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Chamar atenção aos efeitos da exploração capitalista, como a miséria, a fome e o conjunto
das injustiças próprias do sistema capitalista para ativar o “ímpeto revolucionário”, dizia
Reich, já não era suficiente. Tampouco acusar o comportamento conservador das massas
de “irracional”, de constituir uma “psicose de massas” ou uma “histeria coletiva” – algo que
em nada contribui para jogar luz sobre a raiz do problema, a saber, compreender a razão
pela qual a classe trabalhadora respaldava o discurso fascista que em última instância
atacava exatamente seus próprios interesses.
Nesse ponto, Reich afirmará que – e a observação dele aqui me parece profundamente
pertinente hoje – essa não correspondência não deveria surpreender aos marxistas, uma
vez que o materialismo dialético de Marx não compreende a relação entre a situação
econômica e a consciência de classe como sendo algo mecânico, ou seja, como se a
situação material determinasse esquematicamente sua expressão ideal na consciência
dos membros de uma classe social. Somente um “marxismo vulgar” concebe uma antítese
na relação entre economia e ideologia, assim como entre a “estrutura” e a “superestrutura”,
uma perspectiva precária que não leva em conta o chamado “efeito de volta” da ideologia,
isto é, as formas pelas quais a ideologia incide sobre a própria base material que a
determina. Presa a essa visão esquemática e pouco dialética, resta a essa modalidade de
marxismo vulgar apenas recorrer ao chamamento moral para que os trabalhadores
correspondam em sua ação às condições objetivas em que se inserem, clamando pela
“consciência revolucionária”, às “necessidades das massas” ou ao “impulso natural” para
as greves e a luta (p. 14). Melancolicamente, Reich conclui então que essa versão
esquemática do marxismo:
“Tentará, por exemplo, explicar uma situação histórica com base na ‘psicose hitleriana’ ou
tentará consolar as massas, persuadindo-as a não perder a fé no marxismo, assegurando-
lhes que, apesar de tudo, o processo avança, que a revolução não pode ser esmagada,
etc. O marxista comum acaba por descer ao ponto de incutir no povo uma coragem
ilusória, sem, no entanto, analisar objetivamente a situação em sem compreender sequer o
que se passou. Jamais compreenderá que uma situação difícil nunca é desesperadora para a
reação política ou que uma grave crise econômica tanto pode conduzir à barbárie como a liberdade
social. Em vez de deixar seus pensamentos e atos partirem da realidade, ele transporta
essa realidade para a sua fantasia de modo que ela corresponda aos seus desejos.” (pp.
14-5)
A miséria econômica causada pela crise atualiza a disjuntiva “socialismo ou barbárie”, mas
o que faria com que os trabalhadores optem pela alternativa socialista? Reich está
convencido de que em uma situação como essas os trabalhadores escolhem em primeiro
lugar a barbárie. O marxismo vulgar compreende a ideologia como um conjunto de ideias
que se impõe à sociedade e, portanto, aos trabalhadores. Dessa maneira, os partidários
desse tipo de perspectiva acreditam que as ideais marxistas ganham força na crise porque
desmentem na prática as ideias conservadoras. O que foge à compreensão dessa análise
é exatamente o modo de operação da ideologia, muito mais do que a definição escolástica
do “que é” ideologia.
É aqui que as relações sociais dadas são apresentadas pela pessoa em formação como
“realidade”, onde se desenvolve a transição do “princípio do prazer” para o “princípio da
realidade” e se produz um complexo processo de identificação com aquele que representa
o limite, a ordem e a norma social a ser imposta, mas, o que é essencial ao nosso tema,
que é incorporada pela pessoa como se fosse sua (autocontrole) e não uma imposição
oriunda de uma ordem social. O fundamento desse processo de interiorização, na
formação daquilo que Freud denominou de “superego”, está a repressão à sexualidade
infantil, o seu recalque e a volta como sintoma nos termos de Reich (Materialismo Dialético
e Psicanálise. Lisboa: Presença/São Paulo: Martins Fontes, 1977).
É mister lembrar neste momento que o resultado desse processo de interiorização das
relações sociais na forma de valores e normas de comportamento implica na identidade
com o agende da imposição das normas externas, no caso do complexo de Édipo descrito
por Freud na formação de uma identidade com o pai.
