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SOMOS UMA IDEIA: A MÁSCARA DE GUY FAWKES E SUAS

APROPRIAÇÕES

Luiza Baptista1
Amanda Volotão2

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo averiguar os modos de apropriação da


imagem do ativista inglês Guy Fawkes pela indústria cultural e pelo grupo hacktivista3
Anonymous, a partir da máscara inspirada em seu rosto. Com base no conceito de mito
proposto por Roland Barthes, este estudo visa à análise da produção, disseminação e
recepção da máscara, enquanto forma simbólica, bem como sua inserção e relevância na
legitimação de ideologias no contexto social em que se insere.

Palavras-chave: Mito, indústria cultural, Anonymous, Guy Fawkes

Introdução
“Ele está em toda parte — às vezes no mesmo dia.”4 A máscara inspirada em
Guy Fawkes ganhou as ruas e, atualmente, os olhos puxados, as bochechas rosadas e o
sorriso misterioso já se tornaram mundialmente conhecidos. Entretanto, nem sempre
esse rosto teve o mesmo significado. Embora o uso da máscara como forma de
representação ideológica tenha se tornado recorrente, uma análise histórica mostra que
os ideais por trás da mesma não foram sempre os mesmos. Pelo contrário, não só foram
modificados, de acordo com as suas apropriações, como é possível perceber a
coexistência de ideologias contraditórias no mesmo artefato, denotando a essência
mítica da imagem.
Em 1605, Guy Fawkes, um soldado inglês católico inconformado com a
dominação protestante no país, foi preso, acusado de planejar explodir o parlamento
durante a reunião do rei Jaime I com os membros do corpo legislativo. Fawkes
pretendia, com seu ato, realizar um levante católico contra a dominação do
anglicanismo, que restringia os direitos políticos dos seguidores de sua religião. Guy e
seus aliados foram condenados à forca, entretanto, após ter sido torturado por mais de

1
Mestranda em Mídia e Mediações Socioculturais pela Escola de Comunicação da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. luizabaptista7@gmail.com
2
Mestranda em Mídia e Mediações Socioculturais pela Escola de Comunicação da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. avolotao@gmail.com
3
Junção de hacker e ativista.
4
Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/mascara-de-personagem-inspirado-em-conspirador-ingles-
usada-no-mundo-inteiro-8748761 Acesso em 20 de julho de 2013
uma semana, Fawkes acabou por cometer suicídio antes da execução. Seu ataque,
mesmo frustrado, entrou para a história como a Conspiração da Pólvora.
Após o acontecimento, Fawkes tornou-se vilão popular. Durante anos,
comemorou-se a data com fogueiras e Guy Fawkes era rechaçado como uma espécie de
Judas. Esse episódio é lembrado até hoje na Inglaterra com a música “Remember
Remember the fifth of November”5. A data instituía a celebração do dia em que o
Parlamento inglês foi salvo da destruição. A Conspiração da Pólvora marcou a história
inglesa, entretanto, com o passar do tempo, a conotação negativa dada ao personagem
opositor foi se perdendo, gradualmente.
Séculos mais tarde, já em 1982, a biografia de Guy - ou parte dela - retornou na
graphic novel de Alan Moore e David Linch. Servindo de inspiração, Guy teve sua face
adaptada à máscara utilizada por V, personagem principal da trama. V de Vingança
narra a história de um anarquista que almeja, por meio de ações terroristas, derrubar o
governo totalitário que conquistou o poder na Inglaterra fictícia dos anos 1990, após
uma guerra nuclear. Seu plano, tal como o de Fawkes, era explodir o Parlamento inglês.
Por meio da destruição desse símbolo político, V visava o desmantelamento do Estado.
Em 2006, lançou-se o filme homônimo, que, embora tenha sido alvo de diversas críticas
- parte destas especificamente voltadas a um reducionismo de adaptação no que tange
ao caráter político da trama presente na graphic novel -, foi considerado um sucesso de
bilheteria. Inúmeros produtos inspirados no longa-metragem foram lançados no
mercado, dentre eles a máscara utilizada por V. Logo a entidade Anonymous juntou-se
aos usuários desse artefato. Com o crescimento e a vinculação do grupo Anonymous a
diversos movimentos de protesto espalhados pelo mundo, também aumentava a
popularização da máscara de Guy Fawkes. Tal fato, obviamente, repercutiu no mercado,
que se aproveitou desse tão repentino sucesso para produzir mais artefatos ligados à
imagem de Fawkes.
Tendo em vista essa sucinta retrospectiva, é possível perceber que, apesar de ser
uma figura do século XVII, a imagem de Guy Fawkes encontra-se atualizada no
imaginário da sociedade contemporânea. A máscara utilizada pela personagem V, da
HQ e longa-metragem V de Vingança, inspirada no rosto do opositor inglês e, ainda,
aderida pelo grupo Anonymous, de certo modo, presentificou Guy Fawkes e permitiu

