumentava a
popularização da máscara de Guy Fawkes. Tal fato, obviamente, repercutiu no mercado,
que se aproveitou desse tão repentino sucesso para produzir mais artefatos ligados à
imagem de Fawkes.
Tendo em vista essa sucinta retrospectiva, é possível perceber que, apesar de ser
uma figura do século XVII, a imagem de Guy Fawkes encontra-se atualizada no
imaginário da sociedade contemporânea. A máscara utilizada pela personagem V, da
HQ e longa-metragem V de Vingança, inspirada no rosto do opositor inglês e, ainda,
aderida pelo grupo Anonymous, de certo modo, presentificou Guy Fawkes e permitiu
5
Remember, remember, the 5th of November / The gunpowder, treason and plot; / I know of no reason,
why the gunpowder treason / Should ever be forgot. Tradução: Lembre-se, lembre-se, do cinco de
novembro / Pólvora, traição e conspiração / Eu não vejo razão para que pólvora e a traição / deveriam ser
esquecidas.
que sua imagem se tornasse símbolo da disputa na produção de sentidos que marca o
embate de algumas ideologias contemporâneas. Sendo assim, esforçar-se para
compreender Guy Fawkes, a partir de sua presença e seus posicionamentos históricos,
enquanto símbolo, enquanto objeto apropriado, justifica-se na medida em que tal
tentativa propicia uma melhor compreensão acerca do modelo social vigente.
Neste âmbito, torna-se possível analisar as apreensões da máscara de Guy
Fawkes por grupos distintos, em diferentes períodos, à luz do conceito de mito proposto
por Roland Barthes (2012). De acordo com o autor, o mito é um sistema de
significação. Sendo assim, qualquer objeto pode ser tomado como um mito, desde que
possa ser julgado por um discurso, isto é, utilizado a partir de uma perspectiva social.
Ora, haja vista que a História tem o poder de transformar o real em discurso, a imagem
de Guy Fawkes e seus formatos de apreensão apresentam um caráter histórico, não
natural. Barthes afirma que o mito deve ser lido a partir da focalização de seu
significante, e encarado como sentido e forma. Segundo o autor:
Se quisermos relacionar o esquema mítico com uma história geral, explicar como
corresponde ao interesse de uma sociedade definida, em suma, passar da semiologia à
ideologia, é evidentemente no nível da terceira focalização que precisamos nos colocar;
é o próprio leitor dos mitos que deve revelar a função essencial destes últimos.
(BARTHES: 2012, p. 220)
6
“conjunto de recomendações e regras que determinam padrões técnicos e, com isso, governam o modo
como ‘tecnologias específicas são acordadas, adotadas, implementadas e usadas pelas pessoas no
mundo’” (MACHADO: 2012, p. 07)
7
Disponível em: http://www.anonymousbrasil.com/anonymous-eles-nao-esquecem-eles-nao-perdoam-
infografico/. Acesso 18 de julho de 2013.
8
http://www.anonymousbrasil.com/
9
Disponível em: http://exame.abril.com.br/tecnologia/noticias/anonymous-promete-escalada-na-guerra-
em-prol-do-wikileaks. Acesso 1o de setembro de 2013.
site, que recebia apoio em dinheiro para se manter na rede, o grupo atacou as
companhias responsáveis pelo bloqueio.
O grupo hacktivista, vinculado a uma ideia de mudança e de renovação política,
detentor de uma postura favorável à liberdade de expressão e desprovido de liderança,
adotou a máscara como seu grande símbolo em meados de 2008. Ainda no site, o
Anonymous explica que luta contra a injustiça e não se classifica como organização,
deixando claro que não possui liderança e faz questão de se manter distante de partidos
políticos. É interessante pensar a questão de heroísmo e vilania no atual contexto de
manifestações no Brasil. O uso da máscara de Fawkes colocou o grupo em evidência e o
Anonymous se posicionou a favor daqueles que foram às ruas, atuando como um dos
principais divulgadores dos protestos.
O grupo se denomina sempre como ideia. É possível, nesse sentido, fazer uma
relação com a cena inicial do filme V de Vingança. A cena mostra Guy Fawkes sendo
preso e morto, enquanto a voz da personagem Evy (Natalie Portman) conta que o
homem pode morrer ou ser esquecido, mas a ideia permanece e pode mudar o mundo.
Entende-se, assim, que o que importa não é o líder, o homem, e sim a ideia.
A organização defende que é importante buscar informações por si próprio,
repudiando a manipulação feita pelos meios de comunicação tradicionais. Através de
sua página no Facebook, é comum, inclusive, o compartilhamento de posts contra a
mídia tradicional e denúncias às manipulações. De certa forma, o grupo se coloca como
um Gatekeeper10 alternativo, determinando o que é legítimo de ser noticiado através da
fanpage e do site.