Dessa maneira, Reich localizará a base de uma determinada expressão de uma psicologia
de massas (a do fascismo) em dois pilares: uma certa forma de família tendo no centro a
repressão à sexualidade infantil; e o caráter da “classe média baixa”. Para ele, a repressão
à satisfação das necessidades materiais difere da repressão aos impulsos sexuais pelo
fato que a primeira leva à revolta enquanto a segunda impede a rebelião, uma vez que o
retira do domínio consciente “fixando-o como defesa moral”, fazendo com que o próprio
recalque do impulso seja inconsciente, seja visto pela pessoa como uma característica de
seu caráter. O resultado disso, segundo Reich, “é o conservadorismo, o medo a liberdade,
em resumo, a mentalidade reacionária” (Psicologia de Massas do Fascismo, p. 29).
Os setores médios não são os únicos a viverem esse processo (que é de fato universal
para nossa sociedade) mas o vivem de maneira singular. Trata-se de uma classe ou
segmento de classe espremido entre o antagonismo das classes fundamentais da
sociabilidade burguesa (a burguesia e o proletariado), desenvolvendo o curioso senso de
que estão acima das classes e representam a nação. Seus impulsos jogam os setores
médios ora para a radicalidade proletária (a luta contra as barreiras da realidade que se
levantam contra os impulsos), ora para o apelo à ordem da reação burguesa (a defesa das
barreiras sociais impostas como garantia da sobrevivência). Como o indivíduo teme seus
impulsos e clama por controle, os segmentos médios temem a quebra da ordem na qual
se equilibram precariamente e pedem controle e repressão.
Não é acidente ou casualidade que no campo dos valores reacionários vejamos alinhados
à defesa abstrata da “nação” características como o “moralismo” quanto aos costumes
(que vem inseparavelmente ligado a preconceitos, a homofobia, etc.) e a defesa da
“família”, assim como o chamado “irracionalismo”, a “violência”, o mito da xenofobia e do
racismo como constituintes da nação, e o clamor pela “ordem”. A recente cena dantesca
de “manifestantes” enrolados na bandeira do Brasil, de joelhos e mãos na cabeça, pedindo
uma intervenção militar é a imagem que condensa todos esses elementos. Por incrível que
pareça, essa não é uma sociedade “doente”, mas a sociedade “normal” exposta sem os
filtros que rotineiramente a oculta.
Os argumentos de Reich estão longe de dar conta da totalidade do fenômeno do fascismo.
Ainda que justificada, sua crítica aos marxistas oficiais (em 1931 Reich criou a Sexpol
Verlag que aglutina mais de 40 mil membros discutindo uma política sexual e suas
relações com a luta revolucionária, o que causou preocupações no Partido Comunista
austríaco e redundou na sua expulsão do partido em 1933) não pode dar conta de todos
os elementos históricos, políticos, sociais e culturais do tema que foram abordados em
inúmeras obras de competentes marxistas (de Gramsci a Adorno e Benjamin, passando
por Togliatti, Polantzas e tantos outros). Ele apenas aponta para um aspecto que
normalmente é desconsiderado. O que nos parece pertinente é que o comportamento
fascista não pode ser reduzido a manipulação e engodo, mas encontra profunda raízes na
consciência imediata das massas e seus fundamentos afetivos, seja nos segmentos
médios, seja na classe trabalhadora.
O fascismo é, na sua essência, uma expressão política da crise capitalismo em sua fase
imperialista e na etapa do domínio dos monopólios, como define Leandro Konder
(Introdução ao fascismo, São Paulo, Expressão Popular, 2009). Ele disfarça sob uma
máscara modernizadora seu conteúdo conservador, sendo antiliberal, antissocialista,
antioperário e, principalmente, antidemocrático. A dificuldade do fascismo reside
exatamente em juntar esses dois aspectos contrários em sua síntese – isto é, uma
intencionalidade à serviço do grande capital (imperialista, monopolista e financeiro) e uma
base de massas que permita apresentar seu programa reacionário como alternativa para a
“nação”. Creio que o estudo de Reich nos dá aqui uma pista valiosa. A ideologia fascista
conclama à revolta dos impulsos reprimidos (seja das necessidades materiais, seja
aqueles relativos à repressão da sexualidade) e depois oferece a ordem como alternativa,
dialogando assim diretamente com o fundamental da estrutura do caráter universalizado
pela sociabilidade burguesa, principalmente das chamadas classes médias. É, portanto,
uma política da pequena burguesia que mobiliza massas trabalhadoras para defender os
interesses do grande capital monopolista. Acreditem, realizou-se esta façanha com
eficiência e sucesso naquilo que conhecemos por nazifascismo.
“Veintiuno veintiuno
firmamento del dos mil
en el cielo la paloma
va en la mira del fusil”
Silvio Rodriguez
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