5
Remember, remember, the 5th of November / The gunpowder, treason and plot; / I know of no reason,
why the gunpowder treason / Should ever be forgot. Tradução: Lembre-se, lembre-se, do cinco de
novembro / Pólvora, traição e conspiração / Eu não vejo razão para que pólvora e a traição / deveriam ser
esquecidas.
que sua imagem se tornasse símbolo da disputa na produção de sentidos que marca o
embate de algumas ideologias contemporâneas. Sendo assim, esforçar-se para
compreender Guy Fawkes, a partir de sua presença e seus posicionamentos históricos,
enquanto símbolo, enquanto objeto apropriado, justifica-se na medida em que tal
tentativa propicia uma melhor compreensão acerca do modelo social vigente.
Neste âmbito, torna-se possível analisar as apreensões da máscara de Guy
Fawkes por grupos distintos, em diferentes períodos, à luz do conceito de mito proposto
por Roland Barthes (2012). De acordo com o autor, o mito é um sistema de
significação. Sendo assim, qualquer objeto pode ser tomado como um mito, desde que
possa ser julgado por um discurso, isto é, utilizado a partir de uma perspectiva social.
Ora, haja vista que a História tem o poder de transformar o real em discurso, a imagem
de Guy Fawkes e seus formatos de apreensão apresentam um caráter histórico, não
natural. Barthes afirma que o mito deve ser lido a partir da focalização de seu
significante, e encarado como sentido e forma. Segundo o autor:
Se quisermos relacionar o esquema mítico com uma história geral, explicar como
corresponde ao interesse de uma sociedade definida, em suma, passar da semiologia à
ideologia, é evidentemente no nível da terceira focalização que precisamos nos colocar;
é o próprio leitor dos mitos que deve revelar a função essencial destes últimos.
(BARTHES: 2012, p. 220)

É necessário respeitar a estrutura dinâmica mitológica, consumindo o mito como


uma história verdadeira e, ao mesmo tempo, irreal. Neste viés, esta pesquisa objetiva,
justamente, a análise da apropriação de Guy Fawkes e seus feitios míticos, refletindo
acerca não só das suas apreensões pela indústria cultural e pelo Anonymous, mas
também das significações envolvidas nesses atos - seu contexto, seus motivos, suas
consequências, suas formas de consumo e, principalmente, as ideologias por detrás
dessas ações.
Anonymous: gatekeepers na rede
Para discorrer acerca do Anonymous e seu papel na sociedade contemporânea,
torna-se necessário tratar da concepção de hacking e de sua transformação histórica que
culmina, em última instância, na categoria do hackativismo. Tais conceitos estão
imbricados e, vistos com base na análise da sociedade de controle, proposta por
Galloway (apud MACHADO: 2012), denotam a relevância do tema na construção
simbólica atual.
Para o autor, estamos imersos em um tipo de sociedade de controle deleuziano,
reconfigurada segundo os recentes aparatos tecnológicos e, fundamentalmente, a
internet, que promovem uma configuração de poder pautada no controle excessivo por
meio do protocolo6. Neste cenário, o termo hacking que, ao longo da história, já
representou um hobby juvenil – na época do boom da internet – e, após os atentados ao
World Trade Center, tornou-se sinônimo de cibercriminosos, ganha um viés político.
Assim, emerge o termo hackativismo em paralelo à consolidação do Anonymous.
Contra a corrupção e a favor da liberdade de expressão, o grupo Anonymous
surge em 2004 em um fórum de compartilhamento de imagens, o 4chan. Nesse fórum,
os usuários postavam sem revelar a identidade; eram anônimos, e os posts não ficavam
arquivados. As primeiras ações do grupo foram ataques feitos por pura diversão, o
caráter político foi assumido mais tarde, após episódios como o trolling à Igreja de
Cientologia norte-americana e o posicionamento em defesa do Wikileaks. A imagem do
Anonymous, a partir desses fatos, muda gradualmente sua base: de um grupo de
indivíduos não identificados se divertindo, o Anonymous começa a delinear-se como
uma coletividade que atua politicamente.
Em um infográfico 7 apresentado no site brasileiro do grupo8, a história do
Anonymous é contada. O próprio grupo faz a indagação: herói ou vilão? E respondem:
“a resposta depende de quando... e para quem”. O tom de ameaça reside também no
lema do grupo: “Nós somos Anonymous; Nós somos muitos; Não esquecemos; Não
perdoamos; Nos aguardem”.
Essa oposição estabelecida entre herói e vilão é vista claramente no filme V de
Vingança, que serviu de inspiração para o grupo hacktivista. Na adaptação
cinematográfica da história de Guy Fawkes, o personagem é considerado um vilão para
o governante ditador e seus aliados, enquanto é visto como herói pelos oprimidos, que
percebem nele uma chance de lutar contra a dominação. Nesse sentido, a cena final é
emblemática: o povo vai às ruas com máscaras de Fawkes para marcar a oposição ao
regime, transformando o personagem que era tachado de vilão em herói.
De forma semelhante, o grupo Anonymous trabalha com essa oposição. Para
aqueles que sofrem o ataque hacker, eles são os vilões. Mas podem ser os heróis para os
que são defendidos, como no caso de apoio ao Wikileaks em 2010 9. Quando a conta do
fundador do Wikileaks, Julian Assange, foi bloqueada, assim como a conta do próprio