Nesse sentido, o conceito de convergência alternativa, de Henry Jenkins, é uma
definição apropriada que mostra o poder da internet, em especial das redes sociais, na
distribuição de informação sem a necessidade de aprovação dos meios de comunicação
dominantes: “Convergência alternativa: fluxo informal e às vezes não autorizado de
conteúdos de mídia quando se torna fácil aos consumidores arquivar, comentar os
conteúdos, apropriar-se deles e colocá-los de volta em circulação” (Jenkins, 2009,
p.377).
Tendo em vista os hackers como atores sociais, o Anonymous evidencia um
papel político de extrema importância na sociedade contemporânea. Segundo Galloway
(apud MACHADO, 2012), o conhecimento íntimo com os protocolos que norteiam a
10
Na definição de Jenkins (2009, p.46): “Gatekeeper (porteiro), no contexto dos meios de comunicação, é
um termo utilizado para se referir a pessoas e organizações que administram ou restringem o fluxo de
informação e conhecimento”.
estrutura vigente possibilita aos hackers uma posição de resistência que escapa ao
restante da população. O domínio da linguagem de dominação utilizada na cibercultura
proporciona aos hackers e, em especial, ao Anonymous a exploração das
potencialidades do espaço virtual para ações contrárias ao modelo vigente. Como afirma
Machado (2012),
mais do que isso, os hackers não ignoram ou desejam a morte do protocolo, mas são os
arautos das principais possibilidades dele. É por isso que as principais ações políticas
diretas empreendidas por hacktivistas valem-se dos próprios protocolos para resistir a,
ludibriar e hipertrofiar o controle. (MACHADO: 2012, p. 07)
Esse fluxo informal permite a circulação de conteúdos sem depender da mídia
tradicional, considerada manipuladora pelo Anonymous. O grupo utiliza a internet para
promover aquilo que acredita ser relevante e consegue fazer com que suas críticas sejam
compartilhadas pelos seguidores, que ultrapassam um milhão no Facebook. É essa
liberdade que permitiu a popularização do Anonymous e de seu símbolo principal, a
máscara de Fawkes.
Considerações finais
As manifestações de junho no Brasil destacaram a imagem de Guy Fawkes
através do uso da conhecida máscara, popularizada pelo filme V de Vingança. Neste
contexto de diferentes apropriações – pelo grupo Anonymous, pelo filme, pela HQ e
pela indústria cultural –, concluímos como o mito é assimilado por grupos com
intenções distintas, mas que acabam por se relacionar, influenciar e, até, legitimar suas
ideologias.
Como já foi dito, a regressão anormal do sentido à forma, realizada na fala
mítica, tem o poder de naturalizar o que, indiscutivelmente, é histórico. Nesta relativa
ausência de memória, deparamo-nos com uma máscara cuja representatividade se
coloca à disposição dos mais variados ideais. A peculiaridade, entretanto, encontra-se na
amplitude de usos dessa máscara: de produto comercializado a símbolo de resistência. A
simultaneidade das utilizações da máscara de Guy Fawkes atenta para o universo de
disputa simbólica.
A inter-relação entre as formas de apropriação denota a irreversibilidade do
caráter histórico do objeto – por mais que se intente eternizar a fala mítica, ela é um
discurso e, como tal, a máscara carrega uma memória. Por vezes, a perspectiva histórica
denota a contrariedade das leituras realizadas, como é o caso de Guy Fawkes. Mais do
que criticar tal acepção, entretanto, o presente artigo propõe um posicionamento similar
ao de Barthes. Conforme afirma o autor, “Exijo a possibilidade de viver plenamente a
11
Disponível em: http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2013/06/vendas-de-filme-e-hq-v-de-
vinganca-crescem-na-web-apos-protestos.html. Acesso em 13 de julho de 2013.
contradição de minha época, que pode fazer de um sarcasmo a condição da verdade”
(BARTHES: 2012, p. 12).
Deste modo, compreender tal viés propicia um melhor entendimento do próprio
modo de vida da sociedade contemporânea atual. Aludindo ao Anonymous, a máscara
de Guy Fawkes é mais do que uma ideia, ela é, antes, a reificação de um conjunto de
ideologias que, explicitamente, por se mostrarem contrárias, denotam o embate
simbólico presente na dinâmica contemporânea de lutas. Sendo assim, o desdobramento
dado à máscara – seja pelo grupo sem rosto Anonymous ou, ainda, pela indústria
cultural, um dos institutos mais mascarados e mascaradores por excelência – é, antes,
um exemplo claro de como as ideologias se apresentam e perpassam a vivência e a
compreensão humana.
Referências
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Janeiro: Zahar, 2006.
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MORIN, Edgar. Cultura de Massas no século XX: o Espírito do Tempo. Rio de
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Anônima: O Hackerativismo e a Cultura da Convegência. In: XVII Congresso de
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ROCHA, Everardo. Magia e Capitalismo: um estudo antropológico da publicidade.
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