6
“conjunto de recomendações e regras que determinam padrões técnicos e, com isso, governam o modo
como ‘tecnologias específicas são acordadas, adotadas, implementadas e usadas pelas pessoas no
mundo’” (MACHADO: 2012, p. 07)
7
Disponível em: http://www.anonymousbrasil.com/anonymous-eles-nao-esquecem-eles-nao-perdoam-
infografico/. Acesso 18 de julho de 2013.
8
http://www.anonymousbrasil.com/
9
Disponível em: http://exame.abril.com.br/tecnologia/noticias/anonymous-promete-escalada-na-guerra-
em-prol-do-wikileaks. Acesso 1o de setembro de 2013.
site, que recebia apoio em dinheiro para se manter na rede, o grupo atacou as
companhias responsáveis pelo bloqueio.
O grupo hacktivista, vinculado a uma ideia de mudança e de renovação política,
detentor de uma postura favorável à liberdade de expressão e desprovido de liderança,
adotou a máscara como seu grande símbolo em meados de 2008. Ainda no site, o
Anonymous explica que luta contra a injustiça e não se classifica como organização,
deixando claro que não possui liderança e faz questão de se manter distante de partidos
políticos. É interessante pensar a questão de heroísmo e vilania no atual contexto de
manifestações no Brasil. O uso da máscara de Fawkes colocou o grupo em evidência e o
Anonymous se posicionou a favor daqueles que foram às ruas, atuando como um dos
principais divulgadores dos protestos.
O grupo se denomina sempre como ideia. É possível, nesse sentido, fazer uma
relação com a cena inicial do filme V de Vingança. A cena mostra Guy Fawkes sendo
preso e morto, enquanto a voz da personagem Evy (Natalie Portman) conta que o
homem pode morrer ou ser esquecido, mas a ideia permanece e pode mudar o mundo.
Entende-se, assim, que o que importa não é o líder, o homem, e sim a ideia.
A organização defende que é importante buscar informações por si próprio,
repudiando a manipulação feita pelos meios de comunicação tradicionais. Através de
sua página no Facebook, é comum, inclusive, o compartilhamento de posts contra a
mídia tradicional e denúncias às manipulações. De certa forma, o grupo se coloca como
um Gatekeeper10 alternativo, determinando o que é legítimo de ser noticiado através da
fanpage e do site.
Nesse sentido, o conceito de convergência alternativa, de Henry Jenkins, é uma
definição apropriada que mostra o poder da internet, em especial das redes sociais, na
distribuição de informação sem a necessidade de aprovação dos meios de comunicação
dominantes: “Convergência alternativa: fluxo informal e às vezes não autorizado de
conteúdos de mídia quando se torna fácil aos consumidores arquivar, comentar os
conteúdos, apropriar-se deles e colocá-los de volta em circulação” (Jenkins, 2009,
p.377).
Tendo em vista os hackers como atores sociais, o Anonymous evidencia um
papel político de extrema importância na sociedade contemporânea. Segundo Galloway
(apud MACHADO, 2012), o conhecimento íntimo com os protocolos que norteiam a

10
Na definição de Jenkins (2009, p.46): “Gatekeeper (porteiro), no contexto dos meios de comunicação, é
um termo utilizado para se referir a pessoas e organizações que administram ou restringem o fluxo de
informação e conhecimento”.
estrutura vigente possibilita aos hackers uma posição de resistência que escapa ao
restante da população. O domínio da linguagem de dominação utilizada na cibercultura
proporciona aos hackers e, em especial, ao Anonymous a exploração das
potencialidades do espaço virtual para ações contrárias ao modelo vigente. Como afirma
Machado (2012),
mais do que isso, os hackers não ignoram ou desejam a morte do protocolo, mas são os
arautos das principais possibilidades dele. É por isso que as principais ações políticas
diretas empreendidas por hacktivistas valem-se dos próprios protocolos para resistir a,
ludibriar e hipertrofiar o controle. (MACHADO: 2012, p. 07)
Esse fluxo informal permite a circulação de conteúdos sem depender da mídia
tradicional, considerada manipuladora pelo Anonymous. O grupo utiliza a internet para
promover aquilo que acredita ser relevante e consegue fazer com que suas críticas sejam
compartilhadas pelos seguidores, que ultrapassam um milhão no Facebook. É essa
liberdade que permitiu a popularização do Anonymous e de seu símbolo principal, a
máscara de Fawkes.

O mito Guy Fawkes, hoje


De acordo com Barthes, o mito é uma fala. Sendo assim, qualquer objeto - oral,
escrito, ou até mesmo uma representação visual - pode ser apropriado e transformado
em uma figura mítica. A apreensão de determinados objetos, em detrimento de outros,
diz muito sobre a sociedade que os circunda. Como afirma o autor, não há uma
manifestação de todos os mitos num mesmo momento. Muitos mitos tendem a
desaparecer, enquanto outros os substituem. Sendo assim, embora se apresente como
algo naturalizado e eterno, o mito é intrinsecamente histórico. A validade de certas
mitologias sobre uma sociedade específica só pode ser justificada pelo uso social dado a
elas por determinados grupos, a partir de contextos sociais específicos.
Logo, a ação de apropriar-se de um objeto e de mitificá-lo não é aleatória,
tampouco acidental. Haja vista seu suposto caráter ahistórico e a presença da
intencionalidade que o permeia, o mito apresenta-se ao seu leitor como um sistema
indutivo. Assim, o consumidor do mito encara-o como um sistema de fatos que, com
sua pretensa vinculação a uma “verdade”, não permite espaços para questionamentos ou
juízos. Tem-se, aqui, o princípio do mito: naturalizar a história, legitimando uma
ideologia.
Ora, à medida que se constrói e que se mantém no universo da linguagem, o
mito nada mais pode ser do que uma instância vinculada a ideais. Neste caso, o mito
cria-se no campo em que o conceito deforma o sentido, sua ação alienante funciona
segundo uma dada intencionalidade. Como fala roubada, restituída, reformulada e
direcionada, o mito é, ou melhor, faz-se essencialmente ideológico.
Verifica-se assim que a primeira leitura, realizada por David Linch e Alan
Moore, já denota uma mitificação de Fawkes. Ao escrever a graphic novel, Moore e
Linch tornaram o opositor inglês inspiração para V, a partir do despojamento e da
redução de sua memória. Ora, V, tal como Fawkes, estava insatisfeito com o momento
político do país e, por isso, pretendia explodir o Parlamento inglês, pondo à prova a
possibilidade de sobrevivência de uma determinada ordem política com a destruição de
um de seus maiores símbolos institucionais. Mas, ao contrário do que pode parecer, Guy
Fawkes não se limitava tão somente a esta ideia, sua existência vai além da
característica apropriada e disseminada na confecção da história de V.
O poder do mito está, justamente, no fato de notificar e impor. Ao ler sobre
Fawkes, sob a ótica de V, já não é possível encontrar a corporalidade de Guy, somente
sua existência. Ele está ali, a partir de seu rosto representado, mas já não carrega sua
história. Pelo menos, apresenta-se como se não possuísse uma. A transformação de
Fawkes em mito é perceptível neste jogo: a máscara está ali e é possível constatar que é
de Guy Fawkes. Na verdade, o leitor é notificado de que se trata de Fawkes, nada é
escondido. Entretanto, o Guy Fawkes histórico perde sua substancialidade; já não mais
existe, foi reduzido. O mito inicia-se no exato ponto onde se finaliza o sentido.
Como leitora, eu não me aproximo efetivamente do Fawkes “real”, na história de
V, mas tão somente do Fawkes, segundo uma leitura já realizada - a perspectiva de V,
de Moore e de Linch, do momento em que viviam, dos duros anos do governo de
Margaret Thatcher e ainda sob a influência da Guerra Fria. Para Moore, Linch, V, o
momento político, o contexto social, o importante era construir uma voz que tratasse de
Guy Fawkes, opositor inglês que intentava explodir o Parlamento. O restante do
conteúdo que caracterizava sua materialidade é, portanto, distanciado, intencionalmente,
de modo a corroborar com uma ideia pré-estabelecida.
O objeto, porém, pode ser mitificado por meio de diferentes mãos e, às vezes, de
maneira simultânea. Ao adaptar a narrativa de V de Vingança para o cinema, uma nova
apropriação é realizada. O personagem V já não era mais o V de Moore e Linch; os
tempos eram outros, as intenções também. A apropriação de Guy por V já competia ao
diretor James McTeigue, ao produtor Joel Silver, ao irmãos Wachowski, ao ator Hugo
Weaving, à indústria cinematográfica de superproduções, à indústria cultural, ao
mercado, aos consumidores ávidos por filmes de ação, dentre outros.
Mesmo com suas peculiaridades, as apropriações da HQ e do longa-metragem,
em menor e maior proporção, respectivamente, podem ser tratadas a partir de uma
mitologia baseada na lógica de mercado. Independentemente das intenções dos
profissionais, é factual afirmar que a lógica de mercado não só estava presente na
elaboração desses produtos, como foi fator essencial no modo como tais apreensões
foram realizadas. Enfim, a biografia de Guy Fawkes foi apropriada, em grande plano,
segundo uma lógica burguesa.
Barthes defende que a sociedade burguesa, embora seja o nosso tipo de
sociedade, apagou seu nome, enquanto fato ideológico. Tal atitude não representa,
entretanto, o fim da burguesia: de maneira oposta, a burguesia, sob seu falso
desaparecimento, pôde assim espalhar-se pelas diversas esferas da sociedade como algo
anônimo e naturalizado. Ao pensar em entretenimento, rituais sagrados, aprendizado,
economia, educação, temos incutida em nosso inconsciente coletivo uma lógica
burguesa, mesmo que não se afirme explicitamente. Guy Fawkes é, assim, um exemplo
desse fato, uma vez que a apropriação da imagem do mesmo em produtos da indústria
cultural, valorados e comercializados denota uma dada dinâmica mercadológica.
Eis o mito de Guy Fawkes da sociedade burguesa: um produto com um preço
que varia, de acordo com sua popularidade e demanda, um mito purificado e
simplificado que, na sua dita inocência, não solicita explicação. A metalinguagem
presente no mito distancia o sentido primeiro. A fala mítica mostra-se, assim, uma fala
naturalizada e, principalmente, despolitizada. “Este vestígio político, a linguagem-
objeto, que fala as coisas, pode manifestá-lo [o ato humano] facilmente; com muito
menos facilidade o fará a metalinguagem, que fala das coisas. Ora, o mito é sempre
metalinguagem.” (BARTHES: 2012, p. 235) A complexidade de Guy Fawkes é retirada
de sua própria imagem. Apresenta-se de modo que não precisa ser explicado. Sua
memória é apagada.
Entretanto, como afirma Barthes, há um modo de fala que se opõe ao mito:
aquela que mantém sua essência política. Ao invés de manter a história distante, quase
ausente, é possível ter uma linguagem por onde o indivíduo “age o objeto”. Transforma
a fala no próprio ato. “É por produzir uma fala plenamente, isto é, inicialmente e
finalmente política, e não, como o mito, uma fala inicialmente política e finalmente
natural, que a revolução exclui o mito” (BARTHES: 2012, p. 238).
O caso da apropriação da máscara, pelo grupo Anonymous, desperta a
possibilidade de supressão da fala mítica. Quando nos deparamos com um grupo
hacktivista que se utiliza, de modo estratégico e ideológico, da máscara de Guy Fawkes
para propor, efetivamente, mudanças na ordem política e esse artefato começa a circular
em diversas manifestações, nota-se o deslocamento do campo subjetivo para o objetivo.
É a retomada das ações concretas - a máscara sai, mesmo que de modo parcial, da
ordem teórica, da metalinguagem, para se tornar ação, presente na composição dos atos
humanos contemporâneos.
Embora o Anonymous baseie-se na máscara, devido à identificação com as
ideias defendidas pela personagem V, os princípios da história de Guy Fawkes talvez
estejam mais latentes nesta última releitura, se comparada às apropriações realizadas
pela indústria cultural. A lógica de mercado torna contraditória e superficial a releitura
de Guy Fawkes da HQ e, principalmente, do cinema. A máscara, sendo um produto
oriundo da indústria de entretenimento, torna-se um aparelho ideológico que, de forma
oposta a sua representatividade primeira, reforça o sistema vigente.
Contudo, quando a máscara retoma seu caráter político, a partir do Anonymous,
o que se vê é uma repolitização de Guy Fawkes. De artefato de entretenimento, ele
recebe uma nova e frutífera carga - a política. Não se fala mais sobre Guy Fawkes, fala-
se Guy Fawkes. “...a burguesia se mascara como burguesia, e esse mascarar-se produz o
mito; a revolução se ostenta como revolução e, dessa forma, suprime o mito”
(BARTHES: 2012, p. 238)
Há de convir, entretanto, que o grupo Anonymous e sua popularização entre os
manifestantes do mundo todo ainda é um fato extremamente recente. Sendo assim, não
é possível analisar, de modo contundente, se estamos, de fato, frente a uma revolução ou
se é, apenas, um mito no movimento opositório. Barthes salienta que o mito existe na
medida em que a esquerda não é revolução. Quando a revolução se transforma em
esquerda, permite-se o mascaramento, deforma-se enquanto Natureza, aceitando a
produção de uma metalinguagem característica do mito. Entretanto, vivendo na
esquerda, o mito tende a morrer rápido, visto sua pobreza e a sua incapacidade de se
reinventar.
O Anonymous, a adoção da máscara de Guy Fawkes, suas ações e sua influência
nas manifestações ocorridas nos dias de hoje em diversos países podem representar uma
supressão do mito da máscara de Guy Fawkes, criado e alimentado pela indústria
cultural. Porém há, também, a possibilidade de ser apenas mais uma releitura mítica de
Guy Fawkes, agora por um movimento de esquerda, tendendo a definhar e falecer
prematuramente.
De qualquer modo, é importante notar que a nossa sociedade é, de acordo com
Barthes, uma área privilegiada no que tange às significações míticas. Guy Fawkes é
apenas um dos inúmeros exemplos de instâncias que são, ao mesmo tempo, causas e
efeitos do universo simbólico contemporâneo e que, por isso mesmo, devem ser
estudadas, de modo a refletir acerca do próprio tipo de sociedade a que estamos
condicionados e das ideologias que vivem entre nós e que, até certo ponto, nos definem.

Indústria cultural: apropriação monetária de um mito


Tendo em vista o contexto de indústria cultural, é importante entender a
sociedade em que essa indústria se posiciona e consegue se manter lucrativa: a
sociedade do consumo. Segundo Bauman (2007), o consumo é uma condição
permanente, que o ser humano, assim como outros seres vivos, possui como elemento
inseparável da sua sobrevivência biológica. Tendo em vista que o consumo faz parte da
história da humanidade, o fato deste conceito ser considerado o rótulo da nossa
sociedade atenta para a relevância do fenômeno na dinâmica social contemporânea.
Cabe, portanto, questionar: o emprego deste termo sinaliza para algum tipo específico
de consumo ou para um determinado tipo de sociedade, com arranjos institucionais,
princípios classificatórios e valores próprios?
De acordo com Lívia Barbosa (2010), seriam as duas coisas, simultaneamente.
Caracterizada como a sociedade do consumo de signo, Schweriner (2010) afirma que se
trata de uma sociedade materialista, hedonista, narcisista, voltada para o dinheiro e
fundamentalmente caracterizada pela novidade, abundância, esbanjamento,
mercadorias-signo, moda e descarte constante de mercadorias.
Lipovetsky (2007) intitula este momento como o da sociedade de hiperconsumo.
Segundo o autor, o modelo de consumo, neste período, é individualista, caracterizado
pela ênfase no valor simbólico da mercadoria e numa lógica desinstitucionalizada,
subjetiva e emocional, em que não só as motivações superam as finalidades, como o
consumo, enquanto fenômeno, desloca-se de um caráter ostentatório para um caráter
experiencial. Dessa forma, o consumo se encarrega de uma função identitária: “Revelo,
ao menos parcialmente, quem eu sou, como indivíduo singular, pelo que compro, pelos
objetos que povoam meu universo pessoal e familiar, pelo signo que combino ‘à minha
maneira’.” (LIPOVETSKY, 2007,p.44).
A indústria cultural busca atender aos anseios desse indivíduo que se posiciona
como parte da sociedade através daquilo que consome. No caso tratado neste artigo, a
apropriação da figura de Guy Fawkes é identificada pela indústria e transformada em
algo lucrativo.
Ao ser apropriada pela HQ V de Vingança, a imagem de Guy Fawkes é
ressignificada a partir de um novo discurso, ainda que o personagem seja inspirado no
opositor inglês. Desta forma, a HQ apropria-se da imagem de Fawkes, conservando
algumas características de sua história que endossam a trama - tais como o caráter
político, a ideia de explodir o Parlamento britânico - e, ao mesmo tempo, afastando-se
de outras, não tão interessantes a esta nova leitura - como as motivações de Guy e sua
ligação com o catolicismo. Oferecida ao consumidor, a máscara entra na lógica do
consumo, ainda que para um público segmentado.
Num segundo momento, a indústria cinematográfica produz um filme inspirado
na obra de Alan Moore, apropriando-se novamente da imagem de Fawkes e, mais uma
vez, empregando novos significados à máscara. A reapropriação chega a um público
mais amplo e é feita de maneira controlada, com produtos pensados especificamente
para os consumidores que a indústria pretende atingir.
Edgar Morin explica como a indústria cultural busca sempre apresentar seu
produto como algo novo e único, mesmo que seja uma reapropriação de algo do
passado. O autor coloca como exemplo o que a imprensa faz com os acontecimentos,
que são retrabalhados em moldes específicos para garantir a unicidade (2011, p.15).
Morin indica um conflito entre a originalidade buscada e a estrutura burocratizado-
padronizada da indústria:
A análise estrutural nos mostra que se podem reduzir os mitos a estruturas matemáticas.
Ora, toda estrutura constante pode se conciliar com a norma industrial. A indústria
cultural persegue a demonstração à sua maneira, padronizando os grandes temas
romanescos, fazendo clichês dos arquétipos em estereótipos. (2011, p.16)

Neste contexto, é importante perceber que não só a indústria cria o consumidor,


o caminho inverso também acontece. Com a popularização da sociabilidade através da
internet, em especial pelas redes sociais, um grupo – como foi o caso do Anonymous –
pode expandir sua influência e fazer com que milhares de pessoas passem a manifestar
interesse por um produto ou imagem específico. No caso do opositor Guy Fawkes, o
grupo ajudou a reinserir, de modo mais significativo, sua imagem no mercado. A
apropriação por um grupo totalmente virtual apresenta situações novas para o mercado,
que acaba tendo que atender a demandas criadas pelo consumidor na internet.
Como na indústria automobilística – assim como em qualquer outro segmento
industrial –, a indústria do entretenimento tem como objetivo final a venda. Com a
recolocação no mercado de um produto, é possível retomar uma questão apontada por
Adorno e Horkheimer: “Não somente os tipos das canções de sucesso, os astros, as
novelas ressurgem ciclicamente como invariantes fixos, mas o conteúdo específico do
espetáculo é ele próprio derivado deles e só varia na aparência” (2006, p. 103).
A apropriação da máscara de Guy Fawkes pelo Anonymous, ao contrário da
apropriação da indústria, não é controlada. Como a principal divulgação do grupo é na
rede, a disseminação de conteúdo e exposição da imagem não acontece segundo padrões
pré-determinados. Como um conteúdo viral, os discursos e posts do Anonymous se
espalham nas redes sociais e muitas vezes perdem até a referência.
Ao utilizar uma máscara conhecida pelo público, o Anonymous facilita a
identificação. O grupo, que utiliza ações hackers como forma de vingança, chega ao
público com uma imagem ligada, principalmente pelo filme, a uma figura de luta e
revolta contra o governo. De certa maneira, é essa imagem que legitima o grupo.
Mesmo sem líder, a figura de Guy Fawkes é tomada por líder.
Trabalhando o ator no cinema, Morin coloca que: “o ator se torna cada vez mais
‘natural’ até parecer não mais como um monstro sagrado executando um rito, mas como
um sósia exaltado do espectador ao qual este está ligado por semelhanças e,
simultaneamente, por uma simpatia profunda” (2011, p.84). Essa fala pode ser trazida
para o contexto do grupo hacktivista. As apropriações anteriores da máscara e suas
ressignificações naturalizaram a figura, dando legitimação maior a sua fala.
O diálogo final do filme V de Vingança, inclusive, pode ser perfeitamente
aplicado à máxima do grupo, que diz que qualquer um pode ser Anonymous. A
personagem principal, Evy, é perguntada sobre a identidade de V e responde: “Ele era
Edmond Dantes [personagem do livro Conde de Monte Cristo, que foi transformando
em filme]. E ele era meu pai e minha mãe. Meu irmão. Meu amigo. Ele era você e eu.
Ele era todos nós”.
O Anonymous coloca a máscara do filme V de Vingança e outros produtos
ligados ao personagem novamente no topo das vendas. Como a máscara foi desenhada
para o filme, os direitos pertencem ao Grupo Warner. Mesmo que o grupo utilize a
imagem sem autorização ou pagamento de royalties – e até incentive a pirataria do
objeto –, ao popularizá-la novamente, dá à indústria incentivo para voltar a produzir
mercadorias com a imagem do opositor inglês. Desta forma, a Warner ainda obtém
lucro.
A máscara, na apropriação mais recente, acabou relacionada a manifestações
diversas, desde Occupy Wall Street até as manifestações que começaram em junho no
Brasil. Segundo informações do portal de notícias G111, as vendas da HQ, do filme e da
máscara (possivelmente falsificada) aumentaram depois dos protestos. Mais que isso,
outros objetos que referenciam à história de Guy Fawkes e de V - desde capas de
celulares a outros artefatos - foram criados, aproveitando esta onda de popularidade.
A indústria utiliza esse mito que é resignificado pelo grupo hacker para
recolocá-lo numa lógica de mercado, seguindo, assim, a tendência de consumo. A
identificação de uma demanda para tais produtos, ocasiona, fatalmente, a produção e
comercialização de artefatos ligados a Fawkes. Mesmo o Anonymous, que
voluntariamente não trabalharia em favor do lucro das grandes corporações, acaba
favorecendo as vendas por estar inserido em uma sociedade baseada em consumo.

Considerações finais
As manifestações de junho no Brasil destacaram a imagem de Guy Fawkes
através do uso da conhecida máscara, popularizada pelo filme V de Vingança. Neste
contexto de diferentes apropriações – pelo grupo Anonymous, pelo filme, pela HQ e
pela indústria cultural –, concluímos como o mito é assimilado por grupos com
intenções distintas, mas que acabam por se relacionar, influenciar e, até, legitimar suas
ideologias.
Como já foi dito, a regressão anormal do sentido à forma, realizada na fala
mítica, tem o poder de naturalizar o que, indiscutivelmente, é histórico. Nesta relativa
ausência de memória, deparamo-nos com uma máscara cuja representatividade se
coloca à disposição dos mais variados ideais. A peculiaridade, entretanto, encontra-se na
amplitude de usos dessa máscara: de produto comercializado a símbolo de resistência. A
simultaneidade das utilizações da máscara de Guy Fawkes atenta para o universo de
disputa simbólica.
A inter-relação entre as formas de apropriação denota a irreversibilidade do
caráter histórico do objeto – por mais que se intente eternizar a fala mítica, ela é um
discurso e, como tal, a máscara carrega uma memória. Por vezes, a perspectiva histórica
denota a contrariedade das leituras realizadas, como é o caso de Guy Fawkes. Mais do
que criticar tal acepção, entretanto, o presente artigo propõe um posicionamento similar
ao de Barthes. Conforme afirma o autor, “Exijo a possibilidade de viver plenamente a
11
Disponível em: http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2013/06/vendas-de-filme-e-hq-v-de-
vinganca-crescem-na-web-apos-protestos.html. Acesso em 13 de julho de 2013.
contradição de minha época, que pode fazer de um sarcasmo a condição da verdade”
(BARTHES: 2012, p. 12).
Deste modo, compreender tal viés propicia um melhor entendimento do próprio
modo de vida da sociedade contemporânea atual. Aludindo ao Anonymous, a máscara
de Guy Fawkes é mais do que uma ideia, ela é, antes, a reificação de um conjunto de
ideologias que, explicitamente, por se mostrarem contrárias, denotam o embate
simbólico presente na dinâmica contemporânea de lutas. Sendo assim, o desdobramento
dado à máscara – seja pelo grupo sem rosto Anonymous ou, ainda, pela indústria
cultural, um dos institutos mais mascarados e mascaradores por excelência – é, antes,
um exemplo claro de como as ideologias se apresentam e perpassam a vivência e a
compreensão humana.

Referências
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Janeiro: Zahar, 2006.
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BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Difel, 2003